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ROMANOS

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Original em inglês:
New Testament Commentary: Romans

Author: William Hendriksen

TRADUTOR: CARLOS BIAGINI

Baker Book House

Grand Rapids, Michigan, 1980, 1981


Romanos (William Hendriksen) 2
CONTEÚDO

PREFÁCIO
ABREVIATURAS

Introdução
I. Aplicabilidade: sempre e em todo lugar
II. Escritor
III. Lugar e data de composição
IV. Destinatários
V. Ocasião e propósito
VI. Texto
VII. Tema e resumo

I. COMENTÁRIO SOBRE ROMANOS 1-11


ROMANOS 1
Romanos 1:1–15 - Prólogo
Rm 1:1–7 - Saudação
Rm 1:8–15 - Ação de graças de Paulo e seu desejo de visitar
Roma
A. A Justificação pela Fé é Real e Necessária
Romanos 1:16–32
1.Tema. Ro. 1:16–17
2. Os gentios necessitam esta justificação. Rm 1:18-32
ROMANOS 2
3. Os judeus também necessitam esta justificação. Rm 2:1 – 3:8
A. Uma descrição da autoexaltação judaica. Rm 2:17-20
B. Uma série de perguntas para o autoexame. Rm 2:21-23
C. Uma grave acusação. Rm 2:24
D. Descrição do judeu verdadeiro. Rm 2:25-27
E. Conclusão, o ponto culminante. Rm 2:28, 29
Romanos (William Hendriksen) 3
ROMANOS 3
Romanos 3:1-8
Romanos 3:9-31
4. Como resultado: “Não há nenhum justo”. Rm 3:9-20
5. “Justiça por meio da fé em Jesus Cristo”. Rm 3:21-31
B. A Justificação pela Fé é Bíblica
ROMANOS 4
1. O Exemplo de Abraão. Rm 4:1-12
2. O exemplo demonstra justiça por meio da fé. Rm 4:13-25

C. A Justificação pela Fé é Eficaz


ROMANOS 5
1a. Produz o fruto da paz. Rm 5:1–11
1b. Paralelo Adão — Cristo. Rm 5:12–21
ROMANOS 6
2a. Produz o fruto da santidade. Rm 6:1–14
2b. Quem é o seu senhor — o pecado ou Deus? Rm 6:15–23
ROMANOS 7
3a. Produz o fruto da liberdade da lei. Rm 7:1–6
3b. A relação do pecador para com a lei de Deus. Rm 7:7–13
3c. A experiência pessoal de Paulo. Rm 7:14–25
ROMANOS 8
4a. “Não há condenação”: Rm 8:1–30
4b. Produz o fruto de super invencibilidade. Rm 8:31–39
Resumo de Romanos 1–8 e antecipação de Romanos 9–11

D. A Justificação pela Fé é Histórica


ROMANOS 9
1. A tristeza de Paulo. Rm 9:1–5
2. Eleição e rejeição divinas. Rm 9:6–18
Romanos (William Hendriksen) 4
3. A ira e a misericórdia de Deus. Rm 9:19–29
4. Conclusão. Rm 9:30–33
ROMANOS 10
5. A autojustificação diante da justiça de Deus. Rm 10:1–13
6. Israel é responsável por sua própria rejeição. Rm 10:14–21
ROMANOS 11
A Eleição da Minoria (ou o Remanescente) de Israel
Rm 11:1–10 - Os escolhidos
Rm 11:11-24 - Ramos enxertados
Rm 11:25-32 - A misericórdia de Deus
Rm 11:33-36 – Doxologia

II. APLICAÇÃO PRÁTICA: ROMANOS 12-16


I. CORPO PRINCIPAL
ROMANOS 12
A. Atitude do justificado para com Deus. Rm 12:1, 2
B. Atitude do justificado para com o corpo de Cristo. Rm 12:3–8
C. Atitude do justificado para com outros cristãos. Rm 12:9-13
D. Atitude do justificado para com os estranhos, incluindo os
inimigos. Rm 12:14–21
ROMANOS 13
E. Atitude do justificado para com as autoridades. Rm 13:1-7
F. Atitude do justificado para com todos. Rm 13:8–10
G. Atitude do justificado para com o Senhor Jesus. Rm 13:11-14
ROMANOS 14
H. Atitude do justificado para com o fraco e o forte. Rm 14:1-23
ROMANOS 15
I. Atitude do justificado para com o fraco e o forte (continuação).
Rm 15:1-13
Romanos (William Hendriksen) 5
II. CONCLUSÃO
J. Recomendações finais. Rm 15:14–16
K. Olhar retrospectivo. Rm 15:17–22
L. Plano para o futuro. Rm 15:23–29
M. Pedido de oração. Rm 15:30–33
ROMANOS 16
N. Recomendação de Febe. As saudações do próprio Paulo e
as de todas as igrejas. Rm 16:1–16
O. Advertência final. Rm 16:17–20
P. Saudações de amigos. Rm 16:21–23
Q. Doxologia. Rm 16:25–27

APÊNDICE

BIBLIOGRAFIA SELETA

BIBLIOGRAFIA GERAL
Romanos (William Hendriksen) 6
PREFÁCIO
Romanos é um livro que dá calor ao coração. Abunda em instrução
que diz respeito tanto à vida como à doutrina. Comunica consolo na vida
e, como todo fiel pastor sabe, e como tantas outras pessoas testificaram,
também na hora da morte.
Contudo, este livro é muito controverso. Há muitas passagens nas
quais intérpretes de renome diferem. Com relação a temas em disputa
não tratei que evitar expressar meu ponto de vista. Entre eles, no que
concerne aos capítulos 1–8, menciono os seguintes:
1. Paulo escreve: “A todos que estão em Roma que são amados de
Deus” (Rm 1:7). Eram os destinatários predominantemente judeus ou
predominantemente gentios? Veja-se pp. 32–35.
2. Quando o apóstolo usa o verbo justificar ou o substantivo
justificação em passagens tais como Rm 3:24; 4:25; 5:1, 16, 18, usa ele
estas palavras em (a) um sentido causativo, ou (b) num sentido
declarativo (forense). Veja-se pp. 149, 273.
3. Em Rm 5:1, disse Paulo; (a) “Temos paz”, (b) “Tenhamos (ou:
continuemos tendo) paz”, ou (c) “Desfrutemos da paz que temos”? Veja-
se nota 140.
4. Quem é a pessoa descrita em Rm 7:14–25? É: (a) um incrédulo,
(b) um crente imaturo, ou (c) Paulo mesmo, o crente e, por extensão, o
crente em geral? Veja-se sobre esta passagem.
5. Quando o apóstolo afirma em Rm 8:26b que: “O Espírito mesmo
(α_τ_ τ_ πνε_μα) intercede por nós com gemidos inexprimíveis”, quer
ele dizer que é realmente o Espírito quem geme, ou quer dizer que nós
gememos, repetindo o pensamento do v. 23? Veja-se sobre esta
passagem.
Romanos (William Hendriksen) 7
ABREVIATURAS
A. Abreviaturas de livros

B.J. Bíblia de Jerusalém


C.N.T. Comentário do Novo Testamento, W. Hendriksen
Gram. N.T. A.T. Robertson, Grammar of the Greek New
Testament in the Light of Historical Research
Gram. N.T. (Bl.-Debr.) F. Blass y. A. De Brunner, A Greek
Grammar of the New Testament and Other Early Christian
Literature
Grk. N.T. (A-B-M-W) The Greek New Testament, editado por
Kurt Aland, Matthew Black, Bruce M. Metzger, y Allen Wikgren
I.S.B.E. International Standard Bible Encyclopedia
L.N.T. (Th) Greek-English Lexicon of the New Testament, de
Thayer
L.N.T. (A. and G.) W.F. Arndt y F.W. Gingrich, A Greek-English
Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature
M.M. The Vocabulary of the Greek New Testament Illustrated
from the Payri and Other Non-Literary Sources, por James Hope
Moulton and George Milligan
N.I.V. New International Version
N.V.I. Nova Versão Internacional
S.BK. Strack y Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament aus
Talmud und Midrasch
S.H.E.R.K. The New Schaff-Herzog Encyclopedia of Religious
Knowledge
Th.D.N.T. Theological Dictionary of the New Testament editado
por G. Kittel y G. Friedrich, y traducido de alemán al inglés por G.
W. Bromiley
NTLH Nova Tradução na Linguagem de Hoje
RA 1999 Versão Almeida Atualizada
Romanos (William Hendriksen) 8
RC 1998 Versão Almeida Corrigida
TB Tradução Brasileira

Abreviaturas de Revistas

ET Expository Times

GTT Gereformeerd theologisch tijdschrift

JBL Journal of Biblical Literature

ThG Theologie und Glaube

ThZ Theologische Zeitschrift

NOTA

A tradução do texto grego em que o autor se baseia para seu


comentário é própria do autor.
Romanos (William Hendriksen) 9
INTRODUÇÃO À EPÍSTOLA DE PAULO AOS ROMANOS
I. Aplicabilidade: sempre e em todo lugar

A igreja em Roma estava formada por judeus e gentios. Qual grupo


preponderava? Veja-se Seção IV desta Introdução; veja-se também as
seguintes passagens: Rm 1:5, 6, 13; 2:17ss.; 7:1–6; 11:13, 15:15s. Existia
o perigo de que um grupo olhasse ao outro com desdém: os judeus aos
gentios (Rm 2:1s), os gentios aos judeus (Rm 11:18). Paulo, como
resultado, destaca que “não há distinção entre grego e judeu, porque o
próprio Senhor é Senhor de todos” (Rm 10:12).
Também hoje é necessário que se sublinhe esta verdade visto que,
num sentido, o fato de que “diante de Deus todos os homens são iguais”,
não é de modo algum reconhecido universalmente. Nem sequer a igreja,
triste é dizê-lo, tomou sempre a sério as plenas implicações deste
princípio.
As pessoas a quem se dirige esta epístola estavam também expostas
a outro mal, ou seja, a heresia de inferir que, visto que a salvação não
depende da obras mas descansa totalmente na graça, por isso o fazer
boas obras é desnecessário; na verdade, até poderia chegar a ser um
obstáculo para um desenvolvimento espiritual pleno. Se a salvação é o
produto da graça, por que não, por meio de uma vida de pecado, oferecer
à graça um amplo campo para operar? Por que não “continuar em pecado
para que a graça abunde”? Veja-se Rm 6:1.
Paulo refuta muito decisivamente este modo de pensar. Ele
argumenta que para aqueles que “foram unidos a Cristo” (Rm 6:5) tal
curso de ação é simplesmente impossível, e que aqueles que pensam de
outro modo operam sob uma perniciosa ilusão: “Porque o pagamento do
pecado é morte, mas a dádiva de Deus é vida eterna em Cristo Jesus
nosso Senhor” (Rm 6:23).
Hoje também, especialmente em certos círculos fundamentalistas,
está se propagando uma espécie de antinomianismo. Somos informados
Romanos (William Hendriksen) 10
que o crente não está sob a lei de modo algum. Como resultado,
enquanto ele confiar em Cristo como seu Salvador pessoal, pode fazer
mais ou menos o que quiser. As obras não têm nenhum valor. Ou acaso
não disse Paulo: “Porque pela graça sois salvos por meio da fé; e isto não
de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie?”
A resposta é esta: citar Paulo sem incluir todo o contexto é
injustificável. Paulo continua: “Porque somos obra de suas mãos, criados
em Jesus Cristo para boas obras, que Deus preparou de antemão para
que andássemos nelas”. Quem cita Ef 2:8, 9 deve também citar o v. 10.
Quem apela para Tito 3:5a deve também dar o mesmo peso aos vv. 5b e
14.
A denúncia que Paulo faz aqui em Romanos do antinomianismo é
devastadora, assoladora: “Nós que morremos para o pecado, como
seguiremos vivendo nele?” (Rm 6:2). E com relação à que não estamos
em nenhum sentido sob a lei, Rm 13:8, 9 ensina o oposto. Também o
fazem 1Co 9:21; Gl 5:14.
O mundo greco-romano do tempo de Paulo, sem dúvida era um
mundo sem esperança. Era um âmbito cheio de desespero. Segundo o
conceito grego (e depois também o romano), quando chega a morte não
há esperança para o corpo, nem sequer para a alma. Com relutância esta
parte do corpo, quer seja com o último suspiro agônico ou através das
feridas abertas, entra no muito lúgubre âmbito das sombras. Ou senão
simplesmente cessa de existir. Os estoicos em sua maioria pensavam que
é o universo racional aquele que permanece; os indivíduos não. A Ilíada
finaliza com ritos funerários.
Uma atitude bastante similar prevalece hoje entre muitas pessoas.
Com relação a qualquer tipo de vida depois desta vida, a incerteza reina
suprema. E com relação ao futuro da humanidade aqui sobre a terra, o
pessimismo vai ganhando cada vez mais a vantagem. Fala-se muito
pouco hoje de “assegurar o mundo para a democracia” ou de “livrar uma
guerra para terminar com todas as guerras”. Até em certos círculos
Romanos (William Hendriksen) 11
religiosos se desaprova a ação cristã combinada para promover a glória
de Deus em todas as esferas da vida.
Também neste aspecto o estudo do livro de Romanos tem sua
recompensa. Este livro oferece esperança. Com efeito, o tema da
esperança — com relação ao qual podem também se consultar os livros
dos Salmos, Atos, Hebreus, e especialmente 1 Pedro — menciona-se
com mais frequência em Romanos que em qualquer outro dos livros do
Novo Testamento. O apóstolo até chega a dizer que “foi em esperança
que fomos salvos” (Rm 8:24), uma esperança bem fundamentada (Rm
8:26–39). Ele chama o Ser divino “o Deus da esperança” (Rm 15:13).
Do princípio ao fim este livro proclama as boas novas (Rm 3:24; 4:16–
25; 7:24, 25, o cap. 8 em sua totalidade; Rm 11:33–36; 13:8–14; 16:25–
27). Alenta também à ação cristã (Rm 12:9–12; 13:7; 14:19; 15:30; 16:1,
2).
À raiz de toda pergunta está a questão com relação à culpabilidade
do homem. “Como pode um homem ser justo diante de Deus?” (Jó 9:2;
25:4). Paulo também formula esta pergunta. O mesmo fez Lutero, e
também o fazem todos, consciente ou inconscientemente. Romanos a
responde.
Portanto, é um livro para toda época, inclusive a nossa.

II. Escritor

Com poucas exceções, os eruditos concordam em que certamente


foi o apóstolo Paulo quem escreveu Romanos. A evidência a favor desta
conclusão pode ser considerada, sem exagero, esmagadora. Os
argumentos que se apresentaram contra ele — por exemplo: “Lucas, no
livro de Atos, nunca menciona o estabelecimento de uma igreja em
Roma; de modo que Paulo não poderia ter escrito a carta aos romanos”
— são tão absurdos que não merecem nenhum comentário adicional.
Romanos (William Hendriksen) 12
Com a intenção de levar o um efeito culminante, a evidência a favor
da paternidade literária paulina será traçada numa ordem cronológica
inversa (do mais recente ao mais antigo).
Eusébio, o grande historiador eclesiástico, ao escrever a princípios
do quarto século, refere-se a: “as quatorze [sic!] cartas de Paulo”, e no
mesmo contexto (História eclesiástica III.iii. 4, 5) faz menção de que
Romanos era uma delas. Orígenes (floresceu entre 210 e 250), Tertuliano
(floresceu entre 193 e 216), e Clemente de Alexandria (floresceu entre
190 e 200) estão de pleno acordo.
O Fragmento do Muratori (cerca de 180–200), assim chamado por
ter sido publicado pelo Cardeal Ludovico A. Muratori (1672–1750), que
o tinha descoberto na Biblioteca Ambrosiana de Milão, contém a mais
antiga lista existente de escritos neotestamentários. A mesma está
incompleta, escrita num mau latim e inclui títulos de livros que eram
lidos na igreja de Roma na antiguidade. Em relação a Romanos, este
Fragmento diz:

“Agora, as epístolas de Paulo, o que são, de onde e por que razão


foram enviadas, esclarecem-no elas mesmas a quem está disposto a
entender. Em primeiro lugar, ele escreveu extensamente aos coríntios …
logo aos gálatas … e aos romanos com relação à ordem das Escrituras,
intimando também que Cristo é o tema central delas”.

Irineu (que floresceu entre 182 e 188) afirma: “Paulo, ao falar com
os romanos, declara: “muito mais, aqueles que recebem abundância de
graça e justiça reinarão na vida por este, Cristo Jesus’ ” (Contra
Heresias, III, xVI), citando livremente Rm 5:17. Nesta e em várias
outras afirmações Irineu claramente adjudica a paternidade literária de
Romanos a Paulo.
Retrocedendo ainda mais chegamos aos dias de Marcião, que veio
para Roma pouco antes do ano 144. Seu cânon de escritos sagrados
consiste em dez epístolas paulinas, mais Lucas, todas editadas para
Romanos (William Hendriksen) 13
quadrar com a teologia pessoal do herege. Ele reconhece Romanos como
uma das obras principais de Paulo.
Os primitivos pais apostólicos não tinham o hábito de mencionar o
nome dos santos homens de Deus aos quais citavam. No entanto, o fato
de que estão citando, quer literalmente ou (com a mesma frequência)
livremente, com frequência é muito claro, como o é também a identidade
daquele a quem citam.
Isto é certo, por exemplo, de Policarpo, bispo de Esmirna. Este
valente herói cristão, “discípulo de João”, sofreu martírio no ano 155.
Em sua epístola Aos filipenses Vi. ii, ele demonstra estar bem versado
nas epístolas de Paulo, inclusive Romanos. Numa frase que reflete ao
mesmo tempo Rm 14:10, 12 e a 2Co. 5:10 ele escreve: “Então, se
rogarmos ao Senhor que nos perdoe, nós mesmos deveríamos também
perdoar, porque estamos diante dos olhos do Senhor Deus, e todos
devemos comparecer diante do trono de Cristo, e cada qual deve dar
conta de si mesmo”. A seguinte citação desta mesma carta mostra que a
mente e o coração deste devoto mártir antigo estavam imersos nos
escritos de Paulo:

“Estas coisas, irmãos, escrevo-lhes isso com relação à justiça. Não


o faço de minha própria iniciativa, mas em primeiro lugar porque vós me
convidastes. Porque eu não sou, nem o é nenhum outro como eu, capaz
de igualar à sabedoria do bendito e glorioso Paulo, quem, quando vivia
entre vós, na presença de seus contemporâneos ensinou precisa e
resolutamente a palavra da verdade, e quem também, quando esteve
ausente, escreveu-lhes cartas. Por meio do estudo destas cartas vós sereis
capazes de edificar-vos na fé que vos foi dada …” III. i, ii.

Inácio, bispo de Antioquia, enquanto ia em caminho para Roma e


ao martírio, a começos do segundo século depois de Cristo, escreveu
várias cartas, principalmente de novo mostram com clareza que ele
Romanos (William Hendriksen) 14
conhecia e tinha em muito alta estima as epístolas de Paulo, incluindo
Romanos. Note-se, por exemplo, os seguintes parecidos:

Romanos Cf. Inácio


Aos Efésios

Rm 1:3 da semente de Davi XVIII. ii

Rm 4:20 foi fortalecido em fé X. ii

Rm 8:5, 8 gente carnal versus espiritual VIII. ii

Rm 6:4 nova vida XIX. iii

Um dos grandes admiradores de Paulo foi Clemente, bispo de


Roma durante as últimas décadas do primeiro século. Em sua carta Aos
coríntios ele escreve: “Tomem a epístola do bendito Paulo, o apóstolo …
Com verdadeira inspiração ele vos admoestou com relação a si mesmo e
a Cefas e a Apolo, porque até então lhes entregavam a discórdias
partidárias”. Cf. 1Co 3:1–9. Que ele também conhecia plenamente outra
epístola escrita pelo apóstolo, ou seja, Romanos, fica claro a partir de
XXXV.v, vi. Cf. Rm 1:29–32. Neste caso não somente usa muitas das
palavras de Paulo, mas até coloca algumas delas na mesma ordem:
“Injustiça, maldade, avareza (ou inveja)”. E no fechamento deste
pequeno parágrafo compare-se as palavras de Clemente: “Não só aqueles
que as fazem são odiosos diante de Deus, mas também aqueles que as
aprovam”, com as de Paulo: “Eles não só continuam nelas mas também
aprovam aqueles que as praticam”.
Isto nos traz, finalmente, aos apóstolos e a seus próprios escritos.
2Pe 3:15, 16 diz:
Romanos (William Hendriksen) 15
“Tenham em mente que a paciência de nosso Senhor significa
salvação, assim como nosso amado irmão Paulo, segundo a sabedoria
que lhe foi dada, escreveu-lhes, como também (o escreve) em todas as
suas cartas, falando nelas destes assuntos …”

Não admira, então, que haja um estreito parecido entre as cartas de


Pedro e as de Paulo, como se torna evidente especialmente quando fica a
Romanos e a 1 Pedro ao mesmo tempo:

Romanos Cf. 1 Pedro

Rm 12:1 um sacrifício agradável a Deus 1Pe 2:5

Rm 12:2 que vos molde 1Pe 1:14

Rm 12:3 que Deus lhe tenha outorgado 1Pe 4:10

Rm 12:9 amor genuíno (veja-se original) 1Pe 1:22 (original)

Ro. 12:10 amor fraternal 1Pe. 2:17

Em conclusão, quem quer que rejeite a paternidade literária paulina


de Romanos deve também rejeitar a paternidade paulina de 1 e 2
Coríntios, de Gálatas, de Efésios, de Colossenses, etc. O escritor que em
Rm 3:20–24; 4:3 proclama a profundamente satisfatória doutrina de
“justificação não por méritos humanos mas pela fé” também o faz em Gl
2:16; 3:6, 11; Tt 3:5–7. O inspirado artista que em Rm 12:5 descreve à
igreja como o corpo de Cristo com seus muitos membros não mudou sua
Romanos (William Hendriksen) 16
identidade em 1Co 10:17; 12:12–14, 27; Ef 1:22, 23; Cl 2:19. O
exortador que em Rm 12:6–8 insiste em que estes membros usassem
seus respectivos talentos para benefício de todo o corpo enfatiza o
mesmo dever em 1Co 12:15–26, 12:28, 12:31; Ef 4:11–16. E o generoso
e entusiasta filantropo de Rm 15:15–28 é também o coletor de doações e
benfeitor de 2Co 8 e 9. Ele se chama a si mesmo “Paulo, servo de Jesus
Cristo, apóstolo” (Rm 1:1). Temos todas as razões para crer nisso.
Saulo, cujo nome romano era Paulo, 1 nasceu em Tarso, um centro
da cultura grega, uma cidade universitária situada na Cilícia, perto do
rincão nordeste do mediterrâneo. Recebeu sua primeira educação em
Jerusalém daquele tão distinto doutor da lei, Gamaliel, neto do famoso
Hillel. As testemunhas que apedrejaram a Estêvão colocaram suas vestes
aos pés de Paulo (At 7:58). Imediatamente depois da morte de Estêvão
Paulo tomou um papel dominante na perseguição dos cristãos. Ele pôs
toda sua alma em tal tarefa “Respirava ameaças e matanças contra os
discípulos do Senhor” (At 9:1). Não satisfeito em fazer perseguição em
Jerusalém, ainda pediu do sumo sacerdote cartas para a sinagoga de
Damasco para poder trazer em cadeias a Jerusalém “a qualquer que fosse
do Caminho, quer fossem homens ou mulheres” (At 9:2).
Então sucedeu algo que causaria uma mudança radical não só na
vida de Saulo de Tarso, mas também no curso de toda a história futura.
Era a hora do meio-dia e o sol brilhava com toda sua força. Paulo se
aproximava de Damasco com o fim de destruir a comunidade cristã
dessa cidade. Repentinamente, uma luz do céu, mais brilhante que o sol,
resplandeceu ao seu redor. “E ele caiu por terra, e ouviu uma voz
dizendo: Saulo, Saulo, por que me persegues? E ele disse: Quem és tu,
Senhor? A voz respondeu: “Eu sou Jesus a quem estás perseguindo, mas
levanta e entra na cidade, e lá te dirão o que deves fazer” (At 9:3–6).
Os homens que acompanharam a Paulo viram a luz, porém não
puderam distinguir a Pessoa. Ouviram a voz ou som, porém não puderam

1
Para mais informação com relação a estes nomes veja-se C.N.T. sobre 1 e 2 Tessalonicenses, p. 48.
Romanos (William Hendriksen) 17
entender as palavras. Paulo, por outro lado, viu o Senhor e ouviu Suas
palavras. Chegando a Damasco, recebeu sua vista através do ministério
de Ananias, quem também o batizou. Ele começou a sua obra
evangelística em Damasco:
E imediatamente proclamou na sinagoga a Jesus, dizendo que este
é o Filho de Deus. E todos os que o ouviam estavam assombrados e
perguntaram: “Não é este o homem que em Jerusalém fazia estragos
entre aqueles que invocavam este nome? E não veio ele aqui com o
propósito de levá-los acorrentados diante dos principais sacerdotes?”
Mas Saulo aumentava cada vez mais em força, e confundia os judeus
que habitavam em Damasco, demonstrando que Jesus era o Cristo (At
9:20–22).
Paulo passou certo tempo na Arábia, mas as Escrituras não nos
dizem o que fez ali. Quando voltou a Damasco, sua pregação causou tal
oposição que teve que fugir por sua vida, porque os judeus tramavam
matá-lo. Estes tinham a cooperação das autoridades civis. O relato de
Paulo é como segue:
Em Damasco, o governador preposto do rei Aretas montou guarda
na cidade dos damascenos, para me prender; mas, num grande cesto,
me desceram por uma janela da muralha abaixo, e assim me livrei das
suas mãos (2Co. 11:32, 33).
Depois de completar três anos completos de sua conversão, Paulo
chegou a Jerusalém (Gl 1:18). Procurou unir-se aos discípulos mas todos
eles tinham medo dele, porque não criam que era realmente um
discípulo. Mas Barnabé, um levita de Chipre de grande coração, que se
tinha convertido anteriormente (At 4:36, 37), tirou o temor deles e
apresentou Paulo a Pedro e a Tiago, o irmão do Senhor. “Visitar Cefas
[Pedro]” tinha sido o propósito de Paulo quando partiu de Damasco (Gl
1:18). Enquanto estava em Jerusalém, o antigo perseguidor pregava
intrepidamente aos judeus de fala grega (At 9:28, 29). Eles
imediatamente se confabularam para matá-lo. Como resultado, os irmãos
Romanos (William Hendriksen) 18
decidiram enviar Paulo a outro lugar. Numa visão o próprio Senhor
confirmou esta decisão.
Paulo tinha passado somente quinze dias com Pedro, como o
mesmo o afirma em Gl 1:18. Isto está em total harmonia com o relato
que encontramos em At 22:17–21:
Tendo eu voltado para Jerusalém, enquanto orava no templo,
sobreveio-me um êxtase, e vi aquele que falava comigo: Apressa-te e sai
logo de Jerusalém, porque não receberão o teu testemunho a meu
respeito. … Vai, porque eu te enviarei para longe, aos gentios.
Portanto, o apóstolo deixou Jerusalém antes que tinha visto o resto
dos apóstolos e antes que as igrejas da Judeia pudessem conhecê-lo de
vista. No entanto, os crentes de todas as partes tinham ouvido a boa
nova. “O homem que nos tinha perseguido uma vez está agora pregando
a fé que anteriormente tinha procurado destruir”. Eles glorificaram a
Deus (Gl 1:23).
Os amigos de Paulo o levaram a Cesareia e o enviaram a Tarso. É
provável que o apóstolo trabalhasse em Tarso e no território circundante
durante vários anos, fundando as igrejas que se mencionam em At 15:41.
Quando Barnabé, que tinha sido enviado a Antioquia da Síria, viu o
progresso do evangelho nessa grande cidade e a necessidade de um
colaborador adicional, foi a Tarso a fim de buscar Paulo e o trouxe para
Antioquia. Juntos trabalharam ali durante um ano. A igreja cresceu
rapidamente e se transformou no ponto de partida da missão de Paulo ao
mundo pagão (At 9:30; 11:20–26).
Mais ou menos neste tempo houve uma grande fome “por todo
mundo”, tal como a havia predito o profeta Ágabo. Lucas diz que esta
fome sucedeu nos dias de Cláudio (At 11:28). Este foi imperador durante
os anos 41–54. Em Antioquia foram feitas contribuições para ajudar os
cristãos que estavam na Judeia. Pela mão de Barnabé e Paulo estas foram
enviadas a Jerusalém. Esta viagem provavelmente ocorreu lá pelo ano
44, pouco antes da morte de Herodes Agripa I (At 12:1). Os dois
homens, tendo cumprido sua missão, voltaram a Antioquia.
Romanos (William Hendriksen) 19
A extensão da igreja a partir de Antioquia por meio de três grandes
viagens missionárias começou neste tempo. O Espírito Santo dirigiu a
igreja a comissionar a Barnabé e Paulo para a obra à qual Deus os havia
chamado. Assim foi que “jejuando, e orando, e impondo sobre eles as
mãos, os despediram” (At 13:1–3). Não sabemos quanto tempo levou
esta primeira viagem missionária. O que podemos dizer é que se deve
atribuir, em geral, ao período de 44–50. Os detalhes desta viagem,
seguido do concílio em Jerusalém, acham-se em At 13:1–15:35. Fica
claro que nesta viagem Paulo e seus companheiros não viajaram muito
para o oeste. A viagem ficou limitado à ilha de Chipre e à parte sul da
província romana da Galácia.
A segunda viagem é descrita em At 15:36–18:22. Sua data provável
é 50/51–53/54. A mesma cobriu muito mais território que a primeira
viagem. Na verdade, desta vez os missionários não ficaram na Ásia, mas
conseguiram entrar na Europa. Levou-se a cabo uma obra evangelística
na Macedônia (Grécia do norte) e na Acaia (Grécia do sul). As cidades
visitadas foram respectivamente (a) Filipos, Tessalônica, Bereia; e (b)
Atenas e Corinto. Nesta última cidade, Paulo permaneceu muito tempo
(At 18:11, 18), pregando e mantendo-se a si mesmo, trabalhando em seu
ofício de manufatura de tendas. Foi também desde esta cidade que o
apóstolo enviou sua epístola aos gálatas e, talvez um pouco mais tarde,
as duas epístolas aos tessalonicenses. Na viagem de volta desta viagem
Paulo se deteve em Éfeso, porém não permaneceu ali muito tempo. Ele
prometeu, entretanto, voltar (At 18:20, 21). Via Cesareia ele, finalmente,
voltou a Antioquia.
Em sua terceira viagem (53/54–57/58; At 18:23–21:16) Paulo,
“depois de ter passado pela região superior”, chegou a Éfeso, cumprindo
assim sua promessa (At 19:1). Permaneceu ali muito tempo (At 19:8, 10;
20:31) e teve muito êxito. É provável que todas, ou a maioria, das “sete
igrejas da Ásia” (Ap 1:4) fossem fundadas durante este período.
Também pareceria que antes de escrever 1 Coríntios o apóstolo tivesse
feito uma segunda visita a Corinto (2Co. 12:14; 13:1), voltando um
Romanos (William Hendriksen) 20
pouco depois a Éfeso. Um pouco mais tarde enviou uma carta aos
coríntios, aquela que chamamos 1 Coríntios.
Ao deixar finalmente Éfeso, Paulo foi a Macedônia. Foi aqui (talvez
em Filipos?) que escreveu 2 Coríntios. E assim o apóstolo chegou por
fim a Corinto, sua terceira visita a tal cidade. E foi quando estava prestes
a partir de Corinto que escreveu Romanos (Rm 15:22–25; cf. At 20:3).
O triunfo do evangelho durante o período das três viagens
missionárias de Paulo foi realmente assombroso. Estimou-se que no
fechamento do período apostólico o número total de cristãos no mundo
tinha chegado a meio milhão. Foram muitos os missionários e
testemunhas leigas que contribuíram para obter tal resultado. Sem dúvida,
o operário mais eficaz de todos eles foi “o vaso escolhido de Deus”, o
apóstolo Paulo. Ele era “uma hebreu de hebreus”, um cidadão romano
por nascimento, e versado na “sabedoria” dos gregos.
Havia certos fatores externos que favoreceram Paulo e a sua
mensagem, tais como:
1. um governo mundial
2. paz mundial
3. uma linguagem mundial (o grego)
4. as famosas estradas romanas que uniam as diferentes partes do
mundo
5. um cepticismo mundial com relação às deidades pagãs
6. a dispersão dos judeus e de sua religião monoteísta entre as
nações do mundo
7. a tradução do Antigo Testamento ao grego, em certo sentido a
linguagem mundial
Contudo, também havia obstáculos formidáveis. O viajar de um
lado a outro do Império Romano para abrir caminho ao evangelho era
uma tarefa cheia de grandes perigos (2Co 11:23–28). Além disso, os
inimigos eram muitos e implacáveis. Como resultado, embora não
desejamos tirar nada do significado das circunstâncias favoráveis antes
Romanos (William Hendriksen) 21
mencionadas, mais que isso era necessário para que o evangelho
triunfasse. Mais foi também divinamente provido.
Deus, em Sua maravilhosa providência, preparou não só as
condições externas que favorecessem o crescimento do cristianismo, mas
também o homem que ia fazer uso de tais condições. Paulo tinha sido
“separado desde o ventre de sua mãe” para proclamar o evangelho aos
gentios (Gl 1:15–17).
Que tipo de pessoa, então, era Paulo?
Era um homem com um brilhante intelecto, uma vontade de ferro, e
um coração compassivo.

1. Brilhante intelecto
Paulo era um pensador de primeira ordem, um homem com uma
mente penetrante, bem versado no Antigo Testamento e capaz de captar
a relação entre suas preciosas passagens e a doutrina da salvação em
Cristo. Longe de ser o criador de um sistema teológico completamente
novo, como alguns parecem pensar, ele descobriu a doutrina da
justificação pela fé em passagens do Antigo Testamento tais como Gn
15:6; Sl. 32:1s; Hc 2:4. Cf. Rm 1:17; 3:21s.; 4:3. Ele também
compreendeu que o que tornava possível esta solução maravilhosamente
misericordiosa ao problema da culpa do homem era o sacrifício vicário
do Messias, como ensina Isaías 53. Que Paulo na verdade estava bem
versado no conteúdo deste capítulo fica claro a partir de Rm 10:16 (cf. Is
53:1), e provavelmente está também indicado em 1Co 15:3 (cf. Is 53:5–
12). E não poderiam as seguintes referências apontar na mesma direção:
Rm 4:25 (cf. Is 53:4, 5); Rm 5:19 (cf. Is 53:11); Rm 8:34 (cf. Is 53:12); e
1Co 5:7 (cf. Is 53:7)?
Este plano de salvação está em harmonia com as palavras de Jesus
Cristo registradas em Mt 20:28; Mc 10:45; Jo 6:51; 10:11, 14, 16, 28; e
também com aquelas ditas pelo Senhor com relação à instituição da
Santa Ceia, e registradas tanto por Paulo (1Co 11:23–26) como por seu
Romanos (William Hendriksen) 22
próximo amigo e frequente companheiro de viagens, Lucas (com relação
aos quais cf. C.N.T. sobre Lucas 22:19, 20).
Várias passagens das epístolas de Paulo revelam uma consumada
habilidade literária. Com relação a isso, geralmente se faz referência a
Rm 8, 1Co 13, e 1Co 15. Mas acaso não são a linguagem e o estilo das
seguintes passagens igualmente soberbas: Rm 2:17–29; 5:1–11; cap. 12;
1Co 4:11–13; 2Co 5:1–10; 11:22–33; Gl 2:19–21; Ef 2:8–10; 2:14–21;
6:10–20; Fp 3:7–21; 4:4–9; 1Tm. 3:16?
Há uma combinação de astúcia e sabedoria que é evidente no que
podemos chamar a estratégia missionária de Paulo, que abrange pontos
tais como os seguintes:
a. Trabalhar nos grandes centros urbanos, de modo que a mensagem
possa estender-se dali aos povos e vilas circundantes.
b. Fazer uso da sinagoga para alcançar não somente aos judeus, mas
também aos prosélitos gentios.
c. Demonstrar que os acontecimentos da nova dispensação são o
cumprimento das profecias da antiga dispensação.
d. Adaptar a mensagem do evangelho à cultura e necessidades de
seus ouvintes.
e. Efetuar obra de seguimento por meio de novas visitas, cartas, e
enviados especiais.
f. Promover a unidade entre rico e pobre, gentio e judeu, pedindo às
igrejas mais prósperas que ajudassem às mais pobres.

2. Vontade de ferro
Junto com sua mente penetrante estava a invencível determinação
de Paulo de ser canal de bênção para os homens. Seu lema era: “Ai de
mim se não pregar o evangelho … a todos me tenho feito de tudo, para
de qualquer maneira salvar a alguns” (1Co 9:22), para a glória de Deus
(1Co 10:31).
Este indomável propósito e resolução certamente deve ser
considerado como dado para explicar a disposição do apóstolo de sofrer
Romanos (William Hendriksen) 23
perseguição por amor da causa à qual estava tão ardentemente dedicado.
Quão tremendo o seu sacrifício! Quão ilimitada a sua disposição para
sofrer por amor a Cristo e ao seu reino! Aqui estão as próprias palavras
de Paulo, 2Co 11:23–28:
Em trabalhos muito mais abundante,
Nas prisões com mais frequência,
Em açoites para além da medida,
Em exposição à morte com frequência.
Dos judeus cinco vezes recebi quarenta açoites menos um.
Três vezes fui açoitado com varas,
Uma vez fui apedrejado,
Três vezes sofri naufrágio,
Uma noite e um dia estive na profundidade;
Em viagens frequentemente,
Em perigos de rios,
Em perigos de ladrões,
Em perigos da parte de meus compatriotas,
Em perigos da parte dos gentios,
Em perigos na cidade,
Em perigos no deserto,
Em perigos no mar;
Em perigos entre falsos irmãos,
Em trabalho e fadiga,
Em insônias frequentemente,
Em fome e sede,
Em jejuns frequentes,
Em frio e nudez.
E, além de tudo isso
Está aquilo que pesa sobre mim diariamente,
A preocupação por todas as igrejas.
Ainda se nos limitamos à história de Paulo que se registra no livro
de Atos ficamos assombrados da quantidade de sofrimentos que este
Romanos (William Hendriksen) 24
herói da fé estava disposto a sofrer por obter seu invariável e ardente
propósito. Mas quando acrescentamos ao detalhe de Atos o que o
próprio Paulo nos diz aqui em 2Co 11, faltam palavras para expressar
nossa admiração por este grande dom de Deus à igreja! Cf. J. D. Quin,
“Seven times he wore chains”, J.B.L., dic. 1978, pp. 574–575.
Mais ainda, deve ter-se em mente que 2Co 11 foi escrita antes da
prisão do apóstolo em Jerusalém, Cesareia e Roma (At 20:22, 23; 21:11,
27–28:31). Isto também significa, naturalmente, que Paulo já tinha
experimentado todas as provas mencionadas em 2Co 11 antes de
compor sua epístola aos romanos! Tendo isso em mente fará com que o
estudo de Romanos seja ainda mais interessante e útil.
Ao falar da vontade de ferro do apóstolo, de sua atitude de seguir o
caminho reto a todo custo, não se deve interpretar erroneamente sua
resolução. Não chegava à teimosia. O belo da filosofia de Paulo era
exatamente isso, que quando era o princípio o que estava em jogo — por
exemplo, a todo suficiência de Cristo para a salvação — ele era
inflexível, mas em assuntos que não tinham que ver com princípios ele
podia ser muito complacente, flexível, conciliador. Como resultado, em
vez de acusar o apóstolo de inconsistência, deveríamos creditar em sua
bondade.
Quando o partido judaico em Jerusalém demandou que Tito fosse
circuncidado, Paulo não cedeu ao seu clamor (Gl 2:3). No entanto,
circuncidou a Timóteo (At 16:3). Uma coisa era circuncidar uma pessoa
de ascendência mista, como o era Timóteo, e efetuá-lo para fazer dele
uma testemunha mais eficaz entre os judeus; era algo totalmente
diferente forçar a circuncisão em Tito (cujos pais eram ambos gentios),
e, em geral, a todos os gentios, com a implicância de que a menos que
recebessem este sacramento eles não poderiam ser salvos (At 15:1).
A flexibilidade de Paulo provavelmente também explique que ele
estivesse disposto, ao chegar a Jerusalém de sua terceira viagem
missionária, a ceder à sugestão de acompanhar a quatro homens que
tinham tomado um voto temporário de nazireado e pagar por suas ofertas
Romanos (William Hendriksen) 25
(At 21:17–26). A pergunta com relação a se esta concessão de sua parte
foi sábia não vem ao caso aqui. O fato que deve ser enfatizado é este:
Paulo, embora tomasse uma posição firme em assuntos de princípio,
sempre estava disposto a ceder em assuntos que não estivessem nem
proibidos nem ordenados. Ele seguia este curso de ação a propósito e
consistentemente, como o demonstra 1Co 9:20, 21.
Do poeta americano John Greenleaf Whittier tem-se dito que cedia
em assuntos pequenos para poder ganhar nos grandes”. 2 O mesmo podia
dizer-se de Paulo.

3. Coração compassivo
O “impulso” do apóstolo não teria sido tão veemente se não tivesse
estado ativado por este terceiro fator. Várias fases da personalidade
intensamente emotiva do apóstolo são exibidas no livro de Atos e nas
epístolas.
Eis aqui um coração maravilhosamente amoroso, uma alma
verdadeiramente grande!
Tendo anteriormente perseguido os seguidores de Jesus, depois de
sua conversão a tristeza, sincera e profunda, caminhava com Paulo (1Co
15:9; 1Tm. 1:15). Que a tão cruel perseguidor Cristo Se revelou como
um Salvador amoroso era algo que o desconcertava. Ele simplesmente
não poderia acostumar-se a isso (Ef 3:8; 1Tm. 1:16). Isto fazia com que
seu coração transbordasse de uma gratidão duradoura e humilde! Por
esta e por outras razões, suas epístolas estão cheias de magníficas
doxologias (Rm 9:5; 11:36, 16:25–27; Ef 1:3s; 3:20s; Fp 4:20; 1Tm.
1:17; 6:15; 2Tm 4:18), que são as expressões espontâneas do homem que
escreveu: “Porque o amor de Cristo nos constrange” (2Co 5:14). Tendo
sido “agarrado” por Cristo, o apóstolo por sua vez estava ansioso de
consumir-se pela salvação de outros (1Co 9:22; 10:33; 2Co 12:15).

2
A. H. Strong, American Poets and Their Theology, Filadélfia, etc., 1916, p. 124.
Romanos (William Hendriksen) 26
O coração lhe doía intensamente porque tantos de seu próprio povo
(israelitas) não eram salvos (Rm 9:1–3; 10:1). A ansiedade por todas as
suas igrejas pesava sobre ele diariamente (2Co. 11:28). Muito fervorosas
e comovedoras eram suas orações por elas (Ef 3:14–19; 1Ts 3:9–13).
Quanto as amava, de modo que podia escrever: “Mas fomos amáveis em
meio de vós como uma ama acaricia os próprios filhos. Assim, estando
meigamente desejosos de vós, com agrado compartilhamos convosco
não só o evangelho de Deus mas também nossas próprias almas …
porque agora realmente vivemos se permanecerdes firmes no Senhor”
(cf. 1Ts 2:7, 8; 3:8). Quão fervorosos eram seus rogos (2Co 5:20; Gl
4:19, 20; Ef 4:1) e quão delicados! Embora pelo próprio bem deles ele
era capaz de repreender muito severamente aos desencaminhados (Gl
1:6–9; 3:1–4), até isto era uma manifestação do amor de seu grande e
palpitante coração. É surpreendente, então, que quando a ocasião o
demandava, dos olhos desse homem de espírito entusiasta e coração
amoroso brotassem fontes de lágrimas (At 20:19, 31), de tal modo que
tanto em 2Co 2:4 como em Fp 3:18 estas são mencionadas? E é acaso
surpreendente que, por outro lado, numa ocasião as lágrimas de seus
amigos, devido à sua iminente partida e às aflições que o esperavam,
quase rompessem seu coração (At 21:13)? Certamente o pranto de Paulo
quando escreve sobre os inimigos da cruz de Cristo é tão glorioso quanto
a alegria, alegria, alegria, que canta ao longo de sua epístola aos
filipenses!

III. Lugar e data de composição

Os seguintes dados apontam para Corinto como o lugar onde o


apóstolo compôs a epístola aos romanos:
1. Ele encomenda à igreja Febe, a quem chama “uma servidora da
igreja de Cencreia”. Agora, Cencreia era o porto oriental de Corinto,
Geralmente se supõe, e é provável que seja correto, que Febe levava a
carta de Paulo ao seu destino.
Romanos (William Hendriksen) 27
2. Ele chama Gaio seu “hospedeiro”. Esta pessoa bem pode ter sido
aquela cujo nome é mencionado em 1Co 1:14, onde o apóstolo informa
aos coríntios que ele tinha batizado este membro de sua congregação.
Em Rm 16:23 Gaio envia saudações.
3. Também Erasto aparece enviando uma saudação. Cf. 2Tm 4:20,
“Erasto permaneceu em Corinto”. Uma inscrição descoberta num bloco
de pavimento em Corinto diz: “Erasto colocou este pavimento de seu
próprio pecúlio”. Se estas referências apontarem ao Erasto de Rm 16:23,
as mesmas confirmam a teoria de que Romanos foi composta em
Corinto.
A determinação do tempo da composição é talvez algo mais difícil.
Ao menos as opiniões diferem muito. A pergunta a responder é:
“Quando esteve Paulo em Corinto sob circunstâncias que
harmonizassem com a situação refletida em sua carta aos romanos?”.
Sua primeira estada em tal lugar foi durante a segunda viagem
missionária (At 15:36–18:22). Segundo At 15 esta viagem começou logo
depois do fim do Concílio de Jerusalém, embora não nos fosse revelado
exatamente quanto tempo depois. Veja-se At 15:30, 36. Se se atribuir a
data de 50 d.C. a tal reunião, como geralmente se faz, a data flexível de
50/51–53/54 para toda a segunda viagem missionária pode ser correta.
No entanto, não poderia ter sido durante esta permanência em Corinto
que o apóstolo escreveu Romanos. Tal carta claramente pertence a um
período grandemente mais tardio, quando as tarefas missionárias de
Paulo na parte oriental do império estavam já perto de seu fim. Note-se o
seguinte: “Assim que, de Jerusalém e todo o caminho até o Ilírico
proclamei plenamente o evangelho de Cristo” (Rm 15:19); “Mas, agora,
não tendo já campo de atividade nestas regiões” (Ro.15:23). Cf. Ro.1:10:
“… agora, afinal”.
Devemos, então, vincular a Romanos com a segunda viagem de
Paulo a Corinto, a visita dolorosa mencionada de forma implícita em
2Co 12:14; 13:1? Mas esta viagem deve ter sido de curta duração e feita
sob circunstâncias desfavoráveis para a composição desta grande
Romanos (William Hendriksen) 28
epístola. Como se indicou anteriormente, essa viagem foi feita
provavelmente durante a longa permanência de Paulo em Éfeso, e antes
de escrever 1 Coríntios.
Tudo aponta à probabilidade de que Paulo escreveu Romanos pelo
fim de seu ministério em Acaia (Grécia), mencionado em At 20:3; ou
seja, durante sua terceira visita registrada a Corinto em sua terceira
viagem missionária (At 18:23–21:16).
Em sua subsequente partida de Corinto, o plano original de Paulo
tinha sido navegar diretamente da Grécia a Síria, para poder viajar dali a
Jerusalém com as doações para os santos necessitados, contribuições
caridosas feitas por seus irmãos cristãos da Macedônia e Acaia. Mas a
oportuna descoberta de um complô contra a vida do apóstolo mudou este
plano, de modo que, em lugar disso, ele voltou a Jerusalém via
Macedônia (Filipos) e Mísia (Trôade). Cf. At 20:3–6; Rm 15:25.
A terceira viagem missionária tinha durado já muito tempo antes de
Paulo deixar Corinto. Isto é claro a partir do fato de que, mesmo antes de
chegar a Corinto nesta viagem, o apóstolo tinha passado “dois meses” e
“dois anos” em Éfeso (At 19:8, 10). Na verdade, parece que, contando
tudo, ele trabalhou ali durante um período de “três anos” (At 20:21). A
data para esta terceira viagem missionária completa foi então
provavelmente de 53/54–57/58, e a data de composição da epístola aos
romanos, escrita pouco antes de sua partida de Corinto, foi
provavelmente 57 ou 58. Pelo fato de que era a intenção de Paulo chegar
a Jerusalém para o Pentecostes (At 20:16), talvez podemos ser ainda
mais específicos e dizer que a carta provavelmente foi escrita pelo fim do
inverno e/ou durante o começo da primavera do hemisfério norte.
Uma data que fosse grandemente anterior para a terceira viagem
missionária e para Romanos põe o relato em conflito com a data da
acusação de Paulo diante de Gálio (At 18:12–17), que teve lugar durante
a segunda viagem missionária do apóstolo. Estabeleceu-se que o
Romanos (William Hendriksen) 29
3
consulado de Gálio ocorreu no período de 51–53. Deste modo uma data
tão anterior resultaria na necessidade de mover para trás a data da
chegada de Paulo a Jerusalém, sua prisão, e sua prisão em Cesareia
durante a administração de Félix (e mais tarde que Festo). E pelo fato de
que o Felix provavelmente não chegou a ser governador até o ano 52, 4
seria difícil explicar como Paulo, em sua defesa diante deste governador,
pudesse dizer: “Sabendo que durante muitos anos foste juiz sobre esta
nação, alegremente faço minha defesa”.

IV. Destinatários

Sob este cabeçalho tentar-se-á responder duas perguntas: Como se


originou a igreja de Roma? Que grupo preponderava numericamente: o
dos judeus ou o dos gentios?
Durante o ministério terrestre de Cristo (26–30 d.C.) as pessoas
foram levadas da escuridão à luz (Jo 3:26; 12:19); no entanto, nem todos
os “seguidores” possuíam uma “fé salvadora” (Mt 13:1–7, 18–22; Jo
6:66), embora alguns, sim, a tinham (Mt 13:8, 23; Lc 12:32; Jo 17:6–8).
Incluídos no grupo dos que eram crentes genuínos havia não somente
judeus (Mt 19:28), mas também gentios (Mt 8:10, 11; cf. Mt 21:41) e
samaritanos (Jo 4). Além disso, no dia do Pentecostes e depois o número
dos discípulos cresceu a passos gigantescos (At 2:41; 4:4). A atividade
do evangelho foi reatada em Samaria. Filístia e provavelmente Etiópia
ouviram a mensagem (At 8).
O que estava sucedendo em todas estas regiões não foi passado por
alto em outras partes, porque embora os modernos métodos de
comunicação — radio, televisão, telefone, etc. — não existiam, as
pessoas viajavam extensamente, mantendo-se assim informados uns aos
outros sobre eventos de todas as partes do Império Romano. Logo
3
Veja-se J. J. Foakes Jackson y Kirsopp Lake, The Beginnings of Christianity, Grand Rapids, 1966,
Vol. V, pp. 460–464.
4
Veja-se Josefo, Antiguidades XX.137; Guerra judaica II.247.
Romanos (William Hendriksen) 30
também Damasco e Síria contavam com crentes entre seus habitantes.
Um deles era Ananias (At 9; pode-se encontrar uma referência ainda
anterior à Síria em Mt 4:24).
Viajava-se muito naqueles dias e, apesar dos perigos, viajar era algo
relativamente seguro devido à ainda prevalecente Pax Romana (reinado
de paz imposto pelo Império Romano).
Havia barcos. É claro que não eram tão luxuosos como os de hoje
em dia. Na verdade, os mesmos nem sequer tinham a intenção primária
de ter um serviço de passageiros ou de turismo. Muitos deles eram
barcos de carga que levavam trigo a diferentes lugares, especialmente a
Roma; quer dizer, a seus cais ou portos. A enorme população de Roma
— estimada diversamente de um milhão a um milhão e meio —
precisava ser alimentada. Além destes navios de transporte havia
também muitos navios pequenos.
No entanto, os navios e barcos nem sempre estavam disponíveis. A
navegação geralmente era levada a cabo entre princípios de março e
meados de novembro. Mas quando estes navios sulcavam as águas, seus
donos e/ou capitães estavam dispostos, por certa soma, a levar
passageiros a bordo. Como o indica o livro de Atos, Paulo fez frequente
uso deste modo de viajar.
Estavam também aquelas famosas rotas romanas: a Via Ápia, a Via
Cornélia, a Via Aurélia, a Via Valeria, etc. Tinham uma construção forte
e durável e dispunham de marcadores de distância. Vinte rotas principais
partiam do “Marco Dourado” de Roma, dividindo-se cada uma delas em
numerosos ramais, de tal maneira que as diversas partes do império
estavam unidas por uma enorme rede de artérias. 5 Para ir de uma cidade
a outra, as pessoas frequentemente faziam uso de ambos os modos de
viajar: chegavam ao seu destino por mar e terra. Assim que para chegar a
Roma um filipense poderia tomar a Via Egnatia de Filipos até Dirraccio.

5
Veja-se W. V. Von Hagen, The Roads That Led to Rome, Cleveland y Nueva York, 1967.
Romanos (William Hendriksen) 31
Ato seguido cruzava o Adriático de navio até Brindisio. Dali a Via Ápia
o levava a Roma.
Do Novo Testamento e de outras fontes recebe-se a impressão de
que havia um grande número de viajantes. Assim, por exemplo, Áquila e
Priscila (ou Prisca) em diferentes intervalos de sua vida devem ter
viajado do Ponto a Roma e daí a Corinto (At 18:2); mais tarde a Éfeso
(At 18:18, 19; 1Co 16:19), dali a Roma (Rm 16:3), e, subsequentemente,
de novo a Éfeso (2Tm 4:19). Lucas também viajou extensamente. E
assim o fizeram Timóteo, Tito, e especialmente Paulo! Veja-se 2Co
11:25, 26.
Por que as pessoas iam a Roma? Por uma das seguintes razões, ou
por uma combinação de duas ou mais delas: para estabelecer-se ali, para
efetuar negócios, para exercer uma ocupação, para seguir uma profissão,
para estudar, para escapar de ser preso (era fácil “perder-se” nesta grande
cidade), para satisfazer sua curiosidade a respeito da metrópole sobre o
Tibre com relação à qual tantos rumores tinham estado circulando, para
visitar amigos e parentes, e pela melhor de todas as razões, para levar o
evangelho aos romanos. Deve ter havido outros incentivos que atraíram
as pessoas a esta cidade. Também, milhares de indivíduos tinham sido na
verdade deportados a Roma. Ainda outros estavam envolvidos nos
movimentos de forças militar.
Por que menciono tudo isso? Para enfatizar o fato, com frequência
passado por alto, de que há muita razão para crer que o evangelho deve
ter chegado a Roma numa data muito anterior. Em seu temor de cair
numa “especulação descabelada” alguns esquecem que uma “imaginação
histórica realista” não é só justificável mas necessária. Isto às vezes se
passa por alto. Assim, por exemplo, há os que minimizam a importância
do Pentecostes (At 2) para o estabelecimento da igreja em Roma. Pelo
fato de que não podem encontrar nenhum registro de alguma relação
entre o Pentecostes e as conversões sucedidas em Roma em época tão
anterior, rejeitam a ideia de que pudesse haver tal relação. Ou dirão que
os visitantes de Roma que estiveram presentes na festa em Jerusalém e
Romanos (William Hendriksen) 32
mais tarde retornaram a seus lares não estavam em posição de fundar
uma igreja.
Mas o evangelista Lucas informou definitivamente que entre
aqueles que foram testemunhas dos extraordinários milagres que se
deram no derramamento do Espírito Santo havia “visitantes de Roma,
“tanto judeus como prosélitos” (gentios convertidos ao judaísmo). Veja-
se At 2:10. Não é razoável pensar que ao menos alguns destes visitantes
de Roma estivessem entre os três mil conversos (At 2:41)? Depois de
voltar a seus lares, teriam deixado de dizer a seus amigos e parentes em
Roma o que tinham visto e ouvido em Jerusalém? E devemos acaso crer
que daquele momento em diante eles tivessem passado por alto a
oportunidade de fazer chover suas perguntas sobre aqueles que logo
chegavam ou retornavam com relação ao movimento “Jesus é o Cristo” e
com relação ao derramamento do Espírito Santo como prova da
exaltação de Cristo a Sua posição à destra do Pai?
Não muitos anos depois do grande Pentecostes descrito em Atos 2
podem ter chegado amigos a Roma desde Antioquia da Síria, essa cidade
de mente missionária. Mesmo antes de 44 d.C. o evangelho foi
proclamado nessa cidade onde “os discípulos foram chamados pela
primeira vez cristãos” (At 11:26). A igreja de Antioquia tinha vários
homens que estavam qualificados para divulgar as boas novas (At 13:1).
Assim que, pelo fato de que todos os caminhos levavam a Roma e que as
viagens de ida e volta eram muito frequentes, faz-se ao menos
imaginável que alguns destes antioquianos de mente missionária
proclamassem em dia anterior o evangelho em Roma, acrescentando
força à muito jovem igreja. Logo membros de outras igrejas — por
exemplo, das de Filipos, Corinto, e Éfeso, bem podem ter cooperado,
porque entre cada uma delas e Roma a comunicação era constante.
Ficará claro que, em seus começos mais anteriores, a igreja romana
provavelmente foi iniciada não por algum apóstolo (salvo indiretamente)
mas por gente comum dentre aqueles judeus e prosélitos que tinham sido
testemunhas dos milagres do Pentecostes, e que tinham retornado depois
Romanos (William Hendriksen) 33
aos seus lares em Roma. Deve sublinhar-se o fato de que estes “leigos”
eram judeus ou que, em alguns casos, tinham sido uma vez convertidos à
religião judaica. Não deve nos causar surpresa, portanto, se descobrirmos
que em seu começo a igreja de Roma revelava este caráter judeu.
Há alguma atestado que preste apoio adicional a esta teoria? Um pai
latino do século IV d.C., conhecido como “Ambriosastro”, na Introdução
a seu Comentário a Romanos, informa-nos que a igreja de Roma foi
fundada não pelos apóstolos, e sim por certos cristãos judeus que
impuseram uma “forma judaica” à mesma. Não nos lembra esta forma
judaica o que está registrado em At 15:1; 21:17–24 com referência à
igreja de Jerusalém?
Em sua história subsequente, deixou o estabelecimento ou
crescimento posterior da igreja de Roma alguns rastros nos registros
históricos? Não há nada de natureza muito clara e substancial. Mas
Suetônio (Vida de Cláudio XXV. ii) deixou para a posteridade esta
afirmação: “Cláudio expulsou os judeus de Roma porque estavam
constantemente causando distúrbios por instigação de Crestus”. Escrever
Crestus para indicar Cristus (Cristo) não era algo incomum. Interpretado
desta maneira, este parte de informação poderia lançar luz sobre At 18:2,
que de modo similar informa de um desterro dos judeus de Roma
durante o reinado do imperador Cláudio (data de seu reinado: 41–54
d.C.). Suetônio, então, poderia estar dizendo que com a introdução do
cristianismo em Roma desataram-se disputas entre aqueles judeus que
haviam aceito a religião cristã e os outros de sua raça que permaneciam
hostis à nova fé. Erroneamente (se Crestus = Cristo), embora
compreensivelmente, Suetônio considerou Cristo como o instigador. Mas
embora esta interpretação — Crestus = Cristus — seja possível, não é
necessariamente correta, e não foi aceita por todos os expositores. 6

6
Lenski está entre os que rejeitam a identificação. Veja-se sua Interpretation of The Acts of the
Apostles, Columbus, 1944, p. 745. Mas veja-se também F.J. Foakes Jackson e Kirsopp Lake, op. cit.,
Vol. V, p. 295.
Romanos (William Hendriksen) 34
Além de seu sermão do dia do Pentecostes, contribuiu o apóstolo
Pedro em algo para o estabelecimento da igreja de Roma? Devem-se
evitar dois extremos. Por um lado o da Igreja Católica Romana, a qual,
com base em uma primitiva tradição, atribuiu a Pedro um bispado de
vinte e cinco anos (42–67 d.C.) sobre a igreja em Roma; por outro lado,
a posição dos que negam ou pelo menos lançam dúvida sobre qualquer
relação entre Pedro e tal igreja.
Com referência ao primeiro extremo, se fosse certo, Pedro teria
ocupado a posição de suprema autoridade na igreja de Roma durante o
período que inclui o mesmo ano em que Paulo enviou sua epístola a esse
corpo de crentes. No entanto, em sua lista de saudações dirigida a
pessoas crentes de Roma, Paulo nem sequer menciona Pedro (Veja-se
Rm 16:3–15). É possível de algum modo que Paulo tivesse sido culpado
de semelhante negligência e violação de protocolo?
E com relação ao segundo extremo, frequentemente se apela a Rm
15:20, fazendo implicar por interpretação que antes de Paulo escrever
Romanos, Cristo ainda não tinha sido nomeado em Roma; ou ao menos
que nenhum apóstolo tinha entrado nessa cidade. No entanto, essa
interpretação de Rm 15:20 não é necessariamente correta.
Pareceria que quando Paulo foi libertado de sua primeira prisão
romana e viajava a diversas congregações em seu muito extenso domínio
espiritual (cf. C.N.T. sobre 1 e 2 Timóteo e Tito, pp. 33, 34), Pedro
estava em Roma. Ele escreveu a carta que chegou a ser conhecida como
“a primeira epístola de Pedro”. Estava dirigida “aos eleitos que são
forasteiros da Dispersão no Ponto, Galácia, etc.” Note-se sua saudação
final: “Saúda-vos a igreja [literalmente “ela”] que está em Babilônia,
eleita convosco” (1Pe 5:13, TB). Com toda probabilidade esta
“Babilônia” é Roma.
Não é esta identificação o ponto de partida do qual alguém deveria
proceder na explicação da mesma designação em Apocalipse 17:5? No
entanto, estes eventos — a libertação de Paulo, a carta de Pedro —
ocorreram depois de Paulo escrever Romanos.
Romanos (William Hendriksen) 35
Sabemos, portanto, que, ao menos para o fim de sua vida, Pedro
trabalhou na igreja de Roma. Esteve ele talvez ali antes? É possível que
seu sermão do Pentecostes, ouvido e transmitido pelos visitantes de
Roma, foi o que qualificou indiretamente para o título de “fundador” da
igreja de Roma?
Estas perguntas não podem ser respondidas com nenhum grau de
certeza. O livro de Atos deixa muitos vazios. Deixa margem de muitos
anos, de 33 d.C. em diante, durante os quais Pedro pôde ter estado
fortalecendo a igreja de Roma. Clemente de Alexandria escreve que
Pedro “tinha pregado publicamente a palavra em Roma” (Hipotuposeis,
citado por Eusébio VI.xiv.6). E até algo antes Irineu fez esta afirmação:
“Pedro e Paulo foram para o oeste e fundaram a igreja de Roma” (Contra
Heresias XII.i.1; cf. Eusébio v.VIII.3). Mas destas afirmações de
Clemente e de Irineu há diversas interpretações e avaliações.
Provavelmente façamos bem em suspender juízo. Devemos acrescentar,
no entanto, que segundo a tradição o Evangelho segundo Marcos foi
composto para satisfazer o urgente pedido do povo de Roma de ter um
resumo por escrito da pregação de Pedro em tal cidade.
Com relação à parte que Paulo teria no estabelecimento desta
igreja, é claro de Rm 1:10 cf. 15:28, que no momento de escrever esta
carta, o apóstolo, embora cidadão romano por nascimento (At 22:28),
ainda não tinha posto o pé em Roma. Também é claro, no entanto, que
ele se tinha reunido com ou ao menos tinha conseguido conhecer (quer
seja direta ou indiretamente) várias das pessoas pertencentes à igreja de
Roma (Rm 16:3–15). Ele estava ansioso por ver Roma e, ainda mais,
para conhecer seus amigos dali. De fato ele ia chegar à capital do
Império Romano, mas de uma maneira que não tinha sido incluída em
seu plano e sim no de Deus (At 25:11, caps. 27, 28). Em Roma Paulo, o
prisioneiro, ia ser muito efetivo em proclamar o evangelho (Fp 1:12–14).
Porém no momento em que a epístola estava sendo escrita estes futuros
acontecimentos ainda não lhe tinham sido revelados.
Romanos (William Hendriksen) 36
Na igreja de Roma, que grupo preponderava numericamente: os
judeus ou os gentios? Em geral há três pontos de vista:
1. A igreja romana consistia principalmente de judeus. 7
Argumentos que se usam para sustentar esta teoria:
a. Paulo era judeu. Em Rm 3:9, escreve: “Somos nós melhores que
eles?” Além disso, note-se o contexto anterior: “o judeu” (v. 1) e “os
judeus” (v. 2). Como resultado algumas das traduções modernas
chegaram a inserir a palavra “judeus” no texto de Rm 3:9; dali “nós os
judeus”.
Resposta: Em sua continuação o versículo 9 mostra que o escritor já
não está pensando exclusivamente nos judeus. Ele agora procede do fato
de que “todos os homens”, tanto judeus como gregos, estão por natureza
“debaixo do pecado”. Que isto é certo com relação aos gregos ou gentios
já o demonstrou em Rm 1:18–32. Que também vale para o caso dos
judeus já o deixou claro em Rm 2:1–3:8. Como resultado, ele agora põe
sua atenção especificamente em si mesmo e na igreja à qual está se
dirigindo, como um pastor que está diante de sua “congregação”, e
pergunta: “Então, o que dizer? Somos nós — vós e eu — melhores?”
Ele quer dizer, “melhores que a humanidade (judeus e gregos) em
geral?” Sua resposta vem a ser: “De maneira nenhuma, porque também
nós pertencemos a esta entidade (a totalidade da raça humana) sobre a
qual pende o juízo de Deus. Não há justo, nem mesmo um” 8 Ou, de um
modo mais amplo: “Nós”, quer dizer eu e todos os outros verdadeiros
crentes. Veja-se também sobre Rm 3:9.
b. Em Rm 7:1, Paulo diz: “Estou falando com os que conhecem a
lei [ou simplesmente lei]”. Ele deve estar dirigindo-se de modo especial

7
T. Zahn, Introduction to the New Testament, trad. ao inglês, Edimburgo, 1909, Vol. I. p. 422; e antes
dele F. C. Bauer, Paul, the Apostle of Jesus Christ, trad. ao inglês 1873, Vol. I, pp. 321ss. Outros
defensores desta opinião: W. Manson, N. Krieger, J. A. C. Van Leeuwen e D. Jacobs, etc.
8
Com relação a isto, veja-se especialmente A. F. N. Lekkerkerker, De Prediking van het Nieuwe
Testament, De Brief van Paulus aan de Romeinen, Nijkerk, 1971, p. 129.
Romanos (William Hendriksen) 37
a judeus, porque somente eles tinham sido instruídos no conhecimento
da santa lei de Deus.
Resposta: Não há dúvida de que ele se está dirigindo ao contingente
judeu da igreja, porém não necessariamente de modo especial aos
judeus. Se Paulo está pensando na lei de Deus, achada no Antigo
Testamento e resumida nos Dez Mandamentos, a resposta poderia ser
como segue: Muitos crentes dentre os gentios tinham entrado na igreja
pelo caminho da sinagoga. Mesmo como prosélito da fé judaica o gentio
tinha conhecido a lei de Deus. E como cristão tinha chegado a entender
essa lei muito melhor. Conclusão: o que Paulo diz aqui em Rm 7:1 não
dá prova que a maioria dos membros da igreja de Roma fosse de raça
judaica.
Também se deve deixar lugar para a possibilidade de que lei aqui
em Rm 7:1 signifique: “lei em geral”. Veja-se sobre tal passagem. Sendo
assim, Rm 7:1 tampouco consegue provar que a maioria dos
destinatários fossem judeus por sua raça.
c. Rm 9–11 tem que ver especialmente com os judeus. Concerne a
Israel.
Resposta: Em grande medida isto deve ser reconhecido. Mas isso
não significa que a maioria dos destinatários fossem judeus. De fato, é
exatamente esta seção a que demonstra que a maioria dos destinatários
eram conversos do mundo gentílico, porque Paulo considera os judeus
em geral como gente diferente daquela a quem está dirigindo suas
observações. O apóstolo está pensando em dois grupos: gentios e judeus.
Quando descreve a condição e destino dos judeus, ele deliberadamente
utiliza os pronomes eles, deles, a eles. Exemplos:
“Deles é a adoção” (Rm 9:4); “O desejo de meu coração e minha
oração a Deus por eles é que eles possam ser salvos” (Rm 10:1). Note-se
especialmente a distinção que o apóstolo faz entre a terceira pessoa, ao
referir-se aos judeus, e a segunda ao referir-se aos destinatários: “Foi por
sua falta de fé que foram arrancados, e é por fé que você permanece”
(Rm 11:20). De modo similar em Rm 11:24 Paulo faz uma distinção
Romanos (William Hendriksen) 38
entre “você” e “estes ramos naturais” (obviamente os judeus). Este uso
da terceira pessoa para indicar a Israel continua até o v. 31 inclusive.
d. O método dialético de argumentação empregado aqui demonstra
que o escritor está se dirigindo a judeus, porque esse era o método que
eles apreciavam. Seus antigos mestres, os rabinos, tinham o costume de
recorrer a esta forma de dissertar.
Resposta: Os gregos — Sócrates por exemplo — estavam
familiarizados com este recurso estilístico. Além disso, Paulo estava
consciente das objeções que seus oponentes poderiam propor contra sua
doutrina. Por isso, de um modo muito eficaz, ele antecipa suas objeções,
e por meio do método de perguntas e respostas estabelece o seu
argumento. Veja-se Rm 9:14; 9:19; 10:18, 19; 11:1; 11:11; 11:19s. Há
mais com relação a este tema sob a seção V desta Introdução.
2. A igreja romana consistia principalmente de gentios. 9
Prova:
a. Em Rm 1:5, 6 o apóstolo afirma: “… Recebemos graça e
apostolado (para suscitar) gente dentre todos os gentios à obediência que
surge da fé, entre os quais vós também estais …”
b. Rm 1:13 finaliza com as palavras: “Para que eu possa obter
algum fruto entre vós, também como o tive entre outros gentios”.
c. Em Rm 11:13 Paulo diz: “Estou falando com vós, gentios. Visto
que eu sou um apóstolo aos gentios, orgulho-me do meu ministério”.
d. Rm 15:15 diz: “Tenho-vos escrito com certo atrevimento sobre
alguns pontos, para lembrar-vos de novo … em virtude do encargo que
Deus em sua graça me concedeu que ser um ministro de Cristo Jesus aos
gentios … para que os gentios possam chegar a ser uma oferta aceitável

9
Entre aqueles que favorecem este ponto de vista estão os seguintes: W. Sanday e A. C. Headlam, A
Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Romans (International Critical
Commentary), Edimburgo, 1902, p. xxxiis.; M. J. Lagrange, Saint Paul, Épître aux Romains, París,
1950, pp. xxi–xxiv; H. Ridderbos, Aan De Romeinen, Commentaar Op Het Nieuwe Testament),
Kampen, 1959, pp. 6–10; e John Murray, The Epistle to the Romans, Grand Rapids, 1959, Vol. I, pp.
xxi, xxii.
Romanos (William Hendriksen) 39
a Deus”. Note-se também com quanta frequência a palavra “gentios”
aparece em Rm 15:9–18.
e. O fato de que na lista de saudações Paulo identifique certas
pessoas (vejam-se vv. 7, 11 e 21) como seus compatriotas confirma
também a conclusão de que não eram os judeus mas os gentios os que
constituíam a maioria da igreja em Roma.
3. Estes argumentos pareceriam ser incontestáveis. No entanto, fez-
se uma tentativa de refutá-los. Num comentário que em muitos respeitos
é esplêndido — não duvido em insistir a todos os leitores a estudá-lo —
C. E. B. Cranfield 10 tenta provar que não é possível estabelecer se a
maioria dos membros da igreja de Roma eram judeus ou eram romanos.
Em minha opinião sua refutação da posição de que os cristãos judeus
formavam a maioria é adequada, e sua opinião de que no tempo de
Paulo, no entanto, deve ter havido um considerável número de judeus na
igreja romana está bem argumentada. Mas quando ele afirma que a
expressão “entre os quais vós também estais” poderia não significar mais
que isto, que a igreja de Roma estava situada no meio do mundo
gentílico, e que em Rm 1:13 a expressão “como entre o resto dos
gentios” poderia considerar-se ligeiramente inexata, vejo-me obrigado a
dissentir.
Minha conclusão, como resultado, é que a teoria Nº. 2, ou seja, que
a maioria dos membros da igreja romana eram cristãos dentre os gentios,
é correta, embora a proporção exata de judeus para gentios é
desconhecida.
No entanto, há alguns fatos que se deve acrescentar. Em primeiro
lugar, visto que nos séculos I e II os edifícios eclesiásticos tal como nós
pensamos neles ainda não existiam, as famílias teriam cultos em seus
próprios lares. Tais cultos teriam a assistência dos membros de tal lar: ou
seja, talvez pai, mãe, filhos, e às vezes outros parentes próximos (cf. Lc

10
The Epistle To The Romans (International Critical Commentary). Edimburgo, 1975, Vol. I. pp. 18–
21.
Romanos (William Hendriksen) 40
12:53) e serventes. Se a casa era o suficientemente grande para
acomodar a outros, eles também eram convidados. A igreja primitiva
contava com muitos membros hospitaleiros, dispostos e ansiosos para
oferecer suas facilidades para o uso religioso: reuniões, cultos, etc.
Assim que em Jerusalém “muitos estavam juntos reunidos e orando” na
casa de Maria, a mãe de João Marcos (At 12:12). Lídia generosamente
convidou Paulo, Silas, Timóteo, e Lucas a usar seu lar como seu centro
de operações (At 16:15, 40). Onde quer que Áquila e Prisca fossem, eles
com prazer recebiam sempre que lhes fosse possível em seu lar os que
adoravam. Daí que, tanto em Éfeso (1Co 16:19) como em Roma (Rm
16:3–5) havia “uma igreja em sua casa”. Laodiceia também tinha uma
igreja no lar (Cl 4:15). Corinto pode ter tido uma igreja no lar na casa de
Gaio. Em Laodiceia, Ninfa servia de hospitaleira aos membros da igreja
da qual ela era membro.
Quantas destas “igrejas no lar” havia em Roma não o sabemos. A
igreja no lar mencionada em Rm 16:5 pode não ter sido a única: Rm
16:14 (“os irmãos com eles”) e 16:15 (“todos os santos com eles”)
poderiam indicar outras. E pode ter havido mais, especialmente numa
cidade tão grande.
Com relação ao tema que nos ocupa — se os judeus ou os gentios
preponderavam na igreja de Roma mesmo quando sustentamos
plenamente que a maioria dos membros tinham sido acrescentados à
igreja dentre os gentios (quer direta ou indiretamente), não podemos
deixar aberta a possibilidade de que, entre as diferentes unidades que
compunham esta igreja, possa ter havido ao menos uma, uma igreja no
lar, na qual não os gentios e sim os judeus preponderassem
numericamente?
Muito mais importante, no entanto, é o fato de que o escritor de
Romanos não está interessado principalmente no tema de se havia mais
judeus ou mais gentios entre aqueles a que se dirigia. Sua ênfase recai
em que tanto judeus como gentios estão por natureza “debaixo do
pecado” (Rm 3:9); em outras palavras, que “todos pecaram carecem da
Romanos (William Hendriksen) 41
glória de Deus” (Rm 3:23); que o caminho da salvação por meio da fé
em Cristo está aberto a todos (Rm 3:24); que Abraão é pai de todos os
que creem (Rm 4:11, 12); e que para todos os que estão em Cristo Jesus
não há condenação (Rm 8:1s). Nós podemos falar de judeus contra
gentios. Romanos enfatiza a ideia da unidade. Um de suas passagens
mais preciosas é Rm 10:12, 13:
“Pois não há distinção entre judeu e grego. Porque o próprio Senhor
é Senhor de todos e ricamente abençoa a todos os que o invocam. Porque
todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”.

V. Ocasião e propósito

Com relação a este tema há considerável diferença de opinião.


Muito se tem escrito a respeito, especialmente nos anos recentes. 11
Como indicamos anteriormente, Paulo tinha alcançado o fim de sua obra
missionária na parte oriental do Império Romano. Ele tinha “plantado”
(1Co 3:6) o evangelho nos grandes centros (e além, como Antioquia da
Síria, Filipos, Corinto, Éfeso — a palavra do Senhor se difundia
amplamente (cf. At 19:20, 26; Ap 1:4, 11). Na verdade, Paulo tinha
proclamado as boas novas de salvação de Jerusalém até o que hoje é a
Iugoslávia e Albânia (Rm 15:19). O evangelho até tinha chegado a

11
Dentre o quase inacabável número de livros e artigos sobre este tema, desejo destacar simplesmente
aos seguintes:
K. P. Donfried (editor y contribuidor), The Romans Debate, Minneapolis, 1977. Neste livro a
pergunta: “Por que escreveu Paulo Romanos?” é explorada por nove eruditos da América do Norte e
da Europa.
John Knox y C. R. Craig, The Epistle to the Romans (Vol. IX em The Interpreter’s Bible), Nueva
York y Nashville, 1954, pp. 358–363.
E. F. Harrison, Romans (Vol. X. em The Expositor’s Bible Commentary), Grand Rapids, 1976, pp.
5, 6. Um excelente resumo!
G. W. Barker, W. L. Lane, J. R. Michaels, The New Testament Speaks, Nova York, Evanston e
Londres, 1969, pp. 192, 193. Excelente ênfase missionária!
H. Ridderbos, Aan De Romeinen, pp. 10–14.
Romanos (William Hendriksen) 42
Roma, embora Paulo nunca tivesse visitado esta cidade. Ele tinha, no
entanto, muitos amigos ali, íntimos conhecidos aos quais amava muito.
Assim que agora ele confia em que o anelo que abrigou durante
muitos anos, ou seja, de ir a Roma (Rm 15:23; cf. 1:10, 11; At 19:21)
pudesse enfim ser satisfeito.
Ele percebia, no entanto, que não pode navegar imediatamente para
Roma pela rota do Golfo de Corinto e do Mar Jônico, visto que esteve
conduzindo uma campanha a benefício dos empobrecidos santos em
Jerusalém. Pelo fato de que este esforço foi bem-sucedido, Paulo,
segundo uma promessa prévia (1Co 16:4) tem a intenção, se o Senhor
permitir, de ir a Jerusalém para que ele em pessoa, acompanhado por
outros, pudesse apresentar as doações que foram reunidas para os pobres
(At 24:17). E então ele se encaminharia para Roma! Tal era o plano.
Mas por que deseja Paulo visitar a igreja de Roma? Qual é,
exatamente, o seu propósito?
A resposta inicial deve ser que Paulo, por ser uma pessoa
intensamente cálida e amorosa, deseja ir a Roma para ser uma bênção a
seus amigos (Rm 1:10, 11), e ser renovado por eles (Rm 15:32). Além
disso, é por esta mesma razão que, agora que lhe é impossível ir a Roma
imediatamente, comunica-se com a igreja de Roma por meio desta carta.
Ele escreve aos romanos porque os ama. Eles são seus amigos “em
Cristo”, e por meio desta carta ele lhes comunica seu amor, elogia-os
(Rm 1:8), informa-lhes de suas orações constantes a favor deles (Rm
1:9), pede-lhes que orem por ele (Rm 15:30) e lhes informa sobre seus
planos de viagem (Rm 1:10–12; 15:24s).
Não deixa de surpreender que esta razão profundamente pessoal
(desejo de comunhão, etc.), razão claramente exposta pelo mesmo
apóstolo, é muitas vezes passada por alto. Às vezes fica toda a ênfase na
motivação teológica ou no incentivo missionário: Paulo deseja corrigir
os erros dos antinomianos e/ou deseja fazer de Roma seu ponto de
partida para a evangelização da Espanha. É certo, estes assuntos são
Romanos (William Hendriksen) 43
importantes, mas devemos começar com a razão primeiro afirmada pelo
próprio Paulo nesta mesma epístola.
Paulo sente tanto mais a necessidade de escrever esta carta e por
meio dela pedir à igreja de Roma que lembre dele em oração porque de
modo algum ele está seguro de que algum dia poderá chegar a Roma.
Rm 1:10 introduz este temor e Rm 15:31 esclarece o que o apóstolo tem
em mente. Há duas coisas que teme: (a) que os judeus possam matá-lo,
(b) que os “santos” de Jerusalém não estejam disposto a aceitar a
generosa doação que lhes chega dos gentios.
Com relação ao primeiro pressentimento, que o mesmo não carecia
de fundamento é evidente a partir de uma passagem tal como At 20:3
(por causa do complô dos judeus Paulo teve que mudar seus planos de
viagem) e de At 14:19; 17:5, 13; 18:6, 12s; 23:12–21; 2Co 11:24, 32, 33.
Além disso, os maus pressentimentos de Paulo não eram totalmente
subjetivos. Ele recebia constantemente intimações do Espírito Santo,
insinuações de iminentes dificuldades (At 20:22, 23). Veja-se também At
21:10, 11, 27s.
Com respeito ao segundo temor, embora os irmãos deram a Paulo e
a seus companheiros cálidas boas-vindas (At 21:17), não fica claro em
que medida estas cálidas boas-vindas também incluía avaliação pela
“oferta” à qual Paulo tinha dedicado tanto tempo e esforço.
O fato aqui mencionado, ou seja, que na mente de Paulo a
possibilidade era real, a perspectiva terrível, de que ele talvez nunca
chegasse a ver seus queridos amigos de Roma, explica por que ele devia
escrever este tipo de carta, uma que em seus primeiros sete capítulos se
caracterizasse por um estilo argumentador. Note-se, por exemplo, a série
de expressões tais como: “O que diremos, pois?” Veja-se Rm 4:1; 6:1;
7:7; 8:31; 9:14, 30. Não só nos lembra este tipo de estilo a maneira como
Paulo, o missionário, tinha argumentado durante suas muitas viagens
contra seus acérrimos oponentes, os judeus incrédulos, mas também
demonstra que ele se dá conta de que a pequena igreja de Roma está
rodeada de um enorme exército de incrédulos similares. Paulo, como
Romanos (William Hendriksen) 44
resultado, nesta carta aos romanos, está mostrando à igreja em Roma
como deve defender-se contra a constante investida destes oponentes;
sim, até como poderia chegar a ganhar alguns deles para Cristo! Se os
destinatários já não puderem mais entrar em contato com Paulo, eles ao
menos poderão ler e reler esta preciosa carta.
Isto indica também que a epístola aos romanos não é realmente “um
compêndio completo de doutrina cristã”. Se tivesse sido a intenção de
Paulo redigir um documento tal, ele sem dúvida teria incluído muito
mais material. Paulo é um homem muito prático. Ele sabe exatamente o
que a igreja de Roma necessita. Guiado pelo Espírito Santo, ele
preenche essa necessidade. Além disso, pelo fato de que a doutrina que
está em jogo, ou seja, a da maneira como os pecadores são salvos, é
básica, o que é apresentado em Rm 1:16–8:39 é urgentemente
necessário não só para a igreja de Roma senão para toda igreja, todo
crente, todo pecador, através das idades.
Em termos gerais a situação da igreja de Roma deve ter sido
bastante alentadora (Rm 1:8; 15:14; 16:19). Mas isto não pode significar
que a maturidade intelectual de sua membresia era completa e/ou que seu
desenvolvimento moral e espiritual não deixava nada a desejar. Pelo
contrário, esta igreja também tinha suas fraquezas. Tinha necessidade de
instrução com relação às promessas de Deus para com Israel. De modo
que um dos propósitos desta epístola era o de contribuir com tal
instrução (Rm 9–11). Fazia falta também mais luz sobre o problema dos
alimentos puros versus impuros. Também essa luz é ricamente colocada
(Rm 14:13–18).
Não só fazia falta informação, mas também exortação ou
admoestação, e isto especialmente no que tem que ver com assuntos tais
como a obediência à autoridade civil (cap. 13) e as atitudes corretas do
“forte” para com o “fraco” (Rm 14:1–12; 15:1–4). E com relação à
necessidade — de então, de agora, de sempre — de virtudes tais como a
unidade, a humildade, e acima de tudo o amor, quem queria negar que
Romanos (William Hendriksen) 45
Rm 12 é um dos melhores capítulos não só na Escritura mas em toda
literatura?
O que se disse até agora indica claramente que o desejo ardente de
ser uma bênção à igreja de Roma estava firmemente incluído no
propósito de Paulo ao escrever esta carta. A opinião segundo a qual o
apóstolo simplesmente pensava passar por Roma para transformá-la
numa base de operações para atividade missionária na Espanha é
incorreta. Rm 15:24 (“Espero que, de passagem, estarei convosco”) fica
equilibrada por Rm 1:15 (“Anelo pregar o evangelho também a vós em
Roma”).
Fora disso, continua sendo certo que um dos pontos incluídos na
intenção de Paulo era o de conseguir a cooperação da igreja de Roma
com relação à sua proposta viagem a Espanha, como Rm 15:24
claramente demonstra.
Em suma, para chegar a uma resposta completa à pergunta, “Por
que escreveu Paulo Romanos?”, as duas seguintes passagens paulinas
não devem ser passados por alto:
“Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos,
salvar alguns” (1Co 9:22).
“Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa
qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1Co 10:31).
Na verdade, Paulo foi um grande missionário. Seu coração ardia de
amor pelas pessoas, e ainda mais de amor por Deus, aquele que tinha
resgatado, mesmo a ele, antes um encarniçado perseguidor dos preciosos
filhos de Deus! Ele simplesmente não podia crer ainda! Parecia como se
através da galeria dos séculos ainda podemos ouvi-lo dizer “fui
crucificado com Cristo; e já não sou eu aquele que vive, mas é Cristo
quem vive em mim, e essa vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé, (a
fé) no Filho de Deus, o qual me amou e se entregou a si mesmo por
mim” (Gl 2:20).
Mas a pessoa não precisa ser um famoso missionário como Paulo
para render serviço no reino de Deus, um serviço reconhecido pelo
Romanos (William Hendriksen) 46
próprio Deus. Havia, por exemplo, a irmã Febe de Cencreia, um porto de
Corinto, situado um pouco a leste deste grande centro cosmopolitano.
Ela estava sempre preparada para render algum serviço ao Senhor e à sua
causa. Quando ela ouviu que o grande missionário estava compondo uma
carta dirigida a seus queridos amigos de Roma, mostrou ela sua
disposição para entregá-la? Ou foi Paulo mesmo quem tomou a iniciativa
de pedir-lhe para que fazer este serviço? Seja como for, é claro que ela
estava preparada, sempre preparada para fazer qualquer coisa que
pudesse por amor a seu Senhor e Salvador.
Creio que o propósito e a ocasião da epístola de Paulo aos romanos
ficou agora esclarecido.

VI. Texto

É preciso escrever algumas palavras com relação à integridade do


texto de Romanos. Representa fielmente o texto grego sobre o qual
baseamos nossas traduções o que Paulo realmente escreveu à igreja de
Roma?
Há aqueles que o duvidam, e isto pelas seguintes razões:
1. Nem todos os manuscritos contêm as palavras “em Roma” em
Rm 1:7 e em Rm 1:15. Em Rm 1:7 há uma variante que substitui “todos
os que estão no amor de Deus” por “todos os que estão em Roma,
amados de Deus”. Também no v. 15 “em Roma” é então omitido.
2. A notavelmente bela doxologia: “Agora ao que pode lhes
estabelecer … seja a glória para sempre por meio de Jesus Cristo.
Amém”, que em nossas Bíblias se encontra no fim do cap. 16, encontra-
se em algumas fontes no fechamento do cap. 14; em outras, no fim dos
cap. 14 e 16; e num muito antigo papiro (Chester Beatty) no fechamento
do cap. 15.
3. No que respeita às saudações (Rm 16:3–15), há os que sustentam
que os mesmos apontam à igreja de Éfeso mais que à de Roma, como
grupo ao qual estão dirigidos; porque:
Romanos (William Hendriksen) 47
a. Como pôde Paulo ter conhecido tantas pessoas em Roma? Ele
mesmo nunca tinha estado ali. Mas isso sim, ele tinha passado um longo
tempo em Éfeso.
b. Prisca (ou Priscila) e Áquila estavam vivendo em Éfeso pouco
antes disso (At 18:18, 19; 1Co 16:19), e a Epêneto o chama “o primeiro
fruto” (= primeiro convertido a Cristo) da Ásia. Isto novamente lembra a
Éfeso não a Roma.
c. A severa repreensão de Rm 16:17, 18 não parece concordar com
as palavras de louvor que o apóstolo dirige àqueles que tem em mente
em Rm 1:8, 15:14. Não combina uma áspera condenação e um cálido
louvor. Portanto, o cap. 16 deve ter sido dirigido a outro auditório que
aquele ao qual Paulo fala nos capítulos precedentes.
Embora devamos reconhecer que não se pode resolver cada um dos
problemas, a seguintes respostas a estas dúvidas com relação à
integridade do texto merecem consideração:
Com relação ao 1: A omissão de “em Roma” é uma rara exceção. A
frase “em Roma” tem um apoio decisivo dos manuscritos. Além disso, o
contexto favorece uma referência a um lugar determinado. Note-se
especialmente o v. 10: “Sigo pedindo que talvez agora, de algum modo,
por vontade de Deus, enfim me abra o caminho para vir a vós”. Será
possível que o herege Marcião, que tinha sido rejeitado pela igreja de
Roma, tivesse algo que ver com a omissão desta frase em Rm 1:7, 15?
Com relação ao 2: Os melhores manuscritos favorecem Rm 16:25–
27 como o lugar correto para esta doxologia. Segundo o testemunho de
Orígenes, foi Marcião quem eliminou tudo o que segue ao cap. Rm
14:23 de Romanos. Sua atitude negativa para o Antigo Testamento e seu
“deus” ou “demiurgo” é bem conhecida. Assim que havia muitas
afirmações no cap. 15 que não lhe agradaram. Veja-se especialmente o v.
4. Contudo, Romanos devia ter uma conclusão apropriada. Por esta razão
não é surpreendente que a doxologia que aparecia no fim do cap. 16
fosse transferida ao cap. 14. E uma vez começado o processo de mover a
passagem de um lugar para outro, onde terminará? Deve-se admitir, no
Romanos (William Hendriksen) 48
entanto, que não se sabe a verdadeira razão pela qual o manuscrito
Chester Beatty colocou a doxologia no fim do cap. 15. Mas isso não
cancela de maneira nenhuma o fato de que seu lugar no fim do cap. 16 é
favorecido pela mais forte evidência dos manuscritos.
Com relação ao 3:
a. Devido ao constante e pesado tráfico entre Roma e outras
cidades, é razoável supor que o apóstolo tivesse conhecido esta gente em
suas viagens. Em alguns casos ele pode ter recebido ampla informação
com relação a eles de seus amigos. Além disso, a razão de que ele não
tinha estado em Roma faz tanto mais provável que cumprimentando
calorosamente àqueles que ele conhecia, ele desejasse ganhar uma
entrada ao coração de todos na igreja de Roma.
b. Como foi indicado previamente, Prisca e Áquila eram grandes
viajantes. Além disso, o que tem de irrazoável supor que eles retornaram
ao lugar onde tinham vivido anteriormente, ou seja, Roma? Junto com
tantos outros, eles voltaram quando o decreto de expulsão deixou de ter
efeito. No referente a Epêneto, o fato de que ele fosse “o primeiro fruto
da Ásia” certamente não significa que ele deveria permanecer na Ásia
pelo resto de sua vida.
c. As advertências de Rm 16:17, 18 referem-se a certos indivíduos
muito precisos: falsos mestres talvez, que estavam sempre e em todas as
partes procurando destruir o reino de Deus. Que Paulo não está retirando
sua estimativa favorável da igreja de Roma é algo que fica bem claro se
levar-se em conta o contexto. Veja-se v. 19.
Fez-se claro, como resultado, que os argumentos contra a
integridade do texto da epístola aos romanos são na verdade muito
fracos.
Para mais detalhes com relação á ordem do texto de Rm 16, com
relação ao estudo de Harry Gamble, veja-se a segunda parte do presente
comentário.
Romanos (William Hendriksen) 49
VII. Tema e resumo

Tem Romanos um tema? Se por “tema” queremos dizer um assunto


do qual o escritor nunca se desvia, a resposta é Não. Esta carta aborda
uma variedade de assuntos: o desejo de Paulo de visitar Roma (Rm
1:10), a ira de Deus (Rm 1:18), Adão versus Cristo (Rm 5:12–21), o
antinomianismo (Rm 6:1), a luta da alma (Rm 7:15–24), o sofrimento
presente contrastado com a glória futura (Rm 8:18), Israel (Rm 9–11), o
amor (Rm 12:9), os impostos (Rm 13:6), o vegetarianismo (Rm 14:2), o
forte e o fraco (Rm 14:1; 15:1), a filantropia (Rm 15:25–27), Espanha
(Rm 15:28), Febe (Rm 16:1), Satanás (Rm 16:20).
Por outro lado, se por “tema” referimo-nos a um assunto central
que, tendo sido anunciado, é subsequentemente retomado vez após vez,
quer seja como totalidade, ou em parte, a resposta é Sim.
Este tema foi produto não do pensamento humano mas da
implantação divina no coração e na mente do lutador Saulo de Tarso.
Aplicável a ele são as seguintes linhas poéticas:
Longos e lôbregos degraus transitei,
Com tremente pé a meu Deus busquei.
Algum degrau pouco a pouco subi,
mas logo perdi pé e fraco caí.
Nunca pude progredir, mas mesmo assim lutei
com fraco pretexto e desalentada fé.
Sangrava para chegar a Deus,
Mas me pareceu que sorriu, e não me viu.
Chegou então esse momento em que
Perdi meu pretexto e dali, debilitado,
Até o último degrau rodei,
Como se nada enfim tivesse obtido.
E, estando ali, desesperado,
… uma pegada na escada escutei,
Nesse mesma escada em que eu,
Romanos (William Hendriksen) 50
Titubeei, caí, e desacordado fiquei.
E assim, quando a esperança tinha cessado aqui,
Meu Deus desceu a escada … por mim!
Anônimo
“… justificados gratuitamente por sua graça por meio da redenção
que há em Cristo Jesus” (Rm 3:24).
O tema de Romanos, apresentado em Rm 1:16, 17 … “O justo
viverá pela fé …”, expresso mais plenamente em Rm 3:21–24, 28,
refletido em passagens tais como Rm 5:1; 8:30–34; 9:30–32; 11:23–26;
16:26, nunca está ausente da mente do escritor.
A justificação pela fé. (Rm 5:1), ampliado até chegar a “justificação
pela graça por meio da fé” (cf. Rm 3:22–24; cf. Ef 2:8), é claramente o
tema de Romanos. O mesmo é também o tema de Gálatas. Há uma
estreita semelhança entre a epístola mais extensa e a mais breve. Gn
15:6, “Abraão creu em Deus, e lhe foi imputado como justiça” é citado
em ambas as cartas (Rm 4:3, 9, 22; Gl 3:6), Cf. Tg 2:23. Entre outros
parecidos verbais encontramos:

Rm 1:17 e Gl 2:16, 3:11 Rm 13:8 e Gl 5:14

Rm 6:6–8 e Gl 2:20 Rm 13:13, 14 e Gl 5:16, 17

Rm 8:14–17 e Gl 4:5–7 Rm 14:12 e Gl 6:5

No entanto, há também uma surpreendente diferença entre as duas.


Esta diferença não só se refere a tamanho e matéria — a epístola maior
contém muito material que não se encontra na menor — tem que ver
também e especialmente com a maneira como o apóstolo fala com os
destinatários.
Romanos (William Hendriksen) 51
Romanos expõe calmamente que para cada pecador, quer seja judeu
ou gentio, há salvação plena e livre pela fé em Jesus Cristo, à parte das
obras da lei. Gálatas, num tom que não é absolutamente tão calmo, e que
às vezes se torna fogoso, defende este glorioso evangelho contra seus
caluniadores. Seus denúncias são arrasadoras.

Rm 1:1–15 Aqui em Romanos, depois de um Prólogo, em que


Paulo saúda os cristãos em Roma (Rm 1:1–7) e os informa que ele está
dando graças a Deus pelo fato de que sua fé está sendo proclamada por
todas as partes e que está pedindo a Deus que lhe conceda a
oportunidade de visitar e pregar o evangelho entre eles (versículos 8–15),
ele anuncia e desenvolve o tema de tal evangelho como segue:

A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ

Rm 1:16–3:31 A justificação pela fé, á parte das obras da lei é:


Rm 1–3 A. Real e necessária
1. Tema: “O evangelho é o poder de Deus para salvação a todo
aquele que põe em ação sua fé … como está escrito, “mas o justo viverá
pela fé”. (Rm 1:16, 17).
2. Os gentios necessitam esta justificação (Rm 1:18–32)
3. Os judeus também a necessitam (Rm 2:1–3:8).
4. Como resultado, “não há nenhum justo, nem mesmo um” (Rm
3:9–20).
5. “Mas agora, à parte da lei, uma justiça de Deus foi revelada, uma
justiça por meio da fé em Jesus Cristo …” (Rm 3:21–31).

Rm 4 B. Bíblica
1. O exemplo de Abraão (Rm 4:1–12).
2. Este exemplo demonstra que a promessa de Deus é realizada por
meio da fé, não por obras (Rm 4:13–25).
Romanos (William Hendriksen) 52
Rm 5–8 Efetiva: isto é, produz os resultados desejados, tais como:
1ª. A paz e suas concomitantes: incluindo a segurança de plena
salvação (Rm 5:1–11).
1b. A certeza e abundância de salvação confirmada pelo paralelo
Adão — Cristo (Rm 5:12–21).
2ª. A santidade (6:1–14).
2b. Quem é seu amo? O pecado ou Deus? (Rm 6:15–23).
3ª. A liberdade: liberdade da lei (Rm 7:1–6).
3b. A relação do pecador para com a lei de Deus, à luz da
experiência própria de Paulo e a de outros como ele (Rm 7:7–13).
3c. A própria experiência de Paulo e a de outros como ele
(continuação: A luta e vitória do homem miserável (Rm 7:14–25).
4ª. “Não há condenação” para os que estão em Cristo Jesus (8:1–
30).
4b. A máxima invencibilidade, ou seja, ser mais que vencedores
(Rm 8:31–39).
Depois de ter demonstrado que a doutrina da justificação — e como
resultado a salvação — pela fé é real e necessária (capítulos 1–3), bíblica
(capítulo 4) e eficaz, quer dizer, produtora de frutos (capítulos 5–8),
Paulo passa a provar nos capítulos 9–11 que é também histórica, no
sentido de que no curso da história as promessas mais preciosas de Deus
sempre apontavam a, e se cumpriam em, o remanescente crente, que isto
é certo hoje (quando Paulo escrevia), e continuará sendo assim.
Os capítulos 12–16 contêm a aplicação prática de tudo isso. Em
outras palavras, estes capítulos finais demonstram como os que foram
justificados (e por esta razão salvos) pela fé dada por Deus devem
revelar sua gratidão em vidas de amor para seu próximo e de devoção
para com seu misericordioso Deus Triúno.
Romanos (William Hendriksen) 53

I. COMENTÁRIO SOBRE ROMANOS 1-11


Romanos (William Hendriksen) 54
ROMANOS 1
ROMANOS 1:1–15 - PRÓLOGO

RM 1:1–7 - SAUDAÇÃO

Este é o começo da mais extensa saudação inicial de Paulo. À guisa


de comparação, note-se a seguinte lista que indica, em ordem
ascendente, o número de palavras que cada saudação tem no idioma
original:
1 Tessalonicenses 19
2 Tessalonicenses 27
Colossenses 28
Efésios 28 (ou 30)
2 Timóteo 29
Filipenses 32
1 Timóteo 32
2 Coríntios 41
Filemom 41
1 Coríntios 55
Tito 65
Gálatas 75
Romanos 93
Tal como na epístola a Tito, Paulo se apresenta aqui em Romanos
como um doulos (pl. douloi, em Fp 1:1) de Cristo Jesus. Como
equivalente de doulos alguns preferem — e outros até insistem em —
escravo. Devemos reconhecer que certos aspectos inerentes à condição
de escravo, tais como a da absoluta submissão ao seu amo e sua total
dependência dele, como também o direito de propriedade do amo e sua
autoridade sem restrição sobre o escravo, podem ser aplicados, embora
num sentido muito mais exaltado, à relação entre Cristo e os crentes.
Romanos (William Hendriksen) 55
Veja-se, por exemplo, 1Co 3:23; 6:19b, 20. No entanto, visto que
geralmente associamos o conceito de escravo com ideias tais como as de
serviço involuntário, sujeição forçada e (frequentemente) trato rude,
muitos chegaram à conclusão (e talvez estejam certo) que “escravo” não
é o melhor equivalente neste contexto.
Por outro lado, é necessário levar em conta que Paulo era um
“hebreu de hebreus” (Fp 3:5), e que por esta razão estava à vontade no
Antigo Testamento. Por isso, quando se chama a si mesmo um doulos de
Cristo Jesus ele talvez esteja pensando em passagens em que se chamam
Abraão (Gn 26:24), a Moisés (Nm. 12:7), a Josué (Js. 24:29), a Davi
(2Sm 7:5), a Isaías (Is 20:3), etc., servos de Jeová. E não é ainda possível
que a imagem do Servo absolutamente consagrado descrita em Is 49:1–
7; 52:13; 53:11 tenha contribuído par o significado do termo doulos aqui
em Rm 1:1?
Paulo se apresenta como servo de Cristo Jesus. 12 O nome pessoal
Jesus, que significa, quer seja “ele por certo salvará” (cf. Mt 1:21), ou
“O Senhor é salvação”, o que em última instância significa o mesmo,
está precedida pelo título oficial de Cristo (ungido). Deste Cristo Jesus
Paulo é servo, completamente rendido ao seu Senhor.
Este servo é, ao mesmo tempo, “um apóstolo chamado”.
Agora, em seu sentido mais amplo um apóstolo (do grego
apostolos, termo derivado de um verbo que significa enviar,
comissionar, despachar) é qualquer pessoa enviada ou por meio de quem
se envia uma mensagem; ou seja, um embaixador, um enviado, um
mensageiro. No grego clássico o termo poderia referir-se a uma
expedição naval, e um “barco apostólico” era um barco de carga. No
judaísmo posterior, os “apóstolos” eram emissários enviados pelo
patriarcado de Jerusalém para arrecadar o tributo dos judeus da diáspora.
No Novo Testamento o termo adquire um sentido claramente religioso.

12
Por que “Cristo Jesus” em vez de “Jesus Cristo”? Para uma possível resposta a esta pergunta veja-se
C.N.T. sobre 1Tm. 1:1.
Romanos (William Hendriksen) 56
Em seu significado mais amplo refere-se a qualquer mensageiro do
evangelho, qualquer pessoa enviada numa missão espiritual, qualquer
que, em tal caráter, representa Aquele que o envia e traz a mensagem de
salvação. Segundo este uso, Barnabé, Epafrodito, Apolo, Silvano e
Timóteo são todos chamados “apóstolos” (At 14:14; 1Co 4:6, 9; Fp 2:25;
1Ts 2:6; cf. Rm 1:1 e veja-se também 1Co 15:7).
Todos eles representam a causa de Deus, embora ao fazê-lo possam
também representar certas igrejas em especial, das quais são “apóstolos”
(cf. 2Co 8:23). Assim Paulo e Barnabé representam a igreja de Antioquia
(At 13:1–2) e Epafrodito é o “apóstolo” de Filipos (Fp 2:25).
Mas para determinar o significado do termo apóstolo aqui em Rm
1:1 será muito melhor estudar aquelas passagens nas quais é utilizado em
seu sentido mais habitual. Encontramo-las dez vezes nos Evangelhos,
quase trinta em Atos, mais de trinta vezes nas cartas paulinas (incluindo
as cinco ocasiões em que aparece nas cartas pastorais) e oito vezes no
resto do Novo Testamento, e em geral (embora note-se as importantes
exceções de Hb 3:1, e as já indicadas) refere-se aos Doze e Paulo.
Nesse sentido muito profundo e completo um homem é apóstolo
para sempre e onde quer que vá. Ele foi investido com a autoridade
dAquele que o enviou e essa autoridade corresponde tanto à doutrina
como à vida. A ideia, encontrada em muita da literatura religiosa de hoje
em dia, segundo a qual um apóstolo não tem um verdadeiro ofício ou
autoridade, carece de base bíblica. Qualquer um pode ver isto por si
mesmo, analisando passagens tais como Mt 16:19; 18:18; 28:18, 19
(note-se a relação), Jo 20:23; 1Co 5:3–5; 2Co 10:8; 1Ts 2:6.
Paulo era, então, um apóstolo no sentido mais amplo do termo. Seu
apostolado era de igual caráter que o dos Doze. Dali que falamos dos
“Doze e Paulo”. Paulo faz notar com ênfase que o Salvador ressuscitado
tinha aparecido a ele tão certamente como tinha aparecido a Cefas (1Co
15:5, 8). Esse mesmo Salvador lhe havia atribuído uma missão tão ampla
e universal que dali em diante sua vida inteira estaria consagrada a ela
(At 26:16–18).
Romanos (William Hendriksen) 57
No entanto, Paulo, decididamente, não era um dos Doze. Quase não
merece consideração a ideia de que os discípulos erraram ao escolher
Matias para tomar o lugar de Judas e que logo o Espírito Santo tinha
designado Paulo como verdadeiro substituto (veja-se At 1:24). Mas se
não era um dos Doze e, no entanto, estava investido do mesmo ofício,
qual era a relação entre ele e os Doze? Possivelmente a resposta esteja
sugerida em At 1:8 e Gl 2:7–9. Com base nestas passagens podemos
formular a resposta assim: os Doze, ao reconhecer que Paulo tinha sido
chamado especialmente para desenvolver seu ministério entre os gentios,
de fato levavam a cabo por seu intermediário o chamado que eles tinham
para com os gentios.
As características de um apostolado total — o dos Doze e de Paulo
— são enumerados a seguir:
Em primeiro lugar, os apóstolos foram escolhidos, chamados e
enviados pelo próprio Cristo. Receberam seu mandato diretamente dEle
(Jo 6:70; 13:18; 15:16, 19; Gl 1:6).
Segundo, Jesus os capacitou para sua missão e eles foram
testemunhas oculares e orais de Suas palavras e atos; mais
especificamente, eles são as testemunhas de Sua ressurreição (At 1:8; 21,
22; 1Co 9:1; 15:8; Gl 1:12; Ef 3:2–8; 1Jo 1:1–3). Nota: embora At 1:21,
22, não se aplica a Paulo, as outras passagens, sim. Paulo também tinha
visto o Senhor!
Terceiro, eles foram dotados em medida especial com o Espírito
Santo, e é esse mesmo Espírito, quem os guia a toda a verdade (Mt
10:20; Jo 14:26; 15:26; 16:7–14; 20:22; 1Co 2:10–13; 7:40; 1Ts 4:8).
Quarto, Deus abençoa sua obra, confirmando seu valor por meio de
sinais e milagres e lhes dando muito fruto aos seus trabalhos (Mt 10:1, 8;
At 2:43; 3:2; 5:12–16; Rm 15:18, 19; 1Co 9:2; 2Co 12:12. Gl 2:8).
Quinto, seu ofício não está limitado a uma igreja local nem cobre só
um breve lapso; pelo contrário, é para toda a igreja e para sempre (At
26:16–18; 2Tm 4:7, 8).
Romanos (William Hendriksen) 58
Note-se: “um apóstolo chamado”. Isto é, por certo, uma expressão
muito melhor que “chamado apóstolo”, ou “chamado a ser ou a fazer-se
apóstolo”. O que o original quer dizer é que Paulo era um apóstolo em
virtude de ter sido chamado efetivamente por Deus para esse ofício. Do
mesmo modo, as pessoas a quem gente se dirige eram santos em virtude
de ter sido chamados “santos por vocação (divina)”. Ver sobre Rm 1:7.
Como apóstolo chamado, Paulo tinha sido “afastado para o
evangelho de Deus”. Desde o princípio ele tinha sido designado por
Deus para a proclamação do evangelho. Note-se especialmente Gl 1:15,
onde o apóstolo se expressa nos seguintes termos: “aprouve a Deus, que
me separou desde o ventre de minha mãe e me chamou pela sua graça,
revelar seu Filho em mim, para que eu pregasse o seu evangelho entre os
gentios …”
Paulo fala do “evangelho de Deus”. É a narração ou o relato do que
Deus tem feito para salvar os pecadores. Por essa mesma razão é uma
mensagem de boas novas. É a prazerosa nova de salvação que Deus
dirige a um mundo perdido no pecado. Não é o que nós devemos fazer,
mas o que Deus em Cristo fez por nós o que é a parte mais destacada
nessas boas notícias. Isto surge claramente da forma em que o
substantivo evangelho e seu respectivo verbo, proclamar um evangelho,
trazer boas notícias, são usados no Antigo Testamento. Veja-se LXX
sobre Sl. 40:9; 96:2; Is 40:9; 52:7; 61:1 e Na 1:15.
Aqui em Rm 1 o termo “evangelho de Deus” (v. 1) tem dois
modificadores, um no v. 2, o outro no v. 3s.
2.… que ele prometeu de antemão por meio de seus profetas em (as)
Sagradas Escrituras …
Esta passagem é, por certo, muito importante. Mostra-nos como
Paulo, inspirado pelo Espírito Santo, quer que consideremos o Antigo
Testamento. Ele vê claramente que a antiga e a nova dispensações vão
juntas. Ele considera (a) o Antigo Testamento e (b) as boas novas de
salvação, tal como são proclamadas por Jesus e Seus mensageiros, como
uma unidade. Falando em termos gerais, podemos dizer que o Antigo
Romanos (William Hendriksen) 59
Testamento contém as promessas; o Novo Testamento mostra como
estas promessas tinham sido cumpridas, estavam sendo cumpridas, e iam
ser cumpridas.
Quando Paulo diz “seus profetas” ele se refere não só,
naturalmente, a homens tais como Isaías, Jeremias, etc., mas também a
Moisés, Samuel, Davi, etc. Para falar em linguagem que até as crianças
entendem:
O Antigo pelo Novo explicado,
O Novo no Antigo contido.
ou de forma similar:
O Novo no Antigo escondido,
O Antigo pelo Novo revelado.
O que Paulo escreve aqui é exatamente o que Jesus também
proclamou: e isso não só nessas bem-conhecidas passagens: Lc 24:25–
32, 44–48, às quais se faz referência muitas vezes com relação a isso,
mas certamente também em Lc 4:21 (no contexto de Rm 4:16–30) “…
Hoje, enquanto vós o ouvis, está se cumprindo esta passagem da
Escritura”, e em Lc 22:37: “Pois vos digo que importa que se cumpra em
mim o que está escrito: Ele foi contado com os malfeitores. Porque o que
a mim se refere está sendo cumprido”. Para mais sobre este tema veja-se
C.N.T. sobre Lucas, pp. 907–908, e Filipenses, pp. 94–98.
O que deve enfatizar-se aqui é que tanto Jesus (veja-se Jo 10:35;
17:17) como Paulo tinham em alta estima o Antigo Testamento.
Consideravam-no sagrado. Quando alguém rejeita o Antigo Testamento
está rejeitando também a Jesus e a Paulo!
Passamos agora ao segundo modificador do termo “o evangelho de
Deus”. É este:
3, 4 … a respeito de seu Filho, quem segundo a carne nasceu da
linhagem de Davi, mas por virtude do 13 Espírito de Santidade foi, por

13
Ou: segundo.
Romanos (William Hendriksen) 60
meio da ressurreição dentre os mortos, constituído Filho de Deus
investido de poder, ou seja, Jesus Cristo nosso Senhor …
Os intérpretes diferem bastante em sua explicação destas linhas.
Minha própria interpretação se baseia, em grande parte, em minhas
conclusões com relação ao significado do original. Por isso convido os
conhecedores do grego a estudar a nota. 14

14
As seguintes pergunta devem ser formuladas e respondidas:
a. Qual é o significado do acusativo de σάρξ como é usado aqui?
b. Tem o verbo _ρίζω (do qual aparece aqui o particípio passado aoristo, gen. s. m.) o significado
de declarar (como em certas traduções) ou de constituir (ou designar)?
c. A frase _ν δυνάμει, modifica υ_ο_ θεο_ ou _ρισθέντος?
d. Qual é o significado de πνε_μα _γιωσύνης?
e. Qual é o significado de κατά antes de πνε_μα _γιωσύνης?
f. Formam κατ_ δάρκα e κατ_ _γιωσύνης um contraste entre dois elementos presentes na natureza
humana de Cristo? Referem-se à natureza humana de Cristo versus sua natureza divina?
g. Qual é o significado de _ξ no versículo 4?
Respostas:
a. Esta palavra tem uma variedade de significados nas epístolas de Paulo. A lista aparece na nota
187. Parece que o significando f. fosse aquele que aqui se propõe, visto que foi segundo Sua natureza
humana (não Sua natureza divina) que Jesus era descendente de Davi.
b. No resto do Novo Testamento este verbo tem uniformemente o significado de determinar,
decretar, constituir (ou designar). Veja-se também C.N.T. sobre Lucas 22:22. Não há nenhuma razão
de peso para debilitar seu significado fazendo-o significar “declarar”. No entanto, declarar, dar a
conhecer, bem podem ser incluídos em constituir, designar, como se faz aqui.
c. Esta frase provavelmente modifica as palavras que a precedem de forma imediata; daí, “Filho de
Deus investido de poder”. Mas mesmo se fosse vinculada com o verbo, o significado resultante seria
quase o mesmo.
d. O termo “Espírito de santidade” se deriva de Is 63:10s. Cf. Sl. 51:11. A referência que se faz
aqui em Rm 1:4 é ao Espírito Santo (divino, exaltado).
e. Como um dos significados de κατά seguido do acus., L.N.T. (Th.), p. 328, dá por meio de, por
virtude de. Esta conotação de agência se aceitava especialmente no uso do koinê tardio. Talvez haja
aqui uma combinação de agência e de norma de medição. A tradução por virtude de pode ser tão boa
como qualquer outra.
f. Definitivamente não. Sem dúvida, há um contraste, mas esse contraste é entre (a) o que Cristo
era com relação à Sua natureza humana, e (b) o que Ele veio a ser por virtude do Espírito de
santidade. Em outras palavras, o contraste é entre o estado de humilhação de Cristo e seu estado de
exaltação. Não se pode contrastar um elemento da natureza humana de Cristo com a terceira Pessoa
da Santa Trindade.
g. Aqui devemos ser muito cuidadosos. O significado “desde” (Ou seja, “da ressurreição dentre os
mortos”) não pode ser totalmente descartado. Pode ser correto. Veja-se Marcos 10:20 “desde (ou, a
Romanos (William Hendriksen) 61
Paulo confessa que Jesus é o Filho de Deus. Quer dizer que o
Salvador era Filho de Deus completamente à parte de sua tomada da
forma humana e com antecedência a isso. Ele é o Filho de Deus desde
toda a eternidade; por isso Ele é Deus.
Esta confissão concorda com tudo o que o apóstolo diz em outras
partes. Daí que em Rm 9:5, segundo a que provavelmente seja a melhor
leitura e interpretação, Paulo chama Jesus “sobre tudo Deus bendito para
sempre”. Em Tito 2:13 ele O descreve como “nosso grande Deus e
Salvador”. Ele é, na verdade, “Aquele em quem toda a plenitude da
deidade está concentrada” (Cl 2:9). Cf. Fp 2:6.
Agora, é este Filho quem, sem deixar de lado sua natureza divina,
assumiu a natureza humana. Embora fosse rico, por amor a nós Ele Se
fez pobre, para que por meio de Sua pobreza nós pudéssemos ser ricos
(2Co. 8:9). Na plenitude do tempo Ele nasceu de uma mulher (Gl 4:4).
Durante a Sua peregrinação terrena foi de fato “varão de dores,
experimentado em trabalhos” (Is 53:3). Exatamente de que modo era
possível que a totalmente intacta e gloriosa natureza divina do Salvador
habitasse em íntima união com sua natureza humana — estando esta
última curvada com a carga de nossa culpa e todas as inexprimíveis
agonias que esta condição implicava —, é algo que ultrapassa a
compreensão humana.
Nossa passagem nos informa também que quanto à Sua natureza
humana, Jesus “nasceu da linhagem de Davi”. Isto sucedia em
cumprimento da promessa frequentemente repetida. Veja-se 2Sm 7:12,
13, 16; Sl. 89:3, 4, 19, 24; 132:17; Is 11:1–5, 10; Jr 23:5, 6; 30:9; 33:14–
16; Ez 34:23, 24; 37:24; Mt 1:1; Lc 1:27, 32, 33, 69; 3:23–31; Jo 7:42;
At 2:30; 2Tm 2:8; Ap 5:5; 22:16. Se Ele não fosse descendente de Davi,
não poderia ter sido o Messias, visto que a profecia com relação a Ele
deve cumprir-se.

partir de) minha juventude”. No entanto, o significado “por causa de”, para o que ver Ap 16:10
(“Mordiam-se as línguas por causa da dor”) pareceria ser algo mais natural aqui.
Romanos (William Hendriksen) 62
Seu estado de humilhação, no entanto, não podia durar para sempre.
Como recompensa por Sua boa vontade em suportá-la, Ele foi, por
virtude do Espírito de santidade, designado para ser Filho de Deus “em
poder”, ou “investido de poder”.
No que tem que ver com a “designação” desde a eternidade,
efetuada no tempo, veja-se Sl. 2:7, 8; At 13:33; Hb 1:5; 5:5. A exaltação
de que se fala foi realizada através de Sua ressurreição dentre os mortos;
em outras palavras, Sua gloriosa ressurreição foi o primeiro passo
importante em Seu trajeto à glória. Foi seguida pela ascensão de Cristo,
sua coroação e o ato de derramar ao Espírito Santo.
Na expressão “Ele foi constituído Filho de Deus investido de
poder”, toda a ênfase recai sobre as palavras escritas em itálico. Como já
se indicou, ele era Filho de Deus desde toda a eternidade, mas durante o
período de Sua humilhação, a plenitude de seu poder estava, por assim
dizer, oculta. Por meio de Sua gloriosa ressurreição, Sua investidura de
poder não só foi ressaltada, mas também começou a resplandecer em
toda sua glória. A expressão usada aqui nos lembra a afirmação de
Pedro, feita num contexto muito similar, ou seja: “Esteja absolutamente
certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que vós
crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo” (At 2:36). Esta afirmação não
implica que antes de Sua ressurreição Jesus não fosse Senhor e Cristo.
Significa que o poder, majestade e glória de seu exaltado oficio
começava agora a resplandecer com todo seu incrementado brilho.
Agora Rm 1:4 nos informa que esta manifestação da investidura de
poder de Cristo foi levada a cabo por meio do “Espírito de santidade”.
Não se deve identificar este “Espírito de santidade” com o elemento
espiritual da natureza humana de Cristo em contraste com Seu elemento
físico, ou com sua natureza divina em contraste com Sua natureza
humana, mas com o Espírito Santo, a terceira pessoa da divina Trindade.
Mas embora a terceira pessoa seja diferente da segunda, ambos, o
Espírito Santo e Cristo, estão relacionados da maneira mais íntima. O Dr.
H. Bavink diz:
Romanos (William Hendriksen) 63
“Por certo, o Espírito de santidade já habitava em Cristo antes de
Sua ressurreição; de fato, desde o momento de Sua concepção, visto que
Ele foi concebido do Espírito Santo (Lc 1:35), foi cheio do Espírito
Santo (Lc 4:1), recebeu-O sem medida (Jo 3:34) … Mas esta glória que
Cristo possuía internamente não podia revelar-se exteriormente. Ele era
carne, e devido à fraqueza da carne Ele foi morto na cruz (2Co 13:4).
Porém, na morte Ele pôs de lado esta fraqueza e cortou toda conexão
com o pecado e a morte. Deus, quem por amor a nós entregou à morte o
seu próprio Filho, também O ressuscitou dentre os mortos, e o fez
através de Seu Espírito, quem, como Espírito de santidade, habita em
Cristo e em todos os crentes (Rm 8:11). Ele O ressuscitou para que desse
momento em diante Ele já não vivesse na fraqueza da carne, e sim no
poder do Espírito”. 15
Foi devido a este grande poder que o exaltado Salvador divino-
humano desde seu trono celestial derramou o Espírito sobre Sua igreja,
comunicando força, convicção, coragem e iluminação que previamente
tinham sido muito fracas. Foi também esta energia que o capacitou a
obter conversões de milhares, de tal maneira que até segundo o
testemunho dos inimigos “o mundo estava sendo transtornado” (At
17:6). Além disso, foi como resultado do exercício desta poderosa
influência que a barreira entre judeu e gentio, um muro tão formidável
que deve ter parecido impossível tirar, foi efetivamente destruído. E foi
devido a esta força que o glorioso evangelho do Salvador ressuscitado e
exaltado começou a penetrar cada esfera da vida e continua fazendo
hoje.
A obra de comunicar vida é atribuída geralmente ao Espírito Santo:
“Envias o teu Espírito, eles são criados, e, assim, renovas a face da terra.
A glória do SENHOR seja para sempre! Exulte o SENHOR por suas
obras!” Sl. 104:30, 31.

15
Gereformeerde Dogmatiek, Kampen, 1918, terceira edição, Vol. III, pp. 488, 489.
Romanos (William Hendriksen) 64
Pois bem, se a obra de comunicar vida é atribuída ao Espírito Santo,
não é lógico que aqui em Rm 1:4 se atribua também a ele a renovação da
vida — a ressurreição de Cristo?
Paulo conclui este sumário de nomes dAquele que é coração e
centro do “evangelho de Deus” (v. 1) acrescentando: “Jesus Cristo nosso
Senhor”. Este muito significativo título demonstra o que Aquele a quem
se descreve significa para o apóstolo: na verdade, para a igreja em geral
e para a de Roma em particular. Note-se: “De Deus Filho” (vv. 3, 4a)
“… nosso Senhor” (v. 4b). Observe-se também a combinação do nome
pessoal, Jesus = Salvador, com o nome oficial Cristo = o Ungido. A
adoração: Senhor (Dono, Governante, Provedor) é colocada ao mesmo
tempo com a apropriação: nosso Senhor. É por meio de “Jesus Cristo
nosso Senhor” que o verdadeiro evangelho chega à sua culminação. À
parte dEle a salvação é impossível. Com Ele como nosso soberano
prazerosamente reconhecido, objeto de nossa confiança e amor, a
condenação é impensável. Veja-se Rm 8:1.
Paulo, tendo-se apresentado no versículo 1, acrescenta agora mais
informação sobre si mesmo; mais precisamente sobre si mesmo com
relação a “Jesus Cristo nosso Senhor”, de quem tinha recebido sua
importante comissão:
5.… por meio de quem e por cuja causa recebemos o dom do
apostolado, para suscitar obediência de fé 16 entre todos os gentios …
Tomada literalmente, a passagem diz: “por meio de quem e por cuja
causa recebemos graça e apostolado”. Muitos tradutores retiveram estas
palavras, nessa mesma ordem, em suas versões. Assim interpretado,
Paulo estaria dizendo que ele tinha recebido duas coisas (a) graça, quer
dizer, o favor imerecido de Deus que outorga salvação, mais (b) em
apostolado. 17 Esta interpretação pode ser correta.

16
Ou: baseada na fé; ou: que surge da fé.
17
Esta opinião é defendida por J. Murray, op. cit., Vol. 1, p. 13; também por S. Greijdanus, em outra
preciosa obra, De Brief van den Apostle Paulus aan de Gemeente te Rome (Kommentaar op het
Romanos (William Hendriksen) 65
Pessoalmente estou a favor de outro ponto de vista, ou seja, que o
que aqui temos no versículo 5 é um caso de hendíadis (a expressão
idiomática do “um por meio de dois; ou seja, um conceito é expresso por
dois substantivos vinculados por um), e que o significado é,
consequentemente, “o dom (ou graça) do apostolado”. Estou a favor
desta interpretação e tradução pelas seguintes razões:
1. No presente contexto é difícil ver por que enfatizaria Paulo que
ele é um homem salvo pela graça.
2. Também em Rm 15:15, 16, a “graça” mencionada é o ministério
de Paulo, seu ofício apostólico. 18 E cf. Rm 12:6.
Quando Paulo diz: “Recebemos”, o mais provável é que ele esteja
usando o plural literário. 19 Sendo assim, ele se está referindo a si mesmo
e não a outros também.
Quando recebeu Paulo de “Jesus Cristo nosso Senhor” o dom do
apostolado, com o mandato implícito de exercê-lo? Muitas passagens
vêm à mente; por exemplo: At 9:1–9 (note-se especialmente o versículo
15); 18:9, 10; 22:6–21; 26:12–18; Rm 15:15, 16. Entre todos estes há
dois que merecem uma menção mais que passageira:
No primeiro, Jesus aparece falando com Paulo com relação à
inesquecível visão que este último recebeu quando era um incansável
perseguidor em caminho para Damasco. Em resposta à pergunta de
Paulo “Quem é, Senhor?”, o Senhor respondeu: “Eu sou Jesus, a quem tu
persegues. Mas levanta-te e firma-te sobre teus pés, porque por isto te
apareci, para te constituir ministro e testemunha, tanto das coisas em que
me viste como daquelas pelas quais te aparecerei ainda, livrando-te do
povo e dos gentios, para os quais eu te envio, para lhes abrires os olhos e
os converteres das trevas para a luz e da potestade de Satanás para Deus,

Nieuwe Testament), Amsterdã, 1933, Vol. I, p. 67. É favorecida também por muitos outros expositores
bíblicos e pela maioria dos tradutores.
18
Esta opinión (heniadys) conta também com o favor dos seguintes expositores, entre outros: Bruce,
Cranfield, Ridderbos, Van Leeuwen e Jacobs; e por traduções ao inglês tão reconhecidas como a
Berkeley Version, Good News for Modern Man, Knox, Moffat, N.E.B., etc.
19
Veja-se Gram. N.T., pp. 406, 407.
Romanos (William Hendriksen) 66
a fim de que recebam eles remissão de pecados e herança entre os que
são santificados pela fé em mim” (At 26:15b–18).
No segundo, que descreve o que sucedeu pouco depois, quando
Paulo estava orando no templo, diz-se que ele caiu em êxtase e ouviu
que o Senhor lhe dizia: “Vai, porque eu te enviarei para longe, aos
gentios” (At 22:21).
Em ambas as passagens se descreve o apóstolo como um homem
que recebeu sua missão apostólica de Jesus Cristo. Veja-se também
C.N.T. sobre Gl 1:1.
Note-se “por meio de quem e por cuja causa”. Isto significa que não
só é verdade que Paulo recebeu seu apostolado de, ou através de, Cristo,
mas também é um fato que o recebeu para que por meio do mesmo ele
pudesse proclamar o nome de Cristo e promover Sua causa.
O propósito pelo qual Paulo foi designado era o de suscitar
obediência de fé. Tal obediência está baseada na fé e surge da fé. Na
verdade, a fé e a obediência estão unidas tão estreitamente que se poderia
compará-las com gêmeos idênticos. Quando se vê um, vê-se o outro.
Uma pessoa não pode ter uma fé genuína sem ter obediência, nem vice-
versa. 20
Uma notável ilustração deste fato é oferecida pelo próprio apóstolo
em duas passagens sinônimas, nos quais a primeiro tem que ver com a fé,
e a segundo com a obediência:
Rm 1:8 - “… Dou graças a meu Deus por meio de Cristo Jesus por
todos vós, porque se fala de vossa fé por todo mundo”.
Rm 16:19 - “Porque o relatório de vossa obediência chegou a
todos”. É por meio da obediência de fé que uma pessoa abraça a Cristo.
Depois que Paulo escreveu “… para suscitar obediência de fé entre
todos os gentios”, ele continua, dizendo:
6.… lhes incluindo também a vós, os chamados de Jesus Cristo …

20
No holandês, ambas são às vezes combinadas numa só palavra: gloofsgehoorzaamheid.
Romanos (William Hendriksen) 67
É evidente que Paulo, quem nos vv. 1–5 esteve falando não só de si
mesmo e de seu ofício apostólico mas também do evangelho
cristocêntrico, volta-se agora especificamente àqueles a quem se está
dirigindo. Por certo, nunca estiveram ausentes de sua mente. Mas agora
ele os menciona como os que estavam definitivamente incluídos no
número daqueles para quem o evangelho estava destinado.
Falando em termos gerais, o apóstolo alegra-se em poder afirmar
que a igreja de Roma não só tinha sido convidada a abraçar Jesus Cristo
como Senhor e Salvador, mas pela graça soberana de Deus também tinha
respondido favoravelmente ao convite. Paulo está falando, então, do que
muitas vezes foi denominado “o chamado eficaz” (Rm 8:28, 30; 9:24;
1Co 1:9, 24, 26, etc.)
Implícito nestas palavras está também o fato de que Paulo está
muito consciente de que ele tem um direito muito especial e definido de
dirigir-se a estas pessoas. Não é ele “o apóstolo (por excelência) aos
gentios”? Além do versículo imediatamente precedente (v. 5), veja-se
também Rm 11:13; 15:16; Gl 2:8, 9; Ef 3:8; 1Tm. 2:7. E não é a
implicação mais natural das palavras, “entre todos os gentios, incluindo
também a vós” (ou, “entre os quais vós também estais”), ou seja, que
aqueles a quem Paulo se dirige aqui eram principalmente gentios de raça
e que tinham sido num tempo gentios também por religião? Veja-se
Introdução, Seção IV.
Quando Paulo denomina os destinatários “os chamados de Jesus
Cristo”, ele quer dizer «aqueles que em virtude de ter sido eficazmente
chamados pertencem a Jesus Cristo, são seu povo». Eles são até agora
Sua exclusiva propriedade, tendo sido entregues a Ele pelo Pai. Veja-se
Jo 10:27, 28: Cf. Jo 17:6, 9, 24; Tt 2:14; 1Pe 2:9. Veja-se também 1Co
6:19, 20. Esta inclusão na família de Deus está também implícita nas
palavras
7. A todos os amados de Deus, que estais em Roma, santos em
virtude de ter sido chamados, …
Romanos (William Hendriksen) 68
Por meio da frase: “A todos os amados de Deus, que estais em
Roma, santos em virtude de ter sido chamados” Paulo continua o que
tinha começado no v. 6, ou seja, descrever a aqueles a quem se dirige.
Agora inclui em sua descrição o nome do lugar onde vivem, Roma. As
razões pelas quais cremos que as palavras “em Roma” são uma parte
genuína do texto podem ser vistas em Introdução VI, sob Texto.
Quanto à expressão “amados de Deus” (ou: “amados por Deus”),
um estudo do livro de Romanos em sua totalidade revela que para Paulo
estas palavras indicam não só que Deus ama agora aos crentes que estão
em Roma, mas Ele os amou desde toda a eternidade (cf. Jr 31:3), e nunca
deixaria de amá-los (Rm 8:31–39). Sabemos que esta é a opinião do
apóstolo porque, na opinião dele, o afeto de Deus por Seus filhos é uma
cadeia inquebrável (Rm 8:29, 30). Abrange de uma eternidade até a
outra. É um amor que precede, acompanha e segue o amor deles por
Deus. E, logicamente, até o amor dos homens por Deus não deve ser
visto como uma entidade independente. Antes: “Nós amamos porque ele
nos amou primeiro” (1Jo 4:19). A mesma ideia está certamente implícita
nos ensinos de Paulo sobre este tema. Veja-se Rm 5:5–11; 8:28.
Paulo acrescenta: “santos em virtude de ter sido chamados”.
Embora os intérpretes não pouparam esforços para chamar a
atenção a este significado do original, 21 os tradutores continuam nos
oferecendo “chamados para ser santos”. Mas isso não é o que Paulo diz.
Ele diz aos cristãos romanos o que, por graça, eles são até agora. Ele
afirma que algo lhes aconteceu: foram eficazmente chamados. Por este
chamado interno ou eficaz se entende aquela operação do Espírito Santo
pela qual Ele aplica de tal maneira o evangelho às mentes e corações
dos pecadores que eles percebem sua culpa, começam a compreender
sua necessidade de Jesus Cristo, e O abraçam como seu Senhor e
Salvador. Assim esta gente se converte em santos, quer dizer, gente que

21
Com leves variantes, encontra-se esta tradução nos comentários a Romanos dos seguintes autores,
entre outros: Bruce, Coltman, Cranfield, Denney, Erdman, Greijdanus, Hobbs, Murray, Ridderbos.
Romanos (William Hendriksen) 69
foi “separada” para viver vidas para a glória do triúno Deus quem se
revelou em Cristo Jesus.
Como já se disse antes, Paulo tinha sido totalmente treinado no
conteúdo do que hoje denominamos o Antigo Testamento. Ele sabia que
durante a antiga dispensação houve certos lugares, objetos e pessoas que
tinham sido “separados” e “consagrados” ao serviço de Deus; por
exemplo, o santuário (1Rs. 8:10) e o lugar santíssimo (Êx 26:33), o
dízimo da terra (Lv 27:30), os sacerdotes (Lv 21:6, 7), e até os israelitas
em conjunto, vistos distinto das outras nações (Éx. 19:6; Lv 20:26; Dt
7:6; Dn 7:22). É esta ideia que no Novo Testamento aplica-se aos
cristãos em geral. Eles são a “linhagem escolhida, real sacerdócio, nação
santa, povo adquirido por Deus” da nova dispensação, escolhido para
declarar os louvores de Deus (1Pe 2:9). O santo é, então, uma pessoa
cuja culpa foi apagada com base na expiação vicária de Cristo e que,
como resultado, por meio do poder do Espírito que habita nele, esforça-
se em viver para a glória de Deus. Trata-se de um que foi “afastado” e
“consagrado” para servir.
Paulo, então, afirma que os destinatários desta carta são essa classe
de pessoas. São santos em virtude de ter sido efetivamente chamados.
Mas agora, depois de ter rejeitado a tradução “chamados para
serdes santos” por ser errônea, é preciso ser justo e destacar que
precisamente esta tradução, embora longe de ser satisfatória, contém um
elemento de valor. Aponta ao fato de que a pessoa que pela soberana
graça e poder de Deus chegou a ser santo, não pode dormir em seus
louros. Pelo contrário, ao ser agora um santo, deve esforçar-se dia após
dia em viver como um santo deve viver. Isto é ainda mais certo devido
ao fato de que enquanto esteja ainda neste mundo, continua sendo um
pecador. Deve esforçar-se o máximo possível — não por seu próprio
poder, visto que não tem nenhum, mas pelo poder do Espírito Santo —
para ser “santo(s) e irrepreensível(s) diante dele” (Ef 1:4). E se for
realmente um santo, também fará isto. Assim vemos que até uma errada
tradução de Rm 1:7 pode apontar na direção correta.
Romanos (William Hendriksen) 70
Paulo chamou a estes romanos “os chamados de Jesus Cristo,
amados de Deus, santos”. “Mas, por que,” podemos nos perguntar, “é ele
tão generoso em seu elogio a esta gente e tão ansioso por lhes assegurar
que os ama … e melhor ainda, que Deus os ama?” O provável é que o
faça porque ele sabe, e eles sabem, que ele, Paulo, não fundou esta
igreja. É como se estivesse dizendo: “Eu vos amo tão sincera e
profundamente como se eu mesmo tivesse sido o fundador de sua igreja.
E me considero seu apóstolo; sim, realmente seu”.
Graça a vós e paz de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo.
Esta é a forma de saudação que achamos na maioria das epístolas de
Paulo. Em Colossenses e em 1 Tessalonicenses há uma abreviação; em 1
e 2 Timóteo há uma ampliação, ao ter sido inserida a palavra
“misericórdia” entre “graça” e “paz”. Em Tito as palavras “nosso
Salvador” foram substituídas por “nosso Senhor”.
O que vemos aqui em Romanos, etc., é que a forma grega de
saudação foi combinada com a forma judaica.
O grego diz ¡Chaire! = “Alegro a vós!” o judeu diz ¡Shalom! =
“Paz!” Porém não só se uniram estas duas saudações por Paulo, porém
elas se transformaram ao mesmo tempo num saudação peculiarmente
cristã. Com relação a isto vale a pena notar que chaire foi mudada para
charis = graça.
A graça, como se usa aqui, é o favor imerecido e espontâneo de
Deus em ação, a benevolência livremente outorgada em função,
brindando salvação a pecadores carregados de culpa que buscam refúgio
nEle. É algo assim como o arco-íris que rodeia o próprio trono e do qual
saem relâmpagos, estrondos e trovões (Ap 4:3, 5). Pensamos no Juiz que
não só perdoa o castigo, mas também cancela a culpa do ofensor e logo o
adota como filho. A graça traz paz. Esta última é tanto um estado, o de
reconciliação com Deus, como uma condição, a convicção interna de
que tudo está bem. A paz é a grande bênção que Cristo, por meio de seu
sacrifício expiatório, outorga à igreja (Jo 14:27), e ela ultrapassa todo
entendimento (Fp 4:7). Não é o reflexo de um céu sem nuvens nas
Romanos (William Hendriksen) 71
tranquilas águas de um pitoresco lago, mas antes, a fenda na rocha na
qual o Senhor esconde os Seus filhos quando troveja a tormenta (pense-
se no tema da profecia de Sofonias); ou, para mudar a figura um pouco,
mas retendo o pensamento central, é o lugar de refúgio sob as asas onde
a galinha reúne seus pintinhos, de tal modo que os mesmos estão seguros
enquanto a tormenta se desata com toda sua fúria sobre ela.
Agora, esta graça e paz tem sua origem em nosso Deus (preciosa
palavra que nos permite apropriar e nos ver incluídos!) Pai, e que foi
merecida a favor dos crentes por Aquele que é o grande Amo-dono-
conquistador (“Senhor”), Salvador (“Jesus”), e Profeta-Sacerdote-Rei
(“Cristo”), e quem, devido à Sua tríplice unção “pode salvar
perpetuamente aos que por ele se aproximam a Deus” (Hb 7:25).
Para mais detalhes que têm que ver com certos aspectos dos
saudações iniciais de Paulo, consulte-se C.N.T., sobre 1 e 2
Tessalonicenses, pp. 47–56; sobre Filipenses, pp. 55–60; e sobre 1 e 2
Timóteo e Tito, pp. 59–67, 383–388.

Rm 1:8–15 - Ação de graças de Paulo e seu desejo de visitar Roma

8. Primeiro, dou graças a meu Deus por meio de Jesus Cristo por
todos vós, porque se fala de vossa fé por todo o mundo.
O Prólogo procede em sua maneira habitual; isto é, com a ação de
graças do apóstolo. Veja-se também 1Co 1:4–9; Ef 1:15, 16; Fp 1:3–8;
Cl 1:3–8; 1Ts 1:2–10; 2Ts 1:3–10; 1Tm. 1:12–17; 2Tm 1:3–5; Fm 4, 5.
“Dou graças a meu Deus”. Para este escritor Deus não era uma
abstração filosófica mas um verdadeiro Amigo. Cf. Sl. 25:14; Tg 2:23.
Deus era o objeto da confiança e do amor de Paulo, Aquele a quem ele
devia tudo. Não foi Deus quem tinha mudado este feroz perseguidor num
entusiasta promotor do evangelho? Daí que, para apreciar o significado
da designação “meu Deus” e as emoções que devem ter surgido no
coração do apóstolo quando escreveu isso, dever ler-se passagens tais
Romanos (William Hendriksen) 72
como At 9:3–8; 27:23 (“o Deus de quem sou e a quem sirvo”); 1Co 15:9;
Gl 1:13s; Ef 3:8; e 1Tm. 1:12–17.
“… por meio de Jesus Cristo”. Foi por meio dEle que se tinham
recebido as bênçãos (veja-se o contexto precedente, vv. 4–6). Por isso
corresponde também que através dEle se deem as graças. Este círculo
nunca deve romper-se! As bênçãos divinas que descem do céu devem
ascender de novo ao céu em forma de reconhecimento agradecido. Veja-
se Sl. 50:15.
“… por todos vós”, não só por aqueles com quem Paulo se
encontrou ou aos que tinha conhecido e que menciona pelo nome em At
16:3–15, mas por toda a congregação.
“… porque se fala de vossa fé por todo mundo”. Cf. Cl 1:6, 1Ts 1:8.
Isso é compreensível, especialmente ao levar em conta que Roma era a
capital, a metrópole do “mundo” conhecido por Paulo. Era muita gente
que tinha contato com Roma, quer diretamente ou por meio de amigos,
parentes, associados comerciais, etc. O fato de que o centro da Roma
pagã tivesse aqueles que adoravam o verdadeiro Deus era, sem dúvida,
um tema digno de conversação, uma razão adequada para uma prazerosa
ação de graças.
9, 10. Porque Deus, a quem sirvo de coração 22 no evangelho de seu
Filho, é minha testemunha de como sem cessar vos menciono sempre em
minhas orações, pedindo se talvez agora enfim, pela vontade de Deus, me
abra a porta para vir a vós.
“Deus … é minha testemunha”. Para que os crentes de Roma
pudessem saber com quanto zelo ora Paulo por eles e quão
profundamente ele deseja vê-los, Paulo, para confirmar o que diz, apela
ao Deus onisciente, que não pode mentir e que julga os corações e os
motivos humanos. Cf. 1Sm 15:29; Jr 11:20; 2Tm 2:13; Tt 1:2; Hb 6:18.
“Deus, a quem sirvo de coração”. A palavra que se usa no original
refere-se a um serviço de uma natureza peculiarmente religiosa. Com

22
Literalmente: em meu espírito.
Romanos (William Hendriksen) 73
frequência chega a significar adoração (Mt 4:10; Lc 1:74; Hb 9:9, 14;
Ap 7:15; 22:3), embora o objeto da adoração não seja sempre o
verdadeiro Deus que se revelou em Jesus Cristo.
Em alguns casos a atividade indicada significa idolatria (At 7:42;
Rm 1:25). No caso de Paulo o objeto deste serviço é Aquele a quem ele
chama “meu Deus” (v. 8), ou como aqui no v. 9, simplesmente “Deus”.
Quando o apóstolo diz “a quem sirvo em meu espírito” (significado
literal do original), ele provavelmente quer dizer “de coração”, ou seja,
“com sincera devoção de coração” (Calvino).
… (a quem sirvo) … “no evangelho de seu Filho”. Há vários
intérpretes que inserem a palavra “pregação”, ou “proclamação” entre
“em” e “o evangelho”. Ao serem perguntados a respeito, eles poderiam
apelar ao v. 15: “dali meu anelo de pregar o evangelho também a vós em
Roma”. Sem dúvida, também aqui no v. 9, a referência é principalmente
à pregação do evangelho. No entanto, a expressão “sirvo a Deus no
evangelho” bem poderia ter uma conotação algo mais ampla. Não serve
Paulo a Deus no evangelho de Seu Filho também quando ora que a
semente semeada caia em boa terra, quando consola uma pessoa e,
sobretudo, quando dedica toda sua vida e todos os seus talentos a Deus?
Note-se “o evangelho de seu Filho”, visto que é por meio da
encarnação deste, Sua vida, morte, ressurreição, ascensão, coroação,
intercessão, e o derramamento do Espírito (At 2:33), que os crentes
obtêm as bênçãos prometidas.
Com relação ao resto da oração, é provável que o mais aconselhável
seja lê-lo primeiro sem a inserção de nenhuma virgula (deixando a frase
“por vontade de Deus” para um comentário posterior). Note-se então a
seguinte:
“… como sem cessar vos menciono sempre em minhas orações,
pedindo se talvez agora enfim … me abra a porta para vir a vós”.
Onde temos que colocar a vírgula? É provável que nossa primeira
inclinação seja a de colocá-la depois das palavras “como sem cessar vos
menciono”. Nossa razão para desejar colocá-la ali é que de outra maneira
Romanos (William Hendriksen) 74
a frase resulta numa aparente redundância: “sem cessar … sempre”. Com
a vírgula colocada depois de “vos menciono”, a frase leria: “Deus é
minha testemunha de como sem cessar vos menciono, pedindo sempre
em minhas orações se talvez agora enfim … me abra a porta para vir a
vós”. 23
Embora com relação a quem favoreça esta construção esta
construção gramatical, e tenho alta consideração por seus livros, não
posso estar de acordo. Ao resolver aparentemente um problema, não
estão talvez criando um maior? É difícil crer que Paulo tenha querido dar
a entender que cada vez que ele orava sempre pedia ao Senhor que o
guiasse até Roma! Além disso, quando se entende desta maneira, a
expressão “como sem cessar vos menciono” não fica no ar? Esta
incessante menção desta gente seria então introduzida por uma expressão
que quase chega a ser um juramento, como se simplesmente o mencioná-
los, sem o modificador “em minhas orações”, fosse tão importante!
Creio, como resultado, que se deve colocar a vírgula depois de “em
minhas orações”. O que o apóstolo realmente enfatiza é que seu costume
de sempre incluir os crentes de Roma em suas orações não sofreu
interrupção. 24
“pedindo se talvez”, etc. Como se indicou em Introdução V, Paulo
de maneira nenhuma está seguro de que alguma vez chegará a Roma.
Veja-se também At 15:31.
“agora enfim”. O inquieto desejo de um coração transbordante de
amor e anelo faz com que Paulo escreva desta maneira.
“por vontade de Deus”. É evidente de At 18:21; Rm 15:32; 1Co
1:1; 4:19; 16:7, que para Paulo Deo volente não era uma mera frase. A
sujeição constante e voluntária de seu ser às soberanas intenções de Deus

23
Com relação a esta formulação convém ver as seguintes traduções ao inglês, que têm leves
variantes: A.R.V., N.A.S., Phillips, N.E.B.; e consultar os comentários escritos por (respectivamente):
Greijdanus, Hodge, Murray, Lekkerkerker, para mencionar uns poucos.
24
Esta interpretação, novamente com algumas variantes, pode encontrar-se nas seguintes traduções ao
inglês: A.V., R.S.V., N.I.V., e nos comentários de Lange, Cranfield, Ridderbos, etc.
Romanos (William Hendriksen) 75
para sua vida e tarefas era o que sustentava Paulo em todas as suas
provas. 2Co 12:7–10 contém uma notável ilustração desta atitude de uma
submissão incondicional e absoluta. Essa frase que às vezes se ouve: «Se
Deus quiser, ou não», nunca teria saído dos lábios de Paulo ou nascido
em sua mente. Aquela verdade expressa de forma tão bela em passagens
tais como Rm 8:28–39 evitava que isto sucedesse alguma vez. Quão
parecida esta atitude à do próprio Cristo! Vejam-se Mt 26:39, 42; Mc
14:36; Lc 22:41, 42.
“… me abra e a porta”, ou seja que possa apresentar-se, por
providência divina, a oportunidade.
Por que tinha Paulo tantos desejos de visitar a igreja de Roma? A
resposta encontra-se nos vv. 11–15; também em At 15:24. Visto que este
assunto foi analisado na Introdução, Seção V, não faz falta voltar a
elaborá-lo.
11, 12. Porque anelo ver-vos para vos poder comunicar algum dom
espiritual, para que sejais fortalecidos — quero dizer que enquanto
(estiver) entre vós possamos nos animar mutuamente pela fé do outro,
tanto a sua como a minha.
“… algum dom espiritual”. Paulo se expressa aqui muito
modestamente. Ele se refere aqui ao fortalecimento espiritual em geral e
não à comunicação de nenhum dom carismático específico, como o de
falar em línguas, etc.
Esta modéstia ou humildade de parte do escritor é também evidente
no uso da voz passiva: “para que sejais fortalecidos”, isto é, por Deus.
E este característico — ou seja, a humildade, “essa humilde doce
raiz, da qual brotam todas as virtudes celestiais” (Moore) — se manifesta
especialmente no último artigo, no qual Paulo se coloca a si mesmo no
mesmo nível dos crentes de Roma, afirmando que sua presença em
Roma significará um estímulo mútuo; como se dissesse: “Minha fé, tanto
como a vossa, necessita fortalecimento. Vós sereis uma bênção para
mim, e eu para vós”. Diz Calvino: “Note-se a que grau de modéstia
submete-se o seu piedoso coração, que não desdenhava buscar
Romanos (William Hendriksen) 76
confirmação em inexperientes iniciados. E realmente quer dizer o que
afirma, visto que na igreja de Cristo não há ninguém tão carente de dons
que não possa contribuir com algo para nosso benefício. A má vontade e
o orgulho, no entanto, impede que obtenhamos de outros este tipo de
frutos”.
13. Não quero que ignoreis, irmãos, que muitas vezes me propus ir a
vós — mas até agora fui impedido — para ter algum fruto também entre
vós, como (o tive) entre outros gentios.
“Não quero que ignoreis”. Esta expressão ocorre também em Rm
11:25; 1Co 10:1; 12:1; 2Co 1:8; e 1Ts 4:13. Trata-se de um tipo de litote;
quer dizer, uma figura na qual se expressa e até se enfatiza algo por meio
da negação do oposto. Por exemplo, “não poucos” provavelmente
significa “bastantes”, ou mesmo “muitos”. Ou seja que o que Paulo quer
dizer neste caso é “Desejo que notem especialmente que …”
“… irmãos”. Que “todos os homens são irmãos” é um dito muito
comum. Embora em certo sentido isto não possa negar-se, não é isto o
que Paulo tem em mente. Ele está falando de “irmãos em Cristo”,
daqueles que juntos pertencem à família de Deus”. Veja-se C. N. T.,
sobre Efésios, pp. 182–186. No vocabulário de Paulo, a palavra “irmãos”
aparece com grande frequência; de fato, umas cem vezes. Em Romanos
aparece quatorze vezes. Que o que o apóstolo geralmente tem em mente
quando usa este termo é “aqueles que estão unidos no vínculo comum da
comunhão cristã”, é evidente em passagens tais como 1Co 15:58; Cl 1:2;
1Tm. 6:2.
Também neste ponto de reconhecimento da família de Deus, cujos
membros são “irmãos” e “irmãs”, Paulo segue o ensino e exemplo de
Cristo. Vejam-se Mt 12:50; Mc. 3:35; Hb 2:11.
“… que muitas vezes me propus ir a vós”. Isto não pode significar
menos que houve realmente várias ocasiões em que Paulo fez sérios
planos para visitar a igreja de Roma. Quando sucedeu isto? Durante sua
anterior estadia em Corinto? Ou com relação ao extenso ministério de
Paulo em Éfeso? Não o sabemos. O que, sim, sabemos, porém, é que
Romanos (William Hendriksen) 77
Paulo, ao escrever isso, está revelando aos crentes romanos que seu
interesse e amor por eles não é coisa de ontem não mais. Pelo contrário,
ele recebeu muitos informes sobre eles, lembrou-os repetidamente em
suas orações, coisa que faz ainda (v. 9), está cheio de ternura por eles e
está fazendo planos (como o fizera antes) de visitá-los novamente.
É claro que “mas até agora fui impedido de” é um parêntese. Que
foi que impediu estes viagens projetadas? É possível que Rm 15:22 —
em especial se se leva em conta o contexto que imediatamente lhe segue
— aponta na direção de uma resposta.
A frase: “Não quero que ignoreis, irmãos, que muitas vezes me
propus ir a vós” continua assim: “para ter algum fruto também entre vós
…”. Na opinião de Paulo, o que era que se incluía neste fruto? Um
crescimento no conhecimento espiritual? Que isto era importante para o
apóstolo é evidente de passagens tais como Ef 1:17; 4:13; Cl 1:9, 10. E
certamente os frutos que ele mesmo menciona em Gl 5:22, 23 — amor,
alegria, paz, longanimidade (ou paciência), benignidade, bondade,
fidelidade, mansidão (ou amabilidade), domínio próprio, e dotes
similares — devem ser acrescentados.
Ao mencionar “fruto”, seria possível que ele estivesse pensando em
conversões à fé cristã, quer diretamente do paganismo, ou do paganismo
via o judaísmo? Alguns expositores negam isso. Mas mesmo assim, se se
levar em conta 1Co 9:22, é possível excluir este tipo de fruto da colheita
que Paulo tem em mente?
O importante com relação a isso é notar, mais uma vez, quão
estreita é a relação entre a mente de Cristo e a mente de Paulo. Não
enfatizou também nosso Senhor a necessidade de produzir fruto? Veja-se
Jo 15:1–8. E acrescente-se Mt 9:36–38; 11:28; Jo 4:35; 7:37, 38.
“… para ter algum fruto também entre vós, como (o tive) entre
outros gentios”. Seria um sério erro passar por alto esta afirmação como
se não tivesse importância. Tampouco satisfaz deixá-lo de lado após
comentar que evidentemente a igreja de Roma consistia em sua maior
parte de gentios, embora a inferência provavelmente tem justificação.
Romanos (William Hendriksen) 78
Veja-se Introdução, IV. Parece-me que a verdadeira lição que deixa o
versículo 13 é mais uma vez a da modéstia de Paulo. “Algum fruto …
como entre outros gentios”. Que forma humilde de descrever a rica e
abundante colheita de famílias e indivíduos que, por meio de Paulo, tinha
sido ganha para o Senhor dentre os gentios! Leia-se At 13:48; 14:21–23;
16:14, 15, 31–34; 17:4, 12, 34; 18:14; 19:10, 18–20. Alguns destes
gentios haviam sido ganhos para o Senhor dentre a escuridão do
paganismo; outros tinham sido transferidos do reino das trevas ao da luz
após primeiro ter permanecido durante um breve tempo na parada do
judaísmo, um estação de passagem na qual as mais profundas
necessidades da alma não tinham chegado a alcançar a satisfação
suprema. A totalidade da colheita tinha sido enorme. E isso era certo até
sem contar os judeus que tinham sido convertidos. “Algum fruto também
entre vós, como entre outros gentios!” A humildade de Paulo, sem
dúvida, era profunda, um exemplo para todos nós. E a quem nos faz
lembrar essa modéstia, humildade e bondade? Veja-se Is 42:1–4; Mt
12:18–21.
Paulo acaba de referir-se aos gentios” (“… como o tive entre outros
gentios”). Com referência a eles, então, ele continua falando e diz:
14. Sou devedor a gregos e a bárbaros, a sábios e a ignorantes; 25 daí
meu anelo de pregar o evangelho também a vós em Roma.
A grande variedade de explicações que há destas palavras pode
chegar a ser uma surpresa. 26 Na minha opinião, o que aqui temos é um
exemplo de um tipo de paralelismo no qual o segundo membro, embora
repita o pensamento do primeiro, acrescenta algo a isso à maneira de
explicação. Em outras palavras: sábios e ignorantes explica a gregos e
bárbaros.
Paulo escreve a crentes que vivem em Roma. É compreensível,
então, que quando ele usa o termo grego, não se limite às pessoas

25
Ou: tanto a sábios como a néscios.
26
Se se está de acordo com Cranfield ou não em sua interpretação deste versículo (op. cit. p. 83), seu
resumo de cinco opiniões diferentes é interessante e útil.
Romanos (William Hendriksen) 79
nascidas na Grécia. O que ele quer dizer é: os gentios de ascendência
grega, ou que tinham o costume de falar grego e que tinham assimilado,
ao menos em alguma medida, a cultura grega. O próprio fato de o
apóstolo escrever esta epístola em grego, e que dê por sentado que os
destinatários podem entendê-la, já comprova que, no sentido acima
indicado, as pessoas a quem escreve podem ser chamados “gregos”.
Agora, quando alguém de fala grega escutava a conversação de
algum estrangeiro, o incompreensível falatório deste último lhe soava
como brrbrr. Então chamaria o estrangeiro de bárbaro. Alguns destes
bárbaros eram sem dúvida pessoas de poucas luzes, ou ao menos eram
assim consideradas pelos “gregos”. No entanto, o evangelho se estende
para todos, os educado e os não educados, os cultos e os incultos. O que
Paulo, então, está dizendo, é: “Tenho um chamado divino para pregar o
evangelho aos gregos e também aos bárbaros; a seja, tanto aos sábios
como aos ignorantes”.
Houve, e ainda há, uma só mensagem para ambos, um caminho de
salvação para ambos. O povo de Listra costumava falar o idioma
licaônico (At 14:11). Paulo lhes havia trazido o evangelho. Os crentes
em Roma eram versados no grego. Também eles devem ouvir o
evangelho dos lábios de Paulo. Acaso não o tinha designado o Senhor
como “apóstolo dos gentios” sem levar em conta seu verdadeiro ou
suposto nível de cultura? Não era certo que precisavam ouvir este
evangelho? Os que ainda estavam nas trevas precisavam ouvi-lo. Os que
tinham sido tirados das trevas à luz precisavam ouvi-lo também. De
todos eles Paulo se considerava devedor; em primeiro lugar pela
comissão que lhe havia sido encomendada; em segundo lugar, porque ele
mesmo tinha sido um perseguidor e tinha sido resgatado pelo Senhor de
um modo inolvidavelmente misericordioso. E então tanto a gregos como
a bárbaros, a saber, tanto a sábios como a ignorantes, e como resultado
também aos que viviam em Roma, o apóstolo devia levar as boas novas.
Romanos (William Hendriksen) 80
É como se também aqui o ouvíssemos dizer: “Ai de mim se não
pregar o evangelho” (1Co 9:16). Não só era o fazê-lo seu dever
inescapável; ele mesmo estava também desejoso de fazê-lo.
Romanos (William Hendriksen) 81
A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ É REAL E NECESSÁRIA

ROMANOS 1:16–32

1. TEMA. RO. 1:16–17

É extremamente importante que esta passagem temática seja


interpretada corretamente. Fora de algumas necessárias exceções, não
tomarei o tempo de analisar em detalhe as diversas opiniões com as
quais não posso estar de acordo. O leitor pode achar por si mesmo estas
teorias que discrepam com a minha. De minha parte, limitar-me-ei a
interpretar os termos e/ou frases uma por uma, para logo resumir o total.
16. Porque não me envergonho do evangelho …
O apóstolo não vacilava em pregar o evangelho, visto que amava
muito essas boas novas. No contexto precedente Paulo fez menção de
gente “sábia” (como também de gente “ignorante”). Devem ter existido
muitos filósofos em cidades tais como Atenas, Corinto, Éfeso e, em não
menor medida, em Roma. Seria talvez que o apóstolo atrasou sua viagem
a Roma por vergonha de encontrar-se com estas pessoas tão altamente
educadas?
Sua resposta significa: «Por certo que não!» Quando ele escreve:
“Não me envergonho”, etc., o provável é que queira dizer: “Orgulho-me
e me alegro de ter a oportunidade de pregar o evangelho”. E por que não
teria que estar ansioso para proclamar a mensagem de salvação por meio
de Cristo, as notícias com relação ao “Cristo crucificado … poder de
Deus e sabedoria de Deus”(1Co 1:23, 24)?
… Porque É (o) poder do Deus para salvação a todo aquele que põe
em ação sua fé …
Mais uma vez a palavra “porque” está definitivamente no lugar
correto. É lógico dizer: “Não me envergonho do evangelho, porque
revela o poder salvífico de Deus”.
Romanos (William Hendriksen) 82
Não andam sempre os romanos jactando-se de seu poder, da força
pela qual conquistaram ao mundo? “Pois bem”, Paulo poderia dizer, “o
evangelho que eu proclamo é muito superior. Obteve e oferece algo
muito melhor, ou seja, (eterna) salvação, e isto não somente para as
pessoas de uma nação particular — Roma, por exemplo — senão para
todo aquele que põe em ação sua fé”. A necessidade mais urgente e
imperativa da alma não é o renome terrestre, e sim a paz, a alegria, a
glória para hoje, para amanhã e para o futuro sem fim. Comparado com
“o poder de Deus”, quão fraco é o poder de Roma ou de qualquer outro
exército terrestre! Os exércitos terrestres destroem. O evangelho salva. É
o poder de Deus “para salvação”. E o que é a salvação? O que quer dizer
salvar? Nos escritos de Paulo significa:

NO NEGATIVO NO POSITIVO

Resgatar aos homens da Levar os homens a um estado de:


consequência do pecado:

culpa (Ef 1:7; Cl 1:14) justiça (Rm 3:21–26; 5:1)


contaminação (Rm 6:6, 17; 7:21–25a) santidade (Rm 6:1–4; 12:1, 2)
escravidão (Rm 7:24, 25; Gl 5:1) liberdade (Gl 5:1; 2Co 3:17)
castigo: bem-aventurança:
(1) alienação de Deus (1) comunhão com Deus
(Ef. 2:12) (Ef. 2:13)
(2) a ira de Deus (Ef 2:3) (2) amor de Deus “derramado”
no coração (Rm 5:5)
(3) morte eterna (Ef 2:5, 6) (3) vida eterna
(Ef 2:1, 5; Cl 3:1–4

Note-se que diante de cada mal aparece uma bênção


correspondente. Ser salvos significa, então, ficar emancipados do mal
maior, e ser postos em possessão do bem maior. As bênçãos prometidas
Romanos (William Hendriksen) 83
pertencem ao passado, ao presente e ao futuro sem fim. A justificação, a
santificação e a glorificação todas estão incluídas. O estado de salvação é
oposto ao estado de “perecer”, ou de estar “perdido”. Veja-se Lc 19:10;
Jo 3:16.
“… a todo aquele …”, ou seja, sem entrar em considerações de
raça, nacionalidade, idade, sexo, posição social, nível de educação ou
cultura, etc., cf. Is 45:22; Jo 4:42; 1Tm. 1:15.
Mas note-se o significativo fator condicionante “(a todo aquele) que
põe em ação sua fé”. 27 Veja-se Jo 3:16.
E o que quer dizer pela palavra “fé”? É a confiança, a segurança, o
recostar-se nos braços eternos, a convicção (Hb 11:1) de que por meio de
Cristo e Seu sacrifício expiatório meus pecados são perdoados, minha
dívida cancelada;
e que, por ter sido adotado agora como filho do Rei:
Meu Pai me está sempre protegendo,
Ele sempre me está cuidando
esteja eu acordado ou esteja dormindo,
Ele me segue cuidando.
Tirado do poema
“Al Romper el Día” de C. H. Morris
A fé é o tronco da árvore cujas raízes representam a graça, e cujo
fruto simboliza as boas obras. É o gancho que conecta o trem do homem
com a locomotiva de Deus. É a mão vazia do pecado tendida para Deus,
o Doador. É, do princípio ao fim, o dom de Deus. Cf. C.N.T. sobre
Efésios 2:8.

27
Quanto a significado, a tradução mais comum: “a todo aquele que crê”, é sem dúvida correta. No
entanto, a mesma não chega a reter a harmonia do original, na qual o particípio do versículo 16
(πιστεύοντι) e as duas formas do substantivo do versículo 17 (πίστεως, πίστιν) têm a mesma raiz.
Além disso, quando se retém esta harmonia, não é verdade que se capta mais rapidamente o
significado de toda a passagem (versículos 16, 17)?
A mesma dificuldade (desarmonia) se encontra no latim, e também como resultado nas traduções
ao francês, português, etc. Por outro lado, tudo flui brandamente nas traduções ao alemão, holandês,
frísio, sueco, danês, e sul-africano.
Romanos (William Hendriksen) 84
… ao judeu primeiro, e também ao grego.
Esta foi a ordem divina planejada por Deus na história. Tal como
Paulo o demonstra no capítulo 4 (e em certa medida já aqui no versículo
16), o evangelho da salvação é essencialmente o mesmo em ambas as
dispensações. No entanto, na economia divina igualmente foi revelada
em primeiro lugar aos judeus. Durante a antiga dispensação eles foram
uma nação altamente privilegiada. Cf. Sl. 147:19, 20; Am 3:2.
Naturalmente, tal “vantagem” não cessou imediatamente quando se
introduziu a nova dispensação (Rm 3:1, 2; 9:4, 5). Quando Jesus
comissionou pela primeira vez Seus doze discípulos, enviou-os somente
às “ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10:5, 6). E quando Paulo
executou seu mandato missionário, ele e seus companheiros, sempre que
lhes era possível, levavam o evangelho em primeiro lugar aos judeus.
Mas houve uma mudança. Não tem sentido negar isso, visto que
neste assunto a Escritura se expressa muito claramente. Até durante a
antiga dispensação Deus tinha deixado bem claro que a salvação não ia
ficar limitada a uma nação. Veja-se Gn 12:3; 22:18; Sl. 72:17; Is 60:1–3;
61:1–3 (à luz de Lc 4), Ml. 1:11. O próprio Jesus Cristo foi abrindo a
porta cada vez mais amplamente (Mt 8:10–12; 28:19, 20; Lc 14:23;
17:11–19; 20:9–16; 24:45–47; Jo 3:16; 4:35–42; 10:16). Do mesmo
modo, por direção divina, quando os judeus se negaram a aceitar o
evangelho, os apóstolos o proclamaram aos gentios (At 13:46; 18:5, 6;
19:8, 9). Por inspiração divina Paulo ensina que a parede intermediária
de separação entre judeu e gentio foi completamente derrubada (Ef 2:11–
22), e que já não existe nenhuma distinção (Rm 10:11, 12). Assim que
“também ao grego”, ou seja, a toda pessoa influenciada pela cultura
grega — em outras palavras, aos gentios — a porta foi aberta
completamente. O evangelho se transformou no poder de Deus para todo
verdadeiro crente.
Mas surge a seguinte pergunta: Como comprova Paulo que o
evangelho é realmente o poder de Deus para salvação de todo aquele que
põe em ação sua fé? A resposta é dada no versículo 17.
Romanos (William Hendriksen) 85
17. Porque nele se revela a justiça de Deus de fé em fé, como está
escrito, “mas o justo viverá pela fé”.
Tomada por si só, sem referência ao contexto, a expressão que aqui
se traduz “justiça de Deus” poderia ser traduzida “a justiça que procede
de Deus”. A pergunta é: “O que significa isso?”
Como lutou Lutero com este problema! Como o preocupava … até
que um dia, de um modo repentino, por iluminação divina, ele percebeu
que o significado aqui não era a justiça retributiva de Deus mas a justiça
livremente imputada ao pecador pela graça soberana de Deus com base
na expiação vicária de Cristo, e que se transformava em possessão
própria do pecador por meio da fé outorgada por Deus. Quando o grande
reformador descobriu que Rm 1:17 fala do misericordioso veredito
pronunciado por Deus sobre o crente, ele experimentou o dia mais feliz
de sua vida. No que se pode denominar seu “Comentário a Romanos”,
ele escreve:
“A soma e substância desta carta é isso: derrubar, desbaratar e
destruir toda sabedoria e justiça da carne … e afirmar e ampliar
[demonstrar o grande tamanho de] a realidade do pecado, não importa
quão inconscientes estejamos de sua existência”. Ele prossegue seu
argumento indicando que sempre houve gente, tanto entre os judeus
como entre os gentios, que creram na possibilidade da bondade interior.
Destes o apóstolo diz: “Professando ser sábios, fizeram-se néscios” (Rm
1:22). Lutero demonstra a seguir que em Romanos o apóstolo ensina
exatamente o contrário, ou seja, que a única maneira em que uma pessoa
chega a ser realmente boa é aquela provida pela justiça de Deus. Ele
afirma: “Porque Deus não quer nos salvar por nossa própria justiça mas
por uma alheia, uma que não se origina em nós, porém nos vem de fora
de nós, uma que não surge da terra mas desce do céu”. 28
A experiência de Lutero mudou seu conceito da Bíblia. A partir
deste momento a Escritura se transformou para ele num livro de luz e de
28
Martinho Lutero, Lectures on Romans, trad. ao inglês do original alemão Römerbriefvorlesung
(Vol. 56 da edição Weimar das obras de Lutero), Filadélfia, 1961, pp. 3, 4.
Romanos (William Hendriksen) 86
alegria. Foi como se tivesse sido libertado de uma escura masmorra e
levado à bela luz do dia onde podia respirar o ar fresco, fortificante e
hilariante. A paz de Deus que ultrapassa todo entendimento enchia agora
seu coração e sua mente.
E não foi a experiência de Lutero uma réplica da de Paulo? Leia Fp
3:1–14. O que faz com que Romanos seja tão fascinante é que não é
somente o produto da inspiração divina mas também o conteúdo da
experiência da conversão do apóstolo.
Tanto Lutero como Calvino definiram o termo “a justiça de Deus”
como a justiça que tem valor diante de Deus. E não há dúvida que com
efeito este é o tipo de justiça indicado. Resta a pergunta: “Não deveria
acrescentar-se algo?” Ambos os reformadores, em suas argumentações,
sem dúvida acrescentaram algo. Acrescentaram que a justiça à qual
Paulo se refere é dada ou imputada livremente por Deus ao pecador que,
pelo poder do Espírito Santo, a aceita — quer dizer, apropria-se de
Cristo e todos os Seus benefícios — pela fé.
Faz-se evidente que esta posição é correta quando permite a Paulo
ser seu próprio intérprete. Em Fp 3:8, 9, ao tratar o mesmo tema, ele
escreve: “… a fim de poder ganhar em Cristo, e ser achado nele, não
tendo minha própria justiça derivada da lei, sem a justiça (que é) pela fé
em Cristo”. Fica claro então que também aqui em Rm 1:17 o termo em
questão deve traduzir-se: “a justiça (que vem) de Deus”, o que significa
que Deus, seu Autor, adjudica este estado justo ao pecador que O aceita
por fé. Do princípio ao fim, esta justiça é sola fide, quer dizer, somente
pela fé. Isto também explica a expressão “de fé em fé”. 29 Ver Rm 3:28. E

29
A expressão “de fé em fé” é muito breve e singelo para dar lugar a interpretações complicadas. Por
isso, por exemplo, não posso aceitar a opinião de Barth de que significa: “da fidelidade de Deus à fé
do homem”: ou a de Murray, que sugere que por meio desta breve frase o apóstolo estaria dizendo que
“só pela fé somos beneficiários desta justiça e que cada crente é por sua vez beneficiário”. A mais
simples interpretação de uma expressão tão breve é quase sempre a melhor. Segundo esta regra o
significado mais provável é o seguinte: “pela fé do princípio ao fim”. Estão de acordo com esta
interpretação Cranfield, Erdman, Harrison, Hodge y Ridderbos.
Romanos (William Hendriksen) 87
mesmo essa fé é o dom de Deus. Tudo é um assunto da graça soberana e
não das obras. Veja-se C.N.T. sobre Ef 2:8–10.
Isto não se deve interpretar como se dissesse que o pôr em ação a fé
é uma operação de Deus. Nós mesmos devemos aceitar ao gorjeio Deus
revelado em Cristo Jesus. Somos nós os que devemos pôr em ação a fé.
Deus não crê por nós. Esta posição está em harmonia com a Escritura.
Veja-se Jo 3:16; Fp 2:12, 12; 2Ts 2:13. 30 Além disso, devemos levar em
conta que não somente o dom da fé vem de Deus, mas também o poder
de pô-la em prática. Só a Ele seja a glória!
“Como está escrito, ‘mas o justo viverá pela fé’ ”.
Ao apresentar esta consoladora doutrina Paulo não está
introduzindo algo novo. As palavras “como está escrito” demonstram
que ele baseia sua apresentação no Antigo Testamento. E é certamente
nesse livro, que tanto para o apóstolo como para seus destinatários era a
Bíblia, em que a justiça e, como resultado, a salvação é apresentada
repetidamente como um tesouro que pertence ao Senhor. Por meio da
graça soberana ele a outorga como um dom a todos aqueles que confiam
nEle. Algumas preciosas passagens seletas deixarão isso claro. Um dos
mais conhecidos e notáveis é certamente Isaías 12:2 [RA]:
“Eis que Deus é a minha salvação; confiarei e não temerei, porque o
SENHOR Deus é a minha força e o meu cântico; ele se tornou a minha
salvação”.
Note-se também as seguintes passagens:
“A tua salvação espero, ó SENHOR!” (Gn 49:18, RA).
“Do SENHOR é a salvação” (Sl. 3:8, RA).
“Tu és o Deus da minha salvação” (Sl. 25:5, RA).
“O SENHOR é a minha luz e a minha salvação; de quem terei
medo?” (Sl. 27:1, RA). O temor é o oposto à confiança.

30
Não parece, então, que Lenski, quem com seus comentários enriqueceu a igreja com muito
excelente material, se expressa algo indiscretamente em sua Interpretation of St. Paul’s Epistle to the
Romans, Columbus, p. 83? Leia-se também suas observações com relação ao que ele chama “falsa
exegese calvinista” (p. 9).
Romanos (William Hendriksen) 88
“Cantai ao SENHOR um cântico novo, porque ele fez maravilhas; a
sua destra e o seu braço santo lhe alcançaram a vitória. O SENHOR fez
notória a sua salvação; manifestou a sua justiça perante os olhos das
nações” (Sl. 98:1, 2, RA).
Note-se a estreita relação que há entre salvação e justiça, tanto aqui
como em outras partes.
“O Senhor é a minha força e o meu cântico; ele é a minha salvação”
(Sl. 118:14, NVI).
“Anseio pela tua salvação, Senhor” (Sl. 119:174, NVI).
“Faço chegar a minha justiça … a minha salvação não tardará” (Is
46:13, RA).
“Perto está a minha justiça, já saiu a minha salvação, e os meus
braços julgarão os povos … a minha salvação, porém, será para sempre,
e a minha justiça não será abolida” (Is 51:5–8, TB).
“Sua salvação [ou vindicação] de mim virá, disse Jeová (Is 54:17).
“Porque me cobriu de vestes de salvação e me envolveu com o
manto de justiça” (Is 61:10, RA).
“Por amor de Sião, me não calarei e, por amor de Jerusalém, não
me aquietarei, até que saia a sua justiça como um resplendor, e a sua
salvação, como uma tocha acesa” (Is 62:1, RA).
Aqui em Romanos 1:17: “Mas o justo viverá pela fé”, o apóstolo
cita quase literalmente a Habacuque 2:4b. Há quem insiste em que (aqui
em Romanos 1:17) a tradução deve ser: “Mas o justo pela fé viverá”. Em
outras palavras, eles vinculam “pela fé” com “o justo”, em vez de
vinculá-lo com “viverá”. Não me convenceram seus argumentos. Os que
tiverem interesse neste tema devem ler a nota correspondente. 31

31
As razões que me convenceram que _κ πίστεως deve ser vinculado com ζήσεται, e não com δίκαιος,
são as seguintes:
a. Na passagem de Habacuque (no original), a frase “por sua fé” ou “por sua fidelidade” se vincula
mais logicamente com “viverá”. Veja-se a tradução de I. Lesser (em Twenty-Four Books of the Holy
Scriptures, Nova York, s.f., Vol. II, p. 959), “Mas o justo sempre vive em seu (confiante) fé”.
b. Se Paulo tivesse querido vincular “pela fé” com “o justo”, o provavelmente teria escrito _ δ_ _κ
πίστεως δίκαιος em vez de _ δ_ δίκαιος _κ πίστεως.
Romanos (William Hendriksen) 89
O profeta Habacuque apareceu no cenário da história durante o
reinado do ímpio Jeoaquim (608–597 a.C). O que o inquietava era que
parecia que os maus praticavam sua iniquidade impunemente. O Senhor
aparentemente tolerava males tais como a exploração dos necessitados, a
contenda, a disputa, a violência, etc. Como resultado, o profeta começa a
formular perguntas. Dirige-as ao Senhor. Queixa-se, objeta, e espera uma
resposta. A primeira pergunta de Habacuque pode resumir-se assim:
«Por que permite o Senhor que os ímpios de Judá oprimam os justos?» O
Senhor responde: «Os que fazem o mal serão castigados. Os caldeus
(babilônios) já vêm». Mas esta resposta não satisfaz completamente o
profeta. Por isso faz outra pergunta, que pode resumir-se assim: «Por que
permite o Senhor que os caldeus castiguem os judeus, que são ao menos
mais justos que estes estrangeiros?» O profeta coloca-se sobre seu vigia
e espera um resposta. A resposta chega: «Os caldeus também serão
castigados. De fato, todos os pecadores serão castigados … mas o justo
viverá por sua fé”. É seu dever e privilégio confiar, e fazê-lo mesmo
quando não possa “decifrar” a justiça dos atos do Senhor. Nesta espera
humilde e calma confiança ele realmente viverá, prosperará.
Mas o Senhor faz mais que simplesmente dizer ao profeta que deve
pôr em ação sua fé. Ele também fortalece tal fé por meio de uma visão
maravilhosa e progressiva. Habacuque vê o símbolo da presença do

c. A frase _κ πίστεως que aparece aqui no v. 17b corresponde à mesma frase na primeira parte do
versículo. Também ali pertence ao predicado, não ao sujeito.
d. Nas epístolas de Paulo não há paralelo a “justo pela fé”. Rm 5:1 não é realmente um paralelo.
e. Se aqui, em Rm 1:17, conectamos _κ πίστεως com δίκαιος, não deveríamos também fazê-lo em
Gl 3:11, onde o mesmo escritor cita a mesma passagem do Antigo Testamento e com o mesmo
propósito? Agora, em Gálatas o contexto deixa bem claro que o significado é “viverá pela fé” e não
“justificado pela fé”. Isto é demonstrado pelo contexto precedente e também pelo que segue, visto que
“viver pela fé” é contrastado aqui com “justificado pela lei”, e contrastado também vivendo para
cumpri-la”. Não é correto adotar uma construção gramatical para Gl 3:11 e outra para Rm 1:17.
f. Se traduzirmos: ‘Aquele que é justificado pela fé (ou: o justo pela fé) viverá”, colocamos a
ênfase onde não corresponde. Todo o contexto indica que a ênfase de Paulo recai em “viver pela fé”, e
não em “viver pelas obras da lei”.
Tendo lido e estudado cuidadosamente os argumentos do Cranfield a favor da posição oposta, não
posso concordar com ele. Mas, para ser justo, espero que todos lerão Cranfield, op cit., pp. 101, 102.
Romanos (William Hendriksen) 90
Senhor descer do monte Parã. Tendo descido, Ele se afirma e sacode a
terra. As tendas do Cusã e Midiã tremem e são rasgadas. Mas há uma
pergunta que preocupa o profeta: «Sobre quem cairá a ira do Senhor?
Somente sobre o reino da natureza? Talvez sobre Judá?» E enfim chega
a resposta: o Senhor destrói os caldeus e libra o Seu povo.
A aparição do Senhor foi tão espantosa e aterradora, tão alarmante o
som da tempestade, de montanhas que se desabam, que cada parte do
corpo do profeta treme. No entanto, tendo sido testemunha de que o
Senhor tinha descido para defender o Seu próprio povo, Habacuque já
não questiona os caminhos da providência de Deus. De agora em diante
ele “espera confiantemente”. O profeta expressa seu sentir num belo
salmo de confiança: “Embora a figueira não floresça … Contudo, eu me
alegrarei no Senhor, e me alegrarei no Deus da minha salvação”.
Se levarmos tudo isso em conta, vemos que Paulo não poderia ter
escolhido uma profecia melhor para citar que a de Habacuque. A
passagem se ajusta exatamente à situação! Em todas as idades e em todas
as circunstâncias, e por esta razão também com relação à pergunta: «O
que devo fazer para ser aceito por Deus», o que continua sendo é
verdade que “o justo viverá pela fé”. “Em quietude e confiança será sua
fortaleza” (Is 30:15).
Mas a doutrina de Paulo não só está de acordo com o ensino do
Antigo Testamento — um tema do qual o apóstolo ocupar-se-á com
muito maior detalhe no capítulo 4 — mas também está em harmonia
com os ensinamentos de Cristo durante o Seu ministério terrestre. Cf.
C.N.T. sobre Lucas 18:9–14.
Em resumo, o que Paulo ensina aqui em Rm 1:16, 17 e em Gl 3:11
pode formular-se assim:
Embora seja sempre fiel,
embora chore sem cessar,
do pecado não poderei
justificação obter.
Só em ti tendo fé
Romanos (William Hendriksen) 91
dívida tal poderei pagar.
Estrofes de “Rocha da Eternidade”
de A.M. Toplady. Trad. T. M. Westrup.

2. Os gentios necessitam esta justificação. Rm 1:18–32

18. Porque a ira de Deus se revela dos céus contra toda impiedade e
injustiça dos homens que constantemente procuram suprimir a verdade
por meio de (sua) injustiça …
Que classe de pessoas está Paulo descrevendo em Rm 1:18–32? Há
aqueles que sustentam que ao não mencionar-se a palavra gentios nesta
seção, e visto que alguns dos pecados aqui catalogados eram cometidos
tanto pelos judeus como pelos gentios, a conclusão lógica é que o
apóstolo está se referindo aqui a pessoas não regeneradas em geral, e não
somente aos gentios.
Algo há de fato nisto; veja-se sobre Rm 2:1. Por outro lado, não é
certo também que vários dos aspectos aqui mencionados são muito mais
característicos dos gentios que dos judeus? Note-se, por exemplo, a
adoração de imagens (v. 23), e veja-se também os vv. 26, 27. Além
disso, em grande parte as pessoas aqui descritas derivam seu
conhecimento de Deus não da revelação especial mas da revelação geral
(vv. 19, 20). Além disso, Rm 2:1 claramente marca uma transição para o
tratamento de outro tipo de gente, ou seja, os judeus (v. 17). Também
isto pareceria indicar que até este ponto, Paulo esteve falando
principalmente dos gentios. Finalmente, não comprova Rm 3:19 que o
apóstolo tinha estado falando a respeito de dois grupos, ou seja, gentios e
judeus (aqui mencionados em ordem inversa)? Por tudo isso chegamos à
conclusão que em Rm 1:18–32 a referência é principalmente a gentios,
embora seja verdade que nem todos os gentios eram culpados (ou
igualmente culpados) dos vícios enumerados.
A palavra “porque” não deve ficar sem traduzir. Indica a relação
entre os vv. 16, 17, por um lado, e o v. 18, por outro. É provável que o
Romanos (William Hendriksen) 92
raciocínio siga a seguinte sequência: não há recurso para outra maneira
de salvar-se que a de aceitar o evangelho pela fé, porque ao pesar a ira
de Deus por natureza sobre o homem, este último é completamente
incapaz de salvar-se a si mesmo, quer seja pelo cumprimento das obras
da lei ou algum outro meio.
O que se entende pela ira de Deus? Veja-se também Jo 3:36; Rm
9:22; Ef 5:6; Cl 3:6; 1Ts 1:10. A ira de Deus é Sua constante indignação.
Difere da fúria, que geralmente aponta na direção da irritação violenta,
de repentinos arrebatamentos de cólera. 32 Quando no Novo Testamento
menciona-se a ira de Deus, está-se indicando a manifestação final da
vingança divina ou, como aqui, que a mesma está no fundo ao menos.
“… se revela …” O que se quer dizer aqui é que esta ira se revela
em ação: por exemplo, por meio do dilúvio (Gn 6–8), a destruição de
Sodoma e Gomorra (Gn 19), as pragas do Egito (Êx 6–12), e os cálices
de ira (Ap 16). Em cada passo a Escritura mostra que estas
manifestações de ira têm sua origem no céu. É Deus, aquele que habita
nos céus, quem descarga Sua ira sobre os perpetradores de “impiedade e
injustiça”.
Estes dois conceitos — impiedade e injustiça — não devem ser
vistos como entidades completamente separadas, como se, por exemplo,
a primeira pertencesse à esfera religiosa e a segunda somente ao âmbito
moral; ou como se a primeira tivesse que ver meramente com a primeira
tábua da lei e a segunda com o resto da lei. Ambas representam o
pecado, à rebelião contra Deus. A primeira vê o pecado como a falta de
reverência por Deus; a segunda, como a falta de reverência por suas
ordenanças, Sua santa lei. Que a relação entre estas duas é muito estreita
vê-se no fato que no final do versículo 18 um só termo, injustiça, abrange
ambos os conceitos.

32
Para maior informação veja-se R. C. Trench, Synonyms of the New Testament, Grand Rapids, 1948,
reimpressão, parágr. 37. Veja-se também mais adiante sobre Rm 2:8.
Romanos (William Hendriksen) 93
33
… dos homens que constantemente procuram suprimir a verdade
por meio de (sua) injustiça …”
A Escritura ensina também em outras partes que os ímpios tentam
suprimir a verdade. O néscio trata constantemente de convencer-se de
que “não há Deus”. Aos Salmos 14:1 e 53:1 acrescentem-se o Sl. 73:11 e
Rm 2:15. Mesmo quando se vê confrontado com a voz de Deus que se
dirige a ele por meio da revelação especial, o néscio ainda se nega a
capitular. Veja-se Mc 6:20, 26, 27. Na verdade, como sucedeu com o
caso de Herodes Antipas, assim sucede geralmente: quanto mais adverte
a consciência, tanto mais o pecador se endurece.
Mas têm realmente os gentios suficiente conhecimento da verdade
para ser considerados culpados de tentar constantemente suprimi-la? A
resposta encontra-se no versículo seguinte:
19.… porque o que se pode conhecer de Deus lhes é manifesto,
porque o próprio Deus o manifestou.
Mesmo totalmente à parte da revelação especial por meio do
evangelho, que muitíssimos gentios nunca ouviram, Deus de qualquer
maneira Se fez conhecer e continua fazendo-o por meio de Sua revelação
geral na natureza, a história e a consciência: aqui, como o indica a
sequela, com uma ênfase particular na revelação de Deus na natureza,
quer dizer, na “criação”. Não é que os homens, agindo por iniciativa
própria, pudessem ter descoberto a Deus, porém — como o afirma a

33
A favor da força conativa deste particípio pres. at. (κατεχόντων) estão os seguintes fatos:
a. Um verbo que por si só sugere esforço, quando é usado num contexto que sugere ação em
progresso (p. ex., progressão no presente, ou no passado, como em Lc 4:42), aponta na direção de uma
ação tentada. Veja-se E. De Witt Burton, Syntax of the Moods and Tenses in New Testament Greek,
Chicago, 1923, p. 8.
b. Até alguns dos exegetas que em sua tradução adotaram o equivalente de “que suprimem”, etc.,
em sua interpretação falam dos esforços dos ímpios por suprimir a verdade.
c. A força conotativa do particípio é clara também, visto que não menos de três vezes (vv. 19, 20 e
21) o contexto imediato nos assegura que os ímpios não têm êxito em sua intenção de reprimir ou
apagar a verdade. Pecam apesar de saber a verdade. Veja-se também sobre vv. 28, 32.
Cranfield também está a favor da força conativa deste gerúndio. op. cit., p. 112.
Romanos (William Hendriksen) 94
34
passagem — Deus lhes tem feito conhecer o que pode ser conhecido
dEle no terreno da criação.
20. Porque desde a criação do mundo suas qualidades invisíveis —
seu poder eterno e natureza divina — se viram claramente, sendo
entendidas através de (suas) obras, de modo que estas pessoas já não têm
desculpa. 35
A palavra “porque” é novamente muito significativa. Não somente
dá sentido de continuidade, mas também serve de apoio, mostrando que
o que se disse no versículo 19 é realmente um fato. A oração introduzida
por este “porque” até pode trazer ecos do que se disse anteriormente, ou
seja, no v. 18; quer dizer, que pode ser vista como uma indicação de
porquê a ira de Deus se revela contra os ímpios; seus atos iníquos são
indesculpáveis!
Nos vv. 16, 17 Paulo tinha estado falando sobre a revelação de
Deus no evangelho que traz a salvação. É claro que aqui, nos versículos
19 e 20 ele fez a transição da revelação especial a general. Ele fala agora
das coisas feitas”, isto é, da revelação de Deus “em suas obras”,
querendo dizer na criação ou em a natureza.

34
_ν α_το_ς pode ser utilizado em lugar do dativo comum: que é provavelmente o que aqui sucede;
daí surge “a eles”. Veja-se L.N.T. (A. e G.), p. 260.
35
Há vários elementos do texto grego que requerem comentário:
a. _όρατα … καθορ_ται. O oximóron é provavelmente intencional.
b. καθορ_ται, terc. pes. s. pres. pas. indic. de καθοράω (κατά, perf. mais _ράω, ver), ver
claramente.
c. νοού μενα nom. pl. n. part pres. pas. de νοέ ω, perceber, entender. A forma de particípio está
relacionada com o substantivo νο_ ς, que, dependendo do contexto, pode ter qualquer dos seguintes
significados: mente, intelecto, inteligência, pensamento, entendimento, atitude, disposição. Na
presente passagem νο_ ς deve ser considerado como intelecto mais (ou incluindo) o sentido de
responsabilidade. Indica-se todo o estado mental e moral do homem. É em tal sentido que νοούμενα
pode ser aqui entendido como “o percebido”, “o compreendido”. Por ser um modificador adverbial de
καθορ_ται o particípio νοούμενα demonstra que καθορ_ται indica algo mais que a mera visão física.
d. _ΐδιος (de _εί), perene, eterno.
e. ε_ς τ_ ε_ναι nem sempre introduz necessariamente uma cláusula de propósito. Uma resultado é
muito mais razoável neste caso. Veja-se Gram. N.T., p. 1003; L.N.T. (A. e G.), p. 228 (sob 4c).
Romanos (William Hendriksen) 95
Note-se a expressão “as qualidades invisíveis de Deus”. Que Deus é
invisível é algo que se ensina em todas as partes da Escritura. Observe-se
especialmente as seguintes passagens:
“Ninguém jamais viu a Deus” (Jo 1:18).
“(O Filho de seu amor, o qual é) a imagem do Deus invisível” (Cl
1:15).
“Rei dos séculos, imortal, invisível, único e sábio Deus” (1Tm.
1:17).
“… como vendo o Invisível” (Hb 11:27).
Uma explicação adicional destas qualidades ou atributos invisíveis
é dada nas palavras “seu poder eterno e natureza divina”.
Quanto a este eterno poder ou indefectível onipotência, isto é
evidente em todas as obras de Deus (Sl. 111:2: 118:17; 119:27, 139:14;
145:10); na libertação de Israel do Egito (Êx 20:1, 2) e no terno cuidado
que Deus tem por Seu povo (Dt 33:27). Vez após vez os salmistas e os
profetas se referem aos poderosos atos de Deus. Ninguém é capaz de
deter Sua mão (Dn 4:35). Ele faz o que Lhe agrada, porque nada é muito
difícil para Ele (Gn 18:14; Jr 32:37).
No entanto, no contexto presente não são — ao menos não em
primeiro lugar — os poderosos atos de Deus na história os que se
contemplam. A referência é, antes, às obras da criação: as obras de Deus
que durante muito tempo, na verdade desde a própria criação do
universo, foram visíveis aos homens e deixaram sua impressão indelével
em suas mentes.
Paulo pensa no Deus que criou os céus e a terra e que os estabelece
por meio de Seus decretos perpétuos (Gn 1; Sl. 104). Ele está pensando
nAquele que fez “as Plêiades e o Órion, e torna as trevas em manhã, e
faz escurecer o dia como a noite” (Am 5:8).
O termo “sua natureza divina” indica a soma de todos os gloriosos
atributos de Deus, neste caso especialmente que causam e deixam uma
impressão na mente de todos; a exibição do poder, a sabedoria e a
Romanos (William Hendriksen) 96
bondade de Deus no universo criado. Passagens tais como o Salmo 8, o
Salmo 19:1–6, e Isaías 40:21, 22, 26 arrojam luz adicional sobre o tema.
A tradução “suas qualidades invisíveis … se viram claramente”
reproduz corretamente o sentido do idioma original, porém não consegue
fazer justiça à sua beleza. O original (grego), ainda mais claramente que
a habitual tradução ao português, emprega um par de palavras que,
embora se pareçam uma à outra de forma, expressam uma aparente
contradição. Chame-se a isto paradoxo ou oximoro, se preferir-se. Uma
aproximação mais próxima ao original seria: “suas qualidades que não se
veem … se veem claramente”.
Mas como é possível ver o invisível? Não é acaso certo que os
olhos físicos são incapazes de ver as qualidades invisíveis de Deus? É
certo, mas enquanto estes olhos estão observando as glórias do universo
que Deus criou, a alma, com seu olho invisível, fica profundamente
impressionada. Vê claramente o poder de Deus desdobrado nas “coisas
que foram feitas”, quer dizer, nas obras de Deus.
A Confissão Belga, Artigo 2, ao comentar sobre Rm 1:20, fala da
criação, conservação e governo do universo; por que este é para nossos
olhos como um belo livro, no qual todas as criaturas grandes e pequenas,
são como caracteres que nos dão a contemplar as coisas invisíveis de
Deus, ou seja, seu eterno poder e deidade, como diz o apóstolo Paulo:
‘Todas as quais são suficientes para convencer os homens e para privá-
los de toda desculpa’ ”.
“… de modo que estas pessoas já não tem desculpa …” Embora
tenha estado constantemente rodeados das evidências não só da
existência de Deus mas também de seu poder infinito, bondade adorável
e sabedoria incomparável, recusaram reconhecê-lo como seu Deus e O
adorar.
Até sem o recurso a produtos da invenção humana tais como o
microscópio e o telescópio, eles podiam considerar a vastidão do
universo, a ordem fixa dos corpos celestiais em seus cursos, a ordem das
folhas ao redor de um caule, o ciclo da divinamente ordenada
Romanos (William Hendriksen) 97
transformação aquática (evaporação, formação de nuvens, destilação,
formação de lacunas), o mistério do crescimento que vai de semente a
planta — e não a qualquer planta, mas a uma dessa espécie particular da
qual se originou a semente — a emoção produzida pelo nascer do sol que
vai do pálido rubor rosado até a majestade do astro nascente, a
habilidade dos pássaros para construir seus “lares” sem nunca ter
recebido lições sobre como construir moradias, a maneira generosa em
que é provido o alimento para todas as criaturas, a adaptação dos seres
viventes ao seu meio ambiente (por exemplo, as flexíveis solas das patas
do camelo para andar na suave areia do deserto), etc., etc. E além desta
voz de Deus na criação havia também a voz do próprio Deus na
consciência (Rm 2:15). A evidência era esmagadora. E mesmo assim não
houve resposta de adoração e gratidão. Então sua conduta é certamente
indesculpável!
21. Porque embora conhecessem a Deus, não o glorificaram como
Deus nem lhe deram graças, mas sim que se tornaram vãos em suas
especulações, e seus néscios corações foram entenebrecidos.
O versículo 21 é um esclarecimento e ampliação do versículo 18
(cláusula final) e do versículo 20. Confirma a afirmação que por sua
injustiça esta gente ímpia constantemente tenta suprimir a verdade que
lhes tinha sido e lhes está sendo revelada continuamente, e que, como
resultado, deixa-os sem desculpa.
Porque, embora conhecessem Deus por Suas obras na criação, não
O glorificaram: não O reconheceram como Deus nem Lhe outorgaram a
honra e o louvor que Lhe eram devidos, Tampouco Lhe deram as graças
pelas constantes bênçãos que recebiam. Que eles eram receptores de
bênçãos em abundância é algo evidente (Mt 5:45; Lc 6:35; At 14:17).
Mas embora certamente haja bênçãos que são comuns, a gratidão por
elas não o é. Há um notável exemplo em Lc 17:11–19.
Em vez de louvar a Deus por todos os Seus benefícios, esta gente se
tornou vã em suas especulações. Em vez de seguir o conselho
incorporado a um hino:
Romanos (William Hendriksen) 98
Eleva, minha alma, tua mente aos céus,
e ali em luz e glória contempla o Senhor,
as mentes e corações desta gente permaneceram num plano
horizontal: mantiveram um diálogo com si mesmos. Suas mentes
argumentavam, ponderavam. Seus corações estavam carentes de ação de
graças e de adoração. Tais corações são inúteis; na verdade, mais que
inúteis. Onde a pessoa, em seu orgulho e ingratidão, começa a raciocinar
privadamente, sem cotejar constantemente os resultados de suas
especulações com a revelação de Deus na natureza, a história, a
consciência e, especialmente, quando for possível, com a Palavra de
Deus, seus néscios corações são entenebrecidos.
Tais trevas indicam estupidez mental, desesperança emocional e
depravação espiritual.
Preste-se atenção à expressão “seus néscios corações”. Nas
epístolas de Paulo, a palavra coração (no singular e plural) aparece mais
de cinquenta vezes. O coração, segundo Paulo e a Escritura em geral, é o
eixo da roda da existência do homem, a fonte principal de todos os seus
pensamentos, palavras e ações. É o poder motivador profundamente
oculto dentro do homem; tão profundamente, na verdade, que Deus, e
somente Ele, conhece seus segredos. Veja-se Pv 4:23; 23:7; Jr 17:9, 10;
Mt 12:34; 15:18, 19; Lc 6:45; Rm 8:27; 1Co 14:25; 1Ts 2:4.
Como é lógico, a exata significação da palavra depende em cada
caso do contexto. Em Paulo, às vezes quando se usa a palavra
coração/corações a ênfase recai nas emoções ou sentimentos (Rm 1:24;
9:2); outras vezes no intelecto (Rm 10:6–9); e outras vezes na vontade
(Rm 2:5).
E agora, quando segundo a presente passagem (Rm 1:21), os
corações dos homens são entenebrecidos, a consequência é que tudo o
que sentem, pensam, dizem ou fazem fica negativamente afetado. Suas
mentes não podem raciocinar corretamente; suas emoções não podem
funcionar bem para comunicar paz e alegria a suas vidas: e suas vontades
Romanos (William Hendriksen) 99
nem sequer procuram estar em harmonia com a santa lei de Deus. Note-
se então o trágico resultado:
22, 23. Embora alegavam ser sábios, fizeram-se néscios, e mudaram
a glória do Deus imortal por uma imagem em forma de homem mortal e
de aves, de quadrúpedes e répteis. 36
O que contraste ente o alegado e a realidade! Pode-se achar um
surpreendente exemplo lendo João 9:20, 41. Mas a presente passagem
refere-se especialmente à cegueira do mundo pagão e de todos aqueles
que imitam suas néscias práticas. Como já se indicou, tal cegueira é
indesculpável. Não é outra coisa que uma estultícia pecaminosa, que fica
ilustrada em passagens tais como os que se citam a seguir:
“Vamos, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre, cuja
cúspide chegue ao céu” (Gn 11:4).
“Os siros disseram: O SENHOR é deus dos montes e não dos vales”
(1Rs 20:28; veja-se também v. 23).
“Os que gastam o ouro da bolsa e pesam a prata nas balanças
assalariam o ourives para que faça um deus e diante deste se prostram e
se inclinam. Sobre os ombros o tomam, levam-no e o põem no seu lugar,
e aí ele fica; do seu lugar não se move; recorrem a ele, mas nenhuma
resposta ele dá e a ninguém livra da sua tribulação” (Is 46:6, 7).
Que assombrosa estultícia! Disse Arão, “Deram-me [o ouro], e o
lancei no fogo, e saiu este bezerro” (Êx 32:24). Cf. v. 4: “Israel, este é
teu deus, que te tirou do Egito!”
E pensar que a gente realmente deixa sua fé na glória de Deus — a
excelência de Seus atributos, contudo o que isso implica em bênçãos
para aqueles que nEle confiam — para mudá-la pela adoração de ídolos!
Mudam para Aquele que leva por aqueles que devem ser levados
(contraste de Is 63:9 com Is 46:1). Quão néscios demonstraram ser! 37

36
O: criaturas que reptam, criaturas que se arrastran.
37
A possibilidade que Paulo queria dizer: “Pretendendo ser sábios tornaram-se néscios”, deve ser
admitida.
Romanos (William Hendriksen) 100
Na enumeração de homem, aves, quadrúpedes e répteis ou animais
que se arrastam, o homem é mencionado em primeiro lugar. Através dos
tempos as pessoas honraram ao homem, ao homem que é mortal, e se
prostraram diante de sua imagem (veja-se Dn. 3; e C.N.T. Mateus, p.
899). O lema foi e continua sendo ainda em muitos lugares: “Deus não
nos deu um Deus como dom; só a humanidade deve nos salvar”.
Ao acrescentar “uma imagem em forma de … aves, quadrúpedes e
répteis (animais rasteiros, etc.)”, Paulo segue a ordem do relato da
criação (Gn 1:20–25). Também aqui é a imagem do animal a que se
menciona como objeto da adoração. Convém lembrar aqui ao bezerro de
ouro do Sinai (Êx 32), e os dois bezerros de ouro situados em Betel e Dã
(1Rs 12:28s). E com relação a aves, pense-se na veneração que
outorgavam os romanos à imagem da águia. Veja-se C.N.T., Mateus, pp.
119. E até “os animais que se arrastam” eram reproduzidos nas imagens
idólatras dos gentios, e foram em algum momento ou outro adorados por
seus imitadores judeus (Ez 8:10).
Tudo isso aconteceu apesar de que:
a. Tal adoração tinha sido estritamente proibida pelo Senhor (Êx
20:4, 5; Dt 4:15–19; 5:8, 9). Formularam-se advertências vez após vez
contra toda adoração de qualquer criatura, quer fosse diretamente ou por
meio de sua imagem, estivesse nos céus (adoração do sol, lua, estrelas)
ou na terra.
b. Ao inclinar-se diante de algum objeto que não fosse o verdadeiro
e único Deus, aqueles que eram tão ímpios e néscios para fazê-lo
perdiam muito. Isso fica destacado pelas mesmas palavras da presente
passagem: “fizeram-se néscios, e mudaram a glória do Deus imortal por
uma imagem”, etc. Isto nos traz à memória o seguinte:
Sl. 106:20: “Assim mudaram sua glória — Deus era a glória de
Israel — pela imagem de um boi que come erva”.
Jr 2:11: “Houve alguma nação que trocasse os seus deuses, posto
que não eram deuses? Todavia, o meu povo trocou a sua Glória por
aquilo que é de nenhum proveito”.
Romanos (William Hendriksen) 101
Até nos livros apócrifos semelhante pecado e estultícia é objeto da
mais mordaz zombaria:
“O perito lenhador cortará uma árvore que seja fácil de dirigir.
Habilmente lhe tira toda sua casca. E então com habilidade faz dele um
artigo útil que serve às necessidades da vida … Mas toma uma parte
descartada, um que não serve absolutamente, um tronco torcido e cheio
de nós. Esculpe-o com cuidado … e lhe dá a semelhança de um homem.
Ou faz com que se pareça com algum animal sem valor, dando-lhe uma
mão de pintura vermelha, cobrindo com a pintura qualquer falha …
Constrói então um nicho adequado, coloca-o na parede, e o sujeita com
ferro. Põe cuidado para que não caia, por que sabe que não pode ajudar-
se a si mesmo, visto que é só uma imagem e necessita ajuda. Então ora (a
ela) com relação a posses, sua família e seus filhos … Por saúde apela
para uma coisa que é fraca. Por vida ora a uma coisa que está morta. Por
ajuda roga a um objeto que é totalmente inexperiente.… Pede forças a
uma coisa cujas mãos não têm força” (Sabedoria de Salomão 13:11–19,
abreviado). Cf. Is 40:19s.
Quão verdade é que eles mudaram “a glória do Deus imortal” por
uma mera imagem!
Aqui, em Rm 1:23, a palavra glória não tem exatamente o mesmo
significado que tem em Sl. 106:20; Jr 2:11, embora ambas as conotações
não estejam muito distantes. Nestas duas passagens do Antigo
Testamento, a designação “glória” indica o próprio Deus. Na passagem
de Paulo refere-se com perfeição e esplendor absolutos de Deus, a soma
total de todos os Seus maravilhosos atributos. Há mais informação sobre
este interessante termo, glória, na nota. 38

38
Paulo usa a palavra δόξα, glória, mais de setenta e cinco vezes em suas epístolas. Por ser uma
palavra com muitos significados diferentes, embora relacionados, será útil fazer um estudo mais
detalhado. O substantivo está relacionado com o verbo δοκέω; daí que tenha o significado principal de
opinião (4 Mc. 5:18). Dali não há mais que um curto passo ao significado de boa opinião a respeito de
alguém; disto surgem louvor, honra, homenagem.
O hebraico kābhōdh, que é o termo mais comum que usa o Antigo Testamento para glória, tem
como significado primário peso, pesadez, carga (Is 22:24); daí surgem substância, riqueza, dignidade.
Romanos (William Hendriksen) 102
A resposta de Deus ao ímpio rumo eleito pelos pecadores (vv. 22,
23) é indicada no próximo versículo.
24. Por isso Deus, deixando-os seguir os apetites pecaminosos de seus
próprios corações, entregou-os à imoralidade sexual, de modo que seus
corpos eram desonrados entre eles mesmos …
Note-se a estreita relação entre idolatria (v. 23) e imoralidade (v.
24). De modo similar lemos no livro apócrifo da Sabedoria de Salomão o
seguinte: “Porque a ideia de fazer ídolos foi o começo da fornicação, e
sua invenção foi a corrupção da vida” (14:12).
Com relação a isso, convém ter em mente que Paulo escreve esta
epístola de Corinto, uma cidade de notória má reputação por sua
imoralidade e excesso sexual. A expressão “viver como um coríntio”
significava “viver uma vida de degradação moral”. O templo de Corinto
contava com mais de mil sacerdotisas promotoras da luxúria.

Usa-se para descrever a riqueza de Jacó, seus rebanhos e gado (Gn 31:1). Às vezes se acrescenta ao
elemento de substância ou de brilho, irradiação, esplendor. Daí que o termo seja utilizado para indicar
a brilhante manifestação física da presença de Jeová (Êx. 16:7; Is 6:1–5).
Ao estudar o significado de δόξα nas epístolas de Paulo, devem-se ter em mente tanto a derivação
do grego e seu uso como o fundo hebreu. Como resultado, os diferentes sentidos em que Paulo utiliza
esta palavra podem ser resumidos como segue:
a. louvor, honra, que se outorgam a criaturas ou a quem lhes corresponde; aprovação, reputação.
O antônimo aqui é desonra (2Co 6:8), ou vergonha (Fp 3:19). O sinônimo de δόξα, usado como tal, é
τιμή (Rm 2:7, 10).
b. adoração e homenagem rendida a Deus. Assim se usa a palavra em Fp 1:11, como se mostra
pelo uso de seu sinônimo, louvor. Vejam-se também Rm 3:7; 4:20; 11:36; 1Co. 10:31; etc.
aquilo c. que confere honra ou mérito a alguém, ou a pessoa cujas virtudes redundam para a
glória de outro (1Co 11:7, 16; 2Co 8:23; 1Ts 2:20).
d. esplendor externo, brilho, brilhantismo ou irradiação (dos corpos celestiais, 1Co 15:40, 41).
e. a brilhante nuvem por meio da qual Deus Se manifestava, no hebraico, shekinah (Rm 9:4).
f. a manifesta excelência, perfeição absoluta, majestade real, esplendor ou sublimidade de Deus
(aqui em Rm 1:23, cf. vv. 19, 20; 2Co 4:6), ou de Cristo (2Co 3:18; 4:4), em particular também em
Sua segunda vinda (Tt 2:13; 2Ts 1:9).
g. o poder majestoso de Deus, Sua glória (Rm 6:4).
h. a luz que rodeia os que estão, ou acabam de estar, em contato com Deus (2Co 3:7).
i. o estado e/ou lugar de bem-aventurança em que entrarão os crentes (Rm 8:18); e ao qual Cristo
já entrou (1Tm 3:16).
j. em geral, a preeminente excelência ou ilustre condição de algo ou alguém, excelência manifesta,
quer seja no presente ou no futuro.
Romanos (William Hendriksen) 103
O fato de que nos é dito não menos de três vezes (vv. 24, 26, 28)
que “Deus os entregou” é significativo. Na interpretação desta
assombrosa afirmação devem-se evitar os extremos. Uma posição
extrema seria dizer que logo que estes pecados — idolatria e imoralidade
— começaram a aparecer, Deus disse imediatamente: “Que pereçam!”
Isso não é, no entanto, o que a Escritura ensina com relação à maneira
como Deus trata os pecadores. Leia-se especialmente Gn 4:6, 7, e note-
se com que ternura Deus tratou Caim!
A mulher “Jezabel” parece ter sido a própria encarnação dos
pecados mencionados no presente contexto (cf. Ap 2:20 com Rm 1:23,
24), ou seja, a idolatria e a imoralidade. Contudo, Deus lhe deu “tempo
para arrepender-se”. E até nos dias de Noé, “em que era muita a maldade
dos homens na terra, e que todo desígnio dos pensamentos do coração
deles era de contínuo somente o mal” (Gn 6:5), “esperava a paciência de
Deus” (1Pe 3:20). Outros exemplos da paciência mostrada para com os
pecadores, entregando-os “a Satanás”, para que esta ação disciplinadora
os levasse a arrependimento, encontram-se em 1Co 5:5 e 1Tm. 1:20. E o
fato de que também no contexto de Romanos 1 Deus Se revelou aos
ímpios para que se voltassem a Ele, faz-se evidente não só pelo contexto
imediato (Rm 1:19–21) mas também por Rm 2:15.
Não admira, então, que se tenha sugerido que também aqui em Rm
1:24, 26, 18, o abandono divino é do mesmo caráter misericordioso, ou
seja, um castigar com o objetivo de poder curar (Is 19:22). 39
Não há dúvida que é correto aqui em Rm 1:18–25 o
reconhecimento desta paciência divina. Mas também se deve fazer
justiça ao outro lado do assunto. A misericórdia desprezada produz ira. A
paciência divina sem uma resposta favorável da parte do homem resulta
num derramamento da indignação divina. A honestidade na exegese nos
compele a admitir que o v. 24 é parte de um parágrafo introduzido por
uma referência à ira de Deus” (v. 18). O que o presente versículo (24)

39
Assim, p. ex., Cranfield o vê, op. cit., p. 121.
Romanos (William Hendriksen) 104
coloca diante de nós, portanto, é o fato de que no seu devido tempo —
conhecido somente por Deus — essa ira permite que todos os pecadores
impenitentes sejam arrastados por seus próprios pecados ao abismo de
suas próprias paixões vis. Por uma ação positiva da vontade de Deus,
eles permanecem finalmente abandonados.
Ao falar da impureza ou “imundície” (2Co 12:21; Gl 5:19; Ef 5:3;
1Ts 4:7) na qual se submergiram estes pecadores “de modo que seus
corpos eram desonrados entre si mesmos” (para uma explicação disso,
veja-se os vv. 26, 27), Cl 3:5, 6 afirma: “Mortificai, pois, os vossos
membros que estão sobre a terra: a fornicação, a imundícia, a paixão, a
má concupiscência e a avareza, que é idolatria, pelas quais coisas vem a
ira de Deus!” [TB].
Embora o derramamento desta ira em toda sua plenitude seja um
assunto do futuro (“escatológico”), o impenitente experimenta uma
antecipação disso ainda aqui e agora. Deus finalmente os abandona,
permitindo que pereçam em sua própria maldade.
25.… visto que eles certamente tinham mudado a Deus, (quem é) a
verdade, por uma mentira, e adoraram e serviram à criatura em lugar 40
do criador, quem é bendito para sempre. Amém.
O v. 25, que provavelmente deve ser considerado como
modificador do v. 24, resume o pensamento do v. 23. Do mesmo modo,
o v. 26 é uma elaboração do v. 24.
Embora nos vv. 21–23 se deu uma razão para o abandono divino
mencionado no v. 24, isto de maneira nenhuma descarta a possibilidade
de que esta razão seja repetida em essência aqui no v. 25, especialmente
se levar-se em conta que este versículo não é uma mera repetição mas

40
παρά, ao lado de; quer dizer, comparado com; aqui: antes (que). A ideia é que adoraram e serviram
à criatura e não ao Criador. Há um uso similar de παρά em Lc 18:14.
Romanos (William Hendriksen) 105
uma ampliação na qual se acrescenta um novo pensamento (veja-se a
cláusula final do v. 25). 41
A tradução que aqui se propõe 42 destaca o paralelismo quiástico do
original:
Que Deus, o Criador, seja chamado “a verdade” não é estranho.
Veja-se Jo 14:16 (cf. Sl. 31:5; Is 65:16). Tampouco é de estranhar que
um ídolo, ou qualquer criatura (sol, lua, estrelas, etc.) considerada como
objeto de adoração, seja chamado “uma mentira”. Is 44:20 descreve um
escultor que construiu para si um “deus”. Ele estira a mão e toma, porém
não se pergunta: “Não é uma mentira o que tenho em minha mão
direita?” Na LXX, o equivalente da palavra hebraica “mentira” é ψε_δος.
O ídolo é uma “mentira” porque (na imaginação do adorador) promete
muito; no entanto, nada contribui!
O que Paulo está dizendo, então, é isto; eles (os gentios, etc.)
adoraram (quer dizer, reverenciaram, honraram) e serviram renderam
serviço cúltico) à criatura antes que ao Criador e, portanto, mereceram o
castigo descrito no v. 24.
Diante da menção de Deus, o Criador, o apóstolo acrescenta uma
doxologia, ou mais precisamente, uma bênção: “que é bendito para
sempre. Amém.” Os expositores nos lembram que este era um costume
judaico ao mencionar o nome de Deus. No entanto, qualquer que tenha
feito um estudo da vida de Paulo, segundo esta nos revela em suas
epístolas e no livro de Atos, vê-se obrigado a reconhecer que para este
apóstolo uma bênção, ou em geral uma doxologia, não era algo que ele
simplesmente proferisse por hábito. Antes, quando Paulo reflete sobre
Deus, a quem deve tanto, ele retrocede em repugnância diante do

41
Na minha opinião, isto é melhor que começar um novo parágrafo com o v. 25. A doxologia ao
fechamento de tal versículo vem como apta conclusão do pequeno parágrafo — mas veja-se também
Cranfield, que favorece a opinião oposta e que apresenta suas razões na p. 123 de seu comentário.
42
Note-se “Deus (quem é) a verdade”. (se poderia dizer também “o verdadeiro Deus”. Veja-se
N.E.B.). Isto é melhor que “a verdade de (ou respeito a) Deus”, visto que é evidente neste paralelismo
quiástico que τ_ν _λήθειαν το_ θεο_ é um sinônimo de τ_ν κτίσαντα; como o é τ_ ψεύδει de τ_ κτίσει.
O genitivo το_ θεο_ é de aposto. Não é possessivo.
Romanos (William Hendriksen) 106
pensamento de que haja quem, em suas práticas religiosas, substituam
uma mera criatura por esse maravilhoso Deus que tem feito tanto por ele,
o antigo inflamado perseguidor. Cada bênção ou doxologia paulina da
qual há constância é sincera e vem da alma. À parte desta bênção que
aparece aqui em Rm 1:25, considerem-se também as que se encontram
em Rm 9:5; 2Co 1:3; 11:31; Ef 1:3s. E veja-se também Lc 1:68, 1Pe 1:3.
Podem encontrar-se outras exclamações de louvor ou doxologia em Rm
11:36; 16:25–27; 2Co 9:15; Ef 3:20, 21.
O apóstolo conclui este breve parágrafo acrescentando um amém
sincero e adorador à bênção que acaba de proferir. É uma palavra de
solene afirmação e de aprovação entusiasta. Para mais informação com
relação a esta palavra amém veja-se C.N.T. sobre Mt 5:18 e Jo 1:51.
26, 27. Por isso, Deus os entregou a paixões que trazem desonra.
Porque assim como suas mulheres mudaram sua relação natural por
aquela (que é) contrária à natureza, do mesmo modo seus varões, tendo
abandonado suas relações naturais com a mulher, consumiram-se em
paixão ardente um pelo outro, varões com varões, perpetrando falta de
vergonha, e recebendo em suas próprias pessoas o devido pagamento de
seu desvio. 43

43
Note-se a construção τε … τε: así como … do mesmo modo; não só … mas também. A tradução
“até suas mulheres” (A.V. e alguns expositores) não pode ser recomendada.
θήλειαι, nom. pl. f. de θ_λυς, fêmea. Vejam-se também Mt 19:4; Mc 10:6; Gl 3:28. Em certos
contextos, no entanto, este termo pode traduzir-se “mulher”.
χρ_σις (aqui ac. s.-v), uso utilidade, porém no contexto presente significa relações sexuais. O
grego secular também emprega o termo neste sentido. Por exemplo, Jonofonte, em seu ΣΥΜΠΟΣΙΟΝ
(Banquete) 8:28, escreve: “Não só os seres humanos mas também os deuses e demiurgos outorgam
um valor mais alto à amizade do espírito que ao τ_ν το_ σώματος χρ_σιν, “uso do corpo”, quer dizer,
união sexual. Podem-se encontrar exemplos similares do uso de χρ_σις em sentido de “união sexual”
nos escritos de Platão, Plutarco, Isócrates, etc.
_ξεκαύθησαν, terc. pes. pl. do aor. ind. pas. de _κκαίομαι, ser inflamado; só aqui no Novo
Testamento. Mas compare-se com 1Co 7:9, embora “o consumir-se” mencionado ali é de um carác ter
diferente; num sentido não é “contrário à natureza.
_ρέξει, dat. s. de _ρεξις, ardente anelo, lascívia; cf. _ρέγω, desejar ardentemente, estirar-se para
alcançar (1Tm. 3:1; 6:10; Hb 11:16).
_σχημοσύνη (aqui acc. s. -ν), no Novo Testamento aparece somente aqui e em Αp. 16:15. A
palavra se deriva de _ e de σχ_μα; ou seja, “sem (correta) forma”, disforme, vergonhoso; e o
Romanos (William Hendriksen) 107
A relação entre o v. 26 e o v. 25 é a mesma que havia entre o v. 24 e
os vv. 22, 23. Em cada caso o pecado é mencionado em primeiro lugar, e
logo o resultado. Agora Paulo não se espraia em sua consideração da
imoralidade sexual em geral, como no v. 24, mas que se torna específico
e enfoca sua atenção numa de suas manifestações mais desagradáveis, ou
seja, a homossexualidade deliberada.
A respeito de “Deus os entregou”, veja-se sobre v. 24.
“… paixões que trazem desonra”. Aqui encontramos um eco do v.
24b.: “De modo que seu corpos eram desonrados entre eles mesmos”.
“… suas mulheres mudaram sua relação natural por aquela (que é)
contrária à natureza”. esta mudança” nos lembra a “mudança”
mencionada nos vv. 23 e 25: “… A glória do Deus imortal por uma
imagem …”;
“Deus (quem é) a verdade, por uma mentira”.
É claro que o apóstolo censura a deliberada prática da
homossexualidade ou sodomia. A verdade é que a Escritura não resta
importância a este vício. No Lv 20:13 se pronuncia a pena de morte
sobre quem o perpetra.
Há mais informação sobre este horrível mal em Gn 19:4–9; Lv
18:22; 20:13; Dt 23:17, 18; Jz. 19:22, 24; 1Rs 14:24; 15:12; 22:46; 2Rs.
23:7; Is 3:9; Lm. 4:6; e vejam-se também 1Co 6:9, 10; Ef 4:19; 1Tm.
1:10; 2Pe 2:6; Jd. 7.

substantivo, tal como o usa aqui, significa falta de vergonha, atos indecentes, conduta inapropriada.
Em Ap 16:15 refere-se à vergonha de uma pessoa: ou seja, suas partes pudentes”.
_ντιμισθία (aqui ac. s. -ν) De minha dissertação sobre The Meaning of the Preposition _ντί in the
New Testament, p. 81, cito o seguinte:
“Esta palavra é utilizada num sentido favorável em 2Co 6:13; num sentido desfavorável em Rm
1:27, os únicos dois passagens em que aparece. O fato de que a _ντιμισθία é considerada aqui como
uma “retribuição” ou pagamento por um certo tipo de ação, é destacada claramente pelo acréscimo das
palavras _ν _δει em Rm 1:27. A _ντιμισθία é aquilo que cabia esperar. Além disso, a própria palavra
base sugere já a ideia de uma retribuição, de algo que volta. Como resultado, o significado da
preposição é claro”.
πλάνης, gen. s. de πλάνη, errante; cf. planeta: “estrela errante”. Como resultado, o que se quer
dizer no presente contexto é um desviar-se ou apartar-se de seu devido curso (um desvio), uma
perversão.
Romanos (William Hendriksen) 108
A orientação sexual de uma pessoa, quer seja heterossexual ou
homossexual, não é o que nos ocupa aqui. O que importa é o que a
pessoa faz com sua sexualidade!
Segundo o claro ensino da Escritura, as relações sexuais foram
criadas para o esposo e sua mulher, e para ninguém mais! (Gn 2:24). Cf.
Mt 19:5; Mc 10:7, 8; 1Co 6:16; Ef 5:31. Tudo o mais é “contrário à
vontade de Deus”. Está em conflito com a intenção do Criador.
Não fica bem claro por que se condenam as relações homossexuais
entre mulheres (lesbianismo) antes das relações ilícitas entre varões. A
única explicação que tem algo de mérito, segundo meu parecer, é aquela
que diz que o apóstolo desejava dar uma ênfase especial à perversão da
relação do varão com o varão; daí que reteve a condenação deste vício
para o fim da oração, de tal modo que pudesse então espraiar-se a
respeito visto que, dos dois pecados homossexuais, era provavelmente o
mais prevalecente.
“… varões com varões perpetrando falta de vergonha.” Do
princípio ao fim o apóstolo utiliza os termos varões e mulheres (assim
literalmente). Ele enfatiza a distinção entre os sexos, como é também
feito nas seguintes passagens: Gn 1:27; 5:2; Lv 12:7; 27:3–7; Nm. 5:3;
Mt 19:4; Mc 10:6; Gl 3:28. Poderia traduzir-se também com as palavras
“homens” e “mulheres”. No entanto, os pecados aqui condenados não
são cometidos somente por homens e mulheres mas também, às vezes,
por “rapazes” e “moças”.
“… recebendo em suas próprias pessoas o devido pagamento de seu
desvio”.
Que esta ímpia prática resulta numa colheita de amargura é algo
que foi provado vez após vez e fica demonstrado todos os dias do ano.
Alguns dos frutos são: uma consciência suja, insônia, tensão emocional,
depressão. Além disso, a discórdia mental deste tipo não deixa de afetar
o corpo. Em seu muito interessante livro — None of These Diseases,
Westwood, New Jersey 1963, p. 60 — o doutor S.M. McMillen diz-nos
que segundo um relatório publicado em 1948, dois terços dos pacientes
Romanos (William Hendriksen) 109
que visitaram médico tiveram sintomas causados ou agravados pela
tensão mental.
É certo, “De Deus não se zomba”. Tudo o que o homem semeia
para sua própria carne [quer dizer, permitindo a sua velha natureza ter
via livre], da carne segará corrupção, e aquele que semeia para o Espírito
[permitindo que o Espírito governe sobre ele], do Espírito segará vida
eterna” (Gl 6:7, 8. Veja-se também 1Co 3:17; 6:19, 20; 10:31).
O melhor de todos os remédios para evitar colher os frutos da
corrupção é viver o tipo de vida descrita em belas passagens tais como
Rm 12; 1Co 13; Gl 5:22–23; Ef 5.
28. E pelo fato de que consideraram inútil reter o conhecimento de
Deus, ele os entregou a (suas) depravadas disposições, para fazer o que é
impróprio … 44
Aqui temos por terceira e última vez enfocada nossa atenção na
correlação que há entre a rejeição humana de Deus e a rejeição divina do
homem. As duas referências prévias a esta correlação estão nos vv. 24 e
26. A arrogância do homem passa à frente na expressão: “Não o
consideraram útil reter o conhecimento de Deus”, ou seja, precisamente
esse conhecimento ao qual se fez referência nos vv. 18–21; note-se
especialmente: “Porque embora conheceram a Deus” (v. 21). Em vez de
considerar este conhecimento com relação a Deus que derivavam de sua
revelação na natureza como um tesouro precioso, eles constantemente

44
_δοκίμασαν, 3ª. pes. pl. aor. ind. at. de δοκιμάζω. Em certos contextos, este verbo significa provar,
comprovar, examinar (Rm 12:2; 1Pe 1:7; etc.). Também pode significar: aprovar (depois de
examinar), considerar apto, considerar útil. Com relação a este significado, veja-se Rm 14:22; 1Co
16:3; e nossa passagem, Rm 1:28.
_δόκιμον, não aprovado; daí, rejeitado, incapaz de passar na prova, sem valor, desqualificado,
inútil (Rm 1:28; 1Co 9:27; 2Co 13:5–7; 2Tm 3:8; Tito 1:16; Hb 6:8).
Note-se o jogo de palavras ο_κ _δοκίμασαν … _δόκιμον νο_ν: não o aprovaram, não o
consideraram útil … inútil é inclinações.
Com relação ao significado do substantivo _πίγνωσις e o verbo cognato _πιγινώσκω, veja-se o
artigo de R. E. Picerelli em E. Q., Vol. XLVii, abril–junho, 1975, pp. 85–93.
καθήκοντα, ac. pl. n. part. pte. de καθήκω (κατά mais _κω), descer, ser decoroso, correto; dali que
neste lugar τ_ μή καθήκοντα indica as coisas que não são decorosas nem corretas; como resultado
impróprias, indecentes, imorais.
Romanos (William Hendriksen) 110
tentavam suprimi-lo (v. 18) e, como se afirma aqui no v. 28,
consideraram-no como coisa de nada. Consideraram que não valia a pena
prestar nenhuma atenção a Deus e à Sua revelação. Assim que
continuaram em seu caminho pecaminoso, segundo se descreve nos vv.
21–27 (o caminho da idolatria e da imoralidade). De fato, as coisas
impróprias que o apóstolo tem em mente provavelmente abrangem
também aquelas mencionadas nos vv. 29–32. Note-se que uma má
“disposição”, ou “mente”, ou “atitude”, resulta em atos maus.
29–31.… cheios de todo tipo de injustiça, maldade, avareza,
depravação; cheios de inveja, homicídios, contendas, enganos e malícias.
(São) fofoqueiros, caluniadores, aborrecedores de Deus, insolentes,
arrogantes, fanfarrões, inventores de (novas formas de) maldade,
desobedientes a (seus) pais, insensatos, desleais, desafeiçoados,
desumanos.
A lista de vícios mencionada em Rm 1:21–31 deve ser comparada
com listas similares que aparecem em outros escritos de Paulo; Rm
13:13; 1Co 5:9–11; 6:9, 10; 2Co 12:20, 21; Gl 5:19–21; Ef 4:19; 5:3–5;
Cl 3:5–9; 1Ts 2:3; 4:3–7; 1Tm. 1:9, 10; 6:4, 5; 2Tm 3:2–5; Tt 3:3, 9, 10.
É difícil determinar se havia fatores fora da identidade do autor (por
exemplo, listas já existentes que explicassem esta semelhança.
A maneira mais simples e lógica de dividir estes vinte e um vícios
mencionados em Rm 1:29–31 é a de dividi-los em três grupos:
a. Um grupo de quatro vícios (que no original aparecem cada um no
caso dat. s.) que são introduzidos pelas palavras “cheios de todo tipo de”.
b. Um grupo de cinco vícios (todos no gen. sing.) introduzidos por
“cheios de”; e
c. Um grupo de doze que começa com “fofoqueiros”. 45
Os últimos quatro vícios deste grupo de doze formam uma espécie
de subgrupo, em que cada membro começa com a á-privativa (igual aos
prefixos em português in, des).

45
No original, πεπληρωμένους está em aposto com α_τούς no v. 28. Também está em aposto todo o
terceiro grupo, que começa com fofoqueiros (literalmente “sussurrantes”).
Romanos (William Hendriksen) 111
Este grupamento em 4–5–12 é também aceito por Cranfield,
Murray, Ridderbos, Robertson, etc.
Pode notar-se que já não há aqui nenhuma referência a pecados do
sexo, visto que este tema foi amplamente tratado nos versículos
precedentes. 46

GRUPO DE QUATRO

injustiça. Veja-se v. 18
maldade. Isso descreve àquela gente que se alegra em fazer o mal.
avareza. Isso indica cobiça, o querer alcançar mais que o devido,
gostar de cada vez mais e ainda mais posses sem considerar como são
obtidas. Às vezes, como em Ef 5:3, a palavra aplica-se a uma voraz
agressividade em assuntos de sexo à custa de outros.
depravação. Isso indica maldade em geral. É difícil distingui-la da
maldade.

GRUPO DE CINCO

inveja. 47 Este é o forte desagrado que surge ao ver que alguém tem
algo que a pessoa gosta de si mesmo.
homicídios. A inveja frequentemente leva ao homicídio. Isso foi
verdade no caso de Caim, que matou Abel (Gn 4:1–8; 1Jo 3:12); também
foi certo com relação aos que demandavam a crucificação de Cristo (Mt
27:18; Mc 15:10). E não foi acaso a inveja que levou os irmãos de José a
planejarem a sua morte? Veja-se Gn 37:4, 18.
contenda. Isto se refere a uma disposição briguenta e a suas
consequências.
enganos. Isso aponta para ser astuto, à traição.

46
Não há justificação textual para a inserção da palavra πορνεί_ (“prostituição”, RC 1998), no v. 29.
47
Note-se a semelhança em som que há no original entre φθόνου (inveja) e φόνου (homocidio).
Romanos (William Hendriksen) 112
malícia. Isto indica malignidade, rancor, o desejo de causar
machuco a outro.

GRUPO DE DOZE

fofoqueiros. Aqui se tem em mente os caluniadores “sussurrantes”


Estes não vêm de frente — talvez não se animam a fazê-lo — com sua
conversa vivificadora, mas sussurram nos ouvidos de outros.
caluniadores. O que os fofoqueiros fazem secretamente, os
caluniadores o fazem abertamente.
aborrecedores de Deus. A palavra que se usa no original refere-se
principalmente àqueles que são odiados por Deus. No entanto, este termo
usa-se às vezes (como aqui) para indicar àqueles que odeiam a Deus.
insolentes. Veja-se também 1Tm. 1:13. Isto assinala aos indivíduos
presunçosos. Estes tratam os outros com desprezo, como se eles (os
insolentes), e somente eles, valessem algo, e que todos os outros não são
nada.
arrogantes. Esta gente se considera a si mesma “super-homens”.
fanfarrões. Esta gente está constantemente jactando-se do que é
seu. Pense-se em Lameque (Gn 4:23, 24), em Senaqueribe (2Cr 32:10–
14); e nos descritos em Is 10:8–11; 14:13, 14.
inventores de (novas formas de) maldade. Esta referência aponta
àqueles que encontram uma alegria especial em inventar métodos
“originais” de destruir os seus congêneres.
desobedientes a (seus) pais. Ler Êx 20:12; Lv 19:3; Pv 20:20; Mt
15:4; 19:19; Ef 6:2.

Chegamos agora ao pequeno subgrupo de quatro:


insensatos. 48 Aqui se fala de gente que “carece de entendimento”.
porém não se trata somente de uma fraqueza mental; é também uma tara

48
Note-se a assonância (no original) entre esta palavra e a seguinte: _συνέτους, _συνθέτους.
Romanos (William Hendriksen) 113
moral. São estúpidos porque em princípio não estiveram dispostos a
ouvir a Deus; Vejam-se Mt 15:16; Mc 7:18; Rm 10:19 (cf. Dt 32:2).
desleais. São aqueles que “não são fiéis à aliança”, daí que são
pérfidos, indignos de confiança. Veja-se Sl. 73:15; 78:57; 119:158.
desafeiçoados. O significado é: sem afeto natural. Não era nada
incomum que os pagãos afogassem ou de alguma outra maneira
matassem seus filhos não desejados. Com relação a isso, pense-se no
presente problema do aborto, para o qual se inventam todo tipo de
desculpas.
desumanos. A referência aponta à pessoas sem misericórdia, a
pessoas cruéis, sem mercê alguma. Pense-se não somente nos ladrões da
parábola do bom samaritano (Lc 10), mas também no sacerdote e no
levita, aqueles que “passaram de comprimento”.
32. E embora conheçam a ordenança de Deus de que aqueles que
praticam tais coisas são dignos de morte, não só continuam nelas, mas
também aprovam aqueles que as praticam.
O que Paulo diz aqui é que aqueles que perpetram os crimes
implícitos ou expressos nos vv. 29–31, não devem ser considerados
como gente tão inocente que não saibam distinguir entre o bem e o mal.
Pelo contrário, eles sabem — têm plena consciência — que segundo as
ordenanças de Deus, segundo seu decreto, aqueles que praticam tais
vícios são dignos de morte.
Como sabem isso? Sabem porque um Deus santo e justo lhes
revelou na natureza (Rm 1:21) e na consciência (Rm 2:14, 15); na
verdade, Ele está fazendo isso constantemente. Como resultado, eles
percebem que Deus os chamará a prestar contas e que continuar em seu
mau caminho resultará em perdição para eles. No entanto, apesar de
estarem conscientes disso, eles não somente continuam praticando estes
vícios e cometendo estes crimes, mas ainda aplaudem aqueles que fazem
o mesmo.
Há quem vê um problema aqui; pensam que o apóstolo parece estar
dizendo que alegrar-se em ver outros empenhar-se no pecado enquanto
Romanos (William Hendriksen) 114
que a pessoa se abstém do mesmo, é algo pior que participar de tais
práticas insalubres. Tendo criado este problema, eles tratam então de
resolvê-lo.
Mas, não é verdade que o que Paulo na verdade está dizendo é que
os que não só praticam estes vícios mas também aplaudem outros que se
entregam aos mesmos são ainda piores que aqueles que simplesmente os
praticam? Uma pessoa, por exemplo, pode chegar a cometer um ato
muito mau. Mas depois se sente muito triste. Talvez até adverte a outros.
Mas eis aqui outra pessoa que não somente pratica o mal e continua
praticando-o, mas além disso anima outros a seguir o seu exemplo,
aplaudindo-os quando o fazem. Certamente um indivíduo tal chegou ao
ponto mais baixo da perversidade.
Ao chegar ao fim do capítulo, e ao olhar para trás, não devemos
esquecer que o verdadeiro propósito de Paulo ao escrevê-lo era o de
demonstrar que a maldade do homem (em especial a do gentio neste
caso) é tão grande que somente Deus é capaz de resgatá-lo. Só quando o
homem aceita o caminho de salvação divinamente designado, ou seja, o
de abraçar a Deus pela fé, pode ser salvo. Só a Deus seja a glória!

Lições práticas derivadas de Romanos 1


Rm 1:1. “Paulo … apóstolo chamado, separado para o evangelho
de Deus”. Foi Deus quem chamou Paulo e quem o separou para sua
tarefa especial. Não é isto uma prova, em todo caso, que Romanos é uma
face de Deus enviada à igreja e ao crente individual de cada época? E
saber isso, não faz com que a epístola seja ainda mais preciosa.
Rm 1:4. “Filho de Deus investido de poder, ou seja, Jesus Cristo,
nosso Senhor”. O fato de que não haja limites a esse poder, e o fato
adicional de que é exercido a nosso favor — note-se: “nosso Senhor —
deve consolar-nos em toda prova de tal modo que com o escritor de
Hebreus (Rm 2:9), exclamássemos: “… Mas vemos a Jesus, … coroado
de glória e de honra”.
Romanos (William Hendriksen) 115
Rm 1:7. “Graça a vós e paz”, etc. Quando uma pessoa chega a ser
cristã, tudo muda. Até a forma em que cumprimenta as pessoas muda.
Veja-se a explicação deste versículo.
Rm 1:8, 9, 11, 15. “Meu Deus … a quem sirvo de coração …
desejo ver-vos … daí meu anelo de pregar o evangelho também a vós em
Roma”. Muitas pessoas sentem grande entusiasmo pelas saídas
campestres ou pelos esportes. Paulo sente grande entusiasmo por Deus.
Note-se seu entusiasmo e seu zelo nas expressões citadas.
Rm 1:11. “… Para vos poder comunicar …”
Paulo sabia que o ofício do cristão na vida é o de “comunicar”, ou
seja, ser uma bênção.
Rm 1:12. “Quero dizer que … possamos animar-nos mutuamente
pela fé do outro, tanto a sua como a minha”.
O apóstolo também está convencido de que até o mais humilde dos
filhos de Deus pode comunicar algo a ele (Paulo).
Rm 1:16, 17. “… a todo aquele que põe em ação sua fé … de fé em
fé … viverá pela fé”.
Vez após vez Paulo menciona a fé, tirando os olhos de si mesmo
como possível fonte de salvação e olhando para Deus para recebê-la dEle
como dom.
Do Prefácio do Tradutor de minha tradução ao inglês do livro do
Dr. Herman Bavinck sobre a doutrina de Deus (publicado sob o título de
The Doctrine of God (A doutrina de Deus), Grand Rapids, 1977), cito o
seguinte:
“ ‘Meu saber não me ajuda agora: tampouco o faz minha
dogmática; só a fé me salva’.
“Estas notáveis palavras, proferidas por um dos maiores teólogos
reformados, o Dr. Herman Bavinck, não devem ser mal-interpretadas.
Foram ditas em seu leito de morte e não significavam que este humilde
filho de Deus tivesse retratado nada do que tinha escrito, ou que
estivesse tentando expressar compunção. A afirmação simplesmente
significa que um sistema de doutrina, não importa quão necessário ou
Romanos (William Hendriksen) 116
valioso que seja, não é útil apenas por si só. Deve traduzir-se numa vida
cristã. Deve haver uma fé genuína no Triúno Deus, como é manifestado
em Jesus Cristo. Agora, o Dr. Bavinck era certamente um homem de fé,
uma fé que neste caso operava através do amor”.
Rm 1:18. “Porque a ira de Deus se revela dos céus contra toda
impiedade e injustiça …”
É uma tolice tentar degradar a ira de Deus. Tal ira deve encher
nossos corações de alegria e satisfação, porque se a ira de Deus não
ardesse contra o pecado, como poderia ser Ele um Deus santo? E como
poderia um Deus carente da qualidade da santidade salvar-nos?
Além disso, nós insistimos que se tomem medidas drásticas contra
o crime e que se designem juízes e autoridades que não considerem o
crime como algo sem importância. É consistente, então, esperar que as
ímpias práticas que enchem as mentes e os corações dos homens
decentes de horror e indignação deixem a Deus indiferente? Como
resultado, em vez de minimizar a realidade da ira de Deus, não
deveríamos, antes, agradecer-Lhe por Seu maravilhoso plano pelo qual o
Filho de Deus carregou a ira de Deus em nosso lugar.
Rm 1:21–32. “Porque embora conheceram a Deus, não o
glorificaram como Deus nem lhe deram graças … mudaram a glória do
Deus imortal por uma imagem … Por isso Deus … os entregou à
imoralidade sexual … a paixões que trazem desonra … Eles não só
praticam tais (ímpias) coisas, mas aprovam aqueles que as praticam”.
Preste a devida atenção ao fato de que o pecado gera pecado. À
parte da graça de Deus o pecador desce cada vez mais baixo na escada
do pecado. A moral é: Deve evitar-se o primeiro degrau para baixo. Por
meio da graça e do poder de Deus, vamos manter-nos agarrados a Deus e
à Sua vontade para nossas vidas, como o revelam as Escrituras.
Romanos (William Hendriksen) 117
Resumo de Romanos 1
No que pode chamar-se Prólogo ou Introdução, Paulo, servo de Jesus
Cristo, apóstolo chamado, pronuncia sua saudação oficial sobre os membros
da igreja localizada em Roma, capital do império (vv. 1–7).
O apóstolo expressa seu alvoroço pelo fato de que a fé destes romanos
seja feita notória em todas as partes e lhes diz que ele pede a Deus que lhe
conceda a oportunidade de visitá-los logo (vv. 8–15).
Passa então a anunciar o que poderia considerar-se, de um modo
qualificado, como seu tema, ou seja, “que o evangelho é o poder de Deus para
salvação de todo aquele que põe em ação sua fé”. Em outras palavras, a
justificação, que é básica para a salvação, é só pela fé. Esta grande verdade,
sob a direção divina, foi proclamada primeiro aos judeus e é agora dada a
conhecer os gentios. Como confirmação do tema, Paulo acrescenta as palavras
de Hc 2:4b.: “Mas o justo viverá pela fé”. Tudo isto se encontra em Rm 1:16,
17.
Depois de ter afirmado que o caminho de salvação é o mesmo para todos,
ou seja, só pela fé, Paulo agora divide a raça humana em dois grupos: gentios
e judeus.
Em primeiro lugar ele descreve as condições prevalecentes no mundo
gentílico. Demonstra que embora Deus deu-se a conhecer os gentios por meio
da revelação geral, estes “nem o glorificaram como Deus, nem lhe deram
graças” (vv. 18–21). Em lugar de adorar ao único verdadeiro Deus, voltaram-
se adoradores de ídolos (vv. 22, 23). Como resultado, Deus enfim os
abandonou (vv. 24, 26, 28) a seus próprios caminhos ímpios, incluindo não só
a homossexualidade deliberada (vv. 24–27), mas também muitos outros vícios,
vinte e um dos quais mencionam-se nos versículos 29–31.
Em capítulo conclui numa nota lúgubre: “E embora conheçam a
ordenança de Deus que aqueles que praticam tais coisas são dignos de morte,
não só continuam nelas, mas também aprovam aqueles que as praticam” (v.
32).
Romanos (William Hendriksen) 118
ROMANOS 2
3. Os judeus também necessitam esta justificação. Rm 2:1 – 3:8

1. Por isso não tens desculpa, ó homem, quem quer que sejas,
quando julgas (algum outro), porque em qualquer ponto em que julgas
outra pessoa, condenas a ti mesmo, porque tu, o juiz, praticas as mesmas
coisas.
Muitas pessoas se confundem diante das palavras “por isso” (ou
“pelo que”). É preciso reconhecer que seu significado não é
imediatamente claro. A seguinte interpretação, no entanto, parece ter o
apoio do contexto precedente: «Pelo fato de que se estabeleceu (Rm
1:18–32) que as práticas imorais dos gentios são uma abominação diante
de Deus, por isso também tu, quem quer que sejas, careces de desculpa
quando praticas as mesmas maldades, os mesmos vícios que condenas
em outros».
Poderia perguntar-se: «Porém não prova a descrição das práticas
dos gentios que o judeu e o gentio diferiam grandemente em sua maneira
de viver?» Já se admitiu que em termos gerais isso é verdade. Veja-se
sobre Rm 1:18. Mas isso é verdade só em certo sentido. Por exemplo, os
gentios eram idólatras. Mas muitos judeus, pelo alto conceito que tinham
de sua própria retidão, faziam um ídolo de si mesmos. Mais de um gentio
recusava arrepender-se. Mas o mesmo fazia, à sua maneira, mais de um
judeu. Além disso, tal como o apóstolo o demonstra em Rm 2:21–23,
muitos pecados específicos eram cometidos tanto pelos judeus como
pelos gentios, cada um à sua maneira.
Agora entendemos o que o apóstolo quer dizer quando afirma: “…
em qualquer ponto que julgas outra pessoa, condenas a ti mesmo, porque
tu, o juiz, praticas as mesmas coisas”. Antes de deixar esta passagem (à
qual voltaremos mais adiante em nossas Lições práticas) não devemos
deixar de notar quanto se aproxima o pensamento de Paulo ao de Jesus.
Veja-se Mt 7:1–4; Lc 6:41, 42.
Romanos (William Hendriksen) 119
49
2. Sabemos que o juízo de Deus é pronunciado justamente contra
aqueles que praticam tais coisas.
Com relação à expressão “sabemos” ou “concordamos” — quer
dizer “vós, que ledes ou ouvis isso, e eu, aquele que escreve,
concordamos” — veja-se também Rm 3:19; 7:14; 8:22, 28; 2Co 5:1;
1Tm. 1:8. Embora esta afirmação, naturalmente, abranja todo aquele que
lê ou ouve a leitura de Romanos, coisa que num sentido é certa de toda a
Escritura, ela se dirige especialmente aos judeus, mencionados
especificamente nos versículos 9, 19, 17, 28, 29; 3:1, 9. Eles eram
precisamente a pessoas que sempre andavam jactando-se de que
possuíam a “lei” (a revelação especial de Deus resumida por escrito, o
que hoje chamamos o Antigo Testamento), como se a mera possessão os
fizesse melhores que qualquer outro povo. Por isso, o apóstolo lhes
lembra que os autojustificados não escaparão ao juízo. O que Deus
requer é que façamos as coisas que Ele manda.
Pensa esta gente, talvez, que por não ter chegado a hora da final
prestação de contas, pode dar-se ao luxo de passar por alto as
advertências divinas?
“O juízo de Deus é pronunciado justamente”, quer dizer, sempre
concorda com a verdade e a justiça absolutas. Isto de maneira nenhuma é
sempre certo das avaliações humanas. “Meço dois metros”, exclamou o
pequeno. Quando seu pai lhe perguntou como tinha chegado a tal
conclusão, ele respondeu: “Encontrei uma vara tão alto como eu, e o
dividi em duas partes iguais, e disse que cada parte era um metro. Isto
faz com que eu seja tão alto como você”. Sorrimos diante da
argumentação do pequeno, porém, não nos fazemos culpados muitas
vezes de um raciocínio similar, medindo-nos e a outros com nossa
própria regra? O resultado é frequentemente um estimativa muito
favorável de nós mesmos e um juízo muito duro com relação a outros.

49
Literalmente: concorda com a verdade.
Romanos (William Hendriksen) 120
O que Paulo está procurando estabelecer é que em todo caso os
juízos humanos, quer sejam sobre nós mesmos ou sobre outros, não têm
valor. O juízo de Deus, por outro lado, é inescapável:
3. E imaginas — tu que, embora julgues os que praticam estas coisas,
fazes as mesmas coisas tu mesmo — que escaparás ao critério do juízo de
Deus?
A implicação é clara. 2Co 5:10 o expressa nestas palavras: “Porque
todos devemos aparecer em nosso verdadeiro caráter diante do tribunal
de Cristo, para que cada um receba o que lhe corresponde pelas coisas
feitas (enquanto estava) no corpo, quer sejam boas ou sejam sem valor”.
É evidente que ninguém pode escapar a este juízo.
Paulo continua.
4. Ou é que desprezas as riquezas de sua bondade, longanimidade e
paciência, sem perceber que a bondade de Deus procura levar-te à
conversão?
Uma das razões que dá um sentido de segurança — falso sentido de
segurança, naturalmente — já foi dada, ou seja, «por ser judeu, estou de
posse da santa lei de Deus». Agora se acrescenta uma segunda razão para
esta infundada tranquilidade, ou seja: «Não fui abandonado por Deus à
uma vida de imoralidade escandalosa (Rm 1:22–32); por isso deve ser
que a bondade (ou benevolência, generosidade), indulgência e paciência
(ou longanimidade) de Deus ainda me enchem. Ele deve estar muito
satisfeito comigo». Há mais informação sobre “paciência” em Rm 3:25;
compare-se com Rm 8:32.
O apóstolo, por outro lado, lembra ao autojustificado judeu que o
propósito da bondade de Deus — que aqui provavelmente representa as
três qualidades previamente mencionadas — não é de maneira nenhuma
o de fazer com que se sinta satisfeito consigo mesmo, mas antes, o de
levar à conversão. Quando o judeu reflete sobre os vícios dos gentios,
ele deve ter em mente que, embora fosse certo que ele não pratica
nenhum deles, mesmo assim, não tem nada de que alardear. A ausência
de qualquer número de vícios pagãos não constitui em si nenhuma
Romanos (William Hendriksen) 121
virtude. Nem mil e milhões de zeros juntos chegaria a um só número
positivo. O que o judeu deve fazer é: deve lembrar constantemente que a
intenção de Deus ao ser tão bom para com ele é a de levá-lo à conversão.
A tradução arrependimento não é a melhor, embora sem dúvida o
pesar pelo pecado está incluído no que Paulo tem em mente. O
arrependimento pode considerar-se como o aspecto negativo da
conversão. O aspecto positivo é o de aproximar-se a Deus por meio de
uma confiança genuína e de uma entrega de todo o ser. A conversão
indica uma volta completa: de Satanás a Deus; do pecado à santidade.
Veja-se 2Co 7:8–10; 2Tm 2:25. É o estado de ânimo, do coração, e da
vontade da pessoa que diz:
Outro asilo não tenho que achar,
indefeso vou a ti. 50
Linhas tiradas do hino “Carinhoso
Salvador”, de Charles Wesley.
Note-se o agudo contraste entre a arrogante disposição do judeu
autojustificado que resiste à conversão e à bondade de Deus que busca
levá-lo à conversão. Com relação às qualidades divinas que aqui se
mencionam convém ver as seguintes passagens: Gn 18:22–33; Êx 34:6;
Nm. 14:18; Ne 9:17; Sl. 86:15; 103:8; 145:8; Is 1:18; 55:6, 7; Ez 18:23,
32; 33:11; Os 11:8; Jl 2:13; Jn 4:2; Mq 7:18, 19; Na 1:3; Lc 13:8; 2 P.
3:9. Também veja-se C.N.T., Lucas, pp. 89, 90, 664, 665.
5–8. Porém com teu duro e inconverso coração 51 acumulas para ti
mesmo ira no dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus, quem dará
a cada pessoa segundo os seus atos. Aos que por sua perseverança em
fazer o que é reto buscam glória, honra e imortalidade, (ele lhes dará)
vida eterna, mas para os que estão cheios de egoísta ambição e que
desobedecem a verdade mas obedecem a injustiça (haverá) ira e cólera.

50
Com relação a μετάνοια (v. 4) e a _μετανόητος (v. 5) veja-se o artigo de J. Behm em Th. D. N. T.,
Vol. IV, pp. 975–1009; B. B. Warfield, Biblical and Theological Studies, Filadélfia, 1954, p. 366; e
W. D. Chamberlain, The Meaning of Repentance, Filadélfia, 1943, p. 22.
51
Ou: dureza e inconverso coração.
Romanos (William Hendriksen) 122
Diante da falsa ilusão dos que constantemente condenavam outros,
mas recusavam converter-se (vv. 3, 4) o apóstolo revela agora a
verdadeira situação. Ele lhes informa que embora a ira de Deus possa
não ter ainda alcançado o judeu na maneira como já tinha sido revelada
ao gentio, isto não significa que nunca será derramada sobre ele. Indica
simplesmente que durante um certo tempo seu castigo (o do judeu) está
suspenso. No entanto, poderia dizer que durante todo este tempo a ira vai
se acumulando. Isto deve ser certo, porque o pecado do judeu é muito
sério. Para descrevê-lo o apóstolo utiliza a expressão: “Sua dureza e
inconverso coração”. Mas neste caso devemos provavelmente vincular
“dureza” com “coração” como a Escritura o faz frequentemente. No
Antigo Testamento, veja-se Dt 10:16; Pv 28:14; Ez 3:7; e no Novo
Testamento Mt 19:8; Mc 3:5; 6:52; 8:17; 10:5; Jo 12:40; Hb 3:8, 15; 4:7.
É assim que chegamos à frase “seu duro e inconverso coração”. 52
Deve notar-se que a pessoa a quem Paulo se dirige é a que acumula
ira para si mesma. O que é pior, a ira de que se fala é a de Deus, tal como
em Rm 1:18, embora no caso presente o derramamento da mesma está
vinculado com e toma lugar no “dia da ira e da revelação do justo juízo
de Deus”, ou seja, no dia do juízo final. Embora alguns (Karl Barth, por
exemplo) rejeitem esta explicação, a mesma tem o apoio dos seguintes
argumentos:
a. O contexto mais amplo (v. 16) a favorece. Note-se: “(Tudo isto
será esclarecido) no dia em que, segundo o meu evangelho, Deus,
através de Jesus Cristo, julgará os segredos dos nomes”.
b. De fato, o contexto imediato (v. 6) descreve este dia como aquele
no qual Deus “dará a cada pessoa segundo seus atos”. Isto nos traz à
mente Mt 16:27: “Porque o Filho do Homem virá na glória de seu Pai,
com os seus anjos, e então dará a cada um segundo seus atos”.
c. Veja-se também as seguintes passagens:

52
Para esta construção veja-se também Behm no artigo de que se faz menção na nota anterior; p.
1009, nota 3.
Romanos (William Hendriksen) 123
1Co 3:13 (“o dia”).
1Co 4:3–5
1Ts 5:4 (“aquele dia”).
2Ts 1:7–10.
2Tm 4:8.
O dia da ira (cf. Rm 1:18) é o mesmo que o dia da revelação do
justo juízo de Deus”. Aqui a verdade mencionada no v. 2, ou seja, que o
juízo de Deus é “segundo a verdade” é repetido em sua essência. Entre
os homens os juízos de maneira nenhuma são sempre “justos”.
O fato de que toda pessoa será julgada “segundo seus atos” é algo
que se ensina através de toda a Escritura (Ec 11:9; 12:14; Mt 16:27;
25:31–46; Jo 5:28, 29; 1Co 3:12–15; 4:5; 2Co 5:10; Gl 6:7–9; Ef 6:8; Ap
2:23; 11:18; 20:12, 13).
No entanto, formulou-se a seguinte pergunta: «Se Deus julgará as
pessoas “segundo as suas obras”, como pode a salvação ser “somente
pela graça”?» Agora, convém enfatizar que a frase “nada tenho que não
tenha recebido” (James M. Gray) é completamente bíblica. A salvação é,
sem dúvida, somente pela graça (Sl. 115:1; Is 48:11; Jr. 31:31–34; Ez
36:22–31; Dn 9:19; At 15:11; Rm 3:24; 5:15; Ef 1:4–7; 2, 8–10; 1Tm.
1:15, para mencionar umas poucas passagens).
Contudo, sucede vez após vez que quando Paulo enfatiza a
soberania divina ou a atividade salvadora, ele imediatamente a vincula
com a responsabilidade humana (Ef 2:8–10; Fp 2:12, 13; 2Ts 2:13; 2Tm
2:19). Embora demos por sentado que o homem não pode cumprir suas
tarefas ou levar a cabo suas responsabilidades por sua própria força, no
entanto é a ele que a tarefa é atribuída. Deus não assume esta tarefa por
ele. Mas em Sua graça e amor soberanos, Deus premia o homem por sua
fidelidade em cumprir o que lhe foi atribuído. Ainda mais, tanto as
recompensas como os castigos são distribuídos segundo o grau de
fidelidade ou infidelidade mostrado pela pessoa. Em todo caso a pessoa
que despreza a doutrina da responsabilidade humana que é
completamente bíblica, é a quem tem o verdadeiro problema.
Romanos (William Hendriksen) 124
Nos vv. 7, 8 Paulo divide a humanidade em dois grandes grupos,
como Jesus o fizera vez após vez (Mt 7:24–29; 10:39; 11:25, 26; 12:35;
13:41–43; 18:5, 6; 21:28–32; 23:12; 25:29, 46; etc.).
O primeiro grupo consiste de todos aqueles que perseveram (Mt
25:13; Cl 1:23; Hb 3:14; Ap 2:10) em fazer o que é certo; não o certo
simplesmente aos olhos de outras pessoas, uma norma de medidas que o
apóstolo acaba de condenar (v. 1–3), mas sim o reto aos olhos de Deus.
Estas são pessoas cuja meta é alta (Fp 3:8–14). Ao perseverar em atos
que glorificam a Deus, aspiram obter glória (Veja-se acima sobre Rm
1:23, item “a” na lista de significados), honra e imortalidade, ou seja,
vida de ressurreição incorruptível e indestrutível em bem-aventurança
sem fim, aquela do novo céu e da nova terra (Rm 8:23; 1Co 15:42, 50–
57; 1Pe 1:4; 2Pe 3:13; Ap 21:12–22:5).
A estes Deus outorgará vida eterna, a totalidade daquela vida que já
era em principio sua porção antes de morrer. Naquele dia do juízo final
eles receberão esta bênção em medida completa, tanto para a alma como
(no aplicável) para o corpo.
E o que é vida eterna? Segundo as Escrituras é a comunhão com
Deus em Cristo (Jo 17:3), posse da paz de Deus que transcende todo
entendimento (Fp 4:7), alegria inexprimível e plena de glória (1Pe 1:8), a
luz do conhecimento da glória de Deus no rosto de Cristo (2Co 4:6), e o
amor de Deus derramado no coração (Rm 5:5), continuando tudo isso
pelos séculos dos séculos.
O segundo grupo consiste daqueles que estão cheios de egoísta
ambição. Em vez de obedecer a verdade, eles prestam ouvidos a
qualquer coisa que desonre a Deus. Para eles haverá ira e cólera; quer
dizer, naquele dia do juízo final sempre dali em diante serão objetos do
forte desagrado e indignação de Deus. Sempre terão consciência disso, e
nunca será possível para eles sair de debaixo do mesmo. 53
53
Para _ριθεία veja-se L.N.T. (A. e G), p. 309. Além de sua aparição aqui em Rm 2:8, esta palavra
encontra-se também em 2Co 12:20; Gl 5:20; Fp 1:17; 2:3; Tg 3:14, 16. Seu significado é discutido. Se
há uma relação entre esta palavra e _ρις, o significado poderia ser luta, contenda, facção. Por outro
Romanos (William Hendriksen) 125
O agudo contraste entre o eterno destino destes dois grupos,
segundo se retrata aqui em Rm 2:7, 8, pode ser comparado com
descrições de contrastes de forma similar que se encontram no livro de
Apocalipse:

A. A bem-aventurança dos salvos


“Já não terão fome nem sede, e o sol não cairá mais sobre eles nem
calor algum, porque o Cordeiro, que está no meio do trono os pastoreará,
e os guiará a fontes de água da vida; e Deus enxugará toda lágrima dos
olhos deles” (Ap 7:16, 17).

B. A miséria dos perdidos


“E voz de harpistas, de músicos, de flautistas e de corneteiros não
se ouvirá mais em ti; e nenhum artífice de ofício algum se achará mais
em ti, nem ruído de moinho se ouvirá mais em ti. Luz de lâmpada nunca
iluminará mais em ti, nem voz de esposo e de esposa se ouvirá mais em
ti” (Ap 18:22, 23).
9–11. (Haverá) aflição e angústia para cada ser humano que é
pratica o mal; primeiro para o judeu e também para o grego; mas glória,

lado, se a palavra se derivar de _ριθος, assalariado, o significado poderia ser: o espírito de um


assalariado; como resultado, ambição egoísta, egoísmo (cf. Jo 10:12). Na presente passagem (Rm 2:8),
visto que o destino eterno do homem está em jogo, o conceito de egoísmo ou de ambição egoísta,
mais básico que o de contenda, bem pode ser o significado correto. A favor desta teoria geral se indica
que Aristóteles, num par de passagens de sua obra Política, usa esta palavra nesse sentido mais básico.
O que bem poderia ser um argumento ainda mais válido a favor de que _ριθεία = ambição egoísta
é que tanto em Gl 5:20 como em 2Co 12:20 _ριθεία é utilizado além de _ρις, o que provavelmente não
seria o caso se o significado fosse idêntico. Também, demonstrou-se (veja-se C.N.T. sobre Gl 5:20 e
Fp 1:17; 2:3) que a tradução ambição egoísta quadra com o contexto dessas passagens. Também
harmoniza com o contexto em 2Co 12:20 e Tg 3:14, 16.
Com relação à diferença entre _ργή e θυμός veja-se sobre Rm 1:18. Se, ao usar estas duas palavras
com relação a Deus, há alguma diferença de significado, a mesma estaria possivelmente em que _ργή
enfatiza a presença ou sentimento de um veemente desgosto divino, ou indignação, enquanto que
θυμός pυe a ênfase em seu derramamento.
Romanos (William Hendriksen) 126
honra e paz para todo aquele que pratica o bem; primeiro para o judeu e
também para o grego; porque Deus não mostra parcialidade. 54
Em primeiro lugar um comentário sobre a forma desta passagem, e
logo sobre o seu significado.
Quanto à forma, é claro que a antítese que se encontra nos vv. 7, 8 é
reproduzida aqui em ordem inversa. Isto é certo em dois respeitos:
a. Nos vv. 7, 8 os obedientes eram mencionados antes que os
desobedientes; nos vv. 9, 10 o oposto é certo.
b. Nos vv. 7, 8 a descrição da pessoa (quer seja obediente ou
desobediente) precede à menção da recompensa (7b) ou do castigo (8b).
O oposto é certo com relação aos vv. 9, 10.
No referente ao significado, aqui nos vv. 9, 10 se enfatiza que não é
o que a pessoa se imagina ser mas o que na verdade é aos olhos de Deus,
conforme o demonstra sua vida, suas obras, o que determina o que
sucederá com ele no juízo final. Isto é certo de cada “alma de homem”,
quer dizer, de cada pessoa que vive.
Para o praticante do mal (v. 9) haverá uma aflição externa e uma
angústia interna. Cf. Rm 8:35.
Com relação aos praticantes do bem (v. 10), note-se que segundo o
v. 7 o que o povo de Deus buscava, ou seja, “glória e honra e
imortalidade”, é também o que recebem, ou seja, “glória e honra e paz”.
Aqui os termos “imortalidade” e “paz” podem ser vistos como
sinônimos, ao menos numa medida considerável. Veja-se o que se disse
anteriormente com relação à “imortalidade”. A palavra “paz” deve
interpretar-se em seu sentido mais amplo, indicando uma salvação plena
e livre, uma participação prazerosa e sem fim, com corpo e alma
renovados, em toda a bem-aventurança do novo céu e da nova terra. Isto,
naturalmente, inclui uma doce comunhão com o Triúno Deus e com
todos os redimidos. Tudo isso para a glória de Deus!

54
Literalmente: porque não há parcialidade com Deus.
Romanos (William Hendriksen) 127
Pelo fato de que na ordem da história os judeus tinham recebido o
evangelho antes que os gregos ou gentios, esta ordem — primeiro o
judeu, logo o grego — será também levado em conta no juízo final. Nem
com relação ao castigo nem com relação ao prêmio se perderá de vista
que os judeus tinham sido privilegiados muito acima dos gentios (Rm
1:16; 3:1, 2; 9:4, 5).
Isso, no entanto, não deve ser interpretado como se dissesse que
Deus tratará mais generosamente o judeu que o gentio. Pelo contrário,
“Deus não mostra favoritismo” (v. 11), uma lição que Pedro teve que
aprender (At 10:34).
Vem-nos à memória uma passagem dos lábios de Jesus:
“Porque de todo aquele que recebeu muito, muito se requererá; e a
todo aquele a quem muito foi confiado, tanto mais lhe demandarão” (Lc
12:48).
12–13. Porque todos os que pecaram em ignorância da lei [ou: à
parte da lei] 55 perecerão embora não conheceram a lei [ou: parecerão à

55
Duas vezes no mesmo versículo o original usa a palavra _νόμως. A mesma está relacionada com o
substantivo _νομία e com o adjetivo _νομος.
O substantivo, como se acha em Mt 7:23; 13:41; 23:28; 24:12; Rm 6:19; 2Co 6:14; Tt 2:14; Hb
1:9, pode ser traduzida “desordem”, “maldade”, “iniquidade”. Em Rm 4:7 o mesmo faz referência a
atos ilegais, ofensas. “O homem ímpio” (VM), ou “o Filho da perdição” (o Anticristo) (RA 1999) é
mencionado em 2Ts 2:3, e “o mistério da iniquidade” em 2Ts 2:7. 1Jn. 3:4 afirma que “o pecado é
infração da lei”.
O adjetivo _νομος, no sentido de ilegal, sem lei, encontra-se em Lc 22:37 (gen. pl.): “O foi
contado com os iníquos”, quer dizer, “com os transgressores”. Note-se também “Por mãos de iníquos
(ou ímpios) …” (At 2:23), e cf. 1Tm. 1:19.2Pe. 2:8 menciona “atos iníquos”.
No entanto, com relação a Rm 2:12, a tradução: “Todos os que têm pecado iniquamente” seria a
pior classe de tautologia, visto que “o pecado é iniquidade”, como se indicou.
Mas então, como temos que traduzir o advérbio _νόμως? É evidente que o significado do
substantivo _νομία ou do adjetivo _νομος, como o usa nas passagens citados acima, não ajudam nada.
O que servirá é o uso do adjetivo em 1Co 9:21. Aqui a tradução: “Como se eu fosse iníquo” [ou seja
ímpio] seria errônea. Paulo não poderia ter querido dizer que ele se fez iníquo para os que eram
iníquos. O significado deve ser: “Aos que estão sem lei (ou: que não têm a lei), fiz-me como se
estivesse sem lei (ou: como se não tivesse a lei)”. Essa passagem nos contribui a chave para a correta
tradução do advérbio _νόμως aquí en Ro. 2:12. O significado é: “todos os que pecaram em ignorância
da lei perecerão embora não conheceram a lei; e todos os que pecaram conhecendo a lei serão
julgados pela lei”. Aqui o primeiro _νόμως (à parte da lei) pode ser traduzido “em ignorância da lei”,
Romanos (William Hendriksen) 128
parte da lei]; e todos os que pecaram conhecendo a lei [ou: sob a lei] serão
julgados pela lei. Porque não são os ouvintes da lei os que são justos
diante de [os olhos de] Deus, mas os praticantes da lei é que serão
declarados justos.
A afirmação que toda pessoa será julgada segundo as suas obras
(vv. 6–11) recebe esclarecimento e ampliação na presente passagem. O
apóstolo sublinha o fato de que o que conta tanto agora como no dia do
Grande Juízo não é se a pessoa tenha possuído a lei ou a tenha ouvido ler
na sinagoga ou em outra parte, mas se eles tenham conduzido suas vidas
em harmonia com seus requisitos.
Aqueles que pecaram em ignorância da lei — Cf. 1Co 9:21 — em
outras palavras, os gentios, perecerão embora não conheceram a lei. É
evidente dos vv. 21, 22 que ao usar a palavra “lei” o apóstolo tem
especialmente em mente o Pentateuco, ou mais precisamente, à lei dos
Dez Mandamentos. Cf. Rm 13:8–10. Eles perecerão devido a seus
pecados. E por outro lado, os que tiveram o privilégio de possuir ou de
ouvir a lei não devem pensar que este fato por si só será de algum
beneficio para eles diante de Deus. Pelo contrário, desobedecer a lei que
está sendo constantemente repetida nos ouvidos de alguém fará com que
sua condenação seja muito mais severa. Não aqueles que simplesmente
ouvem, mas aqueles que ouvem e praticam serão declarados justos.
É necessária aqui uma palavra de advertência. Deve levar-se em
conta que nesta ocasião o apóstolo não está fazendo um contraste entre a
justificação pela fé e a justificação pelas obras da lei. Aqueles que assim
desejem interpretar o que ele esta dizendo fariam com que Paulo se
contradissesse, visto que o propósito expresso desta carta é demonstrar
que uma pessoa não é justificada pelas obras da lei, mas pela fé em
Cristo. Não, a antítese de que ele fala aqui em Rm 2:12, 13 é entre dois
grupos de pessoas: (a) os que não só ouvem mas também obedecem, e
(b) os que simplesmente ouvem. Veja-se Mt 7:24–29. É claro que são os

e o segundo _νόμως deve significar e pode ser livremente traduzido como, “embora não conheceram a
lei”.
Romanos (William Hendriksen) 129
primeiros que são pronunciados justos por Deus. Cf. Lv 18:5 - “o
homem que os praticar [os meus estatutos] viverá” [NVI].
Interpretada desta maneira, esta regra tem validez até para aqueles
crentes que estão vivendo na nova dispensação. Precisamente porque
foram libertos da maldição da lei, tanto mais estão agora mais
profundamente obrigados não só a ouvir mas também a obedecer ao
evangelho. Por meio de suas boas obras, resultando da gratidão, eles
demonstram que pela graça e o poder soberano de Deus eles entregaram
a Ele seus corações. Somente nEle colocam sua confiança. DEle
receberam sua posição de justos aos olhos de Deus.
Quando Paulo trata a antítese: justificação pela fé ou por obras, ele
deixará bem claro que não é por obras mas pela fé que uma pessoa é
justificada (Rm 3:20, 28; 4:2; Gl 2:16; 3:11, 12). Veja-se também sobre
Rm 3:20, 28.
14–15. Porque quando os gentios que não possuem a lei por natureza
fazem as coisas requeridas pela lei, eles são uma lei para si mesmos,
embora não tenham a lei, porque demonstram que a obra requerida pela
lei está escrita em seus corações, pelo que suas consciências também dão
testemunho, e seus pensamentos entre eles, quer acusando-os ou
defendendo-os.
Alguns tradutores ou expositores consideram que os vv. 14, 15 são
um parêntese. 56 Uma das razões para esta construção é que o v. 15 não
parece vincular-se naturalmente com o v. 16.
As objeções à ideia de um parêntese que começa no v. 14 são:
a. A conexão entre os vv. 13 e 14 é muito estreita para justificar a
arbitrária separação que um parêntese ocasionaria. 57
b. Colocar entre parêntese dos vv. 14, 15 não resolve a dificuldade
de eliminar esta aparentemente pouco natural conexão — ou a falta de
conexão — entre os vv. 15 e 16.

56
A versão NKJV inclui até ao versículo 13 neste parêntese.
57
Assim também Ridderbos, op. cit., p. 62. Ele descreve a relação entre os versículos 13 e 14 como
uma relação natural.
Romanos (William Hendriksen) 130
Em minha opinião, a solução do problema encontra-se na direção
indicada por J. Denney em seu comentário ao v. 16; The Expositor’s
Greek New Testament (sobre “Romanos”), Vol. II, Grand Rapids, s.f., p.
598, e por Ridderbos na página a que se faz referência, na nota 59. O v.
16 deve vincular-se com os verbos principais de todo o pequeno
parágrafo; o justo juízo de Deus será revelado (v. 5); todos os que pecam
sob a lei serão julgados (v. 12); e os que obedecem a lei serão
declarados justos (v. 13), tudo isso terá lugar e ficará claro “no dia em
que … Deus julgará os segredos dos homens (v. 16). Ridderbos afirma
de modo similar que para entender corretamente o v. 16 deveria antepor-
se “Tudo isso ficará claro” ao que o versículo diz.
Veja-se minha tradução. Similar a esta é a tradução do v. 16 que se
acha na versão de Phillips, ou seja: “Podemos estar seguros de que tudo
isso será levado em conta no dia”, etc. O que temos no v. 16 é quase
certamente um caso de “expressão abreviada.” Sobre este tema consulte-
se C.N.T. sobre João, p. 219.
O dito é suficiente com relação à construção destes versículos.
Quanto ao significado dos versículos 14, 15, note-se o seguinte:
Paulo acaba de dizer que quer seja que uma pessoa tenha pecado
ignorando a lei ou conhecendo-a — quer gentio ou judeu — a mesma
será tratada como transgressora se conduzir-se de modo contrário à santa
lei de Deus. Cada pessoa receberá um castigo ou uma recompensa
proporcional aos seus atos (veja-se v. 6). Isto não apaga o fato de que a
medida de luz que cada um tenha recebido será levado em conta. Veja-se
Amos 3:2; Lc 12:47, 48.
Poderia objetar-se: «Mas é isto justo para com o gentio? Em todo
caso, ele não tem a menor noção da lei de Deus. Por que deve ele receber
castigo algum?»
Como já se esclareceu nos vv. 14, 15, esta objeção não é válida.
Embora o gentio não tenha a lei tal como esta foi originalmente escrita
em tábuas de pedra (Êx 24:12), Deus escreveu em seu coração — com
relação a esta expressão consulte-se Jr 31:33; 2Co 3:3 — o que era
Romanos (William Hendriksen) 131
requerido pela lei. Deus o equipou com um sentido do bem e o mal. Ele
não permitiu que nem mesmo os gentios ficassem totalmente sem algum
testemunho com relação a Deus. Cf. Sl. 19:1–4; At 17:26–28; Rm 1:28,
32. Isto explica o fato de que os gentios sejam “uma lei para si mesmos”.
Por natureza — quer dizer, sem que haja impulso ou condução
proveniente de código escrito algum, ou seja, espontaneamente em certo
sentido — o gentio fará às vezes certas coisas que a lei de Deus requer.
Por exemplo, é amável para com sua esposa e filhos, é generoso para
com os pobres, promove a honestidade no governo, dá amostras de valor
na luta contra o crime, etc.
O que Deus escreveu em seu coração encontra resposta na
consciência deste homem. Como o implica a etimologia da palavra, tanto
em grego como em português (proveniente do latim), a consciência é um
conhecimento que vai junto com (ou compartilhado com) a pessoa. É
esse sentido interno que cada indivíduo tem do bem e do mal; seu
conhecimento moral (em certa medida comunicado divinamente)
manifestado em sua capacidade de pronunciar juízo sobre si mesmo,
quer dizer, sobre seus pensamentos, atitudes, palavras e atos, sejam
passados, presentes ou propostos para o futuro. Como o afirma a
passagem, os pensamentos ou juízos resultantes são já condenatórios ou,
em alguns casos, até laudatório. Para mais sobre a consciência veja-se
Rm 9:1; 13:5. 58
58
τ_ _ργον το_ νόμου. Para uma construção similar veja-se João 6:29, onde “a obra de Deus” quer
dizer a obra requerida por Deus, a obra que está em harmonia com a Sua vontade.
Note-se o gen. absoluto συμμαρτυρούσης α_τ_ν τ_ς συνειδήσεως. Alguém perguntou: “Qual é o
significado do prefixo συν no particípio pres. gen. s. fem. συμμαρτυρούσης? É que a consciência dá
testemunho junto com os pensamentos? Junto com a pessoa? Ou é que devemos supor que embora
originalmente o prefixo fortalecia o significado da forma verbal, esta força adicional eventualmente se
diluiu, como sucedia com frequência em tais casos, resultando, que o que Paulo diz é simplesmente
isto: que a consciência desta gente dava testemunho daquilo que Deus tinha escrito em seu coração?”
Esta explicação provavelmente mereça a preferência.
Outro gen. absoluto é κα_ μεταξ_ _λλήλων τ_ν λογισμ_ν κτλ. Tem isto referência a pensamentos
entre gentio e gentio, ou a pensamentos entre eles mesmos? Provavelmente o segundo, visto que:
a. A expressão modificadora “entre eles mesmos” está situada mais perto de “pensamentos” que de
gentios. A menos que haja uma boa razão para fazê-lo de outro modo — como às vezes sucede, veja-
Romanos (William Hendriksen) 132
16. (Tudo isto ficará claro) no dia em que, segundo o meu evangelho,
Deus, através de Jesus Cristo, julgará os segredos dos homens.
A vinculação que há entre este versículo e o contexto precedente já
foi considerado. O significado do versículo 16, então, aponta ao
seguinte: que no dia do juízo final “tudo isso” — os pensamentos,
palavras, ações, motivações dos homens e as avaliações de Deus —
ficarão claros. É naquele dia que Deus julgará não só as obras visíveis
dos homens mas também até seus secretos (Ec 12:14; Lc 12:3; 1Co 4:5).
Há alguns assuntos adicionais que demandam nossa atenção:
a. Deus julgará “através de Jesus Cristo”.
É verdade que no original o modificador “através de Jesus Cristo”
está situado a bastante distância de “Deus julgará”, e que está muito mais
perto de “segundo o meu evangelho”. É por esta razão que alguns
expositores vinculam “meu evangelho” com “através de Jesus Cristo”.
Chegam à conclusão de que o que o apóstolo diz na verdade é que foi
Jesus Cristo quem havia confiante a ele o evangelho. Agora, em si o fato
de que Paulo recebesse o evangelho das mãos de Cristo não só é certo
mas também é ainda digno de ser enfatizado. Veja-se C.N.T. sobre Gl
1:1. Mas a verdade é que isso não é o que ocupa a mente de Paulo aqui
em Rm 2:16. Aqui, como frequentemente também em outros lugares, a
ênfase recai no fato de que Deus julgará a humanidade por meio de Seu
Filho, Jesus Cristo. Uma passagem que em mais de um aspecto corre
paralela a Rm 2:16 é 1Co 4:5: “Portanto não julguem nada antes do
tempo fixado. Esperem para que volte o Senhor, quem trará à luz as
coisas ocultas na escuridão e exporá os motivos dos corações dos
homens”. Outras passagens em que se ensina, quer diretamente ou por

se o v. 16 — geralmente o melhor é vincular os modificadores com as palavras que estão mais perto
deles, especialmente quando, como no presente caso, a ideia resultante dá um bom sentido à frase.
b. É um fato certo que os pensamentos que enchem a mente como resultado da operação da
consciência operam independentemente; são tão independentes, na verdade, que às vezes tal pessoa
odeia tais pensamentos ou juízos. Até pode elevar-se em rebelião contra eles. Pode chegar a
amaldiçoar os pensamentos com que sua consciência o tortura.
Romanos (William Hendriksen) 133
implicação, a verdade que Deus julga através de Jesus Cristo são Mt
25:31–36; Jo 5:22; At 17:31; 2Co 5:10.
b. Visto que “o mesmo … são as trevas que a luz” diante de Deus
(Sl. 139:12), não deve estranhar que Deus, através de Cristo, julgará
tanto o que se tenha feito na escuridão como o fato à luz do dia.
c. Paulo acrescenta a expressão “segundo o meu evangelho”. Era o
evangelho do apóstolo porque tinha sido entregue a ele em sua plenitude
pelo Senhor, e porque ele, Paulo, o amava. Considere-se suas palavras
“Ai de mim se não pregar o evangelho!” (1Co 9:16). As boas novas não
estão completas sem essa parte muito importante que tem que ver com o
glorioso dia da volta de Cristo para executar seu juízo, um dia de alegria
suprema para todo filho de Deus. Só para mencionar alguns exemplos da
importância que o apóstolo concedia a esta segunda vinda, notem-se as
seguintes passagens: Rm 8:18–23; 1Co 15:20–58; Fp 3:20, 21; 1Ts 1:10;
2:19, 20; 3:13; 4:13–18; 5:1–11, 23, 24; 2Ts 1:5–10; 2:1s; Tt 2:11–14.
Antes de deixar esta importante passagem (Rm 2:14–16), há uma
lição mais que desejo pôr diante da atenção do leitor. Essa lição é: em
nossas opiniões doutrinais devemos procurar evitar os extremos.
Note-se como, por implicação, Paulo nos ensina este princípio. Ele
está no meio do processo de estabelecer a tese de que há somente uma
maneira em que o pecador, quer seja gentio ou judeu, pode conseguir ser
aceito a Deus. Esse caminho tinha sido aberto pelo próprio Deus. Os
gentios necessitam esta “justificação pela fé” visto que “embora
conheceram a Deus, não o glorificaram como Deus nem lhe deram
graças”. Os judeus também a necessitam porque “praticam as mesmas
coisas”. Tanto os gentios como os judeus são, por natureza, maus …
maus … maus.
Contudo, no meio desta seção aparece a afirmação que diz: “os
gentios que não possuem a lei por natureza praticam as coisas requeridas
pela lei”. Em outras palavras, Paulo não se esquece de que há um sentido
Romanos (William Hendriksen) 134
em que é legítimo dizer que os não regenerados podem praticar o bem. 59
A imagem de Deus no homem não foi completamente destruída.
Isto nos faz lembrar Calvino, quem de modo similar evitava
extremos ao escrever sobre este mesmo tema. Em sua obra Institución de
la religión cristiana (Edición de la Fundación Editorial de Literatura
Cristiana, Apartado 4053, Rijswijk (Z. H.), Países Baixos, Vol. I, p.
201), ele fala da universal condição da corrupção humana”. Note-se
também o seguinte “... que o homem de tal maneira se acha cativo sob o
jugo do pecado, que por sua própria natureza não pode desejar o bem em
sua vontade, nem aplicar-se a ele” (p. 213). No entanto, ele também diz:
“… sempre houve alguns que, tomando a natureza como guia,
procuraram durante toda a sua vida seguir a senda da virtude … pois
vemos que alguns por inclinação natural, não somente fizeram obras
heroicas, mas também se conduziram honestissimamente toda sua vida.
Mas temos que advertir que na corrupção universal de que aqui falamos
ainda há lugar para a graça de Deus; não para emendar a perversão
natural, senão para reprimi-la e contê-la dentro” (p. 199).
Quando Aristóteles deu o conselho de que se deveria rapidamente
servir aos que estivessem em necessidade (The Nicomachean Ethics
IX.b), e quando ordenou que em sua morte alguns de seus escravos
fossem postos em liberdade, não estava ele, num sentido, fazendo o
bem? Não registra o Antigo Testamento atos de generosidade feitos por
gentios tais como Ciro (Ed 1:1–4; 5:13–17), Dario (Ed 6:1–12), e
Artaxerxes (Ed 7:11–26)? Note-se o que diz Esdras com relação ao que
59
Esta é a lógica consequência, a menos que se adote a teoria que K. Barth favorece (e que se retroage
até Agostinho), segundo a qual a referência aqui em Rm 2:14 é a cristãos gentios. Veja-se Barth
Kirchliche Dogmatik, Zollikon-Zurich, 1932, Vol. 1, p. 332; e seu Shorter Commentary on Romans,
Londres, 1959, p. 36. Outros que defendem esta opinião são F. Flückiger, em seu artigo “Die Werke
des Gesetzes bei den Heiden (nach Röm. 2:14ff.)” ThZ 1952, pp. 17–42; e Cranfield, op. cit., p. 56.
Objeções:
1. A passagem afirma claramente que os gentios “por natureza” cumprem estas “coisas requeridas
pela lei”. Esta expressão “por natureza” deve significar “antes de sua conversão”.
2. A passagem refere-se a gentios “que não têm a lei”. Isto também, como Rm. 13:8, 9 e muitas
outras referências o indicam, não pode referir-se a cristãos.
Romanos (William Hendriksen) 135
este ultimo fez (Ed 7:27, 28). 2Cr 24:20–22 não dá a impressão de que
Josias fosse um filho de Deus. No entanto, 2Cr 24:2 diz: “Fez Joás o que
era reto perante o SENHOR todos os dias do sacerdote Joiada” [RA].
Quando o secretário de Éfeso acalmou os amotinados (At 19:35–41,
não foi isto em alguma medida uma boa obra? Quando romanos em
postos de grande responsabilidade protegeram o apóstolo Paulo (At
23:12–30; 27:43), não foi isso algo digno de elogio? E o que fizeram
aqueles “bárbaros” que a Paulo e seus companheiros “trataram com não
pouca humanidade; porque acendendo um fogo, receberam a todos,
porque chovia e fazia frio” (At 28:2), não foi acaso uma manifestação de
“bondade”?
É certo, o homem é por natureza “totalmente depravado”, no
sentido em que a depravação invadiu cada aspecto de seu ser: mente,
coração e vontade. Para que se salve, é Deus quem deve salvá-lo. O
homem não pode salvar-se a si mesmo. Isto, no entanto, não pode
significar nem significa que ele é “absolutamente depravado”, tão mau
como pode ser, tão mau como o próprio demônio. Ou acaso não ensinou
Jesus que há um sentido em que até o inconverso pode fazer “o bem”?
Veja-se Lc 6:33.
A lição que Paulo ensina — ou seja, Evitem os extremos! deve ser
bem aprendida.
O resto do capítulo 2 pode ser dividido nas seguintes unidades:
a. Uma descrição da autoexaltação do judeu (vv. 17–20), que leva a:
b. Uma série de perguntas para um autoexame. Paulo pergunta
como se atrevem os judeus a acusar os gentios dos pecados que eles
mesmo cometem (vv. 21–23).
c. Uma grave acusação (v. 24).
d. Um retrato do contraste entre o verdadeiro judeu e aquele que só
o é nominalmente; e entre a circuncisão do coração e a circuncisão literal
(vv. 25–29).
Romanos (William Hendriksen) 136
A. Uma descrição da autoexaltação judaica

17–20. Mas tu, se te chamas judeu e confias em (a) lei e te jactas de


tua relação com Deus e, tendo sido instruído na lei, conheces (sua)
vontade, e aprovas as coisas que realmente valem a pena; 60 e estás
convencido de que és guia para os cegos, luz para os que estão na
escuridão, instrutor dos néscios, mestre dos imaturos, 61 por que na lei tens
a encarnação do conhecimento e da verdade …
Embora os judeus tenham sido privilegiados de um modo único e
desfrutavam de mais vantagens que todos os outros, não pareciam notar
que estas bênçãos implicavam obrigações. Muitas destas pessoas, em vez
de usar seus dotes superiores para ajudar os que estavam em
necessidade, simplesmente alardeavam suas prerrogativas. Esta atitude
de jactância expressava-se de diversas maneiras, como se indicará.
Em primeiro lugar, eles se jactavam do próprio fato de ser judeus, e
provavelmente pensavam: “Visto que somos judeus, somos melhores que
todos os outros”. Não era acaso certo que o judeu tinha direito a
considerar-se membro da raça escolhida? Leia-se Êx 19:6; Dt 10:15; Is
43:20, 21.
Agora, Paulo não condena aqui irrestritamente todo orgulho de raça
ou nacionalidade. Não proclamou Mardoqueu, provavelmente com um
sentido de orgulho: “Sou judeu”? Veja-se Ester 3:4. No entanto, há um
mundo de diferença no espírito e o propósito com que uma pessoa diz
isso. Quer dizer: “Pela graça imerecida e soberana de Deus sou adorador
do único Deus verdadeiro e o considero um alto privilégio o poder Lhe
dar a conhecer todas minhas necessidades e desejos, e dedicar minha
vida completamente a Ele e à Sua causa. Como resultado, nem posso
nem quero inclinar-me diante de, nem render homenagem a nenhuma
outra pessoa ou coisa”? Esse foi, sem dúvida, o espírito com que
Mardoqueu disse a outros que ele era judeu. Mas quando uma pessoa

60
Ou: as coisas que são excelentes.
61
Ou: de crianças.
Romanos (William Hendriksen) 137
diz: “Eu sou judeu”, querendo significar: “Por isso sou melhor que você.
Ouça-me com cuidado e faça tudo o que lhe digo”, então essa pessoa
está pondo sua confiança em si mesmo, não em Deus.
“… e confia em (a) lei.” Novamente aqui é preciso levar em conta
que há um sentido em que confiar ou descansar na lei de Deus é o
correto. Não é a lei de Deus a norma pela qual deve regular-se a conduta
da pessoa? E não se “deleitava” o salmista na lei de Deus? Leia o Salmo
119. No entanto, os judeus que Paulo tinha em mente cometiam um
duplo erro com referência à sua confiança na lei: (1) a mera posses da lei
e sua instrução na mesma lhes dava um sentido de segurança e
superioridade; e (2) criam que por meio de um esforçado e continuado
esforço por obedecer essa lei eles podiam, de algum modo, alcançar a
salvação.
“… e te jactas de tua relação com Deus”, como se esta relação —
mesmo no caso de haver — tivesse sido ocasionada por boas obras!
Aqui, pela primeira vez em Romanos, o apóstolo usa o verbo
jactar-se ou alardear. A palavra utilizada no original 62 encontra-se no
Novo Testamento limitada quase exclusivamente aos escritos de Paulo.
Aparece cinco vezes em Romanos (Rm 2:17, 23; 5:2, 3, 11), duas em
Gálatas (Gl. 6:13, 14); uma em Efésios (Ef 2:9); uma em Filipenses (Fp
3:3); mas aparece muito mais frequentemente na correspondência aos
coríntios: cinco (acaso seis) vezes 63 em 1 Coríntios, e não menos de
vinte vezes em 2 Coríntios. De modo que no total Paulo utiliza este
verbo 34 ou 35 vezes. Também é encontrado em Tiago 1:9; 4:16. 64
Às vezes este verbo é usado num sentido favorável; por exemplo:
“… longe esteja eu de gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus

62
Aqui καυχ_σαι, 2ª. pres. s. do pres. indicat (por καυχ_) de καυχάομαι, jactar-se, exultar-se, gloriar-
se, orgulhar-se de.
63
Seis vezes, se este verbo for autêntico em 1Co 13:3.
64
O substantivo cognato καύχημα ocorre dez vezes nas epístolas de Paulo; uma vez em Hb 3:6;
enquanto que καύχησις também aparece dez vezes nos escritos de Paulo; uma vez em Tg 4:16. O
composto κατακαυχάομαι aparece somente em Rm 11:18; Tg 2:13; 3:14. Veja-se também R.
Bultmann, Th. D. N. T., Vol. III, pp. 648–654.
Romanos (William Hendriksen) 138
Cristo” (Gl 6:14). Há algo assim como gloriar-se no Senhor (2Co 10:17),
ou em Cristo Jesus (Fp 3:3). O apóstolo até chega a gloriar-se em sua
fraqueza, porque quando ele é fraco, então (no Senhor) ele é forte (2Co
12:9, 10).
Mas o uso frequente deste verbo é, em um sentido, desfavorável.
Por exemplo, os coríntios se jactavam ou se gloriavam com referência a
homens, quase como se devessem a estes sua salvação (1Co 1:12, 29).
De modo que Paulo lhes diz: “Basta de gloriar-se nos homens!” (1Co
3:21; cf. 4:7). “Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (2Co 10:17)
Mas embora o gloriar-se ou exultar-se no Senhor seja maravilhoso,
jactar-se da própria relação íntima com Deus, como se tê-la fosse um
logro humano, é algo muito pecaminoso. E isto é o que faziam os judeus
que Paulo tinha em mente.
“… e, tendo sido instruído na lei, conheces (sua) vontade, e aprovas
as coisas que realmente valem a pena …”
Embora seja possível vincular “tendo sido instruído na lei” somente
com “aprovas as coisas que realmente valem a pena”, não vejo razão
pela qual esta instrução que procede de (como resultado, baseada em) a
lei não possa ser também vinculada com “conheces (sua) vontade”.
Certamente tanto o conhecimento da vontade de Deus como a habilidade
e o desejo de categorizar as coisas essenciais acima das não essenciais,
eram o resultado de ter sido “catequizado” na lei. Com relação a “ser
catequizado” ou “instruído” veja-se o C. N. T. sobre Lc 1:4, p. 74. 65
Como resultado de ter sido catequizado na lei, supunha-se que o
judeu tivesse a capacidade e o desejo de aprovar as coisas que realmente
valiam a pena. Ele se considerava uma pessoa que sabia a diferença entre
o essencial e o não essencial, preferindo o primeiro. Em lugar de “e
aprovas as coisas que realmente valem a pena” ou “as coisas essenciais”,
também é possível a tradução “e aprovas as coisas que são excelentes”.

65
O verbo κατηχέω é usado também com referência à instrução no evangelho. Veja-se At 18:25; Gl
6:6. Em At 21:21 tem o sentido de informar.
Romanos (William Hendriksen) 139
Em seu significado estas duas traduções só diferem levemente. Veja-se
C. N. T. sobre Fp 1:10.
Então o que Paulo diz é: “Se te chamas judeu e confias na lei … e,
tendo sido instruído na lei, conheces (sua) vontade, e aprovas as coisas
que realmente valem a pena …” Ele agora acrescenta: “e se estás
convencido que és guia para os cegos”, etc.
Notem-se os seguintes pontos paralelos:
(1) guia para os cegos.
As Escrituras mencionam com grande frequência a cegueira física.
Veja-se, por exemplo, Lv 21:18; 22:22; Dt 15:21; 28:28, 29; 2Sm 5:6; Sf
1:17; Jo 5:3. Esta era devido a diversas causas, entre as quais bem podem
ter estado o meio ambiente pouco salubre, a enfermidade venérea, ou a
falta de cuidado óptico imediatamente depois do parto. Cristo, durante a
Sua peregrinação pela terra, devolveu a visão a um bom número de
cegos (Mt 9:27–30; 11:15; 12:22; 20:30–34; Mt 8:22–26; 10:46–52; Lc
7:21; Jo 11:37). Jesus também ensinou ao Seu auditório a tratar os cegos
com especial bondade, convidando-os para seus banquetes, etc. (Lc
14:13, 21).
Eram necessários guias para guiar os cegos (2Rs 6:19; Mt 12:22).
Deviam ser guias confiáveis. Veja-se Dt 27:18.
É compreensível que, por meio de uma transição fácil, a que
provavelmente já era evidente em Dt 27:18, a cegueira física se
transformasse no símbolo da cegueira intelectual, moral e espiritual (Is
42:19; 56:10; Rm 11:7, 8; 2Co 4:4; 1 Jo 2:11). Note-se em especial a
impressionante transição da uma (a física) à outra (a espiritual) em Jo
9:1, 7, 39–41.
Muito triste, por certo, era a condição das pessoas espiritualmente
cegas se fossem conduzidos por guias igualmente cegos (Mt 15:14;
23:16–24; e cf. Lc 6:39).
Portanto, quando Paulo agora escreve: “se estás convencido de que
és guia para o cego”, não está ele querendo dizer “Assegura-te de ser um
guia confiável!”? É fácil entender que muitos judeus, instruídos no
Romanos (William Hendriksen) 140
templo e/ou na sinagoga, devem com efeito ter-se considerado guias
competentes daqueles não tão privilegiados como eles.
(2) luz para os que estão na escuridão
A Bíblia dos judeus era e é um livro missionário, desde o princípio
— “Em sua semente serão benditas todas as nações da terra” (Gn 22:18)
— até o fim — “Porque de onde o sol nasce até onde se põe, é grande o
meu nome entre as nações (Ml. 1:11). E entre o princípio e o fim lemos:
“Eu te pus por luz às nações” (Is 42:6). Veja-se também Is 9:2; 49:6;
58:8; 60:3.
Até certo ponto, os judeus entenderam isso. Por viver em meio de
um meio ambiente pagão — especialmente durante o cativeiro, mas em
certa medida mesmo antes, e em algum sentido também durante os dias
da presença de Cristo sobre a terra — eles não somente se defenderam
dos ataques pagãos contra seu monoteísmo, mas também levaram a
batalha ao campo inimigo atacando o politeísmo e a iniquidade dos
gentios, especialmente a perversão sexual. Também os santos livros
foram traduzidos a idiomas que os gentios podiam entender. Até certo
ponto, então, os judeus eram uma bênção para as nações que os
rodeavam. Muitos pagãos encontraram a Cristo através do degrau da
sinagoga, visto que foi onde Jesus e mais tarde os Seus apóstolos,
especialmente Paulo, proclamaram o evangelho da salvação. Veja-se C.
N. T. sobre Marcos 1:39, incluindo A sinagoga durante a época do Novo
Testamento, pp. 83–85.
Esse é um lado do quadro. O outro é descrito por Jesus em Mt
23:15 nestas palavras: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! porque
percorreis mar e terra para fazer um só prosélito, e quando chega a sê-lo,
vós o fazeis duas vezes mais filho do inferno que vós mesmos”. Não era
tanto o propósito dos escribas e fariseus mudar um gentio num judeu;
não, ele devia chegar a ser um fariseu pleno, legalista, ritualista e
fastidioso com relação aos mais mínimos detalhes, cheio de zelo fanático
por sua nova religião de salvação pelas obras. Como o indica Jesus,
breve este novo converso seria mais fariseu que o fariseu em sua
Romanos (William Hendriksen) 141
intolerância, visto que é um fato comprovado que os convertidos
frequentemente se transbordam, transformando-se em devotos fanáticos
de sua nova fé.
Se tivermos tudo isso em mente, será mais fácil entender a
observação de Paulo “e se estás convencido de que és … luz para os que
estão na escuridão …”.
(3) instrutor dos néscios
O que Paulo provavelmente tenha querido dizer era: «se estás
convencido de que tenhas sido dotado de tanta sabedoria e conhecimento
que estás cabalmente capacitado para ensinar àqueles que (segundo tua
estimativa) são decididamente néscios …»
(4) mestre dos imaturos
Uma tradução que merece consideração e que talvez pudesse ser a
correta é “mestre de crianças [ou bebê]”. Ver 1Co 3:1; Ef 4:14; Hb 5:13.
É fácil compreender que um judeu, tendo sido instruído no conhecimento
da lei desde sua juventude, pudesse considerar-se cabalmente capacitado
para dar instrução aos gentios; ou, em caso de considerar que esta era
uma tarefa para seus mestres, os escribas (cf. Mt 23:15), e preferisse não
aproximar-se muito daqueles que em sua opinião eram impuros, estaria
disposto ao menos a ensinar a novos conversos (ao judaísmo) do
paganismo. Paulo acrescenta: “porque na lei tens a encarnação [ou
depósito] do conhecimento e da verdade”. Que a lei de Deus, uma vez
tirada a carga de restrições e modificações feitas pelo homem, era
certamente um tesouro sem preço e inesgotável, é algo que não pode
negar. A lei dos Dez Mandamentos, todo o Pentateuco, e mais, o inteiro
Antigo Testamento, eram por certo uma fonte de conhecimento (Sl.
119:66) e de verdade (Sl. 119:142).
E se agora, por um momento, resumimos o que diz Paulo — «Se
estás convencido de que és guia para o cego, luz para os que estão em
escuridão, instrutor dos néscios, mestre dos imaturos, porque na lei tens
a encarnação do conhecimento e da verdade …”, não parece que Calvino
estava certo quando caracterizava esta parte da oração de Paulo como
Romanos (William Hendriksen) 142
matizada por um toque de zombaria? O que o apóstolo provavelmente
está dizendo é: “Se realmente pensas que és tão erudito e sábio e
competente, não é hora de começares a examinar-te a ti mesmo?

B. Uma série de perguntas para o autoexame

21–23.… tu, então, que ensinas a outro, não ensinas a ti mesmo? Tu


que pregas que não se deve roubar, roubas? Tu, que dizes que não se deve
cometer adultério, cometes adultério? Tu, que aborreces os ídolos, roubas
os templos? Tu que te jactas da lei, desonras a Deus por (tua)
transgressão da lei?
Digamos primeiro algo com relação à construção desta passagem.
Há aqueles que sustentam que os versículos 17–23 contêm vários
anacolutos, quer dizer, expressões em que a construção gramatical com
que a oração começa, não é completada: a condição (ou prótase) não tem
a esperada conclusão (ou apódose). A resposta é que embora em termos
estritos haja algo de fato nesta afirmação, no sentido mais amplo esta
acusação é infundada. O que Paulo diz aqui na verdade significa: «Se te
apresentas como uma pessoa que confia em Deus e em Sua lei e ainda
ensinas a outros o significado desta lei e lhes inculcas que devem viver
em harmonia com ela, como é que tu mesmo não praticas o que pregas?»
Outro assunto que tem que ver com a construção é este: “Deveria
traduzir-se o versículo 23 como uma afirmação (como o faz, por
exemplo, a Bíblia de Jerusalém), ou como uma pergunta?” O original
permite ambas as possibilidades. Aqueles que favorecem a primeira
alternativa baseiam sua opinião em que o versículo 24 é uma
confirmação — note-se o γάρ — pelo que o precede. Mas, como pode
ser confirmação de uma pergunta?
Na superfície este raciocínio soa convincente. Mas, será assim? O
versículo 23 pode até ser considerado como pergunta se tivermos em
mente, com relação ao versículo 24, a possibilidade de um discurso
abreviado. Veja-se C.N.T. sobre João, p. 219. O versículo 24 então
Romanos (William Hendriksen) 143
poderia ser formulado assim: «(faço esta pergunta) porque por causa de
vós o nome de Deus é blasfemado entre os gentios».
Mas, para além disso, a razão pela qual eu, junto com a maioria dos
tradutores, favorecemos a ideia de que o versículo 23 é uma pergunta é
que tanto de forma como em conteúdo harmoniza com as quatro frases
precedentes (com relação a ensinar, roubar, cometer adultério e roubar
templos).
É interessante notar com que precisão concordam as fontes judaicas
com os acusações implícitas que Paulo faz aqui. A pergunta: “Tu que
ensinas a outros, por que não ensinas a ti mesmo?” surge vez após vez
nos escritos rabínicos. Vale a pena, por exemplo, notar a seguinte
referência: “Há muitas pessoas que se ensinam a si mesmas, porém não
ensinam a outras, muitas que ensinam a outras, mas que não se ensinam
a si mesmas, muitas que se ensinam a si mesmas e a outras, e muitas que
nem se ensinam a si mesmas nem a outras” (S. Bk., III, p. 107).
Podem achar-se exemplos de roubos que ocorriam entre os
“eruditos” na mesma fonte, na p. 107; de adultério, nas pp. 109–111 —
às vezes casos muito escandalosos entre os rabinos! —; e de roubo de
templos, nas páginas 113–115.
Que a vida de muitos escribas e/ou fariseus não era consistente com
os seus ensinos, e que certamente não estava em consonância com a
santa lei de Deus tal como a achamos nas Escrituras, é algo que Jesus
revela claramente (Mt 23; Mc 7:9–13; Lc 11:37–52).
Às vezes afirma-se que não há prova na Escritura que indiquem que
os judeus podiam ser legitimamente acusados do crime de roubar
templos. No entanto, não existe alguma evidência que pudesse apontar
indiretamente a que tal coisa realmente ocorria? Note-se o seguinte:
Se algo que se assemelhasse a este mal alguma vez tivesse ocorrido,
a se alguma vez tivesse havido perigo de que ocorresse, por que teria
sido então tão severamente proibido em Dt 7:25? Além disso, o fato que
o escrivão de Éfeso, ao apaziguar à multidão em At 19:37, afirmasse:
“Vós trouxestes aqui estes homens [Paulo e seus companheiros de
Romanos (William Hendriksen) 144
viagem], embora eles nem roubaram templos nem blasfemaram da nossa
deusa”, não indica acaso que tal sacrilégio (o roubo de templos) não era
algo totalmente desconhecido? Além disso, por que Paulo o teria
mencionado aqui em Rm 2:22 se os judeus fossem totalmente inocentes
desta acusação? 66
A pergunta final de Paulo é: “Tu, que te jactas da lei, desonras a
Deus por (tua) transgressão da lei?” A própria pergunta mostra que o
apóstolo percebia que entre seus oponentes judeus havia um forte
contraste entre teologia e prática, entre doutrina e vida. Para conseguir
ser aceitos por Deus com base na obediência à Sua lei, tal obediência
devia, naturalmente, ser perfeita, um objetivo inalcançável aqui na terra.
Na verdade, no que respeita aos oponentes de Paulo, justamente o
contrário era verdade, segundo ele o indica agora por meio de:

C. Uma grave acusação

24. Como está escrito: “Por causa de vós o nome de Deus é


blasfemado entre os gentios”.
A citação se baseia em Is 52:5. É uma adaptação da versão LXX 67
da passagem. O contexto, porém, é um tanto diferente nos dois casos. A
passagem do Antigo Testamento leva em consideração que os gentios
supunham que quando uma nação fosse conquistada e deportada,
também seu deus foi conquistado. Assim que a nação conquistada é
blasfemada junto com seu deus. Cf. Ez 36:20. Aqui em Romanos 2:24

66
Some-se a tudo isto a referência a roubo de templos em Josefo, Antiguidades IV. 207. sem que
tenha valor corroborativo, mas muito interessante para passá-lo de comprimento em silêncio, está a
menção a roubo de templos que há numa narração fictícia produzida por um antissemita. Segundo este
conto, relatado por Josefo (contra Apion I.310, 311), um grupo de leprosos judeus condenados, tendo
sido enviados ao deserto para perecer ali, partem numa viagem à terra que mais tarde se chamaria
Judeia. Uma vez chegados ali edificam uma cidade que se chamou Ierosyla (Jerusalém), quer dizer,
segundo esta etimologia totalmente corrupta, “a cidade dos ladrões de templos”!
Falando agora mais seriamente, veja-se a análise do verbo _εροσυλέω e do substantivo _ερόσυλος
que faz G. Schrenk em Th. D. N. T., Vol. IV, pp. 255–257.
67
δι_ _μ_ς δι_ παντ_ς τ_ _νομα μου βλασφημε_ται _ν το_ς _θνεσιν.
Romanos (William Hendriksen) 145
apresenta-se os gentios pensando da seguinte maneira: o povo (Israel)
conduz-se malvadamente; como resultado, seu deus também deve ser
mau, que a pessoa se parece com o seu deus.
Ambas as instâncias são similares, no entanto, nisto: em ambos os
casos Israel não foi o que, segundo Romanos 2:19, pretendia ser, ou seja,
luz para os que andavam em trevas. Foi por esta razão que Israel tinha
sido deportado e seu Deus tinha sido objeto de zombaria. Era também
por essa razão que o nome de Deus era blasfemado entre os gentios nos
dias de Paulo.

D. Descrição do judeu verdadeiro


25–27. A circuncisão certamente é benéfica, mas só se pões a lei em
prática. Mas se és transgressor da lei, tua circuncisão tornou-se
incircuncisão. Por isso, se o incircunciso guardar os requisitos da lei, não
será considerada sua incircuncisão como circuncisão? Com efeito, aquele
que é fisicamente incircunciso, mas guarda a lei condenará a ti, que,
embora estejas provido do código escrito e da circuncisão, és transgressor
da lei.
Paulo já demonstrou que os judeus não podem construir o castelo
de sua confiança sobre o fato que eles, e não os gentios, possuíam a lei,
na qual tinham recebido instrução. Agora ele passa a lhes comprovar que
eles tampouco podem basear seu sentido de segurança na circunstância
que eles, e não os gentios, foram circuncidados. Paulo argui que a
circuncisão não acompanhada pela obediência à santa lei de Deus carece
de valor. O mesmo é certo, naturalmente, da água do batismo e do pão e
vinho da santa comunhão. Como sinais e selos estas coisas têm valor,
mas só quando estão acompanhadas pela obediência. Uma pessoa
circuncidada que é transgressora da lei é igual a uma incircuncisa.
Também o inverso é verdadeiro: o incircunciso que em certo
sentido (veja-se sobre Rm 2:14) guarda a lei de Deus é, aos olhos de
Deus, igual a uma pessoa circuncidada.
Romanos (William Hendriksen) 146
Isto faz com que Paulo se dirija ao seu oponente judeu como segue:
“Com efeito, aquele que é fisicamente incircunciso mas guarda a lei
condenará a ti, que embora estejas provido do código escrito e da
circuncisão, és transgressor da lei”. 68 Também aqui, como sempre, Paulo
concorda com Jesus. Vejam-se Mt 12:41, 42; Lc 11:31, 32.
Paulo aqui está fazendo um resumo. O que ele diz é que nenhum
dos fundamentos sobre os quais os judeus com frequência baseavam sua
confiança — a possessão da lei ou o ter sido circuncidado — bastavam
para a salvação. Ele já se espraiou com relação ao primeiro ponto, tendo
demonstrado que os judeus a quem ele tem em mente não observaram a
lei (veja-se versículos 13, 17–24). De fato, ninguém pode guardar a lei
em todos os seus detalhes. Por natureza não há ninguém que seja sequer
capaz de ser fiel aos seus princípios fundamentais.
E agora o apóstolo demonstra que também o segundo fundamento
da confiança judaica é inseguro: uma circuncisão que é simplesmente

68
Note-se κα_ κρινε_ _ _κ φύσεως _κροβυστία τ_ν νόμον τελο_σα σ_ (2:27a); que significa: “e os
fisicamente incircuncisos que guardam a lei serão condenados [ou julgados]”, e que pode ser
interpretado como uma oração elíptica condicional; e que pode ser interpretado como uma oração
elíptica condicional: “e se o fisicamente incircunciso guarda a lei, ele te condenará”, o que, por sua
vez, pode ser transposto assim: “E [ou: Certamente] aquele que é incircunciso fisicamente mas guarda
a lei te condenará”. Veja-se também a nota 119.
δι_ γράμματος κα_ περιτομ_ς. Notem-se as diversas interpretações que se a deram a διά, segundo
figura aqui:
(1) porque, enquanto que, Gram. N. T. (Bl.-Debr.), parágr. 223, p. 119.
(2) modo e meio desvanecendo-se um no outro, Gram. N.T., p. 583.
(3) acompanhado de, com a vantagem de, A. T. Robertson, Word Pictures, Nova York e Londres,
1933, Vol. IV. p. 340.
(4) circunstância concomitante, Cranfield, p. 174.
Pareceria que meio (ou agência) e concessão (embora) estão ambas incluídas nesta oração. O
pensamento parece estar algo comprimido, como sucede com frequência tanto ao escrever como ao
falar. A VRV 1960 diz: “[você] que com a letra e com a circuncisão é transgressor da lei”. Note-se o
“com” (ou seja, circunstância concomitante). Mas, novamente, não sugere um “com” deste tipo na
verdade um “embora”? Às vezes ouvimos dizer: “Com todo seu conhecimento, pode ser tão néscio”.
Não tem este “com” o significado de “apesar de ter” ou “embora tenha”? Do mesmo modo, em Rm
2:27b muitas traduções adotaram “embora” ou “apesar de” como melhor tradução do grego neste caso
particular. Estou de acordo.
Romanos (William Hendriksen) 147
externa não é de modo nenhum melhor que o cumprimento formal da
letra da lei. A letra mata; o Espírito comunica vida (Rm 7:6; 2Co 3:6).
Não é claro, então, que o que Paulo na verdade está fazendo é
preparar o leitor ou ouvinte para a enérgica afirmação ou reafirmação da
tese: «À parte da justiça livremente concedida por Deus, ninguém pode
chegar jamais à condição de ser aceito por Deus»? Veja-se Rm 1:17;
3:21–24; 5:1; etc.

E. Conclusão, o ponto culminante

28, 29. Porque não é um (verdadeiro) judeu aquele que só o é por


fora, nem é a (verdadeira) circuncisão algo externo e físico. Mas o
(verdadeiro) judeu é aquele que o é internamente; e a (verdadeira)
circuncisão é um assunto do coração, pelo Espírito, não pelo código
escrito. O louvor de uma pessoa tal não provém do homem mas de Deus. 69
Os oponentes que Paulo tinha entre os judeus edificavam sua
esperança para a eternidade no mero fato de que eram judeus e por esta
razão, conforme pensavam eles, o povo escolhido de Deus. Isto nos
lembra os dias de João Batista, quando esta gente, de maneira similar,
tinha sua confiança posta na circunstância paralela de que eles eram
“semente de Abraão” (Mt 3:9; Jo 8:33, 39).
Paulo, por outro lado, traça uma rigorosa linha de distinção entre
judeu e judeu: (a) a pessoa que é judia somente no exterior; quer dizer,
judeu em razão de sua descendência física ou biológica e nada mais; (b)
a pessoa que é judia não só no exterior mas também internamente; quer
dizer, um judeu aos olhos dAquele diante de quem os segredos dos
corações e das vidas dos homens são um livro aberto (Sl. 139:1–6; Rm
2:16; Hb 4:13).
De igual modo, ele sublinha a distinção entre (a) a mera circuncisão
física, a cisão do prepúcio do varão, em cumprimento estrito do “código

69
Certamente este é um notável caso de discurso abreviado. As palavras entre colchetes estão
implícitas. Aqui concordo com Cranfield, p. 175.
Romanos (William Hendriksen) 148
escrito”, a letra da lei (cf. Gn 17:10–13; Lv 12:3); e (b) a circuncisão que
tem que ver com o coração: tirar (em princípio) tudo o que tem de mau
nesse coração; a renovação do coração (cf. Lv 26:41; Dt 10:16; 30:6; Jr
4:4; 9:26; Ez 44:7), que é obra do Espírito Santo (Rm 7:6; 2Co 3:6, 18;
Gl 5:16–23). 70
Com relação ao judeu que o é também internamente e cujo coração
consequentemente foi circuncidado pelo Espírito Santo, Paulo diz: “O
louvor de uma pessoa tal não provém do homem mas de Deus”. Este é
um jogo de palavras, jogo que se retroage até o livro de Gênesis:
“De novo [Leia] concebeu e deu à luz um filho; então, disse: Esta
vez louvarei o SENHOR. E por isso lhe chamou Judá” (Gn 29:35, RA)
“Judá, teus irmãos te louvarão” (Gn 49:8, RA)
A palavra JUDEU, derivada de JUDÁ, significa LOUVADO. 71
Como bem se vê nas Escrituras, muitos dos judeus se louvavam a si
mesmos (Rm 2:17–20) e estavam ansiosos de receber louvor da parte dos
homens (Mt 6:1–8, 16–18; 23:5–12). Por isso, não mereciam ser
chamados “judeus”, visto que, segundo Rm 2:29, um judeu genuíno é
aquele cujo louvor não provém dos homens mas de Deus.
Neste ponto da explicação de Romanos alguns expositores se
apressam a indicar que quando Paulo põe tal ênfase no fato que o único
verdadeiro judeu é aquele que o é internamente, ele não pode querer
dizer que não há ricas bênçãos reservados para os judeus como povo,
tanto para crentes como para não crentes. Para substanciar sua posição
referem-se a Rm 9:1–11:36. Não seria melhor esperar para tirar
conclusões daquela remota seção até que cheguemos a ela? Neste
momento tudo o que sabemos é que o apóstolo afirma que “não é um
(verdadeiro) judeu aquele que só o é por fora … mas o verdadeiro judeu
70
O versículo 29 não dever ser traduzido “pelo espírito”, como se fizesse referência ao espírito
humano, porque,
(1) depois de “do coração”, fazê-lo seria redundante; e
(2) como já se indicou, esta renovação é nas Escrituras atribuída ao Espírito Santo.
71
A palavra hebraica Judá se escreve ‫ י ְהוּדָ ה‬, e judeu ‫ י ְהוּךּי‬. Estas formas estão claramente vinculadas
com o Hif‘il de ‫ י ָדָה‬arrojar, embora a natureza da relação é escura.
Romanos (William Hendriksen) 149
é aquele que o é internamente … cujo louvor não provém dos homens,
mas de Deus”. Que Paulo também usa o termo judeu num sentido mais
geral e físico é algo abundantemente claro. Ele fez em Rm 1:16; 2:9, 10,
17, 28, e está prestes a voltar a fazê-lo (Rm 3:1), e o voltará a fazer mais
uma vez em Rm 10:12.
Como resultado, e usando agora o termo “judeu” nesse sentido mais
geral, o apóstolo continua:
Romanos (William Hendriksen) 150
ROMANOS 3
ROMANOS 3:1-8
3:1. Qual é, pois, a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da
circuncisão? [RA]
Nesta altura pareceria que Paulo estivesse ouvindo uma objeção. É
como se alguém dissesse: «Se para chegar a ser algo a pessoa deve ser
um judeu internamente e deve ter experimentado a circuncisão do
coração, há então alguma vantagem em ser judeu no sentido literal mais
amplo, ou em ter sido circuncidado fisicamente?” Há alguma vantagem,
de qualquer tipo que seja, em pertencer à nação judaica?
Paulo responde:
2. Muita, sob todos os aspectos. Principalmente porque 72 aos judeus
foram confiados os oráculos de Deus [RA].
Entre as muitas passagens que demonstram que os judeus como
povo receberam privilégios acima de todas as outras nações estão os
seguintes: Sl. 147:20; Is 5:5, 6; Am 3:2, 3; Mt 22:1–8; Lc 13:6; 14:16,
17, 24; e especialmente Rm 9:4, 5, onde o apóstolo volta para este tema
e o ampla.
Quando Paulo faz uma lista mentalmente das prerrogativas
judaicas, há um ponto que sobressai acima de todos os outros, ou seja,
que foi outorgado aos judeus, e não a nenhuma outra nação, o peculiar
privilégio, a alta honra, de ser os custódios dos oráculos de Deus, toda
essa revelação especial feita a Israel, que consistia não somente de
mandamentos mas também de predições e promessas.
Tudo isso tinha sido confiado aos judeus, para ser aceito por fé,
obedecido (na medida do aplicável), tido em honra, e transmitido a
outros.

72
É impossível determinar se γάρ é autêntico.
Romanos (William Hendriksen) 151
Os privilégios implicam deveres; as honras andam de mãos dadas
com as responsabilidades. Poderia afirmar-se honestamente que Israel se
fez cargo destas responsabilidades, que tinha sido fiel ao que lhe havia
sido confiado? E não sendo assim, o que se poderia dizer? Diz Paulo:
3, 4. E o que dizer se alguns (deles) foram infiéis? 73 Acaso sua
infidelidade anula a fidelidade de Deus? De modo algum! Seja Deus
verdadeiro, e toda pessoa mentirosa. Como está escrito: “Para que possas
ser provado justo em tuas palavras e prevalecer em teu juízo”.
Que Israel como nação tinha sido abençoada com muitos benefícios
é algo que não pode ser questionado. Mas acaso este fato, considerado
em si mesmo, garante um futuro promissor? Não necessariamente. Se os
judeus esperarem a bênção especial de Deus, é melhor serem fiéis ao que
lhes foi confiado. Se não cumprir em ser uma bênção para as nações,
uma luz para as nações, seu futuro é escuro.
Ilustração: Um jovem se inscreve na universidade. Desfruta das
seguintes vantagens sobre muitos outros: provém de uma família de boa

73
Dando por sentado que nesta passagem τ_ν πίστιν το_ θεο_ significa a fidelidade de Deus, é
necessário mencionar, entretanto, que há uma considerável diferença de opinião com relação ao
significado do verbo _πίστησαν e do substantivo _πιστία. Alguns pensam que nesta passagem o
substantivo significa tanto a falta de fé como a falta de fidelidade (Greijdanus). Outros aceitam “falta
de fé” (Sanday e Headlam). Entre as traduções que têm aceito este ponto está a RA 1999 e as versões
em inglês A.V., A.R.V., N.A.S., Berkeley, Norlie, N.I.V. Entre as que favorecem “foram infiéis”
(=indignos de confiança) para o verbo, e “infidelidade” para o substantivo estão, em versões em
português, a BJ. Em inglês, entre os expositores, encontramos Bultmann, Th.D.N.T., Vol. VI, p. 208;
L.N.T. (A. e G.), p. 84, Bruce, Hodge, Lenski, Ridderbos, Van Leeuwen e Jacobs. Entre os tradutores
ao inglês que apoiam este ponto de vista estão Beck, Williams, Phillips, R.S.V., N.E.B., Weymouth,
Moffatt, Good News for Modern Man, Jerusalem Bible, e no idioma holandês, a Nieuwe Vertaling.
Sem dúvida há lugar para a diferença de opiniões, e, como o indicaram Cranfield e outros, há uma
relação muito estreita entre “falta de fé” e “falta de fidelidade”. Aquele que carece de fidelidade
também carece de fé. Contudo, também eu me inclino a favor de “foram infiéis … infidelidade”. A
razão está em que esta tradução concorda melhor com o presente contexto no qual a fidelidade de
Deus é contrastada com a _πιστία humana. Embora o significado da mesma palavra em outras
passagens da mesma epístola é importante, não é o contexto imediato ainda mais importante? Além
disso, não é somente o versículo 3 aquele que aponta nesta direção, visto que aqui a infidelidade dos
homens é contrastada com a fidelidade de Deus, mas também o faz o versículo 4, onde a veracidade
divina é sinônima da anterior fidelidade divina, e onde a mendacidade humana nos faz lembrar a
similar infidelidade humana.
Romanos (William Hendriksen) 152
posição, pelo que o pagamento do aluguel de seu quarto, o custo de sua
comida e a tarifa de seus estudos não são problema. Desfruta de
excelente saúde e até é abençoado em possuir uma inteligência acima da
média. A universidade na qual estuda é de alto nível. Seus professores
são dos melhores. Mas apesar de todas estas vantagens, ele nunca chega
a diplomar-se. Por que? Porque não tira o melhor partido possível de
suas oportunidades. Desperdiça seu tempo, é folgazão, infiel no que lhe
foi confiado.
Como Rm 2:21–22 indicou, algo semelhante aconteceu no caso de
Israel. Também ela, apesar de todos os seus privilégios especiais,
mostrou-se infiel no que lhe tinha sido confiado, e por causa desta
deslealdade o nome de Deus era blasfemado entre os gentios (Rm 2:24).
Como povo, então, se não chegasse a ter uma mudança radical de
atitude, não podia antecipar um futuro glorioso.
Quer dizer Paulo que todos os judeus estavam perdidos? Não o faz.
Com muito tato e misericórdia ele afirma (aqui em Rm 3:3) que “alguns”
deles eram infiéis. Pareceria que já agora ele faz uma distinção entre
“Israel” e “Israel” (cf. Rm 9:6). Em outra passagem onde o apóstolo
utiliza a palavra “alguns” em cada um dos quatro versículos
subsequentes, esta designação indefinida parece significar “a maioria”
(1Co 10:7–10; cf. v. 5). Mas aqui em Rm 3:3 ele não indica a proporção.
Simplesmente escreve: “E que dizer se alguns deles foram infiéis?” E
acrescenta: Acaso seu infidelidade anula a fidelidade de Deus?
Quer dizer então: «Apesar de sua infidelidade, Deus assim mesmo
lhes concederá um futuro glorioso, visto que são judeus»? O provável é
que não. Seu verdadeiro significado parece ser este: «Pelo fato de que
Deus é fiel, aqueles judeus que Lhe são fiéis e que por esta razão são
fiéis e que por esta razão são fiéis àquilo que lhes foi encomendado,
certamente receberão o cumprimento de suas promessas».
Mas o Deus que é fiel a Suas promessas, é-o também a Suas
ameaças. A fidelidade divina é um consolo inavaliável para os fiéis, uma
grave advertência para os que estão em perigo de tornar-se infiéis, e um
Romanos (William Hendriksen) 153
prenúncio de perdição para os que continuam sendo indignos de
confiança. Cf. 2Tm 2:11–13.
A mera sugestão que Deus pudesse chegar a ser infiel faz tremer o
apóstolo. Ele exclama: “De modo algum!” (ou “Claro que não”, “Nem
pensar”, “Não o permita Deus”). Esta expressão ocorre com frequência
nas epístolas de Paulo — inclusive em Rm 3:31; 6:2, 15; 7:9; 9:14; 11:1,
6 — e em outros lugares.
Ao acrescentar: “seja Deus verdadeiro (cf. Sl. 119:9, 160; Jr 10:10)
e toda pessoa mentirosa (Sl. 116:11)”, Paulo coloca a veracidade divina
(análoga à fidelidade) diante da hipocrisia humana (uma aliada da
infidelidade), marcando um agudo contraste, e roga que se conceda
pleno reconhecimento à primeira. A hipocrisia e infidelidade humanas,
longe de cancelar a fidelidade divina, fazem com que ela ressalte em
acentuado relevo.
Paulo acrescente palavras tiradas do Salmo 51:4b (= LXX 50:6b).
Para entender quão relevante esta citação é para o propósito de
Paulo deveríamos considerá-la levando em conta seu pano de fundo.
Davi pecou gravemente. Cometeu adultério com Bate-Seba, a
mulher de Urias. Quando descobriu que Bate-Seba tinha ficado grávida,
ele provocou muito solapadamente a morte de Urias e casou com Bate-
Seba. Então o Senhor enviou Natã, o profeta, a Davi. Por meio de uma
parábola sobre um rico que tinha privado um pobre de sua única
“cordeirinha”, ele surrupiou dos lábios de Davi as palavras: “Vive o
Senhor, o homem que fez isso merece morrer”. A resposta de Natã foi:
“Tu és o homem”. Resultado: a profunda tristeza de Davi e sua
admissão: “Pequei contra o Senhor”. Veja-se 2Sm. 11, 12.
No Salmo 51 Davi novamente confessa seus pecados e diz: “Contra
ti, contra ti somente pequei, e fiz o mal diante dos teus olhos”.
Nas palavras que se citam aqui em Rm 3:4b ele acrescenta:
“(Confesso isto para que) sejas reconhecido justo em tuas palavras, e
prevaleças em teu juízo” (Sl. 51:4b).
Romanos (William Hendriksen) 154
É claro, então, que a intenção de Davi era a de fazer sua confissão a
mais franca, aberta, e incondicional possível, para que contra o escuro
fundo de sua própria injustiça a justiça de Deus ao julgá-lo ressaltasse
mais claramente. Davi quer que Deus triunfe!
O errado e perverso raciocínio humano registra agora uma objeção
que Paulo, quase desculpando-se por lhe prestar atenção, derruba
imediatamente.
5, 6. Mas se a nossa injustiça confirma a justiça de Deus, o que
diremos? É injusto o Deus que impõe a ira? (Falo do ponto de vista
humano). 74 De modo algum! Porque então, como poderia Deus julgar o
mundo?
Fica claro que não só as palavras de Paulo em Rm 3:4a, mas
também as de Davi no Sl 3:4b, citadas do Sl. 51, fazem ressaltar a justiça
de Deus contra o fundo escuro do pecado humano. Assim como as
escuras sombras desse quadro de Rembrandt, (mal chamado) Guarda
noturno, fazem com que as manchas de luz explodam tanto mais
brilhantemente, do mesmo modo a injustiça do homem acentua a justiça
de Deus.
O oponente propõe agora uma objeção que se resume assim: «Com
base em tua doutrina, Paulo, e visto que a injustiça do homem faz
ressaltar em maior relevo a justiça de Deus, não deveria o Todo-
poderoso sentir-se feliz com relação a esta circunstância? Não é Ele
injusto quando, em lugar disso, derrama sua ira sobre o homem?»
Com outro “De modo algum!” (ou “Nem pensar!”) o apóstolo,
cheio de santa indignação, esmaga este ímpio modo de pensar. É como
se estivesse dizendo: «O quê? Deus injusto? Como te atreves sequer a
sugerir isso? Estamos de acordo, não é assim?, em que Deus é
competente para julgar o mundo, e de fato o fará. Como, então, Ele

74
O grego lê κατ_ _νθρωπον λέγω, tanto aqui como em Gl 3:15: “Falo em termos humanos”. 1Co 9:8
(com λαλ_ em vez de λέγω), tem o mesmo significado. Note-se também _νθρώπινον λέγω, “falo como
homem” (Rm 6:19, RA 1999). Com relação ao significado de frases algo parecidas em 1Co 3:5 e 1Co
15:32, as opiniões diferem.
Romanos (William Hendriksen) 155
poderia ser injusto? Não julgará com justiça o juiz de todo o mundo?»
(Gn 18:25).
7, 8. (Alguém poderia objetar) Se por minha falsidade a veracidade
de Deus é exaltada para sua glória, por que me condena ainda como
pecador? Por que não dizer — como caluniosamente se informa de nós, e
alguns contam que dizemos — façamos o mal para que resulte o bem? A
sua condenação é merecida.
Aqui há duas perguntas retóricas seguidas de uma brusca resposta
avaliativa. 75
Há uma estreita relação entre os vv. 5, 6 e os vv. 7, 8. Compare-se:
“Se a nossa injustiça confirma a justiça de Deus …” (v. 5)
com
“Se por minha falsidade a veracidade de Deus é exaltada …” (v. 7)

Em ambos os casos o ataque à retidão ou justiça de Deus é rejeitado


e Sua honra mantida.

No entanto, também há aqui algumas diferenças leves:


(1) Note-se a mudança de nossa injustiça (v. 5) a mim falsidade …
por que se me, etc. No entanto, a primeira pessoa plural volta a aparecer
em v. 8.
(2) Nos vv. 7, 8 a atenção passa da condenação do ataque à justiça
de Deus à condenação da perversão da doutrina da salvação pela graça.
daí que haja também uma estreita relação entre Rm 3:7, 8 e Rm 6:1.
Compare-se:

75
A construção gramática do versículo 8, começando com o “por que não dizer”, provavelmente é
como segue:
a. Depois das palavras iniciais κα_ μ_ insértese λέγομεν ou algo similar.
b. O parêntese encerrado dentro da pergunta retórica do v. 8 começa com o primeiro καθ_ς e
conclui com λέγειν.
c. _τι é recitativo. Para as diferentes maneiras em que este pequeno vocábulo é usado, veja-se
C.N.T. sobre João, pp. 59ss.
d. _ν refere-se a τινες.
Romanos (William Hendriksen) 156
“Façamos o mal, para que nos venha o bem” (Rm 3:8, NVI).
com
“Continuaremos pecando para que a graça aumente” (Rm 6:1, NVI).
Os oponentes falam como se Paulo, ao ensinar que uma pessoa era
salva pela graça, dissesse: “Siga em frente, peque até estar satisfeito,
para que a graça possa ter uma oportunidade de fazer a sua obra!”
Para informação com respeito a esta terrivelmente destrutiva
perversão da sã doutrina, veja-se sobre Rm 6:1s.
O apóstolo conclui dizendo: “A sua condenação é merecida”. Com
isso ele quer dizer: «Aqueles que ostentam esta lema receberão uma justa
retribuição. Os que tão malvadamente deformam a doutrina que
proclamamos receberão o que merecem».

Lições práticas derivadas de Romanos 2:1–3:8


a. Do capítulo 2
Rm 2:1. “Em qualquer ponto em que julgas outra pessoa, condenas
a ti mesmo”. Segundo um provérbio holandês: 76 “Quem se compara com
outra pessoa, geralmente se favorece a si mesmo”.
Rm 2:3. “Imaginas … que escaparás do juízo de Deus?”
Há muitíssimas maneiras que a pessoa culpada usa para procurar
escapar do castigo: (a) fugir para outro país e viver ali sob um nome
falso: (b) em vez de apresentar uma desculpa, muda imediatamente de
tema para que o oponente, em sua agitação, comece a defender-se: (c)
colocar-se em mãos de “um advogado que nunca perdeu um juízo”. Às
vezes estes truques têm êxito, ao menos por um tempo. Mas a pessoa
nunca pode escapar do juízo de Deus, e isso é o que tem valor. É então
“escapar” algo totalmente impossível? A única maneira verdadeira de
fazê-lo é: «Confessar. Pedir perdão. Se for possível, fazer restituição. E
pela graça de Deus, começar uma nova vida».

76
Die zich aan een ander spiegelt, spiegelt zich zacht.
Romanos (William Hendriksen) 157
Rm 2:4. O versículo 4 menciona “as riquezas da bondade,
paciência e longanimidade de Deus”. Quem pode ler as seguintes
passagens sem ser comovido pela emoção e a gratidão? Cf. Gn 4:6, 7;
18:22, 23; 39:5; Sl. 36:6; 145:9, 15, 16; Is 1:18; 55:1, 6, 7; 57:15; Jr
31:31–35; Lm. 3:22, 33; Ez 18:23, 32; 33:11; Os 11:8; Jn 4:10, 11; Mq
7:18, 19; Sf 3:17; Mt 5:43–45; 11:25–30; Lc 6:35 (veja-se também
C.N.T. sobre Lc 1:20, p. 89); Jo 3:16; 7:37; At 14:16, 17; Rm 8:31–39;
2Co 5:20, 21; 8:9; 1Tm. 4:10; Hb 4:16; Ap 22:17. A leitura desta lista de
passagens ou outra similar muitas vezes tem ajudado os filhos de Deus
quando tiveram que passar os vales da dúvida, como todo pastor pode
testificar.
Rm 2:5. “Acumulas para ti mesmo ira”. Se a dívida nacional do
país pudesse ser reduzida em um bilhão por ano, quanto demoraria para
ser paga? Com o passar de cada hora, minuto, e até segundo o pecador
aumenta o montante de sua dívida … a menos que, por meio da graça e o
poder soberano de Deus, ele se renda a Cristo e descubra que «Jesus já
pagou toda». Que “alegria inefável e cheia de glória”!
Rm 2:13. “Os praticantes da lei é que serão declarados justos”. As
boas obras jamais salvaram a ninguém. No entanto, sem elas ninguém
tem direito a afirmar que é cristão. O crente faz as obras da lei “em
gratidão pela salvação recebida como dom gratuito de Deus”.
Rm 2:15. “… pelo que suas consciências também dão testemunho
…” Se a consciência proíbe você de fazer algo, não deveria fazê-lo. Mas
assegure-se de instruir sua consciência na escola da Bíblia. Se a
consciência permite você fazer algo, significa isso necessariamente que a
ação contemplada é correta?
Rm 2:16. “Deus, através de Jesus Cristo, julgará os segredos dos
homens”. Por meio de telefones interceptados, microfones ocultos,
câmaras escondidas e muitos outros dispositivos se descobrem secretos.
Os inimigos potenciais estão descobrindo que a natureza e a
quantidade de seu armamento já não é um segredo. No entanto, apesar de
todos as equipes de detecção, alguns segredos continuam sem serem
Romanos (William Hendriksen) 158
descobertos. Não é assim, no entanto, aos olhos de Deus. Leia o Sl. 139.
Acrescente-se Hb 4:13. É este um pensamento aterrador? Poderia ser
uma fonte de consolo? Leia-se Jo 21:7.
Rm 2:17–23. O apóstolo insiste com os judeus ao autoexame.
Contudo, certos psicólogos seguem dizendo que o autoexame é
“insalubre” e que possa levar a perigoso complexo de culpabilidade, etc.
Até certo ponto, estes psicólogos têm razão. Qual é a solução? Estude-se
o Sl. 51.
Rm 2:28, 29. Seguindo o exemplo de Matthew Henry, poderíamos
ler estes versículos como segue: «Porque não é cristão quem o é somente
por fora, nem é o (verdadeiro) batismo algo externo e físico. Ao
contrário, cristão é aquele que o é internamente; e o (verdadeiro) batismo
é um assunto do coração, pelo Espírito, não pelo código escrito. O louvor
de uma pessoa tal não provém do homem mas de Deus».

b. Desde Rm 3:1–8
Rm 3:3. “Ou acaso a tua infidelidade anula a fidelidade de Deus?”
Comente sobre:
1. A fidelidade de Deus … um pensamento aterrador.
2. A fidelidade de Deus, uma fonte de consolo.
Rm 3:5–8. Em certa província foi proposta uma emenda
constitucional que teria legalizado os jogos de azar num cassino (situado
num distrito específico). Quem propunha isto argumentava que se esta
emenda fosse aceita, isso redundaria em grandes lucros para benefício da
educação, etc. Esta gente argumentava como faziam aqueles a quem
Paulo denuncia em Rm 3:5–8. Em que sentido? Veja-se o comentário.

Resumo de Romanos 2:1 – 3:8


Tendo demonstrado que os gentios são objeto da ira de Deus devido
a suas práticas pecadoras, o apóstolo agora dirige sua atenção aos judeus,
e afirma que eles não têm desculpa quando praticam algumas das
Romanos (William Hendriksen) 159
mesmas maldades que condenam em outros. Não pense o judeu que, por
não ter sido abandonado por Deus a uma vida da mais escandalosa
imoralidade, Deus deve estar muito satisfeito com ele. Antes, deve tomar
a peito o fato de que a bondade de Deus para com ele deveria levá-lo à
conversão (Rm 2:1–4).
Paulo continua: “Porém com seu duro e inconverso coração
acumulas para ti ira no dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus,
quem julgará a cada pessoa segundo os seus atos … Porque Deus não
mostra parcialidade” (vv. 5–11)
“Todos os que pecaram na ignorância da lei perecerão embora não
conheçam a lei; e todos os que pecaram conhecendo a lei serão julgados
pela lei. Porque não são os ouvintes da lei os que são justos nos olhos de
Deus, mas são os praticantes …”
O apóstolo então revela que até os gentios, que não têm a lei escrita,
têm uma consciência que às vezes os condena e outras vezes os louva. O
próprio Deus levará tudo isso em consideração. Ele julgará com absoluta
justiça sem mostrar nenhuma parcialidade. Tudo isso será feito claro no
dia do juízo final, quando Deus, por meio de Jesus Cristo, julgará os
segredos dos homens (vv. 12–16).
O próximo parágrafo pode ser condensado nesta pergunta capital:
«Tu, que és judeu, realmente praticas o que pregas?» Mais em detalhe,
Paulo pergunta: “Tu, que te chamas judeu, e confias em (a) lei … e te
tens por guia para o cego, procuras viver segundo a lei?” … “Tu, então,
que ensinas a outros, não ensinas a ti mesmo; tu, que pregas que não se
deve roubar, roubas?”, etc. Paulo conclui esta seção com a acusação:
“Como está escrito: [cf. Is 52:5] por causa de vós [quer dizer sua
maldade] o nome de Deus é blasfemado entre os gentios” (vv. 17–24)
O judeu opinava que por ter a lei e por ter sido circuncidado, tudo
estava bem, hoje e pela eternidade. Paulo responde: “A circuncisão sem
dúvida é benéfica, mas só se puseres a lei em prática … Não é um
(verdadeiro) judeu aquele que o é só por fora, nem é a (verdadeira)
circuncisão algo externo e físico. Mas o (verdadeiro) judeu é aquele que
Romanos (William Hendriksen) 160
o é internamente; e a (verdadeira) circuncisão é um assunto do coração,
pelo Espírito e não pelo código escrito. O louvor de uma pessoa tal não
provém do homem mas de Deus” (vv. 25–29).
Aqui o apóstolo parece ouvir uma objeção. É como se alguém
estivesse dizendo: «Mas Paulo, quer dizer que os judeus não desfrutam
de algumas vantagens, sendo a mais inapreciável delas os oráculos de
Deus que lhes foram confiados?» (Rm 3:1–2)
A pergunta surge naturalmente: Mas que dizer se alguns dos judeus
foram infiéis a seu legado? Sua infidelidade não cancelará a fidelidade
de Deus, não é certo? Paulo responde: “De modo algum! Seja Deus
verdadeiro, e toda pessoa mentirosa. Como está escrito: Para que sejas
provado justo em tuas palavras e prevalecer em teu juízo”.
Pelo fato de que Deus é fiel, aqueles judeus que Lhe são fiéis e que
são fiéis ao seu legado, certamente receberão os bens prometidos. A
infidelidade humana, longe de invalidar a fidelidade divina, faz com que
se destaque em alto relevo; assim como Davi, por exemplo, por meio de
sua sincera confissão (Sl 51), fez com que a justiça de Deus ao julgá-lo
resplandecesse mais brilhantemente contra o escuro pano de fundo de
sua própria pecaminosidade como adúltero. Veja-se 2Sm 11, 12.
Esta resposta, no entanto, leva-nos à seguinte pergunta: «Visto que
isto é certo, ou seja, que a injustiça do homem faz ressaltar mais a justiça
de Deus, não deveria Deus sentir-se feliz com relação a tal andamento de
coisas em vez de fazer recair sua ira sobre o homem por seus pecados?»
Esta pergunta se formula primeiro em Rm 3:5, e logo, de forma
ligeiramente diferente, no v. 7. Em ambos os casos pode-se resumir
assim: «Não é verdade que o fim — quer dizer, a revelação dos gloriosos
atributos de Deus — justifica os meios, quer dizer, a pecaminosidade do
homem?»
A resposta de Paulo é: “De modo algum! E que recebam as pessoas
que tão malvadamente distorcem nosso evangelho o castigo que
merecem” (vv. 3–8).
Romanos (William Hendriksen) 161
ROMANOS 3:9-31

4. Como resultado: “Não há nenhum justo”. Rm 3:9-20

9a. Qual a conclusão? Somos nós melhores?


Estas palavras apresentam problemas. As interpretações variam
muito. 77
O significado: “Sobressaímos?” ou “Somos nós melhores?” é
aquele que melhor quadra com o presente contexto, visto que a posição
tanto dos gentios (Rm 1:18–32) como dos judeus (Rm 2:1–3:8), uma
posição sem dúvida muito deplorável, já foi descrita.
A próxima pergunta é: “O que significa nós?”
Conforme o entendem muitos tradutores e intérpretes, o significado
é: “Nós, os judeus”. Mas esta posição é vulnerável:

77
Em primeiro lugar está o problema do texto grego. Deveríamos ler προεχόμεθα ou προεχώμεθχ?
Pelo fato de que o primeiro tem a seu favor a maior parte do apoio textual e não há razões para rejeitá-
lo, eu o aceito como autêntico. Se tivermos em conta ο_πάντως, é claro que tanto Τί ο_ν como
προεχόμεθα devem ser seguidos pelo sinal de interrogação grega (;).
A próxima pergunta é: Qual é o significado do verbo προεχόμεθα (não confundir com
προερχόμεθα)? É muito pouca a ajuda que recebemos de outras fontes. No Novo Testamento este
verbo não aparece em nenhuma outra parte. Veja-se, no entanto, Josefo, Contra Ápion II. 186. Mas
Rm 3:9 utiliza a voz média. É o significado então: “Sustentamos algo diante de nós como proteção?”
“Temos uma defesa?”
Ou devemos adjudicar um significado passivo a esta voz média; chegando assim a “Estamos sendo
avantajados?” Seria muito difícil enquadrar qualquer destes dois significados no presente com texto.
Será possível, então, que se deve dar a esta forma média um significado ativo? A resposta às vezes
dada é a seguinte: “Não se encontrou nenhum exemplo de que este verbo, em sua forma média, tenha
um significado ativo”. Mas quando os exemplos aplicáveis são tão poucos e tão espaçados, um
veredito tal não tem quase nenhum valor. Mais significativo é o fato que o uso da forma média num
sentido ativo não é de modo algum incomum no grego Koinê ou nas epístolas de Paulo. Veja-se
Gram. N.T. (Bl.-Debr.), parágr. 316, p. 165. O sentido pode ser, como resultado, “Destacamo-nos?”,
“Somos nós melhores?” Assim interpretado, o prefixo προ é de precedência. O significado total,
justificável também do ponto de vista etimológico, bem pode ser: “Temos alguma prioridade?” No
contexto presente deveria significar: “Aos olhos de Deus, temos uma posição superior de justiça?” Ou,
mais simplesmente, “Somos nós melhores?”
Romanos (William Hendriksen) 162
a. O apóstolo já indicou, e o tem feito com bastante detalhe, que os
judeus não são melhores que os gentios. Veja-se Rm 2:1, 17–24. Por
que, então, necessitaria ele voltar de novo a este tema?
b. Paulo esteve se referindo ao judeu (ou judeus) na terceira pessoa
(Rm 1:16; 2:9; 3:1), e o voltará a fazer (Rm 9:4; 10:1; 11:20; etc.); e
veja-se acima, p. 33. Ele se esteve dirigindo ao judeu típico, utilizando a
segunda pessoa (Rm 2:17s). Em toda a seção anterior (Rm 1:3–3:8) ele
nunca se identificou com os judeus. Nunca disse: “Nós, os judeus”. Que
boa razão há para supor que ele o faz aqui em Rm 3:9?
Além disso, é provável que ele não queira dizer: «Em comparação
com outros têm os judeus algumas vantagens ou privilégios externos?»,
porque sobre este ele tema já se espraiou o bastante (Rm 3:1, 2). O
presente contexto indica que a referência agora aponta a uma posição
superior diante de Deus.
Por conseguinte o verdadeiro significado deve ser: «Sobressaímos
nós — eu, Paulo, e vós, crentes em Roma?» Ou, se for tomado mais
amplamente: «Sobressaímos nós, crentes em Cristo (em geral)? Somos
melhores que outras pessoas? Temos uma posição superior diante de
Deus»?
Esta interpretação conta com o apoio das seguintes considerações:
a. É evidente que o pronome “nós” na oração imediatamente
precedente (v. 8: “… como caluniosamente se informa de nós, e alguns
contam que dizemos”) refere-se ao crente, Paulo, e àqueles associados
com ele; portanto, refere-se a “crentes”.
b. É também claro que na frase que segue imediatamente a seguir
(v. 9b. “… porque acabamos de formular a acusação”) este “nós”
implícito refere-se a Paulo, o crente.
A conclusão pareceria ser evidente. O que o apóstolo está
perguntando é isto: «Por natureza — ou de nós mesmos — somos nós,
os cristãos, melhores que outras pessoas?». Temos direito a acrescentar
em nossa explicação “por natureza”, visto que o apóstolo não explicou,
em nenhum detalhe, o que chegamos a ser “pela graça”. Com relação a
Romanos (William Hendriksen) 163
esta doutrina, veja-se Rm 3:31a. O fato que por natureza cada um é
“filho da ira” é algo que surge claramente de Ef 2:1–3. 78
Continua:
9b. De modo algum, porque acabamos de formular a acusação que
tanto judeus como gregos estão todos debaixo do (poder do) pecado.
O “de modo algum” de Paulo é decisivo. 79 Não há dúvida que ele
demonstrou que os judeus são pecadores, e que como tais estão sob
sentença de condenação (Rm 2:1–3:8). Ele também provou o mesmo
com relação aos gregos ou gentios (Rm 1:18–32). Por conseguinte, toda
a raça humana é imperdoável diante de Deus. Isto quer dizer, portanto,
que basicamente o mesmo princípio é aplicável ao próprio apóstolo e a
todos aqueles que servem ao Senhor com ele, visto que 80 também eles
pertencem a esta raça humana curvada, carregada de culpa. Por natureza
todos estão debaixo do (poder do) pecado.
Como comprovação adicional desta acusação, o apóstolo, de uma
forma ao mesmo tempo artística e convincente, introduz uma série de
passagens do Antigo Testamento. Se ele tomou este modo de
argumentação dos rabinos, isto é algo que certamente não pode ser tido
contra ele. A verdade é que o material que ele cita é pertinente, bem
escolhido, e inspirado.
Do ponto de visita formal, é evidente que a cadeia de citações (vv.
10b–18) tem três estrofes ou coplas. A primeira estrofe (v. 10b–12)
consiste em dois corpos de três artigos cada um; a segundo (vv. 13, 14)

78
Nesta interpretação concordo com Greijdanus, op. cit. p. 171, e não com o Ridderbos, op. cit., p. 76.
Como mencionei anteriormente, em essência também concordo com Lekkerkerker. Veja-se nota 8
deste tomo.
79
Embora é verdade que ο_ πάντως pode significar (a) não totalmente, não em cada caso; ou (b) de
maneira nenhuma, a natureza radical das citações explicativas e confirmativas dos vv. 10–18
favorecem esta última acepção. Aqui concordo com o Ridderbos (op. cit. p. 76), discrepando com
Cranfield (op. cit. p. 190), Greijdanus (op. cit. p. 171) e J. A. C. Van Leeuwen e D. Jacobs, Korte
Verklaring der Heilige Schrift, Kampen, 1932, p. 43.
80
Não vejo nenhuma boa razão para interpretar γά ρ, segundo o usa aqui, de nenhuma outra maneira
que lhe dando o significado de porque.
Romanos (William Hendriksen) 164
tem dois corpos de dois artigos cada um, o mesmo que a terceiro (vv.
15–18).
As citações não são todas ad verbum (literais), mas são todas ad
sensum (segundo o significado).
A maior parte do material citado provém, em grande medida, dos
Salmos, embora os Profetas (Isaías) e os Escritos (Eclesiastes) também
estão representados. Não indica isto que Paulo considerava como
inspirados não só os livros históricos mas também os poéticos e
proféticos do Antigo Testamento?
Passando agora ao conteúdo material desta cadeia de provas,
notamos que a estrofe inicial diz assim:
10–12. Como está escrito: “Não há nenhum justo, nem mesmo um;
não há ninguém que entenda; não há ninguém que busque a Deus. Todos
se desviaram; todos juntos se fizeram inúteis; não há ninguém que faça o
bem; não há nem sequer um”
É evidente que o argumento que busca demonstrar a universalidade
do pecado vai chegando ao seu clímax.
A primeira estrofe já demonstra que Paulo não está descrevendo a
esta ou aquela raça ou classe de gente em particular, e sim à humanidade
em geral. O quadro que pinta é lúgubre: não há nenhum justo; de fato,
ninguém entende sua deplorável condição. E nem sequer há alguém que
ainda procure entender, que busque a Deus, Fonte de toda sabedoria e
conhecimento.
Não há, porém, nenhuma exceção? Paulo responde: “Não há
ninguém … ninguém … ninguém … nem sequer um”.
Ele torna tudo isso ainda mais enfático ao inserir entre as cinco
afirmações negativas uma positiva: “Todos se desviaram (de Deus e de
sua lei), etc.” Não é este todos um eco daquele do v. 9 (“tanto os judeus
como os gregos estão todos sob o poder do pecado”)?
Para que seu argumento seja convincente o apóstolo agora desce a
dados particulares. Ele fala da ímpia garganta (voz), língua, lábios,
boca:
Romanos (William Hendriksen) 165
13, 14. “Sepulcro aberto é sua garganta; com sua língua praticam a
decepção”. “O veneno das víboras está debaixo dos seus lábios. Sua boca
esta cheia de maldições e amargura”.
Devemos ter em mente que Paulo tenta demonstrar que por
natureza todas as pessoas, sem exceção, está sob o poder do pecado.
Para fazê-lo, que tipo específico de pecaminosidade escolherá como
ilustração? Lembrará ele os seus ouvintes ou leitores a grossa
imoralidade que distinguia ao mundo pagão? Cf. Rm 1:24, 26, 27. Não o
fará, visto que em tal caso mais de um judeu e talvez este ou aquele
gentio poderiam objetar, dizendo: «Mas eu, entre outros, não sou
culpado!»
Guiado pelo Espírito Santo, o apóstolo sabiamente escolhe o
pecado da língua para ilustrar a universalidade da pecaminosidade
humana, porque com relação a este mal, quem pode dizer: “Não sou
culpado”? 81 Com referência a este tema da pecaminosa linguagem
humana, vejam-se também Sl. 39:1; Pv 10:19; 17:27; Mt 5:22, 37; 10:19,
20 (e paralelos); Tt 3:2; Tg 1:19, 26; 3:1–12; 1Pe 3:10.
Pelo fato de que uma árvore é conhecida por seus frutos e um
homem por suas obras, Paulo enfatiza a depravação da garganta perversa
mostrando como opera. Tomando citações do Sl. 5:9 ele descreve a
garganta como um “sepulcro aberto”. Provavelmente ele está pensando
num monstro enorme e cruel, disposto a devorar suas vítimas; sim, até a
devorá-los sem que se deem conta. No plano humano esta destruição até
pode ser levada a cabo por meio da lisonja, “A língua aduladora” do Sl.
5:9, a que pratica a decepção.
A frase final do v. 13: “O veneno das víboras está debaixo dos seus
lábios” é uma citação exata da versão LXX do Sl 140:3 (LXX 139:4). 82

81
Com relação a isto, desejo chamar a atenção do leitor ao livro de L. B. Flynn Did I Say That,
Nashville, 1959. É muito interessante e instrutivo.
82
Em ambos os lugares — LXX e aqui em Rm 3:13 — o original tem: __ς _σπίδως _π_ τ_ χείλη
α_τ_ν.
Romanos (William Hendriksen) 166
A ênfase recai mais uma vez no modo pérfido em que a pessoa,
agindo a partir de motivos que estão fora da esfera da graça soberana
de Deus, procura destruir suas futuras vítimas. Suas palavras podem ser
muito lisonjeiras, mas cuidado! Não se pode confiar naqueles que as
dizem. Assemelham-se a serpentes que “debaixo dos seus lábios”, na
base de seus colmilhos, estão equipados com sacos cheios de veneno
mortal. Exemplos: Saul (1Sm 18:17; Davi; sim, até Davi! (2Sm 11).
Seguindo ainda no mesmo filo, quer dizer, enfatizando a natureza
enganosa da fala humana, a “cadeia” continua no v. 14, com uma citação
tirada do Salmo 10:7 (LXX 9:23): “Sua boca está cheia de maldições e
amargura”.
No salmo do qual se citam estas palavras o contexto enfatiza de
novo e muito definidamente a maneira traidora na qual uma pessoa
procurará às vezes “usar” e abusar de seu próximo. Note-se expressões
tais como “espreita no oculto, senta-se em espreita, agacha-se”.
Verdadeiramente, enganoso é o coração do homem! Veja-se Jr. 17:9.
Interpretada deste modo, a referência a “maldições e amargura”
bem pode significar que no processo de tentar enganar o seu próximo a
pessoa às vezes perjurará; quer dizer, pronunciará amargas maldições
sobre si mesma, as que supostamente se desabarão sobre eles se o que
dizem não ser certo. Por exemplo, um comerciante dirá a um possível
cliente: «Que eu morra aqui mesmo se não tiver pago mais por este
artigo do que lhe estou pedindo por ele». É claro que ao expressar este
desejo ele não é sincero. 83
Pelo fato de que o segunda estrofe ocupava-se da fala dos homens,
é lógico que a última, em seus primeiros três artigos, descreva a vida e a
conduta dos homens, suas ações.

83
Outra interpretação, favorecida por vários expositores, divide as maldições e as amarguras entre o
perpetrador e a vítima: o primeiro lança maldições, o segundo experimenta amarguras. Mas neste
ponto, não é algo forçado fazer esta separação entre dois substantivos conectados por um y?
Romanos (William Hendriksen) 167
15–18. “Seus pés se apressam para derramar sangue; quebra e
destruição há em seus caminhos, e não conheceram o caminho da paz.
Não há temor de Deus diante de seus olhos”. 84
Uma longa e contínua série de guerras e assassinatos demonstra que
os primeiros três artigos desta estrofe final são tão certos hoje como nos
dias de Isaías. Veja-se Is 59:7, 8. A degradação e a miséria causadas por
estas explosões da ira humana são evidentes em todas as partes.
A razão básica desta deplorável situação está expressa no último
artigo: “Não há temor de Deus diante de seus olhos” (Sl. 36:1). A ação
consistente do temor de Deus nos corações humanos teria causado uma
ânsia pela reconciliação do homem com Deus e com o seu próximo.
A conclusão desta seção encontra-se nos vv. 19, 20, que começam
como segue:
19. Agora sabemos que em tudo o que diz a lei, fala-o àqueles que
estão debaixo da lei …
Visto que na precedente série de citações o apóstolo nunca tomou
uma citação do decálogo nem mesmo do Pentateuco, mas somente dos
Salmos, Profetas, e Escritos, é claro que o termo “a lei” deve referir-se
ao Antigo Testamento como unidade. Passagens tais como Jo 10:34;
15:25; 1Co 14:25 ilustram um uso similar na expressão “a lei”.
Se no caso presente há alguma diferença real de significado entre
“diz” e “fala”, este seria que “diz” refere-se ao que se diz enquanto que
“fala” chama a atenção ao fato de falar.

84
_ξε_ς, nom. pl. m. de _ξύς, afiado (cf. agudo); Ap 1:16; 2:12; 14:14, 17, 18; 19:15; e com relação
ao tempo: rápido, veloz.
No Novo Testamento σύντριμμα ocorre somente uma vez. O verbo cognato συντρίβω significa
esfregar, dali vêm machucar, esmagar, destruir. Veja-se o C. N. T. sobre Lucas 9:39. Usamos a
expressão “se esfregam contra a corrente”. É então compreensível que o substantivo σύντριμμα
signifique destruição, ruína.
No referente à derivação da palavra ταλαιπωρία não há unanimidade, embora tolerar (suportar,
aguentar) algo que forma uma dureza ou calo pode apontar na direção correta. A palavra ocorre
também em Tg 5:1. Significa dificuldade, sofrimento, inquietude, miséria. O adjetivo afim
ταλαίπωρος aparece em Rm 7:24; Ap 3:17.
Romanos (William Hendriksen) 168
Com referência à frase “aqueles que estão debaixo da lei” há uma
grande diferença de interpretação. Aqui vão uns poucos exemplos:
a. Os judeus. Assim o faz J. P. Lange, Commentary on the Holy
Scriptures (traduzido ao inglês e editado por P. Schaff), Grand Rapids
(reimpresso), 1869, p. 121; também Ridderbos, op. cit. p. 79.
b. Todos aqueles que têm o Antigo Testamento, incluindo os crentes
em Roma. Este ponto de vista é expresso por Lenski, op. cit. pp. 239,
240, quem corretamente enfatiza que Paulo não só está escrevendo os
judeus, mas também os romanos cristãos.
c. Todos, todo o mundo. Assim Greijdanus, op. cit., p. 177; e
Murray, op. cit., p. 106.
d. Todos, porém com uma aplicação especial aos judeus. Para esta
interpretação veja-se, por exemplo, C. R. Erdman, Epístola de Pablo a
los romanos, Grand Rapids, T.E.L.L.; e G. B. Wilson, Romans, a Digest
of Reformed Comment, Edinburgh, 1977, p. 56.
Creio que c. — todos, todo mundo — é a que mais adequadamente
expressa o que Paulo tinha em mente. É verdade que a frase “aqueles que
estão debaixo da lei” poderia levar a pensar unicamente nos judeus. No
entanto, não tem a lei, a Palavra de Deus, uma mensagem para todos? E
não tem autoridade sobre todos, e uma demanda a todos, sejam crentes
ou incrédulos? E não tem que ver com todos, sem exceção, quer judeus
ou gentios de raça?.
Além disso, as palavras devem ser interpretadas à luz de seu
contexto, que segue: Para que toda boca se emudeça e todo mundo fique
exposto ao critério do juízo de Deus. 85
É evidente que o apóstolo já não está pensando exclusivamente em
gentios ou em judeus. Não, ele está resumindo seu argumento,
combinando as conclusões às quais chegou com relação aos gentios (Rm
1:32), com os judeus (Rm 2:21–24), com todos, incluindo ainda os
crentes (Rm 3:9), tomando a todos estes como são por natureza. Ele

85
Ou: comparecer como culpado diante de Deus.
Romanos (William Hendriksen) 169
repete o veredito expresso anteriormente. Veja-se especialmente Rm 3:9,
12.
A figura utilizada é dramática, atemorizadora, inesquecível. Todos
estão de pé diante de Deus, o Juiz. Os registros são lidos e é como se um
a um os acusados recebessem uma oportunidade de responder as
acusações que lhes é feita. No entanto, uma vez exposta sua culpa, não
têm resposta. Suas bocas ficam silenciadas, tapadas.
Conclusão:
20. Portanto, pelas obras da lei nenhuma carne 86 será justificada aos
seus olhos, porque por meio da lei vem o conhecimento do pecado.
Numa fraseologia um pouco diferente reproduz-se aqui o
pensamento do Sl. 143:2 (“Não entres em juízo com o teu servo, porque
nenhum ser humano é justo diante de ti”). 87 Cf. Jó 9:2.
O argumento de Paulo é irrefutável. Pelas obras da lei ninguém
jamais pode ser justificado aos olhos de Deus. Por que não? Considere-
se, por um momento, o que a lei demanda. Nada menos que isto, que
uma pessoa ame a Deus “com todo” o seu coração, alma, mente e força,
e que ame o seu próximo como se ama a si mesmo (Mt 22:37–40; Mc
12:29–31; Lc 10:27). O apóstolo demonstrou que é exatamente este amor
que está ausente tanto de parte do gentio (note-se: “nem deu graças”, Rm
1:21) como do judeu (note-se: “duro e inconverso coração” Rm 2:5). Ele
deixou claro que toda pessoa está condenada diante de Deus (Rm 3:19).

86
Ou: ser mortal
87
Note-se os hebraísmos: (a) Uma tradução palavra por palavra do texto hebraico seria: “… porque
não é justo diante de sua face todo ser vivente”. A versão LXX (do Sl. 142:2b.) é: _τι ο_
δικαιωθήσεται _νώπιον σου π_ς ζ_ν. Note-se “nem todo” com sentido de “nenhum”. (b) Por “tudo ser
vivente” Paulo substituiu “toda carne”, expressão frequentemente utilizada no texto hebraico do
Antigo Testamento para indicar à humanidade em sua fraqueza e insignificância, contrastada com
Deus, visto em sua grandeza e majestade.
Os diversos significados da palavra σάρξ nas epístolas de Paulo estão resumidos mais adiante na
nota 187.
Com relação a δικαιωθήσεται π_σα σάρξ convém ver também Gl 2:16, onde usa-se a mesma
expressão sem a adição de _νώπιον α_το_ (“diante dele” ou “à sua vista”).
Romanos (William Hendriksen) 170
A pessoa fica condenada por seus pecados de comissão, mas
também por causa de seus pecados de omissão (Rm 1:21, 28; 2:21; 3:11;
cf. Mt 25:41–43); não só por seus pecados expostos e públicos, mas
também pelo mal que comete em segredo (Rm 2:16). Ele é maldito aos
olhos de Deus não só pelo que diz e faz (Rm 3:13–17), mas até pelo que
é (Rm 3:9, 10); quer dizer, devido a seu estado como pecador.
Levando tudo isso em conta, somente uma conclusão é possível. O
homem está perdido, perdido, perdido. Sua condição é de total
desesperança e desolação. E a lei, com sua demanda de nada menos que
a perfeição moral e espiritual (cf. Lv 19:2), um estado ao qual o homem
por seu próprio poder nunca pode chegar, cria nele um horrendo e
mortificante sentido de pecado; daí, um pressentimento de perdição, total
e eterno.

5. “Justiça por meio da fé em Jesus Cristo”. Rm 3:21-31

21. Mas agora, à parte da lei, uma justiça de Deus foi revelada,
testemunhada pela lei e os profetas …
Escura e lúgubre é a condição do homem. Esta escuridão e
desesperança é incomensurável e universal. Abrange tudo.
E então, de repente, brilha uma luz; a mesma luz, que antes tinha
cintilado por um breve momento (Rm 1:16, 17), resplandece agora.
Revive a esperança.
Esta luz, este raio de otimismo, não vem de baixo mas de acima. É
“uma justiça de Deus”. É Ele quem vem ao resgate. É Ele quem
condescende em salvar os que se tinham feito totalmente indignos de ser
salvos. E, por ser Deus, Ele faz isso — naturalmente! — sem sacrificar
Sua justiça nem retirar a demanda da lei. Esta é a luz de Seu glorioso
evangelho. Estudem-se passagens tais como Is 9:1 (cf. Mt 4:16); 49:6b;
58:8; 60:1, 3, 19, 20; Mq 7:8; Lc 1:78, 79; 2:32; Jo 1:9; 8:12; At 13:47;
Ef 5:8, 9; Ap 22:5.
Romanos (William Hendriksen) 171
Por que Deus fez isso é um mistério que nunca chegaremos a
entender plenamente. Tal amor é infinito e incompreensível. Veja-se o
que o apóstolo diz com relação ao mesmo em Rm 5:6–8, e como em 2Co
9:15 ele derrama seu coração em gratidão e adoração exclamando:
“Graças a Deus pelo seu dom inefável!” O que sucedeu quando (falando
em termos humanos) no silencioso recesso da eternidade o Triúno Deus
decidiu livrar o homem do maior mal e pô-lo na posse do maior bem,
para fazer isso a tal preço (2Co 5:21), é um assunto tão maravilhoso e
sublime que em sua epístola aos efésios o apóstolo roga que os leitores
(ou ouvintes), arraigados e fundados em amor, possam ser fortes,
juntamente com todos os santos, para compreender seja qual for a
largura, o comprimento, a altura e a profundidade do amor de Cristo (em
todas as suas dimensões) que nunca pode ser captado (Rm 3:14–19)!
Isso também é um assunto “no qual os anjos desejam olhar” (1Pe 1:12).
É o paradoxo mais glorioso que se possa imaginar.
Aqui em Rm 3:21 Paulo afirma: “Mas agora” — ou seja, neste
tempo presente (v. 26; cf. 5:9), neste momento muito estratégico da
história da redenção, chamado em Gl 4:4 a plenitude dos tempos —
“uma justiça de Deus foi revelada”. Esta justiça entra em rigor “à parte
da lei”, o que somente poderá significar que não era e não pode ser
obtida por meio da obediência dos homens à lei de Deus. Era e é uma
justiça “à parte das obras da lei”. Cf. Rm 3:28; 4:6–8; Gl 2:16, 21; 3:10–
13; Ef 2:9; Fp 3:9; 2Tm 1:9; Tt 3:5. 88
Está apresentando Paulo uma nova doutrina, algo nunca antes
ouvido? Pelo contrário, ele esta falando de “uma justiça testemunhada
pela lei e os profetas”. 89 O apóstolo já citou Hc 2:4; veja-se Rm 1:17. Se
duvidar ele também tem em mente outras passagens, tais como Gn 15:6;
Sl. 32:1, 2; veja-se Rm 4:3, 7, 8, e também C. N. T. sobre Lucas 1:70.

88
Isto não significa que a lei não tem lugar no plano de redenção. Veja-se sobre Rm 3:31.
89
Para esta designação do que hoje chamamos Antigo Testamento, vejam-se também Mt 5:17; 7:12;
22:40; Lc 16:16; At 24:14; 28:23.
Romanos (William Hendriksen) 172
Continua:
22, 23. Ou seja, uma justiça de Deus que, por meio da fé em Jesus
Cristo, (vem) a todos os que põem em ação a fé — porque não há
distinção, porquanto todos pecaram e não alcançam a glória de Deus —

Em linhas generais Paulo repete aqui o que já afirmou em Rm 1:16,
17. Não se esquece de seu tema. Na passagem anterior ele disse: “O
evangelho … é (o) poder de Deus para salvação a todo aquele que põe
em ação sua fé … porque nele se revela uma justiça de Deus de fé em fé
…” Agora ele acrescenta que o objeto desta fé é Jesus Cristo. Cf. Mt
1:21; Jo 3:16; 14:6; At 4:12.
Com grande ênfase o apóstolo repete o pensamento de Rm 1:16b,
ou seja, que esta justiça é concedida a todos aqueles — e somente
àqueles — que põem em ação sua fé; ou seja, a todos os verdadeiros
crentes em Jesus Cristo. Nada importa que a pessoa seja rica ou pobre,
jovem ou anciã, varão ou mulher, educada ou não educada, judeu ou
gentio. Todos necessitam esta justiça e somente podem obtê-la por meio
de fé no Salvador, em quem e por meio de quem o Triúno Deus Se
revela.
Não há distinção. Visto que todos, todas as pessoas em todo
mundo, pecaram e, portanto, não alcançam, ou carecem da glória de
Deus, ninguém deve basear sua esperança de ser aceito por Deus em sua
própria bondade. A lei de Deus demanda a perfeição e ninguém é
perfeito diante de Deus. O apóstolo explicou isso muito detalhadamente;
em primeiro lugar com relação aos gentios (Rm 1:18–32); depois com
relação aos judeus (Rm 2:1–3:8). E o resumiu em Rm 3:9–21.
Todas as pessoas pecaram e não alcançam — ou não estão
alcançando — a glória de Deus. Quando o homem transgrediu o
mandamento de Deus, ele perdeu suas bênçãos anteriores,
Romanos (William Hendriksen) 173
especificamente a aprovação divina que descansava sobre ele, e daí
também a liberdade de acesso a Deus. Cf. Gn 3:8. 90

90
Com relação ao significado de κα_ _στεο_νται τ_ς δόξης το_ θεο_ os expositores diferem muito.
Aqui vão quatro opiniões:
a. Todos os homens falham em dar a Deus a glória que lhe devem. O padrão divino para a vida
humana, o ideal da perfeição, permanece muito acima e para além do alcance de qualquer. Veja-se W.
H. G. Thomas, St. Paul’s Epistle to the Romans, Grand Rapids, 1946, p. 112.
Embora o pensamento expresso aqui seja correto, como se indicou anteriormente (Rm 3:10–18), e
embora em seu comentário muito prático e devocional Thomas acrescenta uma valiosa ilustração do
mesmo, isto não é provavelmente o que Romanos 3:23b quer dizer. Sendo assim, não teria inserido
Paulo uma forma verbal adicional? Não teria escrito: “Todos falham em fazer tudo para a glória de
Deus?” Veja-se 1Co 10:31.
b. A frase “glória de Deus” refere-se à futura glória celestial. Tão seguro está Ridderbos (op. cit.,
p. 84) que esta é a interpretação correta que diz: “Não pode referir-se a nenhuma outra coisa”.
É verdade que há várias passagens paulinas em que “glória” ou “glória de Deus” refere-se à futura
recompensa do crente. Veja-se, por exemplo, Rm 2:7; 5:2; 8:18, 30; 1Co 15:43; 2Co 4:17; Cl 1:17;
3:4; 2Tm 2:10. No entanto, é importante notar que aqui em Rm 3:23b Paulo usa o tempo presente. Ele
diz que devido à entrada do pecado todos os homens não estão chegando a alcançar a glória de Deus.
Se ele estivesse pensando na glória que espera os filhos de Deus no céu, não teria usado o tempo
futuro?
c. Assim como por meio da redenção uma pessoa é transformada à imagem de Deus (2Co 3:18),
do mesmo modo sucedeu anteriormente que por meio da queda ele ficou privado daquela perfeição
que é reflexo da glória de Deus. Perdeu o que uma vez tinha possuído. O termo “a glória de Deus”,
como é usado em Rm 3:23b significa, por esta razão, “conformidade com a imagem de Deus”. Ver
Murray, op. cit. p. 113; e John Knox, The Interpreter’s Bible, Vol. IX, p. 430. Muito próximo é o
ponto de vista de E. F. Harrison, The Expositor’s Bible Commentary, Grand Rapids, 1976, p. 41,
segundo o qual o termo em questão refere-se ao privilégio do qual o homem inicialmente desfrutava
de ter comunicação direta com Deus. O que o homem originalmente desfrutava no paraíso foi perdido
pelo pecado. Ou, como o indicam Van Leeuwen-Jacobs (op. cit. p. 53), devido à queda o homem já
não pode aproximar-se diretamente a Deus mas deve manter-se à distância (Êx 20:18, 21; Nm. 4:15;
17:13, etc.). Veja-se também U. Wilkens, Th.D.N.T. Vol. VIII, p. 596. Segundo tal artigo, Paulo
poderia estar-se referindo à glória da qual Adão tinha sido originalmente investido.
Enquanto esta teoria interpreta “glória de Deus” como referência a um privilégio (ou privilégios)
que o homem desfrutava em seu estado de retidão mas perdeu pela entrada do pecado, estou de
acordo. As palavras: “Todos pecaram e — com o provável significado de como resultado — não
alcançam a glória de Deus” certamente parecem apontar nessa direção.
No entanto, seria possível que o apóstolo estivesse pensando em primeiro lugar em alguma outra
coisa que o homem uma vez teve mas que agora lhe falta? Isto nos leva à próxima teoria:
d. A frase “glória de Deus” significa “glória comunicada por Deus”. Refere-se à “glória” no
sentido de aprovação, beneplácito, louvor (Veja-se a nota 74, os diferentes sentidos em que Paulo usa
o termo δόξα). A favor desta teoria estão C. Hodge, A Commentary on the Epistle to the Romans,
Grand Rapids, 1886, p. 140; J. Denney, op. cit., p. 610; C. R. Erdman, op. cit., p. 52; e em algum
Romanos (William Hendriksen) 174
24, 25a.… Sendo justificados gratuitamente por sua graça por meio
da redenção (obtida) em Cristo Jesus; a quem Deus designou que fosse,
pelo derramamento de seu sangue, um sacrifício que aplaca a ira, 91
(efetivo) por meio da fé.
Note-se os diversos elementos presentes nesta importante
passagem:

a. sendo justificados.
Aqui, pela primeira vez em Romanos, o verbo justificar é usado
num contexto positivo para fins de manifestar a doutrina da justificação
pela fé. 92 É fácil desviar-se aqui ao interpretar o pensamento de Paulo.
Se se combinarem o começo do v. 24 com as palavras finais do v. 23, o

sentido R. C. Lenski, op. cit., p. 249. Também R. Knox, quem traduz: “… todos são da mesma
maneira indignos do louvor de Deus”.
A objeção que se faz a esta teoria, ou seja, que em tal caso Paulo teria usado uma preposição, teria
escrito παρ_θεο_ (cf. Jd. 5:44; 2Pe 1:17) não é muito convincente, visto que: (1) Sem usar uma
preposição João pode referir-se ao “louvor que vem de Deus” (12:43). Se João puder, por que não
Paulo?
(2) Quando Paulo fala da “justiça que vem de Deus”, ele o faz às vezes sem usar uma preposição
(Rm 1:17; 3:21, 22). Se ele pode fazer isto com a palavra “justiça”, por que não com “glória”?
(3) Talvez o argumento mais sólido a favor da interpretação que Paulo quer dizer que como
resultado do pecado do homem ele não chega a alcançar, ou carece de, a aprovação ou louvor divino é
o seguinte: que nestes primeiros capítulos da epístola, e em alguma medida também mais adiante, o
apóstolo opera com uma série de conceitos tais como o pecado, a condenação, a justiça, a justificação.
Dentro desta série — pense-se especialmente na justificação — o conceito da aprovação calça muito
naturalmente.
Como resultado creio que o versículo 23 quer dizer: “Todos pecaram e, como resultado, estão
agora num estado em que não alcançam (ou carecem de) aquilo que possuíam antes da Queda, ou seja,
a inestimável bênção de contar com o beneplácito de Deus para com eles”.
Isto encerra a verdade mencionada sob a teoria c., porque, como poderia dizer: “Deus aprova por
mim”, sem dizer ao mesmo tempo: “Por isso tenho liberdade de acesso a Ele”? Daí que embora em
minha opinião a teoria d. seja digna preferivelmente, a teoria c. Ela se aproxima muito e até está
implícita na posterior.
91
Ou: propiciatório.
92
Usos anteriores do verbo δικαιόω em Romanos:
Rm 2:13, com relação a um contraste entre os praticantes e os meros ouvintes.
Rm 3:4, no sentido de uma vindicação divina (“para que possa ser provado justo”).
Rm 3:20, negativamente, para indicar a impossibilidade da salvação por meio das obras.
Romanos (William Hendriksen) 175
resultado é: “… todos pecaram e não alcançam a glória de Deus, sendo
justificados gratuitamente por sua graça”, etc. Está Paulo realmente
dizendo, então, que todos os pecadores estão sendo justificados, ou seja,
que estão sendo salvos? Transformou-se Paulo repentinamente em
universalista?
O escritor deste comentário lembra ter ouvido um pregador dizer do
púlpito: “No final todos serão salvos. Tenho esperanças até pelo
demônio”. Omitindo esta parte com relação ao demônio, estava este
ministro de acordo com Paulo?.
Mas isso não pode ser, porque em Rm 1:16, 17 e Rm 3:22 o
apóstolo insiste em que “a justiça de Deus” é uma bênção outorgada
àqueles que põem em ação sua fé, e a ninguém mais.
Qual é a solução? Provavelmente esta: quando no v. 22a Paulo
declara que a justiça de Deus se estende a todos os que põem em ação
sua fé, há algo assim como uma interrupção. É como se alguém (talvez
um judeu?) perguntasse: «Só a estes, Paulo? Não também a nós, que
embora não compartilhamos sua fé em Jesus Cristo, procuramos com
grande esforço agradar a Deus por meio de nosso esforço por viver em
harmonia com Sua lei? Não somos melhores que outra gente? Não há
distinção entre nós e outros?»
A resposta a esta pergunta parentética — como já foi demonstrado
— é: “Não há distinção, visto que todos hão pecado e não alcançam a
glória de Deus” (vv. 22b, 23).
Retornando agora à linha principal de seu pensamento: “uma justiça
de Deus que, por meio da fé em Jesus Cristo (chega) a todos os que
põem em ação a fé” (v. 22a), o apóstolo continua: “sendo justificados
gratuitamente por sua graça por meio da redenção (obtida) em Cristo
Jesus” (v. 24). Não é qualquer um, mas somente aqueles que põem em
Romanos (William Hendriksen) 176
ação sua fé, os crentes genuínos, recebem a grande bênção da
justificação. 93
Quando o usa, como aqui em Rm 3:24, no sentido dominantemente
forense, o verbo justificar significa declarar justo; e a justificação pode
ser definida como esse misericordioso ato de Deus pelo qual, somente
com base na obra mediadora realizada por Cristo, Ele declara o
pecador justo, e este último aceita este beneficio com um coração crente.
Em defesa desta definição, veja-se não só o presente contexto (Rm 3:24–
30), mas também Rm 4:3, 5; 5:1, 9; 8:30; Gl 2:15, 16; 3:8, 11, 24; 5:4; Tt
3:7. A justificação está em contraste com a condenação. Veja-se Rm 8:1,
33, 34.
A justificação é um assunto de imputação (pôr na conta): a culpa do
pecador é imputada a Cristo; a justiça deste último é imputada ao
pecador (Gn 15:6; Sl. 32:1, 2; Is 53:4–6; Jr 23:6; Rm 5:18–19). Enquanto
que a justificação é um assunto de imputação, a santificação é um
assunto de transformação. Na justificação é o Pai quem toma a iniciativa
(Rm 8:33); na santificação é o Espírito Santo quem o faz (2Ts 2:13). A
primeira implica um veredito “de uma vez por todas”, a segunda um
processo que dura toda a vida. No entanto, embora as duas nunca
deveriam ser identificadas, tampouco deveriam ser separadas. São
distintas, porém não separadas.

b. gratuitamente
A palavra usada no original significa “como um presente”; em
outras palavras sem pagamento feito da parte daquele que o recebe; sem
nenhum mérito humano. Veja-se 1Tm. 1:9; Tt 3:4. Para que o pecador
possa ser declarado justo, tem que ser gratuitamente, visto que, como se

93
O fato de que δικαιούμενοι esteja no nominativo enquanto que πάντας está no acusativo não
constitui uma objeção válida contra a construção gramatical proposta, visto que isto não é de modo
alguém incomum quando o modificador está a tanta distancia da palavra ou frase que modifica,
especialmente quando um nominativo como o de este caso introduz uma nova cláusula.
Romanos (William Hendriksen) 177
demonstrou anteriormente, se o medirmos pela norma dos requisitos de
Deus (Lv 19:2; Mt 22:37 e paralelos) o mérito humano é impossível. O
homem não pode ganhar essa bênção grande e básica da justificação. Ele
só a pode aceitar como um dom (Is 55:1).

c. por sua graça


Graça é o amor de Deus dirigido para o culpado, assim como sua
misericórdia é esse mesmo amor dirigido para aqueles que sofrem. 94 É
fácil entender que “gratuitamente” e “por sua graça” vão juntos.

d. por meio da redenção (obtida) em Cristo Jesus


A palavra redenção (em grego _πολύτρωσις) ocorre dez vezes no
Novo Testamento (Lc 21:28; Rm 3:24; 8:23; 1Co 1:30; Ef 1:7, 14; 4:30;
Cl 1:14; Hb 9:15; 11:13). Naquelas passagens em que se usa o termo,
como aqui em Rm 3:24, em seu pleno sentido espiritual, indica a
libertação da culpa, do castigo e do poder do pecado, 95 por meio do
pagamento de um resgate.
Esta redenção foi obtida em, o que provavelmente significa “com
relação a”, Jesus Cristo, o Salvador Ungido. A maioria dos tradutores
adotaram esta tradução ou alguma muito similar, ou seja “em Cristo
Jesus”. Alguns, no entanto, preferem “por meio de Cristo Jesus”. O
original grego permite qualquer das duas. A favor de “em”, ou “com
relação a”, está o fato que nos vv. 23, 24 “Deus” é claramente
mencionado como o Autor da redenção dos crentes. Não a Jesus só mas
sim ao Trino Deus deve atribuir-se o louvor e a glória pela libertação do
homem do pecado e suas consequências. Foi obtida ou causada em e por
meio de Cristo Jesus, ou seja, por meio de Seu sofrimento e morte
voluntários na cruz.
94
Veja-se C. N. T. sobre Lucas, p. 184, 185.
95
Reconhecemos que numa passagem tal como, por ex., Rm 8:23, a redenção indicada por este
substantivo não inclui, por si só, a ideia do pagamento de um resgate. pelo pagamento de um resgate.
Romanos (William Hendriksen) 178
96
e. a quem Deus designou que fosse …
Este desígnio retroage ao eterno conselho divino. Nesse conselho
ou decreto Cristo Jesus foi designado para ser Aquele por meio de quem
o plano de salvação se cumpriria. Cristo Jesus e Seu povo nunca podem
ser separados. Note-se passagens paralelas tais como Ef 1:4, 7, 10, 11.

96
O significado da raiz do verbo προτίθημι, do qual a forma aqui utilizada, προέθετο, é a terceira pes.
s. 2º aor. indic. médio, é colocar diante de; o que, na voz média, passa a ser colocar diante de si
mesmo. É fácil compreender que se pode colocar algo diante de si de duas maneiras: (1) para expô-lo
publicamente; (2) para considerá-lo mentalmente; para planejar (algo) para si mesmo; no holandês:
zich (iets) voornemen. A maior parte dos tradutores preferem a opção (1). No entanto, deveria levar-se
em conta os seguintes fatos a favor de (2), planejar, propor-se, designar:
Nos outros dois casos em que se usa este verbo no Novo Testamento, Rm 1:13 (“muitas vezes me
propus ir a vós”), e Ef 1:9 (“que propusera em si mesmo” — RC 1998), o sentido é claramente o de
apontar a uma meta. Se for certo nestes casos, por que não aqui? Note-se também que quando no
Novo Testamento usa-se o substantivo cognato πρόθεσις, fora dos casos em que ocorre com relação
com o pão da proposição (os pães asmos consagrados que se colocavam sobre uma mesa do
Santuário), o significado é propósito: “com propósito de coração” (At 11:23); “creram que podiam pôr
em prática seu propósito” (At 27:13 - BJ); “para os que são chamados segundo seu propósito” (Rm
8:28); “para que o propósito de Deus segundo a eleição permanecesse” (Rm 9:11); “tendo sido
predestinados conforme ao propósito daquele que obra todas as coisas conforme ao conselho de sua
vontade” (Ef 1:11 C.N.T.); “conforme ao propósito eterno que ele formou em Cristo Jesus nosso
Senhor” (Ef 3:11, C.N.T.); “que nos salvou … segundo seu propósito e graça” (2 Ti. 1:9, C.N.T.); e
“No entanto, você seguiste meu propósito” (2Tm 3:10).
A favor de uma tradução que apontamento a um fim determinado aqui em 3:25a, estão também
Orígenes, Ambrosiastro, Crisóstomo, Ecumenio, Lagrange, Fritzsche, Robertson, Philips (“nomeou”),
a N.E.B. (“designou”) e Cranfield.
A favor da tradução apresentou, exibiu, pôs pela frente, ou algo similar, sustentou-se que este
significado quadra melhor num contexto que fala da demonstração da justiça de Deus (Rm. 3:25, 26),
e que serve de paralelo às palavras de Paulo em Gl 3:1 (“Jesus Cristo … claramente apresentado
diante de vós”). Porém não fica claro como pode argumentar-se de modo convincente que um verbo
que indica a demonstração da justiça de Deus é paralelo a um verbo que se refere ao derramamento do
sangue de Cristo. Por outro lado, a construção gramatical difere radicalmente nestes dois casos. E Gl
3:1 pertence, sem dúvida, a um tipo de contexto diferente do da primeira cláusula de Rm 3:25.
Para justificar um significado para este verbo grego que não tem em nenhuma outra parte do Novo
Testamento, e que difere substancialmente do sentido do substantivo cognato em todos os casos
comparável de seu uso no Novo Testamento, fará falta apresentar argumentos de maior peso. Sobre
este assunto convém também ver as muito boas observações do Cranfield, op. cit., Vol. I, pp. 208,
210.
Romanos (William Hendriksen) 179
f. Pelo derramamento de seu sangue, um sacrifício que aplaca a
ira, ou sacrifício propiciatório. 97
O sangue representa a vida (Lv 17:11; Mt 20:28, cf. 26:28; Jo
10:11, 15). As palavras “pelo derramamento de seu sangue” se referem
ao sacrifício voluntário da vida de parte do Messias em lugar daqueles a
quem veio para salvar. Cf. Is 53:10–12.
Embora seja negado constantemente, a verdade é que a ira de Deus
pesa sobre o pecador e deve ser aplacada para que este possa ser salvo.
Vejam-se Rm 1:18; 2:5, 8; 3:5; 5:9; 9:22; Ef 2:3; 5:6; Cl 3:6; 1Ts 1:10;
2:16; 5:9; Ap 6:16, 17; 11:18; 14:10; 16:19; 19:15.
Quando a propiciação é cumprida, a ira de Deus é aplacada. Rm
3:25a menciona um sacrifício que aplaca a ira, um sacrifício
propiciatório, ou seja, Cristo o próprio Jesus. Foi ele quem deu —
ofereceu voluntariamente — seu sangue; ou seja, sua vida; ou seja, a si
mesmo (1Tm. 2:6) por suas ovelhas, suportando a ira de Deus em lugar
delas, fazendo assim que elas fossem reconciliadas com Deus.
Há muitas passagens que ensinam esta verdade, quer seja em sua
totalidade ou em parte: Is 53:4–8, 12; Mt 20:28; 26:28; Mc 10:45; 14:24;
Lc 22:20; At 20:28; 1Co 10:16; 11:25; 2Co 5:20, 21; Ef 1:7; 2:13; Cl
1:20; 1Pe 1:18, 19; 2:24; 1Jo 1:7; 5:6; Hb 9:11, 12, 15, 23–28; Ap 1:5;
5:9; 7:14; 12:11; 13:8.
A palavra grega para a qual escolhi o equivalente “sacrifício que
aplaca a ira (ou sacrifício propiciatório)” indica na lXX (tradução grega
do Antigo Testamento) a tampa salpicada de sangue que estava sobre a
arca da aliança. Este é o “propiciatório” Vejam-se Êx 25:17, 18; Lv 16:2,

97
O provável é que a frase “pelo derramamento de seu sangue” não deva ser interpretada em relação
estreita com “fé”, o que resultaria em “fé em seu sangue”. É verdade que _ν τ_ α_το_ α_ματι vem
imediatamente após πίστεως; e também é verdade que, do ponto de vista da gramática (_ν mais o
dativo para indicar o objeto da fé) esta construção não é tão incomum como alguns sustentam.
(Vejam-se, por exemplo, Gl 3:26; Ef 1:15; Cl 1:4; 1Tm. 3:13; 2Tm 1:13). Mas também é verdade que
um modificador nem sempre está perto da palavra que modifica. Por outro lado, para Paulo o objeto
da fé é uma pessoa, não uma coisa.
Romanos (William Hendriksen) 180
23; etc. Em total, a palavra aparece mais de vinte vezes no Pentateuco,
com maior frequência em Êxodo. Na descrição dos móveis do
tabernáculo (Hb 9:1–5) é lógico crer que o v. 5 refere-se de modo similar
a esta tampa. No entanto, embora a mesma palavra aparece em Rm 3:25,
é compreensível que a maioria dos tradutores — há algumas exceções —
vacilem em chamar Cristo Jesus “propiciatório”, ou “tampa
propiciatória”. “Sacrifício que aplaca a ira”, “sacrifício de expiação
(NVI), 98 ou simplesmente “propiciação” (VRV 1960, BJer) é melhor.
Veja-se também 1Jo 2:2; 4:10).

g. (efetivo) por meio da fé


O sacrifício propiciatório de Cristo não entra em vigor
automaticamente. Se uma pessoa deseja obter esta grande bênção — o
apartar-se da ira de Deus, o perdão, a aceitação da parte de Deus — deve
pôr em ação uma fé genuína em Cristo, em e por meio de quem o Deus
Triúno se revela a si mesmo.
A indispensabilidade da fé já foi indicada (Rm 1:8, 16, 17; 3:22) e
voltará a ser enfatizada (Rm 3:26, 28, 30; 4:3, etc.). Sem fé ninguém
pode agradar a Deus (Hb 11:6). Para ser salva uma pessoa necessita a fé,
essa fé que é um dom de Deus (Ef 2:8)
Ninguém jamais foi salvo nem alcançará a celestial glória eterna
por meio das obras, do esforço humano ou de seus lucros (Rm 3:9–20).
Nem o que minhas mãos operaram
Pode minha culpada alma salvar;
Nem o que minha pobre carne sofreu
Pode meu espírito curar.
Nem meus sentimentos nem minhas ações
A paz com Deus me podem dar.
Nem minhas lágrimas, suspiros ou orações

98
Para ajudar o leitor, a tradução ao inglês N.I.V. acrescenta esta valiosa referência: “(Deus o
apresentou) como aquele que afastaria sua ira, tirando o pecado”.
Romanos (William Hendriksen) 181
Podem minha pesada carga suportar.
Somente Tua graça, ó Deus,
De Teu perdão me pode falar.
Só o Teu poder, ó Filho de Deus,
Pode minha cruel cadeia quebrantar.
Só a Tua obra, a genuína,
Só o Teu sangue servirá,
Só aquela força que é divina
Com segurança me sustentará.
Horacio Bonar
Como resumo pode-se indicar, enfim, que a justificação, conforme
Paulo a ensina, não é de maneira nenhuma a obra do homem. Pelo
contrário, ela é:
a. dom de Deus (Rm 5:15–18)
b. produto de Sua graça (Rm 3:24; 4:16; 5:15)
c. gratuita (Rm 5:16)
d. não pelas obras (Rm 3:20)
e. o oposto à condenação (Rm 8:1, 33, 34)
f. o que priva ao homem de toda causa de jactância (Rm 3:27)
g. apropriada pela fé, sendo essa fé mesma um dom de Deus (Ef
2:8)
Que esta doutrina da justificação por meio da fé concorda com os
ensinamentos do Antigo Testamento é algo que será demonstrado em
Romanos 4.
Que a mesma está também em harmonia com os ensinamentos de
Cristo será indicado num momento (veja-se o próximo parágrafo).
Acrescente-se Lc 18:14.
Tudo o que foi dito é contrário à doutrina de Roma, porque embora
Roma sem dúvida ensine que Cristo, por meio de Sua expiação, aportou
a base meritória para nossa justificação, também ensina que a causa que
predispõe sua operação deve ser contribuída por nós mesmos; quer dizer,
por meio de nossa esperança, fé, amor, contrição, etc. Em sua dissertação
Romanos (William Hendriksen) 182
doutoral Attrition and Contrition at the Council of Trent (Atrito e
contrição no Concílio de Trento), Kampen, 1955, p. 227, G. J. Spykman
fez as seguintes excelentes observações:
“Trento virtualmente fez com que a graça salvadora dependesse do
que o penitente fizesse ou deixasse de fazer, embora seja de uma forma
extremamente refinada … Afirmou que não somente a graça mas
também as boas obras contribuíam para a justificação”. Além disso,
Spykman indica que “isto contradiz diretamente o convite de Cristo:
‘Vinde a mim todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes
darei descanso’ ” (Mt 11:28–30).
25b, 26. (Deus fez isso) para demonstrar sua justiça, porque em sua
paciência ele tinha tratado os pecados passados com indulgência. 99 (Assim
que o fez) para demonstrar sua justiça no tempo presente, para ser justo e
ser ele que justifica a pessoa que tem fé em Jesus.
Como sucedeu que, segundo o plano de Deus desde a eternidade,
nada podia evitar que Jesus derramasse seu sangue como sacrifício
propiciatório? A resposta é esta: sucedeu para provar ou demonstrar que
Deus não tinha sido injusto quando, em sua paciência (cf. Rm 2:4, e
veja-se também Rm 8:32), ele tinha tratado com indulgência — tinha
“passado por alto”, “tolerado” — por um tempo os pecados de seu povo
cometidos em dias passados, quer dizer, durante a antiga dispensação.
Quando o Filho de Deus sofreu e morreu, o fez para pagar pelos pecados
de todos os que lhe haviam aceito ou iam aceitar lhe por meio de uma fé
viva; isto é, por todos os crentes de ambas as dispensações.
Os méritos da cruz se estendem tanto para trás como para frente. Ao
não permitir que os antigos pecados permanecessem para sempre
impunes, mas sim deviam ser carregados sobre Cristo (Is 53:6), Deus
demonstrou que ele era, é e sempre sera justo. E pelo fato de que ele é

99
Ou: tinha passado por alto os pecados passados.
Romanos (William Hendriksen) 183
justo, quem pode negar que o, e somente ele, tem direito a ser — e de
fato é — o justificador de todos os que põem sua confiança em Jesus? 100
Note-se o seguinte:
a. Mais uma vez, coisa que encontramos com frequência em
Romanos, somos informados que a maravilhosa bênção da justificação é
para aquela pessoa, ele ou ela somente que tem fé em Jesus.
b. “Em Jesus”, Isto deve significar o Jesus da história, Aquele que
nasceu em Belém, foi crucificado, ressuscitou e subiu aos céus. A
afirmação que diz que é possível crer num Cristo que não é o Jesus da
história do qual as Escrituras dão testemunho é falsa!
27. O que lugar há então para a jactância? 101 Fica excluída. Com
base no que? 102 Nas obras? Não, porém com base na fé.
Paulo deixou bem claro que ninguém, nem gentio nem judeu, pode
obter a aceitação de Deus, ou seja, a salvação, por meio de suas próprias
obras, ou por jactância (veja-se Rm 2:17), ou com base em privilégios
que tiver recebido (Rm 3:3, 4, 9). No entanto, é algo característico de
certas pessoas o jactar-se ou alardear. Vejam-se Mq 3:11; Mt 3:9; Rm
2:17, 23; 4:2; 1Co 1:29; Fp 3:3. Com relação a isso, é possível que Paulo
tenha estado pensando especialmente nos judeus. Toda jactância deste
tipo carece de sentido e é pecaminosa, porque “não há justo, nem mesmo
um” (Rm 3:10). “Todos pecaram e não alcançam a glória de Deus” (Rm
3:23). Por isso, não há razão alguma para a jactância.
Muito decididamente Paulo diz: “Fica excluída”, querendo dizer:
«de uma vez para sempre ficou proscrita». 103

100
Para uma tradução e interpretação diferente das palavras finais do versículo 26, δικαιο_ντα τ_ν _κ
πίστεως _ησο_, veja-se Cranfield, op. cit., pp. 201, 213.
101
Literalmente: Onde, pois, está a jactância?
102
Ou: princípio.
A palavra νόμος nem sempre tem o mesmo significado. Em Rm 2:12. refere-se ao Pentateuco,
com ênfase no Decálogo, como é evidente a partir de Rm 2:21, 22. Em Rm 3:19 faz-se referência ao
Antigo Testamento em sua totalidade. Em Rm 8:2 (cf. Rm 7:23) o apóstolo esta pensando em princípio
atuante. Aqui em Rm 3:27, o significado parecesse ser base, norma, padrão, princípio.
103
Note-se _ξεκλείσθη, terceira pes. s. aor. indic. pas. de _κκλείω, impedir a entrada, excluir.
Romanos (William Hendriksen) 184
Com base no que foi descartada? Talvez com base nas obras? Claro
que não. A reflexão constante sobre realizações meritórias faz com que
uma pessoa seja orgulhosa, e não humilde. Este costume pecaminoso
alenta mais que desalenta a jactância.
É a doutrina da justificação, ou seja da salvação, por meio da fé, a
que indica que não há lugar para a jactância. Porque a fé é um dom de
Deus, como o é também a salvação, considerada em sua totalidade. Nem
sequer a mais mínima parte dela é produto do engenho humano. Veja-se
Ef 2:8, 9. Esta verdade, quando é aplicada ao coração por meio do
Espírito Santo, convence uma pessoa que todo o bem que possui foi
recebido (1Co 4:7), e que aquele que se jacta deve fazê-lo no Senhor
(1Co 1:31).
O direito à jactância ficou excluído. É com base na fé que foi
descartado. Por isso, em apoio do v. 27, e à maneira de resumo, Paulo
novamente afirma o que em essência disse anteriormente (Rm 1:17;
3:22–24, 26) e vai reiterar (Rm 5:1; 9:30–33; 10:5–13):
28. Porque sustentamos que é pela fé que a pessoa é justificada, á
parte das obras da lei.
Aqui, por implicação, os dois métodos concebíveis de obter a
salvação são contrapostos numa marcada antítese. Segundo o primeiro, a
justificação, e como resultado também a salvação, são o produto do
mérito humano; conforme o segundo, da graça divina.
Paulo decididamente confirma aqui, como em todo lugar, a segunda
proposição. Rejeita a primeira. Não é surpreendente, porque aquele que
enfatiza as obras espera que a salvação venha de dentro; ou seja, de
baixo. Aquele que enfatiza a fé tira o olhar de si mesmo e o fixa em
Deus, e espera a salvação dEle; ou seja, de cima.
Quando, em sua tradução do Novo Testamento, Lutero chegou a
esta passagem, traduziu-a como segue: «So halten wir nun dafür, das der
Mensch gerecht werde ohne des Gesetzes Werke, allein durch den
Glauben», quer dizer: «Assim que sustentamos que uma pessoa é
justificada sem as obras da lei, somente por meio da fé”. Por este
Romanos (William Hendriksen) 185
acréscimo da palavra somente ele foi severamente criticado. Sua resposta
foi:
«Se seu adversário papista fizer muita bula inútil com relação à
palavra sozinha, ou somente, diga em seguida: o Doutor Martinho Lutero
o quer assim … São eles [os papistas] doutores? Eu também o sou. São
eruditos? Eu também o sou. São eles pregadores? Eu também o sou. São
eles teólogos? Eu também o sou … Portanto a palavra somente
permanecerá em meu Novo Testamento, e embora todos os burros papais
se enfureçam, não a tirarão”. 104
Lutero não devia ter inserido esta palavra. E os críticos não
deveriam ter causado semelhante tormenta de protesto a respeito, porque,
em todo caso, quando Paulo diz que é por meio da fé que uma pessoa é
justificada, à parte das obras da lei, não está na verdade dizendo:
“Somente pela fé”?
Esta posição, naturalmente, não exclui as obras de gratidão, o fruto
da fé, como o apóstolo esclarece bem, tanto em Romanos (6:1–14; 7:4–
6; 8:12–14; cap. 12, etc.) e em outras epístolas (Gl 5:22–26; Ef 2:8–10;
1Tm. 2:1–6; Tt 2:11–14). Os hinólogos captaram o verdadeiro
significado de Rm 3:28 e passagens similares:
Minha esperança fundamenta-se, com delícia,
No sangue de Jesus, e em Sua justiça;
Não me atrevo a confiar na aparência
Agarro-me ao nome de Jesus, e à Sua presença.
Em Cristo, sólida Rocha, eu me apoio,
Qualquer outro terreno, areia falacioso, oculta uma fossa.
Eduardo Mote
Em estreita relação com o pensamento do v. 28 Paulo continua:
29, 30. Ou é Deus (o Deus) dos judeus somente? Não é ele (o Deus)
dos gentios também? Por certo também dos gentios; visto que há um só

104
Veja-se a Sendbrief vom Dolmetschen de Lutero, Erl.-Frkf. ed. Vol. LXV p. 107s.
Romanos (William Hendriksen) 186
Deus que justificará os circuncidados pela fé e os incircuncisos por meio
da mesma fé.
Se fosse certo que se requeria o cumprimento de obras feitas em
conformidade com a lei como base para a salvação, então os gentios,
vivendo à parte da lei, não teriam a oportunidade de ser salvos. Deus
seria somente o Deus dos judeus. Os gentios teriam que buscar a
salvação em outro lugar; talvez em algum outro Deus? O apóstolo
decididamente rejeita esta sugestão. Ele afirma que não há dois Deuses,
um para os judeus e outro para os gentios. Em harmonia com o que disse
previamente (ver especialmente passagens tais como Rm 2:25a; 3:22) e o
que vai dizer um pouco mais adiante (Rm 10:12, 13), e também em
completa consonância com os ensinamentos de Jesus (Mt 8:10–12; Jo
3:16; 10:14–16; 17:20, 21), o apóstolo afirma aqui vigorosamente que há
um só Deus (cf. Dt 6:4; Is 45:5) e um só caminho de salvação, tanto para
o judeu como para o gentio, para o circuncidado como para o
incircunciso (Gn 22:18; Is 45:22; Rm 4:9–12). Veja-se também a nota
119.
É difícil ver como, sob a inspiração do Espírito Santo, Paulo
poderia ter expresso a verdade da “não distinção” numa linguagem mais
clara. Não se requer grande imaginação para sentir como toda a
congregação de Roma, reunida para a adoração, quer fosse num só lugar
de reunião ou em vários, deve ter-se alegrado quando foi lida esta
epístola com sua ênfase na unidade (cf. Ef 2:11–17). A noção segundo a
qual até hoje em dia Deus reconhece dois grupos nos quais Ele tem
especial deleite — os judeus e a igreja — não encontra nenhum apoio
aqui nem em nenhuma outra parte das Escrituras. O que, sim, encontra
apoio é a passagem de Paulo que encontramos em Ef 4:4–6 [RA]:
“Há somente um corpo e um Espírito, como também fostes
chamados numa só esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma
Romanos (William Hendriksen) 187
só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos,
age por meio de todos e está em todos” (C.N.T.). 105
O apóstolo fecha esta seção com as palavras do versículo
31. Invalidamos, então, a lei por nossa (insistência na) 106 fé? Não, de
modo algum! Ao contrário, afirmamos a lei.
Há quem diga que Rm 3:31 deve ter sido Rm 4:1; em outras
palavras que pertence a, e introduz, o material do capítulo quatro. Eles
tomam o termo “a lei”, segundo é usado aqui em Rm 3:31, como
equivalente de “Escritura” em Rm 4:3. Além disso, já se admitiu que o
termo lei às vezes pode ter tal significado.
No entanto, há duas objeções principais contra conectar este
versículo diretamente com o capítulo quatro:
a. Não há nenhuma clara conexão que possa mostrar-se entre o
conteúdo de Rm 3:31 e o parágrafo que começa com o capítulo quatro.
b. A fraseologia mesma de Rm 3:31 — note-se o “invalidamos,
então,” etc.) — claramente indica que esta passagem faz referência a
aquilo que o precede.
O que o apóstolo está dizendo é basicamente isso: «Pelo fato de que
pelas obras da lei nenhum mortal jamais será justificado (Rm 3:20), e
visto que foi à parte das obras da lei que uma justiça de Deus foi
revelada (v. 21), e dado então que uma pessoa é justificada pelo fé, à
parte das obras da lei (v. 28), estamos privando à lei de seu valor?”
“Invalidamos, então, a lei por nossa (insistência na) fé?»
A resposta de Paulo é muito abrupta e decidida: “Não, de modo
algum! Pelo contrário, afirmamos a lei”.
O vigoroso caráter da resposta provavelmente deve ser explicado à
luz do fato que havia quem dizia: “Descartemos a lei. Tudo o que

105
Embora seja verdade que no versículo 30 _κ significa origem, e διά provavelmente agência
intermediária, esta distinção deve ser considerada como um recurso retórico, sem significado
adicional.
106
Ou: ensino a respeito de.
Romanos (William Hendriksen) 188
precisamos é a fé. Continuemos no pecado para que a graça aumente”.
Consulte-se Rm 3:8 e Rm 6:1.
Se alguém formulasse a seguinte pergunta adicional: «De que
maneira, Paulo, afirma a lei por sua ênfase na justificação pela fé?», não
há dúvida que o referiria essa pessoa ao conteúdo de Rm 3:20; 7:7, 8, 13;
Gl 2:19; 3:21, 24.
As doutrinas de (a) a justificação, ou seja, da salvação pela fé, e (b)
a da utilidade da lei de Deus, coincidem belamente; porque “por meio
da lei vem o conhecimento do pecado”. E este mesmo conhecimento, ao
ser santificado pelo Espírito Santo, faz com que a pessoa clame por ajuda
e salvação. Essa salvação é plenamente provida quando um pecador
rende sua vida a Deus; quer dizer, quando por meio de uma genuína fé
dada por Deus dá as boas-vindas em seu coração e na sua vida ao Senhor
Jesus Cristo, com as palavras de compromisso:
Nada de minhas mãos te ofereci,
simplesmente à Tua cruz estou agarrado.
É esta a maneira como as Escrituras — e então também Paulo e
seus companheiros — afirmam a lei enquanto ensinam e insistem na
doutrina sobre a fé.
Para todo crente sincero a doutrina da justificação pela fé é um
tesouro muito precioso. Perceber o que esta gloriosa verdade significa
para a própria alma pode ser uma experiência comovedora e
inesquecível. Já vimos o que a descoberta deste maravilhoso plano
significou para Paulo (veja-se VII da Introdução), e para Lutero (veja-se
Rm 1:1). Quando João Bunyan leu Rm 3:2 foi como se tivesse ouvido
Deus dizendo à sua alma afligida pela culpa conturbada: «Pecador, você
pensa que por seus pecados e fraquezas Eu não posso salvar sua alma,
mas veja, meu Filho está ao Meu lado, e é a Ele a quem olho e não a
você, e tratarei você segundo a complacência que tenho nEle».
Será possível que nos tenhamos acostumado tanto à expressão
“perdão dos pecados”, que tenha perdido a maior parte de seu
significado para nós? Pensamos no fato que estes pecados são
Romanos (William Hendriksen) 189
imensamente mais horrendos aos olhos de Deus que para nós? E que,
apesar de tudo, Ele os apaga de uma vez para sempre, assegurando-nos
amorosamente: “Eu vos perdoarei vossa iniquidade e não lembrarei mais
do vosso pecado'”? Sim, Ele perdoa, embora para poder fazê-lo, e devido
à Sua demanda de perfeita justiça, teve que castigá-los em Seu Filho,
Aquele a quem Ele amava como só Deus pode amar!
Mas a justificação inclui mais, muito mais, que o perdão. O Pai
celestial, depois de ter cancelado nossa dívida, lança Seus braços ao
redor de nós, por assim dizer (cf. Lc 15:20), e diz a cada um dos
perdoados: “Você é meu filho, minha filha, meu próprio. E sendo meu
filho, é também meu herdeiro”(Rm 8:17).
Pensa nisso: “Herdeiros de Deus” somos nós, e “co-herdeiros com
Cristo”, unidos a Ele por um vínculo de amor que nunca pode ser
cortado!
O amor de Deus para conosco é tão assombroso e superabundante
que nunca seremos capazes de medi-lo. Por toda a eternidade os
mistérios desse amor, infinitos em numero, continuassem sendo
revelados a nós. E nós O glorificaremos:
Louvai ao grande Rei! Sua glória cantai!
Seu amor à Sua grei com graça louvai.
É nosso escudo, baluarte e sustento,
O onipotente, por séculos. Amém.
Sua imensa bondade, que língua dirá?
Ou, quem Sua verdade jamais sondasse?
Com suma largueza a todos nos dá,
E fiel Sua promessa também cumprirá.
Jamais compreender a mente poderá
Seu imenso poder, Seu amor sem igual;
É maravilhosa Sua grande criação,
Mas, ó, que assombrosa é Sua redenção!
H. C. Bright
Romanos (William Hendriksen) 190
Lições práticas derivadas de Romanos 3:9–31
Rm 3:9, 10. “Então, o que dizer? Somos nós melhores? De modo
algum … Não há nenhum justo, nem mesmo um”. Quando chegou o
novo pastor, disse a ela: “Seu trabalho aqui será fácil, porque todos nós
somos boa gente”. Então pregou sobre o seguinte texto: “Fiel é a palavra
e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os
pecadores, dos quais eu sou o principal” (1Tm. 1:15, RA).
Rm 3:21, 22. “Mas agora … uma justiça de Deus foi revelada,
testemunhada pelo lei e os profetas, ou seja, uma justiça de Deus que,
por meio da fé em Jesus Cristo, (vem) a todos os que põem em ação a fé
…” Aqui se acrescenta algo antigo a algo novo:
a. Algo antigo, porque a justiça que aqui se indica tinha sido
proclamada faz muito tempo na lei e nos profetas. Abraão, Davi,
Habacuque, etc., tinham dado testemunho dela.
b. Algo novo, porque não foi até agora — quer dizer, até há pouco
— que Jesus Cristo tinha entrado neste mundo de pecado de seu povo,
tinha sido ressuscitado dentre os mortos, e tinha subido ao céu, tendo
comprado salvação para todos os que colocam sua confiança nEle.
O antigo e o novo devem andar de mãos dadas: foi Jesus quem por
meio de Sua obediência ativa e passiva obteve para todos os que se
rendem a Ele, “a justiça de Deus”, e daí a salvação plena e livre.
É assim que o antigo e o novo são na verdade uma só coisa. A ideia
que o Antigo Testamento é para os judeus e que o Novo Testamento é
para a igreja, precisa ser reconsiderada. Em grande medida deveria ser
descartada. Aquele que não toma a sério o Antigo Testamento não
entende Paulo nem a Bíblia.
Rm 3:24, 25. “… Sendo justificados gratuitamente por sua graça
por meio da redenção (obtida) em Cristo Jesus … o derramamento de
seu sangue”. Os que pensam que podem ser salvos à parte da “redenção
por meio do sangue de Cristo” estão cometendo um trágico erro.
Romanos (William Hendriksen) 191
Rm 3:25. “… um sacrifício que aplaca a ira”. Somente então é
possível fazer justiça à consoladora verdade do amor de Deus (Jr 31:3;
Jo 3:16), ou seja, quando este amor é visto em relação com a ira de Deus.
Rm 3:27. “Que lugar há então para a jactância? Fica excluída”.
O céu estará cheio de jactância … no Senhor! Os redimidos
“lançam suas coroas diante do trono, dizendo: “Senhor, digno és de
receber a honra e a glória e o poder …” (Ap 4:10, 11) Em certo sentido
esta canção já começa na terra, com as palavras:
Tua é, Senhor, nossa jactância, de nosso poder a glória;
Tua soberana graça, ó Deus, nossa fortaleza e vitória.
Elevemos a cabeça; o Senhor, nosso escudo, nos protege.
Só por Ele, só nEle, o Deus que nos escolhe,
Obteremos a coroa vitoriosa e, livres já daquele inimigo,
Triunfaremos por nosso Rei, o Deus exaltado de Israel.
Tradução livre de uma versificação do Sl. 89:17, 18
de William Kuipers

Resumo de Romanos 3:9–31


Por meio de uma série de passagens do Antigo Testamento Paulo
aduz evidência a favor de sua proposta que afirma que por natureza
todos estão sob o poder do pecado e que, como resultado, “não há nem
um justo, não, nem mesmo um”. Se isso é verdade, a tentativa de ganhar
a salvação através de obras de obediência à lei de Deus, fracassará.
“Portanto pelas obras da lei nenhuma carne [ser mortal] será justificada
aos seus olhos, porque pela lei vem o conhecimento do pecado” (Rm
3:9–20).
No entanto, quando para o pecador as coisas começam a parecer
muito tenebrosas, a luz do evangelho repentinamente rompe as trevas e
as dissipa: “Mas agora, à parte da lei uma justiça testemunhada pela lei e
pelos profetas foi revelada, ou seja, uma justiça de Deus”. Esta justiça,
para ser eficaz na vida de uma pessoa, deve ser apropriada pela fé em
Romanos (William Hendriksen) 192
Jesus Cristo. Esta regra vale para todos: tanto para o gentio como para o
judeu: “Porque não há distinção, porquanto todos pecaram e não
alcançam a glória de Deus” (vv. 21–23).
O preço pago pelo salvador para justificação dos que põem sua
confiança nEle, e através dEle no Deus Triúno, foi incomensuravelmente
alto. Foi nada menos que o derramamento do sangue de Cristo, isto é, o
oferecimento de Si mesmo. Esta significou que toda a carga da ira foi
transferida de Seu povo a Ele, para que Ele, o Senhor Jesus Cristo, a
levasse em lugar deles. Tudo isso levou a cabo em harmonia com os
desígnios de Deus desde a eternidade. O que Jesus Cristo ofereceu foi,
portanto, um sacrifício voluntário que aplacava a ira, tornado eficiente
nas vidas dos filhos de Deus por meio da fé dada por esse próprio Deus.
Não é até que uma pessoa tenha dado a Cristo as boas-vindas ao seu
coração e vida por meio de uma humilde confiança e rendição genuínas
que Deus o pronuncia justo; isto é, livre de toda mácula de culpa e,
portanto, preparado para receber todas as outras bênçãos incluídas no
termo salvação.
Embora seja verdade que este pesado castigo não foi pago por
Cristo imediatamente depois da entrada do pecado, e que por isso através
de toda a antiga dispensação Deus tratou com indulgência os pecados de
Seu povo, tal castigo não podia ser demorado indefinidamente. A justiça
divina devia ser satisfeita. Durante toda a vida de Cristo sobre a terra, e
especialmente no Calvário, foi pago o altíssimo aprecio: “Deus não
poupou nem o Seu próprio filho, mas o entregou por todos nós” (Rm
8:32). Deus fez isto “para demonstrar sua justiça no tempo presente, para
ser justo e ser ele quem justifica a pessoa que tem fé em Jesus” (Rm
3:24–31).
Romanos (William Hendriksen) 193
B. A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ É BÍBLICA

ROMANOS 4
1. O Exemplo de Abraão. Rm 4:1-12

1. O que diremos então que Abraão, nosso antepassado segundo a


carne, tem descoberto? 107
No parágrafo precedente (Rm 3:21–31) Paulo esteve proclamando
uma justiça de Deus e, portanto, válida diante de Deus e de maneira
nenhuma dependente do mérito humano. Ele afirmou que a lei e os
profetas já tinham dado testemunho desta justiça (Rm 3:21). Este é o
ponto que ele agora vai desenvolver.
Deve observar-se que, ao fazê-lo, o apóstolo não procura tornar
mais fácil o assunto para si mesmo. Ele ataca os proponentes do ponto de
vista oposto — salvação com base no mérito humano — na mesma
fortaleza em que eles se consideram mais fortes, ou seja, a história de
Abraão, esse grande patriarca que, segundo o pensamento dos judeus,
havia ganho sua entrada ao beneplácito de Deus. Paulo pergunta: “O que
diremos então que Abraão, nosso antepassado segundo a carne, tem

107
Há variantes textuais. Alguns MSS omitem a palavra ε_ρηκέναι coisa que em si mesma não afeta
seriamente o significado central da passagem. Outros colocam este perf. at. infinitivo depois de _μ_ν.
Veja-se Hodge, op. cit., pp. 162, 163. O significado seria, em tal caso: “O que obteve Abraão κατ_
σάρκα; quer dizer, por meio do carnal?” A gente poderia dizer: “por seu próprio poder”. porém não só
é fraco o fundamento textual desta variante — veja-se o Aparato Textual de Grk.N.T. (A-B-M-W) —
mas este pensamento está em desacordo com o contexto. O apóstolo não trata o tema do que Abraão
“descobriu”, ou mesmo “obteve”, segundo a carne.
Também existe a variante de πατέρα em lugar de προπάτορα. Mas é lógico presumir que a raridade
da palavra προπάτορα (ac. sig. de προπάτωρ que aparece somente uma vez no Novo Testamento,
contrastada com a frequência com que aparece o termo mais breve, que cobre várias páginas na
Concordance de Moulton e Geden, fez com que alguém iniciasse o processo de substituir a última
palavra pela primeira. Além disso, não indica o próprio fato que a palavra mais longa apareça uma só
vez sua autenticidade neste lugar?
O melhor modo de proceder pareceria ser o de deixar o texto grego tal qual o dá o Novo
Testamento grego ao qual fizemos referência previamente.
Romanos (William Hendriksen) 194
descoberto?” Provavelmente o que o quer dizer é isto: «O que foi que ele
descobriu com relação à maneira como uma pessoa entra numa relação
correta com Deus?»
Note-se: “Abraão, nosso antepassado”. Entre os autores que creem
que a igreja de Roma consistia principalmente de judeus há alguns que
apelam também a esta passagem. Seu argumento é que Paulo, sendo ele
mesmo judeu, ao chamar Abraão “nosso antepassado”, quer dizer que
aqueles a quem se dirige eram em sua maioria judeus. 108 Mas a verdade é
que nem todos os que opinam que os judeus preponderavam nessa igreja
usam Rm 4:1 para apoiar sua contenção; a razão disto é que tal “prova” é
muito fraca, por certo; e isto pelas seguintes razões:
a. Abraão era o pai não somente dos judeus mas também dos
ismaelitas e dos edomitas; assim que mesmo no sentido físico ele era o
pai de judeus e de gentios.
b. O verdadeiro propósito de Paulo em Rm 4 era de demonstrar que
em certo sentido Abraão era pai não só dos judeus mas também dos
gentios. Veja-se Rm 4:11, 12.
c. Em 1Co 10:1 o apóstolo afirma: “Nossos pais estiveram todos
sob a nuvem, e todos passaram o mar”, mas ele não pode ter querido
dizer que os coríntios a quem se dirigia eram em sua maioria judeus.
Veja-se 1Co 12:2 - “Sabeis que, outrora, quando éreis gentios …”
d. Como qualquer dicionário não abreviado do idioma o indica, a
palavra nossos nem sempre é usada no sentido estritamente literal:
“pertencente a nós”. Pode também significar “de interesse para nós”, ou
“que tem que ver com o tema que estamos analisando”, etc. No presente
contexto Paulo, ao referir-se a “Abraão, nosso antepassado”, pode muito

108
A pergunta: “A quem dirigiu Paulo Romanos?” já foi considerada anteriormente. Veja-se
Introdução, IV.
Romanos (William Hendriksen) 195
bem ter estado pensando neste como “aquele distante antepassado de
interesse para todos nós”. 109
Então, o que é que tinha descoberto este antepassado com relação
ao tema em questão?
O apóstolo pensa que tem direito de trazer à tona este exemplo de
Abraão.
2a. Porque 110 se Abraão foi justificado com base nas obras, ele tem
algo de que jactar-se.
Um pouco antes (Rm 3:27) Paulo tinha chegado à conclusão que ao
ser a justificação — daí também a salvação em geral — somente pela fé,
e a fé é um dom de Deus, toda razão para a jactância humana fica
excluída. No entanto, por ter sido cabalmente ensinado na doutrina
farisaica, ele sabe que seus oponentes imediatamente citarão o exemplo
de Abraão como prova positiva de que o fator das obras e, portanto, do
mérito humano, não pode ficar inteiramente excluído quando se faz a
pergunta: «Como a pessoa obtém a aceitação de Deus?» Além disso, se
existir algo assim como o mérito humano, não há então também uma
base para a jactância humana? — O que segue no capítulo 4 é, então, a
poderosa defesa que faz Paulo da proposição expressa anteriormente
(Rm 3:20, 27, 28), que a justificação é pela fé, não pelas obras.
Abraão era considerado pelos mestres judeus e seus seguidores
como o único homem justo de sua geração. Além disso, eles opinavam
que era por essa razão que ele tinha sido escolhido para ser o pai da
nação santa. Ele era considerado como o primeiro dos sete homens que,
por seus méritos, obtiveram que retornasse a Shekinah (nuvem de luz, cf.
Êx 24:15, 16) para que pudesse fazer sua morada no tabernáculo. Somos

109
É preciso reconhecer a possibilidade de que o apóstolo quisesse dizer: “Os antepassados meus e de
meus compatriotas judeus”. Mas mesmo se ele o disse, isso não provaria que os membros da igreja de
Roma eram em sua maioria judeus.
110
A melhor maneira de considerar γάρ é como um explicação da relevância que tem a pergunta do
versículo 1 com relação a Abraão. Este é outro caso de expressão abreviada. Veja-se C. N. T. sobre Jo
5:31. Expresso mais explicitamente, o significado provavelmente seja: “Refiro a Abraão porque o que
se diz com relação a ele comprova que a justificação é pela fé, não pelas obras”.
Romanos (William Hendriksen) 196
informados, também, que Abraão começou a servir a Deus na idade de
três anos, e que esta justiça foi feita completa por sua circuncisão e por
seu cumprimento antecipatório da lei.
Note-se também as seguintes palavras da Oração de Manassés 8:
“Por isso tu, ó Senhor, Deus dos justos, não estabeleceste o
arrependimento para os justos, para Abraão, Isaque e Jacó, que não
pecaram contra ti, mas estabeleceste o arrependimento para mim, que
sou pecador”.
O livro dos Jubileus, que data provavelmente do segundo século
antes de Cristo, minimiza as fraquezas dos patriarcas, e contém a
seguinte afirmação: “Abraão foi perfeito em todas as suas obras para
com o Senhor, e agradável em justiça todos os dias de sua vida (Rm
23:10).
Deve tomar-se nota especial do fato que os rabinos não tinham
temor nenhum de referir-se a Gn 15:6 para defender sua doutrina da
justificação e salvação com base na obra e mérito humano; note-se esta
afirmação: “Nosso pai Abraão chegou a ser herdeiro deste mundo e do
mundo vindouro simplesmente pelo mérito da fé com a qual creu no
Senhor; como está escrito: ‘creu no Senhor, que isso lhe contou como
justiça’ ”. 111 É claro porque ao apelar para Gn 15:6 em defesa da
doutrina da justificação e salvação puramente pela fé, o apóstolo estava
fazendo uso precisamente daquela passagem que era considerado pelos
rabinos como fundamento do ponto de visita oposto.
A rejeição de Paulo a esta doutrina do mérito é cortante. Ele
escreve:
2b–5. Mas do ponto de vista de Deus, ele [Abraão] não tem razão
para jactar-se. 112 Porque, o que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e
isso foi contado como justiça”. Agora, ao que trabalha, seu salário não lhe

111
Veja-se S. BK., III, p. 186ss; 199ss; Mekilta sobre o Êx 14:31; Sanday and Headlam, op. cit., pp.
100, 101, 330–332; Lekkerkerker, op. cit., Vol. I, p. 164.
112
Literalmente: porém não diante de Deus.
Romanos (William Hendriksen) 197
113
é contado como favor, e sim como dívida. Por outro lado, a pessoa que
não trabalha, mas põe sua fé naquele que justifica o ímpio, sua fé lhe é
contada como justiça …
O que Paulo está dizendo é mais ou menos isso:
Nossos oponentes apelam a Gn 15:6 em apoio de sua doutrina da
justificação pelas obras, pelo mérito humano Na opinião deles, Abraão
foi justificado pelas obras. Mas onde em Gn 15:6 é dito sequer uma
palavra com relação à obra ou ao mérito? Segundo Gn 15:6 Deus
outorgou justiça a Abraão como um dom gratuito. Abraão pôs sua fé
naquele misericordioso Doador que “contou” a fé do patriarca como
justiça. Mais plenamente expresso, isto significa que Deus contou como
justiça aquilo que Abraão apropriou-se pela fé, ou seja, a justiça de
Cristo. Que o apóstolo tinha isto em mente é algo que ele esclarece neste
mesmo capítulo — veja-se vv. 6, 11 e 25 — e no que segue (Rm 5:6–
21). Veja-se também 2Co 5:21.
Em Senhor “estimou” ou “considerou” ou “contou” este “ímpio”,
sim, este pecador, ou seja, Abraão, como algo que em si mesmo e por si
mesmo ele não era, a saber, justo. Deus pôde fazer isto sem chegar a ser
de maneira nenhuma injusto, devido à certeza que o Messias vindouro
obteria por meio de seu sacrifício voluntário esta grande bênção para
Abraão e para todos aqueles que compartilham a fé de Abraão. Com
relação a isso, leia-se Is 53, especialmente os vv. 4–6, 8, 12 (material que
Paulo conhecia perfeitamente; Veja-se Rm 4:25; 5:19; 1Co 15:3). Sobre
a pergunta com relação a se o próprio Abraão “viu o dia de Cristo”, cf.
C. N. T. sobre Jo 8:56.
Estou a favor desta interpretação, com sua ênfase na fé de Abraão,
pelas seguintes razões:
a. Em Gn 15:6 a ênfase recai inteiramente na fé de Abraão. Não se
faz nenhuma menção de sua obra ou mérito.

113
Ou: não como dom mas sim como obrigação.
Romanos (William Hendriksen) 198
b. Em Rm 4:2–5 aparecem duas formas do verbo pôr em ação a fé,
crer; também aparece o substantivo afim fé (uma vez).
c. Para fazer ressaltar esta ênfase na fé, a passagem (nos vv. 4, 5)
até implica que Abraão pertencia a uma classe de gente que não trabalha
(para obter sua salvação), e que como resultado não ganha salário. Deus
não lhes deve nada!
d. O verbo hebraico, uma forma de ‫( הָשַׁ ב‬Gn 15:6), em Rm 4:3
traduzido como _λογίσθη, “foi contado”, é muitas vezes usado para
indicar o que uma pessoa, considerada em si mesma, não é ou não tem,
mas lhe é contado, tido, ou considerado ser, ou ter. Exemplos: Gn 38:15;
1 S. 1:13; Jó 13:24. Assim também aqui (Gn 15:6; Rm 4:3) se atribui ou
imputa a Abraão aquilo que ele não possui em si mesmo. É-lhe
misericordiosamente contado com base na justiça de Outro. É-lhes
conferido àqueles que confiam no Senhor para sua justificação e
salvação. 114
e. Na passagem paralela (Gl 3:6–9) a ênfase na fé (no sentido já
explicado) é muito forte:
“(É) assim mesmo como está registrado: ‘Abraão creu [pôs sua fé]
em Deus, e lhe foi contado como justiça’. Saibam então que os que são
da fé, estes são filhos de Abraão. Agora, ao prever a Escritura que pela fé
Deus haveria de justificar os gentios, pregou de antemão o evangelho a
Abraão, (dizendo): ‘Em ti será benditas todas as nações’. Portanto,
aqueles que são da fé são benditos com Abraão, o homem de fé” (C.N.T).
Desde o princípio enfim, pois, a correta relação para com Deus é
um dom de Deus. É apropriada pela fé dada por Deus. (Ef 2:8; cf.
C.N.T. sobre Efésios, pp. 132–134). A Deus, então, corresponde toda a
glória. Para a jactância humana não há lugar algum.
Entre os vv. 1–5 e os vv. 6–8 há uma estreita relação. Na primeira
passagem fez-se referência a Abraão, sobre quem Deus
misericordiosamente conferiu a bênção de uma correta relação para com

114
Veja-se também H. W. Heidland bajo λογίζομαι, Th.D.N.T., Vol. IV, pp. 284–292.
Romanos (William Hendriksen) 199
o Todo-poderoso, a justificação. As palavras que vêm a seguir
descrevem a bem-aventurança daqueles cujas transgressões são
perdoadas. Agora, o perdão é uma parte muito importante da
justificação. Note-se também com quanta frequência uma forma do
verbo contar ocorre nos vv. 1–5. Há um eco disso no v. 8.
6–8.… como também Davi pronuncia uma bênção sobre a pessoa a
quem Deus atribui justiça à parte das obras; “Benditos (sejam) aqueles
cujas transgressões são perdoadas, cujos pecados são cobertos. Bem-
aventurado o homem a quem o Senhor não inculpa de pecado”.
Há os que pensam que, influenciado por sua anterior instrução sob
Gamaliel (At 22:3), Paulo, ao combinar uma referência a Abraão (Gn
15:6) com uma referência a Davi (Sl. 32:1, 2a), está fazendo uso de uma
das sete regras de interpretação formuladas por Hillel, ou seja, a regra
chamada Analogia, que permite que uma passagem seja unida a outra se
a mesma palavra ocorrer em ambas (aqui a palavra “contar”). O
propósito disso é que o significado da palavra na primeira passagem
então também se aplicará a seu uso na segunda. Seja como for, no
presente caso esta translação de significado é certamente legítima, pelo
fato de que a extensão do conceito, ou seja, a misericordiosa imputação
da justiça, não mudou.
Note-se o seguinte:
a. As palavras do Sl. 32:1, 2a, são citadas aqui. Davi está jubiloso.
Por quê? Porque ele sabe que sua transgressão 115 foi perdoada, 116 seu
pecado foi coberto. 117 Veja-se Sl. 32:1–5; especialmente o v. 5b.

115
Literalmente: atos de impiedade, violações da lei e, nesse sentido, transgressões.
116
Do grego _φέθησαν, terc. pes. pl. aor. pas. ind. de _φίημι. Esta é a única passagem em que Paulo
usa o verbo _φίημι no sentido de perdoar. O, no entanto, usa o substantivo _φεσις, perdão (Ef 1:17; Cl
1:14). Com relação à ampla gama de significação que o verbo tem no Novo Testamento, veja-se o C.
N. T. sobre Lc 4:39 e 6:42, respectivamente.
117
_πεκαλύφθησαν, de _πικαλύπτω cobrir, com a mesma construção que o verbo precedente. Usado
no sentido favorável, como se faz aqui, para indicar que o pecado é “apagado”, o original hebraico em
que se baseia este verbo pode encontrar-se também no Sl. 85:2. Mas há também um sentido
desfavorável em que o pecado pode ser coberto (ou encoberto). Vejam-se Jó 31:33; Pv 28:13.
Romanos (William Hendriksen) 200
Se os pecados aos quais este salmo se refere são aqueles que têm
relação com Bate-Seba, o que bem pode ser o caso, o fundo histórico do
Sl. 32 seria o mesmo que o das palavras citadas em Rm 3:4. Veja-se
sobre essa passagem.
No entanto, Davi não está pensando somente no perdão que ele
mesmo recebeu. As próprias palavras: “bem-aventurados (sejam)
aqueles cujas transgressões são perdoadas, cujos pecados são cobertos.
Bem-aventurados é o homem”, etc., indicam que ele inclui em sua bem-
aventurança a todos aqueles que receberam uma bênção similar.
b. O ponto principal enfatizado aqui é que o perdão, concedido e
experimentado, foi o resultado não da obra humana mas da graça divina.
Com relação a isto, Abraão e Davi têm algo em comum. Ambos são
recipientes do favor imerecido e soberano de Deus.
c. No v. 5 da seção imediatamente precedente (vv. 1–5), Paulo usou
a expressão “a fé é contada como justiça”, querendo dizer: «Deus contou
como justiça o que Abraão (ou qualquer que de modo similar coloca sua
confiança em Deus) apropriou-se pela fé, ou seja, a justiça de Cristo”.
Esta explicação é confirmada na presente seção (vv. 6–8); note-se as
palavras: “a pessoa a quem Deus atribui justiça à parte das obras” (v. 6).
Em ambos os casos, por esta razão, no fim das contas não é a fé
considerada por si só e sim a justiça de Cristo a que é imputada ao
pecador que, com fé genuína, fugiu a Deus buscando refúgio.
d. Demonstrou-se que Abraão foi declarado justo, justificado,
embora não houvesse ganho esta bênção pelo cumprimento de nenhuma
boa obra. Aqui, nos vv. 6–8, Davi pronuncia uma bênção sobre os
pecadores contritos, afligidos pela consciência, malfeitores penitentes.
Em ambos os casos as obras humanas não entram no quadro; somente
conta a obra da graça de Deus. Longe de pronunciar “bem-aventurados”
os que têm feito boas obras, Davi pronuncia uma bênção sobre aqueles
cujas transgressões não lhes foram postas em sua conta.
e. A justificação ultrapassa o perdão. Inclui o perdão mas vai além,
como o insinua a própria exclamação “bem-aventurados” (“Ó, a bem-
Romanos (William Hendriksen) 201
aventurança de”). A pessoa verdadeiramente “bem-aventurada” não só
tem consciência de ter sido perdoada. Também se alegra com uma
“alegria inexprimível e cheia de glória” porque pode dizer: “Deus me
aceitou como Seu filho, Sua filha. Ele me ama”. Como evidência veja-se
este mesmo Sl. 32:10. Cf. Sl. 103:11–13; Rm 8:1, 16, 17.
f. No v. 7, Davi é representado, por inspiração, pronunciando uma
bênção sobre aqueles cujas transgressões foram perdoadas, sobre todos
eles. No v. 8 ele individualiza este pronunciamento. Desta vez usa o
singular: “Bem-aventurado o homem — isto é, a pessoa — cujo pecado o
Senhor nunca contará (contra ele)”.
Falar sobre bênçãos concedidas aos muitos é algo bom e necessário.
No entanto, para qualquer pessoa em particular estes favores tornam-se
reais somente quando essa pessoa é capaz de dizer: «Ó Deus, Tu és o
meu Deus» (Sl. 63:1).
9–12. [Pronuncia-se] então esta bênção só sobre os circuncidados, ou
também sobre os incircuncisos? Porque estamos dizendo: “A Abraão foi
contada sua fé como justiça”. Sob quais circunstâncias foi contada?
Depois de ter sido circuncidado, ou sendo ainda incircunciso? Não depois
de ter sido circuncidado, e sim quando ainda era incircunciso. 118 E
recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça pela fé que ele tinha
quando era ainda incircunciso, para que fosse pai de todos os que têm fé
porém não foram circuncidados, para que a justiça lhes possa ser
contada; e também pai de todos os circuncidados que não só estão
circuncidados, mas também seguem nos passos da fé que tinha nosso pai
Abraão (até) antes de ser circuncidado.
Paulo volta agora a Gn 15:6. À luz de sua interpretação do Sl 32:1,
2a, seus comentários adicionais com relação à passagem de Gênesis
tomam um significado adicional. Agora fica claro que ao ser contada a fé
como justiça a Abraão, no sentido que acabamos de explicar, isto foi sem
dúvida uma bênção inestimável, uma bênção tanto mais significativa

118
Literalmente: Estando na circuncisão, ou (estando) na incircuncisão? Não na circuncisão, porém na
incircuncisão. Veja-se a nota 119.
Romanos (William Hendriksen) 202
porque o patriarca não a poderia ter ganho. Além disso, como a
demonstrou a referência ao Sl. 32:1, 2a, a bênção não foi somente para
Abraão mas também para Davi e … acaso para alguns mais? Para os
circuncidados e para os incircuncisos também? Para os judeus e para os
gentios também? 119
A doutrina judaica comum respondia: “Somente para os
circuncidados”. 120 Até na igreja primitiva os judeus convertidos ao
cristianismo encontravam difícil depreender-se de seus preconceitos
nacionalistas: “Alguns homens desceram da Judeia a Antioquia e
ensinavam aos irmãos dizendo: ‘A menos que sejam circuncidados
segundo o costume ensinado por Moisés, não podem ser salvos’ ” (At
15:1). Se fizesse falta alguma prova adicional, ver Rm 2:25–27; Gl 5:2,
6, 12; 6:12–15; Fp 3:2, 3. A pergunta que Paulo faz: “[Pronuncia-se]
então esta bênção só sobre os circuncidados, ou também sobre os
incircuncisos?” tem, como resultado, sua lógica.
A resposta de Paulo é magistral. Sempre se deve levar em conta que
ele escreve sob inspiração. Ele demonstra que a fé de Abraão — ou seja
“a justiça de Cristo apropriada pela fé” — foi contada ou imputada a
Abraão como justiça não depois de ter sido circuncidado, e sim quando
ele era ainda incircunciso! Já então Abraão foi declarado justo aos olhos
de Deus.
Esta observação cronológica tão significativa torna-se evidente
quando se consideram as seguintes referências:
a. Abraão tinha 99 anos ao ser circuncidado (Gn 17:24).
b. Nesse mesmo dia também Ismael foi circuncidado (Gn 17:25).
c. Ismael tinha nesse então 13 anos (Gn 17:25).

119
As duas palavras περιτομή e _κροβυστία, que aparecem várias vezes em Rm 4:9–12, têm uma
ampla gama de significação. Podem referir-se a um estado ou condição (o de circuncisão ou
incircuncisão, respectivamente), mas também podem indicar uma pessoa ou um povo. Além disso,
estas palavras e seus equivalentes hebraicos podem ser usados num sentido figurativo ou espiritual (Dt
10:16; 30:6; Jr 4:4; Rm 2:29; Fp 3:3; Cl 2:11). Em qualquer caso concreto, a tradução correta deve ser
determinada pelo contexto.
120
Veja-se S. BK., p. 203.
Romanos (William Hendriksen) 203
d. Quando Deus fez Sua aliança com Abraão (Gn 15:18), e “Abraão
creu no Senhor, e lhe foi contado como justiça”, (Gn 15:6) Ismael ainda
não tinha sido concebido (Gn 15:2, 3; 16:4).
Conclusão: entre o momento em que a bênção de Gn 15:6 foi
pronunciada sobre Abraão e o dia em que foi circuncidado deve ter
havido um intervalo de pelo menos quatorze anos. Até é possível que o
intervalo tenha sido maior. Segundo a cronologia judaica a brecha foi de
vinte e nove anos (S.BK. III, p. 208). Um período grandemente menor
que o de quatorze anos está fora do possível.
Como resultado, foi sobre o Abraão ainda incircunciso, que nesse
respeito se assemelhava a um gentio, que veio a promessa e que se
pronunciou a bênção. Isto comprova que a circuncisão nada tem que ver
com ser declarado justo.
Se alguns judeus incrédulos ouviram estas palavras, devem ter
ficado escandalizados. Mesmo alguns cristãos de linhagem judaica
devem ter ficado mais que surpreendidos.
Somos informados que Abraão recebeu “o sinal da circuncisão”, em
outras palavras: o sinal, ou seja, a circuncisão. 121 Por ser um “sinal”, o
mesmo significa ou indica um fato. O sinal e a coisa significada
geralmente estão estreitamente vinculados. É assim que no caso presente
o cortar o prepúcio sugere e simboliza o tirar a culpa e a contaminação
do pecado; daí a justificação e, estreitamente vinculada com ela, a
santificação.
A circuncisão era também um selo. Para Abraão era a garantia da
confiabilidade da promessa de Deus. Significava que este patriarca podia
confiar que no caminho da fé e na obediência resultante de tal fé, a
justiça de Cristo lhe era contada ou imputada.
Os sinais e os selos são muito importantes. Por certo, é possível
superestimar seu significado. Em si mesmos e por si mesmos estes sinais
— na antiga dispensação os sangrentos da circuncisão e da Páscoa; na

121
περιτομ_ς deve ser interpretado como genitivo de aposto.
Romanos (William Hendriksen) 204
nova os não sangrentos do batismo e da Santa Ceia — não trazem
justificação nem, em geral, a salvação. No entanto, certamente a
significam e a selam na maneira já indicada. E não é isso uma fonte de
consolo? O arco-íris não salva a humanidade de ser tragada por uma
inundação, mas significa e sela que Deus nunca voltará a afogar a raça
humana. O anel de casamento não traz a felicidade matrimonial, mas o
que pessoa casada que ame o seu cônjuge pensaria em descartar esse
anel que significa tanto para ela (ou ele)? Evidentemente, os sinais e os
selos não devem ser subestimados. Veja-se Êx 4:24–26; Js. 5:1–12; 2Rs
23:21–23; At 2:38, 39; 1Co 11:23s. Eles têm grande valor educacional e
psicológico. Mas tampouco devem ser superestimados!
Paulo se atém ao seu tema. Como resultado, o que ele realmente
enfatiza é isso, ou seja, que Abraão recebeu o sinal da circuncisão como
selo da justiça pela fé que tinha tido quando era ainda incircunciso!
Estas palavras: “Quando era ainda incircunciso”, com leves
variantes, aparecem nos três versículos subsequentes: vv. 10, 11, 12. É
como se Paulo desejasse fazer ressoar nos ouvidos dos gentios
incircuncisos esta enorme verdade: «Creiam no Senhor Jesus Cristo. Não
se detenham. Não vacilem em pôr sua confiança indivisa neste
maravilhoso Salvador, o Revelador do Triúno Deus. O fato de que vocês
não foram circuncidados não pode impedir que sejam salvos. Deus os
está chamando. Deus os está chamando agora. Foi quando Abraão era
ainda incircunciso que Deus fez sua aliança com ele. Ele está disposto a
fazer o mesmo por vocês».
É claro, por conseguinte, que Abraão — a quem foi contada ou
imputada a justiça de Cristo antes de ser circuncidado, e a quem, uma
vez circuncidado, Deus repetiu Sua misericordiosa promessa vez após
vez — é o pai espiritual, a cabeça de dois subgrupos: (a) todos os que
têm fé, porém não foram circuncidados; e (b) todos os que não só foram
circuncidados, mas também têm e exercem sua fé; demonstram que isso
é certo ao seguir “nos passos da fé que Abraão tinha (mesmo) antes de
Romanos (William Hendriksen) 205
ser circuncidado”. Estes dois subgrupos constituem um grande grupo de
crentes, sendo Abraão pai de todos eles (v. 16).
Isto também indica que a circuncisão não é essencial para a
salvação.
Às vezes se mantém que tampouco é um fator de dissuasão, ou de
exclusão. 122 Se isto significar, coisa que estimo provável, que o fato que
uma pessoa tenha sido circuncidada não o previne necessariamente de
ser salvo, estou totalmente de acordo, visto que isso é o que Rm 4:12
ensina claramente.
O que o apóstolo enfatiza vez após vez em suas epístolas é que,
com relação a ser salvo, a circuncisão não faz nenhuma diferença, não
significa nada (1Co 7:19; Gl 5:6; 6:15; Cl 3:11). Porém não sugere isso
também que é dada muita importância à circuncisão — ou hoje em dia
ao batismo — como se em algum sentido a salvação dependesse dela, a
mesma poderia, com efeito, transformar-se em alguns casos num fator de
exclusão? Note-se o que diz Paulo em Gl 5:2 [RA]:
“Eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de
nada vos aproveitará”. Estou certo que o autor do reputado comentário
ao que acabo de me referir tivesse estado de acordo comigo.
Este tema tem uma significação prática para todas as épocas,
inclusive a presente. Acabamos de estabelecer a importância dos sinais e
dos selos. (Não se deve perder de vista, no entanto, que os sinais e os
selos de sangue foram substituídos pelos não sangrentos). E acabamos de
sinalizar o perigo de superestimar seu valor. A razão para enfatizar que
ambos os extremos devem evitar-se é que até hoje a igreja administra os
sacramentos, o batismo e a Santa Ceia. Também com relação a estes
devem evitar-se os extremos. Apressar-se a derramar um pouco de água
sobre a fronte de uma criança moribunda, temendo que de outra maneira
não possa entrar no céu ao morrer, é algo que não tem sentido. Por outro

122
Murray, op. cit., p. 139.
Romanos (William Hendriksen) 206
lado, o costume que alguns têm de adiar sem necessidade o batismo
tampouco é recomendável. Ambos os extremos carecem do aval bíblico.
Os sinais e os selos não salvam automaticamente. Com relação a
isso, note-se quão cuidadoso o apóstolo é. Aqui em Rm 4:12 diz
primeiro aos crentes dentre os gentios (os incircuncisos) que, segundo o
plano de Deus, Abraão chegou a ser “o pai de todos os que têm fé, porém
não foram circuncidados”. Logo acrescenta, fazendo referência aos
crentes dentre os judeus — os que mesmo depois de sua conversão a
Cristo estavam inclinados a prestar muito valor ao sinal (At 15:1) — “e
também pai de todos os circuncidados que não só estão circuncidados
mas também seguem nos passos dessa fé que tinha nosso pai Abraão
(mesmo) antes de ser circuncidado”. É a vida — cf. o viver para Cristo
— o que se enfatiza.
Seria difícil superestimar o significado de Rm 4:9–12. A passagem
significa que com um traço da caneta todo o tremendo muro de
separação entre judeu e gentio foi deitado ao solo. Ainda mais, a
promessa feita a Abraão quando Deus estabeleceu sua aliança com ele
(Gn 15:6, 18; 17:7; 22:15–18) ainda continua em vigor, 123 e tem
significado para todos os crentes e suas famílias. 124

123
Para mais informação sobre este tema veja-se meu folheto El pacto de gracia, SLC, Grand Rapids,
1985, em especial nas pp. 21–25.
124
Convém prestar atenção a alguns pontos de gramática nos vv. 11, 12:
Note-se em primeiro lugar ε_ς τ_ __ιναι α_τόν … ε_ς τ_ λογισθ_ναι α_το_ς: não há nenhuma
razão para subtrair anda de seu pleno sentido de apontar a um fim determinado. Mas propósito não
exclui (mas sim aqui certamente inclui) resultado.
δι_=διά expressa circunstância concomitante, como em Rm 2:27.
Το_ς antes de στοιχο_σιν. Traduzimos: “… que não só estão circuncidados mas também seguem
nos passos …” É difícil explicar este το_ς. Muitos não dizem nada a respeito. Outros estão seguros
que alguém cometeu um erro. Pode-se aceitar a possibilidade de que um dos primeiros copistas se
equivocasse. O texto, porém, parece bem autenticado, pelo que não há solução por este lado. O que
fazer, então? Parece-me que Ridderbos, embora não consiga solucionar completamente este enigma,
contribui ao que poderia ser a melhor resposta. Vejam-se seus comentários em op. cit., pp. 95, 96, 98,
99. Ele indica que no v. 16 encontramos uma construção similar (τ_ antes de _κ πίστεως “que expõe a
pergunta de se para Paulo este tipo de conexão era tão incomum como o é para seus expositores”.
Romanos (William Hendriksen) 207
2. O exemplo demonstra justiça por meio da fé. Rm 4:13-25

Paulo continua sua demonstração de que a doutrina da justificação


pela fé, não por meio das obras da lei, certamente não é uma novidade
mas tem seu fundamento nas Escrituras, isto é, no que hoje nós
chamamos o Antigo Testamento.
No parágrafo precedente (Rm 4:1–12), ele demonstrou que segundo
a Escritura, a obtenção de uma posição de justiça aos olhos de Deus,
não é um assunto de obras e sim de fé e, portanto, de graça. Além disso,
que isto nada tem que ver com a circuncisão. Na verdade, Abraão foi
contado como justo muito antes de ser circuncidado. Por isso Abraão
deve ser considerado pai ou líder espiritual de todos os verdadeiros
crentes, circuncidados ou não.
Neste parágrafo (vv. 13–25), esta ideia de que a graça divina, não o
esforço humano, é a base sobre a qual descansa o edifício da salvação
plena e gratuita é feita ressaltar ainda mais claramente por meio da
ênfase que se põe na promessa divina. Essa palavra promessa — que às
vezes indica a própria declaração divina, ou seu cumprimento ou
realização (a bênção prometida) — aparece aqui pela primeira vez na
epístola de Paulo aos romanos. A ideia de que o Deus da aliança é o
Deus da promessa é repetida várias vezes (vv. 13, 14, 16, 20 e 21). Esta
promessa, além disso, tem um significado de alcance universal. Afeta
não somente a todos os verdadeiros crentes, quer judeus ou gentios, mas
também faz sentir sua influência em todas as épocas, seja passada,
presente ou futura. Os versículos 11 e 12 já nos prepararam para esta
aplicação do alcance universal da promessa divina.
13–15. Porque não foi por meio de (a) lei que Abraão ou sua semente
receberam a promessa de que ele seria herdeiro do mundo, mas por meio
da justiça que resulta da fé. Porque se os que vivem pela lei são herdeiros,
a fé fica privada de seu valor e a promessa feita inútil; porque a lei
produz ira, mas onde não há lei, tampouco há transgressão.
Romanos (William Hendriksen) 208
No entendimento dos judeus, a promessa feita a Abraão se
cumpriria por meio da obediência à lei mosaica. Os rabinos ainda
sustentavam que muito antes de a lei ser promulgada do Sinai, Abraão já
tinha um completo conhecimento dela e a tinha obedecido em todos os
seus detalhes. 125
Diante disso, o apóstolo afirma que a promessa foi feita a Abraão
em seu caráter de homem de fé em Deus, e que foi resultado desta fé que
a justiça lhe tinha sido contada ou atribuída. As obras ou o mérito nada
tinham que ver com a promessa ou com o seu cumprimento. A
obediência à lei não estava em jogo, e que a promessa foi feita a Abraão
muito antes de a lei ter sido promulgada. Cf. Gl 3:16–18.
Notem-se as palavras “… Abraão ou sua semente receberam a
promessa de que ele seria ‘herdeiro do mundo’ ”, quer dizer, que como
dom de Deus o obteria “o mundo”. 126 Mas o que significa isto?
Para responder esta pergunta seria boa ideia indicar em primeiro
lugar que a promessa de Deus a Abraão incluía os seguintes pontos:
a. título de propriedade da terra de Canaã (Gn 12:7; 13:14; 15, 17;
15:7; 17:8). Este ponto é explicado com mais detalhes em Gn 15:18–21.
b. a certeza que, em número, sua semente seria como o pó da terra
(Rm 13:16; 15:5; cf. Gn 18:18).
O livro de Êxodo nos mostra que a promessa de uma abundante
descendência se cumpriu. O livro de Josué nos mostra que também a
terra de Canaã chegou a ser possessão dos descendentes de Abraão.
Antes de proceder ao ponto c., deve indicar-se que a conclusão a
que muitos chegam, ou seja, que hoje em dia, devido ao ponto a., toda a
terra de Canaã, em sua dimensão mais ampla, realmente pertence aos
judeus, carece de fundamento. Toda pessoa imparcial lamenta as
perseguições que os judeus sofreram, deseja que eles possam desfrutar
da medida plena de segurança que lhes corresponde, e se opõe
125
S. BK. III, pp. 186ss; 199–201; 204ss.
126
Com relação ao significado da palavra κληρονόμος veja-se W. Foerster, Th. D.N.T., Vol. III, pp.
781–785.
Romanos (William Hendriksen) 209
implacavelmente a toda manifestação de antissemitismo. Mas isto não é
desculpa para passar por alto o que se expressa claramente em Jr 18:9,
10.
Isso nos leva agora ao próximo ponto:
c. a garantia que na semente de Abraão todas as famílias da terra
serão benditas. Gl 3:16 afirma que é em Cristo, a verdadeira semente, em
quem todos aqueles que O abraçam serão benditos. Gl 3:29 acrescenta:
“E, se sois de Cristo, também sois descendentes de Abraão e herdeiros
segundo a promessa”.
É à luz de passagens como estas, que devemos interpretar a
passagem que indica que Abraão ou sua semente recebeu a promessa de
que ele seria herdeiro do mundo (Rm 4:13), “pai de muitas nações” (vv.
17, 18). E não é também certo que Abraão e todos aqueles que pela graça
soberana constituem sua semente na verdade possuem, num sentido, o
universo? Não colaboram todas as coisas para bem dos que amam a
Deus e são chamados segundo seu propósito (Rm 8:28), tanto que Paulo
pode dizer: “Tudo é vosso” (1Co 3:21)? Uma correta interpretação,
como resultado, indica que Abraão, a quem se imputou a justiça de
Cristo, foi “herdeiro do mundo”. O mesmo foi e é certo, naturalmente, de
todos os que têm parte na fé de Abraão. Se o Senhor é seu Deus, fato que
constitui a própria essência da aliança da graça (Gn 17:7), tudo está
certo.
É compreensível que se, pelo contrário, tivesse razão aqueles que
creem que o que os salvará serão os tenazes esforços por obedecer a lei
em todos os seus detalhes, então a fé — a confiança para a salvação
posta não em si mesmo mas em Deus — teria perdido o seu valor.
Também convém lembrar que se tal fosse o caso, ninguém jamais
poderia ser salvo, visto que a lei demanda a perfeição, coisa que nenhum
pecador pode obter. Como resultado, a promessa seria inútil, uma vez
que sob tais circunstâncias nunca poderia cumprir-se.
Paulo tinha se esforçado muito arduamente por salvar-se através da
lei. Ele tinha fracassado miseravelmente (At 22:3, 4; Gl 1:13; Fp 3:4–7).
Romanos (William Hendriksen) 210
Tendo sido “como tição escapado do fogo”, ele agora entende que “a lei
produz ira”. Ela condena o pecador, pronuncia uma maldição sobre
todos que não cumprem perfeitamente todas as suas demandas (Dt
28:58s). Rm 8:3 grava em nós esta lição de uma maneira comovedora. A
lei não pode capacitar uma pessoa a cumprir suas demandas; como
resultado, não pode salvar ninguém: “Porque o que a lei não podia fazer,
Deus o fez enviando o seu próprio Filho”.
Quando Deus veio a Abraão com Sua promessa da aliança, a lei não
tinha sido promulgada ainda, como se mencionou anteriormente. Por esta
razão, a transgressão consciente da lei era também, num sentido,
impossível: “Onde não há lei, tampouco há transgressão”. Como
resultado, Deus tinha dado amplo espaço para que funcionasse a
promessa.
16, 17. Por esta razão, o que foi prometido veio pela fé, ou seja, para
que pudesse ser um assunto de graça, e para que o cumprimento da
promessa pudesse estar seguro 127 para toda a semente, não para aqueles
que só vivem pela lei, senão para aqueles que também vivem pela fé de
Abraão (o qual é pai de todos nós, como está escrito: “Pai de muitas
nações te tenho feito”), na presença de Deus, em quem ele pôs sua fé, o
Deus que comunica vida aos mortos, e chama as coisas que não são como
se fossem.
Em concordância com o que o apóstolo acaba de dizer com relação
à maneira como Deus leva a cabo Seu plano de salvação, ou seja, não
insistindo em que para ser salvo o pecador deva ganhar sua própria
entrada ao reino dos céus, e sim aportando uma solução em que a graça
triunfe, ele agora afirma que a razão por que a salvação prometida veio
pela fé era para que esta pudesse ser um assunto de graça. 128 Aqui
também está implícito que a promessa: “Eu serei seu — ou vosso —
Deus”, ou seja, que a promessa de salvação plena e gratuita seria

127
Ou certa, firmemente fundamentada, inamovível.
128
Levando em conta o _να que segue quase imediatamente, o melhor é interpretar que δι_ το_το
aponta para frente, ou seja, “Por esta razão … ou seja, para que”.
Romanos (William Hendriksen) 211
certamente cumprida, ou seja, certa, firmemente fundamentada, e
incomovível. Se o cumprimento da promessa tivesse dependido do
esforço humano, de modo que a salvação fosse o produto da obediência
perfeita às demandas da lei de Deus, este cumprimento não poderia ter
sido obtido jamais. Mas agora que é um assunto de graça, ou seja, um
assunto do plano eterno e eficaz de Deus, seu cumprimento na vida de
todo o povo de Deus fica assegurado.
E que fonte de consolo é esta! É por isso que com tanto vigor
algumas congregações, reunidas para a adoração, professam sua fé
proclamando as palavras do Sl. 89:
Cantarei das misericórdias que perduram
Perpetuamente fundadas e seguras;
de fidelidade carente de fraturas,
e que, estabelecida, os céus asseguram. 129
Anônimo
As palavras que vêm a seguir (16b) apresentam-nos um problema.
Depois “de que o cumprimento da promessa pudesse estar seguro para
toda a semente”, a versão Almeida Corrigida, revisão de 1998, diz: “não
somente à que é da lei, mas também à que é da fé de Abraão, o qual é pai
de todos nós”. Quase todas as traduções modernas concordam em
afirmar que o apóstolo tem em mente dois grupos de pessoas a quem a
promessa é assegurada. Segundo Hodge (op. cit. p. 192), estas duas são,
respectivamente, os judeus crentes e os gentios crentes.
Agora, uma objeção a esta construção é que no contexto imediato
— veja-se vv. 11, 12 — Paulo indicou que considera Abraão como o pai
de todos os crentes, tanto gentios como judeus. Por isso é difícil ver
como as palavras “a que é da fé de Abraão” (ou “os que também vivem
pela fé de Abraão”) puderam referir-se somente aos gentios; tanto mais
se levar-se em conta a cláusula que se anexa: “o qual é pai de todos nós”.

129
Levando em conta o _να que segue quase imediatamente, o melhor é interpretar que δι_ το_το
aponta para frente, ou seja, “Por esta razão … ou seja, para que”.
Romanos (William Hendriksen) 212
Por outro lado, o lugar que a pequena palavra “somente” (em grego
μόνον) ocupa na oração pareceria indicar que Paulo não está pensando
em dois grupos para os quais a promessa tem validez, mas somente num
grupo. Ele está dizendo: «Para que o cumprimento da promessa possa
estar seguro para toda a semente, não para aqueles pela lei somente mas
também pela fé de Abraão, ou seja, querendo dizer literalmente: não
para aqueles que vivem pela lei somente, senão para aqueles que
também vivem pela fé de Abraão; ou “não para aqueles que só vivem
pela lei senão para aqueles que também vivem pela fé de Abraão», etc. 130
A promessa, então, é certamente cumprimento só para um grupo, ou
seja, para aquela verdadeira semente, aquela gente que embora honra a
lei de Deus (cf. Rm 3:31), põem sua fé em Deus como o fez Abraão.
Todos eles, quer judeus ou gentios: “são benditos com Abraão, o homem
de fé” (Gl 3:9). Veja-se também Gl 3:29: “E, se sois de Cristo, também
sois descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa”. O que o
apóstolo diz aqui em Rm 4:16 é semelhante ao que expressou em Rm
4:11, 12.
Abraão é chamado aqui “pai de todos nós”. No v. 11 o chama “pai
de todos os que creem”. O apóstolo evidentemente está decidido a
conseguir que os leitores ou ouvintes entendam que Deus não reconhece
dois grupos separados sobre os quais repousa Seu favor especial, mas
somente um grupo que está constituído por todos os verdadeiros crentes,
quer gentios ou judeus. No v. 17 ele até contribui com evidência tirada
do Antigo Testamento: “Pai de muitas nações te tenho feito” (Gn 17:5).
Agora, devemos reconhecer que na passagem de Gênesis as
palavras “muitas nações” se aplicam à descendência natural de Abraão.
No sentido físico este patriarca foi, por certo, pai de muitas nações ou
povos: dos ismaelitas (Gn 17:20) tanto como de Isaque e seus
descendentes (Gn 21:1–3); e através de Isaque, tanto dos edomitas como

130
Com relação a esta contrucción, veja-se também Greijdanus, op cit., Vol. I, p. 238; e Ridderbos,
op. cit., pp. 98, 99.
Romanos (William Hendriksen) 213
dos israelitas (Gn 25:21–25; cap. 36); de fato, até da semente de Quetura
(Gn 25:1s).
Diremos então que o apóstolo, ao falar da paternidade espiritual de
Abraão, e ao citar neste contexto Gn 17:5, está cometendo um erro? Mas
quem se atreveria a tomar a posição de que o Espírito Santo carece do
direito de tomar uma passagem do Antigo Testamento e lhe dar uma
aplicação diferente da que tinha tido em seu marco original? Contudo, no
presente caso não temos que fazer uso deste argumento visto que até nas
passagens de Gênesis a referência a uma paternidade espiritual não está
totalmente ausente. Note-se que em Gn 12:3 diz a Abraão que nele e por
ele todas as famílias da terra serão benditas. 131
Bela é a expressão “a fé de Abraão … na presença de 132 Deus, em
quem ele pôs sua fé”. Descreve o grande patriarca como alguém que
recebeu vivas experiências da presença divina. O pai de todos os crentes
estava cheio de profunda reverência; mas também de confiança filial.
Paulo descreve também o objeto da fé de Abraão como: “o Deus
que comunica vida aos mortos”. A referência é Àquele que reviveu o
poder de Abraão para gerar, e a habilidade de Sara para dar à luz. Veja-
se vv. 18, 19. 133 Paulo também pode ter estado pensando na ressurreição
de Jesus, visto que quando descreve a Deus como Aquele que dá vida
aos mortos, ele está professando por meio desta afirmação sua própria fé.
Além disso, veja-se Rm 4:24, 25.
Qual é o significado de: “E chama as coisas que não são como se
fossem?” Com relação a estas palavras há várias interpretações. A pior
delas é provavelmente a proposta pelo líder de uma certa seita. Segundo

131
A esta passagem (Gn 12:3) é reconhecida uma ressonância ou implicação espiritual da parte de G.
Ch. Aalders, Korte Verklaring, Genesis, Kampen, 1949, Vol. II, p. 63.
132
κατέναντι, termo muito estreitamente relacionado com _ναντι, é o equivalente que usa a LXX para
o hebraico ‫ ל ְפנֵי‬. Veja-se minha dissertação: The Meaning of the Preposition _ντί in the New
Testament, pp. 68–70.
133
Há aqueles que também mencionam, com relação a isto, a preservação da vida de Isaque (Gn 22).
Hb 11:17–19 pode contribuir com um pouco de apoio a esta ideia. No entanto, Rm 4:19 não faz
referência alguma a este evento. Sua relevância neste ponto é, então, bastante incerta.
Romanos (William Hendriksen) 214
o relatório de um diário, quando esta pessoa foi surpreendida dizendo
uma mentira, sua desculpa foi: «E daí? Não diz a Escritura que até Deus
chama as coisas que não são como se fossem?»
A explicação mais razoável pode ser aquela que refere esta
expressão à atividade do Todo-poderoso durante a semana da criação,
quando, segundo Is 48:13, ele chamou à existência aquilo que antes não
existia, ou seja: os “fundamentos da terra” e “os céus”, representando
provavelmente toda a obra da criação.
A ênfase principal do argumento de Paulo é este; que foi pela fé no
Todo-poderoso e Sempre Fiel Deus, e não por obras que Abraão recebeu
o cumprimento da promessa.
18–22. Contra toda esperança, Abraão em esperança creu, de
maneira tal que chegou a ser pai de muitas nações, conforme o que lhe
havia sido dito: “Assim será a tua descendência”. E sem que se debilitasse
sua fé tomou nota do fato que seu próprio corpo estava como morto —
visto que tinha uns cem anos — e que também o ventre de Sara estava
morto. 134 Contudo, ele não vacilou em incredulidade com relação à
promessa de Deus, mas foi fortalecido na fé, dando a glória a Deus,
estando totalmente persuadido de que Deus seria capaz de cumprir o que
tinha prometido. Por isso foi contado como justiça.
O caráter da fé de Abraão é apresentado de uma maneira muito
chamativa.
Note-se o seguinte:
a. “Contra toda esperança, Abraão em esperança creu”.
No fundamental, ter esperança significa estar à expectativa de algo
desejável. No presente caso o objeto da esperança era o cumprimento da
promessa de Deus que Abraão teria um filho, em cuja linhagem a
preciosa promessa de Deus — “Serei o teu Deus … em tua semente
todas as nações da terra serão benditas … Assim será a tua semente” —
teria cumprimento.

134
Ou: o considerou seu próprio corpo … e a falta de vida do ventre de Sara.
Romanos (William Hendriksen) 215
Chegou um tempo no qual, falando em termos humanos, esta
esperança parecia de impossível cumprimento. No entanto, “contra toda
esperança”, ou seja, apesar de que o nascimento do filho da promessa
parecia impossível, Abraão “em esperança” — aqui o convencimento de
que Deus seria fiel à Sua promessa — continuava confiando em Deus.
Resultado: a esperança foi cumprida de tal modo que, por meio de seu
filho Isaque, Abraão chegou a ser “pai de muitas nações” (Cf. v. 17)
b. “Ele não vacilou … mas foi fortalecido na fé …”
Passaram os anos e a promessa não se tinha cumprido ainda. Com
valor o patriarca enfrentou o fato que ele tinha agora uns cem anos, ou
seja, que “seu próprio corpo” — fazendo aqui uma referência especial à
sua capacidade reprodutiva — estava como morto, 135 e que Sara era
estéril. No entanto, ele não só continuou exercendo sua fé em Deus e em
Sua promessa, mas ainda foi fortalecido em sua fé. Que isto é o que
realmente sucedeu é evidente do fato que quando Deus repetiu a
promessa a essa idade tão avançada — “certamente Sara tua mulher dará
à luz um filho” (Gn 17:19) — e ordenou que todos os varões de sua casa
fossem circuncidados (Gn 17:9–14), Abraão imediatamente glorificou a
Deus ao obedecer este mandato (Gn 17:23–26). E por ter glorificado
desta maneira a Deus, ele foi fortalecido em sua fé. E pelo fato de que
esta fé esperava tudo de Deus, confiando-se nEle completamente, a
mesma lhe pôde ser e na verdade foi, “contada como justiça”.
Quando um pastor apresenta à sua congregação este relato da
maravilhosa e decidida fé de Abraão, bem pode suceder que alguns se
desanimem, pensando: «Se Deus requerer uma fé tal, ou seja, que um
homem muito passada sua idade de ter filhos, com uma mulher cujo
ventre está morto, deva crer a promessa de Deus de que terá um filho,
que este filho será varão, e que esta mesma mulher e não outra o dará à
luz, então não há esperança para mim.» Quando se trata de ter uma fé
135
A leitura _δη νενεκρωμένον, com retenção de _δη, está sujeita a um grau considerável de dúvida.
Pareceria ter uma muito pequena vantagem sobre a leitura sem _δη. A forma verbal é o acus. s. neut.
part. perf. pas. de νεκρόω, dar morte; no passivo, como aqui, ser impotente, estar como morto.
Romanos (William Hendriksen) 216
simples, confiante, a classe de confiança que se aferra a Deus sob
qualquer circunstância, e em toda circunstância da vida, que grande luta
frequentemente experimento eu!
Um adequado estudo da Escritura, no entanto, deve convencer a tal
pessoa de que embora haja um sentido em que a fé de Abraão não
vacilou e até foi fortalecida, isto não quer dizer que ele não tivesse sua
luta. Ele a teve! Isto está claramente explicado em Gn 17:18 (e talvez
também em Gn 17:17, embora com relação a este versículo os intérpretes
estão divididos). Mas Deus imediatamente voltou a lhe dar segurança
(Gn 17:19), e foi nesse sentido em que a fé de Abraão não vacilou e
ainda foi fortalecida. Por isso, todo pastor deve orientar a sua
congregação para o Salvador, quem, em resposta à oração da alma que
luta e em cooperação com o ensino da Palavra, á fortalecerá e
tranquilizará. Um hino excelente com relação a este tema é:
Quando na prova falta a fé
E a alma vê-se desfalecer
Cristo lhe diz: “Eu te darei
Graça divina, santo poder”.
E. A. Montfort Diaz
Que estas preciosas passagens da Escritura tinham vigência para
todas as épocas é algo que fica demonstrado nos versículos que fecham
este capítulo de Romanos:
23–25. Agora, as palavras: “Foi contado”, não foram escritas para
ele somente, mas também para nós a quem será contado, a nós que pomos
nossa fé naquele que ressuscitou a Jesus nosso Senhor dentre os mortos,
quem foi entregue por nossas transgressões e ressuscitado por nossa
justificação. 136
“… não … para ele somente, mas também para nós”. Que as
palavras da Escritura foram escritas não somente para os
contemporâneos dos respectivos escritores, mas também para gerações

136
Em vez de por … por, poderia substituir-se por causa de … por causa de.
Romanos (William Hendriksen) 217
posteriores, é algo que se ensina em ambos os Testamentos (Sl. 78:1–7;
Rm 15:4; 1Co 9:10; 10:11; e em certo sentido 2Tm 3:16). Do mesmo
modo as experiências dos filhos de Deus deviam ser contadas a gerações
posteriores (Gn 18:19). Hoje em dia, nesta época em que para muitos o
estudo da história fez-se uma arte perdida, este recordatório deveria
servir-nos de advertência. O que Paulo está dizendo é que nós também
estamos vitalmente envolvidos nesta história sobre Abraão e com o
modo em que a justiça de Cristo foi imputada. Não é verdade que nós
também somos aqueles a quem esta justiça deve ser contada? Não
estamos incluídos na família daqueles que põem sua fé nAquele que
ressuscitou a Jesus nosso Senhor dentre os mortos?
Note-se que a atitude de Paulo para Jesus Cristo não só demonstra
uma profunda reverência (“Senhor”), mas também uma profunda
gratidão, um amor comovedor (“nosso”). Quando o apóstolo escreveu as
palavras “Jesus nosso Senhor”, ele não se limitava a recitar alguns
títulos. Não, este é o Paulo de Gl 2:20, aquele que disse: “O Filho de
Deus me amou e se entregou a si mesmo por mim”.
Ao refletir, então, na onipotência e no amor de Deus postos em ação
a favor de Seu povo, Paulo se inclui a si mesmo e a seus leitores no
âmbito daqueles que põem fé nAquele que ressuscitou a Jesus nosso
Senhor dentre os mortos.
A ampla lista de referências que indica que os doze (com frequência
representados por Pedro) e Paulo estavam convencidos não só do fato de
que Jesus tinha ressuscitado dentre os mortos, mas que Deus O havia
ressuscitado — veja-se At 2:24, 32; 3:15, 26; 4:10; 5:30; 10:40; 13:30,
33, 34, 37; 17:13; 1Co 6:14, 15:15; 2Co 4:14; Gl 1:1; Ef 1:20; Cl 2:12;
1Ts 1:10 (cf. Hb 13:20; 1 P. 1:21) — é significativo. Não é verdade que
parece que estas passagens chamam a atenção ao fato de que Deus o Pai
deve ter estado satisfeito com o sacrifício expiatório que Jesus tinha
oferecido?
Paulo continua com palavras que foram, e continuam sendo,
ocasião de muita controvérsia, controvérsia que se centraliza numa
Romanos (William Hendriksen) 218
pequena palavra grega de três letras (διά), que pode ser traduzida pelas
palavras “por” ou “devido a” ou “por causa de”.
A controvertida passagem tem que ver com “Jesus nosso Senhor”, e
a disputa está centralizada na cláusula “que foi entregue por nossas
transgressões e ressuscitado por nossa justificação”.
Alguns sustentam que ao ser paralelas estas duas cláusulas — (a)
entregue por nossas transgressões, e (b) ressuscitado por nossa
justificação — a consequência é que se a primeira olha para trás (é
retrospectiva), a segunda deve fazer o mesmo. Ou que se a primeira olha
para frente (é prospectiva), também o deve fazer a segunda. Veja-se
Murray (op. cit., p. 154s). Este escritor escolheu a segunda destas
alternativas: Jesus foi entregue para expiar nossos pecados e foi
ressuscitado para que possamos ser justificados. Um ponto de vista
similar pode ser achado no comentário do Denney, op. cit., p. 622. Para
ser justo com ambos os autores, que têm escrito comentários dignos de
um sério estudo, deveria consultar-se seus livros sobre este ponto.
É interessante notar que A. Schlatter, que também parte da ideia de
que διά deve ter o mesmo significado em ambas as cláusulas, chega à
conclusão oposta. Como ele vê o assunto, ambas são retrospectivas; por
que nós caímos, Jesus foi condenado; porque fomos justificados, Ele
ressuscitou. 137
É certo, na verdade, que estamos obrigados a escolher entre estas
duas alternativas? O provável é que nº. Existe uma terceira possibilidade,
ou seja, que embora basicamente a pequena palavra possa ter o mesmo
significado em ambas as cláusulas, ou seja, que possa indicar
causalidade, esta causalidade poderia de todas formas olhar para trás na
primeira cláusula e para frente na segunda. De fato, até na frase quase
imediatamente precedente (vv. 23, 24) é claro que o primeiro διά (o do v.
23: “por ele”) olha para trás, para Abraão; o segundo, (no v. 24: “por
nós”) olha para frente. O mesmo sucede aqui: “Ele foi entregue por, ou

137
A. Schlatter, Gottes Gerechtigkeit, Ein Kommentar zum Römerbrief, Stuttgart 1952, p. 173.
Romanos (William Hendriksen) 219
devido a, nossas transgressões” olha para trás e significa que nossas
transgressões fizeram necessário que Ele fosse entregue, enquanto que
(Ele) foi ressuscitado por, ou por causa de, nossa justificação” olha para
frente e indica que Ele foi ressuscitado para nos assegurar que aos olhos
de Deus nós estamos sem dúvida, livres de pecado. Em outras palavras, a
ressurreição de Cristo tinha como propósito trazer à luz o fato que todos
os que reconhecem a Jesus como seu Senhor e Salvador entraram num
estado de justiça aos olhos de Deus. 138 O Pai, ao ressuscitar Jesus dentre
os mortos, assegura-nos que o sacrifício expiatório foi aceito; como
resultado, nossos pecados são perdoados.
Antes de deixar esta preciosa passagem (Rm 4:25) devemos indicar
que aqui se revela mais uma vez a estreita relação que há entre o Antigo
e o Novo Testamento. As palavras “que foi entregue [ou: entregue para
morrer] por nossas transgressões” são um forte sinal recordatório do que
encontramos em Is 53, onde nos vv. 4, 5, 6, 8, 11 e 12, descreve-se e
prediz de uma maneira ou de outra o sofrimento vicário do Messias. 139
Que esta verdade com relação à justificação dos crentes, somente
pela graça e pela fé, é um tesouro tão precioso que nada — nada! — a
pode superar, é algo que Paulo confessa quando com espírito jubiloso
exclama:
“No entanto, tais coisas que eram para mim lucro, estimei-as como
perda por amor de Cristo. Sim, ainda mais, certamente estimo como
perda todas as coisas devido à sublime excelência de conhecer Cristo
Jesus, meu Senhor, por quem perdi todas as coisas, e ainda as sigo
considerando como lixo, a fim de poder ganhar em Cristo e ser achado
nele, não tendo minha própria justiça, derivada da lei, mas a justiça (que

138
Neste debate com relação ao significado de δια não pude encontrar nada melhor que o oferecido
por S. Greijdanus, op. cit., pp. 251, 252; e por Ridderbos, op. cit., p. 104. Ambos são excelentes.
139
A verdade é que na versão LXX de Is 53 é justamente a expressão “entregar” no sentido de
“entregar para a morte” a que ocorre duas vezes (v. 6 e 12). Traduzida ao português, o versículo 6 na
LXX diz: “E o Senhor o entregou por nossos pecados”. O versículo 12 diz: “E por causa de vossos
pecados ele foi entregue”. Mas este versículo tem uma leitura diferente no hebraico: “E ele intercedeu
pelos transgressores”
Romanos (William Hendriksen) 220
é) pela fé em Cristo, a justiça (que procede) de Deus e com base na fé
…” (Fp 3:7–9 C. N. T.).
Entre as muitas verdades preciosas postas diante de nós neste quarto
capítulo de Romanos está certamente esta, tão notável, ou seja, que a
consoladora doutrina da justificação não pelas obras mas pela fé está
firmemente enraizada nas Escrituras (o Antigo Testamento), como o
comprova o exemplo de Abraão.

Lições práticas derivadas de Romanos 4


Rm 4:1. “O que diremos, então, que Abraão tem descoberto?”
Veja-se também vv. 3, 9 e 10. Uma sugestão para o oradores:
mantenham o interesse do seu auditório formulando perguntas … porém
não abusem deste recurso.
Rm 4:7. “Bem-aventurados aqueles cujas transgressões são
perdoadas … cujos pecados são cobertos”. A referência a Davi é
certamente apta, visto que se algum homem tive recebido a posição de
justo diante de Deus sem tê-la ganho, esse homem foi Davi. Mas devido
à graça soberana de Deus seus pecados foram perdoados, apagados.
Além disso, como o prova o Salmo 32, essa mesma bênção é outorgada a
todo pecador verdadeiramente penitente.
Rm 4:11. “E recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça
pela fé …” Porque Deus é amor (1 Jo 4:8) e porque Se deleita em salvar
pecadores (Is 1:18; Ez 18:23, 32; 33:11; Os 11:8; Mt 11:28–30; Jo 7:37;
Ap 22:17), Ele fortalece Suas promessas por meio de sinais e selos.
Rm 4:16–17. “Abraão … pai de todos nós, pai de muitas nações”.
No reino de Deus não há lugar para o preconceito racial. Todos os
crentes constituem uma família, a família de Abraão; num sentido ainda
mais profundo “A família de Deus” (Ef 3:14, 15).
Rm 4:18. “Contra toda esperança, Abraão em esperança creu”. Há
uma classe de esperança que não tem verdadeiro fundamento, que não
tem âncora. A esperança de Abraão estava firmemente ancorada, ou seja,
Romanos (William Hendriksen) 221
na indefectível promessa de Deus. Veja-se Hb 6:19, 20; 11:1, e o hino
“Nossa fortaleza, nossa proteção”, de E. Velazco.
Rm 4:21. “… estando totalmente persuadido de que Deus seria
capaz de cumprir o que tinha prometido”.

Pontos de contraste entre a promessa humana e a promessa divina.


a. A promessa de Deus sempre é boa e justa. As promessas
humanas às vezes são errôneas.
b. A promessa de Deus é substancial; de fato, inapreciável. As
promessas humanas são muitas vezes corriqueiras.
c. Deus nunca Se esquece de Sua promessa. As pessoas com
frequência esquecem das suas.
d. Deus — como resultado, também Jesus — cumpre Sua promessa.
Com relação a isso, também, a pessoa muitas vezes falha. Mas quanto ao
Senhor, não é verdade que o que Ele concede é muitas vezes ainda mais
do que prometeu? Cf. Mt 28:7 (ou Mc 16:7) com Lc 24:35, 36.

Resumo de Romanos 4
Tendo exposto a verdade que o estado de justiça aos olhos de Deus
não pode ser obtido por meio de obras humanas mas é dom de Deus, o
apóstolo, em consonância com Rm 4:21, desenvolve agora o fato que
esta representação não é uma novidade, mas é totalmente bíblica.
Com relação a isso ele fixa a atenção do ouvinte e/ou leitor na
forma em que Abraão obteve esta grande bênção: “Abraão creu em Deus
e foi contado como justiça” (Gn 15:6). Ele comenta: “Agora, ao que
trabalha, seu salário não lhe é contado como favor, e sim como uma
dívida. Por outro lado, a pessoa que não trabalha, mas põe sua fé naquele
que justifica o ímpio, a sua fé lhe é contada como justiça”. Deus contou
como justiça o que Abraão se apropriou pela fé, ou seja, a justiça de
Outro, a saber, de Jesus Cristo, que foi imputada a Abraão. Cf. Rm 4:6,
11, 25; 5:6–21; cf. Is 53:4–6, 8, 12.
Romanos (William Hendriksen) 222
Por meio de uma citação do Sl. 32 o apóstolo demonstra que o que
foi certo com relação a Abraão tem vigência para todos os crentes:
“Bem-aventurados (sejam) aqueles cujas transgressões são perdoadas,
cujos pecados são cobertos”.
Retornando a Gn 15:6, Paulo pergunta: “Pronuncia-se, então, esta
bênção só sobre os circuncidados, ou também sobre os incircuncisos?”
Ele demonstra que foi muito antes de Abraão ser circuncidado que sua fé
foi contada como justiça. Como resultado, Abraão chegou a ser “o pai de
todos os crentes”; isto é, tanto dos incircuncisos como dos circuncidados;
em outras palavras, tanto dos crentes gentios como de crentes judeus (v.
1–12).
Em estreita relação com o imediatamente prévio, Paulo enfatiza
agora a importância da promessa de Deus e seu cumprimento. Não foi
por meio da lei que Abraão recebeu a promessa. As obras ou o mérito
humanos nada tiveram que ver com ela. Foi a fé na promessa o que
importava. Cf. Gl 3:9, 29. Deus prometeu a Abraão que ele seria “pai de
muitas nações”, e por conseguinte “herdeiro do mundo” (Gn 17:5).
Abraão não vacilou em incredulidade mas foi fortalecido na fé. Ele pôs
sua fé nAquele “que dá vida aos mortos, e chama as coisas que não são
como se fossem”. Visto que Abraão tinha quase cem anos e Sara era
estéril, esta fé de Abraão foi, sem dúvida, notável. O patriarca creu que o
que Deus tinha prometido, isso também faria. Além disso, as palavras:
“foi contado como justiça” não somente tinham validez para ele senão
para todos aqueles que põem sua fé em Deus, aquele que “ressuscitou a
Jesus Cristo nosso Senhor dentre os mortos”.
O Salvador “foi entregue por nossas transgressões e ressuscitado
por nossa justificação”. Isto provavelmente significa que nossas
transgressões fizeram necessário que Jesus fosse entregue à morte, e que
Ele foi ressuscitado à vida para nos assegurar que Seu sacrifício vicário
tinha sido aceito. Como resultado os crentes são, diante dos olhos de
Deus, livres de pecado e, portanto, justos (vv. 13–25).
Romanos (William Hendriksen) 223
Por meio de evidência corroborativa tirada do Antigo Testamento,
Paulo deixou bem claro que a consoladora doutrina da justificação — e
por isso também a salvação — pela fé, baseada na graça soberana de
Deus, é por certo completamente bíblica.
Romanos (William Hendriksen) 224
C. A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ É EFICAZ

ROMANOS 5
1a. Produz o fruto da paz. Rm 5:1–11

Sob o título geral A justificação pela fé, uma exposição (Rm 1:16–
11:36), Paulo demonstrou que esta justificação é necessária e real (Rm
1:16–3:31), e ao mesmo tempo bíblica (Romanos 4). Em Romanos 5–8
ele demonstra que também é eficaz e frutífera.
É claro que no pensamento de Paulo os capítulos 5, 6, 7 e 8 formam
uma unidade. Os frutos da justificação são expostos em todos eles. Além
disso, em seu último versículo cada um destes quatro capítulos contém a
frase “por meio de (ou em) Jesus Cristo (ou Cristo Jesus) nosso Senhor”.
As classes de frutos variam de capítulo em capítulo. Aqui, em Rm
5:1–11, a atenção do ouvinte e/ou leitor é enfocada primeiro na paz.
Com relação a ela faz-se menção também da liberdade de acesso, o
regozijo e a esperança, uma esperança que está firmemente ancorada e é
igual a certeza com relação à salvação.
Por meio do paralelo Adão-Cristo (vv. 12–21) a certeza e
especialmente o caráter abundante da salvação recebem uma elucidação
adicional.
1, 2. Por isso, tendo sido justificados pela fé, temos paz com Deus por
meio de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de quem também obtivemos
acesso pela fé a esta graça, na qual estamos, e nos regozijamos na
esperança da glória de Deus. 140
140
No começo deste parágrafo encontramos já uma dificuldade. O que foi que disse Paulo e escreveu
Tércio: “Temos paz”, ou “Tenhamos paz”? Entre os tradutores e expositores há uma marcada divisão
de opinião com relação a esta pergunta. O fato é que o texto grego subjacente não é uniforme. A
evidência textual a favor do subjuntivo _χωμεν é forte. Esta forma conta com o apoio do Sinaítico e
do Vaticano (de mão original em ambos os casos), e além disso o do Alexandrino, Ephraemi
Rescriptus, Códice de Beza, etc., como também o apoio adicional de muitas citações patrísticas e
cursivas. Tanto diversas versões antigas como traduções mais recentes demonstram que seus autores
Romanos (William Hendriksen) 225
O apóstolo alcançou uma nova fase na exposição de justificação
pela fé. Ele agora simplesmente dá por sentado que ele mesmo, e os
destinatários, receberam e desfrutam deste maravilhoso dom. É deste
fato, tomado como ponto de partida, que a exposição agora procede.
As diversas unidades que compõem os versículos 1 e 2 podem ser
agrupadas como seguem:
a. “Por isso, tendo sido justificados pela fé …”
As razões implícitas neste “por isso” encontram-se nos primeiros
quatro capítulos; especialmente em Rm 3:21–4:25.

aceitam esta leitura. Alguns escritores se expressam de modo muito enérgico, como se o ponto de
vista oposto, que favorece o indicativo _χομεν, é totalmente impossível de defender. Veja-se, por
exemplo, Word Pictures, de Robertson, Vol. IV, p. 355; e Lenski, op. cit., pp. 333, 334. Entre outros
que de uma maneira ou de outra favorecem também o subjuntivo (“Tenhamos paz”, “Sigamos tendo
paz”, “Vivamos em paz”, “Desfrutemos de paz” ou algo similar) estão as versões ao inglês de
Berkeley, Goodspeed, Moffat, N.E.B.
Mas o indicativo _χομεν, “temos”, também tem um apoio considerável. De fato, o fragmento
Wyman, ao qual a atribuiu uma data muito anterior (parte final do século três), tem o indicativo
_χομεν.
Entre as traduções ao português que favorecem o indicativo estão a Bíblia de Jerusalém, Almeida
Atualizada, versão 1999, a Nova Versão Internacional e a tradução da Comunidade de Taizé. Entre as
traduções ao inglês mencionamos a A.V., A.R.V., N.A.S., a do Beck, R.S.V. já a N.I.V. Às vezes se
reconhece uma possibilidade no texto, e a outra numa referência ou numa anotação à margem.
Quanto a outra tentativa por fazer justiça ao original, ou seja: “Desfrutemos da paz que temos”, ou
algo similar (veja-se Murray, op. cit., p. 159), não vejo razão que justifique este compromisso. De
minha parte, aceito o indicativo. A mais da evidência contribuída pelo já mencionado fragmento
procedente do terceiro século, há duas considerações que me levaram a adotar esta leitura:
a. Na época em que se escreveu o Novo Testamento, as letras gregas ο e ω começavam a
pronunciar-se de modo similar, e às vezes eram usadas reciprocamente. Com relação a isto note-se
também a variante διώκομεν por διώκωμεν em Rm 14:19, onde a versão ortográfica com dois ômegas
merece a preferência, o que constitui uma aplicação o contrário da mesma pronúncia e peculiaridade
gráfica que encontramos em Rm 5:1.
b. A lógica do contexto aqui em Rm 5:1 favorece muito o indicativo. A pessoa justificada tem paz
para com Deus (cf. Rm 2:14–18). Eles não dizem “tenhamos paz”. A cláusula que vem imediatamente
a seguir: “através de quem também obtivemos acesso pela fé a esta graça, na qual estamos”, é uma
afirmação de fato e, como o demonstra a palavra também, sugere que as palavras que a precedem
imediatamente igualmente expressam um fato. “Temos paz … também obtivemos acesso”. Note-se a
série de indicativos que segue: “… regozijamo-nos … até nos regozijamos … sabemos, etc.” Não
indica tudo isso com clareza que em Rm 5:1 não começou ainda a parte exortativa desta seção —
veja-se Rm 6:1s, 6:15s, 7:7s, 8:13s.
Romanos (William Hendriksen) 226
b. “… temos paz com Deus …”
Com relação ao significado do termo paz, veja-se Rm 1:7; 2:10.
Como fazem bem claro Rm 5:10, 11, em Rm 5:1 o significado básico da
paz é a reconciliação com Deus por meio da morte de Seu Filho. Isto
compreende a remoção da ira divina que pesava sobre o pecador, e a
restauração deste último ao favor divino.
O fato de que a paz objetiva aparece aqui em primeiro plano não
significa, no entanto, que a alegria subjetiva desta grande bênção esteja
ausente da mente de Paulo. Como poderia ele pensar na causa sem
considerar o efeito, ou seja, a condição de descanso e contentamento
presente nos corações dos que sabem que os pecados do passado foram
perdoados, que os males do presente estão sendo dirigidos para seu bem,
e que os acontecimentos futuros não nos podem separar do amor de
Deus? A menção desta “paz que sobrepuja todo entendimento” (Fp 4:7)
faz com que a transição ao próximo ponto seja muito natural
c. “… por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de quem
obtivemos acesso pela fé a esta graça na qual estamos …”
Foi o sangue de Cristo, representando todo Seu sacrifício vicário,
que trouxe a reconciliação, e foi Seu Espírito que trouxe aos corações de
todos os verdadeiros crentes a avaliação do que a redenção por meio do
sangue tinha obtido. Assim que certamente foi por meio da pessoa e obra
do Salvador, apropriada pela fé, que se efetuou o acesso a este estado de
graça — isto é, o estado de justificação. Além disso, o acesso a este
estado de graça implica um acesso confiado ao Pai (Ef 2:8; 3:12) e a seu
trono de graça (Hb 4:16).
É “nosso Senhor (Dono, Amo) Jesus (Salvador) Cristo (Ungido)”
quem, tendo pago a dívida de Seu povo, apresenta-os ao Pai. É Ele que
não somente “intercede” por eles (Rm 8:34) mas, coisa ainda mais
significativa, “sempre vive para interceder” por eles (Hb 7:25). E se até
sua intercessão por eles durante sua estadia na terra estava cheia de
consolo (leia-se Jo 17), pode Seu rogo por eles, agora que Ele retornou
Romanos (William Hendriksen) 227
ao céu, investido com os méritos de sua cumprida redenção, ser menos
precioso e eficaz?
d. “… e nos alegramos na esperança da glória de Deus”.
Esta “glória de Deus” indica a maravilhosa salvação que Deus tem
reservada para os que põem nEle sua confiança. Veja-se passagens tais
como as seguintes: Rm 2:7; 8:18, 30; 1Co 15:43; 2Co 4:17; Cl 1:27b;
3:4; 2Tm 2:10. Para o significado da palavra grega aqui traduzida
“alegremos” veja-se sobre Rm 2:17. Sem dúvida, o que Paulo tem em
mente é: «Não nos jactamos de nossas próprias realizações, como o faz
certas pessoas que se consideram justas, mas colocamos toda nossa
confiança em Deus. NEle nos regozijamos grandemente».
Em Jesus Cristo, sólida Rocha, sustento-me;
O resto é só areia, que o vento leva.
Edward Mote
Na verdade, no entanto, o apóstolo não diz: “regozijamo-nos na
glória de Deus”, mas sim: “regozijamo-nos na esperança da glória de
Deus”. À luz de Cl 1:27 o significado provável é: «regozijamo-nos
grandemente quando consideramos a sólida base que tem a expectativa
da bem-aventurança futura». Cf. C.N.T. sobre Cl 1:27. Em princípio,
temos esta bem-aventurança aqui e agora; em perfeição, na volta de
Cristo.
Paulo continua:
3, 4. E não somente isto, mas também nos regozijamos em nossos
sofrimentos, porque sabemos que o sofrimento traz perseverança; a
perseverança, caráter provado; o caráter provado, esperança.
Aqui “em nossos sofrimentos” significa “em meio de e por causa”
das tribulações que experimentamos na execução da obra do Senhor. Cf.
Rm 8:35–39; 1Co 4:9–13; 2Co 1:4–10; 11:23–30 (a extensa lista); 12:7–
Romanos (William Hendriksen) 228
10; Gl 6:17; 2Tm 3:11, 12 (na medida em que esta passagem considera
eventos anteriores). 141
Mas como era possível que o apóstolo se alegrasse em seus
sofrimentos? Como pode o sofrimento — que aqui provavelmente se
refira especialmente à tribulação por amor a Cristo e ao evangelho — ser
considerado uma bênção? Para uma resposta um pouco mais detalhada
veja-se C. N. T. sobre Fp 1:27, 28. Também examine-se Hb 12:5–11 e
no Antigo Testamento Sl. 119:67, 71; Jr 31:18.
A tudo isto acrescente-se 2Co 12:7–10. Note-se especialmente o v.
9: “A minha graça é suficiente para ti, porque o meu poder se aperfeiçoa
na fraqueza”.
Com relação a isso devem ter-se em consideração dois fatos:
a. A própria fraqueza de um crente aflito serve, à maneira de
contraste, para engrandecer o poder de Deus.
b. É exatamente quando o aflito reconhece sua fraqueza mas
também que Deus é forte e está disposto a ajudar, que buscará a ajuda do
alto. Visto que esta ajuda é suficiente, sua fé será fortalecida. É assim
que o sofrimento traz perseverança.
Embora seja verdade que a perseverança (força para suportar, mais
a persistente aplicação desta força) é no essencial o resultado da
operação do Espírito Santo nos corações e vidas dos filhos de Deus, ela
implica a ação humana. Não é de modo algum uma qualidade passiva. A
pessoa que a tem persevera. Aferra-se ao que tem (Ap 2:25), é fiel até a
morte (Ap 2:10). 142

141
Às vezes também se faz referência a 2Tm 4:14–17. Isto se pode aceitar se se tem em mente que
quando Paulo escreveu Romanos ele não poderia ter estado pensando nos sofrimentos que foram
experimentados em dia posterior.
142
Com relação à palavra _πομονή, primeiro mencionada por Paulo em Rm 2:7, e logo aqui em Rm
5:3, 4, convém ver também Rm 8:25; 15:4, 5; 2Co 1:6; 6:4; 12:12; Cl 1:11; 1Ts 1:3; 2Ts 1:4, 3:5;
1Tm. 6:11; 2Tm 3:10; Tt 2:2; Hb 10:36; 12:1; Tg 1:3, 4; 2P. 1:6; e ver também suas diversas menções
em Apocalipse, começando com Ap 1:9.
Romanos (William Hendriksen) 229
A perseverança produz caráter provado, isto é, o caráter que
suportou a prova a que foi sujeito. 143
Com relação a esta “prova”, veja-se Zc 13:9: “Farei passar a
terceira parte pelo fogo, e a purificarei como se purifica a prata, e a
provarei como se prova o ouro”. Assim como o fogo refinador do
ourives livra o ouro e a prata das impurezas que em seu estado natural se
apegam a elas (cf. Is 1:25; Ml. 3:3), do mesmo modo a resistência
paciente ou perseverança dos filhos de Deus os purifica, isto é, pela
operação do Espírito Santo produz um caráter “provado” um caráter que
suportou com êxito a prova de fogo.
É imediatamente evidente que o conhecimento da parte deles de ter
superado a prova, de maneira que a aprovação de Deus descansa sobre
eles, fortalecerá sua esperança. O caráter provado traz esperança. Assim
neste exemplo de raciocínio em cadeia retornamos à esperança
mencionada no versículo 2.
5. E esta esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi
derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.
Note-se esta magistral transição da fé (v. 1, 2) à esperança (vv. 2, 4,
5), ao amor (v. 5). Esta é a sequência que também encontramos em 1Co
13:13. (Em 1Ts 1:3 a sequência é fé, amor, esperança).
Há gente sem esperança (Ef 2:12; 1Ts 4:13). Também há quem se
apega a esperanças ilusórias ou enganosas (Pv 11:7; At 16:19). Mas os
que foram justificados pela fé e reconciliados com Deus desfrutam da
classe de esperança que não decepciona (Sl. 22:5). Sua esperança está
firmemente ancorada no amor redentor de Deus. Outro modo de
expressar o mesmo pensamento é este: sua fé está obstinada ao trono de
graça, isto é, ao que está “dentro do véu” onde Jesus está sentado à
destra de Deus (Hb 6:19, 20). Ele vive para sempre para interceder por
Seu povo (Hb 7:25).

143
Com relação a δοκιμή, e palavras relacionadas, consulte o artigo de W. Grundmann en Th.D.NT.,
Vol. II, pp. 255–260.
Romanos (William Hendriksen) 230
Além disso, o amor de Deus não é racionado com conta-gotas. Pelo
contrário, por meio do Espírito Santo esse amor é “derramado” nos
corações dos redimidos; em outras palavras, é provido livre, abundante,
copiosa e profusamente, o que é certo de todos os dons de Deus em geral
(Nm. 20:8, 11; 2Rs 4:1–7; Sl. 91:16; Is 1:18; 55:1; Ez 39:29; Jl 2:28, 29;
Zc 12:10; Mt 11:27–30; 14:20; 15:37; Lc 6:38; Jo 1:16; 3:16; At 2:16–
18; 10:45; 14:17; 17:25; Rm 5:20; 1Co 2:9, 10; 2Co 4:17; Ef 1:8; 2:7; Tg
1:5; Ap 22:17). “Ele dá e dá e volta a dar”. Veja-se C. N. T. sobre João
1:16, 17 (“graça sobre graça”).
De fato, o Espírito Santo, que é o Dispensador dos dons de Deus, é
também Ele mesmo o dom de Deus à igreja (Jo 14:16; 15:7).
Em contraposição à opinião de alguns, deveria enfatizar-se que a
expressão “o amor de Deus” não pode significar “nosso amor por Deus”.
Como poderia um amor tão completamente inadequado ser a base de
uma esperança que não decepciona? A referência aponta claramente ao
próprio amor de Deus, como o testifica o v. 8 Veja-se também Rm 8:35;
2Co 13:13.
Em suma, tudo isto lança luz sobre o glorioso caráter da justificação
pela fé. Esta ação divina, pela qual o pecador que foge a Deus buscando
refúgio é declarado justo, é frequentemente comparada com o que sucede
numa corte. Por isso foi chamada uma ação forense. Sem dúvida é isso,
mas se se considera seu sentido mais completo, é muito mais que isso.
Note-se o seguinte contraste:
O juiz terrestre Deus como juiz
a. ao achar ao acusado “inocente”, a. ao achar o acusado culpado
absolve-o; ou se o encontra — coisa que sempre sucede —
culpado o sentencia. apaga sua culpa com base na obra
cumprida pelo Filho de Deus, o
Portador de Culpa.
b. o despede da sala de b. por meio do Espírito Santo
tribunal e não tem nenhum derrama Seu amor em seu coração,
trato posterior com ele. e o adota como filha ou filho próprio.
Romanos (William Hendriksen) 231
Mas a comparação deve ser levada um passo além, visto que até a
adoção humana não é na verdade uma ilustração adequada da adoção
divina. Na adoção humana os pais desejariam transmitir algo de seu
próprio caráter ou espírito à criança adotada. Às vezes isto acontece até
certo ponto; outras vezes nada disso ocorre. Mas quando Deus adota, Ele
também planta Seu próprio Espírito no coração do adotado,
transformando a ele ou ela em Sua própria imagem (Rm 8:15).
6–8. Porque quando fomos ainda impotentes, 144 no tempo indicado
Cristo morreu pelos ímpios. Agora, com muita dificuldade morrerá
alguém por um justo, embora talvez por um bom alguém se atreva a
morrer. Mas Deus demonstra seu amor por nós nisto, que quando éramos
ainda pecadores Cristo morreu por nós.
Nesta passagem Paulo afirma a razão pela qual ele diz que Deus
derramou seu amor nos corações dos pecadores. Ele nos diz que estava
justificado em fazer esta afirmação que “quando éramos ainda
impotentes”, ou seja, necessitados, totalmente incapazes de nos resgatar
a nós mesmos dos efeitos da queda, Cristo, motivado por amor soberano
e não por mérito ou realização humana alguma, morreu por nós, os
ímpios.
O caráter absolutamente único deste amor torna-se evidente quando
consideramos que enquanto que por uma pessoa justa com muita
dificuldade alguém está disposto a morrer — embora, como rara exceção
poderia dar-se o caso de que por uma pessoa boa alguém se atreveria a
morrer — Deus, pelo contrário, demonstra Seu próprio amor deste modo
tão maravilhoso, ou seja, que quando nós estávamos ainda em nosso
estado de invalidez e pecado, Cristo morreu por nós.
Com relação a esta explicação note-se o seguinte:

144
Embora o Grk. N.T. (A-B-M-W) favoreça a ε_ γε … _τι, o apoio textual a favor de _τι γαρ … _τι
não é nada mais debil. Além disso, o duplo uso de _τι pareceria formar um vínculo mais lógico com o
versículo precedente. Não seria possível que as outras leituras tivessem surgido de uma tentativa de
eliminar o duplo uso de _τι? A repetição de _τι pode ter resultado da intenção do apóstolo de lhe dar
uma ênfase especial a sobrepujante eminência do amor de Deus.
Romanos (William Hendriksen) 232
a. Os “ímpios” do v. 6 são os “pecadores” do v. 8, ou seja, aqueles
pecadores por quem Cristo morreu, os “amados de Deus, santos” de Rm
1:7.
b. A distinção entre “um justo” e “um bom” não deve ser forçada,
como se o apóstolo estivesse dizendo que para uma pessoa meramente
“justa” seria quase impossível encontrar a alguém que morresse,
enquanto que por uma pessoa “boa”, ou benfeitora, seria possível, sob
condições excepcionais, encontrar um substituto que estivesse disposto a
oferecer sua própria vida. Isto é reinterpretar. Devemos aderir-nos ao
ponto básico que Paulo está procurando enfatizar e não obscurecer seu
pensamento introduzindo distinções injustificadas. Devemos deixar lugar
para variações estilísticas. 145
c. O que Paulo está dizendo é que o amor de Deus, como é revelado
em Jesus Cristo, não tem nem precedente nem paralelo. Nenhum mérito
de nossa parte poderia ter movido Cristo a morrer por nós, porque Ele
morreu por nós “quando éramos ainda pecadores”. Além disso, ele
morreu por nós “no tempo indicado”, isto é, no tempo fixado por Deus
(cf. Mc 1:15; Gl 4:4), não por nós. Esta morte não tinha paralelo com
relação à maravilha da graça condescendente e perdoadora. Cristo
morreu pelos que eram maus, maus, maus! Não havia neles bondade que
pudesse ter atraído Seu amor. Na morte de Jesus pelos pecadores Deus
demonstra seu “próprio amor” soberano. Veja-se Is 1:18; 53:6; 57:15;
Dn 9:17–19; 1 Jo 4:10.
d. Note-se a palavra “demonstra”, no tempo presente. Embora seja
verdade que para Paulo, tanto no tempo de escrever esta carta como para
nós hoje, a morte de Cristo era um acontecimento que tinha ocorrido no
passado, sua lição continua sendo uma realidade sempre presente e
gloriosa. 146

145
A ideia de que δικαίου e _γαθο_ (v. 7) sejam neutros e indiquem coisas ou qualidades está em
conflito com o contexto, que é extremamente pessoal (v. 6 e 8).
146
Para o verbo συνίστημι vale a pena considerar os seguintes significados:
Romanos (William Hendriksen) 233
147
e. Note-se “seu próprio amor por nós”.
f. Embora seja verdade que nestes três versículos Paulo usa não
menos de quatro vezes a preposição (_πέρ) que tem um amplo espectro
de significado, que vai desde sobre ou com relação a (cf. περί) até em
lugar de (cf. _ντί), e que frequentemente significa “por”, “a favor de”,
“por amor de”, “para benefício de”, pareceria que aqui em Rm 5:6–8 esta
pequena palavra, que em si mesma não significa “em lugar de”, implica
tal significado. Não indica o contexto (cf. v. 9, 10) que por meio do
derramamento de Seu sangue Cristo tirou de nós a ira de Deus? Veja-se
também C. N. T. sobre Gl 3:13; sobre Fp 1:27, 18; e sobre Tt 2:14.
9, 10. Por conseguinte, visto que fomos justificados agora pelo seu
sangue, tanto mais seremos salvos por meio dele da ira (de Deus). Porque
se quando éramos inimigos, fomos reconciliados com ele pela morte de seu
Filho, tanto mais, uma vez reconciliados, seremos salvos por meio de sua
vida!
A relação entre os vv. 9 e 10 e o contexto que o precede
imediatamente é o seguinte:
Não nos veremos decepcionados em nossa esperança, visto que em
Cristo Deus nos ama tão profundamente que o Salvador morreu por nós
quando ainda éramos pecadores. Então, se fomos justificados por essa
morte — ou esse sangue — de Cristo, tanto mais seremos salvos de
qualquer derramamento futuro da ira de Deus.
E agora os detalhes:
a. Os versículos 9 e 10 correm de forma paralela. O primeiro tem
que ver com nossa situação legal diante de Deus; o segundo, com nossa

(1) intransitivo; estar com ou ao lado de (Lc 9:32); subsistir em (Cl 1:17) composto de, formado
de, surgido de (2Pe 3:5).
(2) transitivo: confirmar, fazer ressaltar, demonstrar, provar (Rm 3:5; 5:8; 2Co 7:11; Gl 2:18).
(3) recomendar, num sentido favorável (Rm 16:1; 2Co 4:2; 6:4; 12:11); recomendar, num sentido
desfavorável (2Co 3:1; 5:12; 10:12). Em 2Co 10:18, o grego indica um sentido desfavorável no
primeiro lance da oração, e favorável no segundo.
147
É natural interpretar ε_ς _μ_ς (v. 8) com _γάπην Veja-se Ef 1:15 (“amor por todos os santos”); e
cf. Cl 1:4; 1Ts 3:12; 2Ts 1:3.
Romanos (William Hendriksen) 234
relação pessoal para com Ele. Cada uma das duas afirmações vem na
forma de um argumento a fortiori [por mais forte razão]: se Deus fez o
maior, não fará ainda mais rapidamente o menor? 148
b. “justificados pelo seu sangue”
As demandas da justiça de Deus devem ser satisfeitas. Ver Is 1:27;
53:5; Rm 8:4. Aqui em Rm 5:9, como em Rm 3:24, a relação entre a
justificação e a morte de Cristo é indicada: nossa justificação requeria a
morte eterna (não em tempo mas em qualidade) de Cristo (cf. Lc 24:26,
27). Em Rm 4:25, por outro lado, a relação descrita é aquela entre a
justificação e a ressurreição de Cristo.
O sangue aponta ao sacrifício, à oferta. Para mais informação com
relação à morte de Cristo como oferta, como sacrifício voluntário, veja-
se passagens tais como Is 53:7, 10, 12; Jo 10:11, 15; 1Pe 2:21–24.
c. “salvos por meio dele da ira de Deus”
Com relação a esta ira divina veja-se sobre Rm 1:18. O resgate
desta ira, por meio da obra mediadora de Cristo, e como resultado pelo
próprio Cristo, refere-se a que não temos que sofrer o derramamento da
vingança divina no dia do juízo final. Veja-se 1Ts 1:10; 5:9; 2Ts 1:5–10.
d. “… se, quando fomos inimigos …”
A palavra inimigos deve ser entendida no sentido passivo:
considerados assim por Deus, visto que até esse momento não tínhamos
sido reconciliados com Ele.
e. “… fomos reconciliados com ele pela morte de seu Filho”.
Crentes são aqueles que, pela graça de Deus, obtiveram uma
posição de justiça com relação à santa lei de Deus, em outras palavras,
foram justificados. A lei de Deus já não os condena. Porém não só isto é
verdade. O que agora se acrescenta é que Deus também os ama. Seu
coração está bem predisposto para com eles. Ele transformou em amigos
os inimigos.

148
Outros exemplos deste tipo de raciocínio podem encontrar-se em Rm 5:15, 17; 8:32; 11:12, 24 e
em outras partes: Mt 6:30; 7:11; 10:25b; 2Co 3:11; Hb 12:9, 25.
Romanos (William Hendriksen) 235
Deve enfatizar-se que a reconciliação — tanto como a justificação
— é um ato divino. É Deus, não o homem, quem efetua a reconciliação,
a mudança da inimizade à amizade.
No entanto, assim como é verdade que a justificação requer fé da
parte do homem — fé comunicada e sustentada por Deus, certamente,
mas de qualquer maneira fé humana — do mesmo modo a reconciliação
requer obediência por parte do homem. Também aqui é verdade que tal
obediência é um dom de Deus. Não obstante, é o homem quem obedece
a exortação: “Reconciliai-vos com Deus” (2Co 5:10). A relação de Deus
para com o homem não é a mesma que a do carpinteiro para com a parte
de madeira ao qual aplicou sua destreza, nem tampouco se parece com a
relação do ventríloquo para com seu boneco.
Os pregadores correm perigo de tornar-se unilaterais, faltos de
equilíbrio. Há os que enfatizam a ação e iniciativa divinas à custa da
responsabilidade e ação humanas. Há também os que fazem
precisamente o oposto. A Escritura evita os dois extremos. O ponto de
vista correto pode ser achado em passagens tais como Fp 2:12, 13; 2Ts
2:13. Veja-se também Lc 22:22; At 2:23.
f. “… salvos por meio de sua vida”
É o Filho de Deus ressuscitado, vivente e exaltado quem, por meio
de Seu Espírito, leva até seu cumprimento em nossos corações e vidas a
obra da salvação.
g. “tanto mais … tanto mais”
Se Deus justifica e reconcilia os Seus inimigos Consigo mesmo, ele
certamente salvará os Seus amigos.
11. E não só isso, mas também nos gloriamos em Deus por meio de
nosso Senhor Jesus Cristo, por quem já recebemos a nossa reconciliação.
A estrutura desta oração nos faz lembrar o v. 3 (“E não só isso, mas
também …”). Levando em conta o contexto, o significado
provavelmente é: “não somente seremos salvos (v. 10b), mas já agora
nos regozijamos”. Cf. Rm 5:2, 3. Este conceito de gloriar-se em Deus
devido a bênçãos tanto apresente como futuras nos faz lembrar as
Romanos (William Hendriksen) 236
palavras: “Em quem vos alegrais … com alegria inefável e gloriosa”
(1Pe 1:6, 8). 149
No entanto, nem todo tipo de gloriar-se ou jactar-se pode ser
recomendado. Como Rm 2:17, 23 o tinha indicado, os judeus se
jactavam ou alardeavam do fato que eles, diferente de todas as outras
nações, possuíam a santa lei de Deus. Na igreja de Corinto havia pessoas
que faziam alarde de certos líderes cristãos (1Co 3:21) e de dons ou
realizações especiais (2Co 11:18). E em sua carta aos Gálatas, Paulo se
refere a pessoas que alardeavam com relação ao número de gentios que
tinham “convertido” (conseguido que se circuncidassem, Gl 6:13). Tem
isto ressonâncias de atualidade?
Diante de todo este pecaminoso saltar de alegria, Paulo informa aos
romanos: “nós nos gloriamos em Deus por meio de nosso Senhor Jesus
Cristo”. E o certo é que se ao falar dos benditos resultados do trabalho
cristão, a pessoa constantemente enfoca sua atenção em Jesus Cristo, o
Servo Eleito de Deus, que era completamente o oposto da pessoa
jactanciosa (Mt 12:18–21; Fp 2:5–8), e deriva todo seu poder dEle, tudo
andará bem.
Este é Aquele, diz Paulo, “por quem já recebemos nossa
reconciliação”. Para os que, em fé e humildade, saltam de alegria quando
consideram as bênçãos que já receberam, há ainda bênçãos mais
gloriosas que os esperam na vida futura.
Não admira que, com relação às bênçãos recebidas por meio de
Jesus Cristo, Paulo possa dizer: “Aquele que se gloria, glorie-se no
Senhor” (1Co 1:31; 2Co 10:17).

149
Para os distintos significados do verbo καυχάομαι veja-se sobre Rm 2:17.
Romanos (William Hendriksen) 237
1b. Paralelo Adão — Cristo. Rm 5:12–21

É claro que há uma estreita relação entre Rm 5:1–11 e 5:12–21. Em


ambas as seções o pensamento que se enfatiza é que a salvação pelo
tempo e a eternidade vem por meio de Jesus Cristo. Segundo Rm 5:1–11
é por meio dEle que os crentes foram justificados e encontraram a paz, a
reconciliação com Deus. A esta ideia da certeza da salvação por meio de
Cristo, Paulo acrescenta agora nos vv. 12–21 o pensamento que a graça
faz muito mais que compensar o pecado. Não só anula o efeito do
pecado, mas também outorga vida eterna.
O raciocínio de Paulo pode parecer à primeira vista um pouco
difícil de seguir. Ele começa uma oração, porém não a completa.
Começa dizendo:
12. Portanto, assim como por um homem o pecado entrou no mundo,
e a morte por meio do pecado, e assim a morte se estendeu a toda a
humanidade, visto que todos pecaram.
E então, em vez de completar esta afirmação, ele passa a espraiar-se
com relação a um de seus elementos, ou seja, a universalidade do
pecado. Não é senão até chegar ao v. 18 que retorna à oração que tinha
começado a escrever. Ele reproduz seu pensamento de forma
modificada: “Como resultado, tal como uma transgressão resultou a
condenação de todos”, e é logo então que ele, em substância, termina a
oração como segue: “… do mesmo modo um ato de justiça resultou a
todos os homens na justificação que produz vida”. 150

150
Nem todos estão de acordo em que o que aqui temos seja um anacoluto (mudo na construção
gramatical). Veja-se, por exemplo, a Lenski, op. cit., pp. 358, 359. Ele acha a “conclusão da oração no
primeiro versículo, que ele traduz do seguinte modo: “Mesmo assim a morte passou a todos os
homens visto que todos pecaram”. Objeções:
a. Seu tradução de κα_ ο_τως (v. 12b) é “mesmo assim”, como se isto assinalasse o princípio da
conclusão da oração. Mas é claro com base em três instâncias deste mesmo capítulo (18, 19, 21) que
Paulo teria escrito então ο_τως καί, e não κα_ ο_τως. Ver também Rm 6:4; 11:31; 1Co 12:12, etc.
b. Também a lógica está totalmente do lado daqueles que creem que não é até o 18b que o apóstolo
escreve o que pode considerar-se a apódose ou conclusão da oração começada no 12. A menção de um
Romanos (William Hendriksen) 238
Agora, é preciso reconhecer que uma ruptura tal na estrutura
gramatical está de acordo com a personalidade e com o estilo de Paulo.
Veja-se C. N. T. sobre Lucas, p. 19. Contudo, isto não constitui hoje em
dia, nem constituiu no passado, um fenômeno estilístico estranho.
Por exemplo, um pastor, ao fazer um anúncio à sua congregação
com relação a uma excursão campestre, poderia começar assim:
“Visto que manhã todos participaremos de uma saída ao campo da
congregação.…” Ele quer continuar dizendo: “Exortamos que venham
cedo e tragam comida suficiente para sua própria família e, se possível,
até algo extra para a pessoa pobre que desejar unir-se a nós”.
Mas antes que ele possa dizer isso, nota que suas palavras com
relação a uma saída ao campo amanhã são recebidas com cepticismo.
Assim que, em vez de dizer o que pensava, ele continua da seguinte
maneira:
“Percebo que alguns de vocês sacodem a cabeça pensando que não
pode haver uma saída para o campo amanhã. Por isso, quero garantir a
vocês que o prognóstico meteorológico desta manhã cedo, que
informava de uma tormenta que vinha em direção a nós, foi cancelado. O
novo relatório foi transmitido poucos minutos antes de subir ao púlpito.
Segundo o mesmo, a tormenta mudou de curso e se espera muito bom
tempo para amanhã. De modo que exortamos a todos para vir cedo, etc.”.
Com tudo isso em mente, os diversos elementos do v. 12, e também
o versículo tomado em sua unidade, podem ser interpretados como
segue:
a. “portanto”, isto é, visto que por meio de sua sacrificada morte e
vida de ressurreição, Jesus Cristo trouxe justiça, reconciliação (paz), e
vida, etc. Veja-se Rm 5:1–11.
b. “assim como por um homem o pecado entrou no mundo …”

homem, Adão, por meio de quem o pecado entrou em mundo, aponta para Um homem, ou seja, Jesus
Cristo, por meio de quem muitos serão feitos justos.
Romanos (William Hendriksen) 239
Este homem é obviamente Adão. Veja-se v. 14. Cf. Gn 2:16, 17;
3:1–6. Em que sentido deve entender-se que através da queda de Adão
entrou o pecado no mundo? Somente no sentido de que gradualmente,
com o passar dos anos e dos séculos, os que nasciam herdavam de Adão
sua natureza pecaminosa e, por isso, cometiam pecados? Sem negar que
isto sem dúvida sucedeu, devemos não obstante afirmar que houve uma
maneira muito mais direta na qual “por um homem entrou o pecado no
mundo”. Nesta mesma terceira viagem missionária, não muito antes de
Paulo redigir Romanos, ele escreveu cartas aos coríntios. Numa delas
(1Co 15:22) o diz: “Assim como em Adão todos morrem, assim em
Cristo todos serão vivificados”. Em Rm 5:15 escreve: “Por causa da
transgressão de um morreram os muitos”. É óbvio que ele quer dizer que
toda a raça humana estava incluída em Adão, de modo que quando
Adão pecou, todos pecaram; quando o processo de morte começou a
arruiná-lo, isso afetou imediatamente toda a raça.
A Escritura, em outras palavras, ao falar destes assuntos, não
considera as pessoas de um modo atomístico, como se cada pessoa fosse
comparável a um grão de areia sobre a praia. Especialmente nesta época
presente, com sua ênfase sobre o indivíduo, é bom sermos lembrados da
verdade expressa nessas palavras que, numa geração anterior, ficaram
impressas até na mente das crianças:
Quando Adão caiu
Nosso pecado começou
Além disso, quando temos em mente que este mesmo capítulo (5)
ensina não só a inclusão de todos aqueles que pertencem a Adão — quer
dizer, de toda a raça humana — na culpa de Adão, mas também a
inclusão de todos os que pertencem a Cristo na salvação comprada com
o Seu sangue (v. 18, 19; cf. 2Co 5:19; Ef 1:3–7; Fp 3:9; Cl 3:1, 3), e que
esta salvação é o dom gratuito de Deus a todos os que pela fé estão
dispostos a aceitá-lo, não teremos nada do que nos queixar.
c. “e a morte por meio do pecado, assim a morte se estendeu a toda
a humanidade …”
Romanos (William Hendriksen) 240
A solidariedade na culpa implica a solidariedade na morte, com a
ênfase posta aqui, tanto como em 1Co 15:22, na morte física. O pecado e
a morte não podem ser separados, como é evidente de Gn 2:17; 3:17–19;
Rm 1:32; 1Co 15:22. Em Adão todos pecaram; em Adão todos
morreram. O processo de morrer, e isto não só para Adão senão para
toda a raça, começou no momento em que Adão pecou.
b. “visto que todos pecaram”. 151
O mais provável é que isto se refere a pecados que as próprias
pessoas cometeram depois de ter nascido. Este pecar pessoal continuou
através dos séculos. É como se Paulo estivesse dizendo: “Sei que um
homem pecou, e que nele todos os homens pecaram, porque se isto não
fosse certo, como poderíamos explicar todo o pecado que se veio
cometendo dali em diante?”
Esta interpretação dá à palavra pecaram o significado que tem
sempre em outros lugares das epístolas de Paulo. Por que teria que
significar “todos pecaram” uma coisa (pecados reais, pessoais) em Rm
3:23 mas outra coisa em Rm 5:12? Além disso, se aqui em Rm 5:12
explicamos as palavras todos pecaram fazendo referência a que todos
pecaram em Adão, não seria isto fazer o apóstolo culpado de uma
repetição desnecessária, visto que o pecado de todos “em Adão” já está
implícito neste mesmo versículo? Note-se que “por um homem o pecado
entrou no mundo”. 152
151
_φ _ = _π_ το_τ_ _τι, por esta razão que; ou seja porque, visto que; que aqui deve ser interpretado
à maneira de inferência (“deduzo isto porque”, ou simplesmente “já por que”).
Entre outros significados que se a atribuíram a esta expressão as seguintes são, talvez, as mais
importantes: (1) o antecedente de _ es θάνατος. Isto não tem sentido. (2) o antecedente de _ es _ν_ς
_νθρώπου. O significado seria que todos pecaram no primeiro homem, Adão. No doutrinal, isto é
certo e, como já o temos que mostrado, até se ensina nos vv. 12 e 15. Porém, a menos que haja muito
boas razões para fazê-lo, não devemos vincular _φ_ _ com um antecedente que está tão afastado.
Além disso, não é claro que _φ_ = _πί deveria interpretar-se de modo que significasse _ν.
152
É evidente que neste ponto não estou de acordo com Murray, op. cit., Vol. I, pp. 182–186. Sua
posição é que esta cláusula não pode referir-se a pecados reais pessoais. Como se vê, minha própria
posição parece muito mais à de E. F. Harrison, op. cit., p. 62, segundo a como se bem no v. 12,
considerado em sua totalidade, a ênfase recai primariamente no pecado original, os pecados pessoais
não estão totalmente excluídos.
Romanos (William Hendriksen) 241
A estas duas razões para crer que esta interpretação das palavras
“visto que todos pecaram” é a correta pode-se acrescentar uma mais:
agora se vê claramente por que Paulo nesta altura não completou a
oração começada com “portanto”, mas que se foi pela tangente. A
afirmação “visto que todos pecaram” poderia facilmente causar
incredulidade, especialmente nas mentes dos que davam grande
importância à proclamação da lei no Sinai. Poderia perguntar-se: “Se
pecar significa transgredir a lei, como pode Paulo dizer que desde o
tempo de Adão todos pecaram? Até a proclamação da lei no Sinai não
houve lei, e portanto, não houve transgressão da lei, não houve pecado”.
O apóstolo considera que esta possível objeção é de suficiente
importância para justificar um intervalo na estrutura gramatical a que se
fez referência no começo da explicação do v. 12, Paulo responde do
seguinte modo:
13, 14.… porque antes da lei o pecado estava no mundo. Mas o
pecado não é levado em conta quando não há lei. No entanto, a morte
reinou desde (o tempo de) Adão, 153 até (o de) Moisés, mesmo sobre
aqueles que não pecaram pela transgressão 154 de um mandamento
expresso, como o fez Adão, que é figura daquele que havia de vir.
Como confirmação da declaração “todos pecaram”, incluindo-se
aquela gente que viveu durante o período entre Adão e Moisés, Paulo
raciocina da seguinte maneira:
O pecado, sem dúvida, estava no mundo mesmo antes de a lei ter
sido dada no Sinai, como o demonstra o fato que a morte, o castigo do
pecado, governava suprema durante o período de Adão a Moisés. O
apóstolo pode ter estado pensando, entre outras, coisas, no dilúvio
universal, que destruiu quase toda a população do mundo. Sim, a morte
reinou até sobre os que não pecaram pela transgressão de um

E uma coisa mais: espero que ninguém chegue a inferir que porque neste assunto não estou de
acordo com o Murray, sou pelagiano!
153
Literalmente: “à semelhança da transgressão de Adão” (RA, 1999).
154
Com referência ao substantivo παράβασις (aqui gen. s. -βάσεως), veja-se a nota 157.
Romanos (William Hendriksen) 242
mandamento expresso, como o fez Adão. Veja-se Gn 2:16, 17. Como
resultado, é claro que até no período desde Adão até Moisés o pecado
certamente foi levado em conta. Embora a lei do Sinai, com seus
mandatos específicos, não existia ainda, havia uma lei. Aqui o apóstolo
está pensando indubitavelmente no que ele tinha escrito anteriormente
nesta mesma epístola (Rm 2:14, 15). E esta lei, com a morte como
castigo para os transgressores indesculpáveis, sim, foi aplicada (veja-se
Rm 1:18–32). Que havia lei se deduz do fato que havia pecado. Se não
tivesse havido lei não teria havido pecado. 155
Ao apresentar a Adão, o transgressor de um mandato expresso, o
apóstolo declara: “que é figura daquele que havia de vir”.
Tendo dito isso, pode Paulo, enfim, terminar a oração que
começava no v. 12? Ainda, não porque chamar Adão uma figura
dAquele que havia de vir, 156 isto é, de Cristo, poderia levar facilmente à
confusão. Como é possível mencionar ao mesmo tempo estes dois, Adão,
cuja queda resultou em miséria incalculável para a raça humana, e
Cristo, o Salvador do mundo (Jo 4:42; 1Jo 4:14; cf. 1Tm. 4:10)? Como
pode Adão ser figura de Cristo? Paulo deve primeiro explicar isso.
Como pode haver alguma semelhança entre Adão e Cristo? No
entanto, há uma semelhança; porque assim como é verdade que Adão
comunicou aos seus o que lhe pertencia, do mesmo modo Cristo outorga
a Seus amados o que é dEle. É neste sentido em que Adão prefigurou a
Cristo. No resto, entretanto, o paralelo é de contraste, coisa que o
apóstolo expressa da seguinte maneira:
15–17. Mas o dom gratuito não é como a transgressão. Porque se por
causa da transgressão de um morreram os muitos, muito mais se estendeu
aos muitos a graça de Deus e o dom que veio pela graça de um só homem,
Jesus Cristo! Novamente, o dom (de Deus) não é como (o resultado de) o
155
O raciocínio de Paulo é tão lúcido, e tão clara é a harmonia entre Rm 5:13, 14 e suas afirmações
anteriores (Rm 1:18–21; 2:14, 15), que não posso entender os comentários de John Knox (The
Interpreter’s Bible, Vol. 9, p. 464).
156
Com relação a Cristo, “Aquele que devia vir”, veja-se C.N.T. sobre João, pp. 81–83; também J.
Sickenberger, “Das in die Welt Kommende Licht”, ThG, 33 (1941), pp. 129–134.
Romanos (William Hendriksen) 243
pecado de um homem. Porque o juízo veio depois de um pecado e trouxe
condenação, mas o dom gratuito veio depois de muitas transgressões e
trouxe justificação. Porque se pela transgressão de um só, reinou a morte
por um só, muito mais reinarão em vida aqueles que recebem a
superabundante plenitude da graça e do dom da justiça por meio de Um
só, Jesus Cristo.
Nestes versículos Paulo demonstra que o paralelo Adão-Cristo é
principalmente um paralelo de contraste no sentido de que a influência
de Cristo para o bem ultrapassa em muito o efeito de Adão para o mal: o
dom gratuito “não é como a transgressão”, 157 quer dizer, é muito mais
eficaz que a transgressão.
À maneira de introduzir uma interpretação mais ampla é necessário
ter em mente alguns assuntos:
a. O apóstolo usa a palavra muitos num duplo sentido. Em seu
primeiro uso (“morreram os muitos”) a palavra indica todos os
descendentes físicos de Adão. No fechamento desse mesmo versículo
(“estendeu-se aos muitos”) a palavra indica todos os que pertencem a
Cristo. Isto nos traz à memória Is 53:11, 12; Mt 20:28; Mc 10:45.
b. O v. 12 demonstrou que Adão foi responsável por trazer para o
mundo dois males: o pecado e a morte. O apóstolo se ocupa agora de
ambos em sequência; do pecado ou a transgressão de Adão (vv. 15, 16)
primeiro, e da morte (v. 17) em segundo termo. Ele considera que estão

157
O substantivo παρά πτωμα indica um pecado no sentido de desvio do caminho da verdade e a
justiça, uma falta. Este termo ocorre em Rm 4:25; 6 vezes no capítulo 5: nos vv. 15 (duas vezes), 16,
17, 18, 20; duas vezes no capítulo 11 (vv. 11, 12); e adicionalmente, uma vez em 2Co 5:19; Gl 6:1; Ef
1:7; 2:1, 5; e duas vezes em Cl 2:13. Quanto ao mais, no Novo Testamento encontramo-lo somente na
clarificação da quinta petição do Pai Nosso, Mt 6:14, 15 (duas vezes), e numa passagem similar de
Marcos (11:25, 26). Há mais informação com relação ao seu significado, especialmente no que a
distingue de outras palavras para pecado, em Trench, op. cit., parágr. lxvi.
Uma παράπτωμα pode ser algo leve, como talvez em Gl 6:1, mas pode ser também muito séria.
Assim em Rm 11:11 se denomina a rejeição do evangelho da parte de Israel uma παράπτωμα.
Veja-se também W. Michaelis, Th.D.N.T., Vol VI, pp. 170–172. A παράβασις de Adão (Rm 5:14)
foi uma transgressão de um mandamento específico. O mesmo substantivo encontra-se também em
Rm 2:23; 4:15; Gl 3:19; 1Tm. 2:14; Hb 2:2; 9:15.
Romanos (William Hendriksen) 244
intimamente relacionados e, por isso, às vezes menciona a ambos
simultaneamente.
É compreensível que Paulo possa dizer que por causa da
transgressão de Adão os muitos morreram. Estes muitos são aqueles
designados em Rm 5:12 como “toda a humanidade” (literalmente todos
os seres humanos, todo mundo). Cf. 1Co 15:22. Mas, com relação à obra
de Deus em Cristo, para os filhos de Deus este mal foi muito mais que
cancelado. Para eles a graça de Deus e Seu dom de salvação mudou a
morte no totalmente oposto. A morte se transformou em lucro (Fp 1:21)!
Além disso, quanto ao pecado, ao entrar a graça, esta fez muito mais que
voltar para homem a seu estado anterior de inocência. Outorgou-lhe
justiça (v. 17), e vida (v. 18), isto é, vida eterna (v. 21). Com relação ao
glorioso conteúdo deste termo, veja-se sobre Rm 2:7.
Novamente, no caso de Adão houve somente um único pecado, um
pecado que resultou em condenação. Mas Cristo, por sua obra de
redenção, fez provisão de perdão não só para esse pecado senão para
todos os que procedessem dele. Seu sacrifício foi suficiente para todos
eles, e de fato foi eficaz para todos os pecados cometidos por quem, por
graça soberana, iam pôr sua fé nEle. Para eles a condenação foi
substituída pela justificação. Veja-se sobre Rm 1:17; 3:24; 5:1.
Paulo passa agora a considerar mais especialmente o tema da morte.
Desta vez, depois de repetir que a morte resultou da transgressão de um,
Adão, ele menciona o reinado da morte, o domínio poderoso e destruidor
que ela exerce sobre os assuntos dos seres humanos. Em concordância
com seus pensamentos relativos à supremacia da graça (a doutrina do
“muito mais”), o apóstolo agora indica que no caso dos crentes o reino
da morte não é simplesmente substituído pelo reino da vida, mas por um
reino tão inexpressavelmente glorioso que os que participam dele serão
eles mesmos reis e reinas. Tudo isso é o resultado da superabundante
Romanos (William Hendriksen) 245
158 159
plenitude da graça e do dom da justiça de Deus para eles por meio
de Um só, Jesus Cristo”, quer dizer, por meio de Sua pessoa e Sua obra.
Uma vez que o apóstolo se ocupou desta maneira das dificuldades
que deviam ser esclarecidas antes de poder completar o pensamento
iniciado no v. 12, ele dá agora, no v. 18a., por meio de uma fraseologia
um pouco diferente, a intenção do versículo anterior; de maneira que
essencialmente o v. 18a é igual ao v. 12. É então no v. 18b que ele leva
este pensamento à sua conclusão. Ao mudar um pouco as palavras, todo
o pensamento é repetido no v. 19.
18, 19. Como resultado, assim como uma 160 transgressão 161 resultou
na condenação de todos os homens, do mesmo modo um ato de justiça
resultou a todos os homens na justificação que produz vida. Porque assim
como pela desobediência de um os muitos foram feitos pecadores, do
mesmo modo, pela obediência de Um os muitos serão feitos justos.
Como o indicam as palavras “como resultado”, Paulo não se limita
agora a retornar o pensamento expresso no v. 12; ele resume o
argumento de todo o parágrafo (vv. 12–17). A presente passagem
contrasta uma transgressão, ou seja, a de Adão (Gn 3:6; 9:12, 17), uma
transgressão aqui chamada “a desobediência de um”, com um ato de
justiça, chamado “a obediência de Um”, sendo esse Um Jesus Cristo. Cf.
Fp 2:8. Visto que no contexto precedente Paulo mencionou não menos
de três vezes a morte de Cristo por Seu povo (vv. 6, 8, 10; cf. vv. 7 e 9),
é seguro que aqui nos vv. 18, 19 a referência é a esse supremo sacrifício.
No entanto, não devemos interpretar este conceito muito estreitamente: a

158
Note-se περισσεία (aqui acc. s. -ν) um composto com περί, que provavelmente indica basicamente
água que sobe tão alto que “em todo seu contorno” rebalsa seus limites. Veja-se também 2Co 8:2;
10:15; Tg 1:21.
159
A graça é o amor de Deus revelado aos que não o merecem.
160
Há aqueles que interpretam que _νός refere-se a uma pessoa, ou seja, Adão. Eles traduzem “a
transgressão de uma pessoa”. Mas, sendo assim, não haveria o apóstolo usado o artigo, como o fez no
v. 17? Contudo, a diferença em tradução e interpretação é de pouca monta, visto que em todo caso
Paulo fala de um fato ou ação de uma pessoa diante de um fato ou ação de outra.
161
Veja-se nota 157.
Romanos (William Hendriksen) 246
morte voluntária de Cristo representa a totalidade de Seu sacrificado
ministério no mundo, do qual a morte veio a ser o ponto culminante.
Podemos compreender que uma transgressão resultou na
condenação de todos os homens, mas o que quer dizer o apóstolo quando
afirma também que para todos os homens um ato de justiça resultou na
justificação que dá vida? Se no primeiro caso “todos os homens”
significa absolutamente todos, não demanda a lógica que na segunda
instância de seu uso esta palavra tenha o mesmo significado? A resposta
é:
a. O apóstolo deixou bem claro em passagens anteriores que a
salvação é para os crentes, somente para eles (Rm 1:16, 17; 3:21–25,
etc.).
b. Ele enfatizou isso também neste mesmo contexto: os que
“recebem a superabundante plenitude da graça e do dom da justiça”
reinarão em vida (v. 17).
c. Numa passagem que é similar a Rm 5:18, e à qual se fez
referência anteriormente, o apóstolo mesmo explica o que ele quer dizer
quando fala de “todos” ou de “todos os homens” que vão ser salvos e
participar numa gloriosa ressurreição. Essa passagem é “Porque assim
como em Adão todos morrem, também em Cristo todos serão
vivificados. Mas cada um em sua devida ordem: Cristo, as primícias,
logo os que são de Cristo, em sua vinda” (1Co 15:22, 23). Aqui se afirma
claramente que os “todos” que serão vivificados são “os que são de
Cristo”, isto é, que Lhe pertencem.
Mas embora esta resposta comprove que Paulo quando usa aqui a
expressão “todos” ou “todos os homens” com relação àqueles que são ou
serão salvos, e embora este “todos” ou “todos os homens” não deve
interpretar-se no sentido absoluto ou ilimitado, de qualquer maneira a
frase deixa outra pergunta sem responder, ou seja: «Por que usa Paulo
esta expressão tão forte?» Para responder esta pergunta deve ler-se
cuidadosamente toda a epístola. Então ficará claro que, entre outras
coisas, Paulo está combatendo a sempre presente tendência dos judeus a
Romanos (William Hendriksen) 247
considerar-se melhor que os gentios. Diante desta atitude errônea e
pecaminosa ele enfatiza que, no que se refere à salvação, não há
diferença entre judeu e gentio. O leitor deve estudar com cuidado as
seguintes passagens para ver isto por si mesmo; Rm 1:16, 17; 2:7–11;
3:21–24, 28–30; 4:3–16; 9:8, 22–33; 10:11–13; 11:32; 15:7–12; 16:24–
27. Quanto à salvação, diz Paulo: “Não há distinção. Deus não mostra
parcialidade”. Todos os homens são pecadores diante de Deus. Todos
necessitam a salvação. Para todos o modo de ser salvo é o mesmo.
Numa época como esta em que, mesmo em certos círculos
evangélicos, ainda se mantém, e às vezes até se enfatiza, a distinção não
bíblica entre judeu e gentio, é necessário que o que a Palavra de Deus diz
a respeito, particularmente na epístola de Paulo aos romanos, fique bem
indicado.
Note-se que no v. 18 somos informados que uma transgressão
resultou na condenação de todos, mas que um ato de justiça resultou na
justificação que dá vida. Isto indica que a justificação não cancela
simplesmente o veredito de “culpados”, anulando a sentença de
condenação, mas também abre a porta à vida. Com relação a este
conceito de vida — cf. vv. 17 e 21 — veja-se sobre Rm 2:7.
Além disso, no v. 19 Paulo não diz: “Assim como pela
desobediência do um os muitos foram feitos pecadores, do mesmo modo
pela obediência do Um serão feitos inocentes ou sem pecado os muitos”;
mas diz “… serão feitos * justos os muitos”. Por certo, isso basicamente
significa “ser declarados justos”. Contudo, quando Deus declara que
alguém é justo fica esta ação um fato separado? Cf. sobre Rm 5:5.
20. Além disso, também a lei veio para que a transgressão
aumentasse. Mas onde aumentou o pecado, a graça aumentou muito mais
… 162

*
A palavra original, no grego, é καθίστημι [kathistēmi], significa designar, constituir. Tradução:
“serão constituídos justos”. cf. TB (português), Versão Jünemann (espanhol). – Nota do Tradutor.
162
Note-se _περεπερίσσευσεν, 3ª. per. s. aor. indic. de _περπερισσεύω, superabundar, aumentar muito
mais. O uso deste verbo aponta a Paulo como escritor. Veja-se C.N.T. sobre 1Tm. 1:14.
Romanos (William Hendriksen) 248
Paulo esteve falando de Adão e Cristo, tipo e antítipo. Adão
transgrediu um mandato específico, segundo se demonstrou. Isso ocorreu
muito antes da promulgação da lei no Sinai. Mas mesmo antes disso
havia lei, como o demonstrou a explicação de Rm 5:13. Porém no Sinai a
lei mosaica veio ademais “para que a transgressão aumentasse”. Esta era
a intenção divina ao dar a lei.
Isto não pode significar que Deus chegou a ser a causa do aumento
do pecado. Significa que foi a vontade e o propósito de Deus que, à luz
de sua demanda de amor perfeito (cf. Mt 22:37–40; Mc 12:29–31; Lc
10:27), pudesse ser aguçado o conhecimento de pecado no homem. Uma
certa noção de que nem tudo anda bem com ele não será suficiente para
impulsionar o homem para o Salvador. De maneira que a lei age como
uma lupa. Na verdade, este instrumento não aumenta o número de
manchas sujas que há numa objeto. O que faz é que elas se destaquem
mais claramente e revela muito mais manchas que se pode ver com o
simples olhar. Do mesmo modo, a própria lei faz com que o pecado se
destaque em toda sua atrocidade e em suas ramificações. Com relação a
isto veja-se também Rm 3:20; 7:7, 13; Gl 3:19.
Além disso, este aumento do conhecimento do pecado é muito
necessário. Impedirá que a pessoa se imagine que pode, por seu próprio
poder, vencer o pecado. Quanto mais ele alcança a ver sua própria
pecaminosidade e fraqueza à luz da lei de Deus, tanto mais agradecerá a
Deus a manifestação de sua graça em Cristo Jesus. Resultado; onde o
pecado aumenta, a graça também aumenta. Não é como se estas duas
forças, pecado e graça, fossem iguais. Pelo contrário, a graça não apenas
perdoa; como o demonstra o v. 21, faz muito mais: traz “Vida eterna
através de Jesus Cristo, nosso Senhor!” Certamente onde o pecado
aumenta, a graça aumenta muito mais!
Entre os muitos hinos que destacam esta gloriosa verdade estão dois
que mencionamos a seguir: (a) “Preste ouvidos o humano”, que contém a
frase “… e de graça oferece ao homem o perdão, consolo e paz”; e (b)
“Maravilhosa graça” de Haldor Lillenas.
Romanos (William Hendriksen) 249
Pelo fato de que o apóstolo menciona muitas vezes a lei de Deus,
como o faz também nesta passagem, pode ser útil dar um breve resumo
das funções desta lei indicadas nas epístolas de Paulo e em outros
lugares das Escritura. Não há dúvida que uma ou mais referências
podem-se acrescentar facilmente a cada uma das seguintes:

a. servir como fonte para o conhecimento que o homem tem de seu


pecado e para aguçar seu sentido de pecado (Rm 3:20, etc., conforme foi
já indicado).
b. fixar a atenção do pecador no poder muito maior da graça de
Deus em Jesus Cristo e guiá-lo ao Salvador (Rm 5:20; Gl 3:24).
c. servir como guia para a manifestação da vida de gratidão do
crente, para a honra de Deus (Sl. 19:7, 8; 119:105; Rm 7:22).
d. funcionar como rédea ou freio para conter o pecado (1Tm. 1:9–
11).

Há, naturalmente, uma relação muito estreita entre estas diferentes


funções.
O propósito da “graça abundante” se expressa nas seguintes
inesquecíveis palavras:
21.… Para que, assim como o pecado reinou para morte, também
reine a graça por meio da justiça para trazer vida eterna mediante Jesus
Cristo nosso Senhor.
Que fecho tão notavelmente belo para este capítulo! Há sete
conceitos, ou seja:

a. pecado
Este é, antes de mais nada, o pecado de Adão, visto aqui como
nosso representante. Sua culpa, devido à solidariedade da raça humana,
é-nos imputada a todos, feito do qual dão testemunho todos os pecados
pessoais dos seres humanos. Veja-se especialmente os vv. 12, 15 e 17.
Romanos (William Hendriksen) 250
b. reinar
Quando Adão caiu, parecia como se o pecado ia triunfar
completamente. No entanto, segundo o plano de Deus, interveio a graça
e, no caso de todos os filhos de Deus, triunfou sobre o pecado. Veja-se
vv. 12–14 com relação ao reinado do pecado; vv. 15–19 com relação ao
triunfo da graça.

c. morte
O pecado trouxe condenação e morte; em primeiro lugar morte
física, mas também morte espiritual e eterna. O pecado e a morte são
personificados: o pecado é visto como se fosse o soberano; a morte,
como seu vice-rei. Por um tempo (pense-se na queda de Adão) parecia
como se o pecado ia poder reclamar a vitória. Vejam-se vv. 12, 14. Mas
note-se o próximo ponto:

d. graça
A graça ataca o pecado de frente e o derrota. (Ver vv. 15–17, 20).

e. justiça
Não uma justiça aportada pelo homem e sim uma justiça imputada
por Deus. Foi por meio desta justiça que a graça triunfou sobre o pecado.
Ver Rm 1:17; 3:21–24; 5:17.

f. vida eterna
Quando o pecador está revestido da justiça provida por Deus, está
em caminho para a vida eterna (v. 18), a vida gloriosa do novo céu e da
nova terra; uma vida que, em princípio já lhe é concedida aqui e agora.
Com relação a este conceito veja-se sobre Rm 2:7.
Romanos (William Hendriksen) 251
g. Jesus Cristo nosso Senhor
Veja-se vv. 14, 15, 17, 19. Não se deve esquecer que fora do
sacrifício incomensuravelmente maravilhoso de “Jesus Cristo, nosso
Senhor”, um sacrifício que revela um amor que em todas as suas
dimensões ultrapassa toda compreensão humana, a graça nunca poderia
ter conquistado o pecado e a morte.
O pensamento unificador, que funciona como vínculo de todos estes
sete conceitos, é este: “Onde o pecado aumentou, a graça aumentou
muito mais”, ou seja, a graça encarnada no sacrifício supremo de nosso
Senhor Jesus Cristo e revelada a nós por meio dEle.
Ao repassar todo este capítulo, o que nos assombra é a certeza sem
limites de Paulo, seu radiante otimismo. Eis aqui um homem que até há
pouco esteve sujeito a todos os tipos de aflições mencionados em 2
Coríntios. 11. Está prestes a partir para Jerusalém, Roma e Espanha. Tal
era o plano. Se poderá levar a cabo tal plano ou alguma parte do mesmo
é algo que ignora, embora saiba que haverá perigos (Rm 1:10, 13;
15:30–32). Também sabe que tem uma história que contar. Seu coração
está cheio por uma chama, a chama do amor; o amor de Deus por ele,
seu amor por Deus. Outros devem ouvir essa história! Temos vontade de
exclamar: “Que homem, este apóstolo Paulo!” Mas se disséssemos isto
estaríamos fazendo o que ele não quer que façamos. É por isso que com
verdadeiro espírito paulino cantamos, e/ou tocamos num instrumento, o
hino MARAVILHOSA GRAÇA! [HASD, 204]

Lições práticas derivadas de Romanos 5


Rm 5:1. “Por isso, tendo sido justificados pela fé, temos paz para
com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo”.
Esta paz é:
a. o dom do amor de Deus
b. o sorriso de Deus refletido no coração do crente
c. a calma do coração depois da tormenta do Calvário
Romanos (William Hendriksen) 252
d. a firme convicção de que Ele que não poupou o Seu próprio Filho
nos dará, certa e gratuitamente, também com Ele todas as coisas (Rm
8:32)
e. a sentinela que monta guarda sobre os corações e pensamentos
dos filhos de Deus (Fp 4:7).
Rm 5:1, 2. “Por isso, tendo sido justificados pela fé, temos paz para
com Deus … acesso pela fé … e nos regozijamos na esperança da glória
de Deus”.
Isto dá a entender que quanto aos crentes: os pecados passados
estão perdoados, o acesso presente ao trono de graça está assegurado e a
glória futura está garantida. Estes são valores para além de todo preço
obtidos “sem dinheiro e sem preço (custo)” para os crentes.
Com paciência e sinos a vida pagamos,
A custo da alma só pompas obtemos,
Só o céu nos vem agradável,
E para ter a Deus basta o pedido.
Adaptação de
“Visión de Sir Launfal”, de Lowell
Rm 5:3. “Até nos regozijamos em nossos sofrimentos”. Esta alegre
afirmação se torna ainda mais significativa quando temos em mente que
foi feita por alguém que já tinha experimentado uma extensa série das
mais duras agonias por amor de Cristo. Veja-se 1Co 4:11–13; 15:30–
32a; 2Co 11:24–32. Cf. Rm 8:35. Tal alegria no sofrimento é possível
em razão das verdades expressas em Rm 8:18, 28.
Rm 5:6–8. “… Cristo morreu pelos ímpios. Agora, com muita
dificuldade morrerá alguém por um justo … Mas Deus demonstra seu
próprio amor por nós nisso, que quando éramos ainda pecadores Cristo
morreu por nós”. Paulo está assombrado quando considera semelhante
amor. É como se estivesse dizendo: «Pensem nisso! Deus ama a quem é
indigno de amor! Até por uma pessoa justa seria quase impossível
encontrar quem morresse! Mas Cristo morreu pelos ímpios, os
incrédulos!»
Romanos (William Hendriksen) 253
Rm 5:9, 15, 17, 20. “… tanto mais … muito mais … tanto mais …
muito mais …” Em primeiro lugar, considere-se a imagem de tristeza
pintada por Paulo em Rm 3:10–18. Prova isto que Paulo era um
pessimista? Leia-se agora Rm 5:9, 15, 17, 20. Note-se como o mesmo
escritor que nos deu a mais lúgubre imagem da humanidade, sepultada
em pecado, é, no entanto, o mais otimista. É como se ele estivesse
dizendo: «A pecaminosidade da humanidade é, sem dúvida, aterradora;
mas a graça de Deus é muito mais poderosa e maravilhosa do que o
pecado da humanidade é terrível».
O apóstolo era um homem otimista, e ele o era não pelo que os
pecadores são por natureza, mas pelo que a graça de Deus pode fazer
deles. Não deve todo pregador — na verdade, todo verdadeiro crente —
imitar a Paulo a respeito?

Resumo de Romanos 5
Este capítulo está constituído por duas seções principais: A e B. Em
A nos mostra que o resultado básico da justificação pela fé é paz com
Deus. Outras bênçãos estão associadas a ela. Em B a ênfase principal
recai no caráter generoso da salvação provida por Deus.

A. (vv. 1–11)
Paulo chegou a uma nova fase em sua análise da justificação pela
fé. Ele começa fixando a atenção de seus ouvintes-leitores nos efeitos
favoráveis que vêm como resultado da justificação. Em primeiro lugar
menciona “a paz para com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo”.
Como o esclarece Rm 5:10, esta paz é basicamente “reconciliação com
Deus pela morte de seu Filho”. Associadas a esta paz há outras bênçãos,
tais como acesso a Deus pela fé e uma antecipação prazerosa da
maravilhosa salvação que Deus tem reservada para os que têm posto sua
confiança nEle. Nem sequer os sofrimentos por amor de Cristo e Seu
reino pode apagar o brilho da glória por vir, que em princípio já se
Romanos (William Hendriksen) 254
experimenta. A verdade é que tal sofrimento é um elo na cadeia de
bênçãos: sofrimento, perseverança, caráter aprovado, esperança
firmemente ancorada. Esta esperança é mantida viva e é fortalecida pelo
amor de Deus “derramado em nossos corações pelo espírito Santo” (vv.
1–5).
A morte de Cristo no momento oportuno pelos “ímpios” é uma
demonstração do amor de Deus. Como caso de verdadeira exceção acaso
alguém estaria disposto a sacrificar sua vida por uma pessoa digna, mas
Deus demonstra seu próprio amor por meio da morte de Cristo por nós
quando ainda éramos pecadores (vv. 6–8).
Nossa situação legal não somente foi mudada de “culpado” a
“justo”, isto é, da condenação à justificação, mas sim nossa relação
pessoal com Deus também mudou. Por meio da morte de Cristo os
antigos inimigos foram transformados em amigos. Foi o próprio Deus
quem produziu esta reconciliação. Agora, se o próprio Deus tiver
reconciliado os Seus inimigos para consigo mesmo, Ele certamente
salvará os amigos. Os crentes não precisam alarmar-se com relação a
alguma futura ira divina. Tendo diante de nós todas estas bênçãos,
presentes e futuras, agora mesmo “nos regozijamos em Deus por meio de
nosso Senhor Jesus Cristo” (vv. 9–11).

B. (vv. 12–21)
Numa oração que começa no v. 12, recapturada (em sua essência)
no v. 18a, e completada em 18b, o apóstolo afirma: “Como através de
um homem o pecado entrou no mundo, e a morte por meio do pecado,
assim a morte se estendeu a toda a humanidade, visto que todos pecaram;
isto é, como uma transgressão resultou na condenação de todos os
homens, do mesmo modo um ato de justiça resultou a todos os homens
em justificação que produz vida”.
«Quando Adão caiu, todos nós pecamos». Adão, por meio de sua
transgressão de um mandato divino expresso, envolveu a toda a
Romanos (William Hendriksen) 255
humanidade em seu pecado e culpa. Toda a raça humana é compreendida
“em” Adão. Além disso, estar envolvido em pecado implica estar
envolvido na morte. A realidade do pecado não dependia do
estabelecimento da lei mosaica. Mesmo durante o período entre Adão e
Moisés o pecado era levado em conta, porque a lei de Deus tinha sido
escrita no coração do homem (cf. Rm 2:14, 15). Isto explica por que é
correto afirmar que a morte reinou desde Adão até Moisés, até sobre os
que não pecaram transgredindo um mandato expresso, como Adão (veja-
se Gn 2:16, 17; 3:1–6). Com relação a isso, Paulo chama Adão “figura
daquele que devia vir”, Adão, considerado como cabeça da humanidade
caída; Cristo, como cabeça da humanidade redimida (vv. 12–14).
No resto do capítulo o apóstolo mostra que assim como todos os
homens estavam incluídos em Adão, do mesmo modo “todos os
homens”, isto é, todos os que pertencem a Cristo, quer judeus ou gentios
de raça, estão incluídos em Cristo. O paralelo Adão-Cristo é, no entanto,
principalmente um paralelo de contraste, como se torna muito evidente
agora. Paulo diz: “Porque se pela transgressão de um só, reinou a morte
por um só, tanto mais reinarão em vida aqueles que recebem a
superabundante plenitude da graça e do dom da justiça por meio de Um
só, Jesus Cristo”. A transgressão de Adão trouxe condenação. O
sacrifício voluntário de Si mesmo feito por Cristo a favor de Seu povo
trouxe a justificação que produz vida. Além disso, a graça é muito mais
eficaz que o pecado. “Onde aumentou o pecado, a graça aumentou muito
mais”. É que a graça simplesmente compensou o pecado e a morte, de
modo que a humanidade voltou ao estado de inocência, esse estado que
Adão tinha antes da Queda? Pelo contrário, a graça mudou a morte em
lucro, substituindo justiça por pecado e vida eterna por morte. Tudo isso
“mediante Jesus Cristo, nosso Senhor” (vv. 15–21).
Romanos (William Hendriksen) 256
ROMANOS 6
2a. Produz o fruto da santidade. Rm 6:1–14

O capítulo 6 introduz um novo tema. Não é que haja uma ruptura


repentina. Mas há uma diferença, uma transição de um fruto da
justificação, ou seja, a paz com Deus, para outro, a santidade.
O pecado, mencionado frequentemente no capítulo 5, é mencionado
com uma frequência ainda maior no capítulo 6. E nesta conexão a ênfase
passa do estado legal do crente para sua condição espiritual e moral. A
nova linha de pensamento centraliza-se em conceitos tais como a
santidade, o viver uma nova vida, o morrer ao pecado, o viver para Deus.
No entanto, os capítulos 5 e 6 estão estreitamente relacionados,
tanto como o estão a justificação e a santificação. O Deus que declara
justo o pecador, derrama ao mesmo tempo, e em relação estreita com tal
justificação, o Espírito Santo em seu coração, produzindo a santidade.
Foi uma consideração de caráter extremamente prática a que
contribuiu para a redação do capítulo 6. Paulo tinha estado proclamando
com cálido entusiasmo as riquezas da graça de Deus. Para muitas
pessoas, especialmente para os judeus e aqueles pagãos que tinham
abraçado o judaísmo, sua ênfase na graça divina como única fonte de
salvação era algo novo. Para alguns deles parecia que este pregador-
missionário-escritor estava minimizando o valor das obras. Eles
pensavam: «Se as obras contarem tão pouco, para que empenhar-se
sequer em praticá-las fazer? Além disso, se a graça é o mais importante,
por que não pecar abertamente, à vontade, para dar à graça a
oportunidade de agir, de fazer sua obra?» O capítulo 6 é a resposta direta
e vigorosa de Paulo a esta fantástica distorção de sua divinamente
inspirada apresentação da doutrina do pecado e da graça.
Como sucedeu com os capítulos 4 e 5, também o capítulo 6 se
divide facilmente em duas partes. Nos vv. 1–14 Paulo indica que seria
Romanos (William Hendriksen) 257
impossível que os crentes continuassem vivendo em pecado; os que
morreram para o pecado vivem para Deus em Cristo Jesus. Nos vv. 15–
23 o apóstolo pergunta, implicitamente: «Quem é o vosso Amo? O
pecado ou Deus?»
1. Que diremos então? Continuaremos pecando para que a graça
aumente? [NVI]
Lembremos que já em Rm 3:8 Paulo combateu brevemente contra
esta distorção da doutrina da graça. Aqui no capítulo 6 sua refutação é
mais detalhada.
Deve enfatizar-se que não estamos tratando aqui uma simples
objeção teórica à doutrina da graça. Na verdade, embora alguns dos que
formulavam esta pergunta possam ter querido que fosse interpretada
como uma objeção ao ensino de Paulo, havia outros que de modo algum
a objetavam. Estavam bastante satisfeitos com a doutrina de Paulo
(segundo eles a interpretavam), e diziam: «Continuemos pecando para
que a graça aumente».
Quando Pedro afirma que alguns dos ensinamentos de Paulo
estavam sendo distorcidos (2Pe 3:16), bem pode ser que ele tenha estado
pensando nesta tentativa especial de distorcer o significado das palavras
utilizadas por seu “amado irmão”, o apóstolo aos gentios. Sabemos, em
todo caso, que o que fez com que Judas mudasse sua opinião com
relação ao conteúdo da carta que pensava escrever foi o fato que “certos
indivíduos tinham convertido (a doutrina de) a graça de Deus em
desculpa para uma vida imoral” (Jd 4).
Cada época produziu sua quota de tais enganadores. Um exemplo
que vem imediatamente à mente é o do monge russo Rasputin. Durante
um tempo ele foi o muito influente favorito do Czar Nicolau II. Sua
doutrina parece ter sido: “Quanto mais peca uma pessoa, tanta mais
graça receberá. Assim que, peque à vontade”.
Um caso bastante mais recente tomado da vida diária tem que ver
com um ardente evangelista. Uma de suas passagens favoritas provinha
deste mesmo capítulo de Romanos: “Vós não estão debaixo da lei mas
Romanos (William Hendriksen) 258
debaixo da graça” (v. 14). Ele falava com grande persuasão e atraía
grandes multidões. No entanto, o vizinho que vivia ao lado de sua casa
nunca ia escutá-lo. Quando alguém perguntou a esse vizinho “Como é
que nunca vemos você entre seu auditório?”, a resposta foi: “Porque
sucede que sei que o pátio atrás de sua casa está cheio de coisas
roubadas”.
A resposta de Paulo à pergunta “Continuaremos pecando para que a
graça aumente?” é:
2. De maneira nenhuma! Nós, os que morremos para o pecado, como
podemos continuar vivendo nele? [NVI]
A mera sugestão de que o fim justifica os meios, que se pode
produzir graça vivendo em pecado, é algo tão completamente detestável
para Paulo que ele a responde usando uma de suas características
fórmulas cortantes de rejeição: “De maneira nenhuma!” Veja-se sobre
Rm 3:4. Para um cristão o continuar vivendo em pecado não só é ilícito,
é impossível! Por certo, Paulo sabe que mesmo o crente comete pecados
até chegar o dia de sua libertação desta existência terrestre. Veja-se Rm
7:14s. Porém na teologia do apóstolo esta circunstância não proporciona
uma razão válida para uma vida fácil. Veja-se sobre Rm 6:15. Além
disso, a ideia de que um filho de Deus daria voluntariamente ao pecado
uma oportunidade de operar, que de fato o fomentaria, produz
repugnância ao coração de Paulo. A mera sugestão lhe desgosta!
Lembra aos seus leitores que algo decisivo sucedeu em sua vida e
na deles. Pela graça de Deus eles tinham morrido para o pecado; quer
dizer, eles tinham renunciado à obediência a suas naturezas pecadoras e
todas as seduções e carinhos deste mundo pecaminoso. Cf. Cl 3:3,
“Porque morrestes, e vossa vida está escondida em Cristo com Deus”.
Tudo isso havia ocorrido quando eles se converteram, professaram sua fé
e tinham sido batizados. Paulo então continua assim:
3, 4. Ou não sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus
fomos batizados em sua morte? Assim, pois fomos sepultados com ele pelo
Romanos (William Hendriksen) 259
batismo para morte para que, assim como Cristo foi ressuscitado dos
mortos pela glória do Pai, assim também nós andemos em vida nova.
Quando Paulo pergunta: “Ou não sabeis que”, etc., ele nos faz
lembrar o estilo do Mestre. Veja-se especialmente João 3:10; 19:10; mas
compare-se também passagens como Mt 12:3, 5; 19:4; 21:16, 42; 22:31;
Lc 6:3, para mencionar umas poucas. A pergunta demonstra também que
embora o próprio Paulo não tenha estabelecido a igreja de Roma, ele dá
por sentado que o significado prático da morte de Cristo para a vida
cristã é um assunto do qual se pode esperar que todos os seus leitores
estejam completamente informados. Veja-se também sobre Rm 7:1.
O apóstolo supõe que todos (inclusive ele mesmo) os que tinham
ouvido a pregação pública do evangelho ou que por algum outro meio se
converteram, tinham confessado publicamente sua fé e tinham sido
batizados. Veja-se Mt 28:19; At 2:37, 38; 9:18. Ele pergunta agora: “Ou
não sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus fomos
batizados em sua morte?”
Ser batizado “em Cristo Jesus” significa ser posto numa relação
pessoal com o Salvador. Há expressões similares em Mt 22:19
(“batizando-os em nome de Paulo”): e Rm 10:2 (“batizados em
Moisés”). Por conseguinte, Paulo sublinha que batizar as pessoas em
Cristo Jesus implica batizá-los em — quer dizer, com relação ao
sacramento do batismo que os põe numa relação pessoal com — a morte
de Cristo, de modo que esta morte se torna significativa para eles,
ensinando-lhes que por ela a culpa de seus pecados foi tirada e que
receberam o poder para lutar contra a contaminação do pecado e vencê-
la.
À primeira vista a afirmação: “Fomos sepultados com ele pelo
batismo em sua morte” pode parecer confusa, como se a sepultura
precedesse à morte. Por outro lado, como é possível que uma pessoa seja
sepultada na morte de outra? No entanto, quando levamos em conta o
contexto, a dificuldade desaparece, como se verá:
Romanos (William Hendriksen) 260
A perigosa doutrina do antinomianismo estava desencaminhando as
pessoas. Esta sinistra heresia fez com que Paulo enfatizasse a
necessidade de fazer uma ruptura definitiva com a passada vida de
pecado. Por isso ele diz: “Fomos sepultados em sua morte” — quer
dizer, a de Cristo; em outras palavras, pelo poder do Espírito Santo nos
fez afundar profundamente no significado de sua maravilhosa morte. De
fato, tão profundamente nos sepultamos nela, com coração e mente, que
começamos a ver seu glorioso significado para nossas vidas. Portanto,
rejeitamos e aborrecemos essa ímpio e terrível afirmação: Continuemos
pecando para que a graça aumente.
Por meio do batismo e pela consideração de seu significado, estes
primitivos convertidos, inclusive Paulo, tinham sido levados a uma
relação pessoal muito estreita com seu Senhor e Salvador e com o
significado de Sua morte abnegada. O significado dessa morte tinha sido
levado como bênção aos seus corações pelo Espírito Santo.
Paulo agora lembra a seus leitores que Cristo foi ressuscitado da
morte por meio da “glória” — que aqui quer dizer “o poder majestoso”
(veja-se sobre Rm 1:23) — do Pai.
Visto que os amados do Salvador estão “nEle”, e sendo a relação
muito estreita e inseparável (Jo 10:28; 17:24; Rm 8:35–39; Cl 3:3),
deduz-se que incluída no propósito de Sua ressurreição se acha esta
meta: “para que andemos numa vida nova” 163 uma vida já não dedicada
ao pecado mas à glória do Triúno Deus.
Deve entender-se que a ressurreição de Cristo dos mortos deve
receber a plenitude de seu significado como aquele grande

163
Note-se _σπερ … ο_τως, “assim como … assim também nós”. O paralelo é, porém, um paralelo de
analogia, não de identidade. A ressurreição de Cristo foi física; a ressurreição do crente que aqui se
indica é espiritual. Tem que ver com uma nova vida. Por outro lado, a primeira serve de causa para a
segunda.
Note-se também, καινότητι. Neste caso provavelmente corresponde atribuir o significado pleno e
peculiarmente seu a καινός implicado (não se trata aqui de νέος). A ênfase recai na qualidade, não no
tempo.
Romanos (William Hendriksen) 261
acontecimento que conduziu a sua atividade salvífica no céu (Rm 8:34;
Ef 1:20–23; Hb 7:25).
Sobre andar, no sentido de conduzir-se ou de viver, veja-se
passagens tais como as seguintes: Gn 17:1; Êx 16:4; Sl. 56:13; 101:2;
119:1; Rm 4:12; 8:1, 4; 13:13; 14:5; 1Co 3:3; 2Co 5:17; Gl 5:16, 25; Ef
2:10; 3:6–19. 164
5. Porque se fomos unidos com ele numa morte como a sua,
certamente seremos unidos a ele numa ressurreição como a sua.165
A estreita relação entre os vv. 3, 4 e o v. 5 é indicada pela palavra
Porque. Como resultado, a ideia que alguns têm, que o v. 5 refere-se à
futura ressurreição corporal dos crentes, deve ser rejeitada. 166 O v. 5
repete o pensamento do contexto que o antecede imediatamente, ou seja,
a união dos crentes com Cristo em (a) sua morte e em (b) sua
ressurreição, considerada respectivamente como fonte de (a) sua morte
ao pecado, e (b) sua ressurreição para uma nova vida. Mas também
acrescenta algo ao pensamento expresso no precedente. Note-se a
palavra certamente.
O significado do v. 5 é, então, como segue: «Porque se realmente
fomos unidos a Cristo numa morte como a Sua, de tal modo que sua
morte causou nossa morte para um constante viver em pecado, então não
há dúvida de que também estaremos unidos a Ele numa ressurreição
como a Sua; quer dizer, que então é coisa certa que Sua ressurreição

164
Há aqueles que creem que a expressão: “sepultados com ele pelo batismo para morte …
ressuscitado dos mortos” demonstra que o batismo deve efetuar-se por imersão. Para uma defesa desta
posição veja-se o artigo de A. T. Robertson, Baptism, I. S. BE., Vol. 1, pp. 385–388. O ponto de vista
oposto pode achar-se em Christian Baptism, de John Murray, Filadélfia, 1952, especialmente nas pp.
29–33. Há dois pontos com relação aos quais deve haver acordo:
a. A imersão é sem dúvida uma maneira totalmente correta e belamente simbólica de efetuar o
batismo de adultos.
b. Em Rm 6:3, 4 (cf. Cl 2:11, 12) o tema central de Paulo não é o modo correto de efetuar o
batismo e sim os efeitos e as responsabilidades que surgem da união com Cristo.
165
Literalmente: Em semelhança de sua morte … (em semelhança) de sua ressurreição.
166
O uso do futuro _σόμεθα não pode salvar a esta teoria errônea. Não é natural pensar numa nova
vida em termos futuros?
Romanos (William Hendriksen) 262
(física e entendida em seu sentido mais completo, conforme acabamos de
explicar produzirá nossa ressurreição espiritual, ou seja, nosso andar
numa nova vida». A ênfase que Paulo dá a este fato deve ser atribuída ao
nefasto caráter da heresia antinomiana. 167
6, 7. Porque sabemos que nossa velha natureza foi crucificada com
ele, para que o corpo de pecado possa ser destruído, a fim de que já não
sejamos mais escravos do pecado — porque aquele que morreu é
libertado do pecado.
O perverso erro dos antinomianistas, um assunto que esteve na
mente do apóstolo desde o começo deste capítulo, e ao qual ele também
fez alusão anteriormente, ajuda a explicar os vv. 6, 7. O que Paulo diz é:
em vez de revolver-se no pecado para que a graça aumente, é mister que
tenhamos em mente que tal curso de ação derrotaria a própria finalidade
de nossa vida como crentes.
Paulo diz “Porque sabemos”, apelando deste modo ao que poderia
supor-se como coisa sabida entre os crentes, inclusive entre os
destinatários desta carta. O fato importante com o qual se supunha que
eles deviam saber era este: nossa velha natureza (literalmente: “nosso
velho homem”) foi crucificada com Cristo. Esta velha natureza é a
pessoa que uma vez fomos, nossa natureza humana considerada à parte
da graça. Quando afirma agora o apóstolo que esta velha natureza foi
crucificada com Jesus, é claro que ele de novo prossegue com base na
solidariedade dos crentes com Cristo. Assim como considera que todos
os seres humanos estão presentes “em Adão” (cf. Rm 5:12, 17, 19), do
mesmo modo considera que todos os crentes estão presentes “em
Cristo”. Por isso, em certo sentido, quando Cristo morreu na cruz, seus
verdadeiros seguidores morreram todos ali com Ele. Isto lembra Gl 2:20:
“Fui crucificado com Cristo, e já não sou eu aquele que vive, mas é

167
Que σύμφυτοι provenga de συμφύω, coisa que parece provável, significando por isso crescidos
junto com; ou de συμφυτεύω, e signifique plantados junto com é coisa de pouca importância. O que
mais importa não é a derivação da palavra e sim a conotação resultante no presente contexto, ou seja,
unidos. Sobre isto veja-se Cranfield, op. cit., Vol. 1, pp. 306, 307.
Romanos (William Hendriksen) 263
Cristo quem vive em mim; e essa (vida) que agora vivo na carne [eu] a
vivo na fé, (a fé) no Filho de Deus, o qual me amou e se entregou a si
mesmo por mim”. O tempo que tenha passado nada tem que ver com
isso. Se a Escritura nos considerar quer presentes em Adão, também
pode nos considerar sempre presentes em Cristo.
O propósito e resultado de nossa solidariedade com Cristo em Sua
crucificação é “para que o corpo de pecado possa ser destruído”, quer
dizer, que por meio da crucificação de Cristo e de nossa crucificação
com Ele, esta destruição pode acontecer. Com a expressão “corpo de
pecado” (v. 6, cf. “velha natureza”; também v. 6; e veja-se também “Eu”,
Rm 7:14) provavelmente se faça referência à pessoa em sua totalidade,
vista sob o controle do pecado. É bem claro que a referência é à natureza
humana à parte da graça regeneradora.
Quer Paulo dizer então que o crente pode nesta vida presente
alcançar um grau de santidade tão sublime que já não comete nenhum
pecado? Não o faz, nem tampouco é esta falácia ensinada em lugar
algum das Escrituras. Veja-se Mt 6:12; Rm 7:14–25; Tg 3:2; 1Jo 1:8.
Mas há uma enorme diferença entre (a) cometer um pecado e (b) viver
constantemente em pecado e deleitar-se nele. Pelo poder e a graça do
Espírito Santo uma pessoa de fato pode alcançar o ponto quando já não
deseja ser escrava do pecado. Pode achar um sinônimo desta frase
“escravos do pecado” em 2Pe 2:19, e note-se as palavras de Jesus que se
encontra em Jo 8:34. Veja-se C.N.T. sobre este versículo.
A tudo isso Paulo agora acrescenta: “… porque aquele que morreu
é libertado do pecado”. À luz do contexto o significado certamente
pareceria ser: “A pessoa que pela graça soberana de Deus foi regenerada
e convertida, de modo que já não se deleita no pecado e sim o combate,
pode estar segura de que Deus, com base na expiação feita por Cristo,
perdoou-lhe seus pecados, com o resultado de que essa pessoa é agora
verdadeiramente livre, justificada diante de Deus”.
No entanto, há vários expositores que, ao tentar explicar esta
passagem, assinalam imediatamente a conhecida regra rabínica (e ainda
Romanos (William Hendriksen) 264
168
mais geral) segundo a qual “a morte paga todas as dívidas”. Com
frequência se apela a que Paulo tinha estudado sob o famoso mestre
judeu Gamaliel (At 22:3) e que por esta razão conhecia bem a erudição
judia.
Agora, não faz falta negar que no formal o apóstolo possa aqui e ali
dar amostras de sua capacitação prévia. Segundo as Escrituras nem toda
o ensino dos rabinos de maneira nenhuma era mau. Considerem-nos
seguintes passagens: Mt 23:1–3; Mt 12:28–34; At 5:34–39; 23:8, 9.
Quer isto dizer então que quando Paulo expressa suas opiniões com
relação a tema tais como o falar em línguas, requisitos para os ofícios
eclesiásticos, a posição da mulher na igreja, etc., podemos
imediatamente justificar nosso rejeição daquilo com o que não
concordamos, baseando nossa atitude negativa na hipótese de que as
opiniões de Paulo sobre assuntos tais estavam influenciadas pelos
rabinos?
Mas este modo de pensar dificilmente possa ser considerado justo.
Um exame consciencioso das epístolas de Paulo revela que em grande
quantidade de pontos de importância ele tinha chegado, por meio do
estudo das Escrituras e pela iluminação do Espírito Santo, à uma posição
que diferia substancialmente da dos rabinos. Vejam-se, por exemplo, as
seguintes passagens: Rm 2:9, 14, 15, 17–29; 3:9, 20, 21s; Romanos 4, 5,
7:6; 9:8, 11; 10:3; 11:7; 14:17; 15:9–12; 1Co 1:22–24; 3:16; 7:19; 9:20;
10:25; 15:1s; 2Co 3:14; 5:20, 21; 11:22s; Gl 1:6s; 2:19–21; 3:1s, 24;
5:2–4; 6:12–16; Ef 2:8–10, 11–22; Fp 3:2s; Cl 1:24s; 2:11, 12, 16s; 3:11;
1Tm. 1:3, 4; 4:1s; 6:13–16; 2Tm 2:8; Tt 3:4s; e veja-se especialmente
1Ts 2:4–16. Além disso, a gente não pode em boa consciência apoiar
uma pobre avaliação das afirmações de Paulo e ainda manter a opinião
que Paulo escreveu sob inspiração.
No caso presente o apelo à citada regra rabínica ajuda pouco ou
nada na interpretação. O apóstolo se refere, naturalmente, a “morrer para

168
Veja-se S.BK., Vol. III, p. 232.
Romanos (William Hendriksen) 265
o pecado”, essa determinação (seguida da ação) tomada com base na
graça e no poder de Deus, de não viver mais no pecado. Quando uma
pessoa já não se sente à vontade no pecado, pode estar segura que foi
libertada da culpa do pecado e que até o poder que o pecado tenha tido
sobre ela se está desvanecendo. 169
Era o desejo de viver este tipo de nova vida o que impulsionou as
pessoas a adiantar-se para ser batizada. A água do batismo, qualquer que
seja o método que alguém a aplique (imersão, derramamento, aspersão)
simboliza e sela o poder purificador do Espírito (Ez 36:25; 1Co 6:11; Ef
5:26; Hb 10:22). Simboliza e sela o que Deus fez e está fazendo e, como
resultado, a incorporação da pessoa na comunidade de Deus e de sua
igreja. Com relação tanto ao erro de subestimar o significado dos
sacramentos como de superestimá-los, veja-se sobre Rm 4:9–12.
8, 9. Agora, se temos morrido com Cristo, cremos que também
viveremos com ele; visto que sabemos que Cristo, tendo sido ressuscitado
dentre os mortos, já não morre. A morte não tem domínio sobre ele.
Se temos morrido com Cristo, quer dizer, se como resultado da
morte de Cristo por nós morremos para o pecado, também viveremos
espiritualmente em comunhão com Ele, e isso não somente no além mas
também aqui e agora. Cf. vv. 3 e 5. Sabemos que este viver com Ele é
possível visto que Ele, tendo morrido, foi ressuscitado dentre os mortos
para não morrer jamais. A morte não pôde retê-Lo (At 2:24), visto que
não tem domínio sobre Ele.
Os que durante o ministério de Cristo prévio ao Gólgota foram
ressuscitados por Ele dentre os mortos voltaram a morrer. Segundo a
mitologia pagã, certas deidades constantemente morrem e ressuscitam.
Não é assim com Jesus. A morte já não tem domínio sobre ele. Uma vez
ressuscitado, Ele vive para sempre (Ap 1:18) e nós com Ele. Isto é o que
cremos; sabemos que é verdade!

169
É por isso que concordo com o Cranfield, op. cit., Vol. I, p. 311, em que a regra rabínica a que se
fez referência é singularmente inadequada como confirmação de Rm 6:7.
Romanos (William Hendriksen) 266
10. Porque a morte que ele morreu, morreu para o pecado uma vez
por todas; mas a vida que vive, vive-a para Deus.
Sem a certeza de que a morte de Cristo foi uma morte definitiva,
“uma vez por todas”, os crentes careceriam do consolo que necessitam
para esta vida e a futura. Não consiste esse consolo exatamente em que
eles podem cantar: “Ao Cristo vivo sirvo”?
Foi por meio de Sua morte que Jesus conquistou a morte. Visto que
o fez, Ele pôde dizer a João, um exilado na ilha de Patmos: “Estive
morto, mas eis que vivo para sempre, e tenho as chaves da morte e do
Hades” (Ap 1:18).
É muito significativa a expressão: “Morreu para o pecado uma vez
por todas”. Isto certamente indica que a carne e sangue de Cristo não
pode voltar a ser oferecido. Jesus Se ofereceu a Si mesmo “uma vez por
todas” pelos pecados de seu povo (Hb 7:27; veja-se também Hb 9:12;
10:10). Uma segunda oferta não é necessária e nem sequer possível! No
que respeita a este abnegado sacrifício feito uma vez para sempre veja-se
também 1Pe 3:18.
A vida de Cristo na terra antes de Sua morte estava condicionada
pelo pecado, não seu próprio pecado mas o de Seu povo. Leia-se Is 53.
Cf. Mt 20:28; Mc 10:45.
Por conseguinte, uma vez expiado o pecado, Ele vive agora para
Deus. Naturalmente, toda Sua vida, também a que precedeu ao Gólgota,
tinha estado dedicada à glória de Seu Pai celestial. Em Sua oração
sacerdotal Ele pôde dizer: “Eu te glorifiquei na terra; tendo acabado a
obra que me deste para fazer” (Jo 17:4). Mas uma vez cumprida essa
tarefa, Ele pôde viver para Deus de um modo livre de travas, quer dizer,
sem ter que levar a carga do pecado de Seu povo. É nesse sentido que
Paulo pode dizer: “Mas a vida que vive, vive-a para Deus”.
Em certo sentido — mas somente em certo sentido — poderia
dizer-se: «Depois de Sua ressurreição e ascensão, Jesus retornou à Sua
vida com o Pai tal como esta tinha sido antes de deixar as riquezas e
glórias do céu para sofrer pelo pecado do homem». Veja-se Jo 17:5. A
Romanos (William Hendriksen) 267
Escritura não diz muita com relação a essa vida. Eis aqui algumas breves
olhadas:
“Quando formava os céus, ali eu estava; quando traçava o círculo
sobre a face do abismo, quando afirmava os céus acima, quando
afirmava as fontes do abismo, quando punha ao mar seu limite, para que
as águas não transpassassem seu mandamento; quando estabelecia os
fundamentos da terra; com ele estava eu a seu lado como mestre artífice;
e era eu sua delícia cada, alegrando-me sempre em sua presença.” Pv
8:27–30
Se isto se referir a Cristo, “a Sabedoria de Deus”, a referência é
indireta.
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava face a face com Deus,
e o Verbo era Deus. Ele mesmo estava no princípio face a face com
Deus.” Jo 1:1–2
“… sendo rico …” 2Co 8:9
Devemos levar em conta, porém, que existia ao menos esta
diferença entre então (o tempo prévio à humilhação de Cristo) e agora
(depois de Sua humilhação): Ele voltou ao céu levando consigo os
méritos de Sua redenção plenamente obtida! É assim que a vida que Ele
vive agora, vive-a para Deus; embora não Se esquecendo de seu povo;
note-se Hb 7:25.
11. Assim também vós deveis considerar-vos mortos para o pecado,
mas vivos para Deus em Cristo Jesus.
É aqui onde a doutrina cede o lugar à exortação. O que se
estabeleceu, ou seja, que em princípio os crentes estão mortos para o
pecado e vivos para Cristo, deve transformar-se na permanente
convicção de seus corações e mentes, o ponto de decolagem de todo o
seu pensar, planejar, desfrutar, falar e fazer. Eles devem lembrar
constantemente que já não são o que eram antes. Suas vidas devem
demonstrar dia a dia que não esqueceram isso. Estão “em Cristo”; foram
escolhidos “nele” (Ef 1:4), redimidos “nele” (cf. Rm 1:7), vivem “nele”
(Gl 2:20; Fp 1:21; 2Tm 3:12). A justiça de Cristo lhes foi atribuída . Seu
Romanos (William Hendriksen) 268
Espírito foi derramado em seus corações. Num sentido é verdade que
quando Cristo morreu, eles morreram com Ele. Quando Ele ressuscitou,
eles ressuscitaram com Ele. Cf. 2Co. 5:14, 15.
Talvez o melhor comentário sobre Rm 6:11 seja aquele que Paulo
mesmo fez: “Se, pois, ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas de
cima, onde está Cristo, sentado à destra de Deus. Ponde toda vossa
atenção nas coisas de cima, não nas coisas que estão sobre a terra.
Porque morrestes e vossa vida está escondida com Cristo em Deus.
Quando Cristo (que é) a nossa vida for manifestado, então vós também
sereis manifestados com ele em glória” (Cl 3:1–4).
12. Portanto, não permitam que o pecado continue dominando os
seus corpos mortais, fazendo que vocês obedeçam aos seus desejos [NVI].
Embora seja verdade que os crentes já não vivem constantemente
em pecado, isto não significa que o pecado deixou de ser uma força
oponente em suas vidas, uma realidade que deve ser levada em conta.
Veja-se Rm 7:14s.
Ninguém que conhece a história de Davi negaria que ele era
verdadeiramente um filho de Deus; de fato, “um varão segundo o
coração de Deus” (1Sm. 13:14). A Escritura comprova esta realidade de
muitas maneiras. 170 No entanto, às vezes ele permitiu que o pecado
reinasse em seu corpo mortal. 171 E Davi não é a exceção. Daí que seja
compreensível que o apóstolo insista com os crentes para estar sempre
em guarda contra este alto risco de render-se às paixões, paixões que,
como sucedeu também com Davi, estão frequentemente associadas com
o corpo e suas funções. Falamos de um corpo que, no estado caído do
homem, tende para o pecado e a morte (daí: corpos “mortais”). 172

170
Veja-se meu livro Bible Survey, pp. 98–101.
171
Como resultado, compartilho neste ponto a crítica que Cranfield faz da exegese de Murray; veja-se
Murray, op. cit., pp. 226, 227; Cranfield, op. cit., pp. 316, 317.
172
Quase todas as traduções retiveram a palavra corpo (ou o pl. corpos, visto que o apóstolo está-se
dirigindo a mais de uma pessoa; assim a RA 1999; a BJ entre as versões ao português; e a R.S.V.,
Philips, Williams, Beck, etc. entre as versões ao inglês) neste v. 12. Calvino opina (op. cit. p. 230) que
a referência aponta ao estado degenerado do homem; entre as versões ao português, a RA traduz
Romanos (William Hendriksen) 269
Paulo se torna mais específico ao continuar,
13. E não ofereçais os membros de vosso corpo ao pecado, como
armas de maldade, mas em vez disso oferecei-vos a Deus como quem
passou da morte para a vida, e oferecei os membros de vosso corpo a ele
como armas de justiça.
O que Paulo quer dizer ao falar de “os membros de vosso corpo”
fica esclarecido por passagens tais como Rm 12:4, 5, onde estes
“membros” são claramente membros corporais; 1Co 12:12–14, enquanto,
faz menção específica de “membros” do corpo tais como pé, mão,
orelha, olho, nariz (na verdade, “sentido do olfato”), cabeça, partes
indecorosas e partes decorosas do corpo de uma pessoa. A expressão
“membros de vosso corpo” refere-se, então, a extremidades, membros e
órgãos corporais.
O que Paulo diz, então, é: «Não continuem pondo os membros de
seu corpo à disposição do pecado, como armas de iniquidade. Deixem de
fazer isso; em lugar disso, fiquem agora mesmo, completa e
decisivamente, à disposição de Deus. Ofereçam-se a ele!» 173
Note-se também a distinção entre (a) “Não ofereçais os membros de
vosso corpo” e (b) “oferecei-vos”, em vez de (b) «oferecei esses
membros de vosso corpo». A devoção e a consagração a Deus deve ser
pessoal e de todo coração. Não foi Deus que, em Seu grande amor e
bondade, tinha levado a estas pessoas da morte para a vida?

corpo mortal, Cranfield, por sua vez, põe em inglês mortal selves (op cit., pp. 296, 316, 317). Hodge
(op. cit., p. 319) reteria “corpo” como o órgão no qual se manifesta o pecado; também o faria Lange
(op. cit., p. 209).
A eleição é difícil, talvez à raiz da relação quase imensamente estreita que existe entre a alma e o
corpo. Em Rm 12:1; Fp 1:20, a palavra σ_μα parece referir-se à personalidade inteira. Mas, como não
o lembra Murray (op. cit. p. 227), é possível que aqui em Rm 6:12 o “corpo” seja visto em oposição
ao “espírito”, como em Rm 8:10, 11. Se isto for correto, então a tradução corpo (ou corpos) seria a
correta também aqui em Rm 6:12. A isto eu acrescentaria que a tradução “corpos” também
harmonizaria melhor com “membros do corpo” no v. 13.
173
Por meio desta explicação tratei que tornar evidente a distinção que há entre o presente imperativo
de continuidade παριστάνετε e o imperativo aoristo παραστήσατε, que são, respectivamente, formas
de παριστάνω (forma tardia) e de παρίστημι (forma original do mesmo verbo).
Romanos (William Hendriksen) 270
Em vez de armas muitos preferem instrumentos ou ferramentas ou
implementos. 174 Embora possa dizer algo a favor de tal tradução, os
argumentos a favor de armas são provavelmente melhores:
a. Em todas as outras instâncias desta palavra no Novo Testamento,
_πλα significa armas, armadura. Veja-se Jo 18:3; Rm 13:12; 2Co 6:7;
10:4.
b. Aqui em Rm 6:13 o contexto também aponta nessa direção. O
pecado (personificado) é apresentado aqui como o ditador que demanda
serviço militar, exige obediência marcial e provê as rações do soldado.
Veja-se vv. 12, 14 e 23. 175
c. A descrição da vida do crente por meio do simbolismo do
soldado é tipicamente paulino. Veja-se passagens tais como 1Co 9:7;
2Co 6:7; Ef 6:10–20; 1Ts 5:8; 2Tm 2:3, etc.
O todo inclui as partes. Quando as pessoas se oferecem a Deus, seus
“membros corporais” constituem uma porção desta oferta. O resultado é
que armas de justiça substituem as armas de iniquidade. Esta justiça
indica retidão de conduta, o totalmente oposto à iniquidade. Cf. Ef 6:13.
A razão que Paulo dá para esta exortação é:
14. Porque o pecado já não será senhor sobre vós, pois vós não estais
debaixo da lei, mas debaixo da graça.
A lei pode fazer muitas coisas: manda, demanda, repreende,
condena, refreia e até assinala para além de si mesma, apontando para
Outro. Há, no entanto, uma coisa que a lei nunca poderá fazer. Não pode

174
Quase todos os tradutores modernos e até muitos dos antigos preferem “instrumentos” ou algum
sinônimo muito próximo como equivalente do original _πλα. Por outro lado, os expositores (tanto em
inglês como em outros idiomas) preferem um termo mais claramente militar, p. ex., armas. Assim
Barth, Brunner, Denney, Lange, Lekkerkerker, Lightfoot, Meyer, Ridderbos, Sanday e Headlam,
Schlatter, Van Leeuwen e Jacobs, Wilson. Entre as versões em português que apoiam armas estão a
BJ e a Taizé; entre as traduções ao inglês encontram-se Philips, Montgomery (The New Testament in
Modern English). Entre as traduções que também apoiam a armas estão as seguintes traduções a
idiomas que não são nem espanhol nem inglês: ao holandês (tanto a antiga como a nova versão), ao
alemão, ao sueco, e também ao frísio.
175
Que a palavra “paga” possa ter a mesma conotação militar no v. 23 é algo não totalmente definido.
Veja-se sobre tal versículo.
Romanos (William Hendriksen) 271
salvar. “Pelas obras da lei nenhuma carne será justificada” (Gl 2:16).
Quer dizer isto que as exortações dirigidas aos crentes nos vv. 12 e 13
são inúteis? Quer dizer que todos perecerão em seus pecados? A resposta
encontra-se em Rm 8:3 e é, na verdade, uma resposta alentadora, em
total consonância com a passagem que estamos considerando. Note-se
como a desesperança é substituída pela esperança, as trevas pela luz:
“Porque o que a lei não podia fazer … Deus o fez enviando o seu próprio
Filho … para que o justo requisito da lei possa ser cumprido em nós …”
Esse envio do Filho é a verdadeira essência da graça de Deus. E esta
graça não apenas perdoa, mas também purifica. A graça destrona o
pecado. Destrói o senhorio do pecado e capacita o crente a oferecer-se
a si mesmo e tudo o que lhe pertence em serviço de amor a Deus! O
filho de Deus pode fazer isto porque não está debaixo da lei, mas
debaixo da graça, visto que em Seu amor e graça de infinita
condescendência Cristo o redimiu da maldição da lei, ao ter-se feito
maldição por ele (Gl 3:10–14). Certamente “já não há condenação para
os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8:1). O contexto (note-se “o pecado
já não será senhor sobre vós”) possivelmente pode indicar uma relação
ainda mais estreita com o pensamento de Rm 7:1–6. Consulte-se tal
passagem, e note-se em especial as palavras: “para que possais dar fruto
para Deus … para que sirvamos em nova realidade de (o) Espírito”. Cf.
Rm 8:5, 6.

2b. Quem é o seu senhor — o pecado ou Deus? Rm 6:15–23

15a. E então? Vamos pecar porque não estamos debaixo da Lei, mas
debaixo da graça? [NVI]
No v. 14 Paulo tinha assegurado que os crentes não estão debaixo
da lei. (Para uma explicação desta afirmação veja-se sobre Rm 7:1.)
Quer dizer isto que então eles são livres para pecar? Quando a lei,
erroneamente considerada como meio de salvação, deixa de existir, quer
dizer isto que a lei como norma da perfeição, ou seja como expressão da
Romanos (William Hendriksen) 272
vontade de Deus para nossa vida, cessa também de existir e/ou de operar,
de tal modo que o resultado é uma permissão para cometer um pecado
aqui e outro ali? 176
Paulo não está disposto a lhe fazer esta concessão aos
antinomianistas, nem por um só momento. sua resposta é:
15b, 16. De maneira nenhuma! Não sabem que, quando vocês se
oferecem a alguém para lhe obedecer como escravos, tornam-se escravos
daquele a quem obedecem: escravos do pecado que leva à morte, ou da
obediência que leva à justiça? [NVI]
Neste ponto encontramos de novo o abrupto e decisivo: “De
maneira nenhuma!” O pecado tende a escravizar o pecador. Na primeira
vez que mentir, talvez fique horrorizado; na segunda vez, somente um
pouco agitado; na terceira vez a mentira parece muito mais natural e fácil
de dizer. Finalmente, o pecado de dizer mentiras tem a pessoa em seu
poder. Algo similar ocorre com outros pecados. Enfim a pessoa vive em
pecado, foi escravizada por ele. Veja-se C.N.T. sobre Jo 8:34. O
resultado deste processo, quando o leva a seu fim, é a morte. Cf. v. 23 e
também veja-se Rm 5:12; 8:13. Paulo não especifica se se refere à morte
física, espiritual ou eterna. É razoável excluir qualquer ume delas?
O oposto ao pecado é a obediência, ou seja, obediência a Deus. Isto
leva à justiça, tanto em sua dimensão de estado como de condição. Cf.
1Sm 15:22; Rm 4:3; Tg 2:20–24.
O que o apóstolo diz, então, é: ninguém é livre, no sentido de ser
absolutamente independente, de ser “seu próprio senhor”. Toda pessoa
tem um Senhor. Esse Senhor é ou Deus ou o pecado.
17, 18. Mas graças a Deus: vós fostes escravos do pecado, mas
obedecestes de todo coração ao modelo de ensino a que fostes entregues; e
tendo sido libertados do pecado, entrastes no serviço da justiça.177

176
Note-se a diferença entre _πιμένωμεν, a pes. pl. pres. subj. (de continuidade) de _πιμένω no v. 1; e
_μαρτήσωμευ, aor. subj. de _μαρτάνω aqui no v. 15.
177
Embora muitos interprete admitam que o termo δο_λος e seus verbos derivados (vejam-se vv. 16–
22) podem ser traduzidos servo e prestar serviço, tanto como escravo e estar escravizado, não há
Romanos (William Hendriksen) 273
Note-se o seguinte:
a. “Graças a Deus”. Paulo não louva à igreja de Roma por haver-se
voltado a Deus; ele dá graças a Deus por tê-los levado até onde se
encontram hoje. Veja-se também Rm 7:25; e cf. 1Co 15:57; 2Co 2:14;
8:16; 9:15; 1Pe 2:9. No entanto, ele também reconhece com
generosidade que esta gente obedeceu “de todo coração”, quer dizer, não
de um modo meramente formal, e sim com zelo, ao “modelo de ensino”,
isto é, ao evangelho ou sã doutrina, tal como se estava proclamando em
todas as partes na comunidade cristã, tanto então como depois. 1Tm.
1:10; 2Tm 1:13; 4:3; Tt 1:9; 2:1). 178

b. “(o modelo) a que fostes entregues”.


Há quem considera que: “mas … fostes entregues” é uma glosa
(inserção não autêntica), e que Paulo simplesmente ditou as palavras:

unanimidade quanto à tradução destas palavras nos versículos indicados. Há aqueles que preferem
servo e prestar serviço em todas as partes.
É verdade que algo se pode dizer a favor de escravo. Num sentido ainda mais profundo que ao
aplicável a escravos comuns e seus amos terrestres, os crentes foram comprados por um preço e são,
portanto, propriedade de seu Amo (1Co 3:23; 7:22), de quem dependem completamente e a quem
devem 1ealtad indivisa. Estão totalmente comprometidos a Ele. Se ao definir deste modo o conceito
de doulos se esgotasse seu significado e se nossa palavra escravo não transmitisse nada de natureza
sinistra, traduzir escravo por doulos em todos estes casos seria algo incontestável. Porém no uso que
Paulo dá afinal, um doulos é, no sentido espiritual, alguém que serve ao Senhor com alegria de
coração, com um espírito novo e desfrutando de perfeita liberdade, como o demonstra o v. 18 (cf. v.
22; 7:22), recebendo de Deus uma gloriosa recompensa (v. 22, 23). O amor e a boa vontade para com
Deus e o homem enchem o coração deste doulos. Vejam-se Gl 5:13; Ef 6:7.
No entanto, com o termo escravo associamos imediatamente as ideias de serviço não voluntário,
sujeição obrigada e (com frequência) tratamento cruel. É provavelmente por esta razão que, além dos
que aqui em Rm 6:16–22 preferem usar em todos os casos servo, etc. (A.V., A.R.V., Philips,
Berkeley) e dos que consistentemente usam escravo (Goodspeed, R.S.V., N.A.S., N.I.V.), há também
os que, sem evitar em todos os casos escravo, etc., traduzem o v. 18b da seguinte maneira: “entrastes
ao serviço da justiça” e o v. 22 “e entrado ao serviço de Deus” (como o faz, p. ex., a versão holandesa
Nieuwe Vertaling, “… zijt gij in diest gekomen van de gerechtigheid … en in den dienst van God
gekomen”.). Tenho seguido, em termos gerais, o mesmo curso. Veja-se também C.N.T. sobre
Filipenses, nota 92.
178
A palavra usada no original para “modelo” é τύ πος (aqui no ac. sing., -ν); impressão visível,
marca, imagem, molde; cf. tipo.
Romanos (William Hendriksen) 274
“vós fostes escravos do pecado, mas fostes libertados …” Mas qualquer
que tenha dedicado anos ao estudo das epístolas de Paulo sabe que se
este raciocínio fosse correto, deveria encontrar-se centenas de glosas
nestes escritos. A estrutura das orações do apóstolo é muitas vezes um
tanto complicada.
Paulo não diz: “… ao modelo de ensino que aceitastes”, mas sim
(atribuindo toda a honra a Deus) “a que fostes entregues”. 179

c. “e tendo sido libertados do pecado, entrastes ao serviço da


justiça”.
Para o crente a liberdade nunca significa preguiça. Sempre significa
oportunidade para servir. Note-se que os escravos do pecado desfrutam
de uma liberdade que não merece tal nome (veja-se v. 20). Pelo
contrário, os que entraram ao serviço da justiça desfrutam de uma
verdadeira liberdade, ou seja, a liberdade do pecado; embora não no
sentido de que nunca cometem mais pecados, porém no sentido que o
pecado já não é seu senhor!
Tendo afirmado que os que haviam aceito o evangelho tinham
mudado seu estado de escravidão ao pecado por um de serviço à justiça,
Paulo prossegue:
19. Falo em termos humanos devido à fraqueza da vossa carne. 180
Quando Paulo falou, nos vv. 17, 18, dos que uma vez foram
escravos do pecado, mas que subsequentemente se tornaram servos da
justiça, ele estava utilizando, naturalmente, uma ilustração; ou seja, a de
alguém que se tinha transferido de um senhor a outro. Por isso, no v. 19,

179
O verbo παραδίδωμι, do qual παρεδόθητε é uma forma (2ª. pes. pl. aor. ind. pas.), tem um amplo
espectro de significados, com relação aos quais convém ver C.N.T. sobre Lucas 22:4.
Neste caso é provável que nada tenha que ver com a transmissão autorizada da tradição de uma
geração (ou uma testemunha) a seguinte, mas simplesmente significa que os membros da igreja de
Roma tinham sido transferidos por Deus de um amo a outro. Também Cranfield o vê assim, op. cit.,
Vol. I, p. 324. Para o ponto de vista oposto veja-se Ridderbos, op. cit., pp. 139, 140.
180
Para os diferentes significados de σάρξ a nota 187.
Romanos (William Hendriksen) 275
ele explica que a razão pela qual usou esta ilustração era a fraqueza deles
para captar estas grandes verdades espirituais.
As pessoas a quem Paulo se dirigia fizeram um progresso notável
no intelectual, moral e espiritual. Mas embora este progresso fosse
alentador, eles estavam ainda longe de alcançar a meta da maturidade. É
por isso que Paulo usou esta ilustração tirada de relações humanas
familiares. Cf. Gl 3:15. Era coisa frequente que uma pessoa que era
escrava de um certo amo fosse transferida a outro, do qual seria escrava
dali em diante. O que Paulo deseja, por conseguinte, é que estes
romanos, que antes tinham estado escravizados a seu amo, o Pecado,
sirvam, com uma entrega não menos total, a seu novo Amo, ou seja, a
Justiça, o contrário do pecado. Não há dúvida que uma reflexão sobre
esta apta ilustração os ajudaria a fazê-lo.
O v. 19 segue assim: Porque, assim como antes oferecestes os
membros de vosso corpo ao serviço da impureza e da iniquidade para a
promoção da iniquidade, oferecei agora ao serviço da justiça para a
promoção da santidade.
O pensamento do v. 13 reaparece aqui de uma forma ligeiramente
diferente. Note-se a condição: “Assim como antes …”, seguida da
conclusão: “agora do mesmo modo …” Mas este paralelo inclui uma
antítese: a impureza e iniquidade anteriores são contrastadas com a
exortação de que os que antes tinham praticado estes vícios ofereçam
agora os “membros de seu corpo” (como no v. 13) ao serviço da justiça,
para a promoção da santidade. 181
Note-se a ênfase que se faz aqui e em todo este capítulo na
santidade, essa atitude e modo de viver que está oposta ao pecado e
dedicada ao serviço de Deus. Além disso, como anteriormente no v. 13,

181
Embora alguns pensem que _γιασμός (aqui no ac. s. -ν) significa santificação, que provavelmente
seja seu significado em passagens tais como 1Ts 4:3, 4, 7; 2Ts 2:13; 1Tm. 2:15, aqui em Rm 6:19 as
qualidades ou condições de impureza e iniquidade são contrastados com as de justiça e santidade. Se
o primeiro par não indicar processos, tampouco o faz o segundo.
Romanos (William Hendriksen) 276
também aqui até os membros do corpo participam desta promoção ativa
da santidade.
A razão da exortação do v. 19b, que explica por que este mandato é
tão necessário e urgente, dá-se nos vv.
20, 21. Porque quando éreis escravos do pecado, estáveis livres do
controle da justiça. Que benefício obtivestes então? Coisas das quais estais
agora envergonhados, porque o seu resultado é a morte! 182
O significado é claramente este: ser escravo do pecado significa ser
inimigo da justiça; ser inimigo do pecado significa ser amigo da justiça.
Estar dedicado ao pecado e à justiça ao mesmo tempo é impossível.
Compare-se isto com as palavras de Jesus: “Ninguém pode servir a dois
senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se
devotará a um e desprezará ao outro” (Mt 6:24, RA).
Com relação ao “fruto” ou “benefício” que esta gente obteve
anteriormente em sua escravidão ao pecado, Paulo diz que consistia de
coisas das quais estão agora envergonhados. É provável que ele estivesse
pensando em coisas tais como maus pensamentos, que leva a más
palavras, que por sua vez geram maus atos e que resultam finalmente em
maus hábitos. Cf. Rm 1:24f. À luz do evangelho e da adoração do único
verdadeiro Deus, que se revela em Jesus Cristo, agora estão

182
A correta pontuação deste versículo é incerta. Se as primeiras nova palavras (τίνα …
_παισχύνεσθε) devem ser entendidas como uma só pergunta continuada, que poderia ser traduzida:
“Que fruto (ou benefício) obtivestes das coisas das quais agora estais envergonhados?”, as cinco
palavras finais, “visto que seu resultado é morte”, não fluem com naturalidade. Se se omitisse γάρ da
tradução toda a passagem se faria mais fácil de ler e entender. Mas esta tampouco é uma solução
válida. O v. 21 parece ser um paralelo do v. 22, da seguinte maneira:
V. 21
“O que benefício? Coisas das quais agora estais envergonhados … seu resultado é morte”.
V. 22
“O benefício leva a santidade … o resultado vida eterna.
A melhor pontuação, então, pareceria ser aquela que faz justiça a esta construção paralela e que ao
mesmo tempo resulte numa interpretação compreensível de todo o versículo. É por estas razões que
adotei a pontuação que aparece em minha tradução. Com relação ao paralelo entre os vv. 21 e 22 veja-
se também Ridderbos op. cit., p. 142; e sobre a tradução resultante veja-se Cranfield, op. cit., pp. 321,
327, 328.
Romanos (William Hendriksen) 277
envergonhados de seu antigo modo de viver. E como não, visto que o
resultado final de tal curso de conduta é a morte! Cf. Gl 5:22; Ef 5:9.
Que contraste entre o passado e o presente! Da contemplação da
vergonhosa conduta do passado Paulo passa agora, com alegria e
gratidão, à descrição do presente:
22. Mas agora, libertados do pecado e feitos servos de Deus, o
benefício que conseguis leva à santidade, e o resultado é a vida eterna.
Que contraste!
Antes servidão Agora liberdade
Antes escravos do pecado Agora servos de Deus
Antes vícios Agora santidade
Antes vergonha Agora paz de espírito
Antes morte Agora vida, inclusive vida eterna.
O capítulo termina com uma oração inolvidavelmente gloriosa:
23. Porque o pagamento do pecado é morte, mas a dádiva de Deus é
vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor.
Compare-se esta conclusão culminante com conclusões de similar
índole triunfal, tais como as que se encontram nos capítulos 8, 9, 12, 13 e
16. Note-se também como se continuam aqui os contrastes do v. 22.
Aqui, neste versículo 23, o contraste é entre:

pagamento e dádiva
morte e vida eterna

A frase “o pagamento do pecado” significa a recompensa paga pelo


pecado. De modo similar, “a dádiva de Deus” significa a dádiva
outorgada por Deus.
A morte em todas as suas formas, a física, a espiritual, a eterna, é o
que o pecador ganhou com seu pecado. Mas no que se refere à vida
eterna, ela é um dom totalmente gratuito. Ó sim, foi ganha; porém não
pelo pecador, mas por Cristo Jesus para o pecador.
Romanos (William Hendriksen) 278
Um tema que foi causa de discussão é o do significado da palavra
pagamento, segundo é usado aqui em Rm 6:23. Trata-se de um termo
militar? É preciso admitir com franqueza que às vezes esta palavra é
usada em contextos não militares. Não admira, portanto, que à vista do
contexto senhor-esclavo (v. 16s), foi proposto que aqui no v. 23 o
apóstolo vê o pecado como um senhor de escravos, não como a um
general que provê as rações do soldado.
Contudo, este argumento pode não ser tão sólido como parece.
Considerem-se também estes outros elementos:
a. A palavra utilizada no original 183 — e isto é reconhecido pela
maioria — indica uma ração, um pagamento; em especial o pagamento
de um soldado. Este é o uso mais comum do termo.
b. Mesmo no Novo Testamento, em duas das outras três ocasiões
em que aparece esta palavra (“Também soldados lhe perguntaram”, Lc
3:14; “Quem foi jamais soldado a suas próprias custas?” (1Co 9:7), seu
sentido militar é claro. E inclusive na passagem restante em que se usa
esta palavra (2Co 11:8) pode ser que Paulo, quem ao longo de suas
epístolas frequentemente emprega figuras tomadas da vida do soldado,
talvez esteja usando uma “ousada metáfora militar”. (Veja-se P. E.
Hughes, The Second Epistle to the Corinthians (New International
Commentary), Grand Rapids, 1962, p. 385).
Pareceria, como resultado, que em termos gerais a opinião de que a
palavra pagamento tem aqui um sentido militar, vendo-se então o Pecado
como um general que abona este pagamento, tem algo mais de aceitação.
“Mas a dádiva de Deus é vida eterna”. Que maravilhosa
culminação! Que verdade consoladora! O pecador que foi buscar refúgio
em Deus por meio de Cristo recebe o máximo pelo mínimo: vida eterna
por nada!
Vida eterna; isto quer dizer; comunhão com Deus em e por meio de
Cristo Jesus (Jo 17:3); a luz do conhecimento da glória de Deus na face

183
_ψώνιον (aqui em nom. pl. -α), de _ψον, alimento cozido, mais _υέομαι, comprar.
Romanos (William Hendriksen) 279
de Cristo Jesus (2Co 4:6); o amor de Deus vertido no próprio coração
pelo Espírito Santo; a paz de Deus que sobrepuja todo entendimento (Fp
4:7), tudo isso e muito mais pelos séculos dos séculos! Tudo isso é
experimentado “em íntima união” com Cristo Jesus. Paulo conclui
belamente o capítulo com a linguagem da apropriação por meio da fé:
nosso Senhor!

Lições práticas derivadas de Romanos 6


Rm 6:1. “Que diremos então? Continuaremos pecando para
que a graça aumente?”
Não somos salvos pelas obras, mas pela graça. Essa era a doutrina
de Paulo. Seus oponentes reagiram assim: «Visto que somos salvos pela
graça, uma graça que se especializa em perdoar o pecado, pequemos
ainda mais, para que a graça aumente». Esta tergiversação não era de
modo algum inocente. Era uma distorção intencional, ímpia, uma
zombaria desumana. Cf. Lc 23:36, 37. Os que distorciam eram culpados
de tomar umas poucas frases da totalidade da doutrina de Paulo e torcê-
las sordidamente. Um estudo imparcial dos ensinos do apóstolo
demonstra que segundo sua apresentação inspirada, a justificação pela fé
inclui imediatamente viver uma vida de gratidão, e por esta razão, de
santidade, para glória do triúno Deus. A verdade é que Paulo não põe
menos ênfase numa vida consagrada que na graça. Vejam-se Rm 1:21;
2:7, 10; 5:3–5; 6:12–14, 16, 19, 22; cap. 12; 13:10–14; 1Co 13; Gl 5:22–
24; Ef 2:8–10.
A subsequente história da igreja dá muitos outros exemplos de uma
distorção premeditada das palavras de um pregador. Veja-se At 17:1–7.
E quantas vezes não se tergiversou a doutrina de Calvino mostrando-a
como carente de toda bondade humana? As congregações devem ser
advertidas contra este mal.
Romanos (William Hendriksen) 280
Rm 6:4. “De modo que, fomos sepultados com ele pelo batismo
para morte, para que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos pela
glória do Pai, assim também nós andemos numa vida nova.”
Chegou no Domingo de Páscoa de Ressurreição. Como é habitual
nesse dia, a igreja estava cheia. Porém não se falou nem uma palavra
com relação à ressurreição física de Cristo. Naturalmente, que outra
coisa cabia esperar numa igreja “liberal”? Mas até na pregação
conservadora, na qual se proclama claramente a ressurreição do
Salvador, e até a apresenta como fundamento da esperança e certeza da
ressurreição dos crentes, será que se esclarece sempre a congregação que
um propósito adicional e igualmente importante da gloriosa vitória de
Cristo sobre a morte é “que andemos numa vida nova”?
Rm 6:12. “Portanto, não permitam que o pecado continue
dominando os seus corpos mortais, fazendo que vocês obedeçam aos
seus desejos”. Esta passagem demonstra que a verdadeira teologia não é
somente um assunto de doutrina, mas também de vida. Não se limita à
revelação do que Deus fez por nós, embora isto certamente seja
fundamental. Também enfatiza e sublinha o que nós, por Sua graça e
poder, devemos fazer da nossa parte. Não só ensina, mas também
implora e advoga amorosa e sinceramente.
Rm 6:17. “Mas, graças a Deus, vós éreis escravos do pecado, mas
… entrastes ao serviço da justiça”. Note-se como no cap. 6 a exposição
(vv. 1–10), a exortação (vv. 11–16), e o encorajamento (v. 17) seguem-
se ordenadamente: isto deve ser um exemplo para todos nós.
Rm 6:23. “Porque o pagamento do pecado é morte, mas a dádiva de
Deus é vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor”.
A escolha é entre estas duas: a morte ou a vida. Embora a Escritura
certamente reconheça diversos graus de castigo e de glória, não há
território neutro entre a morte e a vida. Além disso, para os seres
racionais não há possibilidade de evitar uma escolha. E o contraste entre
estes dois destinos é incomensurável. Por isso, é tão importante esta
Romanos (William Hendriksen) 281
passagem. É mister escolher bem. E, além disso, esta escolha pela graça
de Deus deve renovar-se cada dia.

Resumo de Romanos 6
A justificação, a bênção fundamental para cada pecador que põe sua
confiança em Cristo, compreende união com o Salvador, uma união com
Ele não só em Sua morte, mas também em Sua ressurreição. “Porque se
fomos unidos com ele numa morte como a sua, certamente seremos
unidos a ele numa ressurreição como a sua”. Agora, ser participantes da
ressurreição de Cristo implica santidade, visto que foi o Cristo
ressuscitado e exaltado quem derramou sobre a igreja Seu Espírito Santo,
o Espírito de santificação.
Isto significa, naturalmente, que aquela gente que procurou utilizar
a doutrina da justificação pela fé como desculpa para levar uma vida
pecaminosa eram hereges perigosos. Sua consigna: «Continuemos
pecando para que a graça aumente», foi uma distorção indesculpável e
horrível da doutrina proclamada por Paulo. Por isso, ele exorta aos
membros da igreja de Roma como segue: “Não permitais que o pecado
reine em seu corpo mortal … mas oferecei-vos a Deus, como quem
passou da morte para a vida, e oferecei os membros de vosso corpo a ele
como armas de justiça. Porque o pecado já não será senhor sobre vós,
porque vós não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça” (vv. 1–14).
O sinistro caráter da heresia antinomianista enche a alma do
apóstolo com um horror tal que, neste momento, ele não se detém de dar
uma explicação adicional da afirmação: “Vós não estais debaixo da lei,
mas debaixo da graça”. Mas retornará a este tema um pouco mais
adiante. Veja-se Rm 7:1s; 8:1s. No momento ele continua seu combate
contra esta heresia destruidora de almas à se qual fez referência. Ele
indica agora que não só se deve abandonar a vida de pecado, mas
também devem abandonar-se mesmo os pecados individuais, visto que
estes têm uma tendência a escravizar os que não os combatem. Se se
Romanos (William Hendriksen) 282
permitir que exerçam senhorio sobre uma pessoa, eles o levarão à morte.
Paulo se alegra, porém, de poder afirmar que seus destinatários
abandonaram sua escravidão ao pecado. Mudaram a morte pela vida
eterna. Ele conclui o capítulo dizendo: “Porque o pagamento do pecado é
morte, mas a dádiva de Deus é vida eterna em Cristo Jesus nosso
Senhor” (vv. 15–23).
Romanos (William Hendriksen) 283
ROMANOS 7
3a. Produz o fruto da liberdade da lei. Rm 7:1–6

É claro que Paulo continua sua análise dos frutos da justificação.


Entre eles já considerou a paz (cap. 5) e a santidade (cap. 6). Agora ele
acrescenta a liberdade, ou seja, da servidão à lei, a gloriosa liberdade
que desfrutam os filhos de Deus. Cf. Rm 8:21; 2Co 3:17.
Antes nesta mesma epístola Paulo tinha mencionado liberdade do
pecado. Ele a havia vinculado com a liberdade da lei. Ele tinha escrito:
“Porque o pecado já não será senhor sobre vós, pois vós não estais
debaixo da lei, mas debaixo da graça” (Rm 6:14). E então, sem explicar
primeiro o que quis dizer, ele formulou e respondeu a pergunta:
“Pecaremos porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça?”
(Rm 6:15). Como se indicou oportunamente, havia uma razão muito
prática pela qual a resposta a esta pergunta era urgente e não podia ser
adiada. Daí que se dedicasse todo o capítulo seis a ela. Note-se o seu
ponto culminante: “Porque o pagamento do pecado é morte, mas a
dádiva de Deus é vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor”. Não se
deve usar a gloriosa doutrina da justificação pela fé como desculpa para
a prática do pecado!
Isto demonstra por que o apóstolo não tinha podido responder ainda
uma pergunta como esta: «Em que sentido é certo e como sucedeu que
nós já não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça?» «Para que
propósito fomos libertados da servidão à lei?” É a estas perguntas que
ele agora dá resposta.
1. Ou não sabeis, irmãos — porque falo com os que conhecem a lei
— que a lei tem autoridade sobre uma pessoa (somente) enquanto vive?
Certamente o crente não é “livre da lei” em todo sentido! Ele ama a
lei de Deus. Não chegou o escritor do Salmo 119 — para mencionar
somente esse salmo — a estar enlevado quando considerava as
Romanos (William Hendriksen) 284
maravilhas da lei de Deus? Entre suas muitas afirmações entusiastas
estão as seguintes:
“Abre os meus olhos para que possa contemplar as maravilhas da
tua lei” (v. 18).
“Ó quanto amo eu a tua lei! Ela é minha meditação todo o dia” (v.
97).
“Grande paz têm os que amam a tua lei” (v. 165).
Mas aqui é mister fazer uma distinção. O escritor do Salmo 119
considera a lei de Deus como expressão de Sua sábia, boa e
misericordiosa vontade. Como tal, a lei é para o crente uma regra de
gratidão, que responde à pergunta do Sl. 116:12.
Mas o termo “lei” pode ser usado também para indicar um código
ao qual é preciso aderir-se para obter a salvação, “um estatuto que exerce
autoridade e demanda absoluta obediência”. É óbvio que é neste sentido
que o apóstolo usa aqui o termo. Acrescente-se a isso que os líderes
religiosos tinham enterrado a lei original de Deus sob uma grande
quantidade de tradições orais: regulações minuciosas e suscetíveis que se
ocupavam de quase toda atividade humana e esfera da vida diária. Esta
era a lei da qual Cristo havia dito: “invalidastes a palavra de Deus pela
vossa tradição” (Mt 15:6). Se for levado em conta que segundo os
rabinos estas tradições orais, quanto ao seu conteúdo básico, tinham sido
dadas por Deus a Moisés e transmitidas de geração em geração, é de
entender que tanta gente, ao conhecer seu conteúdo, encheu-se de temor.
A lei se transformou num jugo insuportável (At 15:10).
Como resultado, o que o apóstolo diz agora aos membros da igreja
de Roma é que eles tinham sido libertos deste jugo — na verdade até da
própria imaculada lei escrita do Sinai considerada como um meio pelo
qual alguém podia salvar-se ao obedecê-la.
Note-se com quanta delicadeza Paulo transmite esta alegre nova.
Ele pergunta: “Ou não sabeis …?” Em outras palavras: «Deveis saber,
não é assim?” Cf. 1Co 6:2, 9, 16, 19. Veja-se também sobre Rm 6:3.
Romanos (William Hendriksen) 285
A próxima palavra — “irmãos” — não deve ser passada por alto.
Aqui ele a usa como um modo afetuoso de dirigir-se aos seus leitores.
Anteriormente Paulo a usou somente uma vez, em Rm 1:13. Uma
consideração cuidadosa de todas as instâncias em que aparece nesta
epístola demonstra que cada vez que o apóstolo a utiliza como modo de
dirigir-se a seus ouvintes, ele está profundamente comovido. Ele está
escrevendo sobre um tema que o emociona. É como se ele estivesse
abraçando os destinatários com os braços de seu amor. À luz disso
examine-se também o uso desta mesma palavra em Rm 1:13; 8:12; 10:1;
11:25; 12:1; 15:30; 16:17. Em cada caso o tema tratado tem uma grande
carga emocional. Então também aqui, com relação a Rm 1:1, 4,
provavelmente podemos supor que Paulo ouviu que alguns dos membros
da igreja romana tinham dúvida com relação à doutrina da salvação só
pela graça. Daí que é como se ele, por meio deste termo de afeto,
estivesse procurando conquistá-los, rogando carinhosamente para que
ponham de lado suas dúvidas.
Quando ele acrescenta: “Falo com os que conhecem a lei”, à
palavra lei talvez possa ser atribuído seu significado mais amplo; porque
segundo qualquer lei, seja ela a grega, a hebraica ou a romana, etc., a
morte termina com as obrigações e associações, dissolve vínculos, solta
laços. Mas de dar-se o fato que Paulo tenha estado pensando num
sistema legal específico, deve ter sido o sistema mosaico. Naturalmente,
com esta lei mosaica não só estavam bem inteirados os judeus, mas
também os que eram de raça gentílica; em outras palavras, todos os
membros da igreja de Roma. A todos eles o princípio que afirmava que a
lei tem autoridade sobre uma pessoa (somente) enquanto vive era bem
conhecido e obteria da parte deles imediato assentimento.
O que Paulo indica, então, é o seguinte: quando uma pessoa morreu
— no caso presente morta para a lei — esta pessoa é livre de sua
autoridade, saiu do seu domínio.
Para fortalecer seu argumento, o apóstolo recorre agora a uma
ilustração:
Romanos (William Hendriksen) 286
2, 3. Por exemplo, pela lei uma mulher casada está sujeita a seu
marido enquanto este vive; mas se o seu marido morrer, ela fica livre da
lei na medida em que a liga ao seu marido. Assim que, se ela casar com
outro homem enquanto seu esposo vive, será chamada adúltera; mas se o
seu esposo morrer, ela é livre da lei, de modo que não é adúltera se casar
com outro homem.
Pouco é preciso dizer com relação à ilustração como tal. Fala por si
só. Segundo a Escritura, o casamento é um vínculo muito solene. É para
sempre (Gn 2:22–24; Ml. 2:13–16). Isto quer dizer que se a mulher
rejeita o esposo quando este está vivo e casa com outro homem, ela será
chamada 184 adúltera. 185
Mas embora o casamento seja para sempre, não se estende para
além da vida, não obstante a posição dos saduceus. Veja-se Lc 20:33, 34.
Como resultado, depois da morte de seu esposo não há lei que possa
impedir que esta mulher volte a casar.
Até ali a ilustração. O assunto fica mais complicado quando nos
perguntamos o que é que a mesma deseja fazer ressaltar. Por exemplo, se
disséssemos que nesta ilustração o esposo consistentemente representa a
lei, e a mulher assim consistentemente ao crente, logo chegaríamos a um
beco sem saída. Porque em tal caso a lei deveria morrer antes que o
crente pudesse ser livre. Mas Paulo não diz em nenhuma parte que a lei
morre ou é morta. O contrário é o certo: somos nós que somos mortos.
Somos nós que, por esta razão, morremos (Rm 7:4; Gl 2:19).
Por conseguinte, em nossa tentativa por interpretar estas palavras
devemos nos concentrar num só ponto, ou seja, o terceiro da
comparação. O ponto é este: assim como é uma morte que dissolve o
vínculo conjugal, do mesmo modo é também uma morte que dissolve o

184
Note-se o termo χρηματίσει, 3ª. pes. s. fut. ind. intrans. de χρηματίζω. A mesma tem uma ampla
variedade de significados: no at. admoestar (Hb 12:25); no pas. ser advertido, avisado (Mt 2:12, 22;
Hb 8:5; 11:7); receber instruções (At 10:22); ser revelado (Lc 2:26); e aqui (Rm 7:3) e em At 11:26,
ser chamada.
185
Aqui supõe-se a fidelidade do esposo que ainda vive. De outro modo teria vigência a regra
implícita em Mt 5:32 (veja-se C. N. T. sobre este versículo).
Romanos (William Hendriksen) 287
vínculo legal; quer dizer, a servidão à lei. O vínculo conjugal é
dissolvido pela morte de um dos cônjuges (o esposo neste caso); o
vínculo legal é cortado pela participação do crente na morte de Cristo;
em outras palavras, pela morte do crente. Com efeito, nós os crentes
certamente morremos com Cristo no sentido que já foi explicado com
relação a Rm 6:8. Uma vez que este terceiro elemento da comparação é
captado, já não há outra dificuldade. Por outro lado, o esclarecimento
que o próprio Paulo faz vem no versículo:
4. Assim, meus irmãos, vós também morrestes para a lei por meio do
corpo de Cristo, para que possais pertencer a outro, ou seja, àquele que
foi ressuscitado dos mortos, para que possamos dar fruto para Deus.
Há vários pontos que se destacam nesta passagem, tão
surpreendentemente bela:
a. Já falamos de “meus irmãos”. Veja-se sobre Rm 7:1.
b. “Vós também morrestes” ou “fostes mortos”. 186
Foi Deus quem não somente planejou a salvação, mas também
levou a cabo este plano. Foi Ele quem amou o mundo de tal maneira que
deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê, não pereça,
mas tenha a vida eterna (Jo 3:16); foi Ele quem não poupou nem o Seu
próprio Filho, mas O entregou por todos nós (Rm 8:32). Veja-se também
Is 53:4, 10; 2Co 5:21. Foi por meio do corpo do Cristo crucificado que
nossa dívida com lei foi completamente saldada, para que como
resultado os crentes fossem feitos mortos para a lei, tendo sido
totalmente paga a “conta” desta última.
c. Na ilustração de Paulo se asseverava que quando o esposo
morreu, a mulher ficava livre do vínculo conjugal e recebia o direito de
casar com outro homem. Esta parte da figura pode ter estado na mente
do apóstolo também quando escreveu: “… para que possais pertencer a
outro, ou seja, àquele que foi ressuscitado dentre os mortos …” Visto

186
Não encontro nenhuma boa razão para debilitar o significado de _θανατώθητε, 2ª. pes. pl. aor. ind.
pas. de θανατόω, matar, dar muerte.
Romanos (William Hendriksen) 288
que a relação do cristão com o Cristo é muito estreita, a libertação da lei
deve significar união com Cristo, o Ressuscitado. Veja-se Cl 3:3.
d. Esta união ou casamento não é infrutífera. Note-se: “para que
possamos dar fruto para Deus”.
Nosso Senhor exaltado, por meio do derramamento de Seu Espírito,
capacita os crentes a fazer isso. Nas epístolas paulinas, como em toda a
Escritura, há grande ênfase em dar fruto. A referência aponta ao fruto de
boas atitudes, aspirações, palavras e obras; todas elas apontando à glória
do triúno Deus. Entre as passagens paulinas que mencionam ou incluem
o dar fruto veja-se Rm 1:13; 6:21, 22; Gl 5:22, 23; Ef 2:10; 5:9; Fp 4:8,
9, 17; Cl 1:16; Tt 3:1. Em outras partes das Escrituras veja-se Sl. 1:3;
92:14; Pv 11:30; Jr 17:8, 10; Mt 7:17; Jo 15:1–8.
e. Note-se a volta de segunda pessoa à primeira pessoa: “para que
possais pertencer a outro … para que possamos dar fruto para Deus”.
Esta volta peculiar aparece também, entre outras passagens, nas
seguintes: Rm 6:14–16; 8:11–13; 13:11–14.
Explicação: O próprio Paulo se sente profundamente envolvido nas
verdades sobre as quais escreve. A doutrina da graça soberana o aferra,
faz com que seu coração pulse mais fortemente e que seus olhos se
derramem com lágrimas de gratidão. É assim que ele vez após vez passa
do vós ao nós. Pode uma pregação ser realmente boa se carecer deste
característico?
5, 6. Porque quando estávamos na carne, as paixões pecaminosas,
estimuladas pela lei estavam ativas em nosso corpo, de modo que dávamos
fruto para morte. Mas agora, tendo morrido para aquilo que nos deixava
sujeitos, fomos libertos da lei para que sirvamos na nova realidade de (o)
Espírito, e não na velha realidade de (a) letra.
Romanos (William Hendriksen) 289
187
A expressão “quando estávamos na carne” quer dizer: «quando
no básico fomos governados por nossa natureza humana pecadora». A
referência a “paixões pecaminosos (cf. Rm 6:6; Cl 2:11) … ativas em
nossos corpos” aponta provavelmente a emoções tais como luxúria, ira,
ódio, má vontade, ciúme, inveja, temores irrazoáveis, etc. Embora estas
paixões e outras similares têm que ver com o coração e a mente da
pessoa, as mesmas se expressam fisicamente: o olho zeloso, o punho
fechado, o gesto odioso, etc. Cf. Rm 6:12, 13. A gratificação desenfreada
das paixões que faz com que os que as nutrem produzam o fruto indicado
em Gl 5:19–21, resulta em morte. Cf. Rm 6:21. Contraste-se “fruto para
Deus” (v. 4) com “fruto para morte” (v. 5).
Para a resposta à pergunta: «Como temos que entender que estas
paixões pecaminosas são estimuladas pela lei?» veja-se sobre os vv. 7–
13.
Mas agora, diz Paulo, ocorreu uma grande mudança. Por meio de
nossa morte — uma morte com Cristo, portanto uma morte para o
pecado que nos tinha sujeitos — fomos libertos ou emancipados da lei.
O que ele quer dizer é que basicamente nossa vida já não é
governada por nossa natureza pecaminosa. E pelo fato de que Cristo, por
meio de Sua morte vicária, pagou a dívida que tínhamos para com a lei,
já não estamos mais sob a dominação e a maldição da lei.

187
Nas epístolas de Paulo, a palavra σάρξ (carne) tem os seguintes significados:
a. a matéria principal do corpo, tanto de homens como de animais (1Co 15:39);
b. o corpo mesmo, diferente do espírito, mente, coração (Cl 2:5);
c. a existência terrena (Gl 2:20; Fp 2:22, 24);
d. um ser humano, visto como criatura débil, terrena, perecível (1Co 1:29; Gl 2:16). Este
significado depende muito do hebraico. Cf. Is 4:6: “Toda a carne é erva”, etc.
e. descendência ou parentesco físico (Rm 9:8);
f. a natureza humana, sem conotações negativas (Rm 9:5);
g. coragem e logro humanos, com ênfase nas vantagens hereditárias, cerimoniais, legais e morais;
o próprio ser à parte da graça regeneradora; qualquer coisa fora de Cristo na qual alguém baseia sua
esperança de salvação (Fp 3:3).
h. a pecaminosa natureza humana; a natureza humana vista como sede ou agente transmissor do
desejo pecaminoso (Rm 7:5, 25; 8:3–9, 12, 13; Gl 5:16, 17, 19; 6:8).
Romanos (William Hendriksen) 290
Isto não tira o fato que o pecado ainda tem uma influência
considerável sobre nós, como o indicará Rm 7:14–25, porém no
fundamental houve uma mudança tremenda.
O resultado 188 de tudo isso é que nós agora servimos (a Deus) na
nova realidade do Espírito, já não na velha realidade da letra, quer dizer,
o código legal. Houve um tempo em que pensávamos que por meio de
uma estrita obediência ao código externo — à lei escrita mosaica,
interpretada pela tradição — podíamos nos salvar. Mas agora, tendo sido
postos em liberdade, servimos (veja-se Rm 6:15–23) na nova realidade
do Espírito. Segundo Gl 3:3; 4:6; 5:18; 2Co 3:17 esse Espírito é o Autor
de nossa liberdade. O pensamento de Paulo parece ser que este Espírito
guia os crentes em seus esforços por viver vidas de gratidão pela
salvação recebida como produto da graça soberana de Deus. O Espírito
os guia e os capacita a viver essa vida.
O que o apóstolo diz, então, é que a gloriosa profecia de Jr 31:31–
34 está se cumprindo em sua própria vida e na vida de seus leitores.
Quando Paulo termina esta seção escrevendo: “para que sirvamos
na nova realidade de (o) Espírito, e não na velha realidade de (a) letra”,
ele coloca o novo diante do velho (como o faz também em 2Co 5:17; Ef
4:22–24; Cl 3:9–10), e o Espírito diante da letra (como em Rm 2:29;
2Co 3:6). Como resultado, ele contrasta a verdadeira liberdade — a
bênção outorgada a todos os que chegam a ser “livres da lei”, no sentido
já explicado — com a servidão dos que ainda estão escravizados pela lei.
Como sempre, também neste ponto seu ensino concorda com o do
Mestre. Veja-se Mt 9:14–17 (Mc 2:18–22; Lc 5:33–39); e compare-se
2Co 3:17 com Jo 8:36.

188
Note-se que _στε expressa resultado.
Romanos (William Hendriksen) 291
3b. A relação do pecador para com a lei de Deus. Rm 7:7–13

7, 8. Que diremos então? É a lei pecado? De maneira nenhuma! Pelo


contrário, eu não teria chegado a conhecer o pecado senão pela lei.
Porque não teria sabido o que significa cobiçar se a lei não tivesse dito:
“Não cobiçarás”. Mas o pecado, lançando mão da oportunidade dada pelo
mandamento, produziu em mim cobiças de todo tipo. Porque na ausência
da lei, o pecado (está) morto.
O apóstolo fez várias afirmações que poderiam levar alguns cabeças
ocas a crer que a própria lei era algo pecaminoso. Não havia ele feito
menção das “paixões pecaminosas estimuladas pela lei?” (Rm 7:5).
Veja-se também Rm 5:20 e 6:14.
Assim que na presente seção (veja-se especialmente o v. 12) o
escritor deixa bem claro que, considerada em e por si mesma, a lei não é
de modo nenhum pecaminosa. Pelo contrário, é precisamente a santa lei
de Deus — com referência especial aqui aos Dez Mandamentos — a que
revela o pecado em todo seu horror. Ele o faz para que a pessoa possa
com todo vigor lutar contra o pecado.
Isto não quer dizer que sem essa lei escrita o pecado seja
impossível. Mesmo os que carecem da lei pecam, como o provam Rm
1:18–20; 2:12, 14, 15; 5:12, 14. Isto significa que se não fosse pela lei
escrita, o caráter terrível do pecado, que destrói a alma, não teria sido
conhecido.
Por natureza a pessoa só tem uma velada noção de sua
pecaminosidade. É verdade que, com frequência, a pessoa tem
consciência profunda da culpa do outro. Às vezes até chegam a
repreender o outro enquanto cometem eles próprios o mesmo pecado que
condenam.
Romanos (William Hendriksen) 292
Exemplos tomados da vida diária:
a. As seguintes palavras foram ditas por um (muito culpado) esposo
à sua esposa, depois de várias horas de assessoramento pastoral: “Bem,
eu a perdoarei; mas jamais esquecerei o que você me fez!”
b. Mãe repreendendo o seu filhinho: “Eu disse a você pelo menos
mil vezes que não exagere!”
A própria existência da lei escrita faz com que o pecado, quer dizer
(neste caso), a transgressão dessa lei, seja possível. Devemos também ter
em mente que o único mandamento de formulação exclusivamente
positiva do Decálogo é: “Honra o teu pai e a tua mãe”, etc. Não é
verdade que todos os outros mandamentos, ou seja: “Não terás outros
deuses diante de mim”, “Não matarás”, “Não adulterarás”, etc., sugerem
aos pecadores que eles fazem precisamente o que está proibido?
O que nos chama a atenção ao ler Rm 7:7–13 é que, ao considerar
este tema de transgredir a lei escrita de Deus, Paulo faz referência a si
mesmo não menos de dez vezes. Há os que creem que Paulo usa aqui a
primeira pessoa singular num sentido geral, ou seja, não em sentido
autobiográfico. 189
Calvino não compartilhava este ponto de vista, e creio que estava
certo ao tomar essa posição. Paulo — diferente de Marcos e o escritor da
epístola aos Hebreus — não tem o costume de ocultar sua identidade.
Vez após vez, ao longo de suas epístolas, e certamente em Romanos,
Paulo se revela a si mesmo, dizendo como certo assunto o afetou ou o
afeta pessoalmente, o que ele está fazendo ou tem intenções de fazer, o
que experimenta ou experimentou: Rm 1:8–16; 6:19; 7:1; 9:1–3; 15:14–
32. Note-se como os pronomes “eu”, “mim”, “meu” aparecem com
frequência ao longo da seção de saudações (Rm 16:1, 2, 3, 4, 7, 8, 9, 11,
13, 17, 19, 21, 23). É lógico pensar, então, que também aqui (Rm 7:7–
13) o apóstolo está se referindo a si mesmo. Está narrando como a lei o
“matou”, quer dizer, como ela derrubou o escrupuloso fariseu.

189
Cranfield, op. cit., p. 351.
Romanos (William Hendriksen) 293
Isto não quer dizer que os atos que ele descreve são peculiares a ele
em todos os seus aspectos. Não há dúvida de que devem ser vistos como
experiências que, em certo sentido, têm todos os que são levados da
noção da salvação por mérito humano à convicção da salvação somente
pela graça.
E agora Paulo nos diz que Ele nunca teria chegado a conhecer o
pecado se não fosse pela lei; para ser mais específico, que não teria
chegado a saber o que quer dizer cobiçar se a lei não tivesse dito: “Não
cobiçarás”.
Não admira que fosse especialmente este décimo mandamento
aquele que detivesse Paulo abruptamente em seus passos. Os outros
mandamentos, interpretados superficialmente, proíbem transgressões que
são, ou pelo menos parecem ser, de um caráter mais externo;
especialmente os da segunda tábua. Com relação a isso, leia o relato com
relação ao “jovem rico” (Mt 20:18–20, com paralelos em Marcos e
Lucas). Mas o décimo mandamento dá diretamente na própria raiz do
pecado, ou seja, o coração pecaminoso do homem, seu desejo perverso.
Talvez a cobiça que aqui se proíbe seja uma apetência por coisas
que são pecaminosas em si mesmas. Ou pode ser também um
desordenado anelo por aquelas coisas que, usadas com moderação, não
seriam pecaminosas e que até poderiam chegar a ser úteis (p. ex., os
esportes). Ou pode ser também o que seja mencionado especificamente
no mandamento, ou seja, uma apetência por privar o próximo de
qualquer coisa que lhe pertença.
Paulo menciona agora o fato que o pecado, lançando mão da
oportunidade 190 provida pelo mandamento, produziu nele cobiça de todo
tipo. Quanto às diversas formas como se pode expressar a cobiça
pecaminosa, note-se o seguinte: os pais da raça humana cobiçaram o
fruto proibida (Gn 3:6); os irmãos de José, a posição do favorito de seu
190
_φορμήν, ac. s. de _φορμή (= _πό, desde, e _ρμή, impulso, incentivo), ponto de partida, base de
operações, trampolim; e daí: pretexto (2Co 11:12); ocasião (2Co 5:12; 1Tm. 5:14); oportunidade (Rm
7:8, 11; Gl 5:13)
Romanos (William Hendriksen) 294
pai (Gn 37:4); Acã, um belo manto babilônico e outros objetos incluídos
no despojo de Jericó (Js. 7:21); Acabe, a vinha de Nabote (1Rs 21:2a);
Amom, Tamar (2Sm 13:1); Absalão, a coroa (2Sm 15:1s); Ananias e
Safira, o prestígio (At 5:1s); Simão o Mago, mágicos poderes de cura (At
8:18s); Demas, “este mundo presente” (2Tm 4:10); e Diótrefes, a
preeminência eclesiástica (3Jo 9).
Por outro lado, assim como sucede com os outros mandamentos,
tampouco este deve ser interpretado muito estreitamente. Jesus deixou
isso bem claro em passagens tais como Mt 5:21s; 5:27s; 5:31s; 5:33s.
Seguindo esta linha de pensamento, o Catecismo de Heidelberg (em
Domingo XLIV, Pergunta e Resposta 113) dá-nos uma significativa
interpretação do décimo mandamento:
“P. O que exige o décimo mandamento?”
“R. Que jamais surja em nosso coração o menor desejo ou
pensamento contra qualquer mandamento divino, mas em todo tempo
odiemos de todo coração o pecado e nos deleitemos em toda justiça”.
Não admira, como resultado, que Paulo diga; “O pecado, lançando
mão da oportunidade dada pelo mandamento, produziu em mim cobiças
de todo tipo”. Por outro lado, tire-se o décimo mandamento com sua
quase infinita multidão de sugestões com relação a como pode ser
transgredido, e o pecado fica latente.
9. Houve um tempo em que eu vivia à parte da lei; mas quando veio
o mandamento, o pecado cobrou vida 191 e eu morri.

191
Quando o prefixo _νά no verbo _ναζάω retém toda sua força, como o faz numa leitura alternativa
de Rm 14:9, o significado é viver de novo, retornar à vida. Aqui, em Rm 7:9, o prefixo provavelmente
perdeu algo de sua força, como sucede frequentemente com os prefixos, de modo que o significado de
todo o verbo é simplesmente viveu, surgiu à vida. Veja-se L. N. T. (A. e G., p. 53). Com relação ao
verbo simples ζάω, o significado básico é o de viver. Quanto a Ap 20:4 (_ζησαν) os tradutores estão
divididos em suas opiniões: alguns (R.S.V., N.A.S., Phillips, N.I.V.) escolheram a tradução voltaram
para a vida ou até estes voltaram novamente para a vida (N.E.B.). Outros (A.V., A.R.V., Beck,
Williams, Berkeley) traduzem “viveram”, como o faz também a VRV 1960. procure-se um assunto de
interpretação, dependendo o resultado às vezes dá a teologia do tradutor. Para chegar à conclusão
correta se deveria ter muito em conta o sujeito da oração (“almas”). quanto ao mais, vejam-se os livros
do presente autor, Más que vencedores, pp. 232, 233; e La Biblia y la vida venidera, p. 217.
Romanos (William Hendriksen) 295
Significado: Houve um tempo em que me senti seguro, sem ter uma
convicção de pecado. Nesse tempo, a implicação plena da lei não se
tinha registrado ainda em minha consciência, não tinha chegado a ser um
peso intolerável sobre meu coração. Eu pensava que no moral e
espiritual ia muito bem.
Mas quando o mandamento veio, quer dizer, quando compreendi o
que era o que a lei realmente demandava (nada menos do que aparece
resumido em Mc 12:29–31), percebi quão grande pecador eu era. Foi
então que morri; quer dizer, esse foi meu fim como pessoa satisfeita e
segura em mim mesmo.
10–12. E achei que o mesmo mandamento que foi destinado para dar
vida, na verdade trouxe morte. 192 Porque o pecado, lançando mão da
oportunidade dada pelo mandamento, enganou-me, e por meio do
mandamento me matou. Assim que, em si mesma, a lei é santa, e o
mandamento santo e justo e bom.
O propósito do mandamento tinha sido na verdade o de dar vida;
sim, vida eterna. Desde o princípio foi certo e continua sendo certo que
amar a Deus de todo coração, com toda a alma, mente e força, e amar o
próximo como se ama a si mesmo, traz vida, salvação. Cf. Lv 18:5:
“Guarda meus decretos e leis, porque quem os obedece viverá por eles”.
Veja-se também Ez 20:11. Que Paulo tem em mente a passagem citada
parece provável se levar-se em conta Rm 10:5.
E foi assim que o judeu escrupuloso, aquele que tinha pouco
conhecimento de si mesmo, imaginava que, empenhando-se muito,
poderia ganhar a vida eterna. Houve um tempo em que também Paulo
era da mesma opinião, como o indica Fp 3:6. Isto foi antes de descobrir
que todas as suas obras justas (lit. “justiças”) não eram melhores que
trapos de imundícies (Is 64:6). Assim que também para Paulo esse
mesmo mandamento, cuja intenção era de dar vida, na verdade lhe
trouxe morte.

192
Literalmente: E foi achado o mandamento, aquele que era para vida, precisamente este para morte.
Romanos (William Hendriksen) 296
Como foi que enquanto Paulo esperava vida, encontrou morte; e
enquanto esperava felicidade, encontrou melancolia? A razão não era
que havia algo mau com a lei. Pelo contrário, a lei era e sempre seguirá
sendo santa e justa e boa, visto que ela não só busca promover essas
mesmas qualidades, como é evidente ao ler cada mandamento, mas
também reflete a santidade e justiça e bondade de Deus.
Não é uma disposição misericordiosa que, por meio do primeiro e
segundo mandamento, Deus nos advirta contra a perniciosidade da
idolatria, com todos os seus corolários de corrupção, sujeira, defraudação
e pesar? Ou que por meio do quarto mandamento, Ele separe esse dia tão
necessário para o homem, o dia do descanso e da adoração? Ou que por
meio do quinto mandamento, Ele coloque a criança sob o governo,
cuidado e proteção daqueles que mais o amam? Ou que por meio do
sétimo mandamento, Ele proteja o caráter sagrado do casamento, e que
por meio do sexto e oitavo proteja a vida humana e a propriedade?
Faz-se evidente, então, que não era a lei, como tal, mas o pecado —
no caso presente a pecaminosidade do próprio Paulo — o que fez
impossível que a lei tornasse a pessoa santa e feliz. O mandamento,
agindo só, nunca mata ou fere ninguém. É o pecado que mata. Foi o
pecado o que enganou até a Paulo, sendo ainda inconverso, levando-o a
pensar que ele poderia viver em obediência estrita à lei de Deus.
Enganou-o, … até que um dia, de um modo muito dramático, ficou bem
claro que por mais que tentasse, ele não poderia obter jamais desta
maneira uma posição de justiça diante de Deus.
13. Então, o bem se transformou em morte para mim? De maneira
nenhuma! Mas o pecado, para manifestar-se como pecado, produziu a
morte em mim por meio do que é bom, para que por meio do
mandamento o pecado chegasse a ser totalmente pecaminoso.
Paulo havia dito que o mandamento trouxe morte (v. 10). Mas
como pode algo que é santo e justo e bom (v. 12) trazer morte? É como
se Paulo respondesse deste modo: «Não é o mandamento, agindo
sozinho, o que traz morte. É a transgressão do mandamento o que faz
Romanos (William Hendriksen) 297
isso». No fundo, como resultado, a verdadeira causa da morte é o
pecado. A seriedade do caráter do pecado torna-se evidente precisamente
neste fato que, para expor o pecador, faz uso de uma coisa que em si
mesma é perfeita, ou seja, a santa lei de Deus. É precisamente essa
brancura — quer dizer, a pureza moral e espiritual — dos mandamentos
de Deus a que faz com que se destaque mais marcadamente o negrume
do pecado! No fundo há um pensamento consolador. “Quão majestoso,
santo, sábio e amoroso é o Deus que proveu uma maneira de tirar pecado
para os que confiam nEle!”
Fez-se claro que Paulo nos deixou dar uma olhada em seu próprio
diário. Permitiu-nos vislumbrar algo de sua experiência prévia à sua
conversão, durante a mesma e pouco depois dela. Ele disse: “Houve um
tempo em que eu vivia à parte da lei; mas quando veio o mandamento, o
pecado cobrou vida e eu morri”.
Há os que vinculam esta expressão de Paulo e outras similares com
a experiência que Paulo teve quando, ao chegar aos treze anos, fez-se um
bar mitzvah (filho da lei). Foi então quando, segundo o costume judaico,
ele assumiu a responsabilidade de guardar a lei. 193 Não obstante, uma
afirmação tal como: “O pecado cobrou vida e eu morri” pareceria
apontar a uma experiência muito mais radical; ou seja, a que está narrada
em At 9:1–22; 22:3–21; 26:1–23 e especialmente ao que Paulo nos diz
em Gl 1:13–18. Embora não haja dúvida que devemos deixar lugar para
influências prévias no coração e mente de Paulo, sem excluir as que
agiram no nível subliminal de sua consciência, a verdade é que foi com
relação a (a) sua dramática experiência no caminho a Damasco, (b) os
atos que tiveram lugar nos dias subsequentes e (c) o ocorrido durante os
três anos que ele passou na Arábia, que “o pecado cobrou vida e que
Paulo — o velho Paulo farisaico — morreu”. Foi então quando o ex-
perseguidor teve tempo de pensar em: a classe de homem que tinha sido,
o testemunho de Estêvão e de outros mártires cristãos, o caminho de

193
Para mais sobre este tema, veja-se sobre Lc 2:42–45.
Romanos (William Hendriksen) 298
salvação que aparece resumido em passagens tais como Gn 15:6; Sl. 32;
Is 53; Hc 2; etc., e nas palavras que foram ditas por Ananias e pelo
próprio Jesus.
Foi a experiência de Paulo peculiar e única? Em certo sentido, sim,
foi; em outro sentido, não. Há aspectos similares entre o caminho que o
apóstolo teve que transitar antes de render-se de todo coração a Cristo e
o caminho que outros transitaram. Esse caminho sempre passou por uma
porta comum, a do reconhecimento do pecado e do arrependimento.
O grande poeta espanhol Lope de Vega (1562–1635) expressou-o
assim em suas Rimas Sacras:

SONETO I
Quando me detenho a contemplar meu estado
e a ver os passos por onde vim,
espanto-me de que um homem tão perdido
a conhecer seu erro tenha chegado.
Quando vejo os anos que passei,
a divina razão posta em esquecimento,
conheço que piedade do céu foi
não me haver enquanto mal precipitado.
Entrei por labirinto tão estranho
confiado ao fraco fio da vida
o tarde conhecido desengano;
mas de sua luz minha escuridão vencida,
o monstro morto de meu ledo engano,
volta para a pátria a razão perdida.

SONETO VXIII
O que tenho eu que minha amizade procura?
Que interesse te move, meu Jesus,
que a minha porta coberto de orvalho,
passas as noites do inverno escuras?
Romanos (William Hendriksen) 299
Ó quanto foram minhas vísceras duras,
pois não te abri! Que estranho desvario
se de minha ingratidão o gelo frio
secou as chagas de tuas plantas puras!
Quantas vezes o anjo me dizia:
“Alma, aparece agora à janela,
verás com quanto amor chamar insiste!”
E quantas vezes, beleza soberana
“Amanhã te abriremos”, respondia,
para o mesmo responder amanhã!

SONETO XIV
Pastor que com seus assobios amorosos
despertou do profundo sonho:
seu que fez cajado desse lenho
em que tende os braços poderosos,
volta os olhos a minha fé, piedosos,
pois te confesso por meu amor e dono
e a palavra de te seguir empenho
teus doces assobios e teus pés belos.
Ouve, pastor, pois por amores morre,
não te espante o rigor de meus pecados
pois tão amigo de rendidos são.
Espera, pois, e ouve meus cuidados …
mas como te digo que me esperes
se estiver, para esperar, de pés cravados?

SONETO XLIX
Em sinal da paz que Deus fazia
com o homem, temperando seus rigores,
os céus dividiu com três cores
o arco belo que à terra envia:
Romanos (William Hendriksen) 300
o vermelho assinalava a alegria,
o verde paz e o dourado amores;
secou as águas, e esmaltaram flores
o pardo limo que sua face cobria.
Vós sois nessa cruz, cordeiro terno,
arco de sangue e paz que satisfez
as irritações do Pai eterno;
Vós sois, meu bom Jesus, quem os desfez;
Já não temam os homens o inferno
pois sois o arco que as pazes fez.

3c. A experiência pessoal de Paulo. Rm 7:14–25

Com relação a Rm 7:14–25 a pergunta que se deve responder é:


Quem é a pessoa que aqui se descreve?
Trata-se de:
a. Uma pessoa inconversa, quer seja Paulo antes mesmo de sua
conversão, ou qualquer outra pessoa não regenerada, talvez um judeu
que não tenha aceito a Cristo?
b. Um crente imaturo?
c. Paulo mesmo, o crente e, por extensão, o crente em termos
gerais?

Uma pessoa inconversa?


Dos tempos da igreja primitiva, ao longo da idade Média e até
chegar ao presente, houve e há muitos que afirmam que o que Paulo diz
em Rm 7:14–25 não pode referir-se ao crente, mas deve referir-se ao
incrédulo. Os antigos pais gregos assinavam esta opinião. Por certo
tempo até o grande Agostinho favorecia este ponto de vista.
A pessoa que mais tem feito no século vinte para perpetuar esta
teoria foi W. G. Kümmel. Veja-se seu livro, no qual há muito de valor,
Romanos (William Hendriksen) 301
Römer 7 und die Bekehrung des Paulus, Leipzig, 1929. H. R. Ridderbos,
cujo bom comentário a Romanos (Commentaar Op Het Nieuwe
Testament, Kampen, 1959) merece um estudo diligente, defende também
o ponto de vista de que Rm 7:14–25 descreve um homem separado de
Cristo, uma pessoa mantida em desesperada luta sob a lei (op. cit., p.
165). Ridderbos apresenta uma série de argumentos em defesa de seu
ponto de vista e alega que sua posição não só contava com o favor da
igreja primitiva, mas também é compartilhada pela maioria dos exegetas
de hoje em dia (p. 162). Aqueles que puderem ler o holandês deveriam
certamente fazer um cuidadoso estudo das pp. 153s; 162–170. Não só é
tal estudo um modo de fazer justiça ao autor, mas também é
aconselhável se levar-se em conta que em meu comentário não há
suficiente espaço para entrar em todos os detalhes da extensa
argumentação do erudito holandês. Em parte ele apresenta seu
argumento como segue:
a. No v. 14 Paulo diz “Porque (γάρ) sabemos que a lei é espiritual,
mas eu sou carnal …” Como pode o fato de ser “eu carnal” — se é que
“eu” indica uma pessoa redimida por Cristo e guiada pelo Espírito Santo
— comprovar o poder superior do pecado que se menciona no v. 13?
b. Entre Rm 8:1 e 7:14–25 há um forte contraste. O “agora” de Rm
8:1 (“Portanto, agora já não há condenação”) não representa a
deplorável situação descrita em Rm 7:14–25, mas uma situação que
surge depois; quer dizer, o reino do Espírito não pode ser identificado
com o reino do pecado, e sim aquele que vem depois.
c. A opinião segundo a qual Rm 7:14–25 descreve a discordância
que fica na vida do crente choca-se com as afirmações feitas por Paulo
no cap. 6 e em outros lugares com relação a esta nova vida. Deste modo,
segundo Rm 6:2, 6, 7, 11, 12, 13, 17, 18, 22, para o cristão o pecado é
um senhor destronado, o senhor que perdeu seu poder para governar. De
fato, todo o cap. 6 é uma refutação contínua da posição segundo a qual o
“eu” de Rm 7:14–25 poderia representar o novo homem, redimido por
Cristo.
Romanos (William Hendriksen) 302
Resposta:
Quanto a “a”. Este argumento interpreta mal o modo em que aqui
se usa a palavra porque (γάρ). Aqui, como com frequência em outras
partes, esta palavra abrange não somente uma parte do v. 13, mas o
versículo tomado em sua totalidade. 194 Tem um sentido de continuidade,
e às vezes nem sequer se traduz — p. ex. a RA e a NVI; por outro lado, a
BJ já a NBE se afastam do elemento obrigatório desta palavrinha. O
apóstolo diz que o fato que a lei seja espiritual e eu carnal está em
consonância com o fato que a lei é boa, mas eu sou muito pecador.
Quanto a “b”. A situação descrita em Rm 7:14–25 não é totalmente
tenebrosa. O contraste entre Rm 7:14–25 e Rm 8:1s não se deve
exagerar. Por certo, a primeira passagem mencionada se enfoca no
pecado, mas também procura a luta contra o pecado. Até se registra a
vitória sobre o pecado (v. 24, 25). As palavras: “Graças a Deus por meio
de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 7:25) harmonizam belamente com:
“Portanto, já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus”, etc.
(Rm 8:1).
De modo similar, a situação descrita em Rm 8:1 não é tão feliz
como alguns a representam. Até o cap. 8 reconhece o paradoxo presente
na vida cristã entre o bem e o mal. Este conflito está implícito no v. 10 e
fica claramente expresso no v. 13.
Também em outras partes Paulo ensina que uma luta espiritual
continua na vida do crente até o dia que este entrar na glória. Veja-se
1Co 9:27; Gl 5:17; Fp 3:12–14. O filho de Deus recebe a segurança de
que Aquele que começou nele a boa obra a continuará até sua
culminação no dia de Cristo Jesus (Fp 1:6).
Quanto a “c”. Embora estas afirmações descrevam na verdade o
cristão como alguém que anda numa nova realidade de vida, tendo sido
levado da morte à vida e tendo morrido num sentido para o pecado, não
obstante é necessário reconhecer que em nenhuma parte nem afirma nem

194
Também o entende assim Cranfield, op. cit., p. 355.
Romanos (William Hendriksen) 303
dá a entender o capítulo 6 nem o faz nenhum outro capítulo ou passagem
paulina que o crente durante sua vida presente aqui na terra foi
completamente libertado de sua luta contra o pecado. Ou não implicam
as exortações de Rm 6:12, 13, 19 que esta luta deve ser continuada?
Com relação à alegação que muitos dos exegetas de hoje em dia
favorecem o ponto de vista de Kümmel, como o fizeram muitos eruditos
de anos atrás, a mesma deve ser reconhecida. Como se pode esperar, o
ponto de vista segundo o qual o incrédulo é capaz de fazer tudo o que é
mencionado em Rm 7:14–25, incluindo até o bem, é bem acolhido pelos
pelagianos e até certo ponto pelos arminianos. Não obstante, até alguns
escritores reformados subscreveram a posição de Kümmel. Mas, em
termos gerais, os teólogos reformados rejeitam esta teoria e também o
têm feito e o fazem muitos outros, como se verá mais adiante.
Visto que os argumentos que provam que o homem descrito em Rm
7:14–25 não pode ser um incrédulo, são os mesmos que estabelecem o
fato que esta pessoa deve ser um crente, veja-se mais adiante a defesa
desta última teoria.

Um crente imaturo?
Cabe, porém, formular a seguinte pergunta: “Embora se reconheça
que o homem descrito por Paulo em Rm 7:14–25 não pode ser um
incrédulo, não obstante, à vista do fato que ele faz muitas afirmações
desfavoráveis com relação a si mesmo — veja-se Rm 7:14, 15, 18, 19,
21, 23, 24 — é possível que se procure uma mera ‘criança em Cristo’ (cf.
1Co 3:1; Hb 3:13)?”
Segundo esta teoria Paulo descreve três etapas de posição e
desenvolvimento religioso: (a) a de uma pessoa que está ainda sob o
domínio do pecado (Rm 7:5, 9a); (b) a do indivíduo em luta, que odeia o
pecado porém não avançou muito no caminho da santificação (Rm 7:14–
25); e (c) a do crente amadurecido e agradecido, que se alegra em que
para ele já não há condenação (Rm 8:1a).
Romanos (William Hendriksen) 304
Mas segundo a Escritura é precisamente o cristão mais avançado, o
crente amadurecido, aquele que está mais profundamente preocupado
com o seu pecado. Quanto mais uma pessoa tiver progredido na
santificação, tanto mais aborrecerá sua pecaminosidade.
Por exemplo, a Escritura descreve a Jó como paradigma da virtude
(Jó 1:1; Ez 14:14; Tg 5:11). No entanto, foi precisamente Jó quem
exclamou: “Aborreço-me e me arrependo no pó e na cinza” (Jó 42:6).
Todos estarão de acordo em que Daniel, o herói do livro de Daniel, era
um exemplo de vida e conduta consagradas. 195 Mas escute-se a sua
humilde prece ao confessar seu pecado e o de seu povo: “Ai, ó Senhor,
temos pecado e feito o mal … Nossa é a confusão de rosto … porque
contra ti pecamos”. (Dn 9:4, 5, 8). Um rei entre os profetas e uma pessoa
com grande temor de Deus foi Isaías. E, no entanto, foi precisamente
Isaías quem exclamou: “Ai de mim! que sou morto, porque sou homem
de lábios impuros …” (Is 6:5)
Isto deve indicar que a pessoa a quem o apóstolo tem em mente em
Rm 7:14–25 não deve ser considerada, nem era necessariamente, um
crente imaturo.

Paulo mesmo, e por extensão, os crentes em geral, incluindo até os


mais amadurecidos

Em consonância com a linguagem humilde e autocondenatória de


crentes eminentes temos o fato que também Paulo, ao referir-se a si
mesmo em outras passagens, usa uma linguagem não muita afastada do:
“Miserável de mim!”
Note-se as seguintes referências:
“Sou o menor dos apóstolos, indigno de ser chamado apóstolo,
porque persegui a igreja de Deus!” (1Co 15:9).

195
A dúvida com relação a se o “Daniel” que se menciona em Ez 14:14 era o mesmo de Dn 1:6 ou
algum outro não precisa deter-nos.
Romanos (William Hendriksen) 305
“A mim, o menos importante de todos os santos, foi dada esta
graça: a de proclamar aos gentios as boas novas das insondáveis riquezas
de Cristo” (Ef 3:8).
“Cristo Jesus veio ao mundo para salvar pecadores, dos quais eu
sou o principal” (1Tm. 1:15).
A pessoa descrita em Rm 7:14–25 odeia o pecado (Rm 7:15), deseja
fazer o bem (vv. 19, 21), em seu ser interior se deleita na lei de Deus (v.
22), lamenta profundamente seus pecados (vv. 15, 18–24), e dá graças a
Deus por sua libertação (v. 25). Resta alguma probabilidade de que uma
pessoa assim não tenha sido regenerada pelo Espírito de Deus?
Contraste-se tudo isso com a descrição do não regenerado (Rm 7:5, 9a;
8:5a). É claro que em Rm 7:14–25 o apóstolo, segundo as palavras de
João Calvino: “descreve quão grande é a fraqueza dos crentes”
(Romanos, p. 185).
Também é importante a mudança de tempo verbal entre Rm 7:5, 9a,
por um lado, e Rm 7:14–25, por outro. Certamente a explicação mais
natural é que houve uma mudança radical; quer dizer, que o “eu” da
segunda passagem já não é a pessoa não regenerada de Rm 7:5, 9a, mas
renasceu espiritualmente. 196
Mas esta pessoa já regenerada ainda tem sua luta. Não alcançou o
céu ainda. Os que rejeitam a existência de certa forma de dualismo no
interior da pessoa de Paulo, o resgatado, e dentro dos crentes em geral,
têm grandes dificuldades para explicar Rm 7:24, 25:
“Miserável de mim! Quem me resgatará deste corpo de morte? Mas
graças a Deus por meio de Jesus Cristo nosso Senhor! De modo que, eu
mesmo com minha mente sirvo à lei de Deus, porém com meu corpo à
lei do pecado”.
196
O ponto destacado tanto por Mitton como por Robinson (veja-se a nota 199), que no v. 14 (“A lei é
espiritual, mas eu sou carnal”) o contraste não está exposto entre o que eu sou e o que eu era, mas sim
entre a lei e eu mesmo, pode ser facilmente aceito. Mas o verdadeiro argumento a favor de considerar
os vv. 14–25 como descrição de Paulo o crente, é o contraste entre o tempo passado em passagens tais
como Rm 7:5, 9a, por um lado e o tempo presente, desde o princípio enfim, em Rm 7:14–25, pelo
outro.
Romanos (William Hendriksen) 306
As razões para crer que em Rm 7:14–25 a pessoa regenerada,
Paulo, descreve sua própria condição e a dos crentes em geral, foram
expostas. Demonstrou-se que não pode ser um incrédulo aquele que está
aqui descrito. Resta agora dizer algo com relação à alegação que o ponto
de vista oposto foi sustentado por muitos na igreja primitiva e conta com
o favor da maioria dos exegetas de hoje em dia.
Já reconhecemos que houve um tempo em que Agostinho, junto
com muitos outros, opinava que a pessoa descrita em Rm 7:14–25 era
não regenerada. Calvino indica o que passou depois e, ao fazê-lo, revela
mais uma vez sua própria interpretação da passagem em questão:
“Agostinho seguiu durante algum tempo este erro comum … mas
depois de ter considerado a passagem mais atentamente, não só se
retratou de seu ensino, mas também no primeiro livro a Bonifácio
debateu com muitas e fortes razões, dizendo que esta passagem não pode
ser exposta de outro modo mais que se referindo aos regenerados”
(Calvino em Romanos, p. 185).
Também reconhecemos que ao longo dos séculos muitos
exegetas, 197 os pelagianos em especial embora não exclusivamente,
avalizaram a teoria segundo a qual Rm 7:14–25 é uma descrição da
pessoa não regenerada e que hoje essa opinião está se propagando, às
vezes até por intermédio daqueles que confessam a fé reformada.
Não obstante, um fato que certamente merece séria reflexão é que,
de uma maneira ou de outra e com algumas variantes de opinião nos
detalhes, os seguintes autores, entre outros, apoiam a opinião segundo a
qual Paulo se refere aqui a si mesmo e em geral aos crentes:

197
Por exemplo, J. A. Bengel, R. Bultmann, J. Denney, C. H. Dodd, A. E. Garvie, F. Godet, C. Gore,
K. E. Kirk, W. Sanday e A. C. Headlam, J. Weiss, para mencionar somente a uns poucos, além de W.
G. Kümmel e H. R. Ridderbos. Para encontrar-se com uma posição intermediária — Rm 7:14–25 é a
descrição da experiência de qualquer homem moralmente sério, trate-se ou não de um cristão —
veja-se o interessante artigo de C. L. Mitton: “Romans VII Reconsidered”, ET 65 (1953, 1954), pp.
78–81, 99–103, 132–135. É interessante e instrutivo este artigo, mas, para mim não totalmente
convincente! Para achar uma opinião algo parecida com a de Mitton, veja-se Wrestling with Romans,
de John A. T. Robinson; Filadélfia, 1979; em especial p. 82s.
Romanos (William Hendriksen) 307
Batey, R. A., The Letter of Paul to Romans, Austin, 1969, pp. 98–
104.
Bavinck, H., Gereformeerde Dogmatiek, tercera edición, Vol. III, p.
65s.; IV, pp. 282, 283.
Berkhof, L., Teología sistemática, Grand Rapids, 1969, p. 647.
Berkouwer, G C, Dogmatische Studiën, Geloof En Heiliging,
Kampen, 1949, p. 61, tr. ao inglês, Faith and Sanctification, pp. 59, 60.
Bruce, F. F., The Epistle of Paul to the Romans (Tyndale Bible
Commentaries). Grand Rapids, 1963, pp. 150–156.
Calvino, J., que já foi considerado.
Cranfield, C. E. B. op. cit., Vol. 1, pp. 344, 355–370.
Fraser, J., A Treatise on Sanctification, Londres, 1898, pp. 254–
356.
Greijdanus, S., op. cit., Vol. I, pp. 337–339.
Haldane, R., The Epistle to the Romans, Londres, 1966, p. 299.
Hamilton, F. E., The Epistle to the Romans, Grand Rapids, 1958,
pp. 111–121.
Hodge, C., op. cit., pp. 357, 386.
Knox, J., op. cit., pp. 498–500.
Kuyper, A., Het Werk van den Heiligen Geest, Kampen, 1927, pp.
583, 612. Trad. ao inglês, The Work of the
Holy Spirit, Grand Rapids, 1941, pp. 636–640.
Lenski, R. C. H., op. cit., pp. 473–492.
Luther, M., Lectures on Romans, p. 203.
Murray, J., op. cit., Vol. I, pp. 256–273.
Nygren, A., Commentary on Romans, Filadélfia, 1949, pp. 284–
296.
Pronk, C., “Who is the man of Romans 7:14–25?”, artigo aparecido
Nada sabemos sobre Cuartoen The Outlook (Journal of Reformed
Fellowship, publicado en Grand Rapids, Mich. USA), Nov. 1978, pp. 9–
13.
Romanos (William Hendriksen) 308
Steele, D. N., y Thomas, C. C., Romans, An Interpretative Outline,
Filadelfia, 1963, pp. 126–130.
Van Andel, J., Paulus’ Brief Aan De Romeinen, Kampen, 1904, pp.
143–151.
Van Leeuwen y Jacobs, op. cit., Vol. I, pp. 124–137.
Wilson, G. B., op. cit., pp. 117–126.

Esta é também a posição assumida pelos credos evangélicos:


A Confissão de Fé de Westminster, 1647, ao falar sobre as
“melhores obras” dos crentes (Cap. XVI, parágr. VI), manifesta: “as
mesmas estão contaminadas e misturadas com tanta fraqueza e
imperfeição que não podem sustentar a severidade do juízo de Deus”. As
passagens da Escritura anexas incluem Rm 7:15, 18. Veja-se Creeds of
Christendom, editado por Philip Schaff, Vol. III, p. 635.
A Confissão Belga, 1561, ao referir-se àqueles que receberam a
Jesus Cristo como seu único Salvador (Art. XXIX), expressa: “Não é que
já não haja grandes fraquezas neles, mas lutam contra elas todos os dias
de sua vida por meio do Espírito …” Anexo ao texto das palavras citadas
encontram-se as seguintes referências: Rm 7:15, etc.; Gl 5:17, Cremos e
confessamos, ACELR, p. 50.
O Catecismo de Heidelberg, 1563, em Domingo XLIV P. e R. 114,
pergunta: “Podem guardar perfeitamente os que são convertidos a Deus
estes mandamentos?” e responde: “Não, porque inclusive os mais santos,
enquanto estiverem nesta vida, não cumprem mais que um pequeno
princípio desta obediência. No entanto, eles começam a viver não
somente segundo alguns, mas segundo todos os mandamentos de Deus”.
As referências anexas incluem Rm 7:22. Veja-se também Domingo LII,
P. y R. 127.
O apoio que os credos luteranos dão a esta interpretação pode
achar-se em Lenski, op. cit., pp. 473, 474.
14. Porque sabemos que a lei é espiritual, mas eu sou carnal, vendido
como escravo ao pecado.
Romanos (William Hendriksen) 309
Como se indicou, há uma estreita vinculação entre v. 13 e v. 14. E
agora no v. 14 Paulo começa a falar deixando bem claro que ele não está
criticando a santa lei de Deus quando põe em evidência que ele, Paulo, é
ainda um pecador. Ele diz que a lei é espiritual. Quer dizer, como já
explicou anteriormente (v. 12), que a lei é santa e o mandamento santo e
justo e bom; que é obra de Deus, produto do Espírito Santo. Cf. Mc
12:36; At 1:16; 4:24, 25; 2Pe 1:20, 21.
A mesma bondade e pureza absolutas não podem adjudicar-se ao
que faz esta confissão, Paulo. Pelo contrário, ele é carnal. 198
É mister tomar cuidado ao definir esta qualidade. O apóstolo não
diz: “Estou na carne”, ou “controlado pela carne” — vejam-se Rm 7:5;
8:8 (cf. Rm 8:5), mas sim “sou carnal”, que é outra coisa. Estar “na
carne” significa estar basicamente controlado pela pecadora natureza
humana que se tem. Uma pessoa assim descrita não é crente. Mas ser
carnal, por outro lado, significa ser o oposto do que é a lei. A lei de Deus
é espiritual, perfeita, divina. Num sentido Paulo é não espiritual,
imperfeito. Como o indica 1Co 3:1, 3, tal pessoa carnal pode, mesmo
assim, ser cristã.
Além disso, no v. 18 da seção em consideração o apóstolo faz uma
importante distinção. Ao dizer: “Sei que nada bom habita em mim, ou
seja, em minha carne”, não está ele dizendo implicitamente que há nele
algo mais que sua carne, sua natureza humana pecaminosa? Tanto v. 18
como v. 25 — note-se o contraste entre “minha mente” e “minha carne”
v. 25 — esclarecem que Paulo está distinguindo entre o que ele é com
relação à sua natureza humana pecaminosa e o que é em seu mais
fundamental ser interior. Inclusive um cristão pode, então, dizer:
“Sabemos que a lei é espiritual, mas eu sou carnal”.

198
Embora seja verdade que a melhor leitura favorece σάρκινος, que basicamente significa “feito de
carne” — em 2Co.3:3 note-se o contraste entre pedra e carne — , em vez do mais comum σαρκικός;
contudo, visto o uso que tem aqui em Rm 7:14, σάρκινος deve significar carnal, quer dizer, não
espiritual, mundo. Provas: (a) “vendido como escravo ao pecado”; (b) em 1Co 3:1 σάρκινος é
contrastado com πνευματικός; quer dizer, o carnal com o espiritual.
Romanos (William Hendriksen) 310
Mas há uma pergunta que se impõe: “O que dizer da segunda
caracterização, quer dizer, ‘vendido como escravo ao pecado’ ”? À
primeira vista esta descrição pareceria excluir a Paulo da companhia dos
salvos; ou, se não for assim, pareceria indicar que quando o apóstolo diz
“eu”, não está pensando aqui em si mesmo, mas em alguma outra pessoa,
um incrédulo. Mas se fizermos uma investigação mais profunda, e sem
fazer nenhum tipo de injustiça à deplorável situação aqui descrita,
chegaremos à conclusão que é o apóstolo Paulo, o crente, quem fala aqui
e descreve seu próprio estado, como também o de todos os outros crentes
que ainda habitam neste mundo.
Neste ponto devemos em primeiro lugar tomar nota do fato que
Paulo não diz que ele se tinha vendido ou abandonado ao pecado, como
sucedeu com o rei Acabe (1Rs 21:20, 25 = LXX 3Rs. 20:20, 25; 2Rs
17:17 = LXX 4Rs. 17:17). Paulo não se vendeu. É outro quem o vendeu.
Ele, Paulo, deplora esta situação. É como se o ouvíssemos deixar escapar
um suspiro de profundo pesar quando lamenta: “… vendido como
escravo ao pecado!” Pode alguém que lamenta tão intensamente pela
pecaminosidade que persiste nele ser outra coisa que um verdadeiro
crente? Quando Paulo confessa:
“Sou carnal, vendido como escravo ao pecado,” não nos faz lembrar
outro contrito filho de Deus que suspirou: “Certamente fui um pecador
desde meu nascimento, um pecador desde o momento em que me
concebeu minha mãe”? (Sl. 51:5).
Quer dizer isto, então, que quando Davi fez esta confissão que não
era crente? Veja-se também Lc 18:13, 14.
Quando se interpreta Rm 7:14 à luz dos vv. 22–25, é evidente que
aquele que no v. 14 deplora sua pecaminosa condição é o mesmo que
nos versículos finais do capítulo expressa sua delícia na lei de Deus, que
antecipa com um anelo apaixonado e irresistível o dia em que seja
libertado de sua presente e difícil luta interior, e que está cheio da bem-
aventurada certeza de que a vitória certamente virá; de fato, que “em
principio” a mesma já está aqui!
Romanos (William Hendriksen) 311
No entanto, por agora, o crente vive num tempo em que duas eras, a
antiga e a nova, se sobrepõem. Houve um tempo em que Paulo foi
exclusivamente um pecador. Haverá um tempo em que ele será
exclusivamente um santo. Mas neste momento, enquanto dita esta carta,
ele é um pecador santo. Um “santo”, por certo, mas ainda também um
“pecador”; dali procede a tensão, o conflito interno. Trata-se de um
conflito que todo verdadeiro crente experimenta e sobre o qual o
apóstolo continua falando como segue:
15. De fato, não aprovo o que estou fazendo. Porque não é o que
quero (fazer) o que faço, mas sim o que detesto, isso faço. 199
Visto que quem fala (“eu”) serve na nova realidade do Espírito” (v.
6) e de coração confessa que a lei de Deus é santa, e seu mandamento
santo, justo e bom (v. 12, e cf. vv. 22–25, aos quais acabamos de fazer
referência), é óbvio mais uma vez que é Paulo, o sincero e humilde filho
de Deus, quem continua falando.
Como crente agradecido e afetuoso, seu padrão ético não é nada
menos que a perfeição moral e espiritual. Cf. Fp 3:12–14. Mas quando
— digamos no fim do dia — ele recapitula o que obteve, sente desgosto
de si mesmo: Deus fez tanto por ele; e ele (Paulo) fez tão pouco em

199
κατεργάζομαι. Outros exemplos de seu uso deixam claro que o significado básico deste verbo é
elaborar, obter; dali vêm também causar, produzir. A ênfase recai geralmente em ação eletiva. Dali
que Rm 1:27 mencione pessoas que perpetram feito indecentes; e Rm 2:9 repreende aos criadores de
maldade. Segundo Rm 4:15, a lei produz ira. Segundo Rm 5:3, o sofrimento produz perseverança.
Veja-se também Rm 7:8, 13.
γινώσκω. O uso deste verbo (significado básico: conhecer) para significar reconhecer (talvez Rm
7:15) pode achar-se em Josefo, Antiguidades V. 112 (“Eles não reconhecem mais que um Deus”).
Uma leve transição do significado produz: aprovar, reconhecer como próprio; vejam-se Mt 7:23; 1Co
8:3; Gl 4:9. Aprovar é provavelmente o significado correto aqui em Rm 7:15. Veja-se a explicação.
πράσσω. Basicamente, este verbo significa fazer, praticar, ocupar-se de. Por conseguinte é
sinônimo de ποιέω, em um dos significados deste último. No Novo Testamento, πράσσω é
frequentemente usado num sentido desfavorável (Lc 22:23; Jo 3:20; At 19:36; 25:11, 25; Rm 1:32;
2:1–3; 13:4; 2Co 12:21; Gl 5:21). Em Rm 7:19 note-se o contraste: fazer o bem — praticar o mal.
Há, no entanto, exceções. Em Rm 9:11 e 2Co 5:10 o verbo πράσσω é usado com objetos bons e
maus; por outro lado, os objetos mencionados em At 26:20; Rm 2:25; e Fp 4:9 são completamente
bons.
Romanos (William Hendriksen) 312
agradecimento. E não só isso, mas também o pouco que conseguiu está
poluído pelo pecado. Sua meta é muito mais alta que sua realização!
Sem dúvida é maravilhoso poder dizer com Longfellow:
Nem a alegria nem o pesar
São nosso rumo ou destino,
Mas de cada dia é passar
Ver-nos com progresso no caminho.
Mas o que sucede se esse ideal nem sempre se cumpre? O homem
que é meramente moral pode vir a enganar-se a si mesmo e pensar que,
afinal de contas, vai muito bem. É precisamente o crente aquele que dirá
com Paulo: “De fato, não aprovo o que estou fazendo. Porque não é o
que quero (fazer) o que faço, mas sim o que detesto, isso faço”. 200
E não é este precisamente o conflito que também se menciona em
Gl 5:17, onde o mesmo apóstolo expressa “Porque o desejo da carne é
contra o Espírito, e o do Espírito é contra a carne; e estes se opõem entre
si, para que não façais o que quereis”?
Há is que, não obstante, que aduziram objeção que Gl 5:17 e Rm
7:14–25 não podem referir-se ao mesmo conflito interno, porque
enquanto a primeira passagem menciona o Espírito, a segundo não o faz.
Mas por que teria sido necessário que Paulo repetisse sua menção do
Espírito Santo como autor da santificação? Não são as referências de Rm
2:29 e 7:6 suficientes? São, sim, a menos que se interprete que as
mesmas indicam um “espírito” diferente do divino. Mas se levar-se em
conta passagens paralelas tais como 2Co 3:6, 17, esta posição seria
difícil de defender.
Repito, então, o que escrevi no C.N.T. sobre Gl 5:18, p. 223;
“Paulo, escrevendo como homem convertido (Rm 7:12–25) e narrando
suas experiências presentes no estado de graça … queixa-se

200
É claro que nesta afirmação o verbo γινώσκω está em aposto para com θέλω, e em oposição a μισ_.
Por conseguinte, dentre uma variedade de significados possíveis para o verbo γινώσκω, o de aprovar é
provavelmente o melhor.
Romanos (William Hendriksen) 313
amargamente do fato que ele pratica aquilo que em sua alma já não se
deleita; em outras palavras, pratica o que seu ser regenerado odeia”.
16. Mas se faço precisamente o que não quero fazer, concordo em
que a lei é boa.
Mas, não há alguma saída fácil a este penoso conflito? Por que não
simplesmente descartar a lei? Por que não chamá-la má e rejeitá-la?
Embora nesta superfície pareceria ser uma fácil solução, na verdade
não é solução alguma. O Espírito Santo habita no coração de Paulo (e no
coração de todos os verdadeiros crentes). Tão estreita é a relação entre
esse Espírito e o espírito de Paulo, que o apóstolo pode dizer: «A lei é
boa. É excelente! Não devo desobedecê-la!» E embora Paulo na verdade
desobedeça, e por isso experimenta uma amarga luta, sua própria voz e a
do Espírito Santo se unem numa maravilhosa sinfonia em louvar a lei.
17–20. Mas, sendo assim, então não sou eu quem o faz, mas o pecado
que habita em mim. Porque sei que nada bom habita em mim, a saber, em
minha carne. Porque tenho desejos de fazer o que é bom, porém não
posso realizá-lo. 201 Porque o que faço não é o bem que quero fazer; não, o
mal que não quero fazer, isso é o que pratico. Mas se faço precisamente o
que não quero fazer, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita
em mim.
A dedução lógica — note-se o “sendo assim” — da situação
descrita no v. 16 é que, se Paulo mesmo não deseja agir de um modo
contrário à vontade de Deus, os pecados cometidos devem ser no
essencial adjudicados não a ele, mas ao pecado. É a pecadora natureza
humana, chamada aqui e em outros lugares a carne, a verdadeira
culpado, a verdadeira transgressora. É esse perverso peregrino, que
habita com Paulo na própria casa deste último (sua alma) que é a causa
de toda esta iniquidade. É esse intruso que com tanta frequência faz
impossível que Paulo faça o bem que deseja fazer.
Pareceria como se Paulo, por meio deste modo de raciocinar,
estivesse desculpando-se de responsabilidade por seus próprios pecados.

201
Ou: porque o desejar está presente em mim, mas o fazer o bem não o está.
Romanos (William Hendriksen) 314
Porém, não é assim. Há dois fatos que continuam sendo certos: (a) até o
peregrino não é um total desconhecido, mas é a própria natureza
pecadora de Paulo; e (b) a um intruso perverso, a um usurpador ilegal,
não se deve permitir que permaneça!
A última parte do v. 18 e todo o v. 19 são similares em significado
ao pensamento expresso no v. 15. O v. 20 repete em substância o que
dizem os vv. 16a, 17.
21. Assim que descubro esta lei: 202 quando quero fazer a bem, o mal
está junto a mim.
As palavras “assim que” demonstram que o apóstolo resume aqui o
conteúdo dos versículos precedentes (vv. 14–20). Fica imediatamente
claro que quando ele usa aqui o termo “lei”, não está pensando nos Dez
Mandamentos. No sentido em que se usa aqui, a palavra “lei” deve
significar algo assim como padrão operativo ou princípio governante.
Para mais com relação a este tema veja-se sobre v. 23.
A “lei” inflexível a que se faz referência aqui e que o escritor desta
epístola — como qualquer outro crente — descobre constantemente, é
esta: “quando quero fazer o bem, o mal está junto de mim”. Se levarmos
em conta que, segundo os vv. 17, 20, a natureza humana pecadora
estabeleceu domicílio na própria casa de Paulo (sua alma) e o tem feito
com propósito perverso, vê-se que a afirmação “o mal está junto de
mim” é na verdade muito lógica. Este “mal” aqui personificado pode
estar repousando, mas certamente não dorme. Nesta passagem é
apresentado como se estivesse observando o apóstolo para ver se está
prestes a levar a cabo alguma boa intenção. E quando algum nobre
pensamento ou boa iniciativa entra no coração de Paulo, o mal o
interrompe para transformar o bom gesto no oposto.
Em plena consonância com o v. 21, o escritor prossegue:
22, 23. Porque segundo meu ser interior me deleito na lei de Deus;
mas vejo em meus membros (corporais) uma lei diferente, que está em

202
Ou: regra, princípio. O mesmo se aplica as três vezes no v. 23.
Romanos (William Hendriksen) 315
guerra contra a lei de minha mente, e que me faz prisioneiro da lei do
pecado que está em meus membros. 203
A palavra “porque” indica que o que encontramos nos vv. 22, 23
explica o conteúdo do v. 21. O conflito entre o bem e o mal mencionado
no versículo anterior fica ampliado e esclarecido na presente passagem.
O apóstolo fala de duas “leis” que se contrapõem. A primeira é a
“lei de Deus”. Embora haja uma grande diferença de opinião com
relação ao significado desta expressão, no entanto, se levarmos em conta
que Paulo se esteve referindo à lei de Deus como a revelação de Sua boa
e perfeita vontade, e inclusive citou um mandamento específico do
Decálogo (vejam-se vv. 7, 8, 12), como pode haver alguma boa razão
que nos leve a duvidar que também aqui no v. 22 a expressão “lei de
Deus” indicasse precisamente esse sistema de princípios ou regras
morais que está resumido nos dez mandamentos e formulados mais
concisamente ainda em Mt 22:37–40 (e paralelos)?
É necessário levar em conta, no entanto, que para o crente essa lei
divina não é uma letra morta, nem é de maneira alguma um meio de
salvação. Pelo contrário, para ele é o princípio reitor da expressão de sua
gratidão.
Se a entendermos deste modo, não nos deve surpreender que ele se
deleite” na lei de Deus. Os bons filhos se deleitam em descobrir algum
modo por meio da qual demonstrar a seus pais, ou a outros benfeitores,

203
συνήδομαι, não significa aqui “alegrar-se com”, mas sim “alegrar-se em”. Veja-se M.M., p. 607;
cf. Liddell & Scott, Greek-English Lexicon, Vol. Ii, p. 1715. Para encontrar um ponto de vista
diferente, veja-se A. T. Robertson, Word Pictures, Vol. IV p. 370; también L.N.T. (A. and G.), p. 797.
_ντιστρατευόμενον, ac. s. masc. pres. part. de _ντιστρατεύομαι, fazer guerra contra.
α_χμαλωτίζοντα (construção similar a precedente), do verbo α_χμαλωτίξω (de α_χμή, lança, e
_λίσκομαι, capturar); ou seja que originalmente significava capturar com a lança; agora, no caso
presente, simplesmente capturar, levar cativo ou prisioneiro. O verbo também aparece em Lc 21:24;
2Co 5:10; 2Tm 3:6.
É claro que aqui Paulo faz uso de metáforas militar. Para outro exemplo possível do mesmo veja-
se sobre Rm 6:13. Se a palavra _φορμή (Rm 7:8, 11) é traduzida “base de operações”, a mesma
poderia ser ainda outro tipo de metáfora similar. Com relação a metáforas militar veja-se também
C.N.T. sobre Efésios, pp. 295–305.
Romanos (William Hendriksen) 316
quanto os amam! Com relação à maneira como os filhos de Deus
expressam seu deleite na lei de Deus, veja-se sobre Rm 7:1.
Agora o apóstolo afirma que ele se deleita na lei de Deus segundo
seu “ser interior”. Quando ele usa este tipo de fraseologia não está
copiando Platão ou os estoicos. Não está expressando um contraste entre
a natureza racional do homem e seus baixos apetites. Para Paulo o
homem interior é aquele que está oculto do olho público. Indica o
coração. É aqui onde o novo princípio de vida foi implantado pelo
Espírito Santo. Por meio desta implantação, o pecador se transformou
num novo homem, uma pessoa que está sendo transformada diariamente
à imagem de Cristo. Com relação a isso, estudem-se passagens tais como
2Co 4:16; Ef 3:16; Cl 3:9, 10.
Em seus “membros corporais” (com relação ao qual diremos mais
num momento) Paulo vê uma lei diferente, uma lei que está fazendo
guerra constantemente contra a lei de sua mente e que o faz prisioneiro
da lei do pecado.
Se é preciso interpretar a “lei de Deus” como um princípio reitor,
coisa que já se demonstrou, então a lógica requer que também esta “lei
diferente” deve ser explicada da mesma maneira. É claro — como o
acaba de afirma o apóstolo que essa “lei diferente” é a lei do pecado. O
modo como a mesma opera é algo que já se indicou no v. 21. Que faz
prisioneiros o apóstolo e todos os verdadeiros crentes em todas as partes
é provavelmente outro modo de expressar o pensamento do v. 14b.
Vez após vez “a lei do pecado” leva o escritor desta carta a fazer o
que não quer fazer, e vez após vez o impede de fazer o que quer fazer.
Destes atos ele se queixa amargamente e os deplora profunda e
sinceramente.
É necessário pôr ênfase na frase “a lei do pecado que está em meus
membros”. Muitas vezes esta frase é passada por alto, ou tocada por alto
de passagem. Contudo, poderia ser mais importante do que geralmente
se considera. Que para a mente do escritor deve ter sido bastante
significativa é algo que fica claro pelo fato que ele faz frequente uso da
Romanos (William Hendriksen) 317
mesma. Veja-se Rm 6:13 (duas vezes); 6:19 (duas vezes); 7:5; 7:23
(duas vezes); tudo isso à parte das referências figurativas (ou ao menos
figurativas numa medida considerável) desta expressão, como são Rm
12:5; 1Co 6:15; 12:12, 27; Ef 4:16, 25; 5:30.
Além dos comentários feitos previamente sobre estas partes ou
membros corporais (veja-se sobre Rm 6:13, 19; 7:5), note-se então
também o seguinte: Paulo era um fogoso missionário. Sua alma estava
envolvida em sua tarefa. Veja-se Rm 15:17–29; 1Co 9:22; 2Co 5:20, 21.
Ganhar gente para Cristo, para a glória de Deus, significava mais para
ele que até sua liberdade pessoal (Fp 1:12s). Ele desejava intensamente
que outros compartilhassem seu entusiasmo (Fp 1:4, 18).
Agora, ele percebia muito bem que a maneira de alcançar o seu
auditório era por meio de seus órgãos corporais e os deles mesmos. De
grande importância eram, então, a ligeireza de seus pés, as frases de seus
lábios, o olhar de seus olhos, o movimento de suas mãos, a atenção dos
ouvidos de seus ouvintes, etc., tanto mais se levar-se em conta que meios
de comunicação tais como os aviões, os óculos, os aparelhos de surdez,
etc., ainda não tinham sido inventados.
Não é de surpreender, como resultado, que tanto no Antigo
Testamento como no Novo, seja colocada maior ênfase nas partes ou
membros do corpo do que se faz na literatura de hoje. Em muitas das
seguintes passagens, estaríamos ocupados talvez hoje em dia de fazer
menção dos membros corporais envolvidos? 204

boca: Gn 24:57; Jó 3:1; Sl. 17:10 Mt 5:2; 13:35; Lc 11:54


lábios: Lv 5:4; Nm. 30:6; Dt 23:23 Mt 15:8; Hb 13:15; 1Pe 3:10
língua: 2Sm 23:2; Jó 6:30; Sl. 35:28; At 2:26; Fp 2:11; 1Pe 3:10
pés: 2Sm 22:37; 1Rs 14:6, 12 Lc 1:79; At 5:2; Hb 2:8
mãos: Gn 3:22; 8:9; Js. 2:24 Lc 21:12; At 7:41; Hb 10:31

204
A aqueles que não possam ler o original, aconselha-se a consultar estas referências na RA 1999,
visto que nas traduções mais recentes os nomes destas partes corporais são às vezes omitidos.
Romanos (William Hendriksen) 318
olhos: Dt 7:16; Jó 7:7; Is 13:18 Lc 11:34; 1Co 2:9; Ap 1:7
ouvidos: Ne 1:6; Jó 4:12; 13:1 Mt 10:27; Lc 12:3; 1Co 2:9

Um notável exemplo desta referência constante às partes do corpo


ocorre nesta mesma epístola aos romanos (Rm 3:13–18), onde língua,
lábios, boca, pés e olhos são mencionados numa mesma frase, em
citações do Antigo Testamento.
Ao mencionar as partes e qualidades físicas, não se deve excluir a
possibilidade de que a parte espiritual do ser humano possa estar
incluída. Se o interpretarmos desta maneira, o que o escritor diz é o
seguinte: «Se tão somente pudesse servir a Deus de um modo totalmente
livre de travas! Que todas minhas faculdades de corpo e alma pudessem
ser postas ao serviço dEle e de Sua causa!» Seja como for, o que vem a
seguir é compreensível:
24. Miserável de mim! Quem me resgatará deste corpo de morte?
O escritor deplora verdadeiramente o fato que, devido à lei do
pecado que ainda opera nele, ele é incapaz de servir a Deus tão completa
e profundamente como deseja.
A comovedora tristeza que aqui se manifesta é definitivamente a de
um crente. Nenhum incrédulo poderia jamais chegar a estar tão cheio de
dor pelos seus pecados! Aquele que profere este lamento é Paulo,
falando em nome de todo filho de Deus.
O lamento que emite é um lamento de tristeza, porém não de
desesperança, como o demonstra o v. 25. Paulo sofre uma grande dor,
por certo: essa miséria causada pelo tremendo esforço; quer dizer, a que
vem de esforçar-se grandemente sem nunca ter um êxito satisfatório em
viver em completa harmonia com a vontade de Deus, mas fracassando
vez após vez. Ele antecipa com ânsia o momento em que esta luta terá
terminado.
Com isso em mente, ele deseja ser resgatado deste “corpo de
morte”, a saber, do corpo em sua presente condição, sujeito aos estragos
Romanos (William Hendriksen) 319
205
do pecado e da morte. Sabe que enquanto ele viver neste presente
“corpo de humilhação” (Fp 3:21), a terrível luta continuará. Mas uma
vez que cessar a vida nesse corpo, começará o estado de glória; primeira
para a alma e depois também para o corpo.
É assim que ele responde sua própria pergunta com um jubiloso:
25. Mas graças a Deus por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor!
Ele fala com uma certeza total. Sabe que quando um crente morre,
sua morte é lucro. Estar com Cristo é muito melhor (Fp 1:21, 23). O
pecado terá sido deixado para atrás para sempre. O conflito terá cessado,
para nunca mais voltar. Na linguagem do apóstolo João, nada que seja
impuro entrará na Cidade Santa (Ap 21:27). Além disso, já vem o tempo
em que até o corpo será redimido (Rm 8:23; cf. Jo 5:28, 29).
Em sua jubilosa ação de graças o apóstolo volta à Fonte de toda
bênção. Ele exclama: “Graças a Deus!” Veja-se Jo 3:16; Rm 8:32; 2Co
9:15. Deste modo percebe que foi por meio dAquele a quem menciona
por seu nome completo Jesus (Salvador), Cristo (ungido), nosso Senhor
(Soberano, Rei, Dono), que obteve essa salvação, plena e gratuita.
Obtida não somente para Paulo, mas também para todos os crentes. Por
isso ele antecipa o dia de glória para todos eles (1Co 15:56, 57; 2Tm
4:8).
Resumindo todo o argumento, Paulo termina este capítulo
escrevendo: Assim que, eu mesmo com minha mente sirvo à lei de Deus,
porém com minha carne à lei do pecado.
Note-se o forte contraste:
a. a lei de Deus contra a lei de pecado;
b. minha mente contra minha carne.

205
A tradução correta da frase τ_ σ_μα (aqui no gen. το_ σώματος, depois de _κ) το_ θανάτου τούτου
provavelmente não seja “o corpo desta morte” mas sim “este corpo de morte”. As razões são:
a. O versículo que a precede imediatamente refere-se claramente aos membros ou partes do corpo
físico de Paulo.
b. Já previamente houve uma referência ao “seu corpo mortal” (Rm 6:12).
c. Em Rm 8:23 o apóstolo fala ainda de um corpo físico.
Para ponto de vista oposto veja-se Murray, op. cit., p. 268.
Romanos (William Hendriksen) 320
Está dizendo o apóstolo então que sua mente (v. 25b) ou seu ser
interior (v. 22) serve à lei de Deus (v. 14, 16, 22); mas sua carne (vv. 18,
25b) ou pecado que habita nele (natureza humana pecadora, vv. 17, 20),
serve à lei do pecado (v. 23)?
Aqui devemos proceder com sumo cuidado, visto que o escritor não
considera que coisas tais como a mente e a carne sejam seres
independentes. Pelo contrário, como se indicou com antecedência, ambas
pertencem a Paulo. É ele, ele mesmo — a saber, é o crente mesmo —
quem continua sendo totalmente responsável, como o esclarece uma
cuidadosa leitura dos vv. 15, 16, 19.
Por outro lado, também fica claro que estes dois (mente, carne;
Paulo o santo, Paulo o pecador) não são correlatos absolutos. Não, é com
seu ser interior ou mente que Paulo deseja fazer a vontade de Deus
(vejam-se vv. 15, 16, 18, 20, 21, 22). A carne é a intrusa, que está sendo
desalojada e que certamente perderá a batalha. Isto não se deve à
bondade de Paulo, mas à graça de Deus, como o apóstolo o proclama
forte e alegremente ao exclamar: “Graças a Deus por meio de Jesus
Cristo, nosso Senhor!” Compare-se 1Co 15:57, também escrito pelo
triunfal crente, Paulo!
Como resultado vemos que a passagem (v. 25b), considerado em
ambas as suas partes — (a) “Eu mesmo com minha mente sirvo a lei de
Deus” e (b) “porém com meu corpo à lei do pecado” — se enlaça
belamente com o cap. 8, note-se o v. 10 de tal capítulo; e também que o
v. 25a — “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor!” — é uma
introdução muito apropriada a Rm 8:1, “Portanto, já não há condenação
para os que estão em Cristo Jesus”.
Para mais informação sobre Rm 7:14–25; veja-se sobre Rm 8:1, 2,
5–8.
Romanos (William Hendriksen) 321
Lições práticas derivadas de Romanos 7
Rm 7:4, 6. “Assim, meus irmãos, vós também morrestes para a lei
por meio do corpo de Cristo, para que possais pertencer a outro, ou seja,
àquele que foi ressuscitado dentre os mortos, para que possamos dar
fruto para Deus … Fomos libertos da lei para que sirvamos na nova
realidade de (o) Espírito, e não na velha realidade de (a) letra”.
Isto deixa claro que a vida cristã genuína não é uma vida de
servidão mas de liberdade. Não é motivada por regulamentos externos,
mas por amor Àquele a quem os crentes pertencem, a saber, Jesus Cristo.
Não é guiada por interesses mesquinhos mas pelo Espírito. Além disso,
não é estéril mas frutífera.
Rm 7:7. “O que diremos então? É a lei pecado? De maneira
nenhuma! Pelo contrário, eu não teria chegado a conhecer o pecado a
não ser pela lei”.
Muitas vezes se ouve esta afirmação: «Nada temos que ver com a
lei»; ou esta: «A lei era para os judeus. Não é para nós». Essa não é a
linguagem que usa Paulo. Para ele a santa lei de Deus tinha seu valor em
mais de uma esfera. Veja-se sobre Rm 5:20. Porém não pode salvar.
Pode revelar nossa pecaminosidade e o faz; mas em razão de sua própria
impotência aponta para Outro, a saber, a Cristo, como nosso Salvador.
Veja-se Rm 7:13; Gl 3:24.
Rm 7:15, 20. “Porque não é o que quero (fazer) o que faço, mas o
que detesto, isso faço … Mas se fizer precisamente o que não quero
fazer, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim”.
Uma pergunta prática que se ouve com frequência é esta: «Sou eu
filho de Deus?» Não poderia a resposta formular-se assim: “Você se
reconhece nas palavras recém-citadas?» E se o faz, não deveria também
poder dizer: “Miserável de mim! Quem me resgatará deste corpo de
morte? Mas graças a Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo!”? Os
que podem dizer isso certamente são cristãos.
Romanos (William Hendriksen) 322
Um querido filho de Deus disse ao escritor deste livro: «Em
qualquer ocasião em que leio Rm 7:14–25, vejo-me a mim mesmo». Mas
pela graça soberana este irmão tinha em seu coração a bem-aventurada
certeza de poder dizer: “Jesus é meu”.

Resumo de Romanos 7
Assim como uma mulher, por meio de uma morte (a de seu marido)
fica livre de seu vínculo conjugal e lhe é permitido casar com outro
homem, deste modo por uma morte (a do crente com Cristo) os filhos de
Deus são libertos de sua dívida para com a lei, visto que a “conta”
apresentada por esta foi totalmente paga pelo sacrifício vicário e
voluntário de Cristo. Como resultado, os crentes obtiveram a liberdade.
A mesma é uma liberdade de e uma liberdade para. É uma liberdade da
obrigação de guardar a lei para ser salvos, e é por esta razão uma
liberdade da maldição que a lei pronuncia sobre o desobediente. Mas é
ao mesmo tempo uma liberdade para ou com um propósito: uma
liberdade para prestar serviço a Deus “na nova realidade do Espírito, não
na velha realidade da letra” (vv. 1–6).
Ser libertado da lei no sentido que se indicou não implica que a lei é
pecado. Ao contrário, a lei é boa e útil, visto que revela nossa
pecaminosidade. Mata nosso orgulho pecador e nossa jactanciosa
autossuficiência. “Eu não teria chegado a conhecer o pecado a não ser
pela lei. Porque não teria sabido o que significa cobiçar se a lei não
tivesse dito ‘Não cobiçarás’ ”. Por isso, “em si mesma a lei é santa, e o
mandamento santo e justo e bom”.
Paulo disse que o mandamento nos mata. Mas como pode algo bom
causar a morte? O apóstolo responde que não é o mandamento operando
por si só o que nos mata; é nossa transgressão do mandamento que o faz.
Como resultado, a verdadeira causa da morte é o pecado. Mas continua
sendo certo que a mesma brancura (a pureza espiritual e moral) dos
Romanos (William Hendriksen) 323
mandamentos de Deus faz ressaltar ainda mais o negrume de nosso
pecado.
Ao dizer coisas tais como “Houve um tempo em que vivi à parte da
lei; mas quando veio o mandamento, o pecado cobrou vida e eu morri …
o mandamento me matou …”, Paulo nos permite dar uma olhada em sua
própria experiência antes, durante e pouco depois de sua conversão (vv.
7–13).
Nos vv. 14–25, uma seção que, por lógica, vem a seguir dos vv. 7–
13, Paulo, o crente, refletindo sobre sua própria situação e a de outros
como ele, analisa A luta do miserável e sua vitória. Ele não critica a
santa lei de Deus quando esta revela que ele, Paulo, e outros como ele,
estão ainda contaminados pelo pecado. Confessa clara e abertamente:
“Sabemos que a lei é espiritual, mas eu sou carnal, vendido como
escravo ao pecado”. Admite, como resultado, que embora possa atribuir
perfeita bondade à lei de Deus, o mesmo não pode dizer dele. Sabe que
enquanto ele estiver nesta terra pecadora, ele é carnal, quer dizer
terrestre, mundano, longe da perfeição. Por ser um verdadeiro filho de
Deus, o apóstolo deplora honestamente o fato de ter sido vendido como
escravo ao pecado. É assim que confessa: “De fato, não aprovo o que
estou fazendo. Porque não é o que quero (fazer) o que faço, mas o que
detesto, isso faço … Porque o que faço não é o bem que quero fazer;
não, o mal que não quero fazer, isso é o que faço”.
Não é este precisamente o conflito que se menciona também em Gl
5:17 [NVI], onde o mesmo apóstolo afirma: “Pois a carne deseja o que é
contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão
em conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que
desejam”? E não é esta tomada de consciência a respeito da imperfeição
similar à que está expressa em Fp 3:12, 13: “Não é que a tenha alcançado
já, nem que tenha obtido a perfeição … eu não creio tê-la ainda
alcançado”?
Romanos (William Hendriksen) 324
No entanto, o próprio fato de que em seu ser interior Paulo não quer
realmente fazer o que é contrário à lei de Deus, mas aborrece esta
situação, é algo que lhe enche de coragem, de modo que pode exclamar:
“Porque segundo meu ser interior me deleito na lei de Deus; mas
vejo em meus membros (corporais) uma lei diferente, que está em guerra
contra a lei de minha mente e que me faz prisioneiro da lei do pecado
que está em meus membros. Miserável de mim! Quem me resgatará
deste corpo de morte? Mas graças a Deus por meio de Jesus Cristo,
nosso Senhor!” Essa realidade, francamente admitida por ele numa
afirmação sumária, ou seja, “De modo que, eu mesmo com minha mente
sirvo à lei de Deus, porém com minha carne à lei do pecado”, não anula
a essência da segurança da vitória que se expressa naquelas memoráveis
palavras: “Graças sejam dadas a Deus por meio de Jesus Cristo, nosso
Senhor!” (vv. 14–25).
Romanos (William Hendriksen) 325
ROMANOS 8
4a. “Não há condenação”: Rm 8:1–30

Como sucedesse com os capítulos 5, 6 e 7, também o capítulo 8


indica um dos resultados da justificação dos crentes pela fé. Que a
justificação está inegavelmente no centro do pensamento de Paulo é
claro das primeiras palavras de Paulo: “Já não há condenação”, por que a
condenação é o oposto da justificação.
Além disso, como já se disse anteriormente, Paulo mesmo parece
aprovar a coordenação dos caps. 5, 6 e 7 ao fazer com que cada um deles
culmine com a mesma frase (ou uma muito similar). Isto também é
aplicável ao cap. 8, que conclui com “em Cristo Jesus, nosso Senhor”.
A pergunta com relação a qual é o tema deste capítulo é de fácil
resposta. A mesma não se expressa imediatamente, embora tudo o que
encontramos nos vv. 1–30 e também nos vv. 31–36 conduz a ela; indica-
o por exemplo, o v. 28 que encabeça a presente seção. O pensamento
central, que é também o quarto dos frutos principais da justificação pela
fé, encontra-se nas palavras: “Não, em todas estas coisas somos mais que
vencedores por meio daquele que nos amou” (v. 37). Note-se: não
somente vencedores mas sim mais que vencedores; não só invencíveis
mas também super invencíveis.
1. Portanto, já não há condenação para os que estão em Cristo
Jesus. 206
A afirmação: “Já não há condenação” está estreitamente vinculada
com a ênfase principal da argumentação prévia de Paulo tomada em sua
totalidade. Veja-se especialmente Rm 1:16, 17; 3:21, 24; 5:1, 2, 6–8, 15–
21; 7:6. Nestas passagens o apóstolo esteve expondo o fato que, por

206
A continuação (em sua totalidade ou em parte): “Que não andam segundo a carne mas segundo o
Espírito” carece de fundamentação textual suficiente e trata-se provavelmente de uma interpolação do
v. 4.
Romanos (William Hendriksen) 326
meio do sacrifício voluntário de Cristo — sacrifício que cancela a dívida
e que santifica — os crentes foram libertados da maldição da lei. Após a
entrada do pecado (cf. Rm 8:3), a lei já não pode ser considerada como
meio para obter a salvação, nem tampouco tem o poder de condenar os
crentes. A lei é, antes, o meio para expressar a gratidão. Como tal, a
mesma é objeto da delícia deles mesmo quando uma completa
obediência na vida presente seja impossível, como o demonstraram Rm
7:14s.
Isto não quer dizer que não haja um vínculo entre Rm 8:1s e o
contexto que imediatamente lhe precede. Como já se indicou no
comentário sobre Rm 7:25, há uma relação estreita entre “Graças a Deus
por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor!” (Rm 7:25a) e “Portanto, já não
há condenação, etc.” (Rm 8:1). Mas até o que Paulo diz em 7:25b — e
em termos mais gerais em Rm 6:1–7:25 — com relação ao poder
escravizante do pecado, não está totalmente ausente de sua mente em
Rm 8:1, como o indica a sequela (Rm 8:1s). Para Paulo a «não
condenação» significa liberdade não só da culpa do pecado mas também
de seu poder escravizante.
Por certo, deve ser feita uma distinção entre a justificação e a
santificação. Mas esta distinção nunca deve chegar a converter-se numa
separação. Calvino deixou isso bem claro ao dizer: “Assim como Cristo
não pode ser dividido, do mesmo modo são inseparáveis estas duas
bênçãos que recebemos conjuntamente nEle” (Instituição III, xI, 6).
Em consonância com esta dupla referência das palavras «não
condenação» está a frase “em Cristo Jesus”. O que Paulo está dizendo é
que para os que estão em Cristo não só de modo forense — havendo
tirada a culpa de seus pecados por Sua morte — mas também
espiritualmente — com as influências santificadoras de Seu Espírito
dominando sua vida —, portanto já não há (= como resultado)
condenação alguma. Para eles há justificação e por isso salvação plena e
gratuita (Rm 8:29, 30). Para mais com relação à expressão “em Cristo
Romanos (William Hendriksen) 327
Jesus” veja-se sobre Rm 3:24 e sobre Rm 6:3s. Veja-se também C. N. T.
sobre Ef 1:1.
A justificação e a santificação sempre vão juntas. Que na expressão
“não há condenação” ficam incluídos tanto o perdão como a purificação
é clara também do v. 1.
2. Porque por meio de Cristo Jesus a lei do Espírito da vida me 207
libertou da lei do pecado e da morte. 208
Paulo fala de “a lei do Espírito da vida”. Que o Espírito Santo é
vida em sua própria essência e que também comunica vida, tanto física
como espiritual, é bem claro de um grande número de passagens da
Escritura. A base desta doutrina pode já ser achada provavelmente em
Gn 1:1; Sl. 51:11; 104:30. Para referências mais próximas veja-se Jo
6:63; 2Co 3:6; Gl 6:8; e não se esqueça Rm 8:11. A lei do Espírito da
vida é a operação poderosa e eficaz do Espírito Santo nos corações e
vidas dos filhos de Deus. Trata-se precisamente do oposto à “lei do
pecado e da morte”, com relação à qual ver sobre Rm 7:23, 25. Assim
como a lei do pecado produz morte, do mesmo modo a lei, ou o fator
governante, do Espírito da vida produz vida. Cf. Rm 6:23. Ele o faz “por
meio de Cristo Jesus”, quer dizer, com base nos méritos de Sua expiação
e por meio do poder vivificante da união com Ele.
207
Ou te.
208
As perguntas técnicas que se devem considerar são as seguintes:
a. O que é que “por meio de Cristo Jesus modifica? “A lei do Espírito da vida? Ou “me tem feito
livre? O conteúdo dos vv. 3 e 4, que mostram que foi por meio do envio do Filho de Deus que a lei se
cumpriu (de modo que os pecadores pudessem ser libertados), favorece a última formulação.
b. “De vida, modifica à lei, ou é que vai com “o Espírito? Não vejo nenhuma razão para me
desviar da regra que diz que, a menos que haja causa específica para fazê-lo de outra maneira, o
modificador deve ser traduzido substantivo que tenha mais perto. Por outro lado, em muitas passagens
da Escritura o Espírito Santo é associado com a comunicação da vida.
c. Deveríamos ler “me tem feito livre ou “te tem feito livre?: με ou σε? A evidência textual,
embora favorece a σε (a B G), nγo ι totalmente determinante. Se tem-se em conta que desde Rm 7:7
daí em diante o apóstolo se esteve referindo a si mesmo com muita frequência, με parece mais natural.
Pelo outro lado, já houve uma mudança de estilo do mais estritamente pessoal no máximo mais geral
(veja-se Rm 8:1). Isto pode explicar o fato que até a leitura _μ_ς (nos) tenha algo de apoio. O assunto
não é muito importante. Podemos estar seguros de que por meio de Cristo Jesus a lei do Espírito da
vida libertado a todos os que põem sua confiança no Salvador, a mim, a ti, a nós.
Romanos (William Hendriksen) 328
A pergunta que se impõe é esta: Se ao longo de Rm 7:14 – 8:2
Paulo fala de si mesmo como crente, como é que pode dizer por um lado:
“Eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado … um prisioneiro”
(Rm 7:14, 23); e logo do outro: “Por meio de Cristo Jesus a lei do
Espírito da vida me libertou da lei do pecado e da morte”? Como pode
alguém que é escravo e prisioneiro ser também uma pessoa livre? Não
demonstra esta contradição que interpretamos erroneamente Rm 7:14,
23?
A resposta é “De maneira nenhuma!” Ao contrário, quando lemos
estas passagens — tanto Rm 7:14, 23 como Rm 8:1, 2 — dizemos:
“Quão maravilhosa é a Palavra de Deus! Que verdadeiro retrato faz da
pessoa que na verdade sou! Por um lado sou escravo, prisioneiro, porque
o pecado tem um controle tal sobre mim que não posso viver uma vida
sem pecado (Jr 17:9; Mt 6:12; 1 Jo 1:8, 10). Mas por outro lado, sou uma
pessoa livre, visto que embora Satanás, com todo seu poder e astúcia,
procure evitar que eu faça o bem — como confiar em Deus para minha
salvação, invocá-Lo em oração, alegrar-me nEle, agir a favor de Sua
causa, etc. — ele não pode evitar totalmente que eu o faça. Não pode
impedir completamente que eu experimente a paz de Deus que sobrepuja
todo entendimento. Esse sentido de vitória que já agora possuo em
princípio e que possuirei em perfeição no futuro, sustenta-me em todas
as minhas lutas. Alegro-me na liberdade que Cristo obteve para mim!”
(cf. Gl 5:1).
Quando aquele que interpreta Rm 7:21–8:2 limita a experiência
cristã ao que se encontra em Rm 7:22, 25a, 8:1, 2, e deixa de lado Rm
7:21, 23, 24, 25b, não se assemelha a um músico que procura tocar uma
peça muito difícil num órgão com um número muito restringido de
oitavas, ou num harpa com muitas cordas quebradas?
3, 4. Porque o que a lei não podia fazer, devido ao fato de que era
fraca por causa da carne, Deus o fez: ao enviar o seu próprio Filho em
semelhança de carne pecaminosa e pelo pecado, ele condenou o pecado na
Romanos (William Hendriksen) 329
carne, para que o justo requisito da lei se cumprisse em nós, que não
andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito.
a. Porque o que a lei não podia fazer, devido ao fato de que era
fraca por causa da carne, Deus o fez.
A palavra “porque” indica que o que Deus conseguiu ao enviar o
Seu Filho ao mundo, segundo os vv. 3, 4, é o fundamento da liberdade
do crente (v. 2). A lei era incapaz de fornecer este fundamento. No
entanto, a lei não tinha a culpa disso. A pecaminosa natureza humana (“a
carne”, veja-se sobre Rm 7:5, 6) tinha a culpa. Era ela que tornava
impossível a perfeita obediência. Significa isto então que os pecadores
alguma vez serão salvos e que o plano de Deus, formulado desde antes
da fundação do mundo (Ef 1:4), não será efetuado? Não, não significa
isso, visto que — glorioso amor divino! — o que a lei era incapaz de
fazer; Deus o fez! Foi ele quem, ao enviar ao mundo o Seu único Filho
para morrer pelos pecadores, satisfez as demandas da justiça, libertando
dessa maneira os pecadores e inundando seus corações de amor por Deus
e do desejo de fazer Sua vontade como gesto de gratidão.

b. ao enviar o Seu próprio Filho.


Que profundidade de sentimento, que compaixão, que emoção há
nesta expressão! Involuntariamente nossa mente retrocede até Gn 22:2
(Deus fala com Abraão): “Toma agora o teu filho, teu único filho a quem
amas, Isaque … e oferece-o como holocausto …” Veja-se também Jo
3:16: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira, que deu o seu Filho
unigênito …” Cf. Mt 21:37.
Os filósofos podem argumentar que implícito na doutrina da
imutabilidade de Deus está o fato de que o Ser Divino não pode
experimentar nenhuma emoção. A pessoa pode querer saber se tal
inferência faz plena justiça a passagens de nossa epístola como a
presente e como Rm 8:32 (“Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho
poupou, mas o entregou por todos nós”). Para nos salvar, Deus não
Romanos (William Hendriksen) 330
poupou nem o Seu próprio — sim, Seu próprio, seu amado e único —
Filho. Fez com que descesse ao inferno por nós, esse inferno que
culminou no Calvário. 209
c. em semelhança de carne pecaminosa.
Em sua encarnação, o divino Filho tomou a natureza humana, de
modo que a partir desse momento tem duas naturezas, a divina e a
humana, indissoluvelmente unidas, embora retendo cada uma suas
propriedades características. Mas Ele tomou a natureza humana não
como tinha saído originalmente da mão do Criador (“e eis aqui que era
bom grandemente”, Gn 1:31), mas debilitada pelo pecado, embora
permanecendo sem pecado. Note-se: não “em carne pecaminosa” mas
em semelhança de carne pecaminosa”. Ele Se esvaziou a Si mesmo ao
tomar a forma de servo” (Fp 2:7). “Embora sendo rico, se fez pobre por
amor a nós” (2Co 8:9). Veja-se também C. N. T. sobre Fp 2:5–9.
d. e pelo pecado.
Significado provável: e para poder tratar com o pecado. 210
e. ele condenou o pecado na carne, para que o justo requisito 211
da lei se cumprisse em nós.
Esse justo requisito está claramente indicado em passagens tais
como Lv 19:18b; Dt 6:5; Mq 6:8; Mt 22:35–40 (cf. Mt 12:28–34; Lc

209
Para mais sobre este tema das emoções divinas, veja-se sobre Rm 8:9–11, 26, 27 e 32.
210
Embora caiba reconhecer que περ_ _μαρτίας pode significar “para expiação de pecados” (cf. Lv
9:2), este sentido pareceria ser em alguma medida alheio ao presente contexto.
211
Embora a noção fundamental de justiça nunca está ausente, as diversas variantes de significado que
a palavra δικαίωμα tem no Novo Testamento podem ser resumidos como segue:
a. justa demanda, requisito (Lc 1:6; Rm 2:26; 8:4)
b. um ato justo ou de justiça (Rm 5:18; Ap 15:4; 19:8)
c. ordenança judicial, decreto, sentença (Rm 1:32)
d. sentença que justifica, justificação (Rm 5:16)
e. ordenança (Hb 9:1, 10).
Romanos (William Hendriksen) 331
10:25–28). Veja-se também Mt 23:23; Lc 10:14–28). Veja-se também
Mt 23:23; Lc 11:42; Rm 13:9.
Foi na “carne” de Cristo, Sua natureza humana, que Deus condenou
e castigou 212 os pecados do Seu povo. Foi em substituição de Seu povo
que Jesus suportou a ira de Deus. Veja-se Is 53:4–6, 8, 11b; Mt 20:28;
Mc 10:45; Jo 1:29; 10:11, 15; Rm 5:6–9, 18, 19; 2Co 5:21; Gl 3:13. O
objetivo e o resultado da obra da redenção de Cristo foi garantir que Seu
povo, através da operação do Espírito Santo em seus corações e vidas,
pudesse lutar, e lute, para cumprir os justos requisitos da lei. Em razão
de sua gratidão pelo amor de Deus derramado, e em resposta ao mesmo,
eles agora amam a Deus e o seu próximo.

f. que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito.


Este tipo de conduta devota, sendo resultado da ação do Espírito
que habita nos crentes, revela “o fruto do Espírito”. O modo de vida
oposto, aquele que é “segundo a carne”, procede da natureza pecadora
dos homens e está caracterizado pelos atos que a se relacionam com essa
natureza. Gl 5:16–25 fala de ambos os frutos. Não dá esta passagem uma
sugestão com relação à obrigação manifestada nos vv. 12, 13?
5–8. Porque os que vivem segundo a carne têm sua mente posta nas
coisas da carne, mas os que vivem segundo o Espírito têm sua mente posta
nas coisas do Espírito. Agora, a mente da carne é morte, mas a mente do
Espírito é vida e paz; porque a mente da carne é hostilidade contra Deus,
porque não se submete à lei de Deus, nem pode fazê-lo. E os que estão na
carne não podem agradar a Deus.
Como o indica a palavra “porque”, o versículo 5 (num sentido os
vv. 5–8 considerados como unidade) dá uma descrição adicional das
duas classes de pessoa às quais se faz referência no v. 4b: (a) os que

212
Aqui o verbo κατακρί νω tem um duplo significado: condenar e castigar; sentenciar e levar a cabo
tal sentencia. O mesmo sucede em 1Co 11:32; 2Pe. 2:6.
Romanos (William Hendriksen) 332
andam segundo a carne (sua existência implícita no v. 4b), e (b) os que
andam segundo o Espírito (sua existência mencionada no v. 4b).
Os que vivem segundo a carne permitem que sua vida seja
basicamente determinada por sua pecaminosa natureza humana. Põem
sua mente — estão muito profundamente interessados, falam
constantemente, ocupam-se e se gloriam — nas coisas que são da carne,
quer dizer, da pecaminosa natureza humana.
Os que vivem segundo o Espírito e que, por isso, se submetem à
direção do Espírito concentram sua atenção e se especializam em
qualquer coisa que é do agrado do Espírito. No conflito entre Deus e a
pecaminosa natureza humana o primeiro grupo fica do lado da213
natureza humana; o segundo toma o lado de Deus.
Paulo lembra aos membros da igreja de Roma que é impossível
estar em ambos os lados ao mesmo tempo; quer dizer, a disposição
básica — deve enfatizar-se este adjetivo! — ou direção básica de nossa
vida está ou do lado de Deus ou do lado da pecaminosa natureza
humana. Se uma pessoa persistir em ser mundana, está do lado do
mundo e deve esperar a perdição do mundo. Por outro lado, se as coisas
de Deus e do Seu reino são sua maior preocupação, ele pode esperar a
vida: a doce comunhão com Deus, o amor de Deus derramado em seu
coração, uma alegria inexprimível e cheia de glória, tudo isso e muito
mais pelos séculos dos séculos. Veja-se sobre Rm 2:7.
Pode também esperar a paz: a certeza no ser interior de que os
pecados passados estão perdoados, que os eventos do presente, não
importa quão dolorosos sejam, são compensados para o bem, e que nada
que possa ocorrer no futuro poderá separá-lo do amor de Deus em Cristo.
Este tipo de paz implica uma libertação básica do temor e da inquietação.
Implica o contentamento, um sentido de segurança, uma tranquilidade
interior.

213
φρονο_σιν, 3ª. per. pl. ind. de φρονέω, inclinar, ter em mente; cf. φρήν, mente. Para os gregos τ_
_ωμαίων φρονε_ν significava: unir-se ao bando dos romanos, estar ao seu lado.
Romanos (William Hendriksen) 333
Entre as muitas passagens da Escritura nos quais se menciona a paz
estão Sl. 4:8; 37:37; 119:165; Is 26:3; 48:22 (cf. 57:21); Lc 1:79; 2:14;
Jo 14:27; Rm 5:1; 14:17; 15:13, 33; Fp 4:7; 12. Veja-se também as
saudações iniciais paulinas e petrinas. Com muita frequência,
especialmente no Antigo Testamento, a linha demarcatória entre a paz e
a prosperidade ou o bem-estar é quase imperceptível; cf. Sl. 122:7.
Quando Paulo diz: “… mas a mente do Espírito é vida e paz”, quer
dizer ele que o crente nunca está turbado? Quer dizer que o coração e a
mente do cristão estão sempre repletos de perfeita paz e que por isso a
exclamação: “Miserável de mim!” não poderia ter sido proferida pelo
filho de Deus?
A resposta deve ser: “De maneira nenhuma!” Embora a disposição
básica da pessoa cuja vida é controlada pelo Espírito Santo seja
realmente de vida e paz, isso não significa que tal pessoa já não sinta
pesar profundo por seu pecado nem deseje ardentemente ser libertada do
mesmo. Na verdade, quanto mais completamente estiver sob o controle
do Espírito, o conhecimento do qual lhe dá vida e paz, tanto mais
lamentará a pecaminosidade que ainda permanece nela, e lutará contra
ela!
A ideia de que o crente é uma pessoa que sempre está bem
equilibrada deveria ser abandonada. A vida do crente não é tão fácil. É
tremendamente complexa. Estamos dispostos a dizer que Simão Pedro, o
homem que fez a grande confissão (Mt 16:16), não era crente? Leia o
que Jesus disse a respeito dele (Mt 16:17). Contudo, não foi Pedro quem
mais tarde negou o seu Senhor, e não uma só vez mas três vezes?
E do escritor do Salmo 42, diremos que não era crente? E no
entanto, que lutas que teve!
Pão minhas lágrimas de dia
e de noite sempre são,
enquanto muitos com insistência
dizem: Onde está o teu Deus?
eu memória sempre farei
Romanos (William Hendriksen) 334
disso, e me lembrarei;
sobre mim minha alma
com tristeza derramarei.
Eu direi a Deus; minha rocha,
por que esquecido me tens?
por que ando ainda
enlutado e sem paz
pela grande opressão
e a cruel perseguição
de inimigos cada dia,
que adversários de minha alma são?
O Senhor responde a sua necessidade, pelo qual ele canta:
Por que te conturbas, alma,
e por que bramas em mim?
Confia em Deus, e tem grande calma,
porque ainda te tenho aqui
de louvar e de salmear
pelas rezas que operar
decidiu para o bem de minha alma,
que é meu Deus para provar.
(Versificação do Salmo 42 para cantar com as melodias
do Saltério de Genebra)

Quer isso dizer, então, que o crente é uma pessoa de “dupla


personalidade”? Quando se usa esta expressão para indicar uma estrutura
da personalidade composta por dois ou mais padrões de conduta, cada
uma operando independentemente da outra seria naturalmente errôneo
usá-la com relação ao tema presente. E visto que nem sempre podemos
saber em que sentido se usa tal expressão, não seria melhor evitá-la
totalmente no presente contexto?
Contudo, segundo a linguagem clara da Escritura e o testemunho de
muitos cristãos, até o crente pode experimentar uma tremenda luta entre
Romanos (William Hendriksen) 335
“o velho homem” e “o novo homem”, entre a dúvida e a confiança, entre
a confusão e a paz. Além do Salmo 42, veja-se também Sl. 77 e 73; Gl
5:17; Ef 4:22s; 6:10s; Hb 12:4. Sem dúvida, o cristão é reconfortado por
Is 26:3, “Tu guardarás em perfeita paz àquele cujo pensamento em ti
persevera”, mas a verdade é que durante sua vida terrestre a mente do
crente nem sempre persevera em Deus. Não é sempre estável e fiel.
Enquanto que a fé de Pedro esteve fixada em Jesus, ele pôde
caminhar sobre a água, “Mas ao ver o forte vento teve medo … e deu
vozes, dizendo: Senhor, salva-me!’ ” (Mt 14:29, 30)
É claro, então, que a interpretação de Rm 7:14–25 que este
intérprete formula, junto com muitos outros e com as confissões
evangélicas, deve permanecer incólume.
Não obstante, quando se compara a mente dos incrédulos com a dos
crentes, como o faz Paulo em Rm 8:5–8, o contraste é notável, visto que
no básico a mente dos crentes, a saber, a mente do Espírito, é vida e paz.
Precisamente o oposto é o certo da mente dos incrédulos, uma mente que
é hostil a Deus. E uma vez que isso é verdade, é compreensível que o
fruto desta mente ou disposição seja a morte (v. 6).
Uma mente assim está centralizada em si mesma, é egoísta, coisa
que explica o fato de que não se submete à lei de Deus. A verdade é que
enquanto continuar centralizando sua atenção em si mesma, não será,
naturalmente, sequer capaz de submeter-se a Deus. Essa gente que está
“na carne”, quer dizer, que em seus afetos, propósitos, pensamentos,
palavras e atos está basicamente controlada por sua natureza
pecaminosa, é incapaz de agradar a Deus.
É interessante e instrutivo notar com quanta frequência a Escritura,
especialmente Paulo, descreve o propósito da vida humana em termos de
agradar a Deus (Rm 12:1, 2; 14:18; 1Co 7:32; 2Co 5:9; Ef 5:10; Fp
4:18; Cl 3:20; 1Ts 4:1). Paulo ainda exorta os filhos a obedecer os seus
pais em tudo “porque isto agrada ao Senhor” (Cl 3:20); como se
dissesse: “Isto enche o coração de Deus de deleite”. O coração de Deus
Romanos (William Hendriksen) 336
não é um pedaço de gelo! Com relação a isso, veja-se o dito acima (vv.
3, 4) com referência ao envio da parte de Deus de “seu único Filho”.
Paulo, de forma explícita ou implícita, expressa sua desaprovação
por quem não agrada a Deus mas a si mesmo. Cf. Rm 15:3; 1Ts 2:15.
Como Paulo, também o apóstolo João considera que o fazer o que
agrada a Deus é a verdadeira meta da vida do crente. Ele assinala de que
modo Deus considera esse tipo de vida (1Jo 3:22). E o escritor de
Hebreus dirige a atenção de seus leitores para o fato de que sem fé é
impossível agradar a Deus (Hb 11:6).
A atenção de Paulo passa agora daqueles que estão “na carne” e que
portanto “não podem agradar a Deus”, para dirigir-se aos membros da
igreja a quem escreve. Com a calidez de coração que distingue o
verdadeiro pastor ele se dirige a eles da seguinte maneira:
9–11. Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, pelo fato de
que o Espírito de Deus habita em vós. Quem não possui o Espírito de
Cristo não pertence a Cristo. Mas se Cristo estiver em vós, embora o
corpo esteja morto por causa do pecado, o Espírito é vida devido a (sua)
justificação. E se o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os
mortos habita em vós, aquele que ressuscitou a Cristo dentre os mortos
também comunicará vida aos vossos corpos mortais por seu Espírito que
habita em vós.
O significado de toda a passagem, visto à luz do contexto que o
antecede, pode ser resumido assim:
Vocês, pelo contrário, não estão basicamente sob o controle da
pecaminosa natureza humana mas do Espírito. Vocês, portanto, não são
incapazes de agradar a Deus, visto que o Espírito de Deus habita em
vocês. (Agora, se houver alguém que por sua vida e ações demonstra não
possuir o Espírito de Cristo, tal pessoa não pertence a Cristo. Não é de
maneira nenhuma cristão). Mas se Cristo viver em vocês, então, embora
por causa do pecado o corpo deva morrer, mesmo assim, por vocês terem
sido justificados, o Espírito, que é em si mesmo vida, vive em vocês. E
se esse Espírito, ou seja, aquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos,
Romanos (William Hendriksen) 337
habita em vocês, então aquele que ressuscitou a Cristo dentre os mortos
também comunicará vida, no dia da ressurreição, a seus corpos mortais.
Ele o fará por meio do Espírito que habita em vocês.

Breve comentário sobre palavras e frases:

a. “Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito …”


Com amor Paulo assegura a seus leitores que no que respeita à
direção básica de sua vida, eles não estão sob o controle da pecaminosa
natureza humana mas sim baixo ele do Espírito. Isto implica que, falando
em termos coletivos, eles não pertencem à categoria daqueles sobre os
quais o apóstolo acaba de afirmar (v. 8) que não podem agradar a Deus.

b. “pelo fato de que ou Espírito do Deus habita em vós”.


A tradução “se o Espírito de Deus habitar em vós”, que indicaria
que Paulo não estava seguro de que o Espírito Santo habitasse
coletivamente nos corações desta gente, é incorreta. Visto o que o
apóstolo diz sobre eles em Rm 1:6, 8; 15:14, uma avaliação tão pobre de
sua parte deve ser rejeitada. 214

c. “Quem não possui o Espírito de Cristo não pertence a Cristo”.


Embora falando coletivamente o apóstolo assegurou à congregação
de Roma que ele considera que eles estão sob o controle do Espírito, que
habita neles, isto não quer dizer que qualquer membro da igreja possa
dar por sentado sua salvação, no sentido que já não seria necessário um
autoexame. Além disso, nem tudo era perfeito na igreja de Roma. Veja-
se Rm 11:17–25; 14:10–15, 19; 15:1s.

214
Por outro lado, a palavra ε_περ (= Latim, si quidem) refere-se à uma condição já cumprida. Pode
traduzir-se como “visto que”, ou “visto que”, ou “visto que”. Veja-se o uso da mesma palavra em Rm
3:30; 8:17; 1Co 15:15; e veja-se o C.N.T. sobre 2Ts 1:6.
Romanos (William Hendriksen) 338
Paulo afirma que se a vida de alguém o assinala como pessoa que
carece do Espírito de Cristo, tal pessoa não tem direito a considerar-se
cristã.
Note-se neste versículo o intercâmbio de designação entre “o
Espírito de Deus” e “o Espírito de Cristo”. Isso certamente indica que no
pensamento de Paulo Cristo era plenamente divino.

d. “Mas se Cristo estiver em vós, embora o corpo esteja morto por


causa do pecado, o Espírito é vida devido a (sua) justificação”.
Significado: não apenas é verdade que devido ao pecado o corpo de
cada um de vocês certamente vai morrer, mas também é verdade que
devido à sua justificação vocês podem estar seguros do fato de que o
Espírito, que é vida e autor da vida, habita em vocês.
A palavra Espírito, que aparece no v. 10, não deveria ser escrita
com minúscula, como se a referência fosse à entidade invisível de
qualquer pessoa, mas com “maiúscula, visto que o apóstolo certamente
está pensando no Espírito Santo. Comprovação:
(1) Nas oito instâncias em que se usa (vv. 1–9), a palavra pneuma
(palavra grega usada tanto para o Espírito divino como para o espírito
humano) refere-se ao Espírito Santo. No v. 11 o apóstolo se refere duas
vezes a este Espírito (o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os
mortos”, “seu Espírito que habita em vós”). Seria muito estranho, então,
que o pneuma intermediário (aqui no v. 10) tivesse um significado
diferente.
(2) O pneuma do v. 10 é novamente mencionado no v. 11. Note-se
o parecido: o v. 11 refere-se ao Espírito doador da vida, naturalmente, o
Espírito Santo. Isto corresponde ao “pneuma de vida” do v. 10.
(3) Também no v. 2 do presente capítulo chama-se ao Espírito
Santo “o Espírito da vida”. Do mesmo modo em Jo 14:6 Jesus se
denomina a si mesmo “a vida”.
Romanos (William Hendriksen) 339
e. “E se o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos
habita em vós, aquele que ressuscitou a Cristo dentre os mortos
também comunicará vida aos vossos corpos mortais por seu
Espírito que habita em vós”.
Os vv. 9–11 deixam claro que as designações “Espírito”, “Espírito
de Deus”, “Espírito de Cristo”, “o Espírito daquele que ressuscitou a
Jesus dentre os mortos” e “seu Espírito que habita em vós”, referem-se
todas ao mesmo Espírito Santo. A variedade de títulos dista de ser de
escasso significado. Indica a gloriosa unidade que existe entre Pai, Filho
e Espírito Santo, uma unidade que não é só de essência (unidade
ontológica) mas também de operação em benefício de nossa salvação.
Do mesmo modo, Jo 14:26 nos informa que o Pai ia enviar o
Espírito Santo; e Jo 16:7 que o Filho o enviaria. Não há aqui
contradição, mas uma gloriosa harmonia. Tome nota-se de Jo 14:16, “Eu
rogarei ao Pai, e ele vos dará … o Espírito da verdade”. Também Jo
14:26, “O Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome”.
No v. 11 o sujeito: “Aquele que ressuscitou a Jesus — ou Cristo —
dentre os mortos”, refere-se, naturalmente, ao Pai. Não é uma
consequência lógica de passagens tais como Rm 6:4; Gl 1:1 e Ef 1:20
que na atividade de ressuscitar o Salvador dentre os mortos foi o Pai
quem, pode-se dizer, tomasse a iniciativa?
Mas note-se quão estreitamente relacionadas estão as outras duas
pessoas da Santíssima Trindade com o Pai e por esta razão uma com a
outra. Que o Pai age por meio do Espírito é algo que se afirma
claramente no v. 11. Que até o próprio Jesus não permaneceu totalmente
passivo em Sua ressurreição está implícito em Jo 10:17, 18. É Ele quem
reclama para si o poder não só de pôr sua vida, mas também de voltar a
tomá-la. Além disso, o mesmo que em Rm 8:11 é descrito como o
Espírito do Pai, é Ele que no v. 9 é chamado Espírito de Cristo. De fato,
como se fosse num mesmo alento, o Espírito do Pai é chamado no v. 9
Espírito de Cristo. A relação entre Pai, Filho e Espírito Santo é tão
Romanos (William Hendriksen) 340
estreita, a união tão íntima e indissolúvel, que é impossível desonrar o
Filho sem desonrar também o Pai e o Espírito Santo. Cf. Jo 5:23.
Esta verdade está carregada de significado prático. Vivemos num
tempo em que em alguns círculos evangelísticos se mostra um
desproporcionado interesse por Jesus, como se a honra e a glória só
pudessem ser adjudicados a Ele. Outros, por sua vez, cheios de um tipo
errado de ardor ecumênico, que procura unificar todos os corpos
religiosos numa grande igreja mundial, minimizam a obra do Salvador e
enfatizam que todos os homens são irmãos, visto que Deus é Pai de
todos eles. E um terceiro grupo, que ultimamente se mostra muito em
voga, engrandece os dons carismáticos e não podem deixar de falar do
Espírito.
Como o demonstra Rm 8:9–11 e como o comprova todo o resto da
Escritura, é o triúno Deus, a saber, Pai, Filho e Espírito Santo, o único e
verdadeiro Deus, quem deveria ser o objeto central de nosso amor e
adoração.
12, 13. Portanto, irmãos, temos uma dívida, porém não com a carne,
de viver de acordo com sua norma. Porque se viveis segundo sua norma
estais condenados a morrer; mas se pelo Espírito fazeis morrer as
vergonhosas obras do corpo, vivereis.
Neste ponto há uma transição da exposição à exortação; da
concentração nas bênçãos outorgadas pelo Doador ao enfoque nas
obrigações em que incorrem os recipientes, Paulo inclusive.
No entanto, os recipientes não são apresentados de maneira
nenhuma como pessoas capazes de agir por si mesmas. A salvação não é
um assunto de percentagens, digamos meio a meio. É um dom de Deus
do princípio até o fim. É por meio do Espírito que os filhos de Deus
devem fazer morrer as vergonhosas obras do corpo (v. 13), que são
dirigidos (v. 14) e que são movidos a clamar: “Aba!” (v. 15). É do
Espírito de quem recebem a certeza de que certamente são filhos de
Deus (v. 16). Mas tudo isso não significa que os recipientes destes
favores não devam pôr-se em ação. Eles têm uma obrigação a cumprir;
Romanos (William Hendriksen) 341
mas, ainda assim, eles não podem cumpri-la por seu próprio poder.
Como, então? Como já se indicou, “pelo Espírito”, e veja-se também Fp
2:12, 13.
O apóstolo fixa a atenção dos leitores nesta obrigação ao dizer
“Portanto”; em outras palavras, visualiza todas as bênçãos que nós
recebemos, que recebemos e que vamos receber, que se estendem de
uma eternidade até a outra (vejam-se vv. 29, 30), nós — note-se como
ele mesmo se inclui, uma sugestão para pastores, etc. — temos uma
obrigação.
Não temos esta obrigação para com a carne (natureza humana
corrupta), no entanto, para viver de acordo com sua norma. Que não
devemos à carne favor algum é claro do fato de que foi precisamente por
causa dessa carne que a lei foi incapaz de nos salvar (Rm 8:3). A verdade
é que ter a mente ou disposição da carne significa a morte (v. 6), um
pensamento que Paulo, de forma um pouco diferente, repete no v. 13, ao
dizer: “Se viverdes segundo sua norma, estais condenados a morrer”. 215
Daí que, em vez de adular a carne, esta inimiga deve ser morta. Ou não
afirmou isso claramente o apóstolo já em Rm 6:1, 6, 11, 12–14?
É prometida uma rica recompensa a quem “pelo Espírito” — visto
que não têm poder próprio — dão morte às vergonhosas obras 216 do
corpo: eles viverão, e o farão, naturalmente, da maneira mais gloriosa;
veja-se sobre Rm 2:7.
Para Paulo tudo isso não é um fragmento de teologia abstrata, seca
como o pó. Ao contrário, seu coração está enraizado nesta epístola. Ele
ama estes romanos e anela do modo mais intenso evitar que se
extraviem. Tanto assim, que também deseja que eles evitem que outros
façam a escolha errada. Que sua alma está na verdade profundamente
comovida é claro do fato que ele volta a usar aqui o carinhoso termo

215
Note-se μέλλετε _ποθυ_σκειν. O futuro perifrástico enfatiza a inevitabilidade de sua condenação.
216
πράξεις, ac. pl. de πράξις, utilizado aqui num sentido desfavorável (cf. Lc 23:51; At 9:18), coisa
que se dá também frequentemente com o verbo cognato πρ_σσω, veja-se sobre Rm 7:15.
Romanos (William Hendriksen) 342
“irmãos” (v. 12). Veja-se o que se disse anteriormente com relação a esta
palavra (Rm 7:1).
Note-se o agudo contraste: os que vivem segundo a norma da carne
estão condenados a morrer. Os que, por meio do Espírito, estão fazendo
morrer as vergonhosas obras do corpo viverão.
A Escritura está cheia de ilustrações com relação a

A alternativa inescapável

Eis que ponho hoje diante de vós

uma bênção maldição (Dt 11:26s)


vida e prosperidade morte e destruição (Dt 11:26s)
construir a casa sobre a rocha construí-la sobre a areia (Mt 7:24–27)

Muitos outros exemplos sem muito esforço podem ser adicionados.


Entre eles estariam aqueles a que é feita referência em passagens como
Sl. 1; Mt 25:31–46; 2Co 2:16; Gl 5:19–22; 1Jo 4:2, 3; Ap 22:14, 15.
Um fato que se deve enfatizar é que a escolha certa é algo que
realmente deve ser feito porque é o lugar onde se vai passar a eternidade.
O que é ainda mais importante é que a possibilidade de vida de uma
pessoa alcance o que deve ser seu objetivo depende, em certo sentido, de
sua decisão (1Co 10:31; cf. 1Co 7:32; Fp 1:20, 21; 1Ts 4:1). “Escolhei
hoje a quem sirvais, se aos deuses a quem serviram vossos pais quando
estavam do outro lado do rio … mas eu e minha casa serviremos ao
Senhor” (Js. 24:15).
Aqueles, e somente aqueles, que pelo Espírito fazem morrer as
vergonhosas obras do corpo podem alegrar-se no fato de ser dirigidos
pelo Espírito, e que portanto viverão verdadeiramente.
14. Porque todos os que são dirigidos pelo Espírito de Deus, estes são
filhos de Deus.
Romanos (William Hendriksen) 343
A relação entre o v. 13b. e o v. 14b. é clara: note-se a palavra
“porque”. Em outras palavras, os que estão fazendo morrer as
vergonhosas obras do corpo podem fazê-lo porque eles, por ser filhos de
Deus, são constantemente dirigidos pelo Espírito de Deus.

Sendo dirigidos pelo Espírito


1. Seus beneficiários
Uma ilustração pode ser útil. Se o fato que se vai relatar aconteceu
ou não, não vem ao caso. Cada um pode formar sua própria opinião
sobre o assunto. Basta dizer que quem narrou a história estava
convencido de sua historicidade.
Aconteceu em 1834 ou pouco tempo depois. A perseguição
religiosa estava desatada na Holanda. Durante um desses dias, ao
entardecer, o fiel pastor da aldeia X recebeu informação que certo
membro de sua congregação, uma viúva devota, estava seriamente
doente e apreciaria muito uma visita pastoral.
O pastor decidiu não esperar até a manhã seguinte, mas sair
imediatamente a pé. O caminho da casa pastoral até a casa da viúva era
de uns três quilômetros e passava por um território muito arborizado,
onde homens que desejassem cometer um assassinato podiam facilmente
ocultar-se. Mas o pastor chegou são e salvo à casa da viúva. Sua visita
foi muito apreciada e fortaleceu grandemente à senhora doente.
Na viagem de volta à casa pastoral … nada sucedeu. Aparentemente
não houve emboscada alguma.
Passaram-se alguns anos. E um dia dois homens, que por meio dos
fiéis esforços deste mesmo pastor haviam recentemente passado das
trevas à luz, disseram-lhe o seguinte:
“Lembra você que faz alguns anos — numa sexta-feira pela tarde
— você foi visitar a viúva que vive na casa que está do outro lado deste
bosque?” Quando o pastor respondeu que sim, eles prosseguiram: “Quais
eram esses dois homens, que vestidos de brilhante armadura que
Romanos (William Hendriksen) 344
caminhavam a cada lado de você, cuidando-o?” O assombrado pastor
respondeu: “Eu estava sozinho, amigos; estava completamente sozinho;
nem ao ir nem ao voltar me acompanhou ninguém”. Os outros dois
disseram então: “Isto é muito estranho, porque os vimos muito bem. Eles
nos assustaram, de modo que fugimos. E agora, tendo sido trazidos ao
conhecimento de Cristo por meio do seu ministério, estamos alegres de
que fomos impedidos de realizar nosso plano sinistro”.
Quem relatou esta história estavam seguros que este ministro deve
ter sido um daqueles poucos e muito especiais “santos” de Deus que,
guiados por seu Espírito, foram objetos de uma proteção divina
excepcional.
No entanto, esta opinião, que em certos círculos religiosos era
bastante popular — se tal for o caso ainda agora é algo que ignoro —
não é realmente o que Paulo tinha em mente quando escreveu Rm 8:14.
A direção espiritual da qual fala não é de maneira nenhuma um dom do
Espírito para uns poucos escolhidos. Tem que ver com todo cristão.
Todo filho de Deus é dirigido pelo Espírito. E todo aquele que é dirigido
pelo Espírito é um filho de Deus. 217
Os dirigidos pelo Espírito são aqueles a quem se descreve como os
que estão em Cristo Jesus (Rm 8:1), os que andam segundo o Espírito (v.
4), aqueles em quem habita o Espírito (vv. 9, 11), e que fazem morrer as
vergonhosas obras do corpo (v. 13).

2. Sua natureza
O que significa, então, a direção do Espírito Santo? E notamos que
passamos assim da voz passiva à ativa. Significa a santificação. Trata-se
da influência constante, eficaz e benéfica que o Espírito Santo exerce nos
corações e vidas dos filhos de Deus, capacitando-os cada vez mais a

217
Há um capítulo excelente sobre “O Espírito Santo e a guia”, escrito num estilo muito interessante,
no livro de E. H. Palmer El Espíritu Santo, Grand Rapids, 1958, pp. 101–117.
Romanos (William Hendriksen) 345
esmagar o poder do pecado que habita neles e para andar livre e
alegremente pelo caminho dos mandamentos de Deus.

A influência que o Espírito Santo exerce é:

a. Não esporádica, e sim constante.


Não é introduzida na vida dos filhos de Deus uma quantidade, em
momentos de grande necessidade ou perigo. Pelo contrário, é uniforme e
constante, como o indica o tempo do verbo que se usa aqui em Rm 8:14.
Os crentes são dirigidos 218 pelo Espírito.

b. Não é (na sua primeira intenção) protetora, e sim corretiva.


Em todo o contexto nada é dito com relação a um cuidado dos
filhos de Deus que evite que recebam dano pessoal, nem tampouco sobre
mantê-los fora de perigo ao viajar. Por outro lado, o contexto que
antecede imediatamente esta passagem refere-se a fazer morrer as
vergonhosas obras do corpo, fazendo-o “por meio do Espírito”. 219

c. Não meramente guia, mas também controla.


Ser dirigido pelo Espírito significa algo mais que ser guiado,
embora, por certo, o Espírito seja também nosso Guia (Jo 16:13). Cf. Mt
15:14; Lc 6:39; At 8:31. Mas a direção que o Espírito proporciona é
muito mais que uma mera indicação com relação ao rumo a seguir. A
ideia que nos traz à mente não é tanto a do guia índio que indicou a
passagem que permitiu o cruzamento da cordilheira, mas a da pessoa que
trouxe o cego (de Jericó) a Jesus (Lc 18:40). Simplesmente lhe indicar o

218
_γονται, 3ª. pes. pres. ind. (continuativo) de _γω, que aqui, como em muitos outros casos, significa
guiar, dirigir.
219
Seja como for, lhe peça a Deus que lhe cuide e lhe guie em suas viagens. Mas esse não é o tema
aqui em Rm 8:14. No entanto, veja-se sobre Rm 15:30–33.
Romanos (William Hendriksen) 346
caminho para não o teria ajudado. Quando o Espírito Santo dirige os
crentes, Ele se transforma na influência reitora de suas vidas, levando
enfim à glória.

d. Por outro lado, ele não sufoca ou reprime, mas ajuda e anima.
Quando o Espírito Santo guia o filho de Deus, a responsabilidade e
atividade deste último não é cancelada ou reprimida. O cego de Jericó
não foi levado nos ombros a Jesus. Ele caminhou por si mesmo. É
precisamente como o definiu Warfield: “Embora não haja dúvida de que
é o Espírito Santo quem nos mantém no caminho e nos leva enfim à
meta, somos nós os que damos cada passo do caminho; são nossos
membros os que se fatigam pelo esforço; nossos corações os que
desfalecem … nossa fé a que revive nossa fraca energia, nossa esperança
a que instila nova coragem em nossos corações, enquanto nos
esforçamos por subir a íngreme pendente”. 220

3. Seus frutos
Estes são tão numerosos que seria impossível mencionar todos.
Como resultado, não tentaremos fazer uma lista de todos eles, visto que
isto seria impossível. É precisamente por esta razão que em Gl 5:22, 23
Paulo, depois de dizer: “Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz,
paciência, benignidade, bondade, fé, mansidão, moderação;” continua e
diz: “contra tais coisas não há lei”. O que ele quer dizer é: “A lista que
dei é incompleta; por isso digo ‘contra tais coisas’, querendo dizer:
contra estes frutos e outros”. Outra descrição que resume estes frutos é,
sem dúvida, a seguinte: “aquele que semeia para o Espírito, do Espírito
colherá vida eterna” (Gl 6:8), porque, quem pôde dar alguma vez uma
definição da vida eterna da qual nada faltasse? Um jardim pode conter
uma ampla variedade de árvores frutíferas: laranjeiras, damasqueiros,

220
op. cit., p. 555.
Romanos (William Hendriksen) 347
macieiras, pereiras, etc. Contudo, cada árvore produz somente uma
classe de fruta. Mas a árvore da graça, regado pelo Espírito da vida,
produz todo tipo de fruto espiritual, e à parte desse Espírito nunca se
produziu nenhum fruto espiritual.
O fruto ao qual a epístola de Paulo aos Romanos agora centraliza
nossa atenção é o da certeza da salvação, mais precisamente, o da
certeza de nossa adoção como filhos de Deus.
15, 16. Porque não recebestes um espírito de escravidão para vos
encher outra vez de temor, mas recebestes o Espírito de adoção, que nos
move a exclamar: “Aba!”, quer dizer, “Pai!” Este Espírito dá testemunho
com o nosso espírito de que somos filhos de Deus.

Bendita certeza
É possível resumir o significado desta passagem como segue:
Vocês, os que são dirigidos pelo Espírito, não são escravos, mas filhos.
Tendo sido adotado como filhos, vocês, naturalmente, já não estão cheios
do espírito de escravo, o temor. Já não estão oprimidos pelo medo como
o estavam quando ainda viviam no paganismo ou no judaísmo, com sua
ênfase em todas as regras que é preciso observar para salvar-se. Muito
pelo contrário, vocês receberam o Espírito Santo, que transforma
escravos em filhos. Esse Espírito nem sequer pensaria em lhes encher
outra vez de temor. Esse Espírito nos enche do sentido de liberdade e
confiança de tal modo que, ao nos aproximar de Deus, proferimos essa
exclamação de feliz reconhecimento, de doce resposta, de esmagadora
gratidão e confiança filial: “Aba!” (Pai). Na verdade, o que sucede é que
esse Espírito confirma aquilo do qual nossas próprias almas regeneradas
já testificam, ou seja, que nós os crentes somos filhos de Deus, visto que
fomos adotados por Ele.
Entre os diversos assuntos com relação aos quais há opiniões
divergentes encontram-se estes três:
1. Ao mencionar a adoção, que práticas de adoção tinha no fundo
de sua mente o apóstolo: (a) as romanas, ou (b) as judaicas?
Romanos (William Hendriksen) 348
Quem favorece a primeira alternativa sinaliza que a “adoção” como
instituição legal nem sequer existia entre os hebreus e que em todo o
Antigo Testamento a palavra nunca aparece. No mundo romano, por
outro lado, este costume era muito comum. Foi assim que em seu
testamento Júlio César nomeou Otávio (chamado mais tarde Imperador
Augusto) como “filho e herdeiro”. Veja-se C.N.T. sobre Lc 2:1. Nas
inscrições, as palavras “filho adotivo” ocorrem com grande frequência.
Não obstante, convém ter em mente que (a) o propósito desta
prática de adoção não era em geral filantrópico, mas egocêntrico: a
perpetuação da posse de propriedade e do privilégio político e/ou social
na linha dos próprios descendentes; e (b) seus beneficiários eram varões
— a adoção legal não se estendia às mulheres.
Quão completamente diferente é o caráter da adoção como o
registra o Antigo Testamento! É que há testemunhos de adoção
essencial, embora não formal ou técnica, nesse sagrado documento.
Acaso não “adotou” a filha de Faraó a Moisés (Êx 2:10), embora ele
fosse apenas (em “termos humanos”) uma criança indefesa? E não criou
Mardoqueu a sua prima, uma jovem chamada Ester (Et 2:7)? Há também
uma passagem do Novo Testamento que de modo resumido reproduz o
ensino do Antigo Testamento com relação à adoção — a saber, a adoção
divina — e é, sem dúvida, aquela que achamos em 2Co 6:17, 18:
“Retirai-vos do meio deles, separai-vos, diz o Senhor; não toqueis
em coisas impuras; e eu vos receberei, serei vosso Pai, e vós sereis para
mim filhos e filhas” [RA]
Note-se com o que beleza reflete esta passagem neotestamentária o
sentido das seguintes passagens: 2Sm 7:8, 14; Sl. 27:10; Is 43:6; e Os
1:10. Note-se especialmente que tanto Is 43:6 como 2Co 6:17, 18
mencionam a ambos, “filhos e filhas” como objetos do amor adotivo
desse Deus.
É claro, por conseguinte, que quando em Rm 8:15 e em Gl 4:5
Paulo utiliza o termo “adoção”, a palavra e a posição legal são tomadas
Romanos (William Hendriksen) 349
da prática romana, mas a essência vem da revelação divina no Antigo
Testamento.

2. Deve ser interpretada a exclamação “Aba!” como expressão do


crente individual ao dirigir-se ao seu Deus ou como a exclamação
coletiva (talvez congregacional ou litúrgica) da igreja reunida para a
adoração?
Uma forma da palavra Aba, que quer dizer “pai”, era usada
originalmente pelas crianças menores. Mais tarde seu uso tornou-se
muito mais generalizado. Trata-se precisamente da mesma palavra
proferida também por Jesus quando, em profunda agonia, ele derramou
sua alma diante de Seu Pai celestial no jardim do Getsêmani (Mc 14:36).
Nesta palavra a ternura filial, a confiança e o amor encontram sua
expressão combinada.
Esta era, naturalmente, uma palavra muito pessoal, quer dizer, uma
palavra por meio da qual se expressa a íntima relação espiritual entre o
crente e seu Deus. Como tal, ela nos lembra uma frase de um conhecido
hino:
E o encanto que acho nele ali
Com ninguém ter poderei.
De A solas al muerto de Austin Miles
Trad. Vicente Mendoza
Há quem criticou este hino e em particular esta frase do mesmo.
Penso, no entanto, que esta crítica é injusta. Não é verdade que entre
cada crente e seu Deus existe uma relação muito pessoal; ou, por dizê-lo
de maneira diferente, que Deus, além de amar e cuidar de seus redimidos
de um modo coletivo, também entra numa comunhão pessoal única com
cada um deles, de tal modo que, movida pelo Espírito Santo (Gl 4:6), a
pessoa, ao derramar seu coração diante de Deus, exclama: “Pai”?
Naturalmente, o uso muito pessoal desta palavra na oração
individual, inclusive no caso do Pai Nosso, de maneira nenhuma exclui a
possibilidade de que seja usada também coletivamente na congregação
Romanos (William Hendriksen) 350
reunida para a adoração, assim como nós usamos hoje o Pai Nosso tanto
coletiva como individualmente. Por ser um hebreu de hebreus (Fp 3:5),
Paulo deve ter sentido carinho pelo idioma falado pelos judeus ao
retornar das terras de seu cativeiro, ou seja, o aramaico, aparentado com
o hebraico (cf. At 21:40). Para falar a verdade, o aramaico era um idioma
muito importante naquele então, falado não somente pelos judeus, mas
por outras pessoas, até por muitos que viviam longe das fronteiras da
Palestina. Também Jesus falou o aramaico e é provável que em Seu
frequente ensino com relação ao Pai, Ele usasse com frequência o termo
Aba. Seus discípulos, como resultado, entesouraram o uso desta palavra.
Assim que entrou na linguagem da igreja primitiva. É lógico, então, que
ao escrever a uma ou mais igrejas que em sua maior parte estavam
formadas por gente que não era judia, a palavra Aba devia ser traduzida
pela palavra grega _ πατήρ (Pai). É fácil entender que Marcos, ao dirigir-
se a uma auditório de fala grega, escrevesse “Aba!”, acrescentando
rapidamente a palavra grega para “Pai”; e assim o fez também Paulo, e
provavelmente pela mesma razão. 221

3. Menciona Rm 8:16 uma testemunha ou duas testemunhas?


Há quem diga que Paulo na verdade menciona somente a uma
testemunha, e que por conseguinte a tradução correta do v. 16 é: “O
próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de
Deus”. Assim, ou ao menos desta maneira, traduzem a Vulgata, Beck,
Cranfield e a RA 199. O raciocínio à raiz desta interpretação é que o
verbo que se usa no original, e que em geral se traduz dar testemunho
juntamente, 222 ou testificar a favor de (alguém), pode também significar
assegurar e que nosso espírito em e por si mesmo não tem direito a dar
testemunho de que somos filhos de Deus. Para ser justos para com

221
Aqui (Rm 8:15; cf. Mc 14:36; Jo 20:28) a forma do nominativo articular indica um vocativo. Veja-
se Gram. N.T., p. 261.
222
συμμαρτυρε_, 3ª. pes. s. pres. ind. de συμμαρτυρέω.
Romanos (William Hendriksen) 351
aqueles que têm esta posição, o ideal seria que se lesse o que o próprio
Cranfield diz nas pp. 402, 403 de seu excelente comentário.
Não obstante, a verdade é que em cada uma das outras ocasiões em
que Paulo usa este verbo são dois os que dão testemunho: um
testemunha juntamente com o outro. Assim em Rm 2:15 o que está
escrito no coração do homem é uma testemunha; o outro é a voz de sua
consciência. Do mesmo modo, em Rm 9:1 Paulo mesmo testemunha que
a incredulidade de Israel é para ele uma pesada carga. Sua consciência o
confirma e ao fazê-lo demonstra ser a segunda testemunha. Não vejo
nenhuma razão, então, para alterar a tradução de Rm 8:16 que foi
adotada, com leves variantes, pela maioria dos tradutores, ou seja: “O
próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de
Deus”.
O modo em que o Espírito faz isso é algo que Paulo não indica.
Segundo alguns, o Espírito testifica conjuntamente com nossa
consciência regenerada exercendo uma influência direta sobre o coração
e a mente. Veja-se Gl 4:6. Outros insistem em que Ele opera aplicando a
Palavra ao coração e à mente dos crentes de forma pessoal e também à
igreja como unidade. Vejam-se Jo 8:47; 16:13. Não poderiam ambas as
posições estarem certas?
Em meio destes debates e diferenças de opinião corremos o perigo
de nos esquecer de quão maravilhoso é tudo isso. Pensemos nisso:
a. À custa da morte — e que morte! — de Seu próprio Filho, Deus
decidiu nos salvar (Perceberam como em Rm 8:15 Paulo muda, como o
faz muitas vezes, do vós ao nós?)
b. Como se isso não fosse suficiente, Deus ainda nos adota, para
que sejamos Seus amados filhos e filhas (Rm 8:15).
c. Seu amor infinito e terno vai ainda mais além, visto que não só
nos salva e nos torna Seus filhos, mas também deseja que saibamos que
estas grandes bênçãos nos foram outorgadas. Por meio de duas
testemunhas Ele nos comunica Sua «bem-aventurada certeza» (Rm
8:16). Ele salva, adota, assegura!
Romanos (William Hendriksen) 352
“Vede que amor nos deu o Pai para que sejamos chamados filhos de
Deus! E isso é o que somos!” (1Jo 3:1).
E a glória de ser filhos estende-se logicamente à de ser herdeiros,
como Paulo indica a seguir:
17. E se filhos, então herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com
Cristo; visto que o fato de que agora compartilhamos seu sofrimento
significa que (mais adiante) compartilharemos sua glória.

Se filhos, então herdeiros


A posição de ser filho implica a de ser herdeiro, coisa que, por sua
vez, implica a existência de uma herança reservada para nós. Que esta
herança está reservada para o futuro é algo que Paulo esclarece ao dizer:
“… compartilharemos sua glória”. Nos vv. 11 e 13 o apóstolo já acendeu
a esperança daqueles a quem se dirige. Ele tinha sinalizado glórias por
vir tanto para o corpo como para a alma. Agora se dedica a ampliar o
tema. Diz-nos algo com relação ao testador, à herança e aos herdeiros.

A. O testador
Para que haja uma herança deve haver alguém que a legue. Nossa
passagem não deixa dúvida com relação à identidade deste Testador. Ali
se lê-se “herdeiros de Deus”, querendo dizer que, naturalmente, Deus é
esse testador. Também se define claramente que Cristo é o herdeiro
principal e que “nós”, diz Paulo, somos co-herdeiros com Cristo e por
isso destinados a compartilhar Sua glória. 223
Ao antecipar a recepção de uma herança, muito depende do caráter
do testador. Assim que geralmente perguntamos: “Que classe de pessoa

223
A confusão surge quando — levando em conta que Deus é num sentido a possessão do crente (Sl.
73:25, 26; Lm. 3:24) — injeta-se na interpretação de Rm 8:17 a ideia que o apóstolo está
considerando a Deus como a herança do crente. Tal como o assinalo, o contexto aponta numa direção
diferente. A herança que aqui se descreve não tem que ver com algo ou alguém que já p oseemos
agora, mas sim tem que ver com o futuro.
Romanos (William Hendriksen) 353
era o testador? Quando faleceu? Era rico ou era pobre? Era justo ou
injusto?
No caso presente as respostas são das mais alentadoras. Os
testadores humanos morrem. Isto significa que uma herança meramente
terrestre é limitada. Uma vez acabada, não se podem acrescentar mais
bens. Mas o testador que Paulo tem em mente existe “de eternidade a
eternidade”. Por conseguinte, nossa herança não se acabará; de fato, nem
sequer diminuirá jamais.
Além disso, este Testador é rico. Não somente é verdade que toda a
prata e todo o ouro são Seus (Ag 2:8) e que é dono de todo animal do
bosque, e do gado nas mil colinas (Sl. 50:10), mas também é um fato que
suas riquezas não podem ser medidas. Por outro lado, Ele é tão generoso
que tudo o que demanda de nós, está mais que disposto a nos outorgar.
Por exemplo, Ele demanda que ponhamos nossa confiança nEle (Jo
3:16). Esta mesma confiança ou fé é também Seu dom para nós. Veja-se
C.N.T. sobre Ef 2:8.
Um elemento muito comum da experiência humana é o
descontentamento com relação às condições de um testamento. Mas o
testador que Paulo tem em mente é tão justo e equânime que naquele dia
futuro em que os filhos de Deus tomem posse de sua herança, dirão: “Os
limites têm caído em lugares prazenteiros para mim; e certamente a
minha é uma herança deleitosa” (Sl. 16:6).

B. A herança
Há dois fatos com relação a esta herança que já se esclareceram: (a)
que corresponde ao futuro e (b) que consiste em riquezas que
possuiremos “com relação a Cristo”.
Que em sua plenitude “a herança dos santos em luz” (Cl 1:12) é na
verdade uma bênção que corresponde ao futuro é algo que se deduz
também do fato que Rm 8:18 fala de uma glória “que será revelada em
nós”. Será, além disso, uma glória que toda a criação antecipa (v. 19).
Romanos (William Hendriksen) 354
Segundo o Apocalipse, junto com Cristo herdaremos um nome
novo (Ap 3:12) e uma coroa de ouro (Ap 4:4; cf. 14:14). Com Ele
reinaremos (Ap 20:4). Ainda mais, até nos sentaremos com Cristo em
Seu trono (Ap 3:21). Claro, todo esta linguagem é simbólica. Porém não
indicam estas passagens que a bênção da comunhão com Cristo, que em
princípio já é nossa porção mesmo agora, será nossa num grau muito
maior então?
Além disso, esta bem-aventurança futura não estará limitada à alma.
Também terá que ver com o corpo. Levaremos a imagem do celestial
(1Co 15:49). Para mais quanto a este tema, veja-se mais abaixo sobre o
v. 23.
Junto com esta transformação do corpo e da alma podemos esperar
a transformação do universo. A própria criação será liberta da escravidão
da corrupção. Veja-se sobre vv. 19–22.
O que fará com que isto seja ainda mais maravilhoso é que em
íntima comunhão com o Salvador cada um dos redimidos herdará estas
riquezas juntamente com todos os outros (Ef 3:18; 2Tm 4:8) e com o
objetivo de glorificar ao triúno Deus pelos séculos dos séculos.
Além disso, deve enfatizar-se que esta glória futura do corpo e da
alma, além de ser de fato um dom da graça soberana de Deus, é também
mais que um dom. É uma herança, fato que com relação ao que nos
ocupa aqui implica nada menos que (a) a mesma será possessão dos
filhos de Deus por direito próprio, um direito estabelecido pelo
sacrifício de Cristo; e (b) é inalienável (1Pe 1:4; cf. 1Rs 21:3, 4).

C. Os herdeiros
Paulo diz: “se filhos, então herdeiros”.
Se filhos, não “se inimigos”. Mesmo entre aqueles que desejam ser
considerados crentes há os que são na verdade “inimigos da cruz de
Cristo” (Fp 3:18). Enquanto seguirem sendo inimigos, a herança não lhes
corresponde.
Romanos (William Hendriksen) 355
Se filhos, não “se escravos”. Há quem serve a Cristo exteriormente,
não interiormente, não motivados por amor e confiança, não de todo
coração. Pense-se nos gálatas (Gl 3:1s.), em Ananias e Safira (At 5:1),
em Demas (2Tm 4:10) e em Diótrefes (3Jo 9).
Se “filhos”, então herdeiros; e se não, não. Isso está perfeitamente
em consonância com o ensino de Cristo (Lc 18:17).
Mas, como eu sei que sou filho? À luz da presente passagem a
resposta é: “Eu sei que sou filho de Deus se estiver disposto, em caso
que a necessidade o demande, a suportar sofrimentos por amor de
Cristo”. (Veja-se Mt 5:11, 12; 10:22, 39; 24:9; Mc 8:35; 13:13; 1 P.
4:16).
Quando sofremos como crentes, então as aflições de Cristo
rebalsam para nós, como fica claramente indicado nas seguintes
passagens: Mt 10:25; Jo 15:18–21; At 9:4, 5; 2Co 1:5, 10; Gl 6:17; Fp
3:10; 1Pe 4:13. Não há nada que possamos acrescentar ao sofrimento
redentor de Cristo por nós, mas por meio de nossa disposição a sofrer
por amor dEle somos levados mais perto do coração do Salvador.
Paulo supõe que a igreja à qual se dirige está certamente disposta a
sofrer por Cristo, assim como o próprio apóstolo sofre constantemente
tal aflição. É por isso que diz: “… visto que o fato de que agora
compartilhamos seu sofrimento significa que mais adiante
compartilharemos sua glória”. 224 Mas responda cada membro de forma
pessoal com relação a si mesmo a pergunta: “Estou disposto a sofrer
como crente?” Não será a razão pela qual alguns dizem ousadamente:
“Nunca sofri por Cristo”, precisamente que são crentes tão frouxos … se
é que são, de fato, crentes?
O sofrer como crente assume muitas formas. Não significa que
nossa experiência deva ser como a de Policarpo ou como a de João Huss.
Hoje em dia um crente poderia perder seu trabalho por recusar cumprir
tarefas desnecessárias no dia do Senhor, porque diz Não quando é

224
Note-se novamente aqui ε_περ, como no v. 9. Veja-se a nota 214.
Romanos (William Hendriksen) 356
tentado a participar de algum negócio sujo, ou chega à decisão de não
contrair casamento com um incrédulo, ou insiste em honrar a Palavra de
Deus na sala de aula. Quantos não foram expulsos de suas posições nas
escolas, na igreja ou no governo pela posição que sustentavam com
relação à verdade?
É algo que consola e fortalece saber que todos os que compartilham
os sofrimentos de Cristo ouvirão finalmente de seus lábios: “Muito bem,
servo bom e fiel. Entra no meu repouso”.
18. Porque considero que os sofrimentos deste tempo presente não
são dignos de ser comparados com a glória que será revelada em nós.

O SOFRIMENTO E A GLÓRIA UMA COMPARAÇÃO


A palavra “porque” indica que o que segue é uma explicação e
ampliação adicional da glória a que se fez referência no versículo que
antecede.

A. Os dois elementos comparados


“Considero (ou estimo)”, diz Paulo, dizendo na verdade menos do
que quer significar, 225 visto que o que ele realmente quer dizer é: «Estou
firmemente convencido».
Firmemente convencido com relação a quê? Pois com relação a que
os sofrimentos do tempo presente não são dignos de ser comparados com
a glória que será revelada em nós. É evidente que o apóstolo aparece
como se tivesse em sua mão uma balança ou báscula. Como sempre, a
mesma tem dois pires. Em um ele coloca “os sofrimentos do tempo
presente”; no outro “a glória que será revelada em nós”.
O primeiro (o sofrimento) é resultado do pecado. De não tivesse
havido pecado, os seres humanos não teriam que ter sofrido (Gn 3:16–

225
O verbo é λογίζομαι, cf. λόγος no sentido de levar conta; dali, levar em conta (O amor não tem em
conta o mal recebido, 1Co 13:5); e dali: contar, considerar, etc. Às vezes até chega a significar
imputar uma qualidade à uma pessoa que em e por si mesma não a possui, veja-se sobre Rm 4:3.
Romanos (William Hendriksen) 357
19). A segunda (a glória) é o resultado da graça. No que tem que ver com
os filhos de Deus, o primeiro é temporal, a segunda sem fim.
Que tipo de sofrimentos Paulo tem em mente? Os que se
experimentam como resultado de nossa relação com Cristo? Por certo
que estes sofrimentos estão incluídos. De outro modo não haveria
vínculo entre os vv. 17 e 18. Contudo, não é aconselhável limitar a
palavra “sofrimentos” como aqui a emprega, a tais aflições. Como o
indicam os vv. 19–23, 28, 38, 39 com toda clareza, também se incluem
outras aflições. O apóstolo pensa em sofrimentos em geral; incluindo
como resultado a dor (física e mental), a enfermidade, o desengano, o
desemprego, a pobreza, a frustração, etc. Isto também se depreende do
fato que ele usa a muito geral expressão “os sofrimentos deste tempo
presente”, quer dizer, “desta era presente”, esse “tempo” ou “era” que se
estende até a segunda vinda de Cristo e conclui com ela. 226
E o que diremos da glória da qual Paulo fala? Está se referindo às
bênçãos do estado intermediário; quer dizer, às alegrias beatíficas que as
almas dos redimidos começam a experimentar no exato momento em
que dão o último alento? Que este estado intermediário é algo real, e que
neste preciso momento os seres amados que partiram morrendo “no
Senhor” participam de suas atividades, é o que procurei provar em meu
livro La Biblia y la vida venidera, T.E.L.L. Veja-se especialmente as pp.
75ss. No entanto, não pode ser isso o que Paulo tem em mente aqui em
Rm 8:18. Os vv. 19 e 23 deixam bem claro que ele se refere ao que
sucederá no momento da “revelação dos filhos de Deus” e da “redenção
(a gloriosa ressurreição) de nossos corpos”; em outras palavras, no
momento da volta de Cristo.
Também é significativo o fato de que o apóstolo, ao ditar esta carta,
não dissesse “a glória que será revelada a nós”, mas “a glória que será

226
Marcos 10:30 esclarece que os termos tempo (καιρός) e era (α_ών) são sinônimos: o agora ou o
tempo presente = o agora ou era presente; e o tempo vindouro = a era (ou século) vindoura. A gente
poderia chamar a estas expressões “termos técnicos. Vejam-se também Mt 12:32; Lc 16:8; 20:34, 35;
Rm 12:2; Gl 1:4; Ef 1:21.
Romanos (William Hendriksen) 358
revelada em nós”. Em outras palavras, esta glória virá a nós, como se
fosse, entrará em nós, e logo, depois de nos haver enchido e rodeado, se
revelará em nós. Nós mesmos seremos parte dessa glória: os redimidos a
verão uns nos outros. Os anjos a verão em nós e serão cheios de ação de
graças e louvores a Deus.

B. O resultado desta comparação


“Considero que os sofrimentos deste tempo presente não são dignos
de ser comparados com a glória que será revelada em nós”, diz Paulo;
quer dizer que o pires em que a glória foi depositada pesa tanto mais que
o outro, de modo que o mais pesado baixa imediatamente. Nossos
sofrimentos presentes, não importa quantos nem quão severos sejam,
perdem-se na insignificância quando comparados com nossa glória
futura.

C. A razão desta comparação


A igreja de Roma, tão estrategicamente situada, mas rodeada de
perigos e inimigos (Rm 16:3, 4, 17–20), necessitava encorajamento. A
presente passagem o oferece em abundância.
Ao refletir sobre a glória que será revelada em nós, como também a
nós, naturalmente, percebemos que a realidade superará nossas mais
altas expectativas. Certamente estava a Sra. Elizabeth Mills certa quando
escreveu:
Falamos da terra da bem-aventurança
Esse lugar tão brilhante ao longe
Cuja glória é tantas vezes confessada
Mas, não ficarei ao chegar ali deslumbrada?
Que glória será estar ali, em corpo e alma redimidos, no momento
da gloriosa segunda vinda de Cristo e depois para sempre!
19–22. Porque a criação, com a cabeça erguida, com desejo espera a
revelação dos filhos de Deus. Porque não foi por sua própria escolha que a
Romanos (William Hendriksen) 359
criação foi sujeita a futilidade, mas (foi) por causa daquele que a sujeitou,
em esperança, porque a própria criação também será libertada de sua
servidão à corrupção, para compartilhar a gloriosa liberdade dos filhos
de Deus. Porque sabemos que toda a criação, em uníssono, esteve
gemendo, e geme ainda, como em dores de parto.

OS TRÊS GEMIDOS
A palavra “porque” é compreensível: a glória que será revelada (v.
18) é tão maravilhosa que a criação (toda) a espera com anelo (vv. 19–
22); nós mesmos a esperamos ardentemente (vv. 23–25) e o Espírito
também nos une (vv. 26–27). Os três (a criação, nós, o Espírito) gemem
como em dores de parto, antecipando esperançosamente o nascimento da
glória prometida. Poderíamos dizer, como resultado, que esse “porque”
dá entrada aos três Gemidos. Ele mesmo continua a consideração do
tema (glória futura) que já foi mencionado, um uso muito comum para o
“porque”.

A. O gemido da criação
A que é chamada aqui três vezes “a criação” é denominada
finalmente (no v. 22) “toda a criação”. O que é que esta expressão
inclui? Não pode incluir os anjos bons, visto que eles nunca foram
sujeitos à futilidade (v. 20) nem jamais sucumbiram à corrupção nem à
deterioração (v. 21). Satanás e seus demônios estão excluídos, visto que
nunca serão libertos (2Pe 2:4; Jd 6). Isto também é válido para todos os
que nunca serão salvos, os que não foram escolhidos (2Ts 1:8, 9).
Tampouco estão incluídos aqui os escolhidos, visto que são considerados
neste versículo como um grupo à parte. Somos informados que a criação
espera a revelação dos filhos de Deus, indicando que a libertação da
criação de sua escravidão à corrupção terá lugar quando ocorrer a
revelação dos filhos de Deus. Além disso, o que os escolhidos fazem e o
que lhes sucederá está descrito nos vv. 23–25.
Romanos (William Hendriksen) 360
Excluídos estes quatro grupos, o que resta é a criação animada e
inanimada, que não desfruta de raciocínio. Poderia ser chamada criação
sub-humana ou simplesmente a natureza.
Somos informados, por conseguinte, que esta “totalidade da
criação” restante espera e antecipa anelantemente, com a cabeça
erguida, 227 a revelação dos filhos de Deus. Está, por assim dizer,
estirando seu pescoço em seu esforço por vê-la.
Quando se pergunta: “Como é possível que pássaros e plantas
demonstrem um interesse tão intenso no que sucederá com os filhos de
Deus?” a resposta muito bem poderia ser: «Se segundo a Escritura, as
árvores podem alegrar-se (Sl. 96:12), os rios bater as mãos (Sl. 98:8), o
deserto alegrar-se (Is 35:1), e os montes e colinas levantar canção (Is
55:12), por que não poderiam os pássaros e plantas esperar com anelo?»
Como é claro, o que aqui temos é a personificação.
Não obstante, tal resposta é incompleta. Resta mais por dizer: (a)
que a restauração da criação irracional, tanto animada como inanimada,
está intimamente relacionada com “a revelação dos filhos de Deus”.
Ambas as coisas estão vinculadas, de tal modo que a restauração e glória
dos filhos de Deus” implica o mesmo para “toda a criação”. E (b) que
existe a certeza absoluta de que isso ocorrerá.
É bela e de muito significado a frase “a revelação dos filhos de
Deus”. 228 Indica que até o dia de Cristo voltar não se fará público o
conhecimento de quanto Deus os ama e quão ricamente os recompensa.
“Então, no reino de seu Pai, os justos resplandecerão como o sol” (Mt
13:43) “como o resplendor do firmamento e como as estrelas a perpétua

227
Note-se _ποκαραδοκία = _πό, afastado de κάρα, cabeça; δοκία, cf. δοκέω, que quer dizer (em
jônico) olhar, vigiar.
228
Que em todos os casos como este, a palavra υ_ός nada tem que ver com sexo (macho ou fêmea) e
tem o valor de τέκνον, filho genérico, está claro se se compararem as passagens: os que numa
passagem são chamados τ_ν υ__ν το_ θεο_ são chamados, em outra passagem τ_ν τέκνων το_ θεο_.
Cf. nossa passagem com v. 16. Se há algum grau de diferença em tais casos, seria que υ_ός enfatiza a
situação legal, enquanto que τέκνον enfatiza descendência (espirirtual).
Romanos (William Hendriksen) 361
eternidade” (Dn 12:3). Serão postos em exibição, de modo que todos
possam ver o que Deus operou por eles e neles.
A criação inteira deseja ardentemente a revelação dos filhos de
Deus porque tal evento significará também glória para toda a criação.
Temos que levar em conta que “não foi por sua própria escolha” — ou
seja, que não foi por sua própria culpa — que a criação foi sujeita à
futilidade. Não foi a criação irracional que pecou. Foi o homem. E
Aquele que sujeitou a criação à futilidade foi Deus. Foi ele quem, devido
ao pecado do homem, pronunciou uma maldição sobre … que ou quem?
Bem, em certo sentido sobre a criação, mas em certo sentido ainda mais
profundo, sobre o homem:
“Maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento
durante os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu
comerás a erva do campo. No suor do rosto comerás o teu pão, até que
tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás.”
Gn 3:17–19, RA.
Então, uma vez que a humilhação da criação não procede de sua
própria culpa, como o afirma especificamente esta passagem, a mesma
certamente participará da restauração do homem. O destino da natureza
está intimamente vinculado com o dos “filhos de Deus”. É por isso que a
criação inteira é apresentada como se estivesse estirando o pescoço para
ver a revelação dos filhos de Deus.
Note-se a expressão: “a criação foi sujeita à futilidade”. Várias
traduções, entre elas a RA 1999, dizem “vaidade”. No entanto, quando a
esta palavra é dado o significado de orgulho pomposo, ela não tem nada
que ver com esta passagem. A palavra usada no original não se refere à
ambiciosa ostentação. Indica que desde a Queda do homem, as
potencialidades da natureza estão encofradas, encapsuladas e encerradas.
A criação está sujeita a um desenvolvimento reprimido e a um
decaimento constante. Embora aspire, não é capaz de uma realização
completa. Embora floresça, não chega ao ponto de frutificar
adequadamente. Pode-se comparar a um poderoso campeão de box ou de
Romanos (William Hendriksen) 362
luta que está acorrentado de tal maneira que não pode fazer uso de sua
tremenda capacidade física. A maldição da praga vegetal dizima as
colheitas. A perda se estima em muitos milhões por praga em particular.
Os patologistas agrícolas dirigem seus esforços para o desenvolvimento
de métodos de prevenção contra a praga, ou ao menos redução ou
controle. E, de uma forma um pouco diferente, o que é verdade para o
mundo vegetal, é também para o mundo animal.
Que dia glorioso será quando todas as restrições originadas no
pecado do homem tenham sido tiradas e veremos esta maravilhosa
criação chegando à sua total realização, alcançando finalmente sua
plenitude, compartilhando “a gloriosa liberdade dos filhos de Deus”!
Que esta esperança não é algo ilusório é evidenciado nas palavras:
“em esperança, porque 229 a própria criação será libertada …”.
Paulo compara o forte anelo e ansiosa expectativa da criação com o
gemido de uma mulher que está em processo de dar à luz uma criança. 230
Sem dúvida, tal gemer indica sofrimento, mas está implícita a esperança.
Como nos lembra Calvino, estes gemidos são dores de parto, não de
morte. A frase acrescentada “em uníssono” ou “juntamente”, indica que
cada parte de toda esta criação participa destas dores de parto.
Fornece o resto da Escritura alguma informação adicional com
relação ao significado da futura libertação da natureza de sua escravidão
e sua participação na gloriosa liberdade dos filhos de Deus?
Por certo que o faz! Informa-nos que o universo será purificado por
meio de uma grande conflagração (2Pe 3:7; 11, 12).

229
É o verdadeiro texto _τι (ABC etc.) ou διότι (D*FG)? Se for este último, então o significado é
possivelmente porque, embora mesmo διότι pode significar que. Se a verdadeira leitura é _τι, a
eleição entre porque e que é mais ou menos para. No presente caso tomar a decisão correta não é
importante, visto que qualquer das leituras introduz uma cláusula que é correta com relação à
realidade e que harmoniza com o contexto.
230
Os dois casos de 3ª. per. s. pres. ind. que ele usa são συστενάζει e συνωδίνει. Ambos rimam. O
significado é: “gemem e trabalham”; mas ambos formam uma unidade; dali que signifique: “esteve e
ainda está (note-se _χρι το_ ν_ν) gemendo como em dores de parto.”
Romanos (William Hendriksen) 363
Estreitamente vinculada com esta conflagração haverá um
rejuvenescimento. O fogo não destruirá o universo. Existirá ainda o
mesmo céu e a mesma terra, mas gloriosamente renovados, de maneira
tal que serão em tal sentido um novo céu e uma nova terra (2Pe 3:13; Ap
21:1–5). Por conseguinte, não somente iremos ao céu, mas o céu descerá,
por assim dizer, até nós; quer dizer, as condições de perfeição que há no
céu se encontrarão presentes na latitude e longitude desse universo
gloriosamente rejuvenescido por Deus.
Também podemos considerar esta maravilhosa transformação como
uma realização, um cumprimento de todas as potencialidades, como já
se acaba de explicar.
Finalmente, esta transformação incluirá uma harmonização. No
momento presente pode-se descrever a natureza como algo que se
caracteriza pela “crueldade da presa e da garra”. A paz e a harmonia
estão ausentes. Diversos organismos parecem operar com intenções
contrárias; buscam eliminar-se um ao outro. Mas então haverá concórdia
e harmonia por toda parte. Haverá diversidade, naturalmente, porém com
uma deliciosa combinação de vista e som, de vida e propósito, de tal
modo que o efeito total será de unidade e harmonia. A profecia de Is
11:6–9 chegará ao seu cumprimento mais completo:
“O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao
cabrito; o bezerro, o leão novo e o animal cevado andarão juntos, e um
pequenino os guiará. A vaca e a ursa pastarão juntas, e as suas crias
juntas se deitarão; o leão comerá palha como o boi. A criança de peito
brincará sobre a toca da áspide, e o já desmamado meterá a mão na cova
do basilisco. Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo
monte, porque a terra se encherá do conhecimento do SENHOR, como
as águas cobrem o mar.”
23–25. Não só isso, mas também nós mesmos que possuímos as
primícias do Espírito, até nós mesmos gememos em nosso interior
enquanto esperamos ansiosamente nossa adoção, a saber, a redenção do
nosso corpo. Porque em esperança fomos salvos; mas quando algo
Romanos (William Hendriksen) 364
esperado é visto, já não é mais objeto de esperança, porque quem espera o
que vê? Mas, visto que esperamos o que não vemos, esperamo-lo com
paciente constância.

B. Nosso próprio gemido


Não só geme toda a criação sub-humana, mas também o fazemos
“nós mesmos”, diz Paulo, incluindo-se assim a si mesmo junto com
aqueles a quem se dirige na esfera de todos os que gemem. Ao
acrescentar logo “que possuímos as primícias do Espírito”, quer dizer:
«gememos embora possuamos», etc., ou «porque possuímos», etc.?
Qualquer das duas possibilidades tem muito bom sentido. Ele pode ter
querido dizer: «Embora já sejamos tão ricos, procuramos alcançar
riquezas ainda mais preciosas». Ou pode ser que tenha querido dizer:
«Uma vez que já temos o Espírito, estamos convencidos de que há
muito, muito mais, preparado para nós. Por isso desejamos ardentemente
recebê-lo». À luz do fato que não estamos seguros de qual destas
alternativas tinha preponderância na mente do apóstolo, talvez o melhor
seja, em nossa tradução, deixar o particípio tal como é, ou seja, tendo ou
possuindo. Pessoalmente, eu, junto com muitos outros expositores,
favoreço a interpretação concessiva, visto que parece harmonizar melhor
com a ideia da grande surpresa implícita na enfática introdução:
“também nós mesmos … Até nós mesmos”, 231 como se dissesse:
«Embora já recebemos tanto, ainda gememos dentro de nós mesmos
esperando mais».
Paulo diz: “nós mesmos, que possuímos as primícias do Espírito”.
O que está querendo dizer com isso?
Dd Êx 23:19; Dt 18:4 e outras passagens, sabemos que os israelitas
foram ordenados a oferecer a Deus as primícias da terra (trigo, vinho,

231
Este elemento de surpresa perde-se na tradução que alguns preferem e que, de um modo, antes,
arbitrário, parece-me, abrevia o original, reduzindo-o a um mero “Não só é assim, mas também nós
mesmos”.
Romanos (William Hendriksen) 365
azeite), e até da lã da tosquia das ovelhas. Mas também o contrário é
certo. Também Deus dá Suas primícias. Ele dá as primícias do Espírito
Santo, o que torna possível que Paulo possa afirmar que ele mesmo e
aqueles a quem se dirige estão agora na posse desta bênção. 232
Referia-se o apóstolo a certa quantidade do Espírito que tinha sido
derramada até então e que havia mais Espírito para ser concedido
depois? Veja-se L.N.T. (A. e G.), p. 81, que dá uma opinião que é
bastante popular, em especial entre gente que com frequência se refere à
“segunda bênção”. A mesma é, não obstante, errônea.
Não há razão para duvidar que o apóstolo se refere aqui em Rm
8:23, ao próprio Espírito Santo. Esse Espírito é, em Si mesmo, as
primícias ou objeto da salvação por vir em toda sua plenitude, que está
reservada para os filhos de Deus quando Cristo voltar. Não há razão para
crer que Paulo se refira a uma coisa em Ef 1:13, 14, e a outra diferente
aqui em Rm 8:23. 233
“Também nós mesmos … até nós mesmos gememos em nosso
interior enquanto esperamos ansiosamente nossa adoção, a saber, a
redenção do nosso corpo”. Como temos que entender que até os crentes
gemem? Não é talvez lógico pensar que o gemer dos filhos de Deus é
parecido com o da natureza (v. 22)? Se em tal caso o gemer da criação
inteira consistia em dois elementos, ou seja, (a) a experiência da dor e (b)
a antecipação em esperança, podemos chegar à conclusão que o mesmo
tem vigência para os que possuem as primícias do Espírito, os amados
filhos de Deus.
Está pensando Paulo no fato de que os cristãos percebem que são
ainda muito imperfeitos? Tão pecadores que às vezes exclamam:
“Miserável de mim! Quem me resgatará deste corpo de morte?” (Rm
232
Além do mais “das primícias do Espírito” (Rm 8:23), o Novo Testamento menciona: as primícias
da massa (Rm 11:16); primícias = primeiro convertido (Rm 16:5; 1Co 16:15); Cristo como as
primícias dos que dormiram (1Co 15:20, 23); primícias das criaturas (Tg 1:18); e os 144.000,
oferecidos como primícias a Deus (Ap 14:4). Veja-se também o C.N.T. sobre 2Ts 2:13.
233
Também o veem assim Ridderbos, op. cit., p. 188, e J. Behm (sobre _ρραβών, Th.D.N.T., Vol. I, p.
475).
Romanos (William Hendriksen) 366
7:24)? Que sem dúvida são imperfeitos é algo que toda a Escritura deixa
bem claro. Não obstante, o presente contexto — pense-se especialmente
na combinação de dor e esperança — aponta também numa direção
diferente. O próprio fato de que os filhos de Deus possuem até agora —
a saber, que são morada do Espírito Santo, faz brotar neles um doloroso
sentido de carência. O que já têm faz com que tenham fome de receber
mais: quer dizer, de ter a salvação em toda sua plenitude. É nesse sentido
que a dor e a esperança se combinam aqui.
Os crentes já foram adotados como filhos de Deus (8:15, 16). Mas,
em outro sentido, aguardam ainda sua adoção. Esperam a manifestação
pública de sua posição como filhos de Deus. Neste momento seu corpo
está ainda sujeito à morte. Mas um dia sua alma terá sido completamente
libertada do pecado e seu corpo terá sido transformado, de modo que se
parecerão com o glorioso corpo do próprio Senhor Jesus Cristo. Eles
antecipam esse grande dia com esperança (Rm 8:11; 1Co 15:50–55; 2Co
5:2, 3; Fp 3:21; 1Jo 3:2).
O v. 24 retoma este tema da esperança do crente. Cabe mencionar
de passagem que uma conhecida tradução, a da versão ao inglês
denominada Authorized Version, tem uma formulação deste versículo
que não é a melhor (por usar um termo suave). É como segue:
“Porque somos salvos pela esperança; mas a esperança que é vista
não é esperança: porque o que um homem vê, por que teria que esperá-
lo?”
Naturalmente nos fazemos a pergunta: “mudou Paulo sua teologia?
Não nos disse sempre que somos salvos pela fé (Rm 1:16, 17; 3:22, 26,
28, 31; 4:5, 11, 12, 16, 20, 24; 5:1, 2), e não confirmará acaso esta
mesma verdade mais adiante (Ef 2:8)? No entanto, aqui leio que somos
salvos pela esperança! Além disso, o que quer dizer o apóstolo quando
menciona “a esperança que é vista”? Como pode uma pessoa ver a
esperança?
Para entender Romanos 8:24 devemos começar por afirmar que a
tradução “Somos salvos pela esperança” é errônea. Paulo escreveu “em
Romanos (William Hendriksen) 367
esperança”. O que quis dizer é que em algum momento do passado
(provavelmente em dia diferente para cada pessoa), quando fomos
salvos, essa salvação não se entregou completa num só pacote. Não
chegou “em bloco”. Pelo contrário, veio para nós “com uma promessa de
mais futuro”. Elementos da salvação tais como a eleição, o chamado, a
regeneração, a conversão básica, a fé, a justificação e inclusive, embora
em parte, a santificação, já tinham acontecido. Restava ainda para
culminar um progresso adicional na santificação e finalmente, ao morrer
— e ainda mais plenamente ao Cristo voltar — a glorificação. É claro,
por conseguinte, que Paulo podia escrever que: “em esperança fomos
salvos”.
A esperança cristã, porém, deve ser distinguida da “esperança” da
qual falamos na vida diária. Com frequência, esta última não passa de
um desejo de que algo bom nos suceda, ao que se acrescenta uma certa
crença de que isso talvez chegue a acontecer. A verdade é que tal
esperança pode muitas vezes ser definida como “aquilo que precede o
desencanto”. Sua imagem é às vezes semelhante à de um homem que se
está afogando e que desesperado se agarra por um fio. Mas a esperança
cristã é “uma âncora para a alma, segura e firme, e que penetra até dentro
do véu, onde Jesus entrou por nós como precursor” (Hb 6:19, 20).
Quanto ao resto do versículo (24), tudo se torna transparente
quando percebemos que a palavra esperança pode ter três significados
diferentes. Pode indicar: (a) um sentir ou ainda uma convicção que o
desejado sucederá; (b) a pessoa a quem se considera capaz de fazer com
que se cumpra, como em “Nossa esperança … foste, és e serás …
Senhor”, e (c) o objeto que se espera. Pareceria que em grego este último
significado é mais comum que em português. É assim que traduzimos o
resto do v. 24 como segue:
“Mas quando algo esperado é visto, já não é mais objeto de
esperança, porque quem espera o que vê?” 234

234
A leitura de P46B* é a que aqui segue-se, sendo a mais breve.
Romanos (William Hendriksen) 368
A verdade que aqui se expressa é óbvia: quando aquilo que se
esperava chegou e agora está diante, de modo que é possível vê-lo
(implícito: que também se pode pegar), deixa de ser objeto de esperança.
Paulo enfatiza a necessidade de lançar mão da âncora da esperança.
É como se estivesse dizendo: «Assim como a fé é necessária para
apropriar-se da salvação que Cristo obteve para vós no passado, do
mesmo modo a esperança é necessária para apropriar-se das bênçãos
futuras. Essas riquezas estão reservadas para todos aqueles que
humildemente confessam suas faltas e confiam totalmente em Deus, o
Doador misericordioso. Lembrem, vós fostes salvos ‘em esperança’».
A aplicação prática para hoje é clara. Há quem parece pensar que já
chegaram à meta. Creem que a petição “Perdoa-nos as nossas dívidas,
assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6:12) não é para
eles. Talvez também creiam que receberam “a segunda bênção” e que,
por conseguinte, são crentes de uma ordem superior. E há até quem faz
promoção a favor do erro que afirma que também o corpo já é perfeito e
que a enfermidade não é mais que uma invenção da imaginação. Para
eles toda futura “redenção do corpo” (Rm 8:23) tem pouco significado. É
como se Paulo estivesse dizendo a todos eles: «Vós eliminastes a
doutrina bíblica da salvação em esperança, porque, como pode alguém
esperar o que já tem … ou pensa que tem?»
Poderia objetar-se, dizendo: «Mas o apóstolo não vivia em nossos
dias. Havia alguma razão pela qual ele considerasse necessário enfatizar
nesta epístola a importância da esperança na vida do crente? Podemos
demonstrar que havia na igreja de Roma os que se consideravam fortes e
por esta razão capazes de prescindir, pelo menos em alguma medida, da
esperança, visto que estimavam ter chegado à sua meta?
A resposta é afirmativa. Em termos generais Paulo tinha um muito
bom conceito da igreja de Roma. Veja-se Rm 1:8; 15:14. Mas havia
exceções, como o indicam as seguintes passagens:
“Não tenha mais alto conceito de si que aquele que deve ter” (Rm
12:3).
Romanos (William Hendriksen) 369
“Mas tu, por que julgas o teu irmão?” (Rm 14:10).
“Não nos julguemos mais uns aos outros” (Rm 14:13).
“Os que somos fortes devemos suportar as fraquezas dos fracos, e
não nos agradar a nós mesmos” (Rm 15:1).
A conclusão do parágrafo é verdadeiramente bela: “Mas, visto que
esperamos o que não vemos, esperamo-lo com paciente constância”. 235
Isto nos lembra outra passagem paulina similar, ou seja: “Não
olhando nós para as coisas que se veem, mas para as que não se veem;
porque as coisas que se veem são temporais, mas as coisas que não se
veem são eternas” (2Co 4:18). Enquanto isso:
Atemorizados santos, recuperai a certeza
Aquelas nuvens que tanto temor vos dão,
Crescendo em graça logo derramarão
Bênçãos sobre suas cabeças.
Seus propósitos amadurecem rapidamente;
desdobram-se de hora em hora.
Sabor amargo tem o broto agora,
Mas a flor perfumará muito docemente.
Adaptação de um poema de William Cowper, 1772.
26, 27. E de igual maneira o Espírito também nos ajuda em nossa
fraqueza, porque não sabemos o que é que devemos orar, mas o próprio
Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que
esquadrinha os corações sabe qual é a intenção do Espírito, que ele está
intercedendo pelos santos segundo a vontade de Deus.

235
δι_ _πομον_ς (genitivo de circunstância concomitante). Com relação ao substantivo veja-se
também Rm 2:7; 5:3, 4; 15:4, 5; cf. Nota 143. Visto o contexto (veja-se especialmente o v. 23)
“paciente constância” é provavelmente a melhor tradução. O apóstolo pensava no poder de resistir
persistentemente sob algum esforço ou tensão. Esta paciente constância vai acompanhada de um anelo
ardente; porque tem que notar-se também _πεκδεχόμεθα, 1ª. pes. pl. pres. ind. de _πεκδέχομαι, que
por meio de seu duplo prefixo, enfatiza o ardente caráter do anelo do crente. Isto também traz para
nossa mente uma forma do mesmo verbo no v. 19, mas ali com a menção de “com a cabeça em alto”.
Romanos (William Hendriksen) 370
C. Os gemidos do Espírito
Depois de ter considerado o gemido da criação (vv. 19–22) e o dos
filhos de Deus (vv. 23–25), Paulo agora passa a considerar os gemidos
do Espírito (vv. 26–27). Diz-nos algo com relação à (a) sua necessidade,
(b) seu autor e seu caráter e (c) sua eficácia.

1. Sua necessidade
O apóstolo indica “nossa fraqueza”, nossas limitações humanas
devidas ao pecado. Tal fraqueza consiste, ao menos em parte, em que
“não sabemos o que é que devemos orar”. Não estamos seguros com
relação ao conteúdo da oração que possa estar em harmonia com a
vontade de Deus (veja-se v. 27). Ao dizer “nós”, o apóstolo inclui a si
mesmo.
Pode parecer estranho que um homem da estatura espiritual de
Paulo admita isso. Como pôde ser que este maravilhoso missionário,
ardente amante de almas, escritor divinamente inspirado, fizesse tal
afirmação? Fora das orações de Jesus Cristo, há acaso no âmbito da
oração algo mais carregado de pensamentos, mais fervente ou sublime
que a oração do apóstolo registrada em Ef 3:14–19?
A solução é provavelmente esta: Paulo certamente sabia qual devia
ser o conteúdo geral da oração. Sabia que se devia orar pelo espírito
perdoador, pela paz entre os membros da igreja, por um aumento no
conhecimento das coisas espirituais, por prontidão para dar testemunho
de Cristo, por valor no meio da aflição e da perseguição, por compaixão
aos que estão em necessidade, por gratidão a Deus; de fato, por todos os
frutos do Espírito (veja-se Gl 5:22, 23). Mas o que era preciso orar no
caso de alguma dificuldade ou situação específica era algo que nem
sempre estava claro.
Uma boa ilustração disso é o fato registrado em 2Co 12:7, com
referência ao “espinho na carne”. Qual possa ter sido precisamente tal
aguilhão, ninguém sabe. O que, sim, sabemos é que Paulo o encontrava
Romanos (William Hendriksen) 371
muito incômodo. Como resultado ele orou: “Senhor, por favor, tira esse
aguilhão”. Três vezes fez esta oração. Parece que ele opinava que a
remoção de tal aguilhão faria dele uma testemunha mais poderosa de
Cristo. Mas a resposta de Deus foi: “A minha graça te basta, porque o
meu poder se aperfeiçoa na fraqueza”. Veja-se também Fp 1:22–24.
Outra ilustração tomada da vida atual é a seguinte: Um pastor,
amado por sua gente, caiu gravemente doente. A congregação orava:
“Senhor, por favor devolve-lhe a saúde”. Mas o pastor faleceu. No
funeral, um pastor que tinha sido amigo de toda a vida do falecido, fez a
seguinte observação aos enfermos congregados: “Talvez alguns de vocês
correm perigo de chegar à conclusão que o Pai celestial não ouve a
oração. Não obstante, ele a ouve. Mas neste caso em particular é
provável que tenha havido duas orações contrapostas. Vocês oravam: ‘Ó,
Deus, salva sua vida, porque necessitamos tanto dele’. Mas a oração
inexpressada do Espírito era: ‘Leve-o Pai, porque a congregação está se
apoiando muito nele, e não em Ti’. E o Pai ouviu essa oração.”
Se alguém objetasse: “Então por que não permitir que o Espírito se
ocupe totalmente da oração? Por que temos que orar nós?”, a resposta
seria: (a) o filho de Deus necessita e deseja derramar seu coração diante
de Deus em oração e ação de graças: (b) o Espírito Santo ora somente
nos corações dos que oram; (c) Deus mandou Seu povo orar e prometeu
aceder a todas aquelas petições que estejam em consonância com Sua
vontade; e (d) deve haver muitas orações que não precisam ser
compensadas pelo Espírito.
As palavras: “O Espírito nos ajuda em nossas fraquezas” não devem
ser interpretadas muito estreitamente, como se o significado fosse que o
Espírito somente nos ajuda a orar. Ele nos ajuda “em nossa fraqueza”,
qualquer que seja a natureza dessa fraqueza, inclusive nossa fraqueza no
orar.
Romanos (William Hendriksen) 372
2. Seu autor e caráter 236
Como nos ajuda o Espírito? A resposta é: “O próprio Espírito
intercede por nós com gemidos inexprimíveis”. O que significam estas
palavras?
A interpretação mais óbvia, aquela que a pessoa não informada de
pressupostos doutrinais mais possivelmente adotasse, é certamente esta:
que estas palavras inexprimíveis são as do Espírito.
No entanto, nem todos os intérpretes concordam com esta
conclusão. Para demonstrar sua opinião que estes gemidos são os dos
santos, não os do Espírito Santo, apela-se a Gl 4:6, onde o mesmo
apóstolo diz: “E porque vós sois filhos, Deus enviou o Espírito de seu
Filho a vossos corações, exclamando ‘Aba! Padre!’ ”. O raciocínio
adicional é o seguinte: «Embora Paulo pareça dizer que o Espírito
exclama ‘Aba! Padre!’ não pode ser que Ele queira dizer isto, visto que
Deus não pode ser o Pai do Espírito Santo. Por conseguinte, deve ser
certo que a exclamação é proferida não pelo Espírito mas pelos filhos de
Deus, embora por meio do Espírito. E o mesmo deve ser certo aqui em

236
As seguintes palavras gregas requerem algum comentário: _σαύτως, da mesma maneira, de modo
similar (Mt 20:5; 21:30, 36; 25:17; Mc 12:21; 14:31; Lc 13:5; 20:31; 22:20). Paulo a usa também em
1Co 11:25 e seis vezes nas pastorais, começando com 1Tm. 2:9.
συναντιλαμβάνεται, 3ª. pes. sing. pres. med. ind. de σοναντιλαμβάνομαι, agarrar junto com
álguien, ajudar. Veja-se C.N.T. sobre Lc 10:40.
προσευξώμεθα, 1ª. pes. pl. aor. med. deliberativo subj. (depois de uma pergunta indireta), de
προσεύχομαι, orar.
_περεντυγχάνει, 3ª. pes. sing. pres. ind. de _περεντυγχάνω; basicamente: encontrar-se com (ou
encontrar) e falar ou agir a favor de (_πέρ); interceder.
στεναγμο_ς dat. p. de στεναγμός, gemer, suspirar. Cf. o alemão stönen; o holandês steunen
(también stenen).
_λαλήτοις, masc. dat. pl. de _λάλητος. Há aqueles que interpretam que isto significa innenarrable,
inexprimível, (gemidos e suspiros) “muito profundos para ser manifestados em palavras” (Ridderbos,
Lenski, etc.); outros traduzem inexprimível, não tal, sem palavras. Não podemos estar seguros,
embora o v. 27 parecesse favorecer esta última interpretação. Os gemidos do Espírito não precisam ser
traduzidos a palavras que o Pai é capaz de discernir o significado do Espírito embora não medeiem
palavras. Mas quer seja que se o interprete de uma maneira ou da outra, o pensamento principal dos
vv. 26 e 27 continua sendo mais ou menos o mesmo.
Romanos (William Hendriksen) 373
Rm 8:26b: os gemidos, embora sejam atribuídos ao Espírito, que bem
pode ser seu autor, são na verdade os [gemidos] dos filhos de Deus. São
eles que gemem”.
Com o devido respeito por quem assim raciocina, devo, no entanto,
discrepar com eles. A apelação a Gl 4:6 não é concludente. Notem-se as
seguintes diferenças significativas, que ao mesmo tempo são razões para
crer que os gemidos são os do Espírito:
1. Aqui em Rm 8:26b Paulo não diz: “o Espírito intercede por nós”.
Ele diz: “O Espírito mesmo 237 intercede por nós com gemidos”, etc. Há,
por conseguinte, uma diferença real entre Gl 4:6 e Rm 8:26b.
2. Para fazer com que seu significado seja ainda mais inequívoco, o
apóstolo continua no v. 27, dizendo: “E aquele que esquadrinha os
corações sabe qual é a intenção do Espírito”. Não a intenção dos crentes,
mas a do Espírito. Exegeticamente, então, vejo-me forçado a concordar
com aqueles que dizem que os gemidos aos que se faz referência aqui em
Rm 8:26b são os do Espírito.
As verdadeiras razões pelas quais certos eminentes intérpretes
recusam adjudicar estes gemidos ao Espírito, não serão teológicas em
vez de exegéticas? Não desejam atribuir a nenhuma das três pessoas da
Santa Trindade qualidades que poderiam parecer indignas dela. Às vezes
esta razão é claramente mencionada.238 E embora eu não esteja de acordo
com sua exegese de Rm 8:26b, e em particular com sua falta de
disposição para atribuir ao Espírito estes gemidos, eu os respeito por seu
desejo de manter-se sãos na doutrina, especialmente numa época em que
muitos ridicularizam tal firmeza. Mas a exatidão exegética é tão
importante como a pureza doutrinal. Ambas são necessárias.
Às razões já dadas para crer que os gemidos do v. 26 são os do
Espírito, deve acrescentar-se as seguintes:

237
α_τ_ τ_ πνε_μα.
238
Veja-se, por exemplo, Lenski, op. cit., p. 547.
Romanos (William Hendriksen) 374
3. Visto que no v. 23 Paulo já tratou dos gemidos dos santos, é
difícil crer que ele voltasse a este tema no v. 26. Além disso, as palavras
que iniciam o v. 26, ou seja: “E de igual maneira”, sugerem uma
comparação; mais provavelmente entre os gemidos da criação e dos
crentes por um lado (vv. 19–22 e vv. 23, 24, respectivamente), e os
gemidos do Espírito (vv. 26, 27) por outro.
4. No v. 26 estes gemidos estão inseparavelmente vinculados com a
intercessão do Espírito. A intercessão volta a ser mencionada no v. 27.
No v. 34 o verbo que no v. 27 descreve a intercessão do Espírito é
utilizado com relação à intercessão do Filho. Então, se o v. 34 refere-se à
própria oração de intercessão de Cristo, por que não poderia o v. 27
descrever a intercessão do próprio Espírito, acompanhada por
gemidos? 239
Seria difícil definir exatamente o que é que este gemer do Espírito
implica. Estamos em erro quando expressamos que pelo menos significa
o seguinte: o Espírito ama tanto os santos que anseia aquele grande dia
em que, livres de toda mancha de pecado, eles glorifiquem a Deus para
sempre jamais na perfeição da santidade e da alegria? Embora seria
difícil demonstrar que as palavras: “Esse Espírito que ele tem feito
habitar em nós nos deseja zelosamente” (Tg 4:5) são a melhor tradução
do original, mesmo assim as mesmas podem lançar luz sobre o
significado dos gemidos do Espírito. E acaso não nos encontramos com
similares expressões muito emocionais por meio das quais temos
permissão de vislumbrar o próprio coração de Deus? Vejam-se, por
exemplo, as seguintes:
“Como poderei deixar-te, Efraim? como poderei livrar-te, Israel?
como te farei como Admá? como te porei como Zeboim? o meu coração
está comovido dentro de mim, as minhas compaixões juntamente se
acendem.” Oseias 11:8, TB.

239
Deve ter ficado claro que minha interpretação do v. 26 (e também do v. 27) concorda com a de A.
Kuyper, Het Werkvan den Heiligen Geest, pp. 787, 788; Trad. al ingl. p. 636.
Romanos (William Hendriksen) 375
Se a pessoa quiser, pode considerar a expressão: “O próprio
Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis” como
“extremamente antropomórfica”. Contudo, a mesma expressa uma
verdade que dificilmente possamos descuidar. Se o conhecimento
humano aponta à sua origem, a divina onisciência; e se o poder humano
aponta à onipotência divina, é difícil crer que a emoção humana não
reflita nada do que há em Deus. Segundo a Escritura, Deus não é Buda,
nem o céu é Nirvana!
Romanos 8 ensina que os crentes têm dois intercessores: o Espírito
Santo e Cristo. Cristo executa Sua tarefa intercessora no céu (Rm 8:34;
Hb 7:25; 1Jo 2:1); o Espírito Santo, na terra. A intercessão de Cristo
toma lugar fora de nós, a do Espírito Santo dentro de nós; quer dizer, em
nosso próprio coração (Jo 14:16, 17). Cristo ora para que os méritos de
Sua obra redentora sejam plenamente aplicados aos que confiam nEle. O
Espírito Santo ora para que as necessidades profundamente ocultas de
nossos corações, necessidades que às vezes nem sequer percebemos,
sejam satisfeitas. A intercessão de Cristo pode ser comparada com a de
um pai, a cabeça da família, a favor de todos os membros da família. A
intercessão do Espírito Santo nos faz lembrar uma mãe de joelhos ao
lado da cama de seu filho doente e que em sua oração apresenta as
necessidades dessa criança ao Pai Celestial. 240

3. Sua eficácia
A intercessão do Espírito Santo, acompanhada de gemidos, não é
infrutífera. Aquele que constantemente esquadrinha os corações
humanos, não seria capaz de ler a intenção de Seu próprio Espírito que
habita nestes corações? Não conheceria o significado dos gemidos
inexprimíveis desse Espírito?

240
Por interpretações similares veja-se A. Kuyper (veja-se nota anterior, Nº. 239); e R. C. Harder, em
De Heilige Geest, editado por J. H. Bavinck, P. Prins y G. Brillenburg Wurth, Kampen, 1949, p. 396.
Romanos (William Hendriksen) 376
Vez após vez a Escritura dá testemunho da verdade da onisciência
de Deus. Veja-se, por exemplo, as seguintes passagens:
“O homem olha o que esta diante de seus olhos, mas o Senhor olha
o coração” (1Sm 16:7).
“Somente tu conheces os corações de todos os filhos dos homens”
(1Rs 8:39).
“O Senhor esquadrinha os corações e entende qualquer intenção dos
pensamentos” (1Cr 28:9).
“Ó Senhor, tu me examinas e me conheces. Conheces o meu sentar
e meu me levantar …” (Sl 139:1, 2).
Todo o salmo dá testemunho da onipresença e onisciência de Deus.
“O Sheol e o Abadom estão diante do Senhor” (Pv 15:11)
“Enganoso é o coração mais do que todas as coisas, e perverso;
quem o conhecerá? Eu, o Senhor, que esquadrinho a mente, que provo o
coração” (Jr 17:9, 10).
“Tu, Senhor, conheces os corações de todos” (At 1:24).
“O Senhor trará à luz o que está oculto na escuridão, e exporá os
motivos dos corações dos homens” (1Co 4:5).
“Não há criatura que esteja oculta aos olhos de Deus. Todas as
coisas estão abertas e expostas aos olhos daquele a quem devemos
prestar contas” (Hb 4:13).
Porém, Deus não apenas sabe tudo. O que se enfatiza é que Ele
sabe que o Espírito intercede em harmonia com sua própria vontade (a
de Deus). Não são o Pai, o Filho e o Espírito Santo o verdadeiro Deus,
que é Um? Toda discórdia entre Eles é, por esta razão, impossível.
Note-se também que o Espírito Santo é descrito em constante
intercessão “pelos santos”, quer dizer, por aqueles que foram separados
para viver vidas consagradas à glória do Deus triúno revelado em Cristo
Jesus. Veja-se sobre Rm 1:7.
E pelo fato de que há uma perfeita harmonia entre as pessoas da
Santa Trindade, de modo que a intercessão do Espírito, acompanhada de
gemidos, coincide completamente com a vontade do Pai, o resultado
Romanos (William Hendriksen) 377
deve ser que tal intercessão é sempre eficaz. Nunca falha. Nenhum dos
santos nunca se perde. Todos chegarão ao céu no fim. Melhor ainda.
Veja-se o v. 28. 241
28. E sabemos que para os que amam a Deus, todas as coisas
colaboram para o bem, a saber, aos que são chamados segundo o seu
propósito.
Esta passagem é um tipo de resumo de Rm 8:1–27. Ela prepara, e
de alguma maneira se assemelha, a grande culminação que encontramos
nos vv. 37–39. Não pode ser totalmente compreendida a menos que seja
à luz dos vv. 1–27. Extrai uma conclusão; na verdade uma conclusão
muito consoladora.
Paulo demonstrou que para todos os que estão em Cristo Jesus já
não há condenação (vv. 1–8). Eles são morada do Espírito que até
ressuscitará seus corpos gloriosamente (vv. 9–11). Recebem a segurança
de ser filhos de Deus, e como tais, de ser Seus herdeiros (vv. 14–16). Seu
atual sofrimento por Cristo e por sua causa significa que algum dia eles
compartilharão Sua glória, uma glória tão maravilhosa que em
comparação com ela as dificuldades se desvanecem no nada (v. 18).
Viverão nesse novo céu e nova terra que toda a criação anela com seus
gemidos (vv. 19–22). Eles mesmos também gemem enquanto esperam
ansiosamente sua adoção (vv. 23–25). Esse Espírito sempre intercede por
eles em harmonia com a vontade de Deus, de modo que tal intercessão,
acompanhada de gemidos inexprimíveis, será sem dúvida eficaz (vv. 26,
27).
Assim que Paulo diz: “E sabemos — veja-se também Rm 3:19;
7:14; 8:22; 1Co 8:1, 4; 13:9; 2Co 5:1; 1Tm. 1:8 — que aos que amam a
Deus todas as coisas colaboram para o bem …”. Em que outra coisa
baseia ele este conhecimento? Provavelmente em dois fundamentos

241
No v. 27 note-se _ραυν_ν, gerúndio de _ραυνάω, esquadrinhar, escrutinar; no Novo Testamento
aparece somente aqui e em Jo 5:39; 7:52; 1Co 2:10; 1Pe 1:11; e Ap 2:23: “Eu sou aquele que
esquadrinha os corações e as mentes”.
Devido ao contexto, o _τι do v. 27 deve traduzir-se que, não “porque”.
Romanos (William Hendriksen) 378
adicionais: (a) A experiência; quer dizer, o efeito que nele mesmo teve o
saber como Deus tratou a ele e a outros no passado. Veja-se passagens
como Gn 46:30; 48:3, 4; Dt 5; Js. 24:1–15; 1Sm 7:1–12; 2Sm 23:1–15;
1Rs 8:22–24; Is 63:9; At 26:1–23; Gl 2:19, 20. E (b) O conhecimento de
passagens bíblicas específicas que ensinam que na providência de Deus
todas as coisas resultam em bênção para os filhos de Deus, sendo o mal
transformado em bem (Gn 45:5, 7, 8; 50:20).
Há quem acha difícil aceitar a afirmação: “Todas as coisas
colaboram para o bem”. Parecem pensar que semelhante expressão
atribui a meras “coisas” as qualidades — como ser sabedoria e
inteligência — que as mesmas não possuem. Para superar esta
dificuldade, estes expositores sugerem que a afirmação leia assim: “Em
todas as coisas [ou: em tudo] Deus opera para o bem”; ou: “Deus faz
com que todas as coisas colaborem para o bem”. De algum modo a
palavra Deus deve ficar incluída nesta cláusula. De outro modo, segundo
alguns opinam, a mesma resultaria em heresia, numa filosofia da vida e a
história que seria materialista, talvez evolucionista. Mesmo quando
discrepemos, não deveríamos amar e honrar esta gente por sua
motivação? E se lhes respondemos, dizendo: «Vocês não têm o direito
de inserir a palavra Deus onde o original não a tem”, eles rapidamente
respondem que acharam uma leitura que sustenta sua opinião”. 242
A resposta a isto é a seguinte:
Embora ninguém saiba como se originou esta leitura alternativa, sua
aceitação resulta numa frase que faria de Paulo um estilista torpe. 243
Além disso, se Paulo realmente ditou, e se Tércio realmente copiou: “Em
todas as coisas Deus opera para o bem”, ou “Deus faz com que todas as

242
P46A B Orígenes, incluído no Aparato Crítico do N.T.Grk (A-B-M-W), enquanto que o texto
adotado (sem _ θεός) recebe uma avaliação do tipo C.
243
Note-se a duplicação da palavra θεός no que, então, Paulo supostamente escreveu: το_ς _γαπ_σιν
τ_ν θε_ν πάντα συνεργε_ _ θεός ε_ς _γαθόν. Não é razoável supor que foi uma muito primitiva alma
preocupada a que inseriu o segundo θεός? Além disso, a menos que haja razões de peso para fazer o
contrário, não deveria a leitura mais breve — neste caso a que carece do segundo θεός — prevalecer?
Também, “fazer com que operem” não é uma fiel tradução de συνεργε_.
Romanos (William Hendriksen) 379
coisas colaborem para o bem”, certamente é muito difícil crer que esta
segunda menção da palavra Deus — a primeira está na cláusula “que
amam a Deus” — tivesse sido alguma vez tirada do texto.
Outros, corretamente descontentes, fazendo de Deus o sujeito da
cláusula, tomam emprestado um sujeito do contexto precedente.
Retrocedem até “O Espírito nos ajuda em nossa fraqueza … intercede
por nós”, etc., e logo continuam a oração como segue: “e em tudo, como
sabemos, ele [quer dizer, o Espírito] colabora para o bem com aqueles
que amam a Deus”. 244
Mas esta leitura, se a pessoa se apegar a ela coerentemente, cai em
dificuldade ao chegar ao v. 29, visto que esse versículo leria então como
segue: “Porque aos que ele [o Espírito, se a tradução que citamos é a
correta] conheceu de antemão, de antemão os predestinou a ser
conformados à imagem de seu Filho [do Espírito]”. Isto, naturalmente, é
impossível, que em nenhuma parte da Escritura chama-se Jesus Cristo
Filho do Espírito Santo! Como resultado, neste ponto a N.E.B. insere a
palavra Deus: “Porque aos que Deus conheceu …” Mas aqui a palavra
Deus não se encontra no texto grego original.
Na minha opinião, qualquer intenção por evitar fazer de “todas as
coisas” o sujeito da cláusula fracassou. 245 A antiga — sim, muito antiga!
— tradução, ou seja: “… todas as coisas colaboram para bem” 246 deve
permanecer. Não é mais que justo acrescentar que quer seja que se
traduza de uma maneira ou outra — quer dizer, quer seja que um (a)
equivocadamente aceite a palavra “Deus” ou “ele” [o Espírito] como
sujeito da cláusula; ou que (b) a pessoa corretamente considere que
“todas as coisas” é o verdadeiro sujeito (dali, “todas as coisas colaboram

244
Veja-se a tradução da N.E.B. em seu texto. A favor da N.E.B. deve-se mencionar que numa nota
reconhece o que eu denominaria a leitura e tradução corretas, a que faz de “todas as coisas” o sujeito
da cláusula.
245
Para uma lista mais completa destas tentativas estas tentativas veja-se o excelente resumo e análise
de Cranfield, op. cit., pp. 425–428.
246
Alguns preferem “cooperam para bem”; outros “resultam vantajosas para seu (verdadeiro) bem”.
Mas estas variantes não tocam o ponto principal e, creio, não requerem nenhuma análise adicional.
Romanos (William Hendriksen) 380
para bem”) — o resultado é mais ou menos o mesmo, ou seja, que na
monopolista providência de Deus todas as coisas colaboram para o bem
dos que amam a Deus.
O que é mais importante e necessário é que aceitemos os três fatos
seguintes:

a. “Todas as coisas” — nada menos! — colaboram para o bem.


Não só a prosperidade é incluída, mas também a adversidade; não
só a alegria e a felicidade, mas também o sofrimento e a tristeza (Rm
8:18, 35–37). Ímpias intenções ficam rebatidas por Deus, quem as usa
para o bem (Gn 50:20; Ne 4:15). Não só se inclui o que os santos
experimentam mas também tudo o que fica fora de sua experiência
pessoal. Falando mais especificamente, os entes que se mencionam a
seguir estão entre os que são divinamente ordenados e guiados para que
colaborem para o bem dos que amam a Deus: os anjos bons (Hb 1:14) e
Satanás junto com suas hostes (Rm 16:20; Ef 6:10–16); as nações do
mundo e seus governantes (Sl. 2:2–9; 48:4–8; 149:9; At 9:15); a chuva e
o trovão (1Sm 12:18–20); os arroios, as montanhas e as nuvens (Sl. 46:4;
72:3; Mt 24:30; Ap 1:7); e até as estrelas em suas órbitas (Jz. 5:20).

b. É somente aos que amam a Deus que todas as coisas colaboram


para o bem.
No original — tal como na TB, na versão ao inglês A.R.V. e em
minha própria tradução — as palavras “E sabemos que aos que amam a
Deus, todas as coisas colaboram para o bem” estão no início da oração.
O significado é este: eles, e somente eles, têm direito a ser consolados
por este fato. Somente no caso dos que amam a Deus está certo que todas
as coisas colaboram para o bem. Isto é claro ao ler passagens tais como
Êx 20:6; Dt 7:9; Ne 1:5; Sl. 37:17, 20, 37-40; 97:10; 116:1s; Is 56:6, 7;
1Co 2:9; 8:3; Tg 1:12; 2:5. Todas estas referências enfatizam a
importância de amar a Deus e/ou deleitar-se nEle.
Romanos (William Hendriksen) 381
c. Eles amam a Deus porque Ele os amou primeiro.
Certamente isso é o significado das palavras: “... aos que amam a
Deus, todas as coisas lhes colaboram para o bem; quer dizer, aos que são
chamados segundo (seu) propósito”. Embora seja verdade que a palavra
“seu” — quer dizer, de Deus — não aparece no original, não obstante, a
única outra passagem de todo o livro de Romanos em que a palavra
propósito aparece, ou seja, Rm 9:11 (“para que o propósito de Deus
segundo a eleição permanecesse”), demonstra que Paulo estava
pensando nos propósitos de Deus, e não nos do homem.
Os que foram chamados segundo o propósito de Deus são, por
conseguinte, os que foram eficazmente chamados. São aqueles cujos
corações e mentes foram tão plenamente influenciados pelo Espírito
Santo que perceberam seu pecado, começaram a compreender sua
necessidade de Cristo e lhe abraçaram como seu Senhor e Salvador.
Veja-se sobre Rm 1:7. Ver também Rm 8:30; 9:24; 1Co 1:2, 24; 7:17s.

Paulo sentiu a necessidade de acrescentar as palavras: “aos que são


chamados segundo (seu) propósito [o de Deus]”, no sentido de que os
romanos e todos aqueles que lessem esta carta ou a quem a mesma fosse
lida, percebessem que ninguém pode realmente amar a Deus se não é
primeiro eficazmente chamado. Em outras palavras, o apóstolo aos
gentios expressa aqui, em substância, e mesmo pensamento que teve o
apóstolo João ao escrever: “Nós amamos a Deus porque ele nos amou
primeiro.” (1Juan 4:16).
Na verdade o que Paulo diz aqui em Rm 8:28 é: «Sabemos que aos
que amam a Deus e o fazem por causa da obra de Deus neles — obra
determinada por Seu soberano propósito de eleição — a estes todas as
coisas colaboram para o bem.» Deste modo a responsabilidade humana é
plenamente mantida, mas o Deus triúno recebe toda a honra. Cf. Fp 2:12,
13; 2Ts 2:13.
Romanos (William Hendriksen) 382
29, 30. Porque os que de antemão conheceu, também os predestinou
a ser feitos conforme a imagem de seu Filho, para que ele pudesse ser o
primogênito entre muitos irmãos; e os que predestinou, a estes também
chamou; e os que chamou, a estes também justificou; e os que justificou, a
estes também glorificou.

A CADEIA DA SALVAÇÃO
Quando Paulo diz que aos que amam a Deus e são chamados
segundo Seu propósito todas as coisas colaboram para o bem, ele não
somente está pensando naquelas coisas que podem ser vistas ao nosso
redor agora ou o que está ocorrendo agora; não, ele inclui ainda o tempo
e a eternidade. A cadeia de salvação que ele está analisando retroage ao
que poderia denominar-se, considerado do ponto de vista humano, o
passado velado, o “silencioso recinto da eternidade”, e se projeta para o
futuro ilimitado.
Há um fato muito importante que é digno de menção: cada elo desta
cadeia da salvação representa uma ação divina. Por certo, a
responsabilidade e a ação humanas não ficam por isso excluídas, mas
aqui (em Rm 8:29, 30) nunca as menciona especificamente.
Há cinco elos nesta cadeia. Note-se que o predicado da primeira
cláusula passa a ser o sujeito da segunda, e assim continua. Esta
construção se denomina sorites. 247

A. Pré-conhecimento
“... aos que de antemão conheceu”.
É possível interpretar as palavras de Paulo da seguinte maneira:
Antes que o mundo fosse criado, Deus viu antecipadamente quem iria
crer nEle e quem não. daí que, com base essa fé prevista, Ele decidiu
escolher para salvação a toda aquela boa gente que ia pô-la em ação?

247
F. F. Bruce, op. cit., p. 176.
Romanos (William Hendriksen) 383
Resposta: tal construção é totalmente impossível, porque segundo
as Escrituras até a fé é um dom de Deus. Ver C.N.T. sobre Ef 2:8. Ver
também Jo 6:44, 66; 1Co 4:7; Fp 1:29. De fato, até as boas obras feitas
pelos crentes são preparadas de antemão por Deus! (Ef 2:10).
Pelo contrário, o pré-conhecimento mencionado em Rm 8:29
refere-se a um ativo deleite divino. Indica que Deus, em Sua própria
soberana complacência, assinalou com Seu amor certas pessoas, muitas
das quais não tinham nascido ainda, reconhecendo-as prazerosamente
como Suas próprias, escolhendo-as para vida e glória eternas. Tome-se
nota das seguintes passagens:
“Porque o conheci [a Abraão] para que ele dirija a sua casa e a seus
filhos após si” (G. 18:19).
“Antes que te formasses no ventre te conheci, e antes que nascesses
te separei” (Jr 1:5).
“Eu sou o bom pastor, e conheço as minhas ovelhas” (Jo 10:14). Cf.
Jo 10:28.
“Conhece o Senhor os que são Seus” (2 Ti. 2:19).
E acrescentem-se as seguintes: Sl. 1:6; Am 3:2; Os 13:5; Mt 7:23;
1Co 8:3; Gl 4:9; 1 Jo 3:1; e veja-se também Rm 11:2.
“O termo prognose [pré-conhecimento] revela o fato de que em Seu
propósito conforme à eleição, as pessoas não são objetos de um ‘mero
pré-conhecimento’ da parte de Deus, mas de Seu ‘ativo deleite’ ” 248

B. Predestinação para ser feitos conforme


“… também os predestinou para ser feitos conforme a imagem de
seu Filho, para que ele pudesse ser o primogênito entre muitos irmãos”.
Na verdade, o “pré-conhecimento” implica já a “predestinação”.
Há, porém, uma diferença de ênfase. Enquanto que o primeiro termo
dirige nossa atenção às pessoas a quem Deus escolheu e só de modo

248
H. Bavinck, The Doctrine of God, Grand Rapids, 1951, Vol. II, p. 343; minha tradução publicada
da obra de Bavinck Gereformeerde Dogmatiek: veja-se nota 16.
Romanos (William Hendriksen) 384
geral ao seu destino final (vida eterna, glória), o termo predestinação
fixa nosso pensamento mais definidamente no propósito para o qual elas
foram escolhidas e nos meios para consegui-lo. Essa meta não é
simplesmente “chegar enfim a entrar no céu”, mas “ser feitos conforme a
imagem do Filho de Deus”.
O homem foi criado à imagem de Deus. 249 Essa imagem foi
distorcida pelo pecado, mas restaurada em Cristo, quem foi e é a imagem
de Deus (2Co 4:4; Cl 1:15).
Fica por responder uma pergunta que se formulou: «Quando Paulo
descreve o propósito da predestinação, ou seja, que aqueles a quem Deus
conheceu de antemão sejam feitos conforme a imagem de seu Filho, tem
ele em mente (a) somente a conformação final; quer dizer, só aquela
parte da transformação à imagem de Cristo que terá lugar em Sua volta;
ou é que se está referindo a (b) todo processo da transformação, que
começa quando o pecador passa das trevas à luz? A esse respeito há uma
diferença de opinião entre os expositores:

Posição (a) Somente final Posição (b) Também presente


Greijdanus, Vol. I, p. 390 Calvino, p. 318
Lenski, p. 561 Cranfield, Vol. I, p. 432
Murray, Vol. I, p. 319 Lekkerkerker, Vol. I, p. 354
Ridderbos, p. 196 Robertson, W. P., IV, p. 377
Van Leeuwen-Jacobs, p. 160
Zahn, p. 417 250

249
Também assim o entende G. Ch. Aalders, Het Boek Genesis (Korte Verklaring), Kampen, 1914,
Vol. I, p. 96.
250
As referências que se fazem se referem aos Comentários — não a alguma outra obra — escritos
por estes autores.
Romanos (William Hendriksen) 385
Os que aceitam a posição (a) apontam para o fato de que o contexto
favorece esta posição: os vv. 11 e 23 se referem à gloriosa ressurreição
do corpo, e o v. 21 ao universo gloriosamente renovado. Estas
renovações não terão lugar até o dia da volta de Cristo. Disto eles
derivam sua conclusão que também a conformação à imagem de Cristo
deve interpretar-se como um grande evento escatológico que acontecerá
no dia da Grande Consumação.
Se a conformação à imagem do Filho de Deus se limita ao
remodelamento de nosso humilde corpo para que chegue a ter uma forma
semelhante à do glorioso corpo de Cristo (Fp 3:21, passagem a que com
frequência se faz referência), então a pergunta fica imediatamente
definida a favor da posição (a), visto que tal conformação certamente
não se levará a cabo até então.
No entanto, num contexto que trata assuntos tais como a chamada, a
justificação e a glorificação, não muitos expositores aceitariam esta
limitada interpretação das palavras «ser feitos conforme a imagem de
Seu Filho”. É a conformação ou transformação espiritual a que Paulo
tem em mente aqui.
Uma vez reconhecido isso, o peso da evidência, creio eu, inclina
pronunciadamente em favor da posição (b), e pelas seguintes razões:
1. Para chegar ao significado de “Ele também os predestinou para
ser feitos conforme a imagem de seu Filho”, o fator mais determinante
não é Rm 8:11, 21, 23, mas o muito mais próximo “Porque os que de
antemão conheceu” do. v 29a. Esta palavra nos leva para atrás, à
“eternidade” que, falando em termos humanos, precedeu à criação da
terra (Ef 1:4). Não é lógico então considerar que a conformação “à
imagem de seu Filho” não só tem que ver com o que acontecerá no dia
da volta de Cristo, mas também com o que ocorre no prolongado período
prévio a tal volta? Se não o fazemos, não estamos criando então uma
brecha de muito extensa duração sobre a qual não se diz nada?
Romanos (William Hendriksen) 386
2. Outras passagens — tais como Rm 12:1; Ef 4:32–5:2; Fp 3:10;
Cl 3:10 — que têm que ver com a renovação espiritual não podem
interpretar-se com base em uma relação com o dia da volta de Cristo.
3. No fundamental, a transformação requerida não é obra do homem
mas de Deus. Não é esse também o pensamento que se expressa em 2Co
3:18 — que inclusive contém as palavras “são transformados … na sua
própria imagem”? Também aqui a renovação que se descreve está
sucedendo agora, não somente quando Cristo voltar.
4. Se a renovação gradual à imagem de Cristo não é o que Paulo
tinha em mente, não somos obrigados então a chegar à conclusão que
falta um elo importante da cadeia da salvação, ou seja, o da santificação?
A resposta que alguns dão de que a justificação inclui à santificação, não
satisfaz. Sem dúvida, existe uma relação muito estreita entre estas duas,
porém nunca são totalmente identificadas uma com a outra.
Com base nas razões fornecidas, creio que a conformação à imagem
de Seu Filho da qual o apóstolo fala aqui em Rm 8:29 refere-se à
santificação. Esta é, também, obra de Deus (2Ts 2:13).
As palavras “para que ele pudesse ser o primogênito entre muitos
irmãos” estão carregadas de significado.
Duas ideias são enfatizadas aqui. Formam um contraste, mas
também uma harmonia. A primeira é a da preeminência de Cristo.
Decorando a parede de certo lar da Flórida — e sem dúvida muitas
outras paredes de outros lugares — há uma placa que diz:
PARA QUE EM TUDO
ELE TENHA
A PREEMINÊNCIA
Cl 1:18
Isto tem sentido, porque se tanto o dever como o destino dos crentes
é ser conforme à imagem do Filho de Deus, então Ele deve ser
preeminente. Além disso, o que bom recordatório é esta placa para o
benefício da vida e prática diárias do cristão!
Romanos (William Hendriksen) 387
A segunda ideia que transmite esta passagem é a da humildade e
maravilhoso amor de Cristo por aqueles a quem Ele tornou Seus por
meio de Seu sacrifício redentor. Note-se que diz “para que ele pudesse
ser o primogênito entre muitos irmãos!” Em outras palavras, o exaltado
Salvador não Se considera completo à parte daqueles a quem veio salvar!
Veja-se Hb 2:11, notando também a referência à santificação.
Para a ideia de Cristo como primogênito, veja-se também Cl 1:15;
Hb 1:6; e Ap 1:5.

C. Chamada
“… e os que predestinou, a estes também chamou”.
Saindo do que corresponde à eternidade, ou seja, pré-conhecimento
e predestinação — embora seus efeitos se cumpram na história — Paulo
entra agora, por meio de uma transição muito lógica, ao âmbito do
tempo. O apóstolo se refere, é claro, à chamada eficaz. O significado
desta chamada é algo que foi explicado com relação a Rm 1:7 e 8:28. Por
meio da conversão e da fé operadas pelo Espírito, o homem responde a
esta chamada.

D. Justificação
“… e s que chamou, a estes também justificou”.
Como já se explicou anteriormente, há um sentido em que “A
justificação pela fé” é o tema de Romanos. Seu significado foi exposto
mais acima. Veja-se sobre 1:17 e 3:24, 25a.

E. Glorificação
“… e os que justificou, a estes também glorificou”.
Os crentes compartilharão a glória de Cristo (Rm 8:17). Não pode
haver glória maior que a que se outorga aos seguidores de Cristo por
Romanos (William Hendriksen) 388
251
causa de sua íntima união com Cristo (Cl 1:27). Os filhos de Deus não
só receberão corpos gloriosamente transformados (Rm 8:11, 23; 1Co
15:43–53; Fp 3:21; 1Jo 3:2), mas também a partir desse dia de
ressurreição eles resplandecerão em toda sua glória tanto no corpo como
na alma, visto que estes já se terão reunido.
Tão segura é a glória futura dos crentes que, embora possa ser
considerada objeto de esperança (Rm 5:2) e por esta razão um assunto
que tem que ver com o futuro, aqui em Rm 8:30 é descrito como se já se
tivesse convertido numa realidade: “também (os) glorificou”. 252 E não é
verdade que em certo sentido os crentes “foram ressuscitados com
Cristo” (Cl 3:1), e estavam em seu cortejo quando o subiu ao céu (Ef
4:8)? E por acaso não estão sendo agora mesmo transformados de glória
em glória (2Co 3:18)?
Este tempo verbal passado (cf. Jd 14; e também a maior parte de Is
53) indica a certeza de que haverá um acontecimento futuro e, talvez,
com relação ao que estamos tratando, o fato de que a glória prometida
pelo futuro já começou a cumprir-se.
Tudo isso nos lembra uma estrofe do poema do Wordsworth Vede o
vencedor subir triunfante:
Nossa natureza humana elevaste,
Até as nuvens de Deus a exaltaste.
Em celeste morada hoje habitamos,
E contigo de Tua glória já desfrutamos.
Jesus reina, dos anjos o adorado,
o homem com Deus entronizado;
Poderoso Senhor, em tua ascensão
Divisamos nossa própria exaltação.
(Adaptado)

251
Para o significado de δόξα (glória) veja-se nota 38.
252
_δόξασε, 3ª. per. s. aor. ind. de δοξάζω, glorificar.
Romanos (William Hendriksen) 389
4b. Produz o fruto de super invencibilidade. Rm 8:31–39

31. Que diremos, pois, à vista destas coisas? Se Deus é por nós, quem
será contra nós? [RA]
O que Paulo quer dizer é: «Ao que conclusão nos levam estas
coisas?» É provável que a expressão “estas coisas” se refira não só aos
assuntos mencionados nos vv. 28–30, ou ainda vv. 18–30, mas a tudo o
que o apóstolo escreveu até agora nesta epístola. Qual é, então, o resumo
do que Paulo esteve dizendo nesta carta?
Ele indicou que o que o pecador necessita acima de todas as coisas
é uma posição justa diante de Deus e que esta justa posição não pode ser
obtida por nenhum esforço ou mérito humano. Essa bênção inestimável é
o dom gratuito de Deus e há uma só maneira de obtê-la, ou seja, pela fé.
Veja-se Rm 1:17; 3:24, 28, 30; 4:1, 2, 7, 8; 5:1, 8, 9; 7:24, 25; 8:1. A
bênção da salvação foi obtida para todos — quer judeu ou gentio — que
por meio do poder da graça de Deus ponham sua confiança no Salvador.
Foi Ele quem ganhou a salvação para Seu povo pelo derramamento do
Seu sangue. São salvos por Sua morte vicária, sua ressurreição, e sua
intercessão (Rm 1:4, 5; 3:21–26; 4:25; 5:1, 2, 8–21; 6:23; 7:24; 8:1–4; e
veja-se também Rm 8:34).
Então, se Deus é por nós, como o demonstrou claramente por meio
do que fez e faz por nós, quem será contra nós? Claro, não é como se
todos os inimigos já tivessem sido varridos, mas que pode conseguir
qualquer inimigo contra nós, se Deus está por nós?
Quando Paulo diz: “Se Deus está por nós”, ele não está pondo em
tela de juízo o cuidado protetor, o amor e as promessas de Deus. Muito
ao contrário, este “se” significa: «Se … como certamente o está!»
À luz de tudo isso, a pergunta inicial: “Que diremos, pois, à vista
destas coisas?” deverá ser respondida com um vigoroso: «Nada temos a
temer. Certamente a vitória está de nosso lado».
Mas o próprio apóstolo dá uma resposta muito mais completa nos
vv. 32–39. O começo desta resposta encontra-se no próximo versículo:
Romanos (William Hendriksen) 390
32. Aquele que nem ao seu próprio Filho poupou, mas o entregou
por todos nós, como não nos dará também com ele em sua misericórdia
todas as coisas?
“Ele … nem ao seu próprio Filho poupou, mas entregou”. A
profundidade de sentimento implícita nas palavras do v. 3 — “enviando
o seu próprio Filho” — é expressa ainda mais vividamente aqui no v.
32. 253 Se isso não significa que em algum sentido a entrega de Seu
unigênito e incomensuravelmente amado Filho foi para o Pai um
genuíno sacrifício, então as palavras já não têm significado nenhum.
É possível imaginar um juiz que não poupe um vicioso criminoso,
mas pronuncie sobre ele a severa sentença que merece. Não é
inconcebível que tal juiz possa logo desfrutar de uma boa noite de sono.
Mas o que temos aqui em Rm 8:32 é outra coisa. Deve levar-se em
conta os seguintes fatos:
Deus, o Juiz, tem um Filho, um único Filho, muito querido. Tal
Filho nunca cometeu pecado algum. Em tudo o que fazia, agradava o
Seu Pai (Jo 8:29).
Por outro lado: “Todos nós nos extraviamos como ovelhas, cada um
de nós se apartou por seu próprio caminho.” Isaías 53:6
No entanto, sobre este querido e amado Filho Deus agora pronuncia
a sentença que nós merecíamos. É uma sentença incomensurável em sua
severidade e é executada em cada detalhe. Deus não poupou o Seu Filho,
não mitigou a severidade da sentença de modo nenhum, e o próprio Filho
concordou com o Pai e o Espírito em tudo isso. Ele, o Filho, carregou
totalmente essa horrenda maldição. Tomou o cálice da inexprimível
agonia até a última gota. «Esse amargo cálice, o Amor o bebeu. Está
agora vazia para mim». Ver Is 53; Rm 5:6–8; 8:3, 4; 2Co 5:21; Gl 3:13.
Teria sido impensável que Deus rejeitasse a demanda de sua justiça. “O
Juiz da terra, não há de fazer o que é justo?” (Gn 18:25).

253
Note-se a presença de γε na cláusula _ς γε το_ _δίου υ_ο_ ο_κ _φείσατο.
Romanos (William Hendriksen) 391
Perguntamos: «Por que foi a maldição tirada de nossos ombros e
transferida ao Filho de Deus?» A resposta é: Tão profunda, intensa e
maravilhosamente amou Deus o mundo que deu o seu Filho, o unigênito,
para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.
Não é esse o significado de João 3:16?
Há, naturalmente, uma semelhança entre:
“Tu [Abraão] não me recusaste o teu filho, teu único filho” (Gn 22:12,
16)
e
“Ele [Deus] não poupou nem o seu próprio Filho (Rm 8:32).

Contudo, não é a semelhança o que chama nossa atenção em


primeiro lugar. É o contraste. Abraão foi resgatado no último momento e
também seu filho Isaque. Mas Cristo carregou a ira total e
voluntariamente.
“… por todos nós”. Em consonância com o contexto que antecede
de forma imediata, o apóstolo deve ter estado pensando em todos aqueles
que amam a Deus (v. 28), que tinham sido conhecidos de antemão e
predestinados (v. 29), que foram (ou seriam) chamados, justificados e
glorificados (v. 30). A isto se podem acrescentar as expressões similares
que há nas afirmações que vêm a seguir; ou seja, os escolhidos (v. 33),
aqueles por quem Cristo intercede (v. 34), os que são “mais que
vencedores” (v. 37). Foi a estas pessoas, a todas elas e somente a elas, a
quem os méritos da morte de Cristo tinham sido, ou estavam sendo, ou
seriam, aplicados salvificamente.
Novamente aqui, bem como em Rm 5:18 — veja-se sobre este
versículo — não é improvável que quando Paulo diz: “Ele [Deus] o
entregou [a seu Filho] por todos nós”, ele inclua em seu pensamento esta
ideia: «Deus entregou o seu Filho tanto pelo judeu como pelo gentio»,
por todos os Seus amados filhos sem restrição de raça, sexo,
nacionalidade, posição social, etc. Veja-se também Rm 3:22, 23, 29;
10:11–13.
Romanos (William Hendriksen) 392
“Como não nos dará também com ele em sua misericórdia todas as
coisas?”
O argumento vai de maior a menor, como em Rm 5:9, 10, 15, 17;
11:12, 24. Jamais poderia haver um dom maior que o dom de Cristo à
igreja. Esse dom está claramente implícito na afirmação: “Deus não
poupou o seu próprio filho, mas o entregou por todos nós”. Além disso,
embora entregar este Filho foi um sacrifício incomensurável conforme o
indicam claramente as palavras “Deus não poupou”, entretanto, o mesmo
nunca é um dom solitário: como não nos dará também com ele em sua
misericórdia — quer dizer, de boa vontade, gratuitamente,
prazerosamente, generosamente — todas as coisas?
Não vejo nenhuma boa razão para limitar a expressão “todas as
coisas” a bênçãos espirituais, como alguns o fazem. Paulo era um
homem muito prático. Sabia que as pessoas a quem se dirigia eram
pessoas de carne e osso, que às vezes se sentiam acossados por
preocupações de índole terrestre. A expressão “todas as coisas” deve
entender-se, consequentemente, em certo sentido irrestrito: tanto coisas
materiais como espirituais; cf. Rm 8:28, onde tem o mesmo significado
amplo. 254
Contudo, não é apenas em relação com questões gerais, quer sejam
físicas ou espirituais, que surgem as ansiedades. Por debaixo de todo o
resto está essa preocupação primordial: «Qual é minha situação diante de
Deus?» Paulo a responde assim:
33, 34. Quem apresentará alguma acusação contra os escolhidos de
Deus? É Deus quem justifica. Quem é aquele que condena? Cristo Jesus
[é] aquele que morreu, ainda mais, aquele que foi ressuscitado dentre os
mortos, aquele que está à destra de Deus, aquele que também intercede
por nós.
O v. 33 é provavelmente um eco intencional das palavras que
encontramos em Is 50:8, 9a: “Próximo está de mim aquele que me salva

254
F. F. Bruce, op. cit., p. 179, corretamente refere a Mt 6:33. Note-se o contexto: “O que comeremos,
beberemos, vestiremos?” Veja-se também Denney, op. cit., p. 653.
Romanos (William Hendriksen) 393
[ou vindica]; quem disputará comigo?… Eis aqui que Jeová o Senhor me
ajudará. Quem há que me condene?” 255
As perguntas retóricas — “Quem apresentará alguma acusação …?”
“Quem é aquele que condena?”— implicam uma vigorosa negação
contra a sugestão que haja alguma acusação ou condenação que tenha
validez.
Não são estes os escolhidos de Deus? Não é isso o que se implica
em Rm 8:29: “conhecidos de antemão … predestinados”? Por certo,
quando, na disputa entre o sumo sacerdote Josué e Satanás, Deus
defendeu Josué e repreendeu Satanás, este último foi silenciado
imediatamente (Zc 3:1–5). Quando Deus justifica uma pessoa, todas as
acusações perdem validez.
A natureza lógica desta resposta ressalta ainda mais claramente
pelas palavras que seguem, ou seja “Cristo Jesus [é] aquele que morreu
… foi ressuscitado dentre os mortos … está à destra de Deus …
intercede por nós”.
Note-se aqui de forma especial a frase “ainda mais” inserida entre a
referência por ocasião da morte de Cristo e Sua ressurreição. É provável
que a mesma expresse não somente a relação climática entre os dois
primeiros elementos, mas entre todos os elementos da série. Por certo,
por meio da morte de Cristo foram apagados os pecados de Seu povo.
Mas este fato foi estabelecido e posto fora do alcance de toda bem-
sucedida contradição possível por meio da ressurreição dentre os mortos.
Veja-se sobre Rm 4:25. E a exaltação do Filho de Deus à destra de Deus
— Mt 26:64; Mc 14:62; Lc 22:69; At 2:33; 3:13; 5:31; 7:55, 56; Ef 1:20;
Cl 3:1; Hb 1:3; 2:9; 8:1; 10:12; 12:2; 1Pe 1:21; 3:22; Ap 5:12 — que
simboliza a honra, o poder e a autoridade outorgados a Ele como
recompensa por Sua obra mediadora plenamente obtida, fortalece ainda
mais esta conclusão.

255
Uma vez que se aceite esta estreita relação entre Rm 8:33, 34 e Is 50:8, 9a, o problema da
pontuação da passagem paulino ficará resolvido.
Romanos (William Hendriksen) 394
O clímax da certeza é alcançado na cláusula: “que também
intercede por nós” — Is 53:12; 256 Lc 23:34; Jo 14:16; 1Jo 2:1; Hb 7:25
— porque, como se poderia imaginar que o Pai Se negaria a atender as
orações intercessoras do Filho que tão plena, maravilhosa e
gloriosamente cumpriu a tarefa que foi dada (Jo 17:4)? Acaso não disse
o Filho mesmo ao Pai: “Eu sabia que sempre me ouves”? (Jo 11:42a).
35. Quem nos separará do amor de Cristo? Aflição, ou angústia, ou
perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?
Eis aqui outra pergunta retórica que quer dizer: «Ninguém poderá
jamais nos separar do amor que Cristo tem por nós». A referência não é
ao nosso amor por Cristo, mas ao amor de Cristo por nós, como o indica
claramente o v. 37: “por meio daquele que nos amou”.
Dar uma descrição ou definição adequada desse amor de Cristo é
impossível. Cf. Ef 3:19. Tudo o que podemos fazer é balbuciar.
Poderíamos dizer, por exemplo, que é aquela generosa disposição do
compassivo coração de Cristo que se revelou na ação mais maravilhosa e
abnegada que jamais se fez. Veja-se Jo 5:13; Rm 5:8; 1Jo 4:10. Deus é
amor (1Jo 4:8), e pelo fato de que Cristo é Deus, também Cristo é amor.
Carlos Wesley, em seu hino Amor divino, deu-nos uma bela
descrição do amor de Cristo quando escreveu:
Jesus, Tua é toda compaixão,
És puro, ilimitado amor.

Paulo enumera sete circunstâncias que poderiam ser trazidas à baila


ao responder a questão de se algo poderia nos separar do amor de Cristo:
a. b. aflição, angústia. Não só é “aflição” uma boa tradução da
primeira das sete palavras gregas, mas também ainda está relacionada
etimologicamente à mesma. Embora a palavra apareça mais de quarenta
vezes no Novo Testamento, o apóstolo recorre a ela somente quatro
vezes (além do presente caso, Rm 8:35, também em Rm 2:9; 2Co 6:4;
256
Uma vez que se aceite esta estreita relação entre Rm 8:33, 34 e Is 50:8, 9a, o problema da
pontuação da passagem paulino ficará resolvido.
Romanos (William Hendriksen) 395
12:10). Nos primeiros três casos, ambas as palavras, aflição e angústia,
figuram juntas. O fato de que Paulo use ambas as palavras indica que em
sua mente havia uma distinção entre elas. A sugestão de vários
expositores de que as duas palavras usadas no original 257 se referem
respectivamente a aflição externa e a angústia interna, provavelmente
seja correta. No Novo Testamento Paulo é o único escritor que usa a
palavra angústia, e em suas epístolas encontra-se apenas quatro vezes
(além de Rm 8:35, está também em Rm 2:9; 2Co. 6:4; 12:10).
c. perseguição. No Novo Testamento este vocábulo ocorre pela
primeira vez em Mt 13:21: “Quando surge a aflição ou a perseguição por
causa da mensagem, ele imediatamente tropeça e cai”. Paulo usa a
palavra perseguição cinco vezes (aqui e também em 2Co 12:10; 2Ts 1:4;
duas vezes em 2Tm 3:11).
d. fome. A palavra no original significa fome. Aparece pela
primeira vez em Mt 24:7: “Haverá fomes e terremotos em diversos
lugares”. Veja-se também Lc 15:14: “Quando teve esbanjado tudo, veio
uma grande fome …” Embora a palavra seja utilizada uma dúzia de
vezes no Novo Testamento, Paulo só a usa aqui e em 2Co 11:17.
e. nudez. No Novo Testamento este substantivo se acha somente
três vezes: aqui, em 2Co 11:27; e em Ap 3:18, mas o adjetivo derivado
do mesmo (despido) ocorre várias vezes; por exemplo, em Mt 25:36:
“Estive desnudo e me cobristes”. Muitas vezes o significado é mais geral
do que desnudo poderia sugerir; por isso necessitado de roupa é às vezes
uma melhor tradução.
f. perigo. Este substantivo ocorre aqui e oito vezes em 2Co 11:26.
g. espada, palavra de frequente uso no Novo Testamento,
começando com Mt 10:34: “Eu não vim trazer paz, mas uma espada”.
Paulo só a usa aqui em Rm 13:4 e em Ef 6:17.
Não devemos esquecer que Paulo, ao falar destas adversas
circunstâncias que Satanás e outros inimigos da cruz usavam para efetuar

257
θλ_ψις y στενοχωρία (basicamente lugar estreito)
Romanos (William Hendriksen) 396
uma separação entre os crentes e seu Senhor, não o fazia como teólogo
acadêmico ou como filósofo. Ao contrário, tal como 2Co 11:23–29 o
indica, ele já tinha sofrido as primeiras seis destas sete tribulações antes
de redigir a carta aos Romanos. Além disso, por meio da sétima, quer
dizer, a espada, ele seria executado. O apóstolo falava não só por
inspiração mas também por experiência; por isso, ao dizer que nenhuma
destas coisas podem causar uma separação entre os crentes e seu Senhor,
ele sabia do que falava!
Além disso, ao implicar que “nada nos separará do amor de Cristo”,
não estava também dizendo: «Ao contrário, o sofrer por amor a Cristo
nos aproximará dele e do seu amor»? Cf. Fp 1:29 “Porque lhes foi
concedido por causa de Cristo, não só crer nele, mas também sofrer por
ele”. Sobre o tema Sofrer por Cristo: uma bênção, veja-se C.N.T. sobre
Filipenses, p. 104.
36. Como está escrito: “Por causa de ti somos mortos todos os dias;
somos considerados ovelhas de matadouro”.
Ao citar Sl. 44:22 (Hb 44:23; LXX 43:23), Paulo demonstra que
nada tem de estranho ou inesperado com relação ao sofrimento de hoje
em dia por causa do Senhor. O salmista confiava em Deus. De outra
maneira, como poderia ter exclamado “Tu és meu Rei, ó Deus”? E como
poderia ter dito “Em Deus nos gloriamos todos os dias”?
Contudo, ele não obteve do sofrimento o consolo que Paulo tinha
em suas experiências dolorosas. De outro modo não poderia ter dito:
“Desperta, ó Senhor! Por que dormes? Desperta! Não nos rejeites para
sempre”.
O apóstolo, por outro lado, entendeu que sofrer por Cristo
significava entrar numa comunhão mais estreita com Ele. Tal sofrimento
era um lucro, não uma perda.
Onde aprendeu Paulo esta lição? Será possível que ele a tenha
aprendido não só de sua experiência e por inspiração direta, mas também
da tradição, porque os primeiros crentes lhe transmitiram as palavras de
Jesus? Foi Jesus quem havia dito:
Romanos (William Hendriksen) 397
“Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque
deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois quando, por minha causa,
vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal
contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão
nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós”
(Mt 5:10–12, RA).
37–39. Não, em todas estas coisas somos mais que vencedores por
meio daquele que nos amou. Porque estou convencido de que nem a morte
nem a vida, nem anjos nem principados, nem coisas presentes nem coisas
futuras, nem poderes, nem a altura nem a profundidade, nem nenhuma
outra coisa criada poderá nos separar do amor de Deus que está em
Cristo Jesus, nosso Senhor.
Paulo esteve falando de aflição, angústia, perseguição, fome, nudez,
perigo e espada. Nesse momento até parecia que ele não podia pensar em
outra coisa senão em sofrimentos e dificuldades. Não obstante, sua
intenção era precisamente a oposta: desejava enfatizar que em meio de
todas estas desagradáveis experiências — na verdade, até por meio delas
e com sua ajuda — somos mais que vencedores. Não somente que no
final seremos vencedores; não, já agora somos super vencedores. E isto,
não — digamo-lo imediatamente — por causa de nosso maravilhoso
caráter e resoluta coragem.
A Sra. Merrill E. Gates, 1886, estava certa quando escreveu:

Teu amor por mim, ó Cristo,


Teu amor por mim,
Não o meu por Ti, declaro,
Não o meu por Ti.
Este é meu consolo possante,
Esta é minha alegria cantante,
Teu amor como meu,
Teu amor por mim.
Romanos (William Hendriksen) 398
O que quer o apóstolo dizer quando chama os crentes “mais que
vencedores”? Quis dizer: «Estamos obtendo uma vitória total e
terminante»? Sem dúvida, quis dizer isso. Mas é isso tudo o que quis
dizer? As palavras, em todo caso, devem interpretar-se à luz de seu
contexto. O apóstolo diz: “em todas estas coisas”. A referência aponta,
naturalmente, às coisas enumeradas no v. 35. Outras coisas” e “seres”
serão acrescentadas num momento, as que se mencionam nos vv. 38, 39:
a morte, a vida, os anjos, etc. A estrutura da frase (note-se o porque,
agindo em função conjuntiva) indica que estas também devem ser
acrescentadas. Finalmente, note-se a estreita relação que há entre o v. 28
e o v. 31s. (“porque” v. 29; “que diremos, pois”, v. 31); e também o
paralelo “todas as coisas” (v. 28) e “em todas estas coisas” (v. 37). 258
A semelhança torna-se mais evidente quando ambas as linhas são
colocadas uma sob a outra:

Versículo 28
“E sabemos que aos que amam a Deus todas as coisas colaboram
para o bem”
Versículo 37
“Não, em todas estas coisas somos mais que vencedores por meio
daquele que nos amou”
Visto que nosso amor por Deus nasce do Seu amor por nós —
sequência que nunca falha, visto que por natureza não amamos a Deus
— as duas afirmações parecem uma com a outra também nisso. Não são
iguais, mas certamente são similares.
Uma vez que esta estreita relação é captada, começamos a entender
que o que Paulo está dizendo é que não se trata somente de que estas
diversas dificuldades e forças não nos danificam, porém na verdade nos
ajudam: todas elas colaboram para o bem. É por esta razão que ele

258
No original πάντα … _ν τούτοις π_σιν.
Romanos (William Hendriksen) 399
afirma que em conexão com elas somos mais que vencedores. Um
vencedor é uma pessoa que derrota o inimigo. Aquele que é mais que
vencedor faz com que o inimigo seja uma ajuda.
Se alguém conheceu o significado de ser “mais que vencedores”,
essa pessoa deve ter sido Paulo. Não foi precisamente este apóstolo
“mais que vencido” por Deus — De acérrimo perseguidor tinha passado
a ser um entusiasta partidário! Com razão ele podia dizer: “Estou
convencido”, e como não estaria?!
É necessário acrescentar algumas palavras com relação às “coisas”
e “entes” enumerados nos vv. 38 e 39. Há quatro pares de objetos, mais
dois que se mencionam separadamente.

OS PARES
1. nem a morte nem a vida podem nos separar do amor de Deus
que é em Cristo Jesus nosso Senhor.
Vista a menção logo feita da morte (v. 36), não admira que Paulo
faça desta palavra a primeira da série. As perguntas dos salmistas com
relação à possibilidade de comunhão entre Deus e o homem mesmo
depois da morte — veja-se Sl. 6:5; 30:9; 88:10–12 — são respondidas
aqui (Rm 8:38, 39) com um determinante “Sim”, uma confissão
antecipada já no Antigo Testamento (Sl. 49:5; 73:24, 25; Jó 19:26, 17). o
fato de que nem mesmo a morte obteria separação entre Deus e o crente
estava firmemente encravado no coração e na mente de Paulo (2Co 5:8;
Fp 1:21–23). Há confirmação adicional disso em Lc 23:43; Jo 14:2;
17:24; Hb 12:18–24.
No que respeita à vida, apesar de todas as suas distrações,
especialmente para o incrédulo (Lc 8:14), a vida do crente é uma vida de
comunhão com Deus. Tal é o ensino de ambos os Testamentos (Sl. 23:4;
63:1–8; 73:23; 116:1, 2; Rm 14:8, 9; Cl 3:1–3).
Romanos (William Hendriksen) 400
2. nem anjos nem principados.
Os anjos são mencionados com grande frequência em ambos os
Testamentos (Gn 24:7, 40; 31:11; Sl. 68:17; Mt 1:20, 24; 2:13, 19; 28:2,
5; Lc 1:11; Cl 2:18; 2Ts 1:7; etc.). Há um gráfico que resume a doutrina
bíblica com relação aos anjos no C.N.T. sobre Mateus, p. 729.
Na literatura judaica, os principados são anjos. Em Ef 3:10 é
possível que a referência seja a uma categoria de anjos bons. Veja-se
C.N.T. sobre Efésios, pp. 173–175. Veja-se também 1Co 15:24; Ef 1:21;
6:12; Cl 1:16; 2:10, 15. Os Rolos do Mar Morto contêm também
múltiplas referências aos anjos, especialmente a anjos maus. Outras
referências encontram-se no livro pseudepigráfico de Enoque. Os nomes
de anjos, as diversas categorias em que deviam ser classificados e o culto
para com eles, eram questões sobre as quais os hereges especialmente
centralizariam sua atenção.
O que Paulo diz no presente contexto (Rm 8:38) é simplesmente
isso: que até os anjos, sejam bons ou maus, reais ou irreais (estes últimos
como referência a classes de espíritos supramundanos que existem
somente na imaginação das pessoas), nada podem fazer para nos separar
do amor de Deus em Cristo.

3. nem coisas presentes nem coisas por vir.


Este grupamento é em sentido horizontal da linha do tempo.
O tempo, quer seja presente ou futuro — o presente com seus
problemas, o futuro com seus prenúncios — nada pode fazer para nos
separar do grande e profundo amor com que Deus em Cristo nos sorri do
alto e que momento a momento nos confere, perdoando, ajudando e nos
alentando em nosso caminho pela vida.

4. nem o alto nem o profundo.


Esta classificação é em sentido vertical.
Ameaça-nos o perigo que vem do alto? Parece o inferno abrir suas
mandíbulas? O filho de Deus está seguro. Se o tempo não o pode separar
Romanos (William Hendriksen) 401
do amor de Deus, tampouco poderá fazê-lo o espaço: nem a altura, nem
a profundidade.

OS ENTES INDIVIDUAIS
1. nem poderes.
No Novo Testamento os poderes são incluídos nos grupamentos de
anjos. Veja-se Ef 1:21; 3:10; 6:12; Cl 1:16; 2:15; 1Pe 3:22. É onde
pertencem. 259
A razão pela qual Paulo colocou “nem poderes” entre “nem coisas
presentes nem coisas por vir” e “nem a altura, nem a profundidade” é
algo que desconhecemos.

2. nem nenhuma outra coisa criada.


O apóstolo acrescenta este ente todo monopolista para enfatizar que
nada de nenhuma ordem será capaz de separar os crentes “do amor de
Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”.
Assim, então, esta extensa subdivisão da epístola de Paulo aos
Romanos, ou seja, capítulos 5–8 conclui como inicia: note-se em ambos
os casos (Rm 5:1 e 8:39) a referência a “nosso Senhor Jesus Cristo” (ou
“Cristo Jesus, nosso Senhor). Tudo o mencionado deve servir para
fortalecer a experiência dos santos do amor de Deus que está em Seu
Filho. A Deus seja a glória!

Lições práticas derivadas de Romanos 8


Romanos 8 é um capítulo muito reconfortante. Responde algumas
das perguntas mais comovedoras que com frequência formulam os
crentes e os inquiridores sérios.

259
Não vejo mérito na sugestão de que δυνάμεις, tal como o usa aqui, poderia referir-se a “obras de
poder” ou “milagres”. O contexto (anjos … principados) não favorece tal interpretação.
Romanos (William Hendriksen) 402
1. É de comum conhecimento que durante as últimas décadas a
ciência e a arte de curar têm feito grandes progressos. A varíola foi quase
eliminada. Os antibióticos salvaram muitas vidas que de outra maneira,
falando em termos puramente humanos, teriam sucumbido. A
investigação sobre o câncer está lançando muitos resultados favoráveis e
poderíamos continuar mencionando coisas assim. Mas há também algum
remédio para aqueles que se encontram diante das portas da morte;
preocupados, talvez, a respeito da entrada às galerias da glória? Para os
filhos de Deus há uma resposta reconfortante:
V. 1 “Portanto, já não há condenação para os que estão em Cristo
Jesus”. Acrescente-se também os vv. 33, 34 e 39.

2. Como posso saber se sou crente? Resposta:


V. 5 “Porque os que vivem segundo a carne têm suas mentes postas
nas coisas da carne, mas os que vivem segundo o Espírito têm suas
mentes postas nas coisas do Espírito”. Em outras palavras: «Qual é o seu
interesse mais absorvente — ou o meu? É o mundo ou é o reino de
Deus?” Se for o último, então certamente sou um filho de Deus.
3. Sei que amo a Deus, mas como sei que Ele me ama ? Resposta:
V. 28 “E sabemos que aos que amam a Deus todas as coisas
colaboram para bem; quer dizer, aos que são chamados segundo (seu)
propósito”. Cf. 1Jo 4:19: “Amamos a Deus porque ele nos amou
primeiro”.
4. Sei que Deus me ama, Mas como posso saber se o seguirá
fazendo? Resposta:
V. 38, 39 “Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem
anjos nem principados, nem coisas presentes nem coisas futuras, nem
poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra coisa
criada poderá nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus
nosso senhor”.
5. Como posso saber que a oração é eficaz? Resposta:
Romanos (William Hendriksen) 403
Vv. 26, 27 “E de igual maneira o Espírito também nos ajuda em
nossa fraqueza, porque não sabemos o que é que devemos orar, mas o
próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele
que esquadrinha os corações sabe qual é a intenção do Espírito, que ele
está intercedendo pelos santos segundo a vontade de Deus”.
6. Quão ricos seremos na vida futura? Resposta:
Vv. 17, 18 “E se filhos, então herdeiros, herdeiros de Deus e co-
herdeiros com Cristo; visto que o fato de que agora compartilhamos seu
sofrimento significa que (mais adiante) compartilharemos sua glória.
Porque considero que os sofrimentos deste tempo presente não são
dignos de ser comparados com a glória que será revelada em nós”.
7. Qual é, segundo Romanos 8, etc., o dever principal do crente?
Resposta:
V. 14 “Porque todos os que são dirigidos pelo Espírito de Deus,
estes são filhos de Deus”. Andam (v. 4) “não segundo a carne, mas
segundo o Espírito”. Exibem em suas vidas “o fruto do Espírito”, com
relação ao qual veja-se Gl 5:22, 23.
8. Tem o crente direito de ser otimista? Resposta:
Somente o crente, dentre todas as pessoas, tem esse direito. Veja-se
vv. 15–18, começando com “Porque não recebestes um espírito de
escravidão, para vos encher outra vez de temor, mas recebestes o espírito
de adoção …”. E também os vv. 35–39, começando com: “Quem nos
separará do amor de Cristo?”

Resumo de Romanos 8
A. Aos filhos de Deus todas as coisas colaboram para o bem (vv.
1–30).
Em estreita relação com o parágrafo que imediatamente o antecede
— note-se “Graças a Deus por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm
7:25) —, como também com o conteúdo de toda a epístola até o presente
momento, este capítulo começa com uma exclamação triunfante:
Romanos (William Hendriksen) 404
“Portanto, já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus”. A
expiação vicária de Cristo tirou a culpa de seus pecados. Com relação ao
poder contaminador do pecado, a operação eficaz do Espírito Santo, que
habita em seus corações e que é a influência governante de suas vidas,
tem-nos feito “livres da lei do pecado e da morte”.
Deus fez por eles o que a lei, operando por si mesma, nunca poderia
ter obtido. Devido ao pecado, a lei era incapaz de salvar. Mas Deus, por
meio da morte vicária de Seu Filho, operou a salvação. Ele o fez sem
sacrificar de maneira alguma a demanda da justiça divina segundo a qual
o pecado não pode deixar de ser castigado. Somente aquela gente cuja
meta é viver segundo as demandas do Espírito podem derivar consolo
desta grande verdade. Por outro lado, aqueles que estão “na carne”, quer
dizer, que permitem que suas vidas sejam governadas basicamente por
sua natureza humana pecadora, não têm este consolo. Não podem
“agradar a Deus” (vv. 1–8).
Dirigindo-se diretamente ao seu auditório romano, Paulo prossegue:
«Vocês, pelo contrário, não estão basicamente sob o controle da natureza
humana pecaminosa, vocês são governados pelo Espírito», querendo
dizer: «Por isso, vocês são, sem dúvida, capazes de agradar a Deus, e de
fato, o fazem. (Naturalmente, não necessariamente cada um de vós; se
alguma pessoa revelar por meio de suas palavras, ações e atitudes que
não deseja ser controlado pelo Espírito, essa pessoa não pertence a
Cristo)».
Nossa meta deve ser, então, viver em harmonia com a direção que o
Espírito dá a nossas vidas. Aqueles que o fazem, verdadeiramente
viverão. Os que não o fazem estão condenados a morrer. Todos aqueles,
e somente aqueles, cujas vidas demonstram que estão sendo guiados pelo
Espírito, são verdadeiramente filhos de Deus.
Estas pessoas não são escravos mas filhos. O Espírito acrescenta o
Seu próprio testemunho à voz de sua consciência regenerada, dando a
eles assim uma dupla segurança de que são filhos de Deus. E se são
filhos, são então também herdeiros. Seu testador é Deus. É Ele quem
Romanos (William Hendriksen) 405
lhes conferirá uma gloriosa herança, uma herança que compartilharão
com Cristo, quem, sendo o Filho de Deus por natureza, é o principal
herdeiro. Eles são co-herdeiros, quer dizer, herdeiros junto com Ele. Os
que aqui e agora compartilham os sofrimentos de Cristo compartilharão
mais adiante Sua glória (vv. 9–18).
Toda a criação sub-humana deseja ardentemente o dia desta glória
futura dos filhos de Deus. Assim como o gemer de uma mulher que tem
dores de parto indica ao mesmo tempo dor e esperança, do mesmo modo
o indica o gemer da natureza. É como se toda a criação sub-humana
estivesse estirando o pescoço para ver “a revelação dos filhos de Deus”,
porque tal acontecimento significará também glória para toda a criação.
Mas este não é o único gemer que ocorre. “Não só isto, mas
também nós mesmos, que possuímos as primícias do Espírito, até nós
mesmos gememos em nosso interior enquanto esperamos ansiosamente
nossa adoção, quer dizer, a redenção de nosso corpo”.
Não só geme a natureza e gememos nós, mas “o Espírito também
nos ajuda em nossa fraqueza, porque não sabemos o que é que devemos
orar, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos
inexprimíveis”.
Tal gemer não é ineficaz. Deus discerne e concede o ardente desejo
do Espírito para que a plena salvação para o corpo e para a alma nos
chegue (vv. 19–27).
Isto se faz certo não pelo amor dos santos por Deus, mas pelo Seu
amor por eles: “… àqueles que amam a Deus todas as coisas cooperam
para o bem; quer dizer, aos que são chamados segundo seu propósito”.
Além disso, esta cooperação de todas as coisas para o bem não é
algo que apenas acontece agora, mas sempre foi assim — “Porque aos
que de antemão conheceu, também os predestinou a ser feitos conforme
a imagem de seu Filho, para que ele pudesse ser o primogênito entre
muitos irmãos; e os que predestinou, a estes também chamou; e os que
chamou, a estes também justificou” — e continuará sendo assim: “e os
que justificou, a estes também glorificou”, quer dizer «a estes Ele muito
Romanos (William Hendriksen) 406
certamente glorificará também». Este fato é tão certo que se usa o tempo
passado, como se já tivesse sucedido! (vv. 28–30).

B. Como resultado, eles são mais que vencedores (vv. 31–39)

“Se Deus é por nós, quem será contra nós?”


É Deus quem dá. A verdade é que Ele nem poupou o Seu próprio
Filho, mas o entregou por todos nós. “Como não nos dará também com
ele todas as coisas?”
É Deus quem perdoa. Ele apaga nossos pecados tão completamente
que nenhuma acusação sustentável pode ser apresentado contra os
escolhidos de Deus. “É Deus quem justifica. Quem é aquele que
condena?” A certeza de que nossos pecados foram apagados não está,
porém, baseada somente em que Cristo morreu por nós, mas também em
que o Pai também O ressuscitou dentre os mortos, demonstrando com
isso que Sua morte tinha sido aceita como uma expiação totalmente
adequada de nossos pecados. Para que nossa certeza seja maior ainda
somos consolados pelo fato de que o Salvador está sentado à destra de
Deus. Ali Ele intercede por nós, ocupando-se sem cessar de que os
méritos de Seu sacrifício nos sejam plenamente aplicados (vv. 31–34).
É claro, então, que Cristo nos ama com um amor do qual nada nem
ninguém pode nos separar. E é por esta razão que somos “mais que
vencedores”. Não somente vencedores, de tal modo que as forças que se
nos opõem ficam neutralizadas, feitas ineficazes, mas mais que
vencedores, de modo que a morte, a vida, os anjos, os principados, as
coisas presentes, as coisas por vir, a altura e a profundidade, sim, mesmo
toda coisa criada que tem algo que ver conosco opera a nosso favor visto
que em todas elas, e na maneira como nos afetam, é-nos revelado o amor
de Deus que está em Cristo, um amor do qual ninguém nem nada poderá
jamais nos separar (vv. 35–39).
Romanos (William Hendriksen) 407
Resumo de Romanos 1–8 e antecipação de Romanos 9–11

Depois de um prólogo (Rm 1:1–15), Paulo demonstrou que a


Justificação pela fé é ao mesmo tempo real, tendo sido provida não pelo
homem mas por Deus (Rm 1:16, 17), e necessária; e isto tanto para o
gentio (Rm 1:18–32) como para o judeu (Rm 2:1–3:8); para todos, na
verdade (Rm 3:9–20), sem diferença entre judeu e gentio (Rm 3:21, 22).
“Todos pecaram e não alcançaram a glória de Deus, sendo justificados
livremente por sua graça por meio da redenção (obtida) em Cristo Jesus;
a quem Deus designou que fosse, pelo derramamento de seu sangue, um
sacrifício que tira a ira, (eficaz) por meio da fé …” (Rm 3:23–25a).
Como resultado, não resta lugar algum para jactar-se (Rm 3:27).
Significa isso, então, que invalidamos a lei por meio de nossa insistência
na fé? “Ao contrário”, diz Paulo, “afirmamos a lei” (v. 31).
No cap. 4 o apóstolo demonstrou que este modo de ser salvo, o
único e definitivo, é também determinadamente bíblico (exemplos:
Abraão e Davi). Além disso, é eficaz. Entre as muitas bênçãos que
brotam da fé dada por Deus, segundo o sistema ou filosofia divina da
redenção, as que seguem são provavelmente os mais destacáveis: a paz, a
santidade, a liberdade e a super invencibilidade. Estes frutos são
descritos, respectivamente, nos caps. 5, 6, 7, e 8.

Nos caps. 9–11 Paulo demonstrará que este método de obter a


salvação, divinamente provido, é também histórico. Durante o
transcurso da história, as promessas mais preciosas de Deus não
estiveram destinadas à nação incrédula, mas aos remanescentes crentes.
Assim foi, é e sempre será, até Cristo voltar. A nação foi rejeitada por
causa da sua incredulidade (Rm 9:27, 31, 32; 10:21). Cf. Mt 8:11, 12;
21:41; 22:8, 9; Lc 20:16; 1Ts 2:14b–16. Todo Israel será salvo. Veja-se
Rm 9:6; 11:1–6, 26.
Romanos (William Hendriksen) 408
Os gentios também são salvos pela única maneira possível: pela fé.
Esta regra é vigente para todos, sem distinção étnica (Rm 9:24–26;
10:4–13; 11:30, 23, 25).
Paulo mostra como a desobediência dos judeus abre a porta para a
salvação dos gentios e como, por sua vez, a salvação destes últimos faz
com que os judeus — em ambos os casos o remanescente escolhido,
naturalmente — sejam cheios de ciúme que os leva à salvação (Rm
11:11, 30, 31). Esta constantemente recorrente volta dos fatos resulta na
enlevada doxologia de Rm 11:33–36. No entanto, como se demonstrou,
tanto para o judeu como para o gentio o caminho da salvação é o mesmo,
ou seja, o da justificação pela fé, o produto não das obras ou do mérito
humano mas da divina graça soberana.
Notamos, então, que quando Paulo chega ao cap. 9, não se esqueceu
absolutamente de seu tema principal.
Não obstante, é verdade que — tal como o fez nos primeiros oito
capítulos — também aqui nos capítulos 9–11 o apóstolo se ocupa de
diversos temas, alguns dos quais estão estreitamente relacionados com o
tema central, e outros nem tanto. É assim que “os privilégios especiais de
que desfrutavam os judeus”, enumerados agora em Rm 9:3–5 de forma
um pouco mais ampla, reflete o dito em Rm 2:17, 18; 3:1, 2; e “o que
significa ser um verdadeira israelita” (Rm 9:6) traz ecos de Rm 2:28, 29.
Compare-se também as seguintes passagens:

Rm 9:5—1:25 9:26—8:14 11:15—5:11


Rm 9:19—3:7 9:33—5:5 11:28—5:10
Rm 9:23—8:30 10:9—4:24 11:32—3:9; 5:19
Rm 9:24—3:29 10:12—3:22, 29, 30

Até a doutrina da predestinação divina, para a qual alguém em geral


se refere imediatamente a Rm 9:10–24; 11:5–8, 29, é antecipada em Rm
8:29, 30.
Romanos (William Hendriksen) 409
Poderia perguntar-se, por que considerou Paulo necessário pôr tanta
ênfase na justificação pela fé à parte das obras da lei? À luz do que o
próprio escritor diz em Rm 9:6s, a resposta deve ser: «Porque os judeus,
em termos gerais, interpretavam mal a promessa mais preciosa de Deus
ao crer que a mesma pertencia à linhagem física de Abraão, e que seu
cumprimento dependia, ao menos em parte, do mérito humano». Além
disso, não é verdade que o coração humano, quer seja do judeu ou do
gentio, é sempre por natureza orgulhoso e indisposto a ser “salvo pela
graça”? Finalmente, não só era necessário que a própria igreja de Roma
fosse pura em sua doutrina, mas também seus membros deviam estar em
condições de defender suas convicções quando as mesmas fossem
atacadas por estranhos; quer dizer, por judeus e/ou gentios incrédulos.
Outro fator adicional, um muito importante e que não deve ficar
sem menção em nenhuma introdução aos caps. 9–11 é o seguinte: o
apóstolo não era somente um homem de agudo intelecto e de uma
vontade de ferro, mas também tinha um terno coração. É surpreendente,
então, que ele, ao contemplar os tesouros da salvação, sobre os quais
escreve tão comovedoramente no cap. 8 e também antes, deixe escapar
— por assim dizer — um suspiro de profunda compaixão e intensa
tristeza ao considerar que muitos de seus compatriotas não chegassem a
compartilhar estas gloriosas bênçãos?
Todos estes fatores devem ser levados em conta. Eles lançam a luz
necessária sobre o significado e propósito dos caps. 9–11. Paulo passará
logo a demonstrar que o sincero convite de Deus ainda continua sendo
estendido aos judeus. O Senhor “não terminou ainda com os judeus”. Até
o dia da volta de Cristo, quer dizer, através da presente era ou
dispensação da graça, sua rejeição nunca é completa (cap. 9; veja-se
especialmente vv. 6 e 27), nunca é arbitrária (cap. 10; veja-se v. 21); e
nunca absoluta e incondicional (cap. 11; veja-se vv. 14 e 26). Até em
Sua ira Deus não nega sua compaixão. Tampouco o faz Paulo.
Romanos (William Hendriksen) 410
O autor do presente comentário está bem informado do fato de que
muitos eruditos competentes tanto do passado como do presente, opinam
que um dos propósitos dos caps. 9–11 é o de demonstrar que quando
chegar, ou esteja por chegar, o limite final da história humana, os judeus
que então vivam na terra serão salvos. Segundo eles o entendem, isto
sucederá com (a) a nação de Israel em sua totalidade, (b) a grande massa
[dos judeus], (c) toda a nação. A mesma será (d) uma recuperação
escatológica total dos judeus incrédulos. 260 Se isto é o que Paulo na
verdade tinha em mente ou não, é algo que estará entre os temas a ser
considerados nas páginas que seguem.

260
a. S. Greijdanus, Kommentaar op het Nieuwe Testament, Romeinen, Vol. II, pp. 515, 516; C.E.B.
Cranfield, op. cit., Vol. II, pp. 576, 577.
b. J. Murray, op. cit., Vol. II, p. 98; cf. p. xiv.
c. C. Hodge, op. cit., p. 589.
d. G. Vos, The Pauline Eschatology, Princeton, 1930, p. 89.
Romanos (William Hendriksen) 411
A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ É HISTÓRICA

ROMANOS 9
1. A tristeza de Paulo. Rm 9:1–5

1, 2. Falo a verdade em Cristo — não minto; minha consciência dá


testemunho junto comigo no Espírito Santo — (quando declaro) que
tenho grande tristeza e incessante angústia em meu coração.
Com as palavras: “Falo a verdade … não minto” compare-se 2Co
11:31; 12:6; Gl 1:20; 1Tm. 2:7.
É claro que Paulo está profundamente comovido ao ditar estas
palavras. A tristeza de seu coração é grande em sua intensidade e
profunda em sua natureza, não lhe cabendo um termo menor que o de
angústia, e é incessante em sua duração.
O que é que leva Paulo a dizer que certamente fala a verdade
quando descreve assim o estado interior de sua mente e coração?
Para descobrir a resposta deveríamos ter em mente que ele já
expressou sua opinião com relação aos judeus numa linguagem que dista
de ser lisonjeira (veja-se 2:5, 17–24; também 1Ts 2:4b–16), e está
prestes a voltar a fazê-lo (Rm 9:31, 32; 10:2, 3, 16, 21; 11:7–10). Seus
compatriotas poderiam facilmente chegar a pensar: «Paulo nos odeia».
Cf. At 21:28s; 24:5s. Porém nada poderia estar mais longe da verdade.
Isto explica por que Paulo considerava necessário declarar que a
incredulidade e consequente rejeição de Israel eram para ele realmente
uma grande aflição. Paulo ama os seus compatriotas verdadeira e
profundamente. Mas ama a Cristo ainda mais. Ele fala a verdade “em
Cristo”. Ao menos em alguma medida sua tristeza vem deste amor por
Ele a quem os judeus repudiaram. Sua consciência confirma o que ele
diz; e, como o indica a expressão “no Espírito Santo”, essa consciência
pertence a um homem em quem o Espírito habita constantemente e que
Romanos (William Hendriksen) 412
se deixa guiar por Ele (veja-se Rm 8:9, 14, 16). Contraste-se isso com
Rm 2:15, que se refere à consciência daqueles que ainda estão nas trevas.
3. Porque desejaria que eu mesmo fosse amaldiçoado (e separado) de
Cristo por amor a meus irmãos, meus compatriotas segundo a carne …261
Como o indica a palavra “porque”, Paulo começa aqui a dar a razão
de sua forte afirmação dos vv. 1 e 2. É tão grande sua dor pela
incredulidade dos judeus e pelo desagrado divino para com eles, que
declara: “desejaria que eu mesmo fosse amaldiçoado (e separado) de
Cristo por amor a meus irmãos, meus compatriotas segundo a carne”. E
o diz do fundo do coração. Esta afirmação: “desejaria que … fosse
separado de Cristo” é tanto mais notável porque provém do coração e
dos lábios do mesmo homem para quem a impossibilidade de ser
separado de Cristo significava tanto, como o demonstravam Rm 8:38,
39! É como se ele dissesse: «Desejaria ser separado de Cristo por amor a
outros se isto fosse possível, mas percebo que é impossível, o que em
certo sentido aumenta meu pesar!»
Esta é claramente a linguagem de um crente. A pessoa que é
indiferente aos que perecem pode muito bem perguntar-se se é crente.
O sentir de Paulo lembra Judá, quem, como garantia de seu irmão
Benjamim, disse: “Rogo-te, portanto, que fiques agora o teu servo aqui
como escravo de meu senhor em lugar do jovem” (Gn 44:33). Faz-nos

261
O verbo η_χόμην, 1ª. pes. s. imperf. de ε_χομαι, que aqui tem provavelmente o sentido de desejar
(outro significado: orar). A forma ática teria sido _βουλόμην _ν, desejaria. Veja-se H. Greeven,
Th.D.N.T., Vol. II, p. 778; Ridderbos, op. cit., p. 206.
_νάθεμα ε_ναι … _π_ πο_ Χριστο_, uma expressão abreviada (veja-se C.N.T. sobre João, p. 219)
que significa “ser maldito (por Deus) e separado (ou banido) de Cristo”.
Segundo S.BK., Vol. III, p. 260, na terminologia da LXX, a palavra _νάθεμα indica qualquer coisa
que foi entregue à destruição e ruína da parte de Deus ou no nome de Deus. O termo rabínico “herem”
abrange um conceito mais amplo, porquanto inclui qualquer coisa consagrada a Deus, não só aquilo
que lhe está entregue para a destruição. Esta mesma distinção é continuada no Novo Testamento, onde
o substantivo _νάθημα (em Lc 21:5, segundo a leitura mais correta), significa “aquilo que foi
consagrado a Deus como ex-voto”, sem implicações de maldição; enquanto que _νάθεμα (aqui em Rm
9:9 e também em At 23:14; 1Co 12:3; 16:22; Gl 1:8, 9) refere-se ao que foi entregue a Deus sem
esperança de redenção; como resultado, aquilo ou aquele aquela que está condenado à destruição,
maldito.
Romanos (William Hendriksen) 413
lembrar também as comovedoras palavras de Moisés ao interceder por
seu povo: “Que perdoes agora seu pecado; e se não, risca-me agora do
teu livro que tens escrito” (Êx 32:32). Traz à nossa memória o lamento
muito penoso de Davi: “Quem me desse que morresse eu em lugar de ti,
Absalão, meu filho, meu filho!” (2Sm 18:33). Mas sobretudo, fixa nossa
atenção nAquele que realmente Se fez o Substituto de Seu povo (cf. Rm
3:24, 25; 8:32; 2Co 5:21; Gl 3:13; 1Tm. 2:6; e veja-se também Is 53:5, 6,
8; Mt 20:28; Mc 10:45).
Nesta passagem Paulo demonstra realmente que missionário
admirável é ele, quão apaixonadamente deseja salvar os perdidos. Cf.
Rm 11:14; 1Co 9:22.
O funesto caráter da tragédia de Israel e, daí, a dilaceradora
natureza da angústia de Paulo se mostra claramente quando são
enumeradas com mais detalhes que antes (Rm 2:17, 18; 3:1, 2) as
vantagens que fizeram com que esta nação se destacasse sobre todas as
outras (Sl. 147:19, 20).
4, 5. Porque eles 262 são israelitas, e deles é a adoção, e a glória, e as
alianças, e a legislação, e o culto, e as promessas; e deles são os pais, e
deles provém, no que se refere à natureza humana,263 Cristo, que está
acima de tudo, Deus bendito para sempre. Amém.

A lista de vantagens contém nove elementos; ou seja:

a. Eles são israelitas


Significado: eles são os descendentes de Jacó, quem, até que Deus
não o abençoara, não O deixou ir, e cujo nome foi mudado a Israel (“ele
luta com Deus”). Veja-se Gn 32:22–28. Portanto, quando os usava em
seu sentido mais favorável, os apelativos Israel, israelita eram títulos de

262
A mais do significado quem, quem quer, o pronome relativo _στις (aqui no nom. pl. masc. ο_τινες)
tem às vezes um significado causal. Assim é provavelmente como funciona aqui; e cf. Rm 1:25.
263
Literalmente, segundo a carne.
Romanos (William Hendriksen) 414
honra, como o esclarecem passagens como Jo 1:31, 47, 49; 3:10; 12:13.
A honra associada com o nome Israel fica refletida também nos
discursos de Pedro e Paulo registrados no livro de Atos (At 2:22; 3:12;
13:16). Falando em termos históricos, não tinha sido Israel a nação que
Deus tinha afastado dentre as nações do mundo? Veja-se Nm. 23:9.
Não obstante, é necessário ter sempre em mente que uma vantagem
não é necessariamente uma virtude e que um privilégio não é um mérito.
De fato, quando Israel, a despeito das muitas e especiais vantagens
recebidas dá as costas ao Senhor, estas mesmas vantagens terminam
aumentando o castigo de Israel. Veja-se Rm 9:30–32; e considere-se
também o doto com relação a Rm 3:3, 4.

b. e deles é a adoção
Tinha sido outorgado a eles o alto privilégio de ter sido adotados
como primogênitos de Deus (Êx 4:22), de ser Sua exclusiva possessão
(Êx 19:5), Seus filhos (Os 11:1), Seu povo, Seus escolhidos (Is 43:20).
A chamada e a adoção de Israel, sua separação de todas as nações
do mundo para ser propriedade exclusiva de Deus, eram certamente uma
grande honra. Ao ditar estas palavras Paulo, não estava ele na verdade
dizendo: «Olhem à pedra de onde foram cortados»? Veja-se Is 51:1.

c. e a glória
Eis aqui outra bênção que não podia ser omitida da lista! 264 Um
estudo detalhado deste conceito é, por certo, muito instrutivo. A palavra
como usada aqui indica o resplendor divino, descrito em geral como um
corpo de luz ou fogo; muitas vezes é descrita como se estivesse rodeada
por uma nuvem. Às vezes a ênfase recai no fogo, outras vezes na nuvem.
Foi chamada “a manifestação visível do Deus invisível”.

264
Para vários usos da palavra δόξα nas Sagradas Escrituras veja-se sobre Rm 1:23; nota 38. Veja-se
também G. Kittel, Th.D.N.T. Vol II, p. 237; e G. von Rad, mesmo volume, pp. 238–242.
Romanos (William Hendriksen) 415
Quando a construção do tabernáculo foi terminada, esta glória do
Senhor” veio e o encheu (Êx 40:34). Tal “glória” se situou sobre o
propiciatório do santuário (Lv 16:2). Durante a peregrinação pelo
deserto, quando ela repousava, os israelitas não viajavam, mas quando se
elevava, partiam (Êx 40:36, 37). Era uma nuvem de dia e uma coluna de
luz de noite (Êx 14:20). É descrita como um fogo consumidor sobre o
topo do monte no qual Moisés falou com Deus face a face Êx 24:17).
Quando Salomão terminou sua muito solene oração na dedicação do
templo, esta glória encheu o templo (2Cr 7:1, 2). A mesma indicava a
presença de Deus com Seu povo. No entanto, às vezes aparece
relacionada com a presença de Deus de julgar e infligir castigo (Nm.
14:10; 16:19, 42; 20:6; cf. vv. 12, 13).
Também por meio desta “gloria” o povo de Israel tinha sido
afastado de todas as outras nações.

d. e as alianças
Existe um pouco de dúvida com relação a se deveria ler-se o plural
“alianças”, ou se — tomando a opção de um papiro importante, o
Vaticanus, e de vários outros testemunhos — deveria usar a singular
“aliança”. Seja como for, a palavra parece apontar às diversas afirmações
e reafirmações da aliança de Deus com Seu povo e/ou com Seus líderes.
Embora haja uma só aliança da graça, em sua essência idêntica em
ambas as dispensações, a mesma foi sendo revelada cada vez mais
plenamente com o passar do tempo. Veja-se, por exemplo, Gn 15:1s;
17:7; 22:15s; 26:1s; 28:10s; Êx 2:24; 6:4, 5; Dt 5:1s; 8:18; Js. 24:1s; Lc
1:72, 73; At 2:38, 39; 3:25; Gl 3:9, 28, 29. 265
As pessoas piedosas de Israel se alegravam nesta aliança: Davi o
fazia (2Sm 23:5); também Maria, a mãe de Jesus (Lc 1:54, 55); e o
mesmo é certo de Zacarias, o pai de João Batista (Lc 1:72, 73).

265
Veja-se meu livro El pacto de gracia, SLC, Grand Rapids, pp. 21–25.
Romanos (William Hendriksen) 416
e. e a legislação
Sem dúvida, era um privilégio inestimável que no Sinai Israel teria
recebido a lei, como se fosse das próprias mãos de Deus. Embora por
meio da lei ninguém é justificado diante de Deus, de qualquer maneira a
lei é boa e serve para propósitos úteis. Veja-se sobre Rm 5:20.

f. e o culto
A oportunidade de prestar culto, primeiro com relação ao
tabernáculo (cf. Hb 9:6) e mais tarde com relação ao templo (Lc 18:9–
14), era outro grande privilégio. Não obstante, a palavra que se usa no
original é o suficientemente ampla para incluir também o culto da
sinagoga. De fato, o uso da mesma palavra para “culto” ou “serviço” em
Jo 16:2 — “Vem a hora quando qualquer que vos mate, pensará que
rende serviço a Deus” — não aponta na direção de uma conotação mais
ampla que a do serviço cúltico? 266 Além disso, até o culto familiar
estava, em alguma medida, regulado pela lei (Êx 13:14–16). Por isso
pareceria que Paulo aqui em Rm 9:4 estivesse se referindo a algo mais
que o culto do templo ou mesmo o culto público em geral. É provável
que ele estivesse pensando no verdadeiro culto ou serviço prestado ao
único e verdadeiro Deus, qualquer que fosse a forma ou o lugar em que
tal adoração fosse realizada. Embora as coisas estavam mudando, por
muito tempo tanto o objeto como o caráter de como apresentar
corretamente a devoção religiosa tinham sido revelados somente aos
judeus (Jo 4:21–23). Que privilégio tão inestimável!

266
Tanto Jesus (em Jo 16:2) como Paulo (aqui em Rm 9:4) usam o termo λατρεία. Veja-se também o
livro apócrifo de Eclesiástico 4:14: λατρεύοντες α_τ_ λειτουργήσουσιν _γί_: “Os que a servem [à
Sabedoria] ministrarão ao Santo”. Isto demonstra também que λατρεία e seu verbo cognato λατρεύω
têm um significado mais amplo que λειτουργία e λειτουργέω.
Romanos (William Hendriksen) 417
g. e as promessas
A referência é àquelas promessas feitas a Abraão, Isaque, Jacó, e ao
povo judeu em geral. Deus tinha prometido a Abraão: “Serei o teu Deus,
e o Deus da tua semente depois de ti” (Gn 17:7). Em diversas formas,
essencialmente essa mesma promessa tinha sido repetida a Isaque, a Jacó
e a Israel como nação. Dado seu caráter muito amplo, a mesma incluía
muitas outras promessas e, por certo, também as mencionadas em Gn
18:10, 14 e Rm 9:9.
É compreensível que o cumprimento dessa promessa básica (Gn
17:7) e, por conseguinte, também o de todas as promessas subsidiárias, e
dependia da vinda e da obra mediadora do Redentor. É por meio de
Cristo que todas as promessas podem cumprir-se (2Co 1:20; Gl 3:16). E
que abundância de promessas se nos revela nas páginas das Sagradas
Escrituras, todas elas centralizando-se em Cristo!
Na lista que segue, cada referência do Antigo Testamento na coluna
da esquerda tem paralelo numa referência do Novo Testamento,
indicando o cumprimento da promessa indicada. Com um pouco de
esforço será fácil para o leitor acrescentar outras referências a ambas as
listas. De maneira nenhuma vêm todas as passagens do Antigo
Testamento que aqui se indicam em forma de promessas, mas em cada
uma delas está, pelo menos, implícita uma promessa.

Predições e promessas Cumprimentos indicados


do Antigo Testamento no Novo Testamento

Gn 3:15 Rm 16:20
Gn 12:3 Gl 3:8, 9
Gn 17:7 At 2:38, 39
Gn 18:10, 14 Rm 9:9
Gn 22:15–18 Hb 6:13, 14
Gn 29:35 Rm 2:28, 29
Romanos (William Hendriksen) 418
Êx 12:13; Lv 17:11 Hb 9:22
Nm. 21:8 Jo 3:14, 15
Nm. 24:17a Ap 22:16
Dt 18:15, 18 At 3:22
2Sm 7:12, 13 Lc 1:31–33
Sl. 2:7, 8 Ef 1:22
Sl. 8:4s Hb 2:6–8
Sl. 16:10 At 13:35
Sl. 22:1 Mt 27:46
Sl. 68:18 Ef 4:8
Sl. 69:20, 21 Mt 27:34
Sl. 110:1 Mt 22:44
Sl. 118:22, 23 At 4:11; Mt 21:42 e veja-se
C.N.T., sobre Lc. 19:37, 38
Is 7:14 Mt 1:23 e veja-se
C.N.T. sobre Mt. 1:22, 23
Is 9:1, 2 Mt 4:12–16
Is 9:6 Lc 2:11
Is 10:22 Rm 9:27
Is 28:16 Rm 9:33; 10:11; 1Pe 2:6, 8
Is 53 Mt 8:17 e veja-se
C.N.T. sobre Lc 22:37 e
sobre Fp pp. 94–96
Is 59:20, 21 Rm 11:26, 27
Is 61:1s Lc 4:18, 19
Jr 23:5 Lc 1:32, 33
Jr 31:31–34 Hb 8:8–12
Dn 2:34, 35, 44 Mt 28:18
Dn 7:13, 14 Mt 26:64
Dn 9:24–27 Rm 3:21, 22
Jl 2:28, 29 At 2:17s
Am 9:11–15 At 15:16–18
Romanos (William Hendriksen) 419
Mq 5:2 Mt 2:6
Ag 2:6–9 Hb 12:26
Zc 3:8, 9 Hb 6:20–7:3
Zc 9:9 Jo 12:15
Zc 11:12 Mt 26:15
Zc 12:10 Jo 19:37
Ml. 3:1s Mt 11:10

Que bênção, todas estas promessas, retidas de outros mas dadas a


Israel!

h. e deles são os pais


Tem-se dito que: «Se alguém deseja ter êxito, deveria escolher bem
seus antepassados!» Paulo pode ter estado pensando especialmente em
Abraão (Rm 4:1–3, 16–23; 9:7; 11:1); Isaque (Rm 9:7, 10); e Jacó (Rm
9:13; 11:26). Em muitos casos, ao educar seus filhos, os pais podiam
assinalar com orgulho a estes patriarcas. Veja-se também Rm 11:28 e
15:8. Além disso, nunca devemos perder de vista o fato de que estes três
antepassados viveram na terra antes da proclamação da santa lei de Deus
do Sinai. Durante um período considerável eles foram, como resultado,
os portadores da tradição, os transmissores das predições e promessas
divinas.
Mas Paulo também menciona Davi (Rm 1:3; 4:6–8; 11:9, 10; e
veja-se também Rm 3:4). De fato, quando o apóstolo se refere aos
“pais”, o provável é que ele estava pensando em todos os antecessores
devotos que tiveram algum papel importante na história da redenção.
Embora seja verdade que nenhum destes antepassados tinha sido perfeito
em sua vida e conduta terrenas, em geral podiam ser apresentados como
exemplos a seguir. Levando tudo isso em conta, quão privilegiado era o
povo que podia afirmar ter tais antepassados!
Romanos (William Hendriksen) 420
i. e deles provém, no que se refere à natureza humana, Cristo,
que está sobre tudo, Deus bendito para sempre. Amém.
Esta frase serve como um clímax adequado. Deles, a saber, dos
israelitas, (v. 4) derivou Cristo a Sua natureza humana. Ele foi e é judeu.
Que causa de intensa satisfação e regozijo deveria ser isso para os
judeus!
O apóstolo se apressa a acrescentar que embora Jesus seja
certamente judeu, Ele é também muito mais que um judeu. Embora tenha
uma natureza humana, também tem uma natureza divina. Ele é Deus!
Deve ser claro que quando Paulo diz: “Cristo, que está sobre tudo,
Deus bendito para sempre”, ele está confessando a deidade de Cristo. Ele
o faz, a menos que se esteja disposto a adotar o tipo de tradução que
alguns favorecem, ou seja: “Seja Deus, supremo sobre tudo, abençoado
para sempre!” (N.E.B.) ou “Deus, que está sobre tudo, seja bendito para
sempre” (R.S.V.).
As razões que levam a rejeitar estas traduções ou outras similares
para adotar a que adjudica deidade a Cristo são as seguintes:
(1) O fato de que na cláusula anterior Paulo tenha mencionado a
natureza humana de Cristo torna razoável crer que ele agora vai dizer
algo com relação à Sua natureza divina.
(2) Uma tradução literal, palavra por palavra, seria esta: “e daqueles
que (é) Cristo segundo (a) carne, aquele sendo sobre tudo Deus bendito
para sempre …” É claro que as palavras “aquele sendo” ou “aquele que
é” se referem a Cristo. Não podem referir-se a nenhum outro.
(3) A tradução: “Seja Deus bendito para sempre” seria uma
doxologia em honra a Deus. Em doxologias tais Paulo acostuma incluir,
num artigo ou frase anterior, alguma referência a Deus; por exemplo:
“… visto que eles evidentemente tinham mudado Deus, (quem é) a
verdade, por uma mentira e adoravam e serviam à criatura antes que ao
Criador, que é bendito para sempre. Amém.” (Rm 1:25).
Romanos (William Hendriksen) 421
“… conforme à vontade de nosso Deus e Pai, a quem (seja) a glória
pelos séculos dos séculos. Amém” (Gl 1:4, 5). Veja-se também 2Co
11:31; 2Tm 4:18. A passagem que nos ocupa, se for interpretada como
doxologia, chocaria então com o estilo de Paulo.
(4) Aqueles que, junto com a N.E.B. e a R.S.V., traduzem as
palavras gregas em questão como se fossem uma doxologia
independente, devem ter em mente que tanto no Antigo como no Novo
Testamento, a palavra bendito em tais doxologias sempre se encontra no
princípio da oração; por exemplo: “Bendito (seja) o Senhor, o Deus de
Israel” (Lc 1:68). Veja-se também 2Co 1:3; Ef 1:3. Esse não é o caso
aqui em Rm 9:5.
(5) Não é raro que os escritores dos livros do Novo Testamento,
Paulo inclusive, adjudiquem a deidade, ou as qualidades que
correspondem à deidade, a Cristo. Veja-se, por ex., Mt 28:18; Mc 1:1; Jo
1:1–4; 8:58; 10:30, 33; 20:28; Fp 2:6; Cl 2:9; Tt 2:13; Hb 1:8; 2Pe 1:1.
(6) Uma doxologia a Deus pareceria muito estranha num parágrafo
em que Paulo expressa “grande tristeza e incessante angústia” pela
incredulidade de Israel! Hoje em dia é pouco provável que um
missionário, informando a seus superiores, dissesse: «Embora as pessoas
entre as quais exerço minha atividade evangelística foi abençoada com
muitas vantagens — tais como prosperidade, boa saúde, inteligência, etc.
— houve muito poucas conversões. Louvado seja o Senhor!»
Com relação ao solene acréscimo, “Amém”, veja-se sobre Rm 1:25.
O que Paulo esteve dizendo, então, pode resumir-se como segue:
«Dá-me profunda tristeza que apesar de todas as notáveis vantagens que
Deus outorgou a Israel, ela não tenha respondido como corresponde».
Como se pode explicar esta reação negativa? Além disso, significa
isso que Deus rejeitou totalmente Israel? As respostas a estas perguntas
vêm nos versículos que seguem; na verdade, há um sentido em que se
pode dizer que são respondidas em todo o argumento que vai de Rm 9:6
a 11:36.
Romanos (William Hendriksen) 422
2. Eleição e rejeição divinas. Rm 9:6–18

6–8. Porém não é como se a palavra de Deus tivesse falhado. Porque


nem todos os que são de Israel são Israel; nem por ser linhagem de
Abraão são todos eles (seus) filhos; mas sim “Por Isaque será chamada
sua descendência”. Isto significa que não são os filhos naturais os que são
filhos de Deus, mas sim são os filhos da promessa que são considerados
como descendência.
Paulo dá a impressão de temer que sua afirmação com relação à sua
grande tristeza e incessante angústia pudesse interpretar-se como se ele
queria dizer que a palavra de Deus — Sua promessa com relação a Israel
— tivesse falhado, que Seu propósito foi frustrado. 267 De maneira que o
apóstolo passa a explicar que embora maravilhosa promessa se fez a
Israel (como já se indicou; veja-se v. 4), tal promessa nunca foi dada
com a intenção de que se cumprisse em toda a nação, mas somente no
verdadeiro Israel.
O pensamento que se expressa aqui é essencialmente o mesmo que
já achamos em Rm 2:28, 29. A promessa da aliança não estava destinada
a cumprir-se em todos os descendentes de Abraão ou de Israel, mas
somente nos corações e vidas daqueles que, pela graça de Deus,
pusessem sua confiança nEle e se esforçassem em obedecer Sua vontade
por gratidão. Veja-se Gn 15:6; 17:1, 2, 9; Dt 30:2, 3, 9, 10; 1Rs 8:47–50;
Jr 18:5–10.
Além disso, em consonância com tudo isto, a linha da aliança
passaria por Isaque. Era ele quem seria contado como semente de
Abraão, e em quem se cumpriria a promessa da aliança. Isaque foi a
verdadeira semente, não Ismael.

267
Note-se que no começo do v. 6 está: ο_χ ο_ον … _τι, uma combinação de ο_χ ο_ον y ο_χ _τι. O
significado é: não é como se, não é que. Cf. Gram. N.T. (Bl. Debr.), parágr. 480. κληθήσεται (lit. “será
nomeado ou chamado”) é um hebraísmo. Receber o nome de alguém significa ser contado entre seus
descendentes. Cf. Gn 48:6.
Romanos (William Hendriksen) 423
268
Do mesmo modo foi Jacó, não Esaú (Rm 9:13). Cf. Gl 3:9, 29.
É importante destacar que embora a expressão: “Porque nem todos
os que são de Israel são Israel” tem uma formulação negativa, a
implicância positiva é: «Há, por certo, um verdadeiro Israel. A rejeição
de Israel da parte de Deus não é total nem completa». Sua palavra não
falhou nem nunca falhará. O remanescente será salvo (v. 27). Aquele que
põe sua fé em Cristo não será envergonhado (v. 33).
Os filhos de Deus são aqui chamados “filhos da promessa”, uma
designação notavelmente bela! Seu nascimento espiritual não se deveu a
nada presente neles, mas inteiramente à promessa da aliança de Deus.
Foi a promessa que os fez nascer! Eles “não nasceram de sangue, nem da
vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus” (Jo 1:13),
realidade que fica exemplificada claramente no relato do nascimento de
Isaque, ao qual se faz referência neste versículo.
9. Porque a linguagem da promessa é esta: “No tempo apontado
voltarei, e Sara terá um filho”.

268
Com relação ao v. 8 surge uma pergunta que se deve elucidar: “Quando Paulo diz, ‘Isto significa
que não são os filhos da carne (assim diz literalmente) os que são filhos de Deus, mas são os filhos da
promessa os que são considerados como descendência, o que significa a expressão ‘filhos da carne’?”
Neste ponto os expositores encontram-se divididos. Alguns, apelando ao contraste descrito em Gl
4:23, 29 entre o Ismael nascido da carne e o Isaque nascido do Espírito, têm a opinião que o termo
“filhos da carne”, segundo o usa aqui em Rm 9:8, refere-se aos judeus que rejeitaram a Cristo,
enquanto que o termo “filhos da promessa” aponta àquela gente que punha sua fé nEle. Não temos
problema com a última parte desta equação, porém com a primeira, que vertiría todo o significado de
Gl 4:21–31 em Rm 9:8, é difícil estar de acordo.
A expressão “filhos da carne”, em seu uso aqui em Rm 9:8, deve ser explicada à luz de seu próprio
contexto. Nesse caso faz-se claro que os termos “todos os que são de Israel” (v. 6), “semente de
Abraão”, que aqui significa descendentes (v. 7), e “filhos da carne” (v. 8), são paralelos, no sentido
que todos indicam descendência natural ou física. Como resultado, as traduções e interpretações
corretas são aquelas que adotaram para o v. 8a o seguinte: “Não são os filhos naturais [ou físicos] os
que são filhos de Deus”, etc.
É assim que das versões a Almeida Atualizada, revisão de 1999, a Bíblia de Jerusalém, a Bíblia
das Américas, a Nova Versão Internacional devem considerar-se corretas; e nas versões ao inglês
devem sê-lo a N.I.V., Phillips, N.E.B. e Berkeley. Naturalmente, todas aquelas que retenham a
tradução mais literal — “Não são os filhos da carne” — também estão certo. Que sem dúvida Ismael é
um destes “filhos da carne” que não foi filho da promessa, é algo que deve ser reconhecido.
Romanos (William Hendriksen) 424
Como o assinala o termo conjuntivo “porque”, o que se segue
demonstra que os filhos naturais de Abraão não são necessariamente os
filhos de Deus, e que somente podem reclamar para si essa distinção os
que são produto da promessa de Deus, de Sua graça soberana.
Note-se a posição enfática de “... a linguagem da promessa é esta”.
Isto é seguido pela assombrosa declaração que no tempo apontado —
quer dizer, no próximo ano (veja-se Gn 18:10, 14) — Sara, aquela
esposa que segundo Gn 11:30 era estéril, que segundo Gn 18:11 tinha
passado a idade de ter filhos, e que segundo Gn 17:17 tinha noventa
anos, daria à luz um filho. E não só isso, mas também o filho seria
varão!
Que isto sucederia parecia tão impossível que quando o Senhor
disse a Abraão que ele teria um filho de Sara, ele havia respondido: “A
um homem de cem anos há de nascer um filho? E Sara, já de noventa
anos, há de conceber?” (Gn 17:17). E embora Abraão provavelmente
tenha rapidamente dominado sua prévia dúvida, 269 ainda mais tarde Sara
tinha recebido a promessa de um filho com o riso da incredulidade (Gn
18:10–12).
A promessa, não obstante, cumpriu-se, demonstrando que Isaque
era na verdade o filho da promessa, produto só do poder e da graça
divinos e soberanos. Deus havia voltado; quer dizer, Sua promessa se
cumpriu em cada detalhe.
Como resultado, Paulo deixou bem claro que a habilidade de
rastrear a própria genealogia até Abraão não autoriza nenhuma pessoa a
crer que herdará o que foi prometido a Abraão. O que importa é saber se
pertence a essa semente de Abraão que se origina na graça, na vontade e
na disposição soberanas do Deus Todo-poderoso.
De nenhuma parte é assunto de mérito humano. A própria história
de Abraão e Sara o torna claro. Se do que se disse até agora com relação

269
Que este patriarca também foi aflito durante um tempo pelas dúvidas é também a opinião de G. Ch.
Aalders, Genesis II (Korte Verklaring), p. 66.
Romanos (William Hendriksen) 425
a Sara se chegasse à conclusão que, julgada segundo o espiritual, ela
estava muito por debaixo de Abraão, deveria indicar-se que, em termos
gerais, a avaliação que a Escritura faz dela é boa. Veja-se Is 51:2; Hb
11:11; 1Pe 3:6. Abraão certamente deve tê-la amado. Note-se todos os
esforços que ele realizou para lhe assegurar um sepultamento honroso
(Gn 23). E observe-se como Isaque precisou ser consolado por causa de
sua morte (Gn 24:67).
Por outro lado, medido por esta mesma regra, Abraão não era como
nós provavelmente esperaríamos. Apesar de todas as circunstâncias
atenuantes que se possam apresentar em sua defesa, o que ele fez, como
consta em Gn 12:10s e outra vez em Gn 20:1s, foi repugnante.
Tampouco Isaque, embora sem dúvida era filho de Deus (Gn 25:21;
26:23–25; 28:1–4), foi de modo nenhum perfeito (Gn 26:7; 27:1–4).
A única conclusão a que podemos chegar é que no caso de Abraão,
de Sara, e de seu filho Isaque, a salvação — apropriada por meio da fé
— foi claramente um assunto de graça divina soberana. O mérito
humano nada teve a ver com ela. Cf. Gn 15:6; Rm 4:3; Gl 3:6.
Além disso, que a salvação e a posição preferencial na linhagem da
aliança são indubitavelmente assuntos de graça, dons que provêm da
vontade e do poder soberanos de Deus, é algo que fica ainda mais
notavelmente ilustrado na história de Rebeca:
10–13. Porém não só isso; (há) também Rebeca, que concebeu (seus
dois filhos) ao mesmo tempo e de um mesmo esposo, ou seja, nosso pai
Isaque. Porque antes que os gêmeos nascessem ou tivessem feito alguma
coisa boa ou má, para que o propósito de Deus segundo a eleição
permanecesse, (propósito) que não se baseia em obras (humanas), porém
naquele que chama, disse a ela: “O mais velho servirá ao mais novo”;
como está escrito: “Amei Jacó, mas me aborreci de Esaú”. 270

270
O estilo condensado do v. 10 leva a certas dificuldades na tradução. Além disso, a palavra κοίτη
tem mais de um significado, embora os vários sentidos em que se a usa estão muito relacionados. Em
Lc 11:7 significa cama; cf. κε_μαι, deitar-se. Em Hb 13:4 a referência é ao leito nupcial; no Lv 15:24
a relações sexuais; e no Lv 15:16 à emissão de sêmen. Aqui, em Rm 9:10, o que Paulo provavelmente
Romanos (William Hendriksen) 426
Em defesa de seu argumento, Paulo diz: “Porém não só isso”; quer
dizer: «Não considerem somente o caso de Isaque e Ismael». No caso
deles a pessoa poderia sentir-se tentado a discutir que a razão pela qual a
linhagem da aliança passou por Isaque e não por Ismael estava em que a
mãe de Isaque era Sara, enquanto que a mãe de Ismael era Hagar, a
criada escrava egípcia de Sara. Jacó e Esaú, porém não somente tinham o
mesmo pai, mas também a mesma mãe e foram concebidos no mesmo
momento. Eram gêmeos, embora Esaú tenha nascido imediatamente
antes que Jacó, pelo que era “o mais velho”.
Note-se também o seguinte: no caso dos filhos de Abraão era
possível assinalar o contraste que havia na causa de seu nascimento.
Ismael era, em certo sentido, o produto da maquinação pecaminosa de
seus pais (Gn 16:14), mas Isaque era o cumprimento da promessa de
Deus.
Nada parecido a isso houve no caso de Jacó e Esaú. Ambos
nasceram como resposta a uma oração (Gn 25:21).
Contudo, e apesar de suas notáveis semelhanças, mesmo antes
destes gêmeos terem nascido e tivessem feito algo bom ou mau, já se
havia dito à sua mãe: “O mais velho servirá o mais novo” (citação tirada
de Gn 25:23). E isto é o que de fato sucedeu, visto que não somente
perdeu Esaú a primogenitura — recebendo-a Jacó — (Gn 25:29–34),
mas este último obteve a bênção que seu pai Isaque, opondo-se à vontade
de Deus, tinha querido pronunciar sobre Esaú (Gn 27:1–29).
O contraste foi, no entanto, ainda maior, visto que, citando Ml. 1:2,
3, o apóstolo acrescenta: “como está escrito: Amei Jacó, mas me aborreci
de Esaú”. O propósito divino, partindo da eleição e executando seu
desígnio, determina quem será salvo. Tudo depende do Deus que chama
(que eficazmente atrai) alguns e não outros. Cf. Rm 8:28.

quer dizer é que Rebeca, ao ter um só esposo, ou seja, Isaque, concebeu (seus gêmeos) ao mesmo
tempo; quer dizer, de uma só emissão seminal. Em Rm 13:13 κοίτη = indecência, excesso sexual.
Romanos (William Hendriksen) 427
O que Paulo diz, então, nos vv. 6–13, é: Em todo caso a razão pela
qual uma pessoa é aceita e outra rejeitada está em que Deus assim o
decretou. A vontade divina e soberana é a fonte tanto da eleição como da
reprovação. A responsabilidade humana não é cancelada, porém não
existe algo assim como o mérito humano. O propósito eterno de Deus
não se baseia no final nas obras humanas.

Reflexões adicionais sobre a eleição e a reprovação


Como é bem sabido, esta passagem (Rm 9:13) é considerada como
texto de comprovação da doutrina da predestinação: a eleição e a
reprovação. A predestinação é o eterno propósito divino pelo qual Ele
ordenou de antemão tudo o que acontecerá (Ef 1:11). A eleição pode
definir-se como o propósito eterno de Deus de fazer com que
determinados pessoas sejam em Cristo os recipientes da graça especial,
para que possam viver para a glória de Deus e obter a salvação eterna
(Lc 10:20; At 13:48; Rm 11:5; Ef 1:4; 2 Ts. 2:13). A reprovação é o
propósito eterno de Deus de passar por alto determinados pessoas na
outorga da graça especial, destinando-os ao castigo eterno por seus
pecados (Rm 9:13, 17, 18, 21, 22; 1Pe 2:8). 271
Embora ambos os decretos sejam igualmente definitivos, seria
errôneo pensar que são iguais em todo conceito. Por exemplo, embora o
pecado seja sem dúvida a causa que merece o castigo mencionado no
decreto de reprovação, a fé não é a causa que merece a salvação à qual se
refere a definição do decreto da eleição. Também — e cito aqui minha
tradução publicada (em inglês) de The Doctrine of God 272 del Dr.
Herman Bavinck — “Em certo sentido, a queda, o pecado e o castigo
eterno estão incluídos no decreto de Deus, e foram determinados por Ele.

271
Outro texto que também se menciona frequentemente como texto de comprovação a favor da
doutrina da reprovação é Judas 4, mas a tradução desta passagem está em disputa. Tampouco Rm 11:7
prova a reprovação. Veja-se o contexto: Rm 11:11s.
272
Grand Rapids, 1979, p. 390.
Romanos (William Hendriksen) 428
Mas isto é assim somente em certo sentido, e não no mesmo sentido que
a graça e a salvação. Estas são objetos de Seu deleite, mas Deus não Se
deleita no pecado, nem tampouco sente prazer no castigo”.
Às vezes se faz esta pergunta: «Como foi possível que um Deus de
Amor ordenasse certas pessoas ao castigo eterno?» Uma pergunta mais
lógica seria: «Como foi possível que um Deus cuja justiça demanda que
o pecado seja castigado ordenasse certas pessoas à vida e à glória
eternas?» Certamente “a maravilha disso” está na morte vicária de
Cristo!
A Confissão de Westminster do ano 1647 diz o seguinte com
relação à eleição e à reprovação:
“Deus, desde toda a eternidade, ordenou, por meio do muito
sapiente e santíssimo desígnio por Sua própria vontade, livre e
inalteravelmente tudo o que sucede; mas de maneira tal que nem por isso
é Deus o autor do pecado, nem se faz violência à vontade das criaturas;
tampouco são tiradas a liberdade ou contingência das causas de segunda
ordem, mas antes, são estabelecidas — Cap. iii, I.
“Aquelas pessoas da humanidade que estão predestinadas à vida,
Deus, antes que fossem lançados os alicerces do mundo, segundo o Seu
propósito eterno e imutável, e segundo o conselho e beneplácito secretos
de Sua vontade, escolheu-as em Cristo para a glória eterna nada mais que
por Sua graça e amor gratuitos, mas previsão alguma de fé ou boas obras
ou perseverança em nenhuma delas, nem nenhuma outra coisa na
criatura, como condições ou causas que movessem a isso, e tudo para
louvor de Sua gloriosa graça — Cap. iii. V.
“Com relação ao resto da humanidade foi do Seu agrado, segundo o
inescrutável conselho por Sua própria vontade, pela qual Ele estende ou
retém a misericórdia tal como Lhe agrada, passá-los por alto e ordená-los
para desonra e ira por seu pecado, para louvor de Sua gloriosa justiça —
Cap. iii. VII.
No essencial, estas mesmas verdades são expressas nos Cânones de
Dordrecht, primeiro capítulo de doutrina, artigos 7 e 15, e na Confissão
Romanos (William Hendriksen) 429
Belga, artigo 16. O Catecismo de Heidelberg tem muito pouco sobre este
tema. Veja-se Respostas 52 e 54.
Além disso, os Cânones (em seu quinto capítulo de doutrina,
rejeição de erros, conclusão) adverte contra aqueles que ensinam que a
doutrina das Igrejas Reformadas “fazem de Deus o autor do pecado”, e
que ele:
“por simples e puro desejo de Sua vontade, e sem a inspeção ou
crítica mais mínima de pecado algum, predestinou e criou a maior parte
da humanidade para a condenação eterna; que a reprovação é causa da
incredulidade e impiedade de igual maneira que a eleição é fonte e causa
da fé e das boas obras; que muitas crianças inocentes são arrancadas do
peito das mães, e tiranicamente lançados no fogo infernal … e muitas
outras coisas parecidas, que as Igrejas Reformadas não só não
reconhecem, mas também rejeitam e detestam de todo coração.”
Alguns assuntos mais não devem omitir-se:
a. “Os réprobos recebem muitas bênçãos, que não provêm do
decreto de reprovação, mas da bondade e graça de Deus. Recebem
muitos dons naturais: vida, saúde, força, comida, felicidade, etc. (Mt
5:45; At 14:17; 17:28; Rm 1:19; Tg 1:17, etc.). Também no que respeita
aos réprobos, Deus não deixa a Si mesmo sem testemunha. Tolera-os
com grande paciência (Rm 9:22). Faz com que o evangelho de Sua graça
lhes seja proclamado e não tem prazer em sua morte (Ez 18:23; 33:11;
Mt 23:37; Lc 19:41; 24:47; Jo 3:16; At 17:30; Rm 11:32; 1Ts 5:9; 1Tm.
2:4; 2Pe. 3:9)”. 273
Caim foi um réprobo. Disso não pode haver dúvida (1Jo 3:12; Jd
11). No entanto, quão meigamente Deus lhe falou! (Gn 4:6, 7).
b. Há um problema que deve ser enfrentado. Os credos reformados,
segundo já se demonstrou, partem de uma posição infralapsariana,
segundo a qual as pessoas que foram destinadas à glória foram

273
Esta citação está tirada de minha tradução do material produzido pelo Bavinck sobre este tema.
Veja-se Doctrine of God, p. 400.
Romanos (William Hendriksen) 430
escolhidas do estado de pecado e destruição ao qual elas mesmas se
lançaram; e as que foram destinadas à perdição foram deixadas, pelo
decreto de Deus, nesse mesmo estado. A pergunta que se impõe então é:
“Por que permitiu Deus que a queda tivesse lugar?”
A essa pergunta não há resposta, a não ser que seja a de Dt 29:29:
“As coisas secretas pertencem ao Senhor nosso Deus, mas as coisas
reveladas são para nós e para nossos filhos para sempre …” e a de Jó
11:7, 8 - “Porventura, desvendarás os arcanos de Deus ou penetrarás até
à perfeição do Todo-Poderoso? Como as alturas dos céus é a sua
sabedoria; que poderás fazer? Mais profunda é ela do que o abismo; que
poderás saber?” [RA]
Permita-me citar mais uma vez de minha tradução da The Doctrine
of God de Bavinck, desta vez da p. 396:
“Ao nosso redor observamos tantos fatos que parecem irrazoáveis,
tanto sofrimento imerecido, tantas calamidades inexplicáveis, uma
distribuição dos destinos tão desigual e inexplicável, e um contraste tão
enorme entre os extremos da alegria e do pesar, que qualquer que reflita
sobre estas coisas vê-se forçado a escolher entre olhar a este universo
como se estivesse governado pela cega vontade de uma deidade maligna,
como o faz o pessimismo; ou, com base na Escritura e pela fé, descansar
na absoluta e soberana, e — por incompreensível que seja — sábia e
santa vontade daquele que um dia fará amanhecer a luz total dos céus
sobre estes mistérios da vida”.
Entre as muitas objeções que se apresentaram contra a doutrina da
eleição e a reprovação, e em especial contra que Rm 9:13 sustente esta
doutrina, estão as seguintes:
Objeção a: Eleição, sim; reprovação, não! Nem Rm 9:13 nem
nenhuma outra passagem bíblica ensina a reprovação.
Comentário: Que a Escritura, sem dúvida, ensina tanto a eleição
como a reprovação se sustentam ou caem juntas. Aos que o Senhor não
escolhe, Ele rejeita. O conselho de Deus compreende tudo (Pv 16:4; Ef
1:11).
Romanos (William Hendriksen) 431
Além disso, quando Deus escolhe uma pessoa, Ele não decide
meramente fazer com que esta entre enfim no céu, mas o guia ao longo
de todo o caminho que vai de sua concepção até a glorificação. Davi
proclama esta verdade no Sl. 139:16 que, em rima, diz assim:

Antes que a ser Seu me chamasse


Seu olho me viu, em mim pensava.
Minha vida em todo seu plano perfeito
Foi ordenada antes de ter efeito.

Agora, o crente não vive no vazio e entre sua vida e a do incrédulo


não há uma muralha a China. A vida do escolhido e a do não escolhido
estão tão totalmente entrelaçadas — no jogo, na escola, no escritório, no
trabalho, na fábrica, no governo, etc. — que todo plano divino que afete
o escolhido tem que afetar também o não escolhido, sem cancelar a
responsabilidade humana em nenhum dos dois casos. Um plano pela
metade não é um plano. Muitas batalhas se perderam por causa da
exclusão desta ou daquela pequena coisa.

Por falta de um prego, perdeu-se a ferradura,


Por falta de uma ferradura, perdeu-se o cavalo,
Por falta de um cavalo, perdeu-se o cavaleiro,
Por falta de um cavaleiro, perdeu-se a batalha,
Por falta de uma batalha, perdeu-se o reino,
E tudo por falta de um prego de ferradura.
B. Franklin

Objeção b. O oráculo divino (Ml. 1:2, 3) citado por Paulo em Rm


9:13 realmente quer dizer: “Amei Jacó intensamente, mas amei menos
Esaú”.
Comentário: É verdade que o verbo usado no original para dizer
odiar pode significar amar menos. Veja-se C.N.T. sobre Lc 14:25, 26. A
Romanos (William Hendriksen) 432
pergunta é: “Tem o mesmo [verbo] esse significado aqui (Rm 9:13)?”
Claramente não o tem! O contexto de Ml. 1:2, 3, é um de juízo, castigo,
indignação: “… aborreci Esaú, e converti seus montes em desolação …
Eles edificarão, e eu destruirei”. Também, ao receber Esaú a “Bênção”
de seu pai, essa bênção quase chega a ser o que se poderia chamar uma
maldição. Corretamente traduzida, começa assim:
“Longe da gordura da terra estará sua morada, e longe do orvalho
do céu que vem do alto” (Gn. 27:39).
Na verdade, a “bênção” era de uma natureza tão negativa e o
engano de Jacó tão doloroso, que Esaú odiou Jacó como resultado do que
tinha ocorrido, e ameaçou matá-lo. Conclusão: “amou menos” não
servirá para Ml. 1:3 nem para Rm 9:13. Estas passagens se referem à
reprovação, e a nada menos.
Objeção c: Gn 25:22, 23 e Ml. 1:2, 3 não se referem a pessoas —
Jacó e Esaú — mas a nações, Israel e Edom.
Comentário: Embora seja verdade que em Gn 25:22, 23 o texto
passa rapidamente de bebês a nações, de qualquer maneira o ponto de
partida tem que ver com pessoas, não com nações. As palavras: “Duas
nações há em teu ventre” podem, naturalmente, não ser tomadas
literalmente. O significado é: «Os dois bebês que há em teu ventre se
transformarão em nações rivais».
O contexto de Malaquias é similar. Também aqui o ponto de partida
é pessoal como certo: “Não era Esaú irmão de Jacob?’, diz Jeová. E amei
Jacó e me aborreci de Esaú.” Paulo, como resultado, tinha todo direito de
aplicar estas passagens a pessoas, tal como o fez.
Objeção d: A doutrina de uma dupla predestinação — eleição e
reprovação — está errada porque Jacó é sempre também Esaú, e Esaú é
também Jacó; ou, para dizê-lo de outro modo, em cada um de nós há um
Jacó e um Esaú, etc.
Comentário: Pode alguém crer verdadeiramente que isto é na
verdade o que a Escritura diz nestas passagens?
Romanos (William Hendriksen) 433
Depois de ter examinado as objeções, o resultado é que a doutrina
da eleição e reprovação divinas, baseada — entre outras passagens —
em Rm 9:13, permanece em pé. Os argumentos contra ela são
superficiais e falaciosas. Veja-se também a excelente monografia de F.
H. Klooster: “Predestination: A Calvinistic Note”, em Perspectivas on
Evangelical Theology, Grand Rapids, 1979, pp. 81–94.
14, 15. E então, que diremos? Acaso Deus é injusto? De maneira
nenhuma! Pois ele diz a Moisés: Terei misericórdia de quem eu quiser ter
misericórdia e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão [NVI].
Com relação a “E então, que diremos?” veja-se também Rm 3:5;
4:1; 6:1; 7:7; 8:31; 9:14, 30. O apóstolo antecipa uma objeção, quer seja
da parte de um oponente ou daqueles a quem se dirige; de fato, até talvez
a possível objeção que poderia surgir na mente de qualquer um. Com
relação ao resto do versículo, propuseram-se duas interpretações.
Segundo a primeira, o significado dos vv. 14, 15, é aquele que
segue: Surge a pergunta, “Quando Deus escolheu Isaque em vez de
Ismael, e quando escolheu Jacó em vez de Esaú, fazendo conhecer Sua
decisão à mãe deles mesmo antes de nascer os gêmeos ou que tivessem
feito algo bom ou mau, isso não poder ter sido injusto, verdade?”
Segundo esta interpretação, Paulo responde, em suma, «De maneira
nenhuma, visto que esse é o modo de agir de Deus, como é claro do que
ele disse a Moisés (v. 15) e a Faraó» (v. 17).
Mas se for interpretada desta maneira, a resposta não tem muito
sentido. Seria como dizer: «Deus não é injusto, visto que essa é a
maneira como Deus costuma fazer as coisas!»
De acordo com a segunda, o significado é este: «Paulo, ao
raciocinar como o faz [em Rm 9:6–13] sobre a soberania de Deus, não
estará talvez fazendo injustiça a Deus, tirando conclusões das passagens
(com relação à semente de Abraão e aos gêmeos de Rebeca) que não está
autorizado a tirar?” A resposta é, então: «De maneira nenhuma (veja-se
sobre Rm 3:4), visto que, ao falar com Moisés, Deus declarou
inequivocamente que Ele tem direito de mostrar Sua misericórdia e
Romanos (William Hendriksen) 434
compaixão a quem Ele quiser». Cf. Mt 20:15. O que o apóstolo declara,
então, é que quando sublinha a doutrina da soberania de Deus, ele
simplesmente está dizendo o que o próprio Deus também disse. 274 Eu
aceito esta explicação.
Continua:
16. De modo que, não depende da vontade ou do esforço (do
homem), mas da misericórdia de Deus.
Literalmente, o que Paulo diz é: «Assim que não depende de quem
quer nem de quem corre, mas de Deus que tem misericórdia».
Com relação à pergunta: “Qual é o sujeito desta oração?” — visto
que no original não há sujeito — as respostas variam. Alguns dizem que
é “misericórdia”. Estes apontam o contexto imediato (v. 15). Outros
retrocedem um pouco mais, aos vv. 6–15 e respondem: é “ser filho de
Deus” (veja-se Rm 9:8), ou “salvação”, “vida eterna”. Mas, acaso não
concordam basicamente todas estas respostas?
Os escritores de hinos captaram a ideia; veja-se sobre Rm 1:17, e
sobre Rm 3:24. Nem a vontade do homem nem seu esforço produzem a
salvação, Deus o faz. A eleição, e por conseguinte também a salvação, é
um assunto da vontade soberana de Deus. Igualmente final é a
reprovação.
Como resultado, paralelamente ao v. 15 encontramos o v.
17. Porque a Escritura diz a Faraó: “Para isto mesmo te levantei,
para mostrar em ti o meu poder, e para que o meu nome seja anunciado
por toda a terra”.
Visto que esta passagem é apresentada como uma citação direta,
como a mensagem do próprio Deus a Faraó, uma mensagem transmitida
a tal rei por Moisés, e registrado na Escritura — note-se a introdução “a
Escritura diz” — é aconselhável estudar o texto (Êx 9:16) em que o
mesmo foi primeiro registrado.

274
Com relação a esta interpretação, veja-se S. Greijdanus, Kommentaar Romeinen II, pp. 422, 423; y
Ridderbos, op. cit., pp. 14, 15.
Romanos (William Hendriksen) 435
O contexto nos demonstra que tinham havido seis pragas no Egito: a
água transformada em sangue, rãs, piolhos, moscas, praga no gado,
úlceras nas pessoas e nos animais. Haveria mais quatro: saraiva,
gafanhotos, três dias de trevas intensas, e a morte de todos os
primogênitos do Egito. Entre a sexta e a sétima praga Deus ordenou
Moisés dizer a Faraó: “Porque eu já poderia ter estendido a mão, ferindo
você e o seu povo com uma praga que teria eliminado você da terra. Mas
eu o mantive em pé exatamente com este propósito: mostrar-lhe o meu
poder e fazer que o meu nome seja proclamado em toda a terra” (Êx
9:15, 16, NVI).
É evidente, então, que em Êx 9:16 a expressão “eu o mantive em
pé” ou “sobrevivesses” significa “deixei você viver”. Por conseguinte,
não há razão para interpretar Rm 9:17 de modo diferente. Por certo, o
verbo grego tem também outros significados, mas estes significados não
quadram com o relato de Êxodo. 275
Concordo, então, com a interpretação de Rm 9:17 que se encontra
também nos seguintes comentários: E. F. Harrison, op. cit. p. 106;
Ridderbos, op. cit., pp. 216, 217. Deus deixou Faraó viver para que
pudesse demonstrar Seu poder nele, castigando a ele e a seu povo. Cf.
Rm 9:22. 276
Que Deus certamente cumpriu Seu propósito de demonstrar Seu
poder em Faraó, para que Seu nome (o de Deus) fosse proclamado em
toda a terra, está claro de Dt 6:22; 7:18, 19; 11:3; 34:11; 1Sm 4:8; Sl.
135:9; At 7:36. Estas passagens comprovam que o que Deus fez no Egito
com Faraó e seu povo causou uma profunda impressão nas mentes e
corações de gerações posteriores. Até hoje quando no lar, na escola

275
O verbo hebraico usado no Êx 9:16 é o Hif. pret. 1ª. pes. s. com o sufixo da 2ª. pes. s., do verbo
‫ ָעמַד‬, estar em piei. Este verbo às vezes tem o significado de poupar, manter com vida. Veja-se W. H.
Gispen, Exodus (Korte Verklaring), Kampen, 1932, p. 102. Também harmoniza esta interpretação
com a tradução da LXX, διετηρήθης, foste salvado (desta destruição).
276
Para outra interpretação do verbo _ξεγείρω, usado em Rm 9:17, veja-se L.N.T. (A. e G.), p. 273, e
em outros comentários, incluindo-se os de Cranfield, Greijdanus, Murray. Uma interpretação popular
é: fazer nascer, fazer aparecer no cenário da história.
Romanos (William Hendriksen) 436
dominical, na escola cristã ou nas igrejas, narra-se a história das dez
pragas, ou quando se lê tal relato, não são proclamados o nome e a
grandeza de Deus?
É claro que quando Deus endurece o coração de uma pessoa que se
endureceu contra seu Criador, Ele não pode ser acusado de ser injusto.
Seja que Deus realmente faça isso ou que em lugar disso mostre
misericórdia é algo que está além do poder de decisão dessa pessoa ou de
nós. É um assunto que corresponde à própria vontade, ao poder e ao
decreto eterno de Deus. É tal como se diz no versículo.
18. Assim que, de quem quer tem misericórdia, e a que quer
endurece.
Cf. v. 15. Uma expressão notável da soberania de Deus!
Não há razão para duvidar que o endurecimento do qual Faraó foi
objeto era final. Era um elo na cadeia: reprovação — vida ímpia —
endurecimento — castigo eterno. Isto não significa, porém, que o
endurecimento divino é sempre final. Veja-se sobre Rm 11:7b, 11.

3. A ira e a misericórdia de Deus. Rm 9:19–29

Aqui vem uma objeção plausível:


19. Mas algum de vocês me dirá: Então, por que Deus ainda nos
culpa? Pois, quem resiste à sua vontade? [NVI]
A objeção provém de não distinguir entre a vontade secreta (de
decreto) de Deus e a revelada (de preceito). Naturalmente, o homem não
pode fazer nada com relação à primeira. Mas é julgado certa e
corretamente responsável pelo que faz com relação à última. Este duplo
fato é exposto claramente em duas passagens fáceis de lembrar: Dt 29:29
e Lc 22:22.
Não admira, então, que o apóstolo continue como segue:
20, 21. Mas quem és tu, ó homem, para replicar a Deus? Dirá o que é
moldado ao moldador: Por que me fazes assim? Não tem o oleiro o direito
Romanos (William Hendriksen) 437
de fazer, da mesma massa de argila, um vaso para honra e outra para
desonra? 277
A resposta reprova no inquiridor seu impudência e imbecilidade;
sua falta de vergonha e de sentido. O impugnador questiona a justiça de
Deus, e é, por conseguinte, um descarado, um arrogante. Esquece que se
o moldado não tem direito de dizer a seu moldador: “Por que me fazes
assim?”, com maior razão carecem os seres humanos do direito de
dirigir-se assim a seu soberano Criador. O impugnador é um estúpido.
Esta passagem sobre o oleiro e sua massa de argila traz à memória
várias passagens bíblicas, tais como Jó 10:9; Is 64:8; 2Tm 2:20 e
especialmente Is 29:16; 45:9. Veja-se também o livro apócrifo Sabedoria
de Salomão 15:7–17.
Note-se: “ … da mesma massa de argila, um vaso para honra e
outro para desonra?” Vários tradutores e expositores concordam com
esta tradução ou alguma muito similar.278 Outros preferem “para
ornamento … para uso diário”; ou “nobre … comum”. A diferença é de
muito pouca. A favor da primeira alternativa está o fato de que o
contexto aqui em Rm 9:20, 21 (veja-se Rm 9:13s) está repleto de fortes
contrastes, tais como amor, ódio; Moisés, Faraó; misericórdia,
endurecimento; vasos de ira, vasos de misericórdia. 279
A ideia principal que Paulo transmite é esta: Se até um oleiro tem o
direito de fazer da mesma massa de argila um vaso para honra e outro
para desonra, então certamente Deus, nosso Criador, tem o direito de
escolher, dentre essa mesma massa de seres humanos que por sua própria
culpa se precipitaram no fosso da miséria, alguns para vida eterna e
deixar que outros permaneçam no abismo da ruína.
22–24. E que dizer se Deus, escolhendo demonstrar sua ira e fazer
conhecer seu poder, suportou com grande paciência vasos de ira

277
Ou: uma para uso ornamental … outro para uso diário.
278
Por exemplo, A.V., A.R.V., Berkeley, Williams, Phillips, Greijdanus, Lekkerkerker.
279
Veja-se também o significado da palavra _τιμία em Rm 1:26; 1Co 11:14; 15:43; 2Co 6:8; 11:21; ou
seja, vergonha, desgraça, desonra. E consulte o C.N.T. sobre 2Tm 2:20.
Romanos (William Hendriksen) 438
preparados para a destruição, (fazendo isto) para dar a conhecer as
riquezas de sua glória (prodigalizadas) a vasos de misericórdia, que ele
preparou de antemão para glória, até nós, a quem também chamou, não
só dentre os judeus mas também dentre os gentios? 280

Note-se o seguinte:

a. Deus … suportou com grande paciência


A paciência de Deus, Sua relutância em castigar os pecadores, é
enfatizada em várias passagens, entre os quais encontramos a Rm 2:4
(veja-se sobre a passagem); Gn 6:3b; 18:26–32; Êx 34:6; 1Rs 21:29; Ne
9:17b; Sl. 86:15; 10:8–14; 145:8, 9; Is 5:1–4; Ez 18:23, 32; 33:11; Lc
13:6–9; Ap 2:21.

b. vasos de ira
Quem são estes vasos de ira? Há quem os identifica com os futuros
crentes de Ef 2:3. Porém, não é mais natural, no presente contexto,
pensar em pessoas como Faraó, o impenitente; em outras palavras, nos
réprobos? É reconfortante saber que, como já se disse anteriormente,

280
No original esta oração, que começa com o v. 22 e se estende ao menos até o v. 24 inclusive, não
tem sujeito. Seu caráter anacolútico nos faz lembrar a Rm 5:12s. Não obstante, o sujeito inexpressado
mas suposto pode conjeturar-se a partir do contexto. Vejam-se especialmente os vv. 19, 20, que
indicam a irracionalidade de questionar a justiça ou imparcialidade de Deus. O sujeito — ou a
cláusula sujetiva — provavelmente seja: “Quem se atreveria a inculpar a Deus” (continuando-se: “se
ele, etc.”). Em espanhol, uma oração deste tipo começaria geralmente com “E o que, se”, etc.
Depois das palavras de introdução, a cláusula principal é “[ele] suportou com grande paciência
vasilhas de ira preparadas para a destruição”. A mesma é modificada como segue:
a. escolhendo — quer dizer, porque ele escolheu; cf. v. 17 — para demonstrar sua ira.
e
b.… para fazer conhecer seu poder.
c. para dar a conhecer as riquezas de sua glória (prodigalizadas) sobre vasilhas de misericórdia,
que ele preparou de antemão para glória, até nós, aos quais também chamou, não só dentre os judeus
mas também dentre os gentios.
Romanos (William Hendriksen) 439
Deus tem paciência até com aqueles que finalmente se perdem! Esta
explicação concorda também com o próximo ponto:

c. preparados 281 para a destruição


Paulo não afirma quem foi aquele que preparou estas pessoas ou os
amadureceu para a destruição. De Rm 9:18 alguns extraíram a conclusão
de que foi Deus. Mas aqui no v. 22 não nos é dito que foi Deus. E
embora fosse Deus, não devemos então supor que Sua ação de endurecer
os corações deles, preparando-os assim para a destruição, veio para
consequência e como castigo de que eles mesmos se endureceram?
Contudo, não deve considerar-se impossível que o apóstolo desejasse
apresentar um contraste entre a presente passagem e o v. 23, em que,
sim, se menciona o agente ativo, para demonstrar que aqui no v. 22 as
próprias pessoas — em cooperação com Satanás! — eram os agentes
ativos; como, por exemplo, sucede também em 1Ts 2:14b, 15, 16;
enquanto que em Rm 9:23 diz-se que é Deus quem prepara, e se o faz em
certo sentido favorável; veja-se abaixo.

d. escolhendo demonstrar sua ira para fazer conhecer seu poder


É precisamente a pecadores endurecidos, homens como Esaú (Rm
9:13), Faraó (Rm 9:17, 18) e Judas o traidor (Lc 22:22; Jo 13:18; 17:12;
At 1:15–20, 25), impenitentes todos; quer dizer, aos que até o fim
recusam responder favoravelmente às pacientes exortações de Deus, a
quem Deus mostra a Sua ira e faz conhecer o Seu poder.

281
κατηρτισμένα, tendo sido preparadas; por isso amadurecidas, acus. pl. neut. perf. pas. part. de
καταρτίζω aqui, preparar.
Romanos (William Hendriksen) 440
e. (fazendo isto), quer dizer, suportando com grande paciência
vasos para ira, para dar a conhecer as riquezas de sua glória
(prodigalizadas) a vasos de misericórdia
Esta razão é coordenada da mencionada mais acima sob d. Ambas
modificam a cláusula principal (a. Deus suportou com grande paciência).
Foi precisamente a grande paciência de Deus para com Faraó e seu
povo, sua demora em derramar sobre eles a plena medida do castigo que
mereciam, que forneceu a oportunidade de fazer conhecer as riquezas da
glória de Deus derramadas sobre o Israel dessa época remota. Se Faraó
tivesse sido destruído imediatamente, quem se teria dado conta da
misericórdia de Deus para com Israel? Mas à medida que as dez pragas
se sucediam uma a uma, essa misericórdia fazia-se cada vez mais
evidente. Note-se o seguinte:
Com relação à quinta praga: “E o Senhor fará distinção entre os
gados de Israel e os do Egito, de modo que nenhum animal dos israelitas
morra … Morreu todo o gado do Egito, mas dos animais pertencentes
aos israelitas não morreu nenhum” (Êx 9:4, 6).
sétima praga: “Somente na terra de Gósen, onde estavam os filhos
de Israel, não houve saraiva” (Êx 9:26).
nona praga: “Ninguém pôde ver nenhum outro nem deixou seu
lugar em três dias; mas todos os filhos de Israel tinham luz em suas
habitações” (Êx 10:23).
décima praga: “Haverá um grande clamor por toda a terra do Egito
… mas entre os israelitas nem um cão ladrará a nenhum homem ou
animal, para que saibam que o Senhor faz diferença entre os egípcios e
Israel … O sangue lhes será por sinal nas casas onde vós estais; e quando
eu ver o sangue, passarei de vós” (Êx 11:6, 7; 12:13).
O mesmo princípio opera constantemente. Deus sempre suporta
com grande paciência os vasos de ira, para dar a conhecer as riquezas de
Sua glória que se derramam sobre os vasos de misericórdia.
Romanos (William Hendriksen) 441
f. as riquezas de sua glória
Esta frase refere-se à gloriosa soma total de todos os atributos de
Deus. Veja-se sua enumeração significativa em passagens tais como Sl.
85:10; 145:8, 9; Rm 11:33; Ef 1:6–8; 2:4, 5, 7; 3:8.

g. (vasos — ou objetos — de misericórdia) que ele preparou de


antemão 282 para glória
Para o contraste veja-se sob c. mais acima. A expressão “que
preparou de antemão para glória” nos faz lembrar de Ef 2:10: “Porque
somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para boas obras, que Deus
preparou de antemão, para que andássemos neles”. O pensamento de Rm
8:28–30 aparece novamente aqui.

h. até nós, a quem a também chamou


A chamada à qual esta passagem faz referência é aquela operação
do Espírito Santo pela qual Ele de tal modo aplica o evangelho às mentes
e corações dos pecadores para que eles percebam sua culpa, comecem a
entender sua necessidade de Cristo, e O aceitem como seu Senhor e
Salvador. É o chamado eficaz, o convite salvificamente aplicado ao
coração e à vida. Veja-se sobre Rm 1:7 e 8:28.

i. não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios


Quanto aos judeus, e falando em termos históricos, somente o
verdadeiro Israel é eficazmente chamado e salvo; esta é uma verdade que
de muitos modos diferentes o apóstolo nos inculca vez após vez (Rm
2:28, 29; 9:6, 27, 28; 11:5, 7, 26). Verdadeiramente há um remanescente.
A rejeição de Israel nunca é total ou completa.

282
προητοίμασεν, 3ª. pes. s. aor. ind. de προετοιμάζω, preparar antecipadamente ou de antemão.
Romanos (William Hendriksen) 442
Contudo, não só judeus, mas também gentios são salvos. Na
verdade, Paulo, ao longo desta epístola e também em outros escritos,
enfatiza a verdade de que não há distinção entre judeus e gentios. Todos
os filhos de Deus constituem um só povo, a igreja universal: Rm 1:5, 13–
16; 2:10, 11; 3:22–24, 30; 4:11, 12; 8:32 (“todos nós”); 10:4, 9 (cf. Jo
3:16); 10:12; 11:32; 16:26. Cf. Gl 3:9, 29; Ef 2:14–18.
25, 26. Como ele diz em Oséias: “Chamarei ‘meu povo’ a quem não é
meu povo; e chamarei ‘minha amada’ a quem não é minha amada”, e:
“Acontecerá que, no mesmo lugar em que se lhes declarou: ‘Vocês não
são meu povo’, eles serão chamados ‘filhos do Deus vivo’.” [NVI].
Oseias foi um profeta enviado a Israel, o reino das dez tribos. Veja-
se Os 7:1. Profetizou durante o século antes de Cristo; a saber, durante o
que poderia denominar-se a Idade de Ouro e o Período do Auge da
Assíria. Israel ganhava grandes vitórias — apressando a perdição de
Israel! A nação parecia um lustroso móvel, dentro do qual o caruncho
rói. Israel estava sendo devorada por dentro pela decomposição moral e
espiritual. De fora a Assíria, que conquistava nação após nação, ia se
aproximando e ameaçava a própria existência de Israel. Essa
prosperidade da qual alardeavam os israelitas, era, por conseguinte,
ilusória. 283
Por mandato de Deus Oseias casou com uma mulher chamada
Gômer. Ela não foi fiel ao seu esposo. Transformou-se numa mulher
entregue à prostituição e concebeu filhos dessa prostituição (Os 2:4):
Jezreel, Lo-Ruama e Lo-Ami (filho, filha, filho). Aqui nos ocupamos
somente dos últimos dois. Seus nomes são simbólicos da condição de
Israel conforme o Senhor a via. Lo-Ruama significa “Não meu amado”;
e Lo-Ami: “Não meu povo”.
Oseias, em vez de rejeitar a sua esposa, escapa até a guarida da
vergonha, volta a comprá-la y misericordiosamente a reintegra à sua

283
Para mais informação com relação ao Israel daquele então e a Oseias, vejam-se Leon J. Wood, The
Prophets of Israel, Grand Rapids, 1979, pp. 275–283; e W. Hendriksen, Survey of the Bible, pp. 235–
238.
Romanos (William Hendriksen) 443
antiga posição de honra, de modo que “Não minha amada” passa a ser
“Minha amada”, e “Não meu povo” passa a ser “Meu povo”.
Em Rm 9:25 Paulo cita esta passagem de Os 2:23, invertendo as
frases, de modo que o que Oseias havia dito com relação a “Não minha
amada” converte-se na segunda frase de Paulo e o que o profeta do
Antigo Testamento predisse com relação a “Não meu povo” é colocado
em primeiro lugar pelo apóstolo. Contudo, o sentido não muda.
O seguinte artigo de Paulo (“Acontecerá que, no mesmo lugar em
que se lhes declarou: ‘Vocês não são meu povo’, eles serão chamados
‘filhos do Deus vivo’.”) é uma citação do que em nossas Bíblias aparece
em Os 1:10b. 284
É claro, por conseguinte, que o que Oseias descreve é o pecado,
castigo e restauração de Gômer: um símbolo do pecado de Israel, de seu
castigo e de sua restauração ao favor divino.
É claro que Oseias estava falando da restauração dos israelitas (ao
favor de Deus). Não obstante, quando Paulo faz uso desta passagem, não
impõe tal limitação. Ele fala de nós, aos quais ele também chamou, não
só dentre os judeus, mas também dentre os gentios”. E Pedro (1Pe 2:10),
ao dirigir-se a congregações que eram de origem predominantemente
gentílica (veja-se 1Pe 1:14, 18; 2:9, 10; 4:6), aplica a passagem de
Oseias diretamente a convertidos do mundo gentílico. Poderia perguntar-
se então: Como é possível que Paulo e Pedro tomem uma passagem que
prediz a restauração dos israelitas e a apliquem a auditórios nos quais
preponderavam os gentios?
A resposta é simples: o mesmo princípio opera nos dois casos.
Visto que se trato da restauração ao favor divino dos israelitas ou da
conversão dos gentios ou até dos dois, a causa ou fonte da restauração e
salvação é em cada caso a mesma. O que ocasiona a restauração e a
conversão é sempre a graça ativa, poderosa e soberana do Deus Todo-
284
Nossa versão de Rm 9:25 é uma citação “livre” do que encontramos na Bíblia hebraica e na LXX
em Os. 2:25, e em nossas Bíblias em Os. 2:23. Nosso Rm 9:26 está tirado do que na Bíblia hebraica
figura em Os. 2:1b. Tal é também o caso com a LXX, de que Rm 9:26 é uma transcrição exata.
Romanos (William Hendriksen) 444
poderoso! A regra sempre é: “Chamarei ‘meu povo’ a quem não é meu
povo; e chamarei ‘minha amada’ a quem não é minha amada”. Quando
esse princípio entra em ação, então no mesmo lugar — quer dizer, em
todo lugar — em que se dissesse aos pecadores: “Não são meu povo”,
eles serão chamados — e o serão de fato — “filhos do Deus vivo”. O
que se enfatiza nestas citações é a graça soberana e compassiva de Deus
mostrada a quem — quer judeus ou gentios — carecem do direito de
considerar-se povo de Deus. 285
A próxima citação refere-se especialmente a Israel. Depois de ler ou
ouvir Rm 9:25, 26, bem poderia surgir a pergunta: “Tem Paulo em mente
uma restauração total de Israel?” A resposta é clara:
27, 28. Mas, relativamente a Israel, dele clama Isaías: Ainda que o
número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é
que será salvo. Porque o Senhor cumprirá a sua palavra sobre a terra,
cabalmente e em breve [RA].
A citação é de Is 10:22, 23. O profeta prediz que, devido à invasão
assíria, Israel será grandemente reduzida em número. A nação que uma
vez foi tão numerosa como a areia do mar (cf. Gn 22:17) ficará reduzida
a um remanescente. Sim, somente um remanescente retornaria.
Nesta altura devemos nos cuidar para não cometer um erro em
nossa interpretação. É bastante comum dizer que Paulo começa agora a
espiritualizar, ao expressar que somente o remanescente será salvo. Não
obstante, um olhar cuidadoso à própria profecia de Isaías demonstra que
este de maneira nenhuma restringe sua profecia à predição de uma volta
física do cativeiro, mas afirma que o remanescente retornará “ao Deus
forte” (Is 10:21). Eles se apoiarão em Jeová, confiariam no Senhor (v.
20). De maneira que Paulo reproduz exatamente o pensamento de Isaías
quando diz que do número total de israelitas somente o remanescente
será salvo. O apóstolo acrescenta que o Senhor levará a cabo sua

285
Também assim Ridderbos, op. cit., p. 223.
Romanos (William Hendriksen) 445
286
sentença “cabalmente e em breve” ou “com vigor e celeridade”. Nos
dias da profecia de Isaías os rigores da guerra, a deportação, a vida num
país estranho sob condições difíceis, a morte pela espada e/ou ver os
amigos e parentes de um assim mortos, tudo isso deve haver-se visto
incluído. Quando Paulo, guiado pelo Espírito Santo, utiliza esta
linguagem, é difícil crer que a queda de Jerusalém do ano 70 d.C. não
estivesse, ao menos em parte, presente no quadro que Paulo pinta. Mas
veja-se também Rm 9:13b, 18b, 22b.
29. E como predisse Isaías: “Se o Senhor dos exércitos não nos
tivesse deixado descendência, teríamos chegado a ser como Sodoma, e
feitos semelhantes a Gomorra”.
A citação está tirada de Is 1:9. O hebraico original poderia traduzir-
se como segue:
“A menos que o Senhor nos tivesse deixado um remanescente
muito pequeno, como Sodoma teríamos sido, a Gomorra teríamos sido
comparado”
A LXX tem essencialmente o mesmo, exceto que em vez de
“pequeno remanescente” usa a palavra “descendência”.
É este texto da LXX que é exatamente reproduzido aqui em Rm
9:29 por Paulo. Naturalmente, “descendência” e “pequeno
remanescente” são similares em seu significado.

286
Esta é a tradução da R.S.V. Veja-se mais adiante nesta mesma nota. Note-se a palavra κράζει, 3ª.
pes. s. pres. indic. De κράζω, clamar. Segundo Calvino (Romanos, p. 258), Paulo descreve a Isaías
como se estivesse gritando, não falando: “para poder obter uma maior atenção”. Agora, embora sem
dúvida é certo até hoje em dia que se deve sublinhar e enfatizar a verdade bíblica que de Israel
somente um remanescente (nunca a nação toda) será salvo, visto que tantos persistem em negá-lo,
contudo também é um fato que segundo S.BK., Vol. III, p. 275, o provável é que o verbo utilizado no
original não fosse mais que a indicação corrente de uma elocução profética.
A expressão λόγον συντελε_ν κα_ συντέμνειν não é fácil de interpretar e por conseguinte foi
explicada de diversas maneiras. A ideia geral é o suficientemente clara a partir do contexto. Deus
agirá decidida e vigorosamente. Executará sua sentença completa e rapidamente. O castigo não será
adiado e será severo. No presente contexto isto também significa que Israel será “reduzido a seu
verdadeiro tamanho”. Só um remanescente será salvado.
Romanos (William Hendriksen) 446
Então, o que Isaías diz e Paulo repete após ele é: Deve-se
exclusivamente ao amor perdoador de Deus e ao Seu cuidado
providencial que o povo — os escritores incluem a si mesmos e àqueles
a quem se dirigem; note-se o “nos” — não tenha ficado como Sodoma e
Gomorra. É impossível, por certo, encontrar um rejeição mais forte de
todo mérito ou pretensão pessoal, visto que estas cidades eram
consideradas a culminação da maldade. Veja-se Gn 13:13; 18:20, 21, 32
(cf. 19:29); Is 3:9; Jr 23:14; Mt 10:15; 11:23, 24; 2Pe. 2:6; Jd 7.
Quando uma pessoa repassa o terreno coberto neste capítulo,
surpreende-se do grande número de citações bíblicas (v. 7, 9, 11–13, 15,
17, 20, 21, 25–29 e, até por vir, 33). É como se Paulo estivesse a
propósito mantendo seus próprios juízos em suspense, a fim de que seus
leitores e ouvintes possam ver por si mesmos o que Deus tinha estado
dizendo no passado. E se até Paulo, que em todo caso estava
divinamente inspirado, faz este uso da Escritura, não deveríamos fazê-lo
nós hoje em dia? Não é uma pregação tanto mais poderosa e eficaz se o
pregador pode demonstrar ao auditório que: “Assim diz o Senhor”?
Também aqui, como com frequência sucedeu em algumas ocasiões
anteriores, a lição é esta: Certamente fica uma descendência, um
remanescente, pela soberana graça de Deus. A rejeição de Israel não é
total. A eleição continua tendo seu efeito.

4. Conclusão. Rm 9:30–33

30, 31. Que diremos, pois? Que os gentios, que não buscavam a
justificação, vieram a alcançá-la, todavia, a que decorre da fé; e Israel,
que buscava a lei de justiça, não chegou a atingir essa lei [RA].
Embora as palavras “Que diremos, pois?” são as mesmas do v. 14,
seu significado não é o mesmo. No v. 14 Paulo antecipava uma objeção
que logo passa a demolir. Aqui, em Rm 9:30, 31, ele expressa a
conclusão a que chegou com base em seu raciocínio prévio.
Romanos (William Hendriksen) 447
A conclusão se resume assim: os gentios — a saber, os gentios que
abraçaram a Cristo — alcançaram uma situação de justos diante de Deus.
No entanto, eles previamente não tinham estado buscando a justiça no
único lugar onde se podia achar. Nesse então eles tinham estado vivendo
nas trevas morais e espirituais. Veja-se Rm 1:18–32; e cf. At 14:16;
17:30; Ef 2:1–3. Mas quando ouviram o evangelho, muitos desses
gentios, pela graça de Deus, aceitaram-no e assim alcançaram a justiça.
Cf. Rm 9:25, 26. Não obstante, não era uma justiça baseada em sua
própria bondade aos olhos de Deus. Era a justiça de Deus, apropriada por
essa fé que Deus lhes deu. Era uma justiça comprada pelo sangue
redentora de Cristo.
Israel, pelo contrário, embora tinha estado sempre à busca da lei de
justiça, fervorosamente procurando alcançá-la — algo bom em si mesmo
— não tinha podido obtê-la, alcançá-la. Sempre tinha evitado a Israel. A
razão se expressa no v.
32a. Por que? Porque não a buscavam pela fé, mas como que pelas
obras [RA].
Naturalmente, não há nada de mau em procurar obter um estado de
justiça aos olhos de Deus. O problema com Israel era que esta gente
partia da pressuposição falsa de que, esforçando-se muito, muito, eles
poderiam, algum dia, obedecer toda a lei de Deus, de modo que
chegassem a exclamar: “Êxito! Nós conseguimos!” Paulo prega um
evangelho totalmente diferente. Ver Rm 3:27, 28; Gl 1:8, 9, 3:10; 5:6. A
lei, com sua inexorável demanda de perfeito amor e obediência, deveria
haver impulsionado cada israelita a ir a Deus com a fervente oração: “Ó,
Deus, tem piedade de mim, pecador”. Em vez disso, Israel deu por
sentado que os homens poderiam, por sua própria força e com base em
seus próprios recursos cumprir as demandas da lei.
Romanos (William Hendriksen) 448
Resultado: embora sempre buscando, Israel jamais conseguiu o que
buscava. A lei sempre esteve para além do alcance de Israel. Não podia
ser alcançada. 287
32b, 33. Tropeçaram na 288 pedra de tropeço, como está escrito: Eis
que ponho em Sião uma pedra de tropeço e uma rocha de escândalo,
Aquele que nele crê, não será envergonhado [RA].
Paulo vai agora à própria raiz da incapacidade de Israel para obter a
justiça. Tropeçaram contra — ou na pedra de tropeço. Não chegaram a
reconhecer a Cristo como seu Salvador. Naturalmente, enquanto Israel
confiasse nas obras, não podia abraçar a Cristo. A opção era entre uma e
a outra. Não podia ser ambos.
Para os judeus Cristo era uma pedra de tropeço (1Co 1:23). Por
certo, também para mais de um gentio, Ele era um escândalo. Mas em
termos gerais, os judeus eram muito mais teimosos em sua crença de que
tinham achado a solução para o problema de conseguir o estado de
justiça diante de Deus. E sua falta de correr humildemente para refugiar-
se em Cristo e abraçá-Lo pela fé resultou ser sua ruína, sua perdição.
As palavras citadas por Paulo aqui no v. 33 são uma combinação de
duas passagens bíblicas: Is 28:16 e Is 8:14:
“Eis que ponho em Sião uma pedra, uma pedra já experimentada,
uma preciosa pedra angular para alicerce seguro; aquele que confia,
jamais será abalado” (Is 28:16, NVI).
“Mas será [ele] pedra de tropeço e rocha de ofensa às duas casas de
Israel, laço e armadilha aos moradores de Jerusalém” (Is 8:14, RA).
Habilmente Paulo combina a essência de ambos em seu citação.
Embora em Is 8:14 é o Senhor dos exércitos a quem se descreve como
pedra de tropeço, o apóstolo não vacila em aplicar esta passagem a Jesus.
Cf. Mt 21:42; Mc 12:10; Lc 20:17; At 4:11; 1Pe 2:6–8. A solução: Cristo
é Deus!

287
Note-se ο_κ _φθασεν, 3ª. pes. s. aor. at. ind. de φθάνω, provavelmente aqui com o sentido de obter,
alcançar, chegar a.
288
Ou: contra.
Romanos (William Hendriksen) 449
A busca da lei da parte de Israel, como se uma pessoa pudesse ser
salva observando a lei, implicava uma falta de disposição para aceitar a
justiça oferecida por Deus com base na obra redentora de Cristo. Os
gentios, por outro lado, haviam aceito Cristo pela fé em grandes
números. Como notamos anteriormente, também a igreja de Roma
consistia em sua maior parte de convertidos do mundo gentílico. Paulo
afirma que ao pôr sua fé em Cristo eles não desmaiarão nem serão
envergonhados. Esta leitura da passagem (Is 28:16) parece ter sido a
base da tradução da LXX e também da citação de Paulo aqui em Rm
9:33. 289
O ponto que mais cabe enfatizar aqui é este, que a verdade que aqui
se afirma tem vigência tanto para o judeu como para o gentio. Não é
acaso uma afirmação em linguagem profética, e também agora em
linguagem paulina, da preciosa verdade compreendida em Jo 3:16?

Lições práticas derivadas de Romanos 9


Rm 9:1. “Falo a verdade em Cristo — não minto; minha
consciência dá testemunho junto comigo no Espírito Santo …”. O
apóstolo sabia que suas afirmações iam ser desafiadas, e demonstra
(coisa que é ainda mais importante) que está muito consciente de estar
escrevendo na presença de Deus e sob a constante direção do Espírito
Santo. Veja-se também Rm 1:25; 6:17; 7:25; 8:35–39; 11:33–36; 15:13,
32; 16:25–27; Gl 1:20; Ef 1:3ss.; 1:15ss.; 3:14–21; 1Tm. 2:7. Não
contribui isto para que as epístolas de Paulo sejam ainda mais
apreciadas?
Rm 9:1, 3. “Falo a verdade em Cristo … desejaria que eu mesmo
fosse maldito … por amor a meus irmãos, meus compatriotas …” Eis

289
Como resultado, é provável incorreto dizer que a formulação de Paulo “se desvia do hebraico”
(Murray, op. cit., p. 45). A verdadeira pergunta é: “baseou-se a tradução da LXX de Is 28:16 no texto
massorético e era esse o texto que Paulo também tinha em mente?” De não ser assim, então a
dificuldade desaparece completamente e a gente já não precisa dizer: “O hebraico realmente significa
‘não se apressará’, mas o apóstolo segue o texto do LXX”.
Romanos (William Hendriksen) 450
aqui um grande teólogo … que é ao mesmo tempo um afetuoso amante
das almas! Não há dúvida que os livros são muito importantes. Todo
pregador deveria ter acesso a uma boa biblioteca teológica. Mas o que é
mais importante ainda é: deveria amar as pessoas e estar profundamente
preocupado por seu bem-estar eterno. Esse mesmo espírito deveria
caracterizar todo crente!
Rm 9:5. “Cristo, que está sobre tudo, Deus bendito para sempre.
Amém”. Isto faz lembrar: “Mas vemos a Jesus … coroado de glória e
honra” (Hb 2:9). É a consciência em todas as circunstâncias da vida da
realidade e proximidade de Cristo, que sempre vive e sempre age, o que
comunica intrepidez para permanecer firme, sabendo que Ele tem
controle completo de todo!
Rm 9:6, 27. “Porque nem todos os que são de Israel são Israel”.
“Embora o número de Israel seja como a areia do mar, (só) o
remanescente será salvo”.
Não chegou já a hora em que, na pregação da Palavra, reviva-se a
doutrina do remanescente? Veja-se passagens como as que se detalham a
seguir: 1Rs 19:18; Is 1:9; 10:20–22; 11:11; 46:3; Jr 23:3–6; Ez 6:8–10, Jl
2:32; Am 5:15; Mq 2:12; 4:5–7; 7:18; Sf 3:12, 13; Mt 7:14; 9:37; 22:14;
Lc 12:32; 13:23, 24; Rm 9:27–29; 11:4, 5; Ap 12:17.
Rm 9:16. “De modo que, não depende da vontade ou do esforço
(do homem), mas da misericórdia de Deus”.
Esta passagem demonstra quão profundamente sentia Paulo a
necessidade de Deus em cada passo do caminho. Mas o que encontramos
hoje em dia, muitas vezes mesmo em famílias que vão à igreja? as
crianças são criadas em escolas onde se ensina a evolução e nas quais, se
em alguma ocasião se fala da criação, é para olhá-la com desaprovação.
O orador a quem se convidou para falar aos graduandos diz as eles:
“Sem dúvida vocês terão muito êxito se vocês se esforçarem até o
limite” (exemplo tomado da vida real). O que se pode fazer para corrigir
este mal?
Romanos (William Hendriksen) 451
Quando o jovem ou a jovem busca um companheiro, ele ou ela
demanda que seu futuro cônjuge tenha todo tipo de qualidades … sem
nunca fazer a mais importante de todas as perguntas: “É ele/ela crente?”
E assim tudo continua. A religião — se é que de algum modo está
presente — é um assunto secundário. Por certo, nem todos os jovens são
assim. Muitos demonstram em sua vida que amam o Senhor e que têm
presente a Ele e a Sua vontade tal como foi revelada em Sua palavra!
Porém não é verdade que também muitos estão doo outro lado? Como o
demonstra v. 16, Paulo estava plenamente consciente de que seu bem-
estar do presente e da eternidade dependia do beneplácito de Deus!
Rm 9:22. “E que dizer se Deus … suportou com grande paciência
vasos de ira, preparados para a destruição?”
Se Deus suportou com grande paciência aqueles que Ele sabia que
nunca se salvariam, não deveríamos nós ter ao menos um pouco de
paciência com a pessoa que, embora agora inconversa, poderia ainda,
pela graça de Deus, experimentar uma mudança fundamental, uma
genuína conversão?

Resumo de Romanos 9
Paulo começa este capítulo declarando solenemente que a
incredulidade de Israel e sua conseguinte rejeição são para ele uma carga
pesada. Tão genuína, profunda e comovedora é sua angústia que diz:
“Desejaria eu mesmo ser maldito (e afastado) de Cristo por amor a meus
irmãos, meus compatriotas segundo a carne”. Ao dizer isso, ele lembra a
Judá (o filho de Jacó e irmão de José), a Moisés, a Davi e, na verdade, a
Jesus Cristo. Veja-se Gn 44:33; Êx 32:32; 2Sm 18:33; Is 53:5–8, 12b.
O pano de fundo da tragédia de Israel e da tristeza de Paulo torna-se
especialmente claro quando se enumeram as vantagens que permitiram
esta nação colocar todas as outras à sua sombra. E certamente a maior
destas é: “… deles provém, no que se refere à sua natureza humana,
Romanos (William Hendriksen) 452
Cristo, que está sobre tudo, Deus bendito para sempre. Amém” (vv. 1–
5).
Ninguém deve imaginar, no entanto, que a rejeição de Israel
significava que a Palavra de Deus — sua promessa a Israel — tinha
fracassado. A verdade é que esta promessa nunca tinha tido por objeto
seu cumprimento na nação como um todo. Apontava ao verdadeiro
Israel, o corpo dos escolhidos de Deus dentre os israelitas: “Nem todos
os que são de Israel são Israel” (v. 6). Este verdadeiro Israel inclui Jacó,
porém não Esaú. Inclui todos aqueles — e somente aqueles — que são
nascidos do Espírito. No fim das contas, quem são estes verdadeiros
israelitas estão determinado pelo eterno decreto de Deus. “Amei Jacó,
mas me aborreci de Esaú” (vv. 6–13).
“De modo que”, diz Paulo, “não depende isso [provavelmente nossa
salvação] da vontade ou do esforço (do homem), mas da misericórdia de
Deus”. Depois das primeiras seis pragas, Deus tinha poupado a vida de
Faraó para poder, por meio das pragas restantes, mostrar mais que nunca
Seu poder relativo ao derramamento de Sua ira sobre o rei do Egito e seu
povo, a fim de que o nome de Deus fosse proclamado em toda a terra. É
evidente que Deus não deve ser acusado de ser injusto quando endurece
o coração de uma pessoa que se endureceu a si mesma contra seu
Criador. Seja que Deus mostre misericórdia a tal pessoa ou que a
endureça é algo que corresponde a Ele decidir (vv. 14–18).
Paulo prossegue: “Então, por que Deus ainda nos culpa? Pois, quem
resiste à sua vontade? [Rm 9:19, NVI]. Aquele que objeta esquece que
Deus certamente tem direito de culpar o homem que desobedece a
vontade revelada de Deus (Dt 29:29; Lc 22:22). Além disso, “Mas quem
és tu, ó homem, para replicar a Deus? Dirá o que é moldado ao
moldador: Por que me fazes assim?”
Há dois fatos que se destacam no trato de Deus para com o povo:
a. Ele trata com grande paciência os objetos de Sua ira.
b. Enquanto faz isto, Ele não se esquece dos Seus escolhidos, os
objetos de Sua misericórdia. De fato, “Deus … suportou com grande
Romanos (William Hendriksen) 453
paciência objetos [vasos] de ira … para dar a conhecer as riquezas de sua
glória (prodigalizadas) a objetos [vasos] de misericórdia, que ele
preparou de antemão para glória, até nós, a quem ele também chamou
[atraiu eficazmente a si], não só dentre os judeus, mas também dentre os
gentios” (vv. 19–24).
Com citações das profecias de Oseias (primeiro de Rm 2:23 e mais
adiante de Rm 1:10b) o apóstolo demonstra agora que assim como para
os israelitas da antiga dispensação havia uma promessa de restauração,
do mesmo modo também agora tem vigência essa promessa de
restauração ao favor de Deus. Não obstante, com uma citação de Is
10:22, 23, Paulo enfatiza (cf. Rm 9:6) que ele não está falando de uma
restauração nacional, mas da restauração do remanescente. Ele diz:
“Embora o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, (só) o
remanescente se salvará”. Também acrescenta o apóstolo, por meio de
uma citação de Is 1:9: “Se o Senhor dos exércitos não nos tivesse
deixado uma descendência, teríamos chegado a ser como Sodoma e
feitos semelhantes a Gomorra” (vv. 25–29).
A conclusão a que Paulo chega é que embora anteriormente os
gentios não tinham buscado ser justos aos olhos de Deus, no entanto,
eles tinham obtido a justiça: quer dizer, eles haviam pela fé aceito ao
Cristo do evangelho.
Pelo contrário, Israel, embora sempre andou buscando (tratando de
cumprir) a lei de justiça, não tinha alcançado ser justos aos olhos de
Deus. Por que? Porque tinham confiante em suas alardeadas obras e em
seus imaginados méritos, em vez de pôr sua confiança em Cristo. Ele, a
preciosa pedra angular, transformou-se para eles em pedra de tropeço e
rocha de escândalo.
Paulo conclui este capítulo com uma citação de Is 28:16, “Mas
aquele que põe sua confiança nele não será envergonhado”.
Como se vê, o apóstolo não esqueceu seu tema principal. Cf. Rm
1:16,17; 3:21–24, 28–30; 4:3–8, 22–24; 5:1,2,9,18,19; 8:1 (vv. 30–33).
Romanos (William Hendriksen) 454
ROMANOS 10
5. A autojustificação diante da justiça de Deus. Rm 10:1–13

1. Irmãos, o desejo do meu coração e minha oração a Deus por eles é


que sejam salvos.
Com relação ao uso desta emotiva palavra de afeto, “Irmãos”, veja-
se sobre Rm 1:13 e 7:1. Neste preciso momento em que ele está prestes a
ampliar o tema da culpa de Israel, demonstrando que sua rejeição não
era arbitrária, mas merecida, Paulo sabiamente reafirma antes de mais
nada (cf. Rm 9:1s) seu profundo apego e seu afeto por seus compatriotas.
Ao afirmar que é o desejo do seu coração e sua oração a Deus que eles
sejam salvos, não está ele realmente dando a entender que os ama
intensamente? O apóstolo bem sabia que em Israel sempre houve um
remanescente que seria salvo (Rm 9:23, 27). Mas, deixando isso de lado,
não é o dever e a alegria do crente amar a todos?
Veja-se Mt 5:43–48. E com maior razão até aos parentes e amigos!
Muito apropriadamente o apóstolo deseja e ora fervorosamente pela
salvação deles. Ele se estende sobre este tema ao acrescentar:
2. Porque posso dar testemunho com relação a eles de que têm zelo
por Deus, mas isso não está baseado no conhecimento.
O zelo ou entusiasmo pode ser algo muito bom. Veja-se Sl. 69:9; Jo
2:17. O apóstolo admite que seus compatriotas se esgotam procurando
garantir para si mesmos o favor de Deus. Não estava isso já implícito em
Rm 9:31? E não fica isso definitivamente confirmado por passagens tais
como At 21:20; 22:3; Gl 1:14?
Até aqui, bem! Mas a mosca no unguento era esta: este zelo por
Deus, este entusiasmo por Ele, este forte e profundo impulso de viver de
acordo com a lei de Deus não estava baseado numa correta
compreensão! Não estava em harmonia com a revelação de Deus a
respeito do caminho da salvação. Paulo explica isso no versículo 3:
Romanos (William Hendriksen) 455
3. Porque, ao não reconhecer a justiça que vem de Deus, e ao
procurar estabelecer a sua própria, não se submeteram à justiça de Deus.
Em termos tão claros que uma explicação é quase supérflua, Paulo
faz notar que a falta básica de Israel consistia no seguinte:
a. Não reconhecia, quer dizer, não aceitava nem dava entrada à
justiça que tem Deus como autor (Rm 3:21–24; 8:1; 9:30), que está
baseada na expiação substitutiva de Cristo (Rm 3:24; 5:8, 17, 18; 8:3, 4,
32; cf. Is 53:4–8; Mt 20:28; Mc 10:45; 2Co 5:21; Gl 3:13; 1Tm. 2:5, 6),
e que é apropriada pela fé (alguns das mesmas passagens e também Rm
1:17; 4:3–5, 16, 23–25; 5:1; cf. Hc 2:4; Gl 3:11).
b. Substituía sua própria justiça de obras pela justiça da graça dada
por Deus. Sobre os tristes resultados disso, indicados pelo próprio Paulo,
veja-se Rm 2:17s; 3:20; 9:31–32.
Que Deus realmente atribuiu justiça é algo que fica claro pelo que
vem, em fácil transição, no versículo
4. Porque Cristo é a meta 290 da lei, de modo que há justiça para todo
aquele que põe sua confiança (nele).
Deseja alguém entender a meta, o significado e a substância da lei
do Antigo Testamento? Que então estude Cristo. Não é o específico
propósito da lei o estabelecimento do amor? Veja-se Dt 6:5; Lv 19:18
(nessa ordem): cf. Mt 22:37–39. E não é Cristo a própria encarnação
desse amor, tanto em Sua vida como em Sua morte? E não é também
certo que devido a este amor que O levou a sofrer e morrer em lugar do
Seu povo, que tem agora uma correta posição e relação para com Deus a
todo aquele que põe sua confiança no Salvador? Não é isso o próprio
tema de Romanos? 291

290
Ou: significado e substância.
291
Em vez de “Porque Cristo é a meta da lei”, muitos preferem: “Porque Cristo é o fim da lei”. Como
tradução, isto pode ficar. Mas a pergunta adicional é: “O que quer dizer através da palavra grega
τέλος e a palavra em português fim? Além de outros significados, ambas as palavras podem significar:
(a) terminação, final; ou (b) meta, intenção, propósito, significado e substância. No entanto, o
significado (a) não tem aplicação no presente caso, visto que a ideia que afirma que por causa da obra
de Cristo a lei do Antigo Testamento perdeu toda sua utilidade em todo respeito, e que portanto
Romanos (William Hendriksen) 456
Visto que o v. 4 se refere a Cristo como meta da lei no sentido que
acabamos de explicar, pareceria lógico, no caso que nos ocupa, referir-se
a Cristo também no próximo versículo.
5. Porque Moisés descreve deste modo a justiça que é pela lei:
“Aquele que faz estas coisas viverá por elas”.
A referência é o Lv 18:5 (citado também em Gl 3:12; cf. Lc 10:28).
Foi Cristo, e somente Ele, quem por meio de Sua vida e morte cumpriu
completamente as demandas da lei, assegurando assim para si mesmo a
aprovação do Pai e o lugar à destra do mesmo (Hb 12:2); e para seus
seguidores a vida eterna (Hb 5:8, 9). Por conseguinte, para todos os que
põem sua confiança em Cristo, o caminho que leva à salvação se tornou,
em certo sentido, incrivelmente fácil. O que tinha sido imensamente
difícil, árduo e doloroso, e de fato impossível para os pecadores, foi
obtido por Cristo. Nenhum mero pecador deve agora procurar fazer o
que é para ele ao mesmo tempo impossível e desnecessário.
Escute agora o que diz “a justiça que é pela fé”:
6, 7. Mas a justiça decorrente da fé assim diz: Não perguntes em teu
coração: Quem subirá ao céu?, isto é, para trazer do alto a Cristo; ou:
Quem descerá ao abismo?, isto é, para levantar Cristo dentre os mortos
[RA].
Note-se a palavra “Mas”. A mesma indica um agudo contraste entre
(a) o estado de justiça ganho por Cristo (vv. 4, 5), e (b) esse mesmo
estado que, com base na justiça de Cristo, é gratuitamente obtido por
todos aqueles que creem nEle.
Esta última “justiça”, a que é “pela fé”, é aqui personificada e
apresentada como se estivesse falando. Transmite uma mensagem do
Novo Testamento em termos do Antigo Testamento. Pode fazer isso
porque em ambos os testamentos o caminho da salvação é o mesmo, tal
como Paulo já o estabeleceu (Rm 1:17; 3:21, 22; 4:1s).

terminou”, é contrária ao ensino de Paulo, como o esclarece Rm 3:31; 7:7. Veja-se especialmente
sobre Rm 5:20. Por conseguinte seja melhor, até na tradução, sustituír o termo meta por fim.
Romanos (William Hendriksen) 457
As palavras citadas nos levam ao tempo em que Moisés dava
instruções ao povo de Israel com relação à sua entrada na terra de Canaã.
Ele expõe as maldições que seriam derramadas sobre os desobedientes
(Dt 27:9–26), como também as bênçãos que se outorgariam aos
obedientes (Dt 28:8–14). Ele então fala com cada israelita para dizer:
“O que hoje lhes estou ordenando não é difícil fazer, nem está além
do seu alcance. Não está lá em cima no céu, de modo que vocês tenham
que perguntar: ‘Quem subirá ao céu para trazê-lo e proclamá-lo a nós a
fim de que lhe obedeçamos?’ Nem está além do mar, de modo que vocês
tenham que perguntar: ‘Quem atravessará o mar para trazê-lo e,
voltando, proclamá-lo a nós a fim de que lhe obedeçamos?’ ” (Dt 30:11–
13).
O ponto que Moisés enfatiza é que a lei foi dada a Israel no
contexto da graça e que Canaã, a terra na qual o povo está prestes a
entrar, é o dom de Deus para eles. De maneira nenhuma é o produto de
sua própria justiça ou de seu enérgico esforço. Veja-se também Dt 8:17,
18; 9:4–6.
Que há uma analogia surpreendente entre a entrada a Canaã
terrestre e o obter a salvação era claro não só para o escritor da epístola
aos Hebreus (veja-se Hb 4:6–10), mas também para Paulo; ou, no
presente contexto, para “a justiça que é pela fé”.
A verdade que aqui também se deve enfatizar é que a tarefa
verdadeiramente difícil não deve ser empreendida por nós. foi cumprida
a nosso favor por Cristo. É Ele quem desceu dos céus, habitou entre nós
como numa tenda (Jo 1:14), sofreu as agonias do inferno por nós,
morreu, foi sepultado, ressuscitou, ascendeu o céu. A tarefa difícil foi
cumprida por Ele! Por conseguinte, todo esforço de nossa parte por subir
ao céu trazer a Cristo seria equivalente à mais ingrata negação da
realidade e do valor da encarnação de Cristo. Do mesmo modo, qualquer
intenção por descer ao reino dos mortos para trazer a Cristo dentre os
mortos seria um repúdio do caráter genuíno e do significado da gloriosa
ressurreição de Cristo dentre os mortos e de Seu triunfo sobre a tumba.
Romanos (William Hendriksen) 458
(Veja-se Sl. 16:10; At 2:27; Rm 4:25; 1Co 15:20, 55–57; Ap 1:17,
18). 292
Ao estudar este reconfortante ensino do apóstolo Paulo, faz-nos
lembrar das inesquecíveis palavras do próprio Cristo:
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu
vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque
sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma.
Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve” (Mt 11:28–30).
8. Mas, o que diz? “A palavra está perto de ti; (está) em teus
lábios293 e em teu coração”; quer dizer, a palavra de fé que proclamamos.
O apóstolo continua “citando” a justiça que é pela fé. A citação que
achamos em Rm 10:6, 7 terminava com palavras de Dt 30:13. Por isso
aqui em Rm 10:8 são citadas as palavras de Dt 30:14: “A palavra está
perto de ti; está em teus lábios e em teu coração”. Por meio de suas
misericordiosas confirmações, promessas e admoestações — que estão
presentes em abundância em Deuteronômio; estudem-se, por exemplo,
gemas tão preciosas como Dt 5:6; 6:4–9; 7:7–9; 10:12, 13; 11:13–15,
22–25; 18:15–18; 26:16–19; 28:1–14 — o Senhor havia, por assim dizer,
trazido o Seu povo muito perto do Seu coração. Que eles respondam
agora com a resposta do amor.
Quanto mais tempo a pessoa toma para estudar Deuteronômio, tanto
mais concordará com a declaração de Paulo que esta é certamente “a
palavra de fé que proclamamos”. Deve sê-lo, porque o próprio coração e
centro deste livro e de todo o Antigo Testamento é Cristo, tal qual o
afirmou o apóstolo (veja-se Rm 10:4).
Há, porém, uma só maneira em que isso pode ser apreciado. É por
meio da fé; porque a palavra de Deus, tal como é revelada no Antigo e
no Novo Testamento, é “a palavra de fé”; quer dizer, é a palavra que,
para poder exercer seu efeito salvador, deve produzir a resposta da fé!

292
Embora “o abismo” pode indicar o profundo do mar (cf. Sl. 107:26 = LXX 106:26), na presente
passagem são a morte e a tumba as que são indicadas. Veja-se At 2:27.
293
Literalmente: em sua boca, aqui e também no v. 9.
Romanos (William Hendriksen) 459
Paulo agora demonstra que a afirmação: “A palavra está perto de ti;
(está) em teus lábios e em teu coração” é verdadeira:
9, 10. Porque, se em teus lábios está a confissão: “Jesus é Senhor”, e
em teu coração a fé que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo.
Porque é com o coração que uma pessoa exerce a fé que leva a justiça, e é
com os lábios 294 que faz a confissão que resulta em salvação.
Note-se o seguinte:
a. “Porque” (em vez de “Que”) é a tradução natural aqui, ao ser o
sentido que a afirmação que diz que a palavra está perto de ti (v. 8) é
certo e que fica demonstrada pelo fato de que, em vez de requerer um
esforço sobre-humano, a salvação se obtém simplesmente confessando
com os lábios e tendo fé no coração.
b. No v. 9 a confissão que está nos lábios precede à fé que está no
coração; no v. 10 a sequência oposta prevalece. A razão provável é esta:
primeiro Paulo está pensando em Dt 30:14, onde “em teus lábios”
precede a “em teu coração”. Depois, ele segue a ordem natural, segundo
o qual uma pessoa confessa com seus lábios o que já está presente em
seu coração.
c. Não o imperador romano, mas Jesus era quem devia receber toda
a honra e a glória. Além disso, é claro a partir de 1Co 16:22 (māránā thā,
nosso senhor, veem!) que a exaltação de Jesus como Senhor era habitual
até na igreja primitiva de fala aramaica. Que o título de Senhor é usado
aqui (em Rm 10:9) em seu sentido mais exaltado, indicando a igualdade
de Jesus com Deus, é claro não só pelo fato de que o apóstolo
frequentemente e sem vacilações atribui a Jesus qualidades que no
Antigo Testamento são atribuídas a Deus, mas também pela
circunstância que já em Rm 9:5 ele chamou Jesus “sobre tudo Deus
bendito para sempre”.
d. Note-se “coração” e “lábios” (literalmente “boca”). O coração
não é apenas o assento de afeto ou da emoção. Segundo o uso bíblico, é

294
Literalmente: com a boca.
Romanos (William Hendriksen) 460
o eixo da roda da existência e vida humanas (a intelectual, emocional e
volitiva). Veja-se Pv 4:23.
Em primeiro lugar deve haver fé no coração. Sem esta fé, uma
confissão de lábios seria uma zombaria (Mt 7:22, 23). Mas também,
embora haja fé no coração, a confissão com os lábios não só é requerida
(Sl. 107:2), mas completamente natural se a fé for genuína (At 4:20). A
fé e a confissão devem combinar-se (Lc 12:8; Jo 12:42; 1Tm. 6:12; 1Jo
4:15).
e. Por meio da ressurreição dos mortos o senhorio de Jesus se fez
abundantemente claro. Veja-se Rm 6:9; 1Co 15:20; Ef 1:20–23; Fp 2:9–
11; Cl 3:1–4; Hb 2:9; Ap 1:17, 18.
f. Quando no v. 10 diz-se que a fé leva à justiça, e que a confissão
resulta em salvação (literalmente … é para justiça — é para salvação),
os dois conceitos, justiça e salvação, são vistos como sinônimos. O v. 9
também o torna claro, uma vez que ali se descreve a salvação como
produto tanto da confissão como da fé.
g. Note-se “será salvo” (v. 9), e “resulta em salvação” (v. 10). Sobre
o significado de salvação e salvar nas epístolas de Paulo, veja-se sobre
Rm 1:16.
Que a fé certamente leva a justificação e por esta razão à salvação
fica confirmado no versículo.
11. Porque a Escritura diz: “ninguém que põe sua confiança nele
será jamais envergonhado”.
Ou, se preferir-se: “Tudo aquele que põe sua confiança nele, jamais
será envergonhado”. Novamente, tal como o fez em Rm 9:33, Paulo cita
Is 28:16, embora desta vez de forma algo mais vigorosa: “aquele que …
nunca será” passa a ser “Ninguém … será jamais” (ou a “Todo aquele
que … jamais será”). Porém não está a versão que Paulo dá aqui em Rm
10:11 já implícita em Is 28:16? Quanto ao significado veja-se, por
conseguinte, sobre Rm 9:33.
Romanos (William Hendriksen) 461
Que a verdade que o apóstolo acaba de reafirmar não pode ser
negada fica demonstrado nas três orações que vêm nos vv. 12, 13. Cada
uma das três apoia a que a precede:
12, 13. Porque não há distinção entre judeu e grego. Porque o
próprio Senhor (é Senhor) de todos e ricamente abençoa a todos os que o
invocam. Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.
Note-se o seguinte:
a. “Porque não há distinção entre judeu e grego”.
A palavra “porque” especifica que o que vem imediatamente a
seguir comprova o dito no artigo precedente, que diz que ninguém que
põe sua confiança nEle será jamais envergonhado.
Embora o fato de que com relação ao caminho de salvação não há
distinção entre judeu e grego seja enfatizado por Paulo vez após vez,
deve ter sido muito difícil para os judeus crer nisso. Como? Quer Paulo
realmente dizer que eles, os altamente privilegiados descendentes de
Abraão, não eram aos olhos de Deus nada melhor que os gregos ou
gentios?
Não há mesmo hoje em dia muitos membros da igreja que apoiam a
teoria de que os judeus, como povo, são ainda objeto do deleite especial
de Deus e que os aguarda um glorioso futuro? Note-se o modo em que,
em muitos livros escritos por autores que se aferram a esta opinião, a
verdade que aqui se expressa em Rm 10:12 é tocada muito
superficialmente, ou passada por alto muito rapidamente. Não obstante,
Paulo estava tão totalmente convencido de sua importância que se
estendeu a respeito, ao menos o mencionou vez após vez. Veja o leitor
isso por si mesmo, examinando com cuidado as seguintes passagens: Rm
1:16; 2:11; 3:10–18, 22–24; 3:29, 30; 4:9–12; 5:18, 19; 9:24; 10:12;
11:32; e em outros lugares nas epístolas de Paulo: 1Co 7:19; Gl 3:9, 29;
5:6; 6:15; Ef 2:14–18; Cl 3:11.
Que na verdade não há distinção entre judeu e grego é algo muito
claro pela razão de o apóstolo expressar nas seguintes palavras:
Romanos (William Hendriksen) 462
b. “Porque o próprio Senhor (é Senhor) de todos e ricamente
abençoa a todos os que o invocam”. Não só é verdade que o único e
próprio Deus é Deus dos gentios tanto como dos judeus (cf. Rm 3:29),
mas também, tal qual o expressa o apóstolo aqui em Rm 10:12, o próprio
Senhor (= Jesus) é o Senhor de todos.
Deus é rico! Na verdade, Sua riqueza é incalculável. Se acaso
houver alguma coisa que no momento Ele não possua, tudo o que tem
que fazer é fazer valer sua soberana vontade, e ali esta! Veja-se Gn 1:3,
6, 9, 11, 14, 20, 24, 26. Todo o ouro e a prata pertencem a Deus (Ag
2:8). Todo animal do campo é Seu e também é o gado nas mil colinas
(Sl. 50:10–12).
E se Deus é rico, então também Cristo o é, porque Cristo é Deus. Ef
3:8 menciona as insondáveis riquezas de Cristo. Ap 5:12 demonstra que
o Salvador é realmente digno de receber toda esta riqueza.
Porém, Deus não é só imensamente rico, mas também deseja
intensamente outorgar Suas riquezas às Suas criaturas. Ele é rico quando
revela a eles Sua bondade, paciência, glória e misericórdia (Rm 2:4;
9:23; Ef 2:7). Ele é, com efeito, mais generoso do que palavras humanas
podem expressar. Veja-se, por exemplo, uma passagem tão preciosa
como Jo 1:16, segundo a qual nem bem terminou uma manifestação da
graça ou do favor divino quando já chega outra, como as ondas do
oceano que vêm umas após as outras em apertada sucessão e se lançam
sobre a costa. É certo, “ele dá, e dá, e torna a dar”.
Especialmente quando se vive ao lado do mar (ou quando se visita
um lugar assim) é gratificante, ao ver as ondas que constantemente se
aproximam da praia, pensar em Jo 1:16. Veja-se C.N.T. sobre essa
passagem. Quase nem faz falta acrescentar que também aqui o que se diz
com relação a Deus aplica-se também a Cristo, quem, “por amor a vós se
fez pobre, sendo rico, para que vós por sua pobreza fossem
enriquecidos” (cf. 2Co 8:9).
Note-se deste modo que, segundo o inspirado ensino de Paulo, não
apenas uns poucos ou apenas certo grupo de pessoas, quer se trate de
Romanos (William Hendriksen) 463
judeus ou gentios, são os beneficiários desta enorme riqueza, mas pelo
contrário, todos os que invocam a Deus em Cristo recebem uma rica
bênção. O Senhor abençoa ricamente — literalmente: “é rico para com”
— a todos.
Naturalmente, este invocar a Deus — ou mais especificamente a
Jesus — deve ser feito no espírito do centurião (Mt 8:8) e do publicano
(Lc 18:13).
Em sua terceira frase Paulo dá uma prova da universalidade (em
certo sentido) da generosidade divina:
c. “Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”.
Veja-se At 7:59; 1Co 1:2. O que aqui em Rm 10:13 vem a seguir da
palavra “porque” é uma reprodução exata do que encontramos em nossas
Bíblias em Jl 2:32, porém na Bíblia hebraica e na LXX em Jl 3:5. De
fato, no caso que nos ocupa, até as palavras “todo aquele” (ou “todos”) já
estava no original da passagem do Antigo Testamento. Contraste-se isso
com Rm 10:11 onde, ao citar Is 28:16, Paulo mesmo inseriu esta palavra.
Com relação a “será salvo”, veja-se a explicação sobre Rm 10:9.

6. Israel é responsável por sua própria rejeição. Rm 10:14–21

Romanos 10:13 dizia: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor


será salvo”. A relação entre esta frase e o começo da subdivisão dos vv.
14–21 é clara, visto que em Rm 10:14 o tema de invocar o Senhor
continua por meio da pergunta: “Como, então, eles podem invocar
àquele em quem não têm fé?” O espírito desta pergunta, especialmente à
luz do que vem nos vv. 16 e 21, indica que o apóstolo está formulando
uma acusação contra Israel. Ele diz que devido à falta de fé de Israel, ela
é totalmente responsável por sua rejeição da parte de Deus. Em outras
palavras, tal rejeição, na medida em que era real, não era arbitrária mas
merecida.
14, 15a. Como, então, eles podem invocar àquele em quem não têm
fé? E como podem ter fé naquele de quem não ouviram? E como podem
Romanos (William Hendriksen) 464
ouvir sem alguém pregar? E como podem as pessoas pregar a não ser que
tenham sido comissionadas? 295
Há alguns pontos que se deve notar:
a. Nesta série de perguntas, qual é o sujeito? A quem Paulo se está
referindo? O apóstolo escreve: eles … eles … eles … eles … eles … eles
(quer de forma explícita ou implicitamente); embora em favor da
variação e da clareza um destes “eles” possa ser mudado por as pessoas
(ou algo similar).
A quem, então, Paulo se refere? A resposta costumeira é: a Israel.
Algumas traduções até inserem a palavra “Israel” em lugares em que o
original não a tem. Agora, é preciso reconhecer que em considerável
medida esta resposta é correta. Veja-se, em primeiro lugar, o que se disse
na introdução a esta seção. Examine-se também as seguintes passagens:
Rm 9:3–5, 27, 31–33; 10:1–3, 19, 21; 11:1s. Com base em tudo isso, a
conclusão “a referência é a Israel” é inescapável.
Mas é esta uma resposta completa? Nem todos os expositores têm
tal opinião. 296 E com razão. Não comprova o fato de que nesta seção
295
_πικαλέσωνται (v. 14), 3α. περς. πλ. αορ. μεδ. συβ. (δελιβερατίο) δε _πικαλέω, aqui no sentido de
clamar a Deus em oração. Cf. 2Tm 2:22. Com relação a invocar “o nome” do Senhor, veja-se o
versículo anterior (10:13), em que aparece a 3ª. pes. sing. aor. subj. med. do mesmo verbo.
_πίστευσαν (v. 14), 3ª. pes. pl. aor. ind. de πιστεύω. Com relação à construção gramátical ε_ς _ν
… _πίστευσαν vejam-se também Gl 2:16 e Fp 1:29. Em ambos os casos, a fé a que se faz referência é
em Cristo. Em João e na primeira epístola de João esta construção (“nele” ou “em seu nome”), com
referência à fé em Cristo, ocorre com frequência. Veja-se Jo 3:16.
No v. 14 notem-se πιστεύσωσιν e _κούσωσιν, e no v. 15 κηρύξωσιν. Todos são 3ª. pes. pl. aor. at.
subjuntivos (deliberativos). O significado (depois de π_ς em cada caso, e com Π_ς … _πικαλέσωνται
no começo do v. 14, já considerado), é: “Como podem eles …?” Em outras palavras, “Não podem …”
ο_ ο_κ _κουσαν (v. 14) = a quem não ouviram; não “de quem não ouviram”. Em tal caso, não teria
sido mais natural dizer περ_ ο_? Veja-se Gram. N.T. p. 506. Compare-se com Lc 9:35 “Ouçam a ele”,
e não “Ouçam dele”. Note-se também a diferença na construção e significado de (a) ο_ ο_κ _κουσαν,
caso em que, depois do gen., este verbo significa ouvir; e (b) ο_κ _κουσαν (v. 18), onde, sem o gen., o
mesmo verbo indica entender.
κηρύσσοντος (v. 14), gen. s. masc. pret. act., particípio de κηρύσσω, anunciar, proclamar
publicamente, pregar. Cf. κ_ρυξ, arauto; e também κηρύξωσιν (“Como podem pregar?”) no v. 15.
_ποσταλ_σιν (v. 15), 3ª. pes. pl. aor. pas. subj. do verbo _ποστέλλω, enviar, especialmente numa
missão divina, comissionar.
296
Veja-se, por exemplo, Ridderbos, op. cit., p. 240.
Romanos (William Hendriksen) 465
(Rm 10:14–21) Paulo nem sequer mencione Israel até chegar à própria
conclusão (vv. 19–21), que ele deseja que todo leitor ou ouvinte lute com
estas perguntas em seu próprio coração e consciência?
b. Temos aqui uma série de perguntas. Também o Antigo
Testamento tem grupamentos de perguntas (Jó 38:2–39:27; 41:1–7; Is
40:12–14, 21). Contudo, a presente série é diferente. É uma espécie de
cadeia na qual cada elo tem uma estreita relação com seu vizinho(s)
imediato(s).
É então esta cadeia similar a que encontramos em Rm 5:3b–5 e à
descrita em Rm 8:29, 30? Não, a diferença está em que nos dois últimos
exemplos a cadeia é progressiva: seus elos se seguem um ao outro numa
sequência histórica, de causa e efeito. A sequência pode ser comparada à
série 1, 2, 3, etc. Aqui, em Rm 10:14, 15a, e também em Rm 10:17, a
cadeia é regressiva. Vai do efeito à causa e é comparável à série 5, 4, 3,
2, 1. O invocar a Cristo em oração menciona-se em primeiro lugar
embora, na verdade, naturalmente, vem depois de ter fé nEle, o que,
porém, constitui o segundo elo nesta cadeia. Ter fé resulta de ter ouvido
dEle, o terceiro elo aqui mencionado. Este ouvir implica que deve ter
havido um pregador, o quarto elo, que se dirige às pessoas. E ele fez isso
porque anteriormente alguém, no quinto elo, tinha-o autorizado a levar a
mensagem.
c. Qual poderia ter sido a razão pela qual Paulo decidisse ordenar
estes elos em ordem regressiva? Para responder esta pergunta
deveríamos ter em mente que o apóstolo não era apenas um teólogo
plenamente inspirado, erudito e profundo; ele também era um amigo
cristão, muito prático e de coração afetuoso. Como tal, bem pode ter tido
em mente um duplo propósito para escrever como o fez.
Em primeiro lugar, ele está pensando no auditório, o de Roma
certamente, porém com o passar dos séculos, em qualquer auditório,
incluindo o de hoje em dia. Para os ouvintes, então, e para cada um
desses ouvintes, ele ordenou a série de tal maneira que a referência a
Deus — ou, se preferir-se a Cristo — quem comissionou o pregador,
Romanos (William Hendriksen) 466
fosse mencionado em último lugar, para que toda a ênfase recaísse sobre
Ele! Cada ouvinte deve notar de que quando rejeita o pregador que,
como fiel ministro da palavra, apresenta com perspicácia e entusiasmo os
alegres e gloriosos anúncios da salvação em Cristo, o que está fazendo é
rejeitar o próprio Cristo! Ao dirigir-se aos setenta (ou setenta e dois)
missionários, Jesus lhes disse: “Quem vos der ouvidos ouve-me a mim; e
quem vos rejeitar a mim me rejeita; quem, porém, me rejeitar rejeita
aquele que me enviou” (Lc 10:16, RA).
Em segundo lugar, Paulo está pensando no pregador. A referência
culminante ao pregador devidamente comissionado contém uma lição
também para ele. É importante que todo pregador tenha certeza de ter
sido realmente chamado por Deus para cumprir este tipo de tarefa. Para
chegar a uma verdadeira resposta a esta pergunta deveria consultar-se Jr
23:21, 22. Se este pregador está procurando fazer com sinceridade e
oração o que se menciona no v. 22, verá que é muito mais fácil chegar a
uma resposta positiva e animadora à pergunta com relação ao caráter
genuíno de sua ordenação.
Para o pregador, Rm 10:14, 15a contém ainda outra lição. O que
quer dizer na verdade pregar? Como o demonstra a nota 295, pregar
significa na verdade servir de arauto, proclamar. A pregação genuína
significa, então, que a mensagem é viva, não cansativa; atual, não batida.
É a pregação fervorosa das grandes novas iniciadas por Deus. Nunca se
deve permitir que se deteriore, para chegar a ser uma especulação
abstrata sobre pontos de vista meramente inventados pelo homem!
Que não fique dúvida com relação a que o povo — em especial
Israel neste caso, segundo se demonstrou — tenha realmente ouvido o
evangelho, e que foram proclamados como embaixadores divinamente
autorizados, é indicado pelo versículo 15.
15b. Como está escrito: “Quão belos são os pés dos que trazem boas
novas!”
Romanos (William Hendriksen) 467
297
A passagem que se cita provém de Is 52:7, onde o profeta
descreve a exuberância com a qual os exilados davam as boas-vindas às
notícias de sua iminente libertação do cativeiro. Estas novas eram
consideradas por eles muito maravilhosas, não somente porque agora
poderiam voltar para sua pátria, mas também porque, e isso era
provavelmente o mais especial, para eles estas notícias significavam que
o favor de Deus ainda estava com eles, e que não era este ou aquele
poder terreno, e sim Deus — seu próprio Deus — que ainda reinava.
Veja-se o contexto de Isaías, e acrescente-se Sl. 93:1; Ap 19:6. Por outro
lado, pode haver algo mais alegre e vivificante espiritualmente que a
mensagem dos embaixadores de Deus achada, por exemplo, em 2Co
5:20, 21?
Quão belos 298 são esses pés! Ao os mensageiros ir-se aproximando
acima dos montes com suas novas eletrizantes, quão cobertos de pó e
sujos terão estado esses pés! Mas também, quão belos … por ser os pés
dos que traziam essas maravilhosas novas tão longamente esperadas!
16. Mas nem todos aceitaram as boas novas. Porque diz Isaías:
“Senhor, quem creu em nossa mensagem?”
Não havia nada de mau com as boas novas. Deveriam ter sido
aceitas com alegria e gratidão da parte de todos. “Mas”, diz Paulo, “nem
todos” aceitaram as boas novas, o maravilhoso evangelho. Note-se o
“nem todos”. Que maneira modesta de expressar uma triste realidade!
Sem dúvida, uma misericordiosa litote; é que já sabemos que a grande
maioria dos israelitas não aceitou o evangelho. Veja-se Rm 9:27. Cf. Is
53:1; Rm 10:21; 1Co 10:5.
Vemos, então, que embora os elos 4 e 5 (de Rm 10:14, 15a.)
cumpriram-se — houve pregadores, e tinham sido devidamente
comissionados — contudo, concernente à maioria do povo, os elos 1 e 2

297
Traduzido aqui corretamente do hebraico original, em vez da LXX.
298
_ρα_οι, nom. pl. masc. de _ρα_ος, oportuno, à estação, florescente, belo; cf. _ρα, estação, tempo,
hora.
Romanos (William Hendriksen) 468
— o invocar a Cristo em oração por causa da presença de fé nEle — não
se tinham cumprido.
Que isso era certo, com efeito, com relação à maioria das pessoas
se depreende também das palavras de Is 53:1 citadas por Paulo: “Senhor,
quem creu em nossa mensagem?” Isto significa, em essência: «Senhor,
quem creu no que foi ouvido por nós?» 299
17. Como resultado, a fé (vem) do ouvir a mensagem, e a mensagem
é ouvida por meio da palavra de Cristo.
Das muitas interpretações que existem desta passagem, algumas
delas muito complicadas, provavelmente a melhor seja a que a considera
como uma conclusão que resume a anterior. Não apontam nessa direção
as palavras iniciais “Como resultado”? Então, o que Paulo diz é que a fé
em Cristo pressupõe o ter ouvido a palavra que procede de Cristo e que
trata dEle. E aqui há uma palavra, no original, que foi recentemente
usada (v. 16) no passivo — “o que foi ouvido” — e que é usada agora no
sentido ativo: ouvir a mensagem. 300
A grande importância que Paulo dava ao ouvir nos lembra
imediatamente a Jesus. Em todo o ensino de Jesus, tanto na terra como
do céu, seria difícil descobrir alguma exortação que Ele repetisse com
maior frequência, de uma maneira ou de outra, que aquele que tem que
ver com o ouvir; melhor ainda: escutar (Mt 11:15; 13:9, 43; Mc 4:9, 23;
Lc 8:8; 14:35; Ap 2:7, 11, 17, 29; 3:6, 13, 22; 13:9). Acrescentem-se em
Marcos 8:18 e Lucas 8:18.

299
_κο_, dat. sing. de _κοή. Tal como sucede com muitas palavras, o significado desta, em cada caso
especifico, depende do contexto em que se a usa e, às vezes — tal como sucede aqui — do contexto
do qual é citada. O substantivo grego significa: faculdade de ouvir, ouvir (como ato), o que é ouvido,
relato, relatório, mensagem.
Na passagem original (Is 53:1), no hebraico, do qual provém a citação de Rm 10:16, o substantivo
é ‫שׁמוּעָה‬
ְ do verbo ‫שמַע‬ׁ ָ , ouvir; e a palavra, incluindo o sufixo, é ‫שׁמוּעָתֵ נוּ‬
ְ , nosso anúncio, nosso
relatório; literalmente, oouvido por nós, e o revelado a nós. É nesse sentido em que passa a ser: nosso
anúncio, nossa mensagem. Transmitimos a outros o que foi revelado previamente.
300
A referência aponta à palavra grega _κοή; que aqui está em combinação com _ξ _κο_ς: proveniente
de ouvir.
Romanos (William Hendriksen) 469
18. Mas pergunto: “Pode ser que nunca (o) tenham ouvido?”
Naturalmente que o têm feito: “Por toda a terra foi seu som, e até os
limites do mundo habitado suas palavras”.
Esta passagem de Sl. 19:4 aparece aqui citada literalmente do texto
da LXX (ali Sl. 18:5). Não deveríamos interpretar mal o que Paulo diz.
Não está procurando dizer que o Salmo do Antigo Testamento descrevia
a disseminação universal do evangelho. O que quer dizer é que o que é
aplicável no Sl. 19 à linguagem dos corpos celestiais, também é aplicável
à disseminação do evangelho.
Mas talvez a comparação é mais que superficial. Não devemos
talvez dizer que a revelação de Deus no âmbito da criação e no da
redenção é de uma natureza tal que em ambos os casos a mesma compele
nossa atenção?
Nos dias de Cristo e dos apóstolos o evangelho certamente se ia
esparramando com rapidez, como o evidenciam passagens como Rm
15:22–24; Fp 1:12, 13; Cl 1:6; cf. Jo 12:19; At 2:41, 47; 4:4; 17:6.
O progresso rápido do evangelho no período primitivo foi sempre
causa de assombro para o historiador. Justino Mártir, mais ou menos nos
meados do século II, escreveu: “Não há povo, grego ou bárbaro, ou de
nenhuma outra raça, por qualquer nome ou costume que se distinga, sem
importar quão ignorantes sejam seu povo das artes ou da agricultura,
quer habitem em tendas ou que andem em carros cobertos, entre os quais
não se ofereçam orações e ações de graças no nome do Jesus crucificado
ao Pai e Criador de todas as coisas”. Meio século depois acrescentava
Tertuliano: “Existimos nada mais que desde ontem, e no entanto, já
enchemos vossas cidades, ilhas, campos, vosso palácio, senado, e fórum.
A única coisa que vos deixamos é vossos templos”. R. H. Glover (The
Progress of World-Wide Missions, New York, 1925, p. 39) diz: “Com
base em todos os dados acessíveis estimou-se que para o fim do Período
Apostólico o número total de discípulos cristãos tinha chegado a meio
milhão”.
Romanos (William Hendriksen) 470
19. Mas digo: Porventura Israel não o soube? Primeiro disse Moisés:
Eu vos porei em ciúme com a que não é nação, Eu vos provocarei à ira
com uma nação insensata [TB].
“Mas digo” faz jogo com o começo do v. 18. A pergunta com
relação a ouvir (v. 18) é seguida por uma que tem que ver com saber.
Note-se que agora Israel, que já estava implícito nos vv. anteriores, é
especificamente mencionado.
O propósito da pergunta é determinar se Israel, embora tenha
ouvido certamente o evangelho, não podia, no entanto, tê-lo entendido o
suficiente para ser considerado responsável por sua incredulidade. O que
encontramos nos vv. 19b–21, mesmo sem ser uma resposta direta a esta
pergunta, sugere a resposta. Demonstra que não era a ignorância, mas a
má disposição que era a causa da falta de fé de Israel. A citação provém
de Dt 32:21b.
Uma não-nação é uma mera massa de gente. É uma vasta multidão
que não recebeu os muitos privilégios que foram outorgados a Israel, “o
povo de propriedade exclusiva de Deus”. Essa não-nação ia receber
aquelas bênçãos que anteriormente tinham sido concedidas a Israel. Ia
tomar o lugar de Israel.
Este fato em si indica, naturalmente, a culpa de Israel, visto que
também indica que Israel havia recebido suficiente compreensão do
caminho de salvação para ser considerada plenamente responsável por
sua incredulidade.
Não nos lembra imediatamente esta passagem a Lc 20:15, 16 (cf.
Mt 21:41; Mc 12:9): “Que lhes fará, pois, o dono da vinha? Virá,
exterminará aqueles lavradores e passará a vinha a outros”. A posição de
privilégio, antes concedida a Israel, ia a ser transferida precisamente a
esse povo que tinha sido menosprezado por Israel. Cf. At 13:46.
A inveja e a ira à que se refere nossa passagem está ilustrada em Mc
12:12. Mas a inveja pode ter um resultado positivo. Isto se vê em Rm
11:11.
Romanos (William Hendriksen) 471
20. E Isaías se atreve a dizer: “Fui achado dos que não me
buscavam; revelei-me aos que não perguntavam por mim”.
Estas linhas tiradas de Is 65:1 (citadas aqui em ordem inversa) são
ainda mais incisivas. Se entre quem as ouviu pela primeira vez havia
judeus que se consideravam justos em si mesmos, deve tê-los chocado
muita esta afirmação, especialmente no presente contexto. Vem em
forma de paradoxo. Ao lembrar os ouvintes que Deus foi achado pelos
que não O buscavam, e que foi revelado aos que não perguntavam por
Ele, a mesma enfatiza o soberano direito de Deus de outorgar salvação a
quem Ele quiser. De maneira nenhuma é verdade que o homem pode,
por meio de algum mérito que se atreva a atribuir-se, atrair a atenção
salvífica de Deus. Os gentios, cujas mentes e corações estavam
entenebrecidos pelo pecado e que, como resultado, nem sequer pediam a
ajuda de Deus, a receberam. Mas Israel é passado por alto devido à sua
insistência, como o deixa claro o versículo
21. Mas com relação a Israel diz: “Todo o dia estendi minhas mãos a
um povo desobediente e rebelde”.
A exegese sã demanda que esta passagem — que é uma citação de
Is 65:2 — seja interpretado à luz de seu contexto imediato (veja-se os vv.
19, 20; e em Is 65 veja-se os vv. 3–7). A passagem indica que Israel era
plenamente responsável pelo juízo divino que se pronunciava sobre ele.
O fato de que a nação continuasse dia após dia, semana após semana,
ano após ano, sendo desobediente a Deus e O contradizendo, até apesar
das mãos estendidas em paciência e em convite da parte de Deus,
somente fazia com que as coisas fossem piores para Israel. A impressão
predominante que Rm 10:21 deixa no leitor é, por conseguinte, uma
impressão de tristeza e não de alegria. A ênfase recai aqui na escuridão
em vez de na luz. 301

301
É por esta razão que não concordo com a explicação que faz Cranfield desta passagem, op. cit.,
Vol. II, pp. 541, 542.
Romanos (William Hendriksen) 472
Ao pronunciar Deus seu juízo sobre Israel, ele não age
arbitrariamente. Israel mereceu tal juízo. Não podemos evitar pensar
nestas palavras de Jesus:
“Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te
foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a
galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!
Eis que a vossa casa vos ficará deserta” (Mt 23:37–38).
Isto não significa que a luz tenha sido substituída totalmente pelas
trevas, ou que as mãos de Deus tenham deixado de estender-se em
amorosa paciência e chamado, ou que Deus tenha, por conseguinte,
«acabado com os judeus».
Não nos esquecemos de passagens como as que seguem — e mais
poderiam acrescentar-se — que demonstram que até agora a obra
missionária entre os judeus não é infrutífera: Rm 1:16; 3:3, 30; 4:12;
5:18, 19; 7:4; 9:6, 23, 27, 29; 10:1, 11–13, 16. Há um remanescente de
Israel que está destinado à graça e à glória. Deus não expulsou o Seu
povo para longe de Si (Rm 11:1). Há um sentido em que “todo Israel”
será salvo (Rm 11:26).
Além disso, uma vez começado o processo de endurecimento na
vida deste ou daquele israelita, ninguém tem direito de dizer que
continuará até que o homem morra e pereça eternamente. A graça de
Deus é o suficientemente poderosa para alcançar até o pecador
endurecido temporariamente. Há mais sobre isso em Rm 11:28–31.

Lições práticas derivadas de Romanos 10


Rm 10:1. “Irmãos, o desejo de meu coração e minha oração a Deus
por eles é que sejam salvos”. Os oponentes judeus de Paulo o
perseguiam constantemente. Vez após vez procuravam matá-lo. Não
obstante, Paulo continuava orando para que eles pudessem ser salvos.
Punha em prática a norma prescrita por Jesus (Lc 6:27–31). Um exemplo
para todos nós.
Romanos (William Hendriksen) 473
A mesma passagem. Como era possível que Paulo orasse pela
salvação dos judeus quando sabia que, em grande medida, Deus os tinha
rejeitado? Veja-se Mt 8:10–12; Mc 12:9; Lc 20:15, 16; Rm 9:27; 1Ts
2:14–16.
Resposta: A identidade dos réprobos é conhecida somente por
Deus. Por conseguinte, era correto que o apóstolo orasse por
determinados judeus e pelos judeus em geral.
Rm 10:2. “Porque posso dar testemunho com relação a eles de que
têm zelo por Deus …”. O estar cheio de zelo e ser sincero é algo
excelente, porém não se o zelo carece de entendimento. E com relação à
sinceridade: é possível que uma pessoa esteja sinceramente … errada!
Rm 10:8. “A palavra está perto de ti; (está) em teus lábios e em teu
coração …”. Não é estranho que, por natureza, o homem queira ir ao céu
pelo caminho mais difícil? Contudo, Rm 10:8–10 é tão claro como a luz
do dia. Veja-se também Mt 11:28–30 e Jo 3:16.
Rm 10:9. “Porque, se em teus lábios está a confissão: “Jesus é
Senhor”, e em teu coração a fé que Deus o ressuscitou dentre os mortos,
serás salvo”. O original diz: teus … teu … tu; e não teus … teus … vós.
Está certo recitar o Credo Apostólico em uníssono durante o culto
público. Mas faz falta mais que isso; ou seja, a confissão pessoal,
individual, proveniente do coração e dos lábios.
A mesma passagem. A confissão, com suas menções específicas de
dois fatos sobrenaturais — o senhorio de Cristo e Sua ressurreição
corporal — dá o golpe de graça a todo liberalismo, demonstrando que o
liberalismo e o cristianismo não podem viver em harmonia sob o mesmo
teto.
A mesma passagem mais uma vez. Embora se possa considerar que
as duas verdades que aqui se mencionam incluem todas as doutrinas
centrais da religião cristã, não sugere Paulo também que os crentes não
precisam pensar do mesmo modo em cada ponto menor da teologia?
Deve haver lugar para as diferenças de opinião. Veja-se Lc 9:49, 50.
Romanos (William Hendriksen) 474
Rm 10:12. “porque não há distinção entre judeu e grego”. O amor
de Deus supera as distinções que possa haver sobre raça, nacionalidade,
sexo, idade, posição social ou econômica, nível de realizações pessoais,
etc. Com relação a todos e a cada um destes assuntos, Deus é imparcial.
Rm 10:12 é muito claro a respeito. E também o é Jo 3:16.
Rm 10:21. “Todo o dia estendi minhas mãos a um povo
desobediente e rebelde”. Quão maravilhosa é a paciência de Deus! Não
obstante, isso não quer dizer que não tem limites. Ver Pv 29:1; Lc 13:8,
9; 17:26–29. O único procedimento “seguro” é, pois, aquele que se
descreve em Sl. 95:7, 8; Hb 3:7, 8.

Resumo de Romanos 10
Este capítulo tem duas partes principais: vv. 1–13 e vv. 14–21.
Tal como no princípio do cap. 9, também aqui Paulo revela seu
terno afeto por seus compatriotas. Expressa que sua oração a Deus é que
eles sejam salvos. Testemunha que têm zelo por Deus, embora deplore
que este zelo não esteja baseado numa correta compreensão da revelação
de Deus com relação ao caminho da salvação (vv. 1, 2).
O erro trágico de Israel consistiu nisso: que buscaram estabelecer
sua própria justiça e recusaram aceitar a justiça provida por Deus em
Cristo. É em Cristo, e somente nEle, em quem a lei cumpre sua meta de
tal modo que agora existe, como resultado, justiça para todo aquele que
exerce a fé salvadora (vv. 3, 4).
Foi Cristo quem veio do céu e quem sofreu as agonias do inferno
em lugar de Seu povo. A dura tarefa foi efetuada por Ele, e por
conseguinte, não deve ser tentada por nós. Moisés (Dt 30:11–14) já tinha
deixado bem claro que Canaã era o dom gratuito de Deus, não o produto
do esforço humano. Como foi com Canaã assim o é também com a
salvação em geral. É outorgada aos que confiam no Senhor Jesus Cristo.
Por esta razão, “se em teus lábios estiver a confissão: ‘Jesus é Senhor’, e
em teu coração a fé que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo
Romanos (William Hendriksen) 475
… porque a Escritura diz: ‘Ninguém que põe sua confiança nele será
jamais envergonhado’ ” (vv. 5–11).
As considerações étnicas não têm lugar na outorga da salvação:
“não há distinção entre judeu e grego. Porque o próprio Senhor (é
Senhor) de todos e ricamente abençoa a todos os que o invocam. Porque
todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (vv. 12, 13).
Na segunda parte deste capítulo, Paulo, por meio de uma série de
perguntas, estruturadas numa sequência de efeito para causa, enfatiza a
suprema importância de tomar seriamente a mensagem do pregador
devidamente autorizado. Aquele que aceita sua mensagem aceita a
Cristo. Aquele que o rejeita, rejeita a Cristo. Entende-se, é claro, que isso
é certo somente quando o pregador realmente representa Cristo e
realmente transmite a mensagem de Cristo.
Aos que com mente aberta ouvem o evangelho, as bênçãos são
abundantes. Para estes os pés daqueles que trazem as boas novas são
realmente belos (vv. 14, 15).
Há muitos, porém, que se negam a aceitar o evangelho, como o
comprova Isaías ao dizer: “Senhor, quem escutou nossa mensagem?”
Cada um deve, portanto, examinar-se a si mesmo para ver se realmente
pertence à companhia daqueles que ouvem e obedecem tudo o que Deus
diz por meio da proclamação da palavra.
As desculpas não servirão. O evangelho é disseminado ao longo e
ao alto, lembrando-nos dos céus que por todas as partes declaram a
glória de Deus (vv. 16–18).
Israel não somente ouviu a mensagem de Deus, mas a entendeu o
suficiente para ser considerada responsável por sua falta de fé. Rejeição
e substituição são os castigos que Deus impõe aos que O rejeitam.
Moisés declarou: “Eu os provocarei a zelos com aquele que não é povo;
com louca nação os despertarei à ira” (Dt 32:21b, RA). E Isaías se atreve
a dizer: “Fui achado dos que não me buscavam; revelei-me ao que não
perguntavam por mim” (Is 65:1). E com relação a Israel diz (Is 65:2):
Romanos (William Hendriksen) 476
“Todo o dia estendi minhas mãos a um povo desobediente e rebelde” —
literalmente contraditor (vv. 19–21).
Romanos (William Hendriksen) 477
ROMANOS 11

A ELEIÇÃO DA MINORIA (OU O REMANESCENTE) DE ISRAEL

Rm 11:1–10 - Os escolhidos

A descrição de Israel (em Rm 10:21) como “desobediente e


rebelde” traz à tona a pergunta de se talvez Deus rejeitou o Seu povo
(Rm 11:1).
Este tema da rejeição divina não é novo. O apóstolo já demonstrou
que a rejeição divina, embora real em certo sentido, não é total (cap. 9)
nem arbitrária (cap. 10). Aqui, no cap. 11, ele passa a indicar que
tampouco é absoluta nem completa. Não reflete todo o panorama.
Juntamente com a rejeição está sempre a eleição. A atividade salvífica
divina corre paralela ao endurecimento divino. Veja-se Rm 11:7, 25, 26.
Em certo sentido algumas das ideias do cap. 9 — veja-se especialmente
os vv. 6–13, 23–27 — voltam a aparecer no cap. 11. Mas o cap. 11 vai
mais além. Demonstra que entre o endurecimento e a salvação, entre o
corte e o enxerto, há um tipo de relação de causa e efeito: a
desobediência dos judeus dá ocasião à obediência dos gentios (vv. 11,
12, 15, 30); a misericórdia demonstrada aos gentios é uma bênção para
os judeus (v. 31b); assim que por fim não apenas a plenitude dos gentios,
mas também a salvação de “todo Israel” fica assegurada.
Naturalmente, esta dupla interação (em alemão Wechselwirkung)
não procede automaticamente. É Deus quem produz este resultado
favorável: “Porque Deus encerrou a todos na prisão da desobediência
para ter misericórdia de todos eles” (v. 32). Não nos surpreende então
que o capítulo culmine numa entusiasmada doxologia (vv. 33–36).
1a. Pergunto então: “Rejeitou Deus o seu povo?”
Não eram os judeus “o tesouro especial” de Deus, reservado para
Si? Veja-se Êx 4:22; 19:6; Dt 14:2; 26:18; Sl. 135:4; Is 43:20; Os 11:1.
Romanos (William Hendriksen) 478
Não obstante, em consonância total com afirmações prévias (Rm 2:17–
25; 9:30–32; 10:3, 16), Paulo acaba de expressar que os judeus são
desobedientes e rebeldes (Rm 10:21), um povo que merece ser
condenado. Quer o apóstolo dizer, então, que Deus rejeitou totalmente,
lançou para longe de Si o Seu povo?
Paulo deseja que aqueles a quem se dirige sintam inquietação diante
desta pergunta. Por isso, para incitar seu interesse, pede que eles a
respondam. Ele diz: “Pergunto então, 302 ‘Rejeitou Deus o seu povo?’ ”
Paulo agora responde a sua própria pergunta:
1b, 2a. Claro que não! Porque eu mesmo sou israelita, da
descendência de Abraão, da tribo de Benjamim. Deus não rejeitou o povo
ao qual desde antes conheceu.
É preciso notar a clara, quase indignada, resposta negativa: “Claro
que não!” 303 «De maneira nenhuma!» Veja-se sobre Rm 3:4. Ou acaso
não diz 1Sm 12:22: “por amor a seu grande nome o Senhor não rejeitará
o seu povo”? e não é esta afirmação de certeza repetida no Sl. 94:14, que
acrescenta: “Ele nunca desamparará sua herança”?
As palavras: “Porque eu mesmo sou israelita … da tribo de
Benjamim”, fazem-nos lembrar uma expressão similar que há em Fp 3:5.
Veja-se o C.N.T. sobre Fp 3:5. Paulo era descendente direto não só de
Abraão, mas também de Abraão, Isaque, e Jacó; de fato, do filho de
Jacó, Benjamim! Esse filho era o filho mais novo da esposa mais amada
de Jacó, Raquel. Benjamim foi o único filho de Jacó nascido na terra da
promessa.
Ao poder reclamar para si tal ascendência, o apóstolo era, por esta
razão, “um hebreu de hebreus”; um hebreu de fato, um israelita além de
toda disputa.

302
O verbo λέγω tem às vezes este significado. Vejam-se Mt 18:1; Mc 5:30s; e aqui em Romanos os
vv. 10:18, 19; 11:1.
303
A resposta negativa já está implícita na formulação mesma da pergunta no original. Há uma ênfase
adicional que aparece na resposta. Em ambos os casos note-se o μή.
Romanos (William Hendriksen) 479
Além disso, embora isso fosse verdade, Paulo tinha sido um feroz
perseguidor dos amados filhos de Deus. Não obstante, o inimigo de antes
se transformou em amigo, num verdadeiro crente e até num entusiasta
apóstolo e pregador do evangelho. Tudo isso era devido ao fato de que o
soberano amor divino posou sobre ele, e isso não só durante sua vida,
mas também desde toda a eternidade.
Certamente, Deus não rejeitou o Seu povo, Paulo inclusive, a quem
conheceu desde antes; quer dizer, em quem, desde antes da fundação do
mundo, Ele havia posto seu amor. Ele os fez objeto de Seu deleite
especial, deleite que tinha começado na eternidade, continuado em sua
concepção e nascimento, sem jamais deixá-los. Para mais sobre o pré-
conhecimento divino veja-se sobre Tm 8:29. Ver também Jo 8:27, 28.
É assim que aqui, nos vv. 1b e 2a Paulo parece estar dizendo:
«Necessita alguém uma prova de que Deus cumpre Sua promessa e não
rejeitou Israel? Pois bem, que olhe para mim. Deus não me rejeitou , e eu
sou israelita!»
2b–4. Ou não sabeis o que a Escritura refere a respeito de Elias,
como insta perante Deus contra Israel, dizendo: Senhor, mataram os teus
profetas, arrasaram os teus altares, e só eu fiquei, e procuram tirar-me a
vida. Que lhe disse, porém, a resposta divina? Reservei para mim sete mil
homens, que não dobraram os joelhos diante de Baal 304 [RA].
Uma prova adicional do fato de que Deus ainda Se ocupa com
Israel e não O rejeitou completamente é tirada do relato de 1Rs 19:1–18;
veja-se especialmente vv. 9, 10, 14 e 18. Segundo tal relato, quando o

304
_ν _λί_, na seção sobre Elias; cf. Mc 12:26. _ντυγχάνει τ_ θε_ κατ_ το_ _σραήλ apela a Deus
contra Israel; quer dizer, queixa-se a Deus de Israel.
κατέσκαψαν, 3ª. p., pl. aor., at. ind. de κατασκάπτω, derrubar, demolir. Cf. At 15:16.
ζητο_σιν τ_ν ψυχήν μου, estão buscando minha vida; quer dizer, estão procuando me matar.
χρηματισμός (no Novo Testamento só aparece aqui), uma afirmação divina ou (como aqui) uma
resposta; cf. χρησμός, oráculo. Sobre o verbo cognato veja-se C.N.T. sobre Lucas 2:26.
τ_ Βάαλ. Note-se o artigo feminino. E no entanto os Baalins ou Baalim eram considerados, em
geral, como masculinos, distinguindo-os do os femininos Astarte e Aserim. A explicação está em que
ao ser lida em voz alta a Escritura, o nome do deus não era pronunciado. Em lugar disso, o leitor devia
dizer vergonha; grego α_σχύνη; hebraico ‫שׁח‬ ֶ ‫ בּ‬, ambos os femininos, como em português.
Romanos (William Hendriksen) 480
desconsolado Elias entrou numa caverna do monte Horebe, o Senhor
veio e lhe perguntou: “Que fazes aqui, Elias?” Ele respondeu, “Tenho
sentido um vivo zelo pelo Senhor Deus dos exércitos; porque os filhos
de Israel deixaram a tua aliança, derrubaram os teus altares, e mataram à
espada os teus profetas; e só eu fiquei, e buscam para tirar-me a vida”. A
resposta do Senhor tinha incluído estas palavras: “Reservei para mim
sete mil homens, que não dobraram os joelhos diante de Baal”.
O propriedade do caráter desta referência de Paulo a este relato do
Antigo Testamento é imediatamente clara. Em certo sentido, os dias de
Elias tinham voltado. A incredulidade era novamente geral. Nos dias de
Elias, os profetas do Senhor tinham sido mortos, e recentemente os
judeus tinham matado (Mt 27:25; 1Ts 2:14, 15) o maior Profeta de todos
(Dt 18:15, 18; At 7:37). No entanto, tal como tinha sucedido nos dias de
Elias, tampouco agora tudo era escuro: havia verdadeiros crentes.
As palavras: “Ou não sabeis?” (cf. Rm 6:3, 16; 7:1; 1Co 3:16; 5:6;
6:2, 3, 9, 15, 16), que incitam o interesse e diz aos recipientes que
deveriam ter sabido, lembram-nos das mesmas e similares palavras
(“Não tendes lido?”) ditas por Jesus (Mt 12:3, 5; 19:4; 21:16, 42; 22:31;
Jo 3:10).
Há quem atribui significado para o fato de que pelas palavras
“altares … profetas”, no relato do Antigo Testamento, Paulo substitui
“profetas … altares”. Uma explicação diz que o apóstolo desejava
indicar que a ímpia Jezabel não só se ocupou para que os profetas
fossem mortos, mas para tornar impossível que novos profetas fossem
substituídos pelos antigos, ela ainda havia ordenado que os altares,
frequentemente usados pelos profetas, e aqui mencionados em segundo
lugar por razões de ênfase, fossem demolidos. Outros intérpretes
explicam a transposição como evidência de má memória da parte de
Paulo. O fato é que Paulo reproduz corretamente a substância do
original; quer dizer, tanto do mesmo quanto necessita para seu propósito.
Neste caso em particular, o provável é que a ordem exata destas duas
palavras não tivesse nenhum significado em especial.
Romanos (William Hendriksen) 481
“Só eu fiquei, e procuram tirar-me a vida”, havia dito Elias. O
Senhor, por outro lado, tinha-lhe assegurado que não menos de sete mil
homens fiéis tinham restado. Sete mil homens, 305 devendo entender-se
provavelmente “além das mulheres e crianças”, visto que seria difícil
imaginar uma situação na qual somente os homens tivessem
permanecido fiéis a Deus. Cf. Mc 6:44 com Mt 14:21. Evidentemente,
estes sete mil constituíam somente um remanescente da população de
Israel, mas era um remanescente significativo. Em consonância com o
significado simbólico que a Escritura atribui ao número sete e seus
múltiplos, podemos dizer que estes sete mil referiam-se ao número
completo dos compatriotas contemporâneos escolhidos desde a
eternidade para herdar a vida eterna. Deve ter havido pelo menos sete
mil.
Merece notar-se especialmente a frase “Reservei para mim”. O fato
de que sete mil tivessem permanecido leais a Deus não deve adjudicar-se
à enérgica atividade de Elias — evidentemente nada sabia ele destes sete
mil — nem à bondade inata desta gente fiel, mas à soberana vontade de
Deus, ao Seu prazer de reservar para Si um remanescente.
5. Assim, pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um
remanescente segundo a eleição da graça [RA].
Tal como sucedeu então, diz Paulo, sucede agora. Nem então, nem
agora, nem nunca rejeitará Deus Israel totalmente. Ele não decidiu «não
ter mais nada a ver com os judeus». Não tinha sido Ele mesmo quem fez
deles uma nervura frutífera? Não era ele quem se preocupou para que
surgisse também no tempo presente um remanescente “segundo a eleição
da graça”? Cf. Rm 9:11; 11:28.
A doutrina da salvação do remanescente é ensinada em toda a
Escritura.
No tempo de Noé muitos pereceram, foram poucos os salvos (Gn
6:1–8; Lc 17:26, 27; 1Pe 3:20).

305
Grego, _νδρας.
Romanos (William Hendriksen) 482
O mesmo sucedeu nos dias de Ló (Gn 19:29; Lc 17:28, 29).
Também Elias, tal como nos acaba de relatar, conhecia a ideia do
remanescente salvo, embora não se tinha dado conta de que chegavam a
mais de sete mil.
Já antes (Rm 9:27; cf. Is 10:22s) o apóstolo nos lembrou que
remanescente nos dias de Isaías.
Não deve nos surpreender então que também “no tempo presente”,
quer dizer, na época do apóstolo, havia um remanescente salvo, e que
Paulo pertencia ao mesmo. Em Romanos a doutrina do remanescente é
ensinada implícita ou explicitamente também nas seguintes passagens:
Rm 9:6s; 9:18a; 10:4, 11, 16; 11:14, 24, 25.
Há comprovações adicionais da doutrina da salvação para o
remanescente escolhido em passagens do Antigo Testamento tais como
Is 1:9 (Rm 9:29); 11:11, 16; 46:3; 53:1; Jr 23:3; 31:7; Jl 2:32; Am 5:15;
Mq 2:12; 4:5–7; 7:18; Sf 3:13, para mencionar umas poucos. Não foi
chamado um filho de Isaías Sear-Jasube, que quer dizer Um
remanescente voltará?
No que se refere ao Novo Testamento, poderia ser significativo ou
não que na parábola do semeador (ou dos quatro tipos de solo) — veja-se
Mt 13:1–9, 18–23; Mc 4:1–9, 13–20; Lc 8:4–15 — seja somente o último
tipo de solo aquele que dê uma boa colheita. Mas mesmo se não se puder
derivar uma conclusão a partir desta parábola com relação à proporção
de salvos a não salvos entre quem ouve o evangelho, temos a clara
afirmação do Mestre: “Porque muitos são chamados, mas poucos
escolhidos” (Mt 22:14). Cf. Lc 12:32.
A opinião de alguns — e entre estes aqueles cujos escritos
estimamos muito — de que vem o dia em que esta regra já não será
aplicável, de fato, que o princípio do remanescente significa que um dia
a nação de Israel como totalidade será salva, parece muito estranha. São
os que favorecem esta opinião culpados de projetar as palavras de Rm
11:26 (“E assim todo Israel será salvo”), tal como eles as interpretam,
para Rm 11:5?
Romanos (William Hendriksen) 483
6. E se é pela graça, (então) já não é pelas obras; visto que (se o fosse)
a graça já não seria graça.
É possível que Paulo sinta a necessidade de acrescentar isso porque
a salvação pelas obras, e por esta razão pelo mérito humano, era a pedra
angular da religião judaica (rabínica). Os crentes não só deviam defender
constantemente a si mesmos e suas crenças desta doutrina falsa, mas,
segundo o evidenciam passagens como Gl 1:6–9; 3:1–5, eles mesmos
estavam em perigo de voltar a deslizar-se rumo à heresia que eles, ao
tornar-se crentes, supostamente tinham deixado para trás.
É como se Paulo estivesse dizendo: «Se a salvação é pela graça, já
não é pelas obras ou pelo mérito. Por que não? Porque a própria essência
da graça é o imerecido favor divino». Cf. Rm 4:4.
7–10. Que dizer então? Israel não conseguiu aquilo que tanto
buscava, mas os eleitos o obtiveram. Os demais foram endurecidos, como
está escrito: “Deus lhes deu um espírito de atordoamento, olhos para não
ver e ouvidos para não ouvir, até o dia de hoje”. E Davi diz: “Que a mesa
deles se transforme em laço e armadilha, pedra de tropeço e retribuição
para eles. Escureçam-se os seus olhos, para que não consigam ver, e suas
costas fiquem encurvadas para sempre [NVI].
“Que dizer então?” Paulo quer dizer: «O que segue?» E ao
continuar dizendo: “Israel não conseguiu aquilo que tanto buscava”,
repete o pensamento de Rm 9:30, 31. Veja-se especialmente Rm 9:31:
“Israel, que buscava a lei de justiça, não chegou a atingir essa lei”.
Consulte-se a explicação dessa passagem. No entanto, aqui (Rm 11:7) o
apóstolo acrescenta: “mas os eleitos o obtiveram. Os demais foram
endurecidos”. Ao comparar nossa passagem presente com Rm 9:30, 31
faz-se evidente que historicamente o que Israel como nação buscava
constantemente sem conseguir era uma reta posição diante de Deus, a
justiça.
Outra diferença muito importante entre a passagem anterior (Rm
9:30, 31) e esta (Rm 11:7) é que na anterior é-nos dito que os gentios
tinham obtido o que Israel como nação não tinha obtido; mas agora, em
Romanos (William Hendriksen) 484
Rm 11:7, Paulo, sem negar de modo algum o que ele havia dito
previamente com relação aos gentios, limita-se a Israel. Ele expressa
agora que “os eleitos” — a saber, os escolhidos 306 dentre os judeus —
tinham obtido. Cf. Rm 9:6.
Depois de dizer: “Os demais foram endurecidos”, Paulo descreve
imediatamente este endurecimento como um ato de Deus. Ele cita duas
passagens do Antigo Testamento. No primeiro, Moisés é quem fala; no
segundo, Davi.
A primeira citação (v. 8) é de Dt 29:4. A mesma, tal como aqui se
encontra, lê como segue: “Deus lhes deu um espírito de atordoamento,
olhos para não ver e ouvidos para não ouvir, até o dia de hoje”. Com esta
passagem pode comparar-se Is 6:9. O espírito de estupor mencionado em
Rm 11:8 é o de uma entorpecimento mental e moral, ou apatia. O ato de
dar este espírito descreve o processo de endurecimento ocasionado por
Deus. O estupor assemelha-se a um sono profundo em que uma pessoa é
insensível às impressões que lhe vêm do exterior; daí o não ver nem
ouvir. Cf. Is 29:10.
Moisés diz aos israelitas que esta condição prevaleceu “até o dia de
hoje”. Paulo podia dizer o mesmo com relação ao “dia” em que escrevia
Romanos: os judeus que tinham rejeitado a Cristo e à justiça de Deus em
e por meio do Salvador, continuavam tentando estabelecer sua própria
justiça.
A outra passagem (v. 9, 10) reflete o Sl. 69:22, 23. No entanto,
Paulo, ao citar estas palavras, segue em sua maior parte a tradução da
LXX (que ali figura sob Sl. 68:23, 24), que é como segue:

Versão em português da tradução grega (LXX)


“Seja sua mesa uma armadilha diante deles,
uma retribuição e uma pedra de tropeço.

306
Literalmente “a eleição”. Esta é simplesmente uma expressão idiomática para dizer “escolhidos”,
assim como “a circuncisão” quer dizer “circuncidados”. Veja-se nota 119 sobre Rm 4:9.
Romanos (William Hendriksen) 485
Sejam obscurecidos seus olhos para que não vejam;
e curve-os tu suas costas para sempre”.

Um olhar superficial ao Sl. 69:22, 23, citado por Paulo aqui em Rm


11:9, 10, poderia levar à conclusão de que seu tom moral não é muito
alto. O salmista parece estar pronunciando maldições sobre seus
inimigos porque, sem causa digna, odeiam-no, reprovam e perseguem.
Não obstante, um olhar mais detido o salmo revela que a razão — ou
pelo menos parte da mesma — pela qual seus inimigos o odeiam de
modo tão implacável estriba na comunhão íntima que existe entre ele e
seu Deus (veja-se vv. 7, 9). Daí que não surpreenda o fato de que o Sl.
69 seja um salmo messiânico (veja-se especialmente os vv. 20, 21).
Note-se também o comovedor clímax (vv. 29–36).
Contudo, continua sendo certo que neste salmo o escritor (Davi)
lança uma imprecação contra seus inimigos. Invoca uma maldição sobre
eles. O significado das quatro linhas (a partir de “E Davi diz”) pode
reproduzir-se da seguinte maneira:
Seja seu dissipado modo viver sua ruína.
Que seja o desastre que merecem.
Enche-os de uma cegueira espiritual e moral
E faze com que estejam sempre curvados em aflição.
O conceito que deve enfatizar-se com relação a isso é o de
retribuição: o desastre que merecem.
Os vv. 7–10 estabelecem os seguintes fatos:
a. Os escolhidos obtiveram salvação.
b. Deus endurece a quem se endureceram a si mesmos.
c. Eles recebem o que lhes corresponde.
Até para os endurecidos há esperança; quer dizer, se eles se
arrependerem. Então ficará bem claro que também eles pertencem aos
escolhidos. De uma maneira maravilhosa (veja-se a interpretação de Rm
11:25). Deus reúne a Si um remanescente até dentre a endurecida
maioria.
Romanos (William Hendriksen) 486
É assim que incluir Rm 11:7 (ou Rm 11:7–10) numa lista de
passagens que comprovem a reprovação é um erro. A Escritura ensina
tanto a reprovação como a eleição, coisa que já se demonstrou; veja-se
Rm 9:13, 17, 18, 21, 22; 1 P. 2:8, mas Rm 11:7s não prova isso. Só pode
ser incluído numa lista de textos de comprovação se o contexto (Rm
11:11s) for ignorado. Neste ponto concordo com Ridderbos, op. cit., p.
249, e com Cranfield, op. cit., p. 549.

Rm 11:11-24 - Ramos enxertados

11, 12. Novamente pergunto: Acaso tropeçaram para que ficassem


caídos? De maneira nenhuma! Ao contrário, por causa da transgressão
deles, veio salvação para os gentios, para provocar ciúme em Israel. Mas
se a transgressão deles significa riqueza para o mundo, e o seu fracasso,
riqueza para os gentios, quanto mais significará a sua plenitude! [NVI]
Paulo nos informa agora sobre o propósito de Deus ao endurecer
àqueles que se tinham endurecido a si mesmos. Esse propósito é
finalmente um propósito de graça, e o é para o benefício dos gentios e
dos judeus.
Ao citar parte do Sl. 69 (LXX Sl. 68), Paulo havia dito: “Seja sua
mesa uma pedra de tropeço” (veja-se também Rm 9:33). Pergunta ele
agora: “Acaso tropeçaram para que ficassem caídos?”? 307 Em outras
palavras; «Era sua perdição final e irrevogável o que Deus tinha em
mente?» Com outro muito consolador “De maneira nenhuma!” ou
“Longe disso!” o apóstolo enterra essa ideia e proclama enfaticamente a
oposta, ou seja, que no futuro haverá bênçãos tanto para o gentio como
para o judeu, tudo isso graças à maravilhosa condução providencial e o
amor de Deus, capaz de tirar algo bom, sim, realmente muito bom, do
mal.

307
No original a construção desta parte da oração é a mesma que a de Rm. 11:1: “Pergunto então:
Rejeitou Deus o seu povo?” Por conseguinte, a nota 302 também tem aplicação aqui.
Romanos (William Hendriksen) 487
Em primeiro lugar, então, devido à transgressão de Israel (veja-se a
nota 157 sobre Rm 5:15) — quer dizer, sua rejeição do evangelho — a
salvação chegou aos gentios. Que isto é o que verdadeiramente tinha
ocorrido e estava ocorrendo continuamente é claro a partir de passagens
como At 13:44–48; 18:6; 28:23–28.308 Mas indiretamente os judeus
mesmos também estavam sendo abençoados. Paulo diz: “veio salvação
para os gentios, para provocar ciúme em Israel”. No presente contexto,
a inveja tem um efeito positivo. Tal efeito, porém, não é universal, como
já o demonstrou em Rm 10:19. Para reconciliar estas duas passagens
(Rm 10:19 e 11:11b) devemos supor que Rm 11:11b deve referir-se ao
verdadeiro Israel (Rm 9:6). Em Sua maravilhosa bondade, Deus faz com
que sua inveja seja o meio de sua salvação. Esta gente toma nota da paz
que ultrapassa todo entendimento que está presente nos corações e vidas
dos gentios que, pela graça soberana de Deus, abraçaram a Cristo como
seu Senhor e Salvador. Os judeus escolhidos se tornam então invejosos,
desejando participar desta paz de Deus e em todas as outras bênçãos que
Deus está outorgando aos gentios convertidos. Resultado: o Espírito
Santo usa a inveja para salvar estes judeus.
O apóstolo tira esta conclusão: Se sua transgressão — o pecado dos
judeus ao rejeitar o evangelho — significa riquezas para o mundo, e sua
derrota riquezas para os gentios, visto que por esta rejeição foi aberta a
porta para a evangelização dos gentios, então quanto mais significa sua
plenitude? 309

308
À luz da linguagem clara destas passagens do livro de Atos, nos quais Paulo mesmo é o orador (ou,
como em um dos casos, um dos oradores, visto que Barnabé era o outro), deve rejeitá-la explicação
oferecida por K. Barth, ou seja, que a referência apontaria à ação dos judeus ao cravar a Jesus na cruz
e ativar de tal modo a reconciliação do mundo. Veja-se K. Barth, Kirchliche Dogmatik li, p. 307;
Church Dogmatics II, p. 279.
309
Sobre o termo πλήρωμα (pleroma) consulte o C.N.T. sobre Cl 1:19 nota 56. O mesmo se presta a
uma gama de interpretações. Se for examinado (a) o artigo correspondente a esta palavra que se
encontra no L.N.T. (A. e G.), p. 678, onde se consideram dois significados possíveis para a presente
passagem; (b) os diversos comentários, que contêm muitas opiniões diferentes; e (c) o artigo de G.
Delling sobre esta palavra que figura no Th.D.N.T., Vol. VI p. 305, percebe-se a confusão existente.
Conforme eu o vejo, os melhores resultados provavelmente se obtêm se:
Romanos (William Hendriksen) 488
Na maneira que acabamos de explicar, a derrota de Israel havia
trazido riquezas aos gentios. Pois então certamente a salvação do número
total de israelitas que tinham sido predestinados para ser salvos (cf. Rm
9:6) — isto é, não só a salvação de um remanescente em qualquer
momento em particular (veja-se Rm 11:5) — traria progressivamente
uma abundância de bênçãos para o mundo inteiro. É preciso pensar em
bênçãos tais como a unidade espiritual e a comunhão (Ef 2:14, 18), a
cooperação para dar ajuda ao doente e ao necessitado, e oferecer um
testemunho evangélico forte e unido diante do mundo. Imagine o que
será no dia final da história poder olhar para trás e ver todas essas
bênçãos!
A interpretação segundo a qual Rm 11:12 fica limitada à conversão
e restauração do povo de Israel ao epílogo da história é vulnerável em
dois pontos:
a. Tal como Rm 11:5, 14, 30, 31 indicam, Paulo se refere a
acontecimentos que incluem os que estão tomando lugar “no presente
momento”, durante o ministério atual de Paulo, “agora”.
b. Suas palavras “sua plenitude” são aplicáveis à salvação não de
uma unidade física, “o povo de Israel”, mas da soma de todos os
remanescente de Israel. Veja-se Rm 11:1–7, 26. 310
Nesta altura Paulo começa a dirigir-se especificamente à parte
gentílica da igreja de Roma:
13, 14. Estou falando a vocês, gentios. Visto que sou apóstolo para os
gentios, exalto o meu ministério, na esperança de que de alguma forma
possa provocar ciúme em meu próprio povo e salvar alguns deles [NVI].
Note-se o seguinte:

a. se for atribuído o mesmo equivalente português a esta palavra no v. 12 e no v. 25.


b. se na explicação do termo, tal como usado aqui, reconhece-se o contraste que Paulo certamente
tinha em mente entre _ττημα e πλήρωμα.
O resultado é que adotei o termo fullness em inglês e plenitude em português em ambos os casos.
Em minha explicação do termo, tal como o utiliza aqui no v. 12, sugiro que o contraste é entre
derrota, por um lado, e chegada em plenitude (de forças, implicando o número total), pelo outro.
310
Puede encontrarse la interpretación opuesta en J. Murray, op. cit., Vol. II, p. 79.
Romanos (William Hendriksen) 489
a. No entendimento de alguns, quando Paulo diz: “Estou falando a
vocês, gentios”, ele se está dirigindo à congregação como um todo,
chamando seus membros gentios porque a maioria deles eram gentios
convertidos. Este ponto de vista, no entanto, é difícil de aceitar visto que
no mesmo versículo a palavra gentios volta a aparecer — “…Visto que
sou apóstolo para os gentios” — num contexto em que necessariamente
significa gentios distinto de judeus. E também no v. 17 a designação
“ramo de oliveira brava” fica melhor explicado se tomar-se como
referência um gentio.
Por conseguinte, pareceria que, começando com o v. 13 e chegando
até o v. 24, Paulo se está dirigindo especialmente à parte gentílica da
igreja de Roma. Mais até, começando com o v. 17, fala com um — quer
dizer, a qualquer — membro representativo dessa parte da congregação.
b. “Visto que 311 sou apóstolo para os gentios …”
Embora a esfera dos trabalhos apostólicos de Paulo e sua autoridade
incluíssem tanto judeus como gentios (At 9:15; 26:15–20), a verdade é
que em certo sentido sobressalente ele tinha sido designado para ser, e
chegou a ser, “apóstolo para os gentios” (At 18:6; 22:21; Rm 1:5; 15:15,
16; Gl 2:2, 8; Ef 3:1, 8; 1Tm. 2:7; 2Tm 4:17).
c. “Exalto o meu ministério,” etc.
O apóstolo sente-se entusiasta com relação ao seu ministério para os
gentios, e dá prestígio ao mesmo; uma das razões para isso é que ele
espera ser um instrumento nas mãos de Deus para o cumprimento do
propósito de Deus mencionado no v. 11, ou seja, promover a salvação
dos gentios para fazer assim com que Israel se sinta invejoso para sua
salvação. Note-se a semelhança entre os vv. 11b e 13b, 14.
Não se trata no entanto, de que a conversão dos israelitas seja a
única meta da atividade missionária de Paulo entre os gentios. Para o
apóstolo a empresa missionária entre os gentios para a glória de Deus é

311
_φ_ _σον, cujo significado básico é: na medida em que, quanto; dali: por ser. Veja-se também Mt
25:40, 45.
Romanos (William Hendriksen) 490
também um fim em si mesmo. Veja-se 1Co 9:22. Não obstante, no
contexto que nos ocupa Paulo indica que seu ministério aos gentios não
está em conflito com a salvação de seus compatriotas, mas a favor deles.
d. “… e salvar a alguns deles”.
A esperança que Paulo tinha de que alguns judeus pudessem ser
salvos por meio de seu ministério atual, uma esperança fortalecida pelo
afeto que sentia por seu próprio povo (Rm 9:1–15; 10:1), não carecia de
fundamento sólido. Estava baseada na promessa de Deus com relação à
salvação do remanescente de Israel.
Continuando no estilo iniciado no v. 12, Paulo diz:
15, 16. Pois se a rejeição deles é a reconciliação do mundo, o que será
a sua aceitação, senão vida dentre os mortos? Se é santa a parte da massa
que é oferecida como primeiros frutos, toda a massa também o é; se a raiz
é santa, os ramos também o serão [NVI].
Deve recordar-se que todos os judeus, com exceção de um
remanescente, endureceram-se contra o evangelho (v. 7) e, por sua, vez
tinham sido endurecidos. Agora Deus, em Sua providência beneficente e
corretiva, causa um resultado duplo:
a. O evangelho era agora proclamado às nações do mundo. Os
gentios que o aceitam pela fé são reconciliados com Deus; quer dizer, o
vínculo de comunhão entre Deus e eles fica restaurado. Cf. Rm 5:11;
2Co 5:18–20.
b. Os israelitas endurecidos pelo pecado, ao tomar nota da paz e da
alegria experimentadas por estes gentios, enchem-se de inveja, mas de
um modo maravilhoso tal inveja é mudada por Deus numa viva fé no
Senhor Jesus Cristo.
Imagine-se por um momento a mudança radical que aqui se implica
para estes israelitas. Agora amam o que antes odiavam. Odeiam o que
antes amavam. Sobretudo, sabem que já não são mais os inimigos de
Deus. Agora foram aceitos por esse próprio Deus contra o qual se
endureceram antes e por quem tinham sido endurecidos ainda mais. A
mudança era simplesmente assombrosa, tal qual Paulo, especialmente
Romanos (William Hendriksen) 491
como perseguidor de antigamente, sabia-o por própria experiência! Era
uma volta de vida dentre os mortos, verdadeiramente uma ressurreição
espiritual. Cf. Lc 15:32; Ef 2:1–10. Faz-nos lembrar o hino: “Venho,
Jesus, a ti”, de William T. Sleeper. Pense especialmente na estrofe que
começa com a linha:
“Desse terror que a tumba dá, venho, Jesus, venho, Jesus.”
Um judeu que odiava todo cristão teve uma dramática conversão.
Mais tarde ouviu-se ele dizendo: “A mudança da escuridão à luz do dia é
grande, mas a mudança produzida em mim é muito maior”.
Esta mudança inclui o notar que a pessoa foi separada para dedicar
a vida a Deus. Vejam-se 1Pe 2:9.
Isto está de acordo com a ilustração que Paulo usa: se a parte da
massa que se oferece como primícia é santa, quer dizer separada para
uso sagrado, então sem dúvida toda a massa é santa. Se a raiz é santa,
também são os ramos que são sustentados pela mesma raiz e que
recebem sua nutrição dela.
Esta ilustração tem sua origem na oferta ao Senhor de uma torta (ou
um pãozinho) preparado da massa elaborada com as primícias de grão
(Nm. 15:17–21). Quando os israelitas traziam esta oferta eles
consagravam ao Senhor por seu intermediário toda a colheita de grãos.
Agora se considerava que a totalidade da mesma estava separada para o
Senhor, de tal modo que qualquer parte que fosse usada depois pelo povo
era considerada como um dom de Sua mão.
Do mesmo modo, se a raiz de uma árvore é consagrada ao Senhor,
também os ramos são. A torta e a raiz simbolizam provavelmente a
Abraão; melhor ainda, a Abraão, Isaque e Jacó. Veja-se Rm 11:28. Os
ramos são os descendentes destes antepassados. São o povo de Israel,
altamente privilegiado (Rm 9:4s). Eles — cf. “toda a massa” — tinham
sido separados pelo Senhor, para viver para Ele (Êx 19:5, 6; Dt 14:2;
1Pe 2:9).
Quando o apóstolo menciona “sua rejeição” e “sua aceitação” ele
não se está referindo ao que sucederá com relação à grande consumação.
Romanos (William Hendriksen) 492
Não devemos esquecer o contexto. O contexto que imediatamente
precede à passagem é: “Exalto o meu ministério, na esperança de que de
alguma forma possa provocar ciúme em meu próprio povo e salvar
alguns deles”. E o contexto que imediatamente lhe segue é: “Se alguns
ramos foram cortados, e você, sendo oliveira brava, foi enxertado entre
os outros e agora participa da seiva que vem da raiz da oliveira cultivada,
não se glorie contra esses ramos”. Por isso não é aceitável interpretar a
referência intermediária a “sua aceitação … vida dentre os mortos” como
referência ao que alguns esperam que suceda no fim da história do
mundo. Aqueles intérpretes que, não obstante, adotaram tal teoria
informarão às vezes a seus leitores que “vida dentre os mortos” significa
que nos dias últimos haverá uma mudança radical ou uma conversão do
povo de Israel que resultará em bênçãos sem comparação para a
humanidade, um avivamento mundial em que Israel irá de um triunfo
missionário a outro entre os gentios. Esquecem acaso que, segundo a
interpretação de Rm 11:25, 26, favorecida por eles e/ou seus aliados, já
não haverá mais gentios que possam ser candidatos à conversão visto
que, conforme o veem estes exegetas, será somente depois que a
totalidade dos crentes gentios tiver sido reunida no rebanho de Deus que
Israel será finalmente salva?
17–21. Se alguns ramos foram cortados, e você, sendo oliveira brava,
foi enxertado entre os outros e agora participa da seiva 312 que vem da raiz
da oliveira cultivada, não se glorie contra esses ramos. Se o fizer, saiba
que não é você quem sustenta a raiz, mas a raiz a você. Então você dirá:
“Os ramos foram cortados, para que eu fosse enxertado”. Está certo. Eles,
porém, foram cortados devido à incredulidade, e você permanece pela fé.
Não se orgulhe, mas tema. Pois, se Deus não poupou os ramos naturais,
também não poupará você. 313 [NVI]

312
Ou: gordura.
313
_ξεκλάσθησαν, nos vv. 17, 19 e 20, 3ª. pes. pl. aor. pas. ind. de _κκλάω, romper, quebrar, e com
relação a uma árvore, arrancar.
_γριέλαιος = _γρος, campo. mais _λαία, aqui, broto de oliveira; dali que campo = broto de oliveira
brava. No v. 17 _γριέλαιος provavelmente seja um adjetivo; em v. 24 um substantivo.
Romanos (William Hendriksen) 493
Paulo continua se dirigindo aos gentios (veja-se sobre v. 13), e
sente a necessidade de formular uma advertência com relação à atitude
deles para com os compatriotas dele, os judeus. O conteúdo da presente
passagem (vv. 17–21) será analisado sob os seguintes três títulos: Por
que causa era necessária esta advertência? Do que forma a apresenta?
Qual é o seu conteúdo? A consideração da terceira pergunta abrangerá
também os vv. 22–24.

Paulo adverte aos membros gentios da igreja de Roma que devem


evitar o orgulho pecaminoso

A. Por que era necessária esta advertência?


Tal como já se indicou na Introdução, o estado espiritual da igreja
de Roma era, em termos gerais, muito favorável. Isso não significa, no
entanto, que se tinha obtido a perfeição. Ao analisar Rm 8:23–25 já se
demonstrou que, ao que parece, havia alguma gente nesta igreja que
carecia da básica virtude cristã da humildade. De modo similar, a
presente passagem parece mostrar que havia gentios cristãos que, cheios
de pecaminoso orgulho, tendiam a olhar acima do ombro com certo
desprezo a seus correligionários judeus. Ao princípio o conflito
verdadeiro pode ter sido entre estes gentios e os judeus incrédulos, os
que estavam fora da igreja. Pode ter sucedido, porém, que pouco a pouco
os membros gentios da igreja manifestassem seu sentido de
superioridade também dentro da igreja. Vejam-se vv. 17, 18. Não pode

συγκοινων_ς τ_ς _ίζης τ_ς πιότητος τ_ς _λαίας “(tendo chegado) a compartilhar a raiz de gordura
(= a raiz gorda) da oliveira”; ou “(tendo chegado) a compartilhar a raiz da oliveira, quer dizer, seu
gordura”. A palavra “gordura” pode ser sustituída por “seiva nutritiva”.
_νεκεντρίσθης, 2a. pers. s. aor. pas. ind. de _γκεντρίζω, injertar. En el v. 19 encontramos la prim.
pers. s. aor. pas. subj. (_γκεντρισθ_) del mismo verbo.
_ν α_το_ς, entre ellos.
κατακαυχ_, 2a. pers. s. pres. imper. y κατακαυχ_σαι, 2a. pera. s. pres. indic. de κατακαυχάομαι,
gloriarse, jactarse.
_φείσατο, 3a. pers. s. aor. act. indic., y φείσεται, 3a. pers. s. fut. indic. de φείδομαι, perdonar.
Romanos (William Hendriksen) 494
descartar-se, naturalmente, que não só os gentios mas também os judeus
poderiam estar infectados por este ml. Paulo nem sempre distingue entre
os dois, mas tratava-se principalmente de um defeito gentil. Podem
achar-se evidências da presença de uma inclinação rumo à jactância nas
seguintes passagens: Rm 12:3; 14:1, 3, 4, 10, 13; 15:1, 2, 5, 7, 15, 16, a
mais da passagem que nos ocupa (Rm 11:17–21 e, em certo sentido : Rm
11:17–24). 314
No momento, pois, vamos ocupar-nos com o espírito de arrogância
segundo este se manifestava num membro gentio, membro da igreja de
Roma, como o evidencia o fato de que o apóstolo descreva a este
membro representativo como “um renovo de oliveira brava”. Contraste-
se com o v. 17b, no qual se pressupõe a raiz de uma oliveira cultivada; e
ver também o v. 24.

B. De que forma é apresentada?


A resposta é: em forma de metáfora, uma comparação implícita,
que no caso presente faz com que se lembre a técnica do enxerto
arbóreo, no qual, por uma de muitas razões, um ramo (“renovo”) de uma
árvore é enxertado no tronco (“cepa”) de outra.
No entanto, a transição do v. 16 ao 17 não é abrupta. O apóstolo
acaba de falar de “ramos”, indicando gente, e continua fazendo-o aqui no
v. 17. No v. 16 ele descreve a estes ramos como santos, no sentido que
eram “separadas para uso ou serviço sagrado”. Isto não pode significar,
no entanto, que toda a gente assim descrita estava também assinalada por
sua santidade interna, santidade do coração, da vida e da conduta. O
apóstolo esclarece que alguns dos ramos” revelavam um caráter
contrário, pelo que foram arrancadas. É claro que tais ramos simbolizam
a membros infiéis da aliança. Eram descendentes dos patriarcas mas
tinham abandonado a fé de seus pais.

314
Veja-se S. K. Williams, “A ‘justiça de Deus’ em Romanos”, JBL, Nº. 99 (junho 1980), pp. 241–
290. Notem-se especialmente as pp. 245–255.
Romanos (William Hendriksen) 495
Vale a pena notar que o vós dos vv. 2 e 13 muda ao você dos vv.
17–24, visto que a referência que agora faz-se é a um—quer dizer, a
qualquer — membro gentil da igreja de Roma. Toma cada um a peito
esta lição! Paulo diz que este membro típico, que era “um renovo de
oliveira brava”, tinha sido enxertado entre os ramos da oliveira
cultivada.
Paulo foi severamente criticado por esta “aplicação da técnica do
enxerto”. Sublinhou-se que o habitual é enxertar um renovo de uma
oliveira cultivada num oliveira brava, porém não o contrário. Para
restabelecer a reputação de Paulo alguns responderam que é
precisamente na Palestina onde às vezes um renovo de oliveira brava é
enxertado num velha oliveira cultivada para voltar a fortalecê-lo. 315
Outros, porém, em sua intenção de resgatar o apóstolo, empregam o
modo de raciocinar oposto. Seu argumento é assim: Reconhecemos que
Paulo se refere a uma forma de enxerto que é contrária à prática habitual;
ele mesmo o admite, não é mesmo? Ele diz que enxertar algo de uma
oliveira brava num oliveira cultivada é “contrário à natureza” (v. 24). Ao
menos sabe do que está falando. Ainda há autores que usam ambos os
argumentos para ajudar Paulo a sair de sua (imaginada) dificuldade,
embora seja difícil ver como pode o apóstolo receber ajuda daqueles que
por um lado insistem em que o tipo de enxerto que ele pressupõe estava
em consonância com a prática habitual, embora fosse só na Palestina,
mas que, por outro lado, assinalam a admissão que Paulo faz de que o
enxerto a que se refere era “contrário à natureza”. Quando duas linhas de
argumentação se chocam, não podem ambas ser corretas. Mas até se for
possível resolver o problema de enxertar um renovo silvestre num
oliveira cultivada, como podemos justificar a linguagem de Paulo
quando fala de voltar a enxertar ramos arrancados em sua própria árvore
(vv. 17, 19, 23, 24)?

315
William M. Ramsay, Pauline and Other Studies, Londres, 1906, pp. 223, 224.
Romanos (William Hendriksen) 496
O provável é que a situação verdadeira seja totalmente diferente.
Para começar, não é verdade que no v. 24 Paulo, ao chamar algo
“contrário à natureza”, esteja se referindo sequer indiretamente a um
método de enxerto horticultural. Preste-se atenção ao que diz o v. 24. Em
segundo lugar, e com referência à primeira intenção de resgatar Paulo,
aqueles que o respaldem parecem esquecer que Paulo, ao escrever sobre
enxertar ou reenxertar não está sob obrigação alguma de aderir-se às
regras e práticas do enxerto na natureza. Ele está falando sobre enxertar
no âmbito espiritual. Quantas vezes não descreveu Jesus, em suas
parábolas, imagens que se distanciavam notavelmente dos usos e práticas
da vida diária? Pense-se especialmente em sua parábola sobre os
trabalhadores da vinha (Mt 20:1–16).
O que o apóstolo diz é, pois, bem claro. Ele diz ao típico membro
gentio da igreja de Roma, que tendia a tornar arrogante, que ele, esse
membro, não deveria nunca esquecer quem realmente ele é. Tinha vindo
de fora e tinha sido enxertado espiritualmente entre os judeus. Só desta
maneira tinha chegado a compartilhar “a nutritiva seiva da raiz da
oliveira”. Ao orgulhoso membro gentio, Paulo diz: Pense em quanto
você deve aos judeus!
Não era Pedro, cuja possível conexão com a fundação da igreja de
Roma foi considerada anteriormente — veja-se a Introdução — um
judeu? Não era Paulo, que mesmo antes de escrever sua epístola já
parecia ter entrado em contato com muitos membros proeminentes da
igreja de Roma (Rm 16:3–6), um judeu? Não é verdade que a
mesmíssima doutrina da justificação pela fé baseava-se nas Escrituras
judaicas? Veja-se Rm 1:1, 2, 17; cap. 4. E, falando em termos de sua
natureza humana, não tinha sido o próprio “Autor e Aperfeiçoador da fé”
um judeu? Não é certo, por conseguinte, que “a salvação vem dos
judeus” (Jo 4:22)?
E não devemos nós agradecer ao Senhor pelo fato de que o Espírito
Santo inspirasse a Paulo de tal modo que, além de usar preciosos e claros
Romanos (William Hendriksen) 497
argumentos teóricos, fizesse também uso de muitas ilustrações vívidas,
sendo o presente simbolismo do enxerto uma delas?

C. Qual é o seu conteúdo?


Paulo adverte o gentio que não deve jactar-se do fato de que,
enquanto algumas dos ramos naturais — judeus incrédulos — tinham
sido arrancadas, ele, este gentio, tinha sido enxertado entre os ramos
restantes (judeus). Devia levar em conta tudo o que isto implica no que
respeita a participar da nutritiva “seiva da raiz da oliveira”, as bênçãos
prometidas aos patriarcas e cumpridas em suas vidas e nas vidas de seus
filhos que temem a Deus.
O gentio que tendia a olhar com certo desprezo os seus
correligionários, os judeus, recebe a advertência a não se considerar
melhor que eles. Que tenha em mente que não é ele, este gentio
jactancioso, quem sustenta a raiz. De que modo poderia ter sido possível
ele contribuir um pouco para as bênçãos que fluíam do eterno decreto de
Deus e das promessas comunicadas aos patriarcas, das quais “Eu serei o
teu (ou o vosso) Deus” era a promessa principal? Não, não era o gentio
quem sustentava a raiz, mas a raiz sustentava o gentio.
A resposta possível dada pelo gentio típico era: «Os ramos foram
cortados para que eu — com uma tremenda ênfase neste pronome 316 —
fosse enxertado» (v. 19, NVI). Paulo responde: “Está certo!” Falando em
termos históricos, tal como o demonstrou o v. 11, isso era
verdadeiramente certo. Mas havia outro aspecto ainda mais importante
na resposta. Era este: “Eles, porém, foram cortados devido à
incredulidade, e você permanece pela fé”. Esta fé, em virtude de sua
própria essência, exclui toda jactância, toda arrogância ou autoestima.
Inclui um piedoso temor, a classe de temor que é saudável. Veja-se Pv
3:7: Fp 2:12, 13; Hb 4:1; 1Pe 1:17. Tal temor se apoia totalmente em

316
Note-se que no original este eu não está simplesmente incluído na forma verbal, como sucede com
frequência, mas sim que se o escreve explicitamente! Diz ali _γώ.
Romanos (William Hendriksen) 498
Deus e em Sua graça soberana, e não reclama mérito próprio. A
conclusão procede muito naturalmente: “Pois, se Deus não poupou os
ramos naturais — os judeus a quem a promessa foi feita em primeiro
lugar, mas que em grandes números se afastaram de Deus — também
não poupará você”.
22–24. Portanto, considere a bondade e a severidade de Deus:
severidade para com aqueles que caíram, mas bondade para com você,
desde que permaneça na bondade dele. De outra forma, você também
será cortado. E quanto a eles, se não continuarem na incredulidade, serão
enxertados, pois Deus é capaz de enxertá-los outra vez. Afinal de contas,
se você foi cortado de uma oliveira brava por natureza e, de maneira
antinatural, foi enxertado numa oliveira cultivada, quanto mais serão
enxertados os ramos naturais em sua própria oliveira? [NVI]
Em passagens precedentes Paulo esteve falando da desobediência e
da rejeição de muitos judeus (Rm 9:27, 31; 10:21; 11:7–10, 15), «o
cortar de ramos» (Rm 11:17, 19, 20, 21). Fez comentários também sobre
a salvação, as riquezas e o enxerto dos gentios (Rm 11:11, 12, 17, 19). É
Deus quem rejeita. É também Deus quem salva. Por conseguinte, Paulo
fixa agora a atenção de seus leitores na bondade e severidade de Deus.
Não só numa destas qualidades, ou seja, a bondade, como é o hábito de
alguns pregadores, que enfatizam o amor de Deus à custa de Sua ira, mas
em ambas. Para os que caíram — os judeus no contexto presente — há
severidade, o rigor do juízo divino. Veja-se Rm 1:18, onde a ira de Deus
é dirigida especialmente contra o mundo incrédulo dos gentios; mas
volte-se dali imediatamente a Rm 3:19, onde “todo mundo fica exposto
ao critério do juízo de Deus”. Isto inclui os judeus. O mesmo sucede aqui
em Rm 11:22; o rigor 317 da severidade de Deus é dirigido contra “os que
caíram”, ou seja, os judeus, tal como o indica claramente o contexto.

317
_ποτομία, de _ποτέμνω, cortar; dali vêm rigor, severidade, dureza. No Novo Testamento só
aparece este substantivo nesta passagem. O advérbio _ποτόμως, duramente, rigorosamente, aparece
somente em 2Co 13:10 e em Tt 1:13.
Romanos (William Hendriksen) 499
“Mas bondade [de Deus] para com você”. Note-se que o objeto
desta bondade é ainda o cristão gentio típico ou representativo. Paulo,
que é “o apóstolo dos gentios”, deleita-se em chamar a atenção à
salvação e às riquezas que Deus comunica aos gentios (Rm 11:11, 12).
Sobre o conceito da bondade divina ver também Rm 2:4; Ef 2:7; Tt 3:4.
A manifestação desta bondade não é, no entanto, sem condições.
Requer a fé genuína de parte do homem. Diz Paulo: “bondade para com
você, desde que permaneça na bondade dele. De outra forma, você
também será cortado”.
Isto não deve entender-se no sentido que Deus tem que fornecer a
bondade e o homem a fé. A salvação é sempre dom de Deus. Nunca é
um assunto de 50% a 50%. É obra de Deus do princípio ao fim. Mas isso
não tira a responsabilidade humana. Deus não exerce a fé pelo homem
ou em seu lugar. Sempre é e continua sendo o homem que põe sua
confiança em Deus, mas é Deus quem lhe comunica esta fé e o capacita a
usá-la. Sobre este tema da inter-relação entre a atividade de Deus e a do
homem, veja-se Fp 2:12, 13; 2Ts 2:13.
Há um sentido, então, ao mesmo tempo são e bíblico, em que nos é
possível dizer que a salvação é condicional. Sua recepção está
condicionada por uma vida de confiança no Deus triúno que Se revelou
em Jesus Cristo para salvação e, na análise final, para Sua própria glória.
Este caráter do “se” condicional da salvação é muito importante. Está
belamente expresso no Elias de Félix Mendelssohn. Note-se as palavras:
“Se com todo vosso coração realmente me buscardes, certamente sempre
me achareis” (baseado em Dt 4:29). Note-se um “se” similar em
passagens como Dt 30:10; 1Rs 8:47–50; Jr 18:5–10; Cl 1:21–23; Hb 3:6,
14. E não há um “se” similar implícito em muitas outras passagens,
incluindo Mt 11:28–30; Jo 3:16; Ap 22:17? As promessas absolutas,
incondicionais, que garantem a salvação quer aos gentios ou aos judeus,
não importa como vivem, existem somente na imaginação das pessoas,
não na Escritura. Mesmo quando a condição nem sempre esteja
Romanos (William Hendriksen) 500
mencionada, a mesma estará sempre implícita para todo indivíduo
responsável e arrazoador.
O que sucede quando a condição fica sem cumprir? O que segue é a
rejeição final; e isso, como Paulo diz especificamente, aplica-se não só
ao judeu mas também ao gentio.
Não pense o gentio que Deus acabou seu relacionamento com os
judeus; que não há salvação para eles sob nenhuma circunstância; o
apóstolo afirma: “E quanto a eles, se — e aí está novamente esse se —
não continuarem na incredulidade, serão enxertados, pois Deus é capaz
de enxertá-los outra vez”. Que a porta da oportunidade para a entrada
dos judeus — mesmo dos judeus inicialmente endurecidos — continua
aberta é algo que Paulo passa agora a demonstrar.
Ele começa dizendo: “Afinal de contas, se você foi cortado de uma
oliveira brava por natureza e, de maneira antinatural [contra a natureza,
RA] foi enxertado numa oliveira cultivada ...” Nesta parte da oração, o
que quer Paulo dizer com “contra a natureza”? Quer ele dizer: “contra a
habitual prática da horticultura”? Tal afirmação, se fosse considerada
necessária, não teria sido feita muito antes; por exemplo, com relação ao
v. 17? Não harmoniza mais com o presente contexto interpretar as
palavras como segue: «Você, por ser gentil, pertence por natureza ao
âmbito da incredulidade. É, por assim dizer, parte de uma oliveira brava.
Não obstante, você foi enxertado num oliveira cultivada, quer dizer:
você foi trazido ao domínio da graça, da promessa e da fé, ao âmbito de
Abraão, Isaque e Jacó (cf. Gl 3:9). Para você esta foi uma mudança
enorme. Era contra a natureza, visto que você não só precisou ser
libertado do poço do paganismo, com todos os seus vícios (cf. Rm 1:24–
32); mas além disso precisou ser transplantado à esfera da aliança de
Deus, o âmbito da graça soberana, da santidade, da luz e do amor. Por
conseguinte, se contra a natureza, você foi enxertado num oliveira
cultivada, quanto mais facilmente serão enxertados novamente os ramos
naturais, esses filhos da aliança, em sua própria oliveira reintegradas ao
seu tronco nativo! porque nunca estiveram submersos no paganismo e
Romanos (William Hendriksen) 501
tinham, além disso, possessão de todos os notáveis privilégios
mencionados em Rm 9:4, 5».
Note-se que o apóstolo não diz nem sugere que algum dia todos os
judeus incrédulos voltarão a ser enxertados em sua própria oliveira, que
tornarão a ser salvos. Ele evita cuidadosamente dizer algo assim.
Expressa que o reenxerto tomará lugar: “se não continuarem na
incredulidade”. Não há dúvida que o que ele quer dizer é: «Alguns
continuarão; outros não». Esta interpretação está em harmonia com as
afirmações prévias sobre a maioria endurecida e a minoria ou
remanescente salva. Veja-se especialmente sobre Rm 9:27 e 11:5.
Ao ler o que Paulo diz com relação à oliveira há um ponto muito
interessante que não se deve passar por alto. O apóstolo reconhece
somente uma oliveira (a cultivada)! Em outras palavras, a igreja é um só
organismo vivo. Para o judeu e para o gentio a salvação é a mesma. É
obtida com base na expiação de Cristo, pela graça, por meio da fé. A
opinião segundo a qual Deus reconhece dois objetos sobre os quais Ele
deposita o Seu amor eterno e salvador, ou seja, os judeus e a igreja, é
contrária à Escritura. Paulo, aqui em Romanos, manifestou-se sobre este
assunto repetidamente (Rm 3:29, 30; 4:11, 16; 5:18, 19; 9:22s; 10:12, 13).
Uma oliveira representa a todos os salvos, qualquer que seja sua origem.
E, como resultado da operação da graça salvífica de Deus, todos os
regenerados se dirigem ao mesmo lar eterno. Lembre: UMA SÓ
OLIVEIRA.

Rm 11:25-32 - A misericórdia de Deus


25. Porque não quero, irmãos, que ignoreis este mistério (para que
não sejais presumidos em vós mesmos): que veio endurecimento em parte
a Israel, até que haja entrado a plenitude dos gentios [RA].
Retomando o uso do plural,318 Paulo se dirige diretamente a toda a
congregação. Não obstante, é evidente que até agora ele pensa
318
Note-se a mudança do σύ no v. 24 a _μ_ς no v. 25.
Romanos (William Hendriksen) 502
especialmente naqueles crentes gentios que precisavam ser advertidos
contra o antissemitismo. Sem ambiguidade alguma ele acaba de dizer
que para os judeus, até para aqueles que se haviam tornado negligentes e
endurecidos a porta da oportunidade de salvar-se permanecia ainda tão
aberta quanto para os gentios (v. 24). É com relação a este pensamento
que ele prossegue agora seu argumento usando a conjunção explicativa
Porque.
As palavras: “Não quero que ignoreis” querem dizer “Quero que
percebam bem”. Note-se também aqui a terna palavra de afeto: “irmãos”.
Sobre ambos os pontos (a. não ignoreis, e b. irmãos) veja-se Rm 1:13.
“… este mistério”. Ao referir-se a um mistério, Paulo não usa este
termo no sentido pagão de uma doutrina esotérica para os iniciados,
senão para indicar uma verdade que não teria sido conhecida se Deus
não a tivesse revelado. 319
Segundo surge da própria formulação do v. 25 — note-se “que veio
endurecimento em parte a Israel” (literalmente, “que um endurecimento
em parte veio a Israel”) — esta petrificação não é absoluta nem total;
sempre há um remanescente salvo, chamado à vida de um modo
maravilhoso:
a. O Israel carnal tropeça e é rejeitado por sua incredulidade.
Resultado:
b. O evangelho é proclamado aos gentios. Os gentios escolhidos são
salvos. Resultado:
c. Deus usa essa salvação dos gentios para causar inveja aos judeus.
Resultado:

319
A palavra μυστήριον aparece também em Rm 16:25, seis vecen em 1 Coríntios seis vezes também
em Efésios, quatro vezes em Colossenses, uma vez em 2 Tessalonicenses, e duas vezes em 1 Timóteo.
Também o encontramos em Apocalipse 1:20; 10:7; 17:5, 7. Seu uso ali talvez possa ser melhor
explicado como “o significado simbólico” daquilo que requer explicação. Na lXX de Daniel 2, onde
esta palavra aparece não menos de 8 vezes (como singular nos vv. 18, 19, 27, 30 e 47b; como plural
nos vv. 28, 29 e 47a (refere-se a um “segredo” que deve ser revelado, um enigma que requer
interpretação. O significado “verdade divinamente revelada” quadra muito bem com o contexto de Lc
8:10 e de seus paralelos (Mt 13:11; Mc 4:11), que são as únicas instâncias de seu uso nos Evangelhos.
Romanos (William Hendriksen) 503
d. O remanescente judeu aceita a Cristo, de acordo com o plano
eterno de Deus. Em cada ponto é o próprio Deus quem causa estes
resultados. Mas citemos as palavras do próprio Paulo (vv. 11, 12, 31):
a. “Devido à sua transgressão
b. a salvação (veio) aos gentios
c. para pôr a Israel em ciúme, para que
d. como resultado da misericórdia demonstrada a vós [gentios] eles
[Israel] também agora recebam misericórdia”.
Agora, não é isso algo muito maravilhoso para expressá-lo em
palavras? Além disso, à bendita interação que Paulo tem em mente não
se deve dar uma esfera de ação muito limitada. Estende-se além do que
está enquadrado nestes quatro pontos. Por exemplo, podemos estar
seguros de que os gentios salvos (ponto b.) não permanecem quietos,
mas se transformam por sua vez em testemunhas de Cristo; e o mesmo
fazem os judeus salvos (ponto d.). Esta interdependência entre a salvação
dos gentios e a de Israel é a substância do “mistério” divino.320
Em harmonia, então, com a substância deste mistério o apóstolo
expressa aqui, no v. 25 que o endurecimento sobreveio em parte a Israel.
Isto era certo no passado, é certo agora, e seguirá sendo certo no futuro.
E não é isto, em essência, o mesmo que dizer que um remanescente de
Israel, em cada tempo, é salvo (vejam-se Rm 9:27; 11:1–5)?
A rejeição de Israel não é absoluta nem total; tampouco é,
necessariamente, definitiva. É parcial. Paulo sente a necessidade de
enfatizar este fato devido a que certos gentios pareciam abrigar opiniões
contrárias, tal como se indicou com relação aos vv. 17–24. Por isso, ele
lhes diz: “Não quero, irmãos, que ignoreis este mistério (para que não
sejais presumidos em vós mesmos)”.
Não obstante, não só é verdade que o endurecimento causado por
Deus (como castigo do endurecimento humano) afeta a parte do povo em
todo período da história, mas também é verdade, tal qual o expressa o

320
Assim o entende também Ridderbos, op. cit., p. 263.
Romanos (William Hendriksen) 504
apóstolo aqui no v. 25, que se atribuiu a este endurecimento um período
de tempo determinado. Para o povo em sua totalidade durará “até que
tenha entrado a plenitude dos gentios”. Com relação ao v. 12, onde
aparece a mesma palavra plenitude (pleroma), já se demonstrou que ao
falar de “plenitude” o apóstolo quer significar “o número completo”.
Então, o que Paulo está dizendo aqui no v. 25 é que o endurecimento
parcial de Israel — o endurecimento de parte do povo de Israel — durará
até que o número total dos gentios escolhidos tenha sido reunido no
rebanho de Deus.
E quando será que esse número total terá levado à salvação em
Cristo? A Escritura é muito clara neste ponto. Será no dia da gloriosa
volta de Cristo. Uma vez que Ele voltar, já não haverá oportunidade
nenhuma de aceitar o chamado do evangelho. Veja-se Lc 17:26–37; 2Pe
3:3–9. Cf. Confissão Belga, Artigo 37:
“Finalmente, cremos, segundo a Palavra de Deus, que quando se
cumprir o tempo assinalado pelo Senhor (que é desconhecido para todas
as criaturas) e quando o número dos escolhidos estiver completo [itálicos
acrescentados], nosso Senhor Jesus Cristo virá dos céus, corporal e
visivelmente, assim como ascendeu, com grande glória e majestade, para
declarar-se Juiz dos vivos e dos mortos, queimando este velho mundo
com fogo para purificá-lo”.
Ficou claro, portanto, que o endurecimento da parte de Israel e a
reunião dos gentios ocorrem ao mesmo tempo. No que concerne a Israel,
este endurecimento parcial começou já nos dias da antiga dispensação
(Rm 9:27; 10:16, 21; 11:3), ocorria nos dias de Paulo, e continuará até o
fechamento da nova dispensação. Juntamente com este processo de
endurecimento, o evangelho é proclamado aos gentios. Alguns o
rejeitam; alguns, pela graça soberana de Deus, o aceitam.
Ao retornar a nossa consideração de Israel, faz-se óbvio que se em
cada época alguns israelitas são endurecidos, também deve ser certo que
em cada época alguns são salvos. Paulo expressa este pensamento em
palavras que deram lugar a grande controvérsia, ou seja,
Romanos (William Hendriksen) 505
26a. E assim todo o Israel será salvo.

TRÊS INTERPRETAÇÕES
A. A teoria mais popular
“Todo Israel” indica a massa de judeus que estarão vivos na terra
nos tempos do fim. O número total dos gentios escolhidos terá sido
reunido. Depois disso a massa dos judeus — Israel em grande escala —
será salva. Isso ocorrerá justamente antes ou no preciso momento da
volta de Cristo.
Os nomes de algumas das pessoas que propugnam esta teoria
aparecem na nota 260.

Avaliação
a. O vocábulo grego ο_τως não significa então ou depois de. A
tradução “Então todo Israel será salvo” é errônea. Em nenhum dos
outros casos em que esta palavra aparece em Romanos, ou em algum
outro lugar do Novo Testamento, tem esse significado. Significa assim,
deste maneira, deste modo.
b. Esta teoria tampouco faz justiça à palavra todo em “todo o Israel”.
Não soa “todo o Israel” algo raro como expressão da pequena fração
(falando comparativamente) de judeus que ainda estará vivendo na terra
justamente antes ou no momento da volta de Cristo?
c. O contexto indica claramente que ao escrever sobre a salvação
dos israelitas e dos gentios, Paulo não limita seus pensamentos ao que
sucederá no futuro. Ele inclui de um modo muito específico o que está
sucedendo agora. Veja-se especialmente os vv. 30, 31.
d. Não seria estranho que Deus escolhesse para um favor muito
especial — nada menos que a salvação plena e gratuita — precisamente
àquela geração de judeus que terá estado endurecendo seu coração contra
o testemunho do mais longo séquito de testemunhas crentes, séquito que
Romanos (William Hendriksen) 506
se estende dos dias do peregrinar de Cristo sobre a terra — de fato, em
certo sentido, desde o tempo de Abraão — até o fechamento da nova
dispensação?
e. O leitor não foi preparado para a ideia de uma conversão em
massa dos israelitas. Ao longo do argumento Paulo enfatiza
precisamente o oposto, ou seja, a salvação, em cada época (passado,
presente, futuro) de um remanescente. Veja-se as passagens catalogadas
em Rm 11:5. Se Romanos 11:26 na verdade ensina uma conversão em
massa dos judeus, não pareceria que Paulo estivesse dizendo:
«Esqueçam tudo o que eu lhes disse anteriormente”?
f. Se Paulo predisse aqui uma futura conversão em massa dos
judeus, não está contradizendo, se não a letra, pelo menos o espírito, de
sua afirmação anterior que encontramos em 1Ts 2:14–16:
“… os judeus, que mataram o Senhor Jesus e os profetas, e nos
expulsaram, e não agradam a Deus, e são hostis para com todos os
homens, nos impedindo de falar com os gentios para que estes se salvem;
assim enchem eles sempre a medida de seus pecados. Mas sobre eles a
ira [de Deus] veio até o extremo”? 321
g. O contexto que segue imediatamente (Rm 11:26b, 27) faz
referência à vinda do “Libertador” que apartará a impiedade e tirará o
pecado de Jacó. Não foi este o propósito da primeira vinda de Cristo?
Mas a interpretação popular de Rm 11:26 prediz uma conversão em
massa dos judeus com relação à segunda vinda de Cristo. Esta teoria, por
conseguinte, não está em harmonia com o contexto.
Por estas diversas razões a Interpretação A. deve ser rejeitada.

B. A teoria de João Calvino


“Todo o Israel” refere-se ao número total dos escolhidos ao longo
de toda a história, todos aqueles que finalmente se salvam, tanto judeus

321
Ou: no fim; ou, até o fim.
Romanos (William Hendriksen) 507
como gentios. Em seu Comentário sobre esta passagem Calvino se
expressa como segue:
“Eu creio que esta palavra Israel indica todo o povo de Deus, desta
maneira: Depois que os gentios tiverem entrado, então os judeus,
apartando-se de sua rebeldia, unir-se-ão em obediência à fé e desta
maneira se cumprirá a salvação do Israel de Deus, o qual deve congregar
a todos …” (T.E.L.L. 1977, p. 305)
O mesmo ponto de vista é defendido por J.A.C. Van Leeuwen e D.
Jacobs, op. cit., p. 227; e, em certo sentido, por Karl Barth, Der
Römerbrief, Zurich, 1954, p. 401; Trad. ao inglês, p. 416.

Avaliação
Com relação a interpretar o termo Israel espiritualmente —
“Israel” refere-se aos escolhidos — a teoria de Calvino deve ser
considerada correta. Cf. Rm 9:6. Sua afirmação de que a seção dos vv.
25–32 (considerados como uma unidade), descreve o único povo de
Deus, tampouco pode ser refutada com êxito. Mas, por outro lado, a
aplicação que faz Calvino do termo “Israel” no v. 26 a todo o povo de
Deus, tanto judeus como gentios, está errada. No contexto precedente as
palavras Israel, israelita(s), aparece não menos de onze vezes: Rm 9:4;
9:6 (duas vezes); 9:27; 9:31; 10:19; 10:21; 11:1; 11:2; 11:7 e 11:25. Em
cada um destes casos é claro que a referência que se faz é aos judeus,
nunca aos gentios. Que boa razão pode haver, então, para adotar um
significado diferente para o termo Israel como usado aqui em Rm 11:26?
É verdade que no fim do v. 25 o apóstolo menciona os gentios, mas só
para indicar que o endurecimento parcial dos judeus não cessará até que
cada gentio escolhido tenha sido trazido ao reino. Por conseguinte, Paulo
ainda fala dos judeus. Também o faz no v. 26b. Até o v. 28 contém uma
referência clara aos judeus. Não é até chegar aos vv. 30–32 que o
apóstolo faz desfilar junto a todo o corpo dos escolhidos, tanto judeus
como gentios.
Romanos (William Hendriksen) 508
Portanto, embora apreciemos os bons elementos na explicação de
Calvino, não podemos concordar com ele em sua interpretação de “todo
o Israel” em Rm 11:26 como uma referência a todos os escolhidos, tanto
judeus como gentios. Uma passagem deve ser interpretada à luz de seu
contexto. No caso que nos ocupa, o contexto aponta aos judeus, não aos
gentios, nem nos vv. 26–29 a uma combinação de judeus e gentios.

C. Uma terceira teoria


O termo “todo o Israel” significa o número total dos judeus
escolhidos, a soma de todos os “remanescentes” de Israel. “Todo o
Israel” corre paralelo à “plenitude dos gentios”. Os vv. 25, 26 deixam
bem claro que Deus trata com ambos os grupos, esteve os salvando, está
os salvando e os salvará. E se “todo o Israel” indica, tal como o faz, que
nenhum só dos israelitas escolhidos estará ausente lá «quando se fizer
chamada», então “a plenitude dos gentios” demonstra de modo similar
que quando se fizer chamada todo escolhido gentio responderá
“Presente”.
Com relação ao significado de “será salvo” veja-se sobre Rm 1:16.
Para o judeu e o gentio o caminho de salvação é o mesmo. Na verdade,
seus caminhos vão ao mesmo tempo. A oportunidade de ser salvos
terminará para ambos quando Cristo voltar. Como se indicou
anteriormente, estes dois — “a plenitude dos gentios” e “todo o Israel”
— constituem um organismo, simbolizado por uma só oliveira. Deve
ficar claro que se no caso presente plenitude deve interpretar-se em seu
sentido ilimitado, o mesmo vale para o todo de “todo o Israel”.
As palavras “e assim” são explicadas pelo próprio Paulo. Elas
indicam: “De um modo tão maravilhoso”, um modo que ninguém
poderia ter antecipado. Se Deus não tivesse revelado este “mistério” a
Paulo, este não o teria sabido. Era, com efeito, assombroso. A própria
rejeição da maioria dos israelitas, que recorre vez após vez ao longo da
Romanos (William Hendriksen) 509
história, era, é e será, um elo no cumprimento da salvação de Israel. Mais
detalhes podem achar-se em Rm 11:11, 12, 25.
Embora na verdade esta interpretação não seja muito popular como
a da teoria A, entre seus defensores encontram-se pessoas de reconhecida
erudição (o que também é o caso, por certo, das teorias A e B). Permita-
me mencionar uns poucos.
Uma das propostas defendidas com êxito por S. Volbeda, quando
recebeu seu doutorado em teologia summa cum laude da Universidade
Livre de Amsterdã foi: “O termo ‘todo o Israel’ em Rm 11:26a deve
entender-se como uma indicação dos escolhidos, vistos coletivamente,
tirados de Israel”. 322
H. Bavinck, autor da obra em quatro volumes Gereformeerde
Dogmatiek [Dogmática Reformada], diz: ‘ “Todo o Israel’ em Rm 11:26
não quer dizer o povo de Israel destinado a ser convertido de forma
coletiva; tampouco significa a igreja que consiste de judeus e gentios
unidos; mas sim significa o número total que é recolhido de Israel no
transcurso dos séculos”. 323 Cf. H. Hoeksema, God’s Eternal Good
Pleasure, Grand Rapids, 1950, p. 465.
E o Prof. L. Berkhof expressa: ‘ “Todo o Israel’ deve entender-se
como uma designação não de toda a nação, mas do número total dos
escolhidos dentre o antigo povo da aliança … e o advérbio ο_τως não
pode significar ‘depois de’, mas somente ‘desta maneira’ ”. 324
Pode achar-se uma interpretação similar em H. Ridderbos, op. cit.,
p. 263.
Não somente eruditos de persuasão Reformada e de nacionalidade
ou ascendência holandesa adotaram esta interpretação, mas também o
têm feito muitos outros, como o evidenciará uma rápida consulta ao
comentário de Lenski sobre Romanos, pp. 714, 726, 727. Veja-se

322
Citado de De Intuitieve Philosophie Van James McCosh, Grand Rapids, s.f., p. 415.
323
Vol. IV, p. 744. A presente é minha tradução do holandês. O mesmo é certo das citações tiradas de
Volbeda.
324
Systematic Theology, pp. 699, 670.
Romanos (William Hendriksen) 510
também O. Palmer Robertson: “Há um futuro especial para o Israel
étnico em Romanos 11?”, em Perspectives on Evangelical Theology,
Grand Rapids, 1979, pp. 81–94.
Estes intérpretes estão convencidos de que esta é a única
interpretação que quadra com o texto e o contexto.

Objeções expressas e refutadas


Objeção Nº. 1. Esta interpretação destrói o contraste entre o
remanescente mencionado em Rm 11:5, por um lado, e a massa de
Israel, por outro.
Resposta: Nossa interpretação não destrói o contraste, mas antes, o
define mais exatamente. O verdadeiro contraste está entre o
remanescente de cada época (veja-se, por exemplo, Rm 11:5), por um
lado, e “todo o Israel” — quer dizer, a soma de todos os remanescentes
ao longo da história (v. 26) — por outro.
Objeção Nº. 2. Segundo esta interpretação, o “mistério”
mencionado por Paulo não é mais que o fato de que todos os escolhidos
de Israel serão salvos. Mas essa é uma verdade tão óbvia que não
consegue fazer justiça às implicações do termo “mistério”.
Resposta: Não é assim! O mistério de que Paulo fala, refere-se à
maravilhosa cadeia de acontecimentos que resulta na salvação de Israel.
Aponta a fatores aparentemente contraditórios que na amorosa e
soberana providência de Deus são dirigidos de tal maneira que a
salvação final de “todo” Israel seja levada a cabo. Ver sobre Rm 11:25.
26b, 27. … como está escrito: “De Sião virá o Libertador; ele
apartará a impiedade de Jacó. E este é minha aliança com eles quando eu
tirar os seus pecados”.
Note-se o seguinte:
a. É lógico conectar “E assim todo o Israel será salvo” com “De
Sião virá o Libertador”, e interpretar esta libertação divina como resgate
do pecado e como outorga da salvação, bênçãos que o Senhor efetuou
por meio da pessoa e obra do Mediador, Jesus Cristo.
Romanos (William Hendriksen) 511
b. Conforme o indicam as palavras: “como está escrito”, o que vem
a seguir de “E assim todo o Israel será salvo” é material citado do Antigo
Testamento. No entanto, não se trata de uma citação desta ou daquela
passagem em particular, mas antes, de uma hábil coleção de várias
passagens, como Is 59:20; 27:9; 59:21, nessa ordem, com ressonâncias
de Mq 5:2 (ou algum versículo similar) e provavelmente de Jr 31:31s.
Além disto, deve lembrar-se que Paulo conhece bem a tradução da
LXX (ao grego) do Antigo Testamento, tanto como o texto hebraico
original. O que merece admiração é que ele possa entretecer estes
diversos fios e formar um desenho belo e consistente.
c. As palavras: “De Sião virá o Libertador” estão tomadas da LXX,
Is 59:20, com a exceção de que a LXX tem “por amor de Sião”, o
hebraico original “a Sião” e Paulo “de Sião”.
Isto não apresenta dificuldade alguma, visto que as três versões
dizem a verdade. Não veio o Libertador “por amor a Sião”, quer dizer,
para resgatar a Sião? E não veio ele também “a Sião”? De que outro
modo poderia tê-la salvo? E não é verdade que com relação a sua
natureza humana ele veio “de Sião”? Pense-se em Mq 5:2. 325 Com
relação a “dentre”, “de” ou “do meio de” veja-se também Dt 18:15, 18;
Sl. 14:7; 53:6 e Is 2:3.
d. A tarefa que, segundo a profecia, devia executar o Libertador,
consistia, segundo a versão da LXX de Is 27:9, nisso: afastar a
impiedade ou iniquidade de Jacó, quer dizer, de Israel. Naturalmente,
poderia ser afastada somente dos escolhidos de Israel. Entendemos agora
por que Paulo tem direito a citar precisamente estas pesagens para
demonstrar que “todo o Israel” será salvo; é que para salvar Israel, este
deve ser libertado não deste ou daquele inimigo terrestre, e sim da
impiedade, do pecado.

325
O mais provável é que Sião, tal como o usa aqui, represente a Israel, visto como “povo de Deus”.
Veja-se o artigo de G. Fohrer sobre este tema no Th.D.N.T., Vol. VII, p. 309.
Romanos (William Hendriksen) 512
e. Voltando novamente a Is 59, mas desta vez ao v. 21, o apóstolo
prossegue (citando o Senhor, que diz): “No que a mim respeita, esta é a
minha aliança com eles”. E logo volta rapidamente sua atenção a outra
preciosa passagem na qual essa divina aliança é mencionada com
relação ao tirar pecados, ou seja, Jr 31:31s. Ali lemos: “Esta é a aliança
que farei com a casa de Israel e com a casa de Judá … perdoarei sua
iniquidade, e não lembrarei mais dos seus pecados”. Daí que ele escreva:
“quando eu tirar os seus pecados”.
f. Fica claro que em toda esta passagem (Rm 11:26b, 27) Paulo não
está pensando no que Jesus fará em Sua segunda vinda, ocasião em que
virá não “de Sião” e sim “dos céus” (1Ts 4:16), e quando o perdão dos
pecados já não será possível. Paulo está pensando na primeira vinda de
Cristo, quando este, por meio de Sua morte vicária, estabeleceu as bases
do perdão dos pecados, e por conseguinte, da salvação da “plenitude dos
gentios” e “de todo o Israel”.
g. Paulo não se desvia de seu tema central. Não é o tirar dos
pecados um dos ingredientes principais da justificação pela fé? Veja-se
Rm 4:25; 5:8, 9, 19; 8:1–3. A promessa da aliança entra em ação “cada
vez que” na vida de qualquer israelita é tirado o pecado. Romanos 9–11
demonstra que esta doutrina é histórica, indicando o que sucede vez após
vez durante o transcurso da história.
28–31. Quanto ao evangelho, eles são inimigos por causa de vocês;
mas quanto à eleição, são amados por causa dos patriarcas, pois os dons e
o chamado de Deus são irrevogáveis. Assim como vocês, que antes eram
desobedientes a Deus mas agora receberam misericórdia, graças à
desobediência deles, assim também agora eles se tornaram desobedientes,
a fim de que também recebam agora 326 misericórdia, graças à
misericórdia de Deus para com vocês [NVI].
Em consonância com os vv. 25, 26, que falam primeiro de um
endurecimento da parte de Israel e depois de “todo o Israel” que será
salvo, também aqui o apóstolo nos lembra primeiro todos os israelitas
326
Alguns MSS omitem este “agora”, mas o apoio a favor do mesmo dista de ser fraco.
Romanos (William Hendriksen) 513
que, com relação ao evangelho, são inimigos, e depois os que, com
relação à eleição, são amados por causa dos patriarcas. Mas quando
seguimos lendo (veja-se vv. 30–31) logo percebemos de que estes
“inimigos” e estes “amados” são a mesma gente, ou seja, os escolhidos.
No princípio eram hostis ao evangelho, mas mais tarde, devido à
maravilhosa manifestação da misericórdia de Deus (veja-se v. 25s)
transformaram-se em amigos.
Note-se o seguinte:
a. “Quanto ao evangelho … inimigos por causa de vocês”. Note-se
“por sua causa”.
A elucidação a encontramos no v. 11: “por causa da transgressão
deles, veio salvação para os gentios”.
b. “… quanto à eleição, [eles] são amados”.
Os mesmo judeus que uma vez tinham sido inimigos do evangelho,
tornaram-se amigos, amados de Deus e companheiros crentes. Esta
grande mudança teve sua causa no fato de que estes antigos inimigos
tinham sido destinados por Deus, em seu decreto eterno, a ser amigos.
c. “por causa dos patriarcas”.
Não por causa de alguma bondade inata ou mérito que tivessem tido
Abraão, Isaque ou Jacó, mas devido à promessa que Deus fez aos pais:
“serei o teu Deus e o de tua descendência depois de ti”. Veja-se Gn 17:7;
cf. Gn 26:23, 24; 28:12–15.
d. “pois os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis”.
Há os que interpretam esta passagem em sua totalidade (vv. 28–31)
como uma descrição do amor de Deus pelo povo de Israel em geral. Esta
cláusula que nos ocupa demonstra que esta interpretação é incorreta,
visto que se refere ao chamada irrevogável de Deus, um chamado que
não está sujeito a mudança e que nunca é retirado. Este é, sem dúvida, o
Romanos (William Hendriksen) 514
chamada interna ou eficaz, que tem que ver somente com os
escolhidos. 327
e. Isto também comprova que “os misericordiosos dons de Deus”
não devem identificar-se, como se faz com frequência, com os
privilégios especiais outorgados aos judeus como povo (Rm 9:4, 5), mas
devem referir-se a tais frutos da graça especial de Deus como a fé, a
esperança, o amor, a paz que ultrapassa todo o entendimento, a vida
eterna, etc., sendo todos eles dons outorgados aos escolhidos de Deus, e
só a eles.
f. A elucidação das palavras: “Assim como vocês, que antes eram
desobedientes a Deus mas agora receberam misericórdia, graças à
desobediência deles, assim também agora eles … também recebam agora
misericórdia”, encontramo-la no v. 11; note-se especialmente “para
provocar ciúme em Israel”, e veja-se a explicação de tal versículo.
g. É evidente que toda a passagem (vv. 28–31), explicada
corretamente, harmoniza com Rm 11:26a: “E assim todo o Israel será
salvo”. Em ambos os casos Paulo está falando do verdadeiro Israel. Eles
são inimigos (no princípio).
Eles são amados … se tornaram desobedientes para que também
eles agora recebam misericórdia. O apóstolo está dizendo aos romanos,
especialmente aos gentios que havia entre eles e que muito
provavelmente constituíssem a maior parte da congregação, que como
resultado da misericórdia demonstrada a eles — quer dizer, a esta igreja
predominantemente gentílica — os judeus, movidos pela ciúme, recebem
agora a misericórdia de Deus, Seu amor para com todos os que estão em
necessidade.
h. A repetição da palavra agora, que aparece duas ou três vezes nos
vv. 30, 31, demonstra que Paulo não está pensando constantemente em
algo que sucederá quando Cristo volta, ou imediatamente antes, mas em

327
Também o vê assim L. Berkhof em sua Teología sistemática, pp. 561 y 655, ao referir-se a Rm
11:29.
Romanos (William Hendriksen) 515
acontecimentos que estão sucedendo agora mesmo em cumprimento do
plano que Deus desenhou antes da fundação do universo.
32. Porque Deus encerrou a todos na prisão da desobediência para
ter misericórdia de todos eles.
Como o demonstra a conjunção “porque”, há uma estreita relação
entre o v. 32 e a passagem que o precede. Portanto, embora seja possível
obter um significado compreensível quando se tira o v. 32 de seu
contexto e se aplica a toda a raça humana (cf. Rm 8:9–18),
provavelmente seja melhor pensar que este versículo é aplicável à
“plenitude [número total] dos gentios” e a “todo o Israel”.
O que Paulo está dizendo, então, é que Deus encerrou todos estes
israelitas e ao número total destes gentios. Ele encerrou a todos eles
como numa prisão, “a prisão da desobediência”, visto que por natureza
todos são desobedientes à santa lei de Deus. Cf. Gl 3:22, 23.
Sua situação é desesperada: o pecado transtorna, a lei condena, a
consciência aterroriza, o juízo final ameaça, e Deus não os aceitou. Por
natureza tal é sua situação.
Repentinamente as trevas são dissipadas. É o próprio Deus quem
abra a porta da prisão e deixa que entre a luz. Os prisioneiros — cada um
deles sem exceção alguma — caminham rumo à liberdade. Deus o fez
“para ter misericórdia de todos eles”.
O melhor comentário a estas palavras triunfais é certamente aquele
que Paulo mesmo faz: “[ficam] livremente justificados por sua graça por
meio da redenção (obtida) em Cristo Jesus; a quem Deus designara, pelo
derramamento de seu sangue, como sacrifício que tira a ira (feito efetivo)
por meio da fé” (Rm 3:24, 25). Aleluia!

Rm 11:33-36 – Doxologia

Refletindo sobre (a) o que acaba de escrever (v. 32); sobre (b) “o
mistério” apresentado no v. 25 (a interdependência entre a salvação da
“plenitude dos gentios” e “todo o Israel” (veja-se acima); e
Romanos (William Hendriksen) 516
provavelmente também sobre (c) tudo o que escreveu até agora sobre o
glorioso tema da justificação pela fé, não nos deve surpreender que o
exuberante Paulo, que era em si mesmo um maravilhoso produto da
graça soberana de Deus, prorrompa numa doxologia.
Esta doxologia é tanto mais notável quando a contrastamos com “a
grande tristeza” que Paulo expressa no começo desta longa seção (veja-
se 9:1s).
33. Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de
Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e inescrutáveis os seus
caminhos! [NVI]
Quando Paulo reflete sobre os assuntos mencionados com relação a
(a), (b) e (c) de mais acima — provavelmente em especial sobre (b) —
sua alma, cheia de admiração, adoração e temor, se expressa numa
exclamação, que até pode chamar-se cântico de louvor a Deus. Ele
percebeu as profundidades oceânicas (cf. 1Co 2:10) de riquezas (cf. Rm
2:4; 9:23; 10:12) que não podem ser sondadas, riquezas da sabedoria e
do conhecimento de Deus.
A sabedoria de Deus é sua habilidade para escolher os melhores
meios para a realização da meta mais alta. Poderia chamar-se a eficiência
divina que se vê em todas as Suas obras. O termo conhecimento,
aplicado a Deus, no caso presente (vinculado com a sabedoria), não deve
entender-se no sentido de seu eterno deleite, significado que às vezes
tem esta palavra, mas antes, como sua perspicácia sobre a própria
essência das coisas, as pessoas, as ideias, etc.: sua onisciência.
O apóstolo acrescenta: “Quão insondáveis são os seus juízos!”; quer
dizer, Suas decisões soberanas, Seus decretos, Suas disposições. No
presente contexto a referência aponta especialmente àqueles juízos que
se revelam no plano divino da salvação e na realização de Seu plano. O
agregado “e inescrutáveis os seus caminhos” provavelmente queira
Romanos (William Hendriksen) 517
dizer: “e quão impossível é seguir ou rastrear os meios que Deus usa
para pôr em função suas decisões”. 328
34, 35. Quem conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi seu
conselheiro? Quem primeiro lhe deu, para que ele o recompense?
Elevando ainda seu coração a Deus em louvor, Paulo faz três
perguntas. A primeira é: “Quem conheceu a mente do Senhor?”
Esta pergunta foi tomada, quase sem mudança, da LXX de Is 40:13.
é citada também em 1Co 2:16. Faz com que a pessoa lembre
imediatamente Is 55:8: “Porque meus pensamentos não são os vossos
pensamentos, nem são os vossos caminhos os meus caminhos”.
Ultimamente se sabe cada vez mais sobre os mistérios do cérebro
humano. Os verdadeiros homens de ciência, considerando estes novas
descobertas, estão começando a dizer: “Quão grande é Deus!” Mas a
verdade é que se Deus é maravilhoso e incompreensível na obra da
criação, não é Ele pelo menos igualmente assombroso em Sua obra de
redenção? Quem, com efeito, pôde, embora em pequena medida, sondar
realmente a mente de Deus?
A segunda pergunta é: “Ou quem foi seu conselheiro?”
Esta pergunta também é uma citação tirada de Is 40:13.
Todos conhecemos pessoas às quais com razão consideramos sábias
e conhecedoras; porém nem sempre foram sábias. Houve um tempo em
que careciam de sabedoria e de conhecimento. Então, como obtiveram
estas qualidades? Pelo menos até certo ponto, fazendo bom uso dos
conselhos e informações recebidas de seus pais, mestres e amigos.
Mas Deus nunca teve, nem necessitou, um conselheiro a quem
pudesse ou tivesse que pedir ajuda!

328
_νεξεραύνητα, note-se o prefixo duplo; daí que o significado é não possível de ser achado por meio
de uma busca; inescrutável, nom. pl. n. de _νεξεραύνητος. Originalmente o verbo simples era
_ρευνάω, mudado mais tarde para _ραυνάω, buscar, escrutinar (Jo 5:39; 7:52; Rm 8:27; 1Co 2:10;
1Pe 1:11; Ap 2:23). No Novo Testamento, o composto somente aparece aqui.
_νεξιχνίαστοι, nom. pl. f. de _νεξιχνίαστος, também em Ef 3:8; de _ν más _ξιχνιάζω, rastrear. Cf.
_χνος, rastro, rastro (Rm 4:12; 2Co. 12:18; 1Pe 2:21). O significado do composto é, por conseguinte:
incapaz de ser rastreado ou explorado, inescrutável.
Romanos (William Hendriksen) 518
A terceira pergunta é: “Quem primeiro lhe deu, para que ele o
recompense?” Em outras palavras: «Quem pôs alguma vez a Deus em
dívida com ele?» Em sua essência esta pergunta está tirada de Jó 41:11
(do hebraico original).
Como? Deus em dívida conosco? Impossível. Na verdade, nosso
endividamento com Ele é tão grande que nossos corações se estremecem
cada vez que consideramos o que Ele tem feito, faz e fará por nós.
Uma resposta adequada a Deus é simplesmente algo impossível. É
por isso que começamos a responder-Lhe com orações de ação de graça
ou de prazerosa exclamação. Repetimos as palavras que Paulo deixou
registradas aqui em Rm 11:35, ou em 2Co 8:9; ou em 2Co 9:15. Ou,
comovidos até o mais profundo de nosso ser, cantamos as palavras
Ó! nunca, nunca cessará meu lábio
de Te louvar, de cantar Tua glória;
porque conservo de Teu amor imenso
grata memória.
Última estrofe do hino
“Nunca, Meu Deus”.
Ou, com emoção de assombro similar, buscamos aquele antigo hino
Louvai ao Grande Rei.
36. Porque dele e por ele e para ele são todas as coisas. A ele seja a
glória para sempre! Amém.
Os intérpretes procuraram descobrir a fonte destas palavras. É
possível que Paulo talvez as tenha tomado deste ou daquele poeta ou
filósofo grego? Agora, embora seja verdade que o apóstolo conhecia a
filosofia e a poesia dos epicureus e dos estoicos (At 7:18, 28), e por isso
talvez também a declaração: “Todas as coisas vêm de ti [a natureza],
subsistem em ti, e retornam a ti”, ele não era de maneira alguma um
panteísta. Seu canto de louvor não está dedicado à natureza ou ao
universo mas ao Deus triúno quem Se revelou em Jesus Cristo para
salvação. A fonte do dito do apóstolo está, pois, na Escritura, nos ensinos
desta aplicadas ao seu coração pelo Espírito Santo.
Romanos (William Hendriksen) 519
Qual é o significado de “todas as coisas”? Refere-se esta expressão
a todas as coisas que há na criação? Cf. Jo 1:3; 1Co. 8:6. O provável é
que não seja assim. O contexto imediato (v. 25s) tem que ver com o
evangelho e, portanto, com o âmbito da salvação.
Refere-se a declaração, então, à Santa Trindade, de modo que o
significado seria: “O Pai a pensou; o Filho a comprou; o Espírito Santo a
efetuou”? Embora haja quem está a favor de um explicação deste tipo, a
mesma deve ser rejeitada imediatamente. Atribuir os três elementos
distintos (dele, por ele, para ele) às três pessoas respectivamente é do
mais irrazoável.
E então o que dizer? Nas citações que a precedem imediatamente, a
referência aponta ao Senhor, a saber, a Deus. Por isso também aqui
“dele” deve significar “do Triúno Deus” e isto tem aplicação também
para as outras duas pequenas frases.
A interpretação correta, segundo eu a entendo, em então esta: Deus
é a fonte de nossa salvação; é por meio de Sua graça e poder que a
salvação torna-se realidade em nossa vida; e é para Ele, por conseguinte,
toda a glória que haja. Ele é a fonte, o realizador e a meta de nossa
salvação.
Certamente é muito lógico que o apóstolo, ao aproximar-se do
fechamento de sua doxologia, escreva: “A ele seja a glória para sempre!”
Visto que foi Ele quem não só planejou nossa salvação, mas também fez
com que se transformasse numa realidade, resulta que Ele — e somente
Ele — deve receber toda a glória.
Paulo conclui esta pequena expressão de louvor e ação de graças, e
com isso também os capítulos 9–11; e até a totalidade desta seção
predominantemente doutrinal deste livro (capítulos 1–11), acrescentando
a palavra de solene afirmação e de entusiasta aprovação pessoal, Amém.
Romanos (William Hendriksen) 520
Lições práticas derivadas de Romanos 11
Rm 11:3, 4. “Reservei para mim sete mil homens que não
dobraram o joelho diante de Baal”. Os líderes cristãos — quer se trate de
pastores ou mestres, evangelistas ou missionários — estão propensos a
esquecer que a obra cristã que desenvolvem recebe muitas vezes o apoio
constante embora sem publicidade de muitas outras pessoas que não está
em seu grupo. Cada congregação tem membros devotos que por meio de
suas orações sustentam a obra que estes líderes realizam. E não nos
esqueçamos tampouco das crianças. Quando a esposa de certo pastor
estava doente com uma doença que eventualmente a levou à morte, ele
foi maravilhosamente apoiado por crianças que vinham a ele e lhe
diziam: “Estamos orando por você e sua família”. Que grande ajuda
resultou ser essa!
Rm 11:11. “…por causa da transgressão deles, veio salvação para
os gentios, para provocar ciúme em Israel”.
Que afirmação assombrosa! Deus é tão maravilhoso que ainda pode
usar as transgressões humanas para levar a cabo a salvação dos gentios e
dos judeus!
Rm 11:13. “Exalto o meu ministério”.
Falando em termos puramente humanos, uma das causas
importantes do êxito de Paulo como missionário era sua alegria ao
executar sua tarefa, o entusiasmo que sempre manifestava. Estudem-se,
por exemplo, passagens tais como:
“Ai de mim se não pregar o evangelho!” (1Co 9:16).
“A todos me fiz de tudo, para que de qualquer maneira salve
alguns” (1Co 9:22).
“Graças a Deus pelo seu dom inefável!” (2Co 9:15).
Este tipo de entusiasmo é contagioso. Também o é a atitude oposta.
Um pregador resmungão — ou qualquer outra pessoa com esta
característica relacionado com a obra religiosa — que com aparência
Romanos (William Hendriksen) 521
afligida e áspera disposição cumpre sua tarefa, é parecido com um
vendedor que roga a seus clientes que não comprem sua mercadoria!
Rm 11:14. “…na esperança de que de alguma forma possa
provocar ciúme em meu próprio povo e salvar alguns deles”.
Com relação a isso, veja-se também Dn 12:3; Rm 10:1; 1Co 9:22.
Para atrair os judeus a Cristo, Paulo estava disposto, em caso de ser
necessário, a usar até a “inveja”, no sentido de um anelo, da parte dos
judeus incrédulos, para obter as mesmas preciosas bênçãos que possuíam
os crentes gentios.
Também nós devemos enfocar nossa atenção nesse grande objetivo
de ser instrumentos nas mãos de Deus para a conversão dos judeus.
Apresentar uma interpretação correta de Rm 11:26 é importante, mas ser
instrumento, embora seja em pouco, para levar um judeu ao
conhecimento salvífico de Cristo é ainda muito mais importante.
Regozijamo-nos, naturalmente, da existência do movimento “judeus por
Jesus” que surgiu em alguns países do mundo, e no fato de que por meio
deste método e outros similares se ganhou para o Salvador a um número
considerável de gente do povo da velha aliança. Alegra nosso coração ler
o que diz Moisés Rosen, diretor da Missão “Judeus por Jesus” ou seja,
que: “Esta década passada viu mais judeus manifestar suas decisões a
favor de Jesus Cristo que nenhum outro período similar de tempo desde
a era apostólica”. Mas deveríamos lembrar que a grande maioria de
gente que pertence a este grupo étnico não foi ganha. Em vez de
confundir esta gente dizendo que todos serão salvos se resolvem manter-
se sãos durante tempo suficiente para alcançar o dia da volta de Cristo,
deveríamos, em vez disso, pregar-lhes a Cristo como sua única esperança
e como cumprimento de sua necessidade de uma expiação por meio do
sangue. Muitos judeus sente muitíssimo esta carência em sua religião, tal
como agora a pratica.
Porém nada desta obra de evangelismo entre os judeus será útil a
menos que seja acompanhada com oração fervente, e que o poder da
ressurreição de Cristo se manifeste em nossas próprias vidas. Temos que
Romanos (William Hendriksen) 522
ter em mente constantemente que para cada judeu que lê o Novo
Testamento, há cem ou mais que nos leem a nós!
O esforço para convencer os judeus com uma falsa esperança, como
se apesar de sua rejeição de Cristo ainda fossem, de algum modo, os
favoritos especiais de Deus, é indesculpável. Nosso Senhor quer que os
judeus vão a Ele. Claro, tudo o que se puder fazer na presente disputa
entre judeus e árabes deveria ser feito para que, se possível, se chegasse
a uma conclusão por meio da qual fossem satisfeitas as necessidades de
ambos os lados. Mas embora se alcançasse alguma vez uma solução
política tal, a mesma não satisfaria, em si mesma, o profundo problema
espiritual dos judeus. A salvação, para a glória do triúno Deus, é o que os
judeus necessitam mais que nada, o que é certo também de todos nós.
“Porque não há distinção entre grego e judeu. Porque o próprio Senhor (é
Senhor) de todos e ricamente abençoa a todos os que o invocam. Porque
todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (Rm 10:12, 13).
Rm 11:18. “Não é você quem sustenta a raiz, mas a raiz a você”.
“Cada ano pagamos … mil dólares em apoio à causa do reino”,
disse um jactancioso. Mas esquecia de mencionar quanto esforço e luta
deviam fazer estas instituições do reino para contribuir para o bem-estar
espiritual dele e da sua família. Chegaria a ser uma soma que não
poderia ser manifestada em linguagem monetária.
Quando por meio de Natã Deus disse a Davi: “Estabelecerei casa
para ti. Quando terminarem seus dias … te levantarei descendência …
Ele é aquele que construirá uma casa para o meu nome, e estabelecerei o
trono de seu reino para sempre”, Davi, então, ao ver de longe a aurora da
brilhante manhã de glória que culminaria no nascimento de Cristo,
derramou o que havia em seu coração em linguagem de humilde ação de
graças:
“Quem sou eu, ó Senhor soberano, e o que é minha família, que me
tens trazido até aqui?” Ele percebeu que basicamente não era ele quem
sustentava a raiz, mas a raiz sustentava ele.
Romanos (William Hendriksen) 523
Uma religião sem humildade nem gratidão quase nem merece ser
chamada religião.
Rm 11:23. “E quanto a eles, se não continuarem na incredulidade,
serão enxertados, pois Deus é capaz de enxertá-los outra vez”.
Porém a ideia de reenxertar os ramos arrancados (a reincorporação
ao corpo de Cristo daqueles que se tornaram infiéis à fé) não está em
conflito com o ensino de Hb 6:4–6? Existe uma possível solução, a
sugerida por F.F. Bruce em seu bom comentário a Hebreus (em inglês,
da série The New International Commentary on the New Testament,
Grand Rapids, EE.UU., 1964, pp. 118, 119), a saber, que como assunto
da experiência humana o resgate de gente assim é praticamente
impossível; mas também, que nada deste tipo de coisas é ultimamente
impossível para a graça de Deus.
Pois bem, na passagem que nos ocupa (Rm 11:23) é-nos dito que
“Deus é capaz de enxertá-los outra vez”, quer dizer, por meio de Seu
Espírito Ele pode regenerá-los e reincorporá-los ao organismo de Sua
igreja.

Resumo de Romanos 11
Se levarmos em conta que o cap. 10 concluía com uma descrição de
Israel como desobediente e obstinado, não admira ver que o cap. 11
comece com a pergunta: “Acaso Deus rejeitou o seu povo?” Lançou
Deus em Sua ira a Israel completa e irrevogavelmente para longe de Si?
Paulo responde: “Deus não rejeitou o seu povo, o qual de antemão
conheceu”, a saber, aquele povo sobre o qual, já antes de criar o
universo, havia posto Seu amor. É como se Paulo dissesse: «Prestem
atenção em mim! Eu sou um israelita, e Deus não me rejeitou”. Ele nos
ensina que sempre resta um remanescente escolhido por Deus. De fato,
não sugere o v. 5 este pensamento?
Isto foi certo nos dias de Elias, segundo consta no relato de 1Rs
19:1–18. Quando o desconsolado profeta se lamentou de que só ficou ele
Romanos (William Hendriksen) 524
dentre os fiéis, e que sua vida também estava em perigo, o Senhor lhe
disse: “Reservei para mim sete mil homens que não dobraram o joelho
diante de Baal”.
No que respeita àqueles israelitas que não responderam
favoravelmente aos misericordiosos convites de Deus, mas tinham
endurecido seu coração contra o evangelho, Deus “lhes deu um espírito
de estupor, olhos com que não veem, e ouvidos com que não ouvem até
o dia de hoje”. Cf. Dt 29:4; Is 6:9. A um povo assim quadram as palavras
de Davi (veja-se Sl. 69:22, 23): “Converta-se sua mesa em laço e
armadilha, em tropeço e em retribuição para eles”, etc.
Tudo isso fica resumido nas palavras de Rm 11:7: “Israel não
conseguiu aquilo que tanto buscava, mas os eleitos o obtiveram. Os
demais foram endurecidos” (vv. 1–10).
Quer isso dizer que não há esperança para estes endurecidos, que
não deram mesmo agora sinal algum de terem sido escolhidos desde a
eternidade? Não, não quer dizer isso.
Agora aprendemos que Deus escolhe para Si um remanescente
dentre esta maioria endurecida pelo pecado. Paulo pergunta: “Acaso
tropeçaram para que ficassem caídos?” E responde: “De maneira
nenhuma! Ao contrário, por causa da transgressão deles, veio salvação
para os gentios, para provocar ciúme em Israel”. Isto demonstra que não
era a perdição final e irrevogável o que Deus tinha em mente quando Ele
inicialmente endureceu os corações daqueles que se tinham endurecido a
si mesmos. Ao contrário, Deus utilizou até a transgressão de Israel para
servir como elo na cadeia da salvação, para salvar tanto gentios como
judeus.
“Por causa da transgressão deles, veio salvação para os gentios”.
Quando o apóstolo escreveu estas palavras deve ter lembrado
vividamente aquela ocasião prévia em que ele e Barnabé haviam dito aos
judeus de Antioquia da Pisídia: “Pelo fato de que vós rejeitais a palavra
de Deus … voltamo-nos para os gentios”. Também em outras ocasiões
foram tais palavras similares e tomadas medidas similares.
Romanos (William Hendriksen) 525
Mas esse não foi o fim da história. A salvação que de tal modo
tinha chegado aos gentios encheu os endurecidos judeus de inveja.
Começaram a desejar a paz e a alegria que tinha chegado aos gentios que
haviam entregue seus corações e suas vidas ao Salvador. O resultado foi
que alguns destes judeus foram também recolhidos no rebanho,
demonstrando assim que também eles tinham sido escolhidos desde a
eternidade. Agora, se até a derrota espiritual de Israel havia trazido
riquezas aos gentios, tal como ocorreu, ocorria e ocorreria, então sem
dúvida a chegada de Israel em plenitude — a salvação no decurso dos
séculos do número total dos israelitas destinados à vida eterna —
resultaria progressivamente numa abundância de bênçãos para todo o
mundo.
Que Paulo, ao dizer estas coisas, não está pensando no que terá
lugar ao culminar a história, mas no que esteve sucedendo e continua
sucedendo continuamente, é algo que fica claro nos vv. 13 e 14: “Visto
que sou apóstolo para os gentios, exalto o meu ministério, na esperança
de que de alguma forma possa provocar ciúme em meu próprio povo e
salvar alguns deles”.
Para os israelitas que tinham sofrido previamente o castigo de Deus,
sentir agora que são aceitos por Deus e que são uma bênção para a
humanidade equivale a nada menos que a “vida dentre os mortos”.
Eles sabiam que tinham sido separados para prestar serviço a Deus.
Na verdade, desde tempos remotos já toda a nação de Israel tinha sido
consagrada desta maneira a Deus. Não eram eles acaso descendentes de
Abraão, Isaque e Jacó, com quem e com cujos descendentes havia Deus
estabelecida a Sua aliança? Evidentemente, se a torta que se oferece
como primícia é santa, então toda a massa é santa; se a raiz é santa, os
ramos também são. Se os patriarcas tinham sido separados para prestar
serviço a Deus, tal como sucedeu, isto tinha também vigência para com
seus descendentes.
Mas isso não significava que cada israelita estivesse marcado por
uma santidade interna. Alguns destes “ramos,” a saber, estas pessoas
Romanos (William Hendriksen) 526
manifestavam um caráter oposto. Eram ramos que deviam ser arrancadas
da oliveira, e que o foram.
Uma infidelidade tal parecia dar a um ou outro membro arrogante
da igreja gentílica a desculpa suficiente para dizer: “Os ramos foram
cortados, para que eu fosse enxertado”. Paulo responde: “Está certo.
Eles, porém, foram cortados devido à incredulidade, e você permanece
pela fé. Não se orgulhe, mas tema. ... Afinal de contas, se você foi
cortado de uma oliveira brava por natureza e, de maneira antinatural, foi
enxertado numa oliveira cultivada, quanto mais serão enxertados os
ramos naturais em sua própria oliveira?” (vv. 21–24).
Paulo continua: “Porque não quero, irmãos, que ignoreis este
mistério (para que não sejais presumidos em vós mesmos): que veio
endurecimento em parte a Israel, até que haja entrado a plenitude dos
gentios”. O que ele quer dizer é: ao longo das idades uma porção dos
judeus é endurecida, os outros são salvos. Ao refletir sobre a maneira
maravilhosa em que Deus reúne os diversos remanescentes que
constituem o corpo coletivo dos israelitas salvos, ele chama a esta cadeia
de salvação, com seus diversos elos, “o mistério”. E certamente era um
mistério, visto que Paulo nunca poderia tê-lo descoberto se Deus não lhe
tivesse revelado. Há mais informação sobre este mistério em Rm 11:11,
12, 31. Paulo acrescenta: “E assim — quer dizer, desta maneira — todo
Israel, todo o corpo dos judeus escolhidos, será salvo”.
Ao fazer referência a passagens do Antigo Testamento — Is 59:20;
27:9; 59:21, nessa ordem, e também provavelmente a Mq 5:2; Jr 31:31s
— o apóstolo demonstra que a verdade que ele proclama não é uma
novidade, sim descansa sobre o fundamento sólido da Escritura. A vinda
e obra do Libertador tinha assegurado o remover do pecado.
Quem tinha sido anteriormente inimigos do evangelho se
transformaram, por conseguinte, em amigos, em amados. Isto tinha sido
ocasionado por meio do decreto divino da eleição, e pelo cumprimento
das promessas feitas aos patriarcas. Além disso, a salvação, uma vez
Romanos (William Hendriksen) 527
feita realidade, nunca poderia perder-se, visto que “os dons e o chamado
de Deus são irrevogáveis”.
Nos vv. 30, 31 Paulo resume os misteriosos caminhos de Deus, que
resultam na salvação do número completo dos gentios e de “todo o
Israel”. No v. 32 ele acrescenta: “Porque Deus encerrou a todos na prisão
da desobediência para ter misericórdia de todos eles” (vv. 25–32).
A contemplação do maravilhoso plano divino de redenção faz com
que o apóstolo conclua este capítulo com uma doxologia de muito
significado. A mesma pode ser dividida convenientemente em três
partes: (a) v. 33; (b) vv. 34, 35; e (c) v. 36.
O v. 33 é uma exclamação em louvor da sabedoria e do
conhecimento de Deus. É provável que Paulo esteja pensando
especialmente no modo em que estas qualidades divinas se revelam no
plano de redenção e na maneira como esse plano é executado. Ele está
seguro de que o modo em que a salvação decretada por Deus e a maneira
como tal salvação se cumpre nas vidas humanas ultrapassam qualquer
coisa em que os simples seres humanos poderiam ter imaginado.
Nos vv. 34 e 35 o escritor louva a autossuficiência ou
independência divina. Quem pode comparar-se com Deus? Quem lhe
comunicou sabedoria ou conhecimento, ou lhe ajudou de algum modo
em originar e/ou levar a cabo o plano de salvação? Ninguém,
naturalmente. Por conseguinte, toda a glória pertence unicamente a Ele.
É por isso que no v. 36 Paulo atribui a glória Àquele que é ao
mesmo tempo fonte, executor e meta da salvação do homem.
A esta sincera e comovedora doxologia o escritor acrescenta sua
muito pessoal e entusiasta palavra de solene afirmação e aprovação:
AMÉM (vv. 33–36).
Romanos (William Hendriksen) 528

II. APLICAÇÃO PRÁTICA: ROMANOS 12-16


Romanos (William Hendriksen) 529
ROMANOS 12
A. Atitude do justificado para com Deus. Rm 12:1, 2

Paulo, depois de ter completado sua exposição da doutrina da


justificação pela fé, passa agora à sua aplicação prática. É verdade que
houve aplicação durante a exposição, mas qualquer leitor cuidadoso
desta epístola terá que reconhecer que ao passo que a doutrina
prepondera nos capítulos 1–11, é a aplicação prática à vida em geral e a
situações vitais concretas a que rege nos cinco capítulos restantes. Além
disso, como veremos num momento, Rm 12:1 deixa bem claro que o
próprio apóstolo considerava do mesmo modo a conexão entre o que foi
dito nos capítulos 1–11 e o que vai dizer nos capítulos 12–16.
1. Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que
apresenteis o vosso corpo 329 por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus,
que é o vosso culto racional [RA].
Já a primeira expressão, ou seja, “Rogo-vos” (no original é uma só
palavra) indica o caráter não só do parágrafo inicial, mas também o dos
cinco capítulos finais desta epístola. Não é que a exortação tenha estado
totalmente ausente dos capítulos anteriores, mas em termos gerais é
exposição o que encontramos em Rm 1–11, enquanto que a exortação
prepondera em Rm 12–16.
É como “um apóstolo chamado” (Rm 1:1), “um ministro de Cristo
Jesus” (Rm 15:16), revestido de autoridade, que Paulo, num espírito de
amor e preocupação, exorta os seus irmãos muito amados da igreja de
Roma. Com relação a esta palavra “irmãos,” veja-se o que foi dito
anteriormente sobre Rm 1:13; 7:1. Paulo literalmente exorta a quem se
dirige a oferecer seu corpos como sacrifícios 330 a Deus. Não obstante,
Rom 6:11–15 deixa claro que num contexto tal a palavra corpo refere-se

329
Literalmente: vossos corpos.
330
O apóstolo usa o singular sacrifício onde nós provavelmente usaríamos o plural.
Romanos (William Hendriksen) 530
a toda a personalidade; veja-se também Fp 1:20. Calvino diz: “Ao falar
de corpos ele não se refere somente à nossa pele e a nossos ossos, mas à
totalidade do que nos compõe. Ele adotou esta palavra para poder
designar mais completamente tudo o que somos, visto que os membros
do corpo são os instrumentos por meio dos quais levamos a cabo nossos
propósitos”.
Paulo diz que este sacrifício deve ter as seguintes características:
deve ser “vivo”, quer dizer, devem proceder da nova vida que há dentro
do crente; “santo”, produto da influência santificadora do Espírito Santo;
e, por conseguinte, “agradável” a Deus, não só aceito por Deus, mas
também muito grato Àquele a quem os crentes se dedicam.
O apóstolo acrescenta: “Que é o vosso culto”. 331 O que se disse
anteriormente (veja-se sobre Rm 9:4) sobre esta palavra culto tem
também vigência aqui. Paulo está pensando na ação de adorar, a
consagração total do coração, da mente, da vontade e dos atos, na
verdade tudo o que a pessoa é, tem e faz, a Deus. Nada menos!
O brindar tal devoção constituirá seu culto logiken, diz Paulo. O
debate sobre logiken (acus. sing. f. de logikos) continua. A palavra nos
lembra a palavra lógico. Mas o significado de uma palavra não é
determinado em primeiro lugar por sua etimologia, mas por seu uso em
determinados contextos. Contudo, no caso presente lógico, no sentido de
razoável, merece consideração. Vários tradutores têm aceito “razoável”
ou “racional”. 332 Enquanto escrevo isso, estou examinando dois volumes
de W. a Brakel, uma obra holandesa sobre teologia sistemática, a qual
este autor desse por título, baseando-se em Rm 12:1, Redelijke Godsdiest
(Leiden, 1893), quer dizer, Religião razoável (ou Razoável culto a
Deus). Segundo esta interpretação, o que Paulo está dizendo é que
331
τ_ν λογικ_ν λατρείαν _μ_ν está provavelmente em justaposição com παραστ_σαι … τ_ θε_.
332
As versões ao inglês A.V., Williams, Conybeare, Broadus, N.T. in Modern English. De modo
similar, o N.T. in Basic English indica que este é o culto “que é justo que você dê”, e a N.E.B. oferece,
numa referência, uma sugestão similar. Em algumas ocasiões — mas de maneira nenhuma sempre —
os filósofos gregos usavam a palavra neste sentido. Veja-se o Greek-English Lexicon de Liddell e
Scott, Vol. I, p. 1056.
Romanos (William Hendriksen) 531
brindar a Deus uma devoção de todo coração é o único culto razoável ou
lógico.
Mas embora esta interpretação do adjetivo grego tenha sentido, não
é a única possível, talvez nem sequer a melhor. Na única outra passagem
em que o adjetivo ocorre, ou seja, 1Pe 2:2, o mesmo significa espiritual,
como o evidencia o contexto. Pedro não pode ter estado referindo-se à
um leite lógico ou razoável! Além disso, no contexto ele menciona “uma
casa espiritual” e “sacrifícios espirituais”.
Não causa surpresa, então, que vários tradutores tenham aceito para
Rm 12:1 a tradução “culto espiritual”. 333
Mas embora “espiritual” bem possa ser a melhor tradução do
adjetivo que Paulo usa, o significado de Rm 12:1, considerado como
unidade, é certamente este: que é justo e correto — e por isso lógico,
razoável — que aqueles que foram grandemente privilegiados se
ofereçam a Deus de todo coração como sacrifício vivo, santo, e
agradável a Ele. De fato, a ênfase de Rm 12:1 recai sobre a palavra
“pois”.
O que o apóstolo está dizendo é que em face da misericórdia 334 de
Deus impõe-se uma resposta voluntária e entusiástica de gratidão. Como
resultado, quando ele nesta conexão menciona “a grande misericórdia de
Deus”, deve estar referindo-se à maravilhosa bondade de Deus descrita
nos primeiros onze capítulos desta carta: Sua bondade (Rm 2:4),
paciência (Rm 9:22; 11:22), amor (Rm 5:5; 8:35, 39), e graça (Rm 1:7;
3:24; 4:16; 5:2, 15, 20, 21; 6:1, 14, 15, 17; 11:5, 6). Ele deve estar
pensando em particular em seu grande tema, ou seja, a justificação pela

333
Vejam-se, por exemplo, as versões ao inglês A.R.V., R.S.V., N.I.V. Veja-se também G. Kittel,
Th.D.N.T., Vol. IV, p. 142. O Amplified New Testament combina ambas as ideias: “culto racional e
espiritual”. A Versão Berkeley, não obstante, prefere “culto com entendimento”, e Cranfield, de modo
similar, usa “culto com entendimento”.
334
O apóstolo usa o pl. δι_ τ_ν ο_κτιρμ_ν, baseado no hebraico pl. ‫ ַרתֲ מִיס‬. Vejam-se 2Sm 24:14; 1Cr
21:13; Sl. 25:6; 40:11 (Bíblia no hebraico 40:12); cf. Fp 2:1. Este é um pl. intensivo, corretamente
traduzido pelo sing. em português. Mas o caráter intensivo de tal substantivo pode ser retido na
tradução lhe antecedendo um adjetivo; no caso presente um dos seguintes: terna, grande, ampla.
Romanos (William Hendriksen) 532
fé, uma justificação baseada somente no autossacrifício substitutivo de
Cristo (Rm 3:24, 25). O que ele está dizendo é, então, que esta soberana
misericórdia divina requer uma vida de dedicação total e de
compromisso com todo o coração. Os sacrifícios de animais não
servirão! O que se requer é nada menos que uma entrega pessoal e
completa nascida da gratidão.
Por conseguinte, o que o apóstolo ensina aqui é que a ética cristã se
baseia na doutrina cristã. Daí que 1Co 15:1–57 seja seguido por 15:58s;
2Co. 1:3, 4a por 1:4b s; 5:1–8 por 5:9s; Ef 2 e 3 por Ef 4; 4:32b. por 5:1;
Fp 3:20, 21 por 4:1; Cl 2 pelo cap. 3; e Rm 1–11 por 12–6.
Ao voltar mais uma vez aos primeiros capítulos da epístola de
Paulo aos Romanos e ao repassar dali ao resto deste precioso escrito, não
se pode deixar de perceber que em Rm 1:1–3:20 se descrevem o pecado
e a miséria do homem; que em Rm 3:21–11:36 abre-se diante do homem
o caminho da salvação; e que em Rm 12:1–16:27 se mostra ao crente
resgatado como deve responder, ou seja, por meio de uma vida de
gratidão a Deus e de serviço aos filhos de Deus e, de fato, a todos.
Isto traz à nossa mente várias passagens do Saltério, e em especial o
Sl. 50:15; “invoca-me no dia da angústia; eu te livrarei, e tu me
glorificarás”; e também o Sl. 116:
MISÉRIA: “Laços de morte me cercaram, e angústias do inferno se
apoderaram de mim; caí em tribulação e tristeza” [v. 3, RA]
SALVAÇÃO: “Então, invoquei o nome do SENHOR: ó SENHOR,
livra-me a alma. ... achava-me prostrado, e ele me salvou” [vv. 4-6, RA]
GRATIDÃO: “Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do
SENHOR. Cumprirei os meus votos ao SENHOR, na presença de todo o
seu povo” [vv. 13, 14, RA]
Isto demonstra quão apropriados são a pergunta e Resposta número
2 do Catecismo de Heidelberg:
P. Quantas coisas se deve saber para poder viver e morrer
piedosamente com esse consolo?
Romanos (William Hendriksen) 533
R. Três coisas. Primeira: Quão grandes é o meu pecado e a minha
miséria. Segunda: Como sou redimido de todos os meus pecados e da
minha miséria. Terceira: Como devo agradecer a Deus essa redenção.
A divisão nestas três partes não é, porém, rígida ou mecânica. Até
no Sl. 116:1, 2 a redenção já fica claramente indicada, tal como sucede
também com Rm 1:16, 17; e com relação ao Catecismo de Heidelberg,
até seu primeira pergunta e resposta famosas incluem a totalidade das
“três coisas” que são necessárias.
2. E não vos deixeis moldar segundo o critério deste mundo (mau),
mas antes, deixai-vos transformar pela renovação da vossa mente, para
que comproveis qual seja a vontade de Deus, ou seja, o que é boa e
agradável e perfeita.
Uma coisa é indicar uma meta a uma pessoa e animá-la a procurar
obtê-la. Paulo fez isso no v. 1. Outra coisa é mostrar-lhe o que deve fazer
para obtê-la. O apóstolo não nos falha neste ponto. Aqui, no v. 2, mostra
aos ouvintes e leitores o que é se que deve evitar e o que é que se deve
fazer para conseguir a meta.
Em primeiro lugar, o que se deve evitar!
Os membros da igreja de Roma eram “santos”, naturalmente.
Porém não tinham chegado ainda à perfeição. Eram santos mas também
eram pecadores ainda, visto que deste lado do céu nenhum simples ser
humano chega jamais à condição de perfeição moral-espiritual.
Há mais um fato que se deveria acrescentar: os membros desta
igreja eram imitadores. Não o somos todos em alguma medida? Ou será
que esta regra só rege para as crianças? Não se aplica em certo sentido a
todos? A mesma tem vigência especialmente no âmbito do pecado e do
mal. Não foi o próprio Juvenal que disse? “Facilmente se ensina a todos
a imitar o que é baixo e depravado”? 335 “As más companhias corrompem
o bom caráter” (1Co 15:33), e neste mundo presente é praticamente
impossível evitar completamente as “más companhias” ou ainda se

335
Sátiras XIV. 40.
Romanos (William Hendriksen) 534
manter afastado dos maus hábitos que ainda se aderem aos que podem
ser chamados, em termos gerais, “boas companhias”. Portanto, a menos
que estejamos alertas, corremos o alto risco de ser presa do critério deste
“mundo mau”.
Quando Paulo diz: “E não vos deixeis moldar segundo o critério
deste mundo (mau)” 336 (1Co 2:6, 8; Gl 1:4), está advertindo os membros
de então e de agora contra ceder diante das diversas manifestações de
mundanalidade pelas quais estão continuamente rodeados; p. ex., o uso
de linguagem procaz e ofensiva, o canto de canções indecentes, a leitura
de livros imundos, o uso de atavios tentadores, o desfrutar de
passatempos questionáveis, a associação, com certo nível de intimidade,
com companheiros mundanos, etc. uma lista deste tipo quase não tem
fim.
Tomemos o assunto da diversão. É possível ser culpado neste item
embora não haja nada de mau em praticar o passatempo que se escolhe;
sucede, por exemplo, quando uma pessoa se dedica de coração a esse
passatempo, e este o absorve, privando-o de tempo e energia para
comprometer-se em causas necessárias e nobres (a família, a educação
cristã, a igreja, o serviço ao necessitado, a obra missionária, etc.).
A razão principal pela qual Paulo adverte contra deixar-se ser
moldado segundo o critério deste tempo mau é que o interesse principal
do homem nunca deve ser viver só para si mesmo. Ele deveria fazer tudo
para a glória de Deus (1Co 10:31).
A segunda razão é esta: ceder constantemente à tentação de ser
moldado segundo o critério deste mundo (mau)” (1Co 2:6, 8; Gl 1:4)
termina em amarga desilusão; é que: “A aparência 337 deste mundo está
passando” (1Co 7:31).
A experiência daqueles que permitem que suas vidas se
desperdicem desta maneira é parecida à dos viajantes do deserto. Estão

336
τ_ α__νι τούτ_, caso associativo instrumental de _ αιών ο_τος. Veja-se a nota 226.
337
Note-se o parecido entre συσχηματίζεσθε (Rm 12:2) e τ_ σχ_μα (1Co. 7:31).
Romanos (William Hendriksen) 535
completamente exaustos. Seus lábios se partem de sede. De repente
veem na distância um manancial cristalino rodeado por um umbroso
arvoredo. Com esperança revivida apressam-se para chegar a esse lugar
… só para descobrir que foram enganados por uma miragem. “O mundo
e seus desejos passam, mas a pessoa que faz a vontade de Deus vive para
sempre” (1Jo 2:17).
Em segundo lugar, o que se deve fazer!
“deixai-vos transformar pela renovação da vossa mente”. Note-se o
contraste: não moldados … mas transformados. 338

338
Embora a maioria dos expositores admita esta notável diferença ou contraste, tal admissão não é
unânime. As razões que levam a afirmar que realmente há em Rm 12 um contraste entre (a) “Não
deixem que se lhes molde (ou conforme)” … e (b) “mas lhes deixe transformar”, podem formular-se
como segue:
Em outras partes do Novo Testamento, quando os verbos συσχηματίζω (em Fp 3:21,
μετασχηματίζω) e μεταμορφ_ω, ou seus respectivos cognatos σχ_μα e μορφή (em Fp 3:21,
σύμμορφος) aparecem um ao lado do outro, há uma importante diferença de significado entre ambos.
É assim que na passagem da kenosis (Fp 2:5–8) há uma diferença de significado entre μορφή e
σχ_μα. Veja-se C.N.T. sobre Filipenses 2:7–8.
Do mesmo modo, também em Fp 3:21 Paulo usa compostos de σχ_μα e de μορφή. Somos
informados que, em conjunção com Sua gloriosa volta, Cristo remodelará nosso corpo humilde de tal
modo que terá uma aparência como a de Seu próprio corpo glorioso. A nova figura ou aparência
exterior realmente refletirá a nova e eterna forma interna. A diferença de significado é clara mais uma
vez.
De igual maneira, temos todo direito de crer que quando os dois verbos συχηματίζω e μεταμορφόω
são usados lado a lado aqui em Rm 12:2, dá-se a entender uma diferença de significado importante.
No caso que nos ocupa, devido ao contexto, esta diferença chega a ser um contraste. Note-se essa forte
partícula adversativa _λλά.
Há aqueles que negam esta importante diferença de significado. Para defender sua opinião eles
assinalam que o verbo μεταμορφόω é usado no relato da transfiguração de Cristo (Mt 17:2; Mc 9:2)
embora não tenha havido transformação do ser interior de Cristo. Ao responder este argumento desejo
destacar duas coisas: (a) deve dar-se lugar à possibilidade de que a mudança na aparência exterior de
Cristo fosse ocasionada pela glória interior que se irradiava a todo seu ser; e (b) que o relato da
transfiguração de maneira nenhuma contradiz a regra anteriormente mencionada, visto que somente
um dos dois verbos é utilizado em tal relato.
A diferença de significado que há aqui em Rm 12:2 entre os dois verbos deve, portanto, ser
reconhecida. Ver também R. C. Trench, Synonyms of the New Testament, parágr. lxx.
Esta é minha resposta ao argumento de Cranfield, op. cit. Vol. II, pp. 605–607. Ele rejeita a opinião
que eu compartilho com a maioria dos expositores. O sentido de imparcialidade me move ao convidar
ao leitor a estudar as páginas indicadas do excelente comentário do Cranfield.
Romanos (William Hendriksen) 536
Paulo não diz: “substituam uma forma exterior por outra”. Essa não
seria uma solução, visto que o problema com os que se deixam moldar
segundo o critério desta má época presente é muito profundo. O que se
requer é uma transformação, uma mudança interior, a renovação da
mente, quer dizer, não só do órgão do pensamento e do raciocínio, e sim
da disposição interna; melhor ainda, do coração, do ser interior. Cf. Rm
1:28; 7:22–25.
É importante prestar muita atenção à forma exata em que o apóstolo
se expressa nesta exortação. Notem-se estes detalhes:
a. Ele usa o tempo presente: “deixai-vos transformar” (continuem
permitindo ser transformados). Por isso esta transformação não deve ser
um assunto de impulsos: às vezes sim, às vezes não. Deve ser contínua.
b. O verbo que se utiliza está na voz passiva. Paulo não diz: “vos
transformeis”, mas “deixai-vos transformar”. A transformação é
basicamente uma obra do Espírito Santo. Não é outra coisa que a
santificação progressiva. “Nós todos, com o rosto descoberto, refletindo
a glória de Deus, vamos sendo transformados à Sua imagem de um grau
de glória a outro, e isto vem do Senhor, que é o Espírito” (2Co 3:18,
tradução de W. Hendriksen).
c. Não obstante, o verbo tem o modo imperativo. Os crentes não são
completamente passivos. Sua responsabilidade não fica cancelada.
Devem permitir que o Espírito faça Sua obra em seus corações e em suas
vidas. Seu dever é cooperar até o máximo de sua capacidade. Veja-se Fp
2:12, 13; 2Ts 2:13.
Finalmente, o apóstolo descreve o glorioso resultado desta
transformação contínua: “para que comproveis qual seja a vontade de
Deus …” Esta é uma declaração muito significativa. Demonstra que para
discernir a vontade de Deus para sua vida, os crentes não podem
depender meramente de sua própria consciência. Sem dúvida, a
consciência é muito importante, mas deve ser vez após vez enviada,
constantemente, à escola da Escritura para receber instrução do Espírito
Santo. É desta maneira que os crentes tomam consciência e permanecem
Romanos (William Hendriksen) 537
conscientes da vontade de Deus. Qual vontade? A de decreto ou a de
preceito? A última, naturalmente. Veja-se Dt 29:29. Deste modo a
vontade de Deus se transformará cada vez mais num componente bem
estabelecido ou comprovado da consciência e vida dos filhos de Deus.
Quando mais viverem em consonância com essa vontade e a aprovarem,
tanto mais aprenderão por meio de sua experiência a conhecer tal
vontade, e a alegrar-se em tal conhecimento. Exclamarão: “A Tua
vontade é o nosso prazer”.
E qual é o conteúdo dessa vontade preceptiva? Em outras palavras,
o que é que Deus deseja que sejamos e façamos? A resposta é: “o que é
bom e agradável e perfeito”. 339
É provável que Paulo soubesse que era muito necessário acrescentar
estas palavras. É como se estivesse dizendo aos romanos que o que vale
diante de Deus não é quão importantes eles são ou se consideram ser (cf.
o contexto imediato, v. 3; veja-se também Rm 11:17–21), ou quão
carismáticos (vv. 4–8), ou quão fortes (cf. 15:1) são; mas antes, quão
agradecidos, amantes e comunicativos são. O que importa é quão
obedientes são ao mandamento que se dirige a cada um em particular:
“Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e
de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O
segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
Vejam-se Dt 6:5; Lv 19:18; Mt 22:37, 39; Mc 12:30, 31; Lc 10:27; Rm
13:8–10. Diante de Deus, este tipo de vida é bom e agradável. A meta de
uma vida tal não é nada menos que a perfeição. Veja-se Mt 5:48 e
acrescente-se Fp 3:7–11.

339
A tradução “sua boa, agradável e perfeita vontade” é incorreta. As palavras τ_ _ψαθ_ν κα_
ε_άρεστου κα_ τέλειον indicam que o que Deus quer é que seus filhos sejam e façam o que aos Seus
vista é bom, agradável e perfeito.
Romanos (William Hendriksen) 538
B. Atitude do justificado para com o corpo de Cristo. Rm 12:3–8

Em imediata conexão de pensamento com o v. 2 Paulo prossegue:


3. Porque em virtude da graça que me foi dada, digo a cada um de
vós que não pense de si mesmo mais altamente que o que deve pensar,
mas pense (de si mesmo) sobriamente, cada um segundo a medida da fé
que Deus lhe tenha outorgado.
Como já vimos, devido a certas condições presentes na igreja de
Roma, e talvez também devido a experiências recentes com a igreja de
Corinto (1Co 12:14–31), Paulo formula uma advertência contra uma
autoestima exagerada. Ele promulga um mandato específico (“Digo”; cf.
Mt 5:22, 28, 32, 34, 39, 44), apela à sua autoridade como apóstolo (“pela
graça que me foi dada”; veja-se sobre Rm 1:15, e se dirige a todos sem
exceção (“cada um de vós”). Por meio de um jogo de palavras difícil de
reproduzir — algo assim como “não superestimar-se (a si mesmo) para
além de uma verdadeira estimativa” — ele exorta a cada um a ser sóbrio,
judicioso, a ter bom sentido. É como se dissesse a cada membro da igreja
de Roma: “Não pense que você é O ÚNICO! A outra pessoa também
tem dons. Cada um deve avaliar-se a si mesmo não se medindo com sua
própria vara, e sim conforme a medida da fé que Deus lhe outorgou”.
O termo fé é usado aqui em seu sentido mais habitual, ou seja, o
dessa confiança em Deus por meio da qual uma pessoa se aferra às
promessas de Deus. No presente contexto, não obstante, o apóstolo não
está pensando em termos quantitativos (uma quantidade grande ou
pequena de fé). Está pensando, antes, nas diversas maneiras em que cada
pessoa em particular pode ser uma bênção para outros e para a igreja em
geral por meio do uso do dom particular que Deus tenha outorgado a
cada um, junto com sua fé. Está exortando a cada um daqueles a quem se
dirige a reconhecer a diversidade de dons que há dentro da unidade da fé,
e a perguntar-se: “Como posso fazer o melhor uso do meu dom para
poder beneficiar a cada um e a todos em geral?”
Romanos (William Hendriksen) 539
4, 5. Porque assim como temos muitos membros num corpo, e nem
todos estes membros têm a mesma função, assim nós, que somos muitos,
somos um corpo em Cristo, e individualmente membros os uns dos outros.
Esta comparação da igreja e seus membros com o corpo humano e
suas partes é frequente e conhecida nas cartas de Paulo. Pouco tempo
antes Paulo fez uso desta ilustração ao escrever aos coríntios. Ele se
referiu a este símbolo para rebater divisões pecaminosas (1Co 3:3, 4).
Tinha escrito: “Nós, sendo muitos, somos um corpo” (1Co 10:17); e
“Vós sois o corpo de Cristo, e cada um de vós é parte do mesmo” (1Co
12:27). Mais adiante — quer dizer, depois de escrever Romanos — ao
compor Colossenses, com seu tema central, Cristo, o preeminente, o
único, e absolutamente suficiente Salvador, o apóstolo chamaria a igreja
“o corpo de Cristo” (Cl 1:24). Passaria a descrever a Cristo como “a
cabeça, a partir da qual todo o corpo, sustentado e unido pelas juntas e os
ligamentos, cresce com um crescimento (que é) de Deus” (Cl 2:19).
Incluiria também isto bela admoestação: “E que a paz de Cristo, para a
qual fostes chamados num corpo, governe em vossos corações” (Cl
3:15). Em sua epístola aos efésios, também escrita durante aquela
primeira prisão romana, e que tem como tema, A unidade de todos os
crentes em Cristo, apareceria vez após vez (Ef 1:23; 4:4, 12, 15, 16, 25)
a descrição da igreja como um corpo em Cristo, um corpo do qual todos
os crentes são membros.
Aqui, em Rm 12:4, 5, Paulo enfatiza (a) a unidade orgânica do
corpo (“muitos membros num corpo”), (b) a predeterminada diversidade
dos membros e de suas funções (“e nem todos estes membros têm a
mesma função”), e (c) os benefícios e necessidades mútuas destes
diversos membros que estão unidos em Cristo (“… assim nós, que somos
muitos, somos um corpo em Cristo, e individualmente membros uns dos
outros”).
6–8. Além disso, tendo diferentes dons, segundo a graça que nos foi
dada, se (o dom de uma pessoa é) de profetizar, (então que o exerça)
segundo a norma da fé: ou se (é o de emprestar) serviço prático, então que
Romanos (William Hendriksen) 540
o use em (prestar) esse serviço prático: ou se alguém é mestre, (que exerça
seu dom) em ensinar; ou se alguém é exortador (que use esse dom) em
exortar. Aquele que contribui às necessidades de outros (faça-o) sem
motivos ulteriores. Aquele que exerce a liderança (faça-o) com diligência.
Aquele que mostra misericórdia (faça-o) com alegria.
Nota sobre este resumo de dons e funções
1. O mesmo se distingue por seu estilo abreviado. As palavras
implicadas, porém não expressas, são numerosas.
2. Paulo descreve sete “dons” distribuídos entre indivíduos ou
grupos de indivíduos que, ao fazer uso destes dons, exercer as funções
correspondentes.
3. As sete funções são:
a. profetizar
b. brindar serviço prático
c. ensinar
d. exortar
e. contribuir às necessidades de outros
f. exercer liderança
g. demonstrar misericórdia
4. Entre os comentaristas há diferenças de opinião consideráveis
com relação ao significado destas funções.
5. Podem achar-se listas similares em 1Co 12:8–10, onde se
mencionam nove funções; em 1Co 12:28, 29, que menciona oito; e em
Ef 4:11, que menciona quatro (ou, segundo alguns, cinco, mas veja-se o
C.N.T. sobre Ef 4:11.)
6. É evidente que Paulo crê que não só os ministros, anciãos e
diáconos têm dons, mas cada crente tem um ou mais dons ou talentos
divinamente outorgados. O apóstolo mostra como se devem usar estas
charismata para beneficiar à igreja e, de fato, à humanidade em geral.
Note-se a frase “segundo a graça que nos foi dada”. Ninguém tem
direito de alardear o seu dom. Cada membro deve ter em mente que sua
Romanos (William Hendriksen) 541
habilidade em servir a outros é um produto da graça de Deus, de Seu
amor por quem não merece.

a. Profetizar
Paulo considerava que o dom e função da profecia era tão
importante que tanto em 1Co 12:28 como em Ef 4:11 é mencionado
imediatamente depois do apostolado.
Há uma pergunta que se tem feito e merece consideração: “Como é
que aqui em Rm 12, onde Paulo menciona o modo em que as pessoas
que receberam diversos dons têm que conduzir-se no desenvolvimento
de suas diversas funções, não há menção alguma da função de um
apóstolo?” Alguns respondem: “Isto demonstra que nenhum apóstolo
teve que ver com a fundação de tal igreja ou com sua história anterior”.
Mas um argumento assim baseia muito sobre muito pouco. Veja-se
também a Introdução. Até a seguinte declaração: “Paulo guarda silêncio
sobre este assunto de dizer a outro apóstolo como deve conduzir-se, visto
que teria sido algo muito incorreto para um apóstolo formular normas
para outro apóstolo”, não é totalmente verdade, como o demonstra Gl
2:11s., embora sob circunstâncias normais provavelmente seja correta. A
verdade é que Paulo já tinha aludido a seu próprio ofício apostólico (em
Rm 12:3), e também que neste momento particular não havia nenhum
apóstolo em Roma. Se tivesse havido algum, não teria sido seu nome
incluído na lista de saudações que achamos no cap. 16?
Voltando ao tema da importância que Paulo adjudica ao dom da
profecia, deve notar-se que em 1Co 14:1 diz aos receptores: “…
procurem ardentemente os dons espirituais, especialmente o dom da
profecia”. No v. 39 desse mesmo capítulo é escritor acrescenta: “Assim
que, irmãos, desejem profetizar”.
Uma razão importante para dar um valor tão alto ao dom de
profetizar deve ter sido que a mensagem do verdadeiro profeta não era
produto de sua própria intuição ou ainda de seu próprio estudo e
Romanos (William Hendriksen) 542
investigação, mas de uma revelação especial. O profeta recebia sua
mensagem diretamente do Espírito Santo (At 11:27, 28: note-se: “e pelo
Espírito predisse”). Do mesmo modo, em At 21:11 é citado Ágabo, um
destes profetas — havia outros, tanto homens como mulheres (At 13:1;
21:9) — quem disse o seguinte: “O Espírito Santo diz, Deste modo
atarão os judeus de Jerusalém o dono deste cinto …” (At 21:11).
Outra razão pela qual na lista paulina de dons espirituais a profecia
ocupa um lugar tão importante é seu conteúdo amplo. Não estava de
maneira nenhuma limitado à declaração de uma predição ocasional.
Incluía edificação, exortação, consolação e instrução (1Co 14:3, 31).
Não obstante, nem todo aquele que se apresentava como profeta
eram necessariamente um profeta genuíno. Nem todo o que dizia um
“profeta” era necessariamente certo. Daí que, além de dar à igreja
profetas, Deus também Se ocupou de que houvesse gente capaz de
distinguir entre o profeta verdadeiro e o falso (1Co 12:10; 14:29) e entre
a verdade e a mentira. Em harmonia com isto, Paulo escreve aqui em Rm
12:6: “Se (o dom de uma pessoa é) de profetizar, (então que o exerça)
segundo a norma da fé”. Aqui alguns intérpretes entendem a palavra
“fé” no sentido objetivo, como se o apóstolo estivesse referindo-se à
verdade revelada de Deus, o evangelho. Outros, no entanto, aceitam o
sentido subjetivo, e consideram que a palavra “fé” indica confiança em
Deus e em Suas promessas.
Visto que faz um momento (v. 3) Paulo já havia usado esta palavra
no último sentido mencionado, o que com relação ao que estamos
tratando, tem um sentido excelente, não precisamos buscar mais. O
profeta não deve dizer nada que esteja em conflito com sua fé em Cristo.
Por exemplo, pode sentir-se tentado, por razões egoístas, a proferir
declarações alarmantes nas quais ele mesmo não crê. É-lhe advertido que
não o faça. Ele é e deve seguir sendo a boca de Deus para o povo.
Romanos (William Hendriksen) 543
b. Prestar serviço prático
O apóstolo usa a palavra diakonia, quer dizer, serviço prático,
ministério. Cf. 1Co 12:5; Ef 4:12. Este serviço ou ministério pode ser de
vários tipos. No relato sobre Marta e Maria (Lc 10:40) o serviço era
qualquer trabalho necessário para preparar a comida. “A diakonia” da
palavra é mencionada em At 6:4; a da reconciliação em 2Co 5:18. Visto
que no caso que nos ocupa Paulo está enumerando diversas funções que
têm que ver com a vida da igreja, é natural aqui relacionar o termo com
esse tipo particular de tarefa que também nós adjudicamos ao diaconato,
quer dizer, ao ofício efetuado pelos diáconos. Como resultado, Paulo está
animando os que estão qualificados para este tipo de tarefa a aceitar a
oportunidade de fazê-lo.
Pode vir a ser bastante difícil para nós avaliar a importância que o
apóstolo dava à obra do diácono, o ministério eclesiástico da
misericórdia. Deveríamos ter em mente, porém, que nos dias do apóstolo
muitos crentes estavam longe de ser ricos. Alguns eram escravos ou
libertos. De fato, nesta mesma epístola aos romanos (Rm 15:25) o
apóstolo manifesta a razão pela qual não pode viajar diretamente a Roma
sim deve visitar primeiro os santos de Jerusalém. Em outro lugar ele diz:
“Vim a Jerusalém para trazer para meu povo dons para os pobres” (At
24:17). Veja-se também 1Co 1:26s, 16:1s, 2Co 8:1s. Merece atenção
especial que o mesmo homem que insistia na pureza doutrinal estivesse
ao menos igualmente interessado na causa de mostrar generosidade
ajudando os pobres. Em 2Co 8:7, 8 ele conecta de modo notável a
“graça” de dar para cobrir as necessidades dos pobres com uma doutrina
central da religião cristã, ou seja, a da humilhação voluntária de Cristo a
favor dos pecadores. Ele diz:
“Mas como abundais em tudo … ocupai-vos também em abundar
nesta graça (de dar) … Porque já conheceis a graça de nosso Senhor
Jesus Cristo, que sendo rico, por amor a vós fez-se pobre, para que vós
por meio de sua pobreza pudésseis ser enriquecidos”.
Romanos (William Hendriksen) 544
Do mesmo modo hoje em dia ser diácono não é menos importante
que ser ancião. A causa de Cristo é igualmente servida por todos eles.
Em cada um se reflete o amor de Cristo.

c. Ensinar
O profeta recebia sua mensagem por revelação direta. O mestre
derivava seu conhecimento do estudo do Antigo Testamento e dos
ensinos de Jesus, de qualquer maneira que estes fossem acessíveis. Pelo
fato de que as revelações diretas nem sempre ocorrem e que, por outro
lado, o depósito da revelação divina que há nas Escrituras — que no
tempo de Paulo abrangia o Antigo Testamento — é de uma importância
permanente e capital, fica claro que também para o mestre há um lugar
muito importante e determinado dentro da vida da igreja. Por isso, “se
alguém é mestre (que exerça seu dom) em ensinar”.

d. Exortar
At 13:15 deixa claro que na sinagoga, depois da leitura de uma
porção da Lei e dos Profetas, os governadores da sinagoga convidaram
Paulo e Barnabé para dar uma palavra de exortação. Esse era o costume
naqueles dias. Aqui em Rm 12 os que tinham sido abençoados com o
talento de exortar são estimulados a fazer uso do mesmo para benefício
de todos. Hoje em dia o ministro ou pastor do evangelho é — ou ao
menos deveria ser — adequadamente equipado para ocupar-se tanto do
ensino como da exortação. Ele não somente ensina doutrina, mas
também demonstra como se deve aplicar a doutrina à vida de tal maneira
que todos sejam edificados e animados. Entre os leigos também podem
haver excelentes mestres e exortadores.
Romanos (William Hendriksen) 545
e. Contribuir às necessidades da gente
Paulo escreve: “Aquele que contribui às necessidades de outros
(faça-o) sem motivos ulteriores.”
As razões pelas quais Paulo dedicava tanta atenção para assinalar a
importância do ministério da misericórdia (ou seja, grande necessidade e
o exemplo de Cristo) já foram dadas. Veja-se o ponto b. acima. É assim
que aqui nos pareceria detectar, à primeira vista, uma repetição do ponto
b. No entanto há uma diferença. O diaconato tem que ver com a
benevolência eclesiástica. Por meio dos diáconos, a igreja inteira,
funcionando como ente unido, ocupa-se desta importante tarefa. Mas é
preciso mais que isso. Além da benevolência coletiva deve haver
também uma benevolência pessoal. Que os que possam funcionar nesta
capacidade o façam! Visto que o Senhor os abençoou tão
abundantemente, que sejam também eles uma bênção para outros.
Mas ao fazê-lo devem estar seguros de dar sua contribuição “sem
motivos ulteriores”. 340 E aqui nos vêm imediatamente à memória, como
exemplos de contribuições com motivos ulteriores, os denunciados por
Malaquias (Ml. 1:13, 14) e o caso de Ananias e Safira (At 5:1s).
Verdadeiros doadores são os que dão de todo coração, sempre lembrando
o que eles mesmos receberam de seu Senhor e Salvador Jesus Cristo.

f. Exercer liderança
Há quem opina que Paulo, ao colocar a f. entre e. e g. — vale
lembrar que ambos têm que ver em algum sentido com a benevolência
— quer referir-se aqui às pessoas que estava a cargo da benevolência da
igreja. No entanto, a e. não tem nada que ver com o diaconato, e g. não

340
Em grego: _ν _πλότητι. No essencial, o significado de _πλο_ς, -_, -ο_ν é o simples, não
complicado nem composto; e por conseguinte, _ν _πλότητι significaria “em simplicidade”, quer dizer,
com uma só meta em mente. Isto, por uma transição muito fácil se transforma em “sem motivo
ulterior”, embora “sem reserva”, e daí “generosamente” também merece consideração. Cf. 2Co 8:2;
9:11, 13. Vejam-se também Ef 6:5; Cl 3:22; com mente indivisa, com firmeza de coração.
Romanos (William Hendriksen) 546
se refere necessariamente ao que em geral entendemos como
benevolência.
Por outro lado, em outras passagens em que encontramos a mesma
palavra para liderança que se usa aqui em Rm 12:8, a referência aponta a
supervisores, anciãos (1Ts 5:12; 1Tm. 3:4; 5:17).341 E mesmo quando
damos a devida consideração ao fato de que o apóstolo não tem a
intenção de enumerar todos os dons e funções espirituais dos membros
da igreja, não nos pareceria estranho que ele incluísse em sua lista o
ministério dos diáconos, tal como o faz (veja-se ponto b.), mas omitisse
completamente o dos presbíteros? No que respeita à sua idade e
dignidade estes homens eram chamados presbíteros ou anciãos; no que
respeita à natureza de sua tarefa eram chamados supervisores ou
superintendentes. Visto que era uma carga pesada a que posava sobre os
ombros destes homens, e que a tentação de evitar tal responsabilidade
era grande, admoesta-se a exercerem sua liderança “com diligência”.

g. Demonstrar misericórdia
Os doentes, moribundos e angustiados necessitam visitas da parte
de alguém que saiba como comunicar verdadeira compaixão e
compreensão cristã, alguém que demonstra misericórdia com alegria.
“Visto que assim como nada dá mais consolo ao doente ou a qualquer de
outra maneira aflito que ver os que prazerosa e rapidamente o assistem,
do mesmo modo o observar tristeza no rosto dos que lhes brindam
assistência os faz sentir desprezados” (João Calvino, em seu comentário
a esta passagem). Só queria acrescentar a isso que uma visita breve e
prazerosa da parte de um membro sábio e simpático, que esteja disposto
a ajudar de qualquer maneira que for possível, é de muito maior
benefício que o quase inacabável relato de todos os horrendos detalhes

341
Note-se a proeminência da palavra προίστημι, em forma de particνpio, em todos estes casos.
Também em 1Tm. 3:1 utiliza-se o sinônimo “supervisor”, e em 1Tm. 5:17 o sinônimo
“presbíteros”(anciãos).
Romanos (William Hendriksen) 547
da operação sofrida por outro visitante, ou seja, o Sr. Triste. É certo: “O
coração alegre constitui bom remédio; mas o espírito triste seca os
ossos” (Pv 17:22). Isto vale tanto para aquele que visita como para
aquele que é visitado.

C. Atitude do justificado para com outros cristãos. Rm 12:9-13

A conexão entre os vv. 8 e 9 é estreita; demonstrar misericórdia


prazerosamente pressupõe um amor que é sincero. Por isso Paulo diz:
9. O amor deve ser genuíno. Aborrecei o mal; apegai-vos ao bem.
É razoável crer que o “amor” do qual Paulo fala aqui abrange mais
que o “amor fraternal” mencionado no v. 10. O apóstolo menciona
primeiro o conceito mais amplo, e logo o mais restringido. O que ele
sublinha em primeiro lugar é que o amor, em qualquer sentido que é
entendido — quer seu objeto seja Deus, ou irmãos na fé, ou próximos,
ou ainda “inimigos” — deve ser “sem hipocrisia”, quer dizer; não
fingido, mas sincero e genuíno. Não deve ser falso, nem deve consistir
em palavras ocas. Lembre-se a declaração: «Tuas obras falam tão alto
que não consigo ouvir tuas palavras».
Em consonância com isto encontramos a exortação: “Aborrecei o
mal”. Isto não se refere somente à falta de sinceridade no amor, ou seja a
pretensão, que deve ser evitada. Ao contrário, o que Paulo diz é
equivalente a isto: «Evitai qualquer coisa que seja má; apegai-vos a
qualquer coisa que seja boa». Deve ficar claro que a ênfase de Paulo
recai no ágape, quer dizer, no amor. 342

342
Segundo Ridderbos, op. cit., p. 281, a palavra _γάπη, quando Paulo a usa, quase sempre refere-se
ao amor que os crentes sentem uns pelos outros.
Segundo se vê na concordância, o apóstolo emprega tal termo 80 vezes. Sem dúvida. é verdade
que em muitíssimas destas ocasiões agapē refere-se ao amor mútuo dos crentes. No entanto, quando
do número total de ocasiões em que agapē aparece tiram as referências a (a) agapē pelo próximo, (b)
agapē com referência a Deus, e (c) agapē em geral, sem menção de sujeito ou objeto, então a cifra
resultante de casos em que agapē indica amor fraternal, embora alta, não resulta ser tão alta para dizer
que “quase sempre se refere ao amor mútuo entre crentes”. Nos 9 casos em que aparece em Romanos,
Romanos (William Hendriksen) 548
343
10. Tende afeto uns aos outros com amor fraternal.
Sempre que Paulo pensa nos crentes, considera-os membros de uma
família (no Senhor) (Ef 3:15). Todos têm um mesmo Pai (cf. Rm 8:15;
Gl 4:5). Este pensamento naturalmente, está em total consonância com
os ensinamentos de Jesus (Mt 12:46–50 e passagens paralelas).
Segundo este ensino os laços que unem os membros desta família
espiritual são muitos, mas seguros e duradouros, que os que unem aos
membros de uma família meramente física (Lc 14:26). Portanto, o que o
apóstolo diz é que os membros desta família espiritual deveriam fazer
tudo o que está em seu poder para ser afetuosos e permanecer tendo afeto
uns aos outros com terno amor.
Há um sentido em que os crentes deveriam amar a todos, incluindo
até aos que os odeiam e perseguem (ver v. 14; e acrescente-se Lc 6:35).
Mas esse terno afeto fraternal que inclui compreensão, intimidade e
unidade espiritual, fica reservado para o círculo mais íntimo. Os crentes
têm o direito e o dever de discriminar entre quem ama a Deus e quem O
odeia. Como diz o apóstolo em outra parte: “Façamos o bem a todos,
especialmente aos que pertencem à família da fé” (Gl 6:10).
Paulo acrescenta: Preferi-vos em honra uns aos outros.
O que significa isso, e como é possível? Das muitas interpretações
que se ofereceram notem-se as três que seguem:

somente 2 se referem a amor que os santos sentem uns pelos outros (Rm 12:9; 14:15); 2 se referem a
amor em relações entre pessoas (ambas em Rm 13:10); as 5 restantes devem ver com o amor que
procede de Deus (Rm 5:5; 5:8), de Cristo (Rm 8:35), de Deus e descrito como “o amor de Deus que é
em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 8:39), e do Espírito (Rm 15:30). Em 2 Tessalonicenses agapē
refere-se ao amor mútuo entre crentes só uma vez (Rm 1:3). Nos outros dois casos encontramos que
um se refere ao amor pela verdade (Rm 2:10), o outro ao amor de — quer dizer, que procede de Deus
(Rm 3:5). Em outros lugares das epístolas de Paulo, no entanto, o amor mútuo dos santos é
mencionado frequentemente: Gl 5:13; Ef 1:15; 4:2, 15, 16, etc.
A conclusão a que chegamos é que no Novo Testamento a situação entre φιλία e _γάπη é algo
similar a que há entre φιλέω e _γαπάω. Só uma vez aparece φιλία no Novo Testamento (no sentido de
amizade, Tg 4:4). Mas está também φιλαδελφία (Rm 12:10; 1 Ts. 4:9; Hb 13:1; 1Pe 1:22; e 2Pe 1:7
duas vezes). Com relação aos verbos cognatos, veja-se o C.N.T. sobre João, nota 306.
343
φιλόστοργοι = nom. pl. masc. de φιλόστοργος, devoto, dedicado, meigamente afetuoso. No Novo
Testamento esta palavra só aparece nesta passagem.
Romanos (William Hendriksen) 549
a. O outro é aquela pessoa em que Cristo está, para mim,
misteriosamente presente. Por conseguinte devo honrá-la mais que a
mim mesmo. 344
Avaliação: Devo supor, então, que Cristo não está presente em todo
crente, até em mim mesmo?
b. Não espere que outros te louvem, mas sê o primeiro em louvar
em toda ocasião em que isto possa fazer-se em harmonia com a verdade.
Avaliação: Embora seja conselho excelente, é isto o que a passagem
significa? Provavelmente que não. Parece requerer que se considere o
outro crente digno de maior honra que eu, e que por essa razão devo
estimar mais a ele que a mim mesmo.
c. A exortação não demanda que eu pense que qualquer outro crente
seja em tudo mais sábio e capaz que eu. Mas pede que com mente
humilde eu considere o meu irmão melhor que eu. Veja-se Fp 2:3.
Um crente sabe que seus próprios motivos não são sempre puros e
santos (1Co 11:28, 31). Este é o tipo de conhecimento de si mesmo que
faz com que ele às vezes ore dizendo: “Perdoa-me, ó Senhor, minhas
boas obras”. Mas, por outro lado, o crente não tem o direito de
considerar que os motivos de seus irmãos ou irmãs no Senhor sejam
maus. A menos que se evidencie claramente um padrão consistentemente
mau na vida dos irmãos na fé, suas boas obras visíveis devem ser
atribuídas a bons motivos, não a maus. Daí que o filho de Deus que
aprendeu a conhecê-lo o suficiente para sentir-se às vezes inclinado a
expressar o lamento do publicano (Lc 18:15) ou de Paulo (Rm 7:24)
considerará os outros melhores que ele mesmo.
11. Nunca vos atraseis em mostrar entusiasmo. Sede radiantes do
Espírito, servindo ao Senhor.
Não obstante, por ser a natureza humana o que é — e até os santos
são ainda pecadores — não é razoável esperar que aqueles a quem Paulo
se dirige mostrem entusiasmo neste assunto de preferir-se uns aos outros

344
Assim o entende Cranfield, op. cit., Vol. II, p. 633.
Romanos (William Hendriksen) 550
em honra. Por outro lado, a religião sem entusiasmo quase nem merece o
nome de religião.
Naturalmente, a fonte do entusiasmo não está no homem. Se uma
pessoa vai ser “inflamada” pelo fogo do entusiasmo, é o Espírito Santo
quem deve fazê-lo. Paulo diz: “Nunca vos atraseis em mostrar
entusiasmo”. E acrescenta imediatamente: “Sede radiantes do Espírito”.
Não só devem os crentes preocupar-se de que não apaguem o Espírito,
de que não resistam ao Espírito, e até que não entristeçam o Espírito; ao
contrário, devem pedir fervorosamente o Espírito Santo que os encha de
zelo, e do entusiasmo necessário para cumprir devidamente os seus
deveres cristãos e obter sua meta. Só então se cumprirá o mandato.
“Sede radiantes do Espírito” quando puderem cantar do fundo do
coração:
Como os querubins eu te quero amar;
que se consuma de paixão meu ser;
pois em meu peito se elevará um altar
onde arda o fogo de Teu grande poder.
Estrofe tirada de
“Habita em minha alma, Santo Espírito”, de G. Croly, 1854.
Então eles já não permanecerão passivos, porém com alegria e
entusiasmo se aproximarão da tarefa de servir ao Senhor real e
consagradamente. Observe-se que quando o crente realmente é radiante
do Espírito, não o demonstra recorrendo a manifestações de excitação
religiosa, mas cumprindo humildemente seu mandato de servir ao
Senhor.
12. Alegrem-se na esperança, sejam pacientes na tribulação,
perseverem na oração [NVI].
A esperança da salvação futura (cf. Rm 5:2, 4, 5; 8:24, 25; 15:4, 13)
estimula a alegria presente; tanto assim, que os filhos de Deus chegam a
ser capazes de perseverar 345 no meio da aflição. Esta perseverança

345
Veja-se a nota 235.
Romanos (William Hendriksen) 551
indica a força de resistir sob pressão, e a aplicação persistente de tal
força. Não é produto da sabedoria ou habilidade humanas, e sim da graça
de Deus. Por isso Paulo se apressa a acrescentar: “Perseveram na
oração”.
Sem oração constante essa alegria e perseverança seriam
impossíveis. A oposição que procede do mundo e as dúvidas que vêm de
nosso interior resultariam ser muito fortes. Na verdade, sem
perseverança na oração seria impossível obedecer as exortações do
capítulo 12 ou às de outras passagens. Paulo continua:
13. Ajudai a aliviar as necessidades dos santos. Praticai
diligentemente a hospitalidade.
A necessidade urgente de “alívio” já foi explicada. Veja-se vv. 6–8,
sob o título Serviço prático. Aqui no v. 13 o apóstolo fixa nossa atenção
de modo especial naqueles santos que têm necessidade de alojamento.
Encontrar um lugar bom e seguro onde passar a noite, ou talvez até
vários dias, não era coisa fácil naquele então. Por outro lado o apóstolo,
que era um grande viajante, entendia esta necessidade. Deseja que
aqueles a quem se dirige se interessem vivamente no assunto de prover
bons lugares de alojamento. Deseja que pratiquem hospitalidade
prazerosamente, não a contragosto, algo que parece ter sucedido em
certas ocasiões (1Pe 4:9). Não somente deve o supervisor ser uma pessoa
hospitaleira (1Tm. 3:2; Tt 1:8), mas todo crente deve sê-lo. O que
sempre deve ficar bem claro é que qualquer coisa que se fizer pela
pessoa que necessita hospitalidade, é feita por Aquele que no grande Dia
do Juízo vai dizer: “Era forasteiro, e me hospedastes” (Mt 25:35). O que
o apóstolo insiste, portanto, é que os crentes não somente demonstrem
hospitalidade quando lhes é requerida, mas tomem a iniciativa de
oferecê-la. Devem praticar este favor … com afã! Veja-se também Gn
18:1–8; Hb 6:10; 13:2.
Romanos (William Hendriksen) 552

D. Atitude do justificado para com os estranhos, incluindo os


inimigos. Rm 12:14–21

14. Abençoai os que vos perseguem.


A relação que há entre o parágrafo precedente (sobre o amor
fraternal) e este (sobre ser perseguido) não é tão remota como parece. De
fato, pode haver uma dupla conexão:

a. material.
Oferecer hospitalidade (v. 13) significa estar ocupado numa boa
obra. Segundo 1Pe 3:17s, o mundo anticristão persegue os crentes até
por fazer o bem!

b. verbal.
No original o mesmo verbo346 utilizado no v. 13 reaparece no v. 14.
O significado contextual das duas formas que se usam — um no v. 13,
outro no v. 14 — embora esteja estreitamente relacionado, não é
exatamente o mesmo. Em português obtém-se um resultado similar
traduzindo ambas as exortações como segue:
Persegui a hospitalidade (v. 13).
Abençoai os que vos perseguem (v. 14).
No primeiro caso perseguir significa praticar. No segundo significa
acossar ou atormentar. O que temos aqui no v. 14 é claramente um eco
das palavras de Jesus: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos
perseguem” (Mt 5:44; cf. Lc 6:27s; 1Co 4:12). Abençoar significa, com
relação a isso, “invocar a bênção de Deus sobre”. Veja-se também Lc
2:34; Hb 11:20.
Paulo incluso acrescenta: Abençoai e não amaldiçoeis.

346
διώκω, no v. 13 é nom. pl. pres. part; no v. 14 a tipificação é a mesma, exceto que é em caso accus.
Romanos (William Hendriksen) 553
Em outras palavras, nem o menor desejo que se derrame a ira divina
sobre nossos perseguidores deve aparecer misturado com nossa oração
de que o Senhor os abençoe.
Que esta exortação vai contra nossa pecaminosa natureza humana
fica indicado de modo notável por Calvino. Este, ao comentar sobre a
mesma, revela uma aguda percepção psicológica:
“Tenho dito que é mais difícil que abster-se da vingança contra
quem nos ofenda, embora muitos, embora não apelem à força contra seus
inimigos nem sequer desejam prejudicá-los, sim, gostariam que lhes
sobreviesse algum dano ou ruína por alguma parte. E embora eles são tão
pacíficos que não desejam nenhum mal aos seus inimigos, muito
dificilmente encontraremos um entre cem que deseje para seus
adversários saúde e prosperidade; antes pelo contrário, acharemos que a
maioria solta as rédeas e se lança a amaldiçoá-los. Mas Deus por meio de
sua palavra, não somente refreia nossas mãos de fazer o mal, mas
também aplaca os amargos sentimentos interiores; e não só isso, mas
também deseja que fôssemos solícitos para o bem-estar daqueles que
injustamente nos prejudicam e buscam nossa destruição” (Romanos, p.
329, México, 1961).
Um começo de obediência a este mandamento é possível para quem
já não permitem que ser moldado segundo o critério deste tempo (mau),
e que se deixam transformar pela renovação de sua mente (Rm 12:2).
15. Alegrai-vos com os que se alegram; chorai com os que choram.
Uma maneira de demonstrar para nós mesmos que nossos corações
estão onde devem estar é identificar-nos com outras pessoas, de tal modo
que não somente choremos com os que choram, mas até cheguemos a
nos alegrar com os que se alegram; e isso não só com os irmãos na fé, e
sim com todos aqueles com os quais entramos numa relação de certa
amizade, sejam crentes ou não crentes. Se realmente amarmos o nosso
próximo como a nós mesmos (Lc 10:27), isso deveria ser possível.
Porém nunca será possível para nós identificar-nos realmente com outra
pessoa, seja esta crente ou incrédula, a menos que pela graça soberana de
Romanos (William Hendriksen) 554
Deus se grave profundamente em nosso coração e mente, por obra do
Espírito Santo, a verdade de que Cristo tomou sobre Si nossa culpa e
miséria. O resultado será certamente o avanço da glória de Deus (Mt
5:16), a entrada em nossos corações da paz de Deus que ultrapassa todo
entendimento (Fp 4:7), e talvez até ganhar nosso próximo para Cristo
(1Pe 3:1).
O oposto a alegrar-se é estar cheio de inveja (Tt 3:3); e a
contrapartida de chorar é deleitar-se (com o mal alheio). Note-se o triste
resultado (Pv 17:5).
16. Vivei em harmonia uns com os outros. Não sejais altivos, mas
associai-vos rapidamente com a pessoa humilde. Não sejais presumidos.
Exorta-se os crentes a estar de acordo entre eles, indubitavelmente
para exercer uma sã influência entre aqueles que ainda estão fora do
reino (veja-se o contexto).
Agora, para viver em harmonia é necessário que toda manifestação
de orgulho pecaminoso seja eliminado. Daí que Paulo diga: “Não
levanteis vossos olhos ao que é alto”, ou seja, “Não sejais altivos” (cf.
Rm 11:20), ou algo semelhante. Que tal é o sentido geral da passagem se
deduz da exortação que se acrescenta: “não sejais presumidos”.
Uma tradução, no entanto, diz: “Não vos ocupeis de coisas elevadas
mas condescendei com as pessoas de baixa posição”. Hoje em dia esta
tradução, é especial por causa do significado pejorativo que se atribui à
palavra “condescender” (benignamente baixar ao nível dos inferiores!) já
não serve. Além disso, é difícil crer que Paulo faria um contraste entre
coisas e gente. A tradução da Bíblia de Jerusalém: “…sem pretensões de
grandeza, mas sentindo-vos solidários com os mais humildes” tampouco
é satisfatória, em especial porque em outros lugares a palavra que se usa
no original refere-se não a coisas mas a gente que, em certo sentido, é de
sob condição. 347 O que Paulo está dizendo é: «Não sejais altivos, mas

347
As seguintes traduções de ταπεινός merecem consideração:
a. humilde; (pessoa ou, se em plural, gente) de baixa condição (Lc 1:52; Tg 1:9; 4:6; 1Pe 5:5).
b. humilde (de coração) (Mt 11:29).
Romanos (William Hendriksen) 555
sim associai-vos rapidamente com a gente humilde”. Veja-se também Lc
14:13.
Estava Paulo talvez pensando nas belas palavras de Pv 3:6, 7? Aqui
estão: “Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele endireitará as tuas
veredas. Não sejas sábio aos teus próprios olhos.”
No v. 14 Paulo tinha dado o seguinte mandato positivo: “Abençoai
aos que vos perseguem”. E após repetir a palavra “Abençoai”, ele tinha
acrescentado a proibição, “e não amaldiçoeis”. Agora amplia esta
proibição ao dizer:
17. Não devolvais mal por mal a ninguém.
Aqui se combatem dois males relacionados:
a. Um espírito vingativo, o desejo de desforrar-se de alguém por
algum dano sofrido. Isto nos traz à mente passagens paulinas anteriores
tais como: “Vede que ninguém pague a outro mal por mal.” 1Ts 5:15.
“Quando nos amaldiçoam, abençoamos; quando nos perseguem,
suportamos; quando nos difamam, respondemos amavelmente.” 1Co
4:12, 13.
Por que não sofrer, antes, a ofensa? Por que não tolerar, antes, ser
defraudados? 1Co 6:7.

c. abatidos, deprimidos (2Co 7:6).


d. tímido; segundo alguns: ineficaz, inferior (2Co. 10:1).
Aqui (Rm 12:16), o significado (se neutro) poderia ser “serviços pequenos e insignificantes”; (se
masc.) gente humilde, ou pessoas humildes.
Se tivermos em conta que a primeira parte do versículo significa: “Não elevem seus seus olhos ao
que está alto”; vale dizer (algo assim como) “Não sejam orgulhosos (ou altivos)”, e que em
consequência condena uma característica pessoal indesejável, e visto deste modo que a palavra
ταπεινός, cuando aparece en otras partes del Nuevo Testamento siempre expresa un rasgo personal, es
natural que así se la interprete aquí en Ro. 12:16. La mejor traducción de las palabra que hay entre:
“Vivid en armonía los unos con los otros”, y “No seáis presumidos” es probablemente “No seáis
altaneros (cf. Phillips: “No os volváis altaneros”), sino asociaos prestamente con la gente humilde”.
Aunque “orgullosos” sirva, “altaneros” es quizá aun más preciso puesto que se refiere al carácter de
aquellos que desprecian (“tienen a menos”) a la gente que consideran inferior. En el presente contexto
(“sino asociáos prestamente con la gente humilde”) ese parecería ser el significado que el apóstol
quiere transmitir.
Cf. W. Grundmann, sob ταπεινός, Th.D.N.T. Vol. VIII, p. 1–26, e em especial as pp. 19–20.
Romanos (William Hendriksen) 556
Compare-se isso com as palavras de outro apóstolo:
“Não devolvais mal por mal ou insulto por insulto, mas bênção com
bênção” (1Pe 3:9).
A condenação de um espírito vingativo é básica.
b. A presunção de que indivíduos particulares tenham o direito de
tomar em suas próprias mãos a função do magistrado civil de castigar o
crime.
Mesmo no Antigo Testamento o mandamento “olho por olho …
ferida por ferida” (Êx 21:24, 25; cf. Lv 24:20; Dt 19:21) refere-se à
administração pública do código criminal (veja-se Lv 24:14), e foi
promulgado para desalentar a busca da vingança pessoal.
O que Paulo proíbe (aqui em Rm 12:17) — o desejo de tomar
represálias — é o mesmo pecado contra o qual advertiu Jesus (Mt 5:38–
42; cf. Lc 6:29, 35). E, por sua vez, este ensino de nosso Senhor pode
considerar-se como uma elucidação adicional de instruções do Antigo
Testamento tais como as que se encontram em Lv 19:18; Dt 32:35; Pv
20:22. Veja-se também S.BK. I, pp. 368–370; II, p. 299.
A manifestação de um espírito vingativo destrói o distintivo do
caráter cristão, o que é por sua vez o requisito absoluto para ter êxito em
ganhar gente para Cristo. É esta carência a que faz com que os estranhos
digam: “Esses cristãos não são diferentes de nós”. Paulo, o grande
missionário, deseja que os crentes se conduzam de tal maneira que os
incrédulos tomem nota. É por essa razão que continua dizendo:
17. Sempre procurai que (vossos assuntos) estejam bem aos olhos de
todos.
Isto nos faz lembrar de Pv 3:3, 4: “Nunca se separem de ti o amor e
a fidelidade; as ate ao seu pescoço, escreve-os na tábua de teu coração. E
acharás graça e bom renome aos olhos de Deus e dos homens.”
Paulo deseja que aqueles a quem se dirige vivam vidas de
consagração total a Deus e de amor genuíno por todos, até pelos
perseguidores, de tal modo que os estranhos de não tenham nenhuma
oportunidade legítima de queixar-se ou acusar (cf. 1Tm. 5:14), e que os
Romanos (William Hendriksen) 557
caluniadores sejam envergonhados (1Pe 3:16). Ele não quer que eles
sejam um estorvo ou uma pedra de tropeço, impedindo que o inconverso
chegue a aceitar o evangelho (1Co 10:32). Em vez deles, ele deseja que
conduzam seus assuntos de tal maneira que a consciência pública (cf.
Rm 2:15) os aprove. Seu nobre propósito, como pessoa que ama a Deus,
é que a vida devota dos crentes seja um instrumento nas mãos de Deus
para a conversão dos pecadores, para a glória de Deus (Mt 5:16; 1Pe
2:12).
Calvino resumiu o significado do v. 17 como segue: “O que
significa é que devemos trabalhar diligentemente para que todos possam
ver-se edificados por nosso trato honesto … para que possam, numa
palavra, perceber o doce e bom aroma de nossa vida, por meio do qual
possam ser atraídos ao amor de Deus”.
Avançando sobre o mesmo tema, Paulo diz:
18. Se for possível, quanto dependa de vós, vivam em paz com todos.
Esta exortação a viver em paz com todos concorda com outras
passagens tais como: “Não haja agora briga entre nós dois, entre meus
pastores e os teus, porque somos irmãos” (Gn 13:8); “Fazei todo esforço
para viver em paz com todos” (Hb 12:14); e “A sabedoria que vem do
alto é primeiro pura, depois amante da paz” (Tg 3:17). Jesus disse:
“Bem-aventurados (são) os pacificadores, porque eles serão chamados
filhos de Deus” (Mt 5:9).
Num mundo de paz fraturada esta bem-aventurança mostra-nos que
força relevante, vital e dinâmica é o cristianismo. Verdadeiros
pacificadores são todos aqueles cujo líder é o Deus de Paz (1Co 14:33;
Ef 6:15; 1Ts 5:23), que buscam a paz com todos (como aqui em Rm
12:18), que proclamam o evangelho da paz (Et. 6:15), e modelam suas
vidas segundo o padrão do Príncipe da Paz (Lc 19:10; Jo 3:12–15; cf. Mt
10:8).
Não obstante, o encargo de viver em paz com todos não é
apresentado sem reservas. Há duas:
Romanos (William Hendriksen) 558
a. “Se for possível”. Há circunstâncias nas quais o estabelecimento
ou manutenção da paz é impossível. Hb 12:14 não só propugna a paz
mas também a santificação. Esta última não deve ser sacrificada para
manter a anterior, visto que a paz sem a santificação (ou santidade) não é
digna de seu nome. Se a manutenção da paz implica o sacrifício da
verdade e/ou da honra, então a paz deve ser abandonada. Cf. Mt 10:34–
36; Lc 12:51–53.
b. “… quanto depender de vós”. Há situações que demandam o
sacrifício da paz. Mas devemos estar seguros de não ser nós quem tenha
a culpa de tais exigências. Suponhamos que fizemos tudo o que estava
em nosso poder para estabelecer e manter a paz. A outra pessoa (ou
pessoas) não estava(m) disposta(s) a aceitar a paz a menos que fosse em
condições que nós, como cristãos, não podíamos aceitar. Em tais casos,
Deus não nos considera responsáveis pela falta de paz.
19. Não vos vingueis, amados, mas dai lugar à ira (de Deus); porque
está escrito: “A vingança é minha: eu pagarei”, diz o Senhor.
A terna chamada — note-se a palavra “amados” aqui no v. 19 —
nos lembra o igualmente afetuoso apelativo “irmãos” do v. 1. Com
relação a isto veja-se também Rm 1:7; 16:5, 9, 12; 1Co 4:14, 17; 10:14;
15:58; 2Co 7:1; 12:19; Ef 5:1; Fp 2:12; 4:1; Cl 1:7; 4:7, 9, 14; 1Ts 2:8;
2Tm 1:2; e Fm 1 e 16.
Destaca-se a repetição da qual é, no essencial, a mesma exortação
escrita em formas ligeiramente diferentes, ou seja, “Não vos vingueis”.
Veja-se vv. 14, 17, 19 e 21. Deve ter existido alguma razão para isso,
embora não se revelou qual tenha sido. Uma possível sugestão é que a
causa estivesse em: (a) o fato de que os membros da igreja de Roma, ou
ao menos alguns deles, necessitavam muita tal admoestação; e outra: (b)
que aquele que compunha esta carta tinha sido abençoado, especialmente
desde sua conversão, com um caráter excepcionalmente sensitivo e
amoroso. Tratava-se de um homem quem com toda sua alma tinha
ingressado na tarefa de solidarizar-se e perdoar, em vista do perdão que o
mesmo tinha recebido de Deus.
Romanos (William Hendriksen) 559
Depois de dizer: “Não vos vingueis, amados”, Paulo prossegue:
“mas dai lugar à ira” … As palavras “de Deus” não estão no original. É
por tal razão que alguns expositores sugeriram que o que o apóstolo quis
dizer era: “Dai lugar à ira do adversário”. Outros encheriam este vazio
com a frase “sua ira”, e ainda outros com “a ira do magistrado civil”.
Não é necessário, no entanto, tratar separadamente cada uma destas
hipóteses, e demonstrar por que razão não podem ser corretas. Uma
razão sólida servirá para as três, ou seja, que nos outros casos em que no
Novo Testamento a palavra “ira” aparece sem modificador que
demonstre quem é o sujeito de tal ira, estamos diante da ira “de Deus”.
Além disso, não importa se se usa o artigo (“a”, dali “a ira”) ou se o
omite (resultando simplesmente em “ira”). 348 Portanto, é perfeitamente
razoável crer, junto com a maioria dos expositores, que também aqui, em
Rm 12:19, é à ira de Deus a que Paulo se refere.
Quando Paulo diz que aqueles a quem se dirige — e ultimamente
todos nós — devem “dar lugar” à ira de Deus, ele enfatiza mais uma vez,
em harmonia com todo o contexto, que nós não devemos brincar de “ser
Deus”, que devemos abster-nos de tentar usurpar a prerrogativa divina de
derramar Sua ira, de executar vingança.
Para dar força a este mandato, o apóstolo apela, como o tem feito
anteriormente, ao Antigo Testamento, neste caso a Dt 32:35; na verdade
a essa passagem à luz de seu contexto; ver os vv. 20, 34, 36–43.
Não foi acaso o próprio Jesus quem, apesar de ser objeto de um
sofrimento muito mais profundo e penoso, injustamente posto sobre Ele
por pecadores — da parte deles certamente era injusto! — em vez de
vingar-Se, entregou-Se Àquele que julga com justiça? Veja-se 1Pe 2:23.
Cf. as palavras igualmente belas do Sl. 37:1–17.
À luz do fato de que nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de Seu
sofrimento vicário, tirou a ira de Deus de nós, não deveríamos nós estar

348
Com o artigo: Rm 3:5; 5:9; 9:22; 13:5 (sim, também Rm 13:5, embora alguns o neguem; veja-se
sobre tal passagem); sem o artigo: Rm 2:5, 8; Ef 2:3; 1Ts 5:9).
Romanos (William Hendriksen) 560
felizes em não tomar vingança? Qual é, pois, nosso dever quando somos
tratados injustamente? É talvez pedir a Deus que derrame Sua ira sobre
essa terrível gente que foi tão cruel para conosco? É isso o que Paulo
quer dizer quando diz: “Dai lugar à ira (de Deus)”? Não é, antes, que
peçamos a Deus que conceda aos perseguidores a graça do verdadeiro
arrependimento e da fé verdadeira? Não deveríamos deixar toda noção
de justiça retributiva inteiramente nas mãos do Deus onisciente e
soberano? E não responderá desta maneira todo verdadeiro filho de Deus
que tenha experimentado o amor de Deus em sua própria vida?
Em vez de tomar vingança, o dever e alegria do cristão é devolver o
bem por mal. O dia da retribuição divina ainda não chegou. Por outro
lado, tal como se indicou anteriormente, a pessoa danificada não tem
direito de tomar para si a função do magistrado civil.
Os que sofreram algum mal devem tratar quem os odeia (não com
ressentimento oculto ou com um sentimento de ira e sim) com bondade.
Daí que, depois de dizer: “Não vos vingueis …”, Paulo prossegue:
20. Pelo contrário, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se
tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas vivas
sobre a sua cabeça [RA].
A citação está tirada de Pv 25:21, 22. Se o inimigo tiver fome, a
pessoa afetada deve dar-lhe algo de comer. 349 Deveria dar-lhe algo de
beber se tiver sede. Em outras palavras, deve tratar o inimigo como o fez
Eliseu (2Rs 6:20–23).
Com palavras que deram ocasião a muitas interpretações diferentes,
o apóstolo, continuando sua citação de Provérbios, escreve: “porque
fazendo isto, amontoarás 350 brasas vivas sobre a sua cabeça”.

349
ψώμιζε, 2ª. pes. sing. pres. imper. de ψωμίζω, alimentar, dar algo de comer. Um ψωμίον é um
pedaço de pão. Veja-se Jo 13:26, 27, 30.
350
σωρεύσεις, 2ª. pes. sing. fut. at. indic. de σωρεύω, acumular, amontoar. No Novo Testamento esta
palavra somente ocorre aquÍ e em 2Tm 3:6.
Com relação às maneiras diferentes em que esta declaração foi interpretado, recebi ajuda das
seguintes fontes:
C. E. B. Cranfield, op. cit., Vol. II, pp. 648–650.
Romanos (William Hendriksen) 561
Há quatro opiniões diferentes. Amontoar brasas sobre sua cabeça
poderia simbolizar:
a. uma forma autoimpuesta de tormento,
b. um ato de benevolência (dar brasas acesas aos necessitados),
c. um gesto de dor pelo pecado,
d. um modo de fazer com que o inimigo se envergonhe de si
mesmo.
A explicação a. contradiz o contexto presente, segundo o qual
alguém deve tratar ao inimigo com bondade. Tanto a. como c.
descrevem a pena de inimigo pelo pecado em vez de o que o ofendido
deveria fazer-lhe. A interpretação mais amplamente aceita é d. As brasas
simbolizam nesta opinião as ardentes pontadas de vergonha e contrição
que resultam da inesperada bondade recebida. A conduta magnânima do
ofendido ao devolver bem por mal tem este efeito.
No que corresponde ao significado b. — uma interpretação
mencionada por Ridderbos, e resumida num interessante artigo de E. J.
Masselink (embora sem lhe dar um definido apoio) —; se interpretar-se a
frase “os necessitados” de modo que signifique “embora sejam
inimigos”, com o significado final que resulta em: “Vencei os vossos
inimigos com vossa bondade” (E. J. Masselink), não seria o efeito final o
mesmo que o indicado por d.?
Por conseguinte, quando expresso uma preferência por d., não estou
rejeitando b.
Razões que me movem a aceitar esta opinião (a de d., e
possivelmente b.):
1. As palavras “vencer o mal com o bem” (v. 21) apontam nessa
direção.

W. H. Gispen, De Spreuken van Salomo (Korte Verklaring), Kampen, 1954, Vol. II, p. 234s.
F. Lang, sob π_ρ Th.D.M.T., Vol. VI, p. 945.
E. J. Masselink, artigo em Christian Cynosure, inverno de 1979, p. 21.
H. Ridderbos, op. cit., p. 286.
Romanos (William Hendriksen) 562
2. Assim o faz 1Pe 2:15: “Porque é a vontade de Deus que, fazendo
o bem, silenciem o bate-papo ignorante dos néscios”.
No espírito do v. 20, a exortação final de Paulo é:
21. Não sejas vencido pelo mal, mas vence o mal com o bem.
Ser vencido pelo mal significa (a) permitir que o inimigo se afunde,
e (b) planejar e devolver mal por mal.
Vencer o mal com o bem significa (a) continuar vivendo uma vida
de fé em Deus e de amor por Ele e por todos, sem excluir a pessoa que o
feriu; a classe de vida marcada por uma transformação à imagem de
Cristo (v. 2), e, por isso, também pela humildade (v. 3 e 16), a utilidade
(v. 6–8), e a paz (v. 16); e (b) fazer um esforço, por palavra e obra, para
demonstrar bondade ao que o danificou.
Esta é a vida vitoriosa. Mas a vitória não pode ser obtida pelo
esforço humano, mas somente pela fé. É outorgada àqueles, e somente
àqueles, que, tendo sido justificados pela fé, com base no sacrifício
vicário de Cristo, derivam todo seu poder do Espírito Santo que habita
neles.

Lições práticas derivadas de Romanos 12


Rm 12:2. “…deixai-vos transformar …”. Aqui vão certas sugestões
que mostram como se pode progredir para tal meta:
a. Estudar a Palavra. Se for ser possível não só no domingo, mas
também durante a semana, por meio de um estudo bíblico, grupo de
jovens ou reunião de tipo similar, nos meados de semana.
b. Envolver-se em causas que glorificam a Deus, fazendo
contribuições monetárias e/ou oferecendo-se como voluntário para as
mesmas.
c. Com a ajuda do pastor, ou da bibliotecária da igreja, colocar em
algum lugar visível uma lista dos melhores livros, acomodando seus
títulos em diversas categorias para adaptá-las os diversos níveis de idade.
Romanos (William Hendriksen) 563
d. Fazer tudo isso — e muito mais — conjuntamente com oração
constante solicitando a bênção de Deus.
Ro. 12:3, 16. “…digo a cada um de vós que não pense de si mesmo
mais altamente que o que deve pensar …”. “Não sejais altivos”. Não foi
a ideia de ser como Deus a que ocasionou a queda de Satanás e de seus
demoníacos seguidores? Veja-se Is 14:13, 14. E não foi um desejo
pecaminoso similar aquele que ocasionou a queda do homem? Veja-se
Gn 3:1–6.
Como resultado, embora seja verdade que “o amor ao dinheiro é
uma raiz de todo tipo de males” (1Tm. 6:10), o orgulho pecaminoso é a
raiz de todo o mal. Veja-se também 1Co 8:1–3.
Rm 12:4, 5. “Porque assim como temos muitos membros num
corpo, e nem todos estes membros têm a mesma função, assim nós, que
somos muitos, somos um corpo em Cristo, e individualmente membros
os uns dos outros”.
A diversidade sem unidade significa confusão. A unidade sem
diversidade significa monotonia. Tal como sucede no corpo humano,
assim deve suceder na igreja: necessitam-se a unidade e a diversidade, e
ambas foram providas.
Imaginem-se, por exemplo, um casamento caracterizado por uma
unidade não diversificada. Ao escolher roupa, o noivo prefere o azul.
Também faz o mesmo a noiva. Ao sair para jantar, ela indica ao garçom
o que deseja comer. Ele diz: “O mesmo para mim”. Os dois usam a
mesma massa dentifrícia, usam o mesmo tipo de óculos, falam com o
mesmo acento, etc., etc. Que casamento tão desanimado e monótono!
Feliz o casamento cristão em que há unidade com relação às crenças e
práticas religiosas fundamentais, mas variedade em gostos e talentos.
Enquanto esta variedade se mantiver como serva da unidade, e esta
unidade seja amiga da diversidade, tudo andará bem. E isto é certo
também do corpo humano e da igreja, da qual este é símbolo.
Rm 12:8. “… sem motivos ulteriores”. Esta é, sem dúvida, uma
restrição extremamente importante, visto que a pessoa que contribui para
Romanos (William Hendriksen) 564
suprir as necessidades de outros, mas o faz com “algum motivo ulterior”,
por exemplo, simplesmente para obter reconhecimento público, é um
hipócrita. Está “agindo como se …”. Contra nenhum tipo de pessoas
pronunciou Jesus juízos tão severos como contra os hipócritas do Seu
tempo. Veja-se Mt 23. A pessoa que dá algo “com motivos ulteriores”
leva uma vida dupla. É generosa somente por fora.
Por conseguinte, nossa oração sempre deve ser: “Afirma o meu
coração para que tema o Teu nome” ou, como também se pode traduzir
esta passagem: “Dá-me um coração indiviso, para que possa temer o Teu
nome” (Sl. 86:11).
O Salmo 19 é atribuído a Davi. Suas últimas palavras, muito
apropriadas com relação ao presente, dizem: “As palavras dos meus
lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis na tua presença,
SENHOR, rocha minha e redentor meu!” [RA]
Rm 12:14, 17, 19, 21. “Abençoai os que vos perseguem … não
devolvais mal por mal … Não vos vingueis, amados … vence o mal com
o bem”.
Qual será a razão pela qual Paulo repete vez após vez, com ligeiras
variantes, esta exortação?
Resposta: (a) Porque ele mesmo era, como pastor, a bondade
personificada (veja-se 1Ts 2:7–10); (b) porque sabia que devolver o bem
pelo mal é algo contra o qual a natureza humana pecadora se rebela
violentamente; e (c) porque sabia que, no entanto, se havia algo que
poderia ter êxito em encher o coração de um oponente de vergonha e
arrependimento, esse algo era esta atitude.
Há os que, ao lerem estes versículos, dizem: “O conselho de Paulo
não funcionará”. Ainda têm dito que este método recomendado pelo
apóstolo para ganhar o oponente demonstra quão pouco conhecia ele da
natureza humana. Estão errados. Paulo não diz que o método que
propugna diante dos romanos terá sempre o efeito desejado, mas ele sabe
que de qualquer maneira é o método mais eficaz e, acima de tudo, que é
o único correto. Veja-se Lc 23:34; At 7:60; 1Co 13.
Romanos (William Hendriksen) 565
Um exemplo da vida diária. O pastor anterior tinha saído da
congregação “sob suspeita”. Não obstante, contava ainda com
popularidade entre um certo setor da congregação. Foi assim que, ao
chegar seu sucessor, um dos membros lhe disse na cara: “Eu não
reconheço você como meu pastor”. A pessoa a quem disseram estas
palavras recebeu a graça de poder manter-se calmo. Mais tarde, quando a
enfermidade fez uma incursão no lar do membro descontente, fez um
esforço especial por cumprir ali seus deveres pastorais. Resultado:
chegou o dia em que o homem lhe disse: “Agora o reconheço plena e
prazerosamente como meu pastor.

Resumo de Romanos 12
Ao chegar ao capítulo 12 alcançamos o começo da Aplicação
Prática desta carta, que abrange os capítulos 12–16. O capítulo 12 tem
três seções bem definidas, a segunda das quais se divide por sua vez em
duas partes.
Na primeira das três seções o apóstolo exorta afetuosamente —
note-se a palavra “irmãos” — a seus leitores a oferecer-se a Deus como
sacrifício sendo, os Seus olhos, vivos santos e agradável. Portanto, esta
primeira seção descreve qual deve ser a atitude dos crentes para com
Deus. Devem dar-Lhe o sincero e devoto culto espiritual que Ele merece
em face da “grande misericórdia” que teve para com eles. Tal como o
demonstraram os capítulos 1–11, é somente com base na graça divina,
vale dizer, do imerecido favor divino manifestado no sacrifício
substitutivo de Cristo, que os crentes foram declarados justos diante de
Deus.
Em consonância com esta necessidade de uma resposta de sincera
devoção que devem render todos os que foram abençoados tão
abundantemente, vem a exortação a que todos aqueles a quem o apóstolo
se dirige — entre os quais nos incluímos — já não deixemos que em
nosso estilo de vida sejamos moldados exteriormente segundo o modelo
Romanos (William Hendriksen) 566
ou critério deste tempo (mau), mas permitamos em nós uma mudança
interior progressiva e positiva, para poder ser cada vez mais parecidos
com Cristo. A meta e o resultado desta transformação interior serão que
eles possam comprovar, ou seja, perceber, experimentar e deleitar-se
naquilo que aos olhos de Deus é bom, agradável e perfeito; em outras
palavras, o que está de acordo com a Sua vontade (vv. 1 e 2).
Na primeira parte da segunda seção — aquela em que Paulo
descreve qual deve ser a atitude dos crentes para com outros crentes —
deixa-se claro que essa transformação progressiva será impossível para
os que em sua arrogância se imaginam que já chegaram à meta. “Sejam e
permaneçam humildes”, é a essência da exortação. Os santos devem
notar que a igreja é parecida ao corpo humano, no qual cada parte tem
uma função específica e que nenhuma é autossuficiente. A situação da
igreja é similar: cada membro necessita dos outros. Cada membro deve
usar os dons que foram divinamente comunicados para proveito de todos
os outros. Segue uma lista de sete dons com suas funções, ou seja, de
profetizar, de prestar serviço prático (provavelmente no ofício de
diácono), ensinar, exortar, contribuir com os que estão em necessidade
(benevolência particular), exercer a liderança (provavelmente como
ancião), e demonstrar misericórdia (como visitador de doentes, etc.).
Estas tarefas devem ser executadas segundo a norma da fé
(mencionada com relação a profetizar), sem motivos ulteriores (ao
contribuir para as necessidades alheias), com diligência (na maneira de
exercer a liderança) e (com relação a mostrar misericórdia) com alegria
(vv. 3–8).
Na segunda parte desta mesma seção Paulo enfatiza a importância
suprema do amor, neste caso do “amor fraternal”. Os crentes devem
preferir-se em honra um ao outro. Fp 2:3 lança mais luz sobre isso. O
exercício desta virtude é possível somente quando os crentes aprenderam
a conhecer-se a si mesmos.
A esta exortação segue um grupo misto de admoestações, que
insistem no exercício das virtudes comunicadas pelo Espírito, tais como
Romanos (William Hendriksen) 567
o entusiasmo, a alegria, a esperança, a perseverança e a oração. Volta a
enfatizar-se a necessidade de ajudar a suportar as necessidades dos
santos (veja-se o que se disse sobre este tema com relação aos vv. 7 e 8).
Visto que Paulo logo começará sua viagem a Jerusalém com doações
(recebidas de várias igrejas) para os santos pobres de tal cidade (Rm
15:25; At 24:17), esta ênfase não nos surpreende. Além disso, quando
Paulo pensa nas viagens — não só nas suas, mas nas das muitas
testemunhas do evangelho — vemos que a exortação: “Praticai
diligentemente a hospitalidade” quadra muito bem neste ponto (vv. 9–
13).
A seção final (vv. 14–21) demonstra qual deve ser a atitude dos
crentes para com os estranhos, mesmo os inimigos. Em meio de seu
próprio povo, e ainda de gente em geral, o crente deve alegrar-se com
aqueles que se alegram, chorar com os que choram, permanecer humilde,
e demonstrar esta última associando-se rapidamente com os humildes, e,
na medida que seja consoante com os princípios cristãos, viver em paz
com todos. Deve ocupar-se de que seus assuntos estejam livres de
recriminação, para que ninguém possa acusá-lo de agir mal, e a todos
chamar a atenção seu alto idealismo moral e espiritual.
Com relação a isso há uma virtude que Paulo elogia acima de todas,
e com diversas mudanças de fraseologia menciona vez após vez (vv. 14,
17, 19–21). Trata-se da virtude de nunca devolver mal por mal, porém
sempre bem por mal. A pessoa deve invocar a bênção de Deus sobre os
perseguidores, e por meio da bondade esforçar-se por “pôr brasas sobre
as cabeças” daqueles que têm feito dos santos objeto de sua crueldade.
Sim, deve fazer-se com que estes acérrimos oponentes se envergonhem a
fim de que, como resultado, eles busquem refugiar-se de sua dor em
Deus. Com relação a este tema estude-se o exemplo de José (Gn 45:1–
15; 50:15–21); Eliseu (2Rs 6:20–23); Estêvão (At 7:59, 60) e, acima de
todos, Jesus (Lc 23:34).
Romanos (William Hendriksen) 568
ROMANOS 13
E. Atitude do justificado para com as autoridades. Rm 13:1-7

Quando a gente chega a Rm 13:1–7 surge um problema, o de uma


aparente descontinuidade. Na opinião de alguns, não há conexão entre
Rm 13:1–7 e o contexto precedente ou seguinte. O amor, tão
proeminente em Rm 12:9–21 e novamente em Rm 13:8s, está ausente de
Rm 13:1–7. O que está presente é “a espada” (Rm 13:4). 351
Além disso, o tema da autoridade civil que inspira temor, um
“vingador” que traz a ira (de Deus) sobre o praticante do mal (Rm 13:4)
está completamente ausente tanto do contexto precedente de Rm 13:1–7
como do subsequente (Rm 13:8s). Segundo alguns, o sabor
peculiarmente espiritual que permeia o resto desta epístola está ausente
de Rm 13:1–7.
É por esta razão que, segundo alguns, não se pode ouvir nenhum
tema cristão em Rm 13:1–7.352 O que é pior, há quem considera que esta
parte é um corpo alheio na exortação paulina. 353 Mas a simples
afirmação de uma tal posição negativa não constitui prova.
Diferente também é o método de abordar Rm 13:1–7 que propõem
aqueles que dizem que quando Paulo fala de “autoridades que
governam” (Rm 13:1), está se referindo não somente às autoridades civis
mas também a um grupo de anjos. Que esta “solução” deve ser rejeitada
é algo que se demonstra na nota. 354

351
Existe, no entanto, uma estreita conexão entre o contexto precedente (Rm 12:9–21) e aquele que o
segue (Rm 13:8s), tal cual o esclarece o fato que μηδενί aparece tanto em Rm 12:17 como em Rm
13:8, e em ambos vos casos num contexto que manifesta ou espíritu dou amor.
352
Veja-se O. Michel, Der Brief an die Römer, Götinga, 1966, p. 289.
353
E. Käsemann, Commentary on Romans (trad. de An Die Römer), Grand Rapids, 1980, p. 352.
354
Oscar Cullmann, em seu livro Christ and Time (tr. de Christus und die Zeit, Zürich, 1948),
Londres, 1962 (veja-se especialmente as pp. 192–196), toma como ponto de partida a hipótese que o
ensino judaico tardio com relação aos anjos pertence ao conteúdo da doutrina do Novo Testamento.
Romanos (William Hendriksen) 569

Segundo ele, os anjos maus, ao ser derrotados por Cristo, perderam seu caráter sinistro e foram
reasignados a prestar serviços favoráveis a Cristo.
Ele argumenta, além disso, que visto que o termo utilizado em Rm 13:1, a saber, _ξουσίαι (aqui no
dat. pl. -αις) aparece também em Ef 1:21; 6:12, onde se refere a anjos, o mesmo deve apontar também
a anjos em Rm 13:1. Mas, tal qual o demonstra o contexto, em Rm 13:1 também significa autoridades
civis. Daí que, segundo Cullmann, a palavra tem um sentido duplo, que se refere tanto às autoridades
civis como aos anjos que, por assim dizer, estão atrás delas. Cullmann encontra esse sentido duplo
também em 1Co 2:8 [NTLH]: “Nenhum dos poderes que agora governam o mundo conheceu essa
sabedoria. Pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o glorioso Senhor”; e em 1Co 6:3,
“Não sabeis que havemos de julgar os próprios anjos?”. Aqui, segundo Cullmann, as autoridades civis
são vistas como agentes executivos dos poderes angélicos.
Crítica.
1. Crer que num mesmo contexto um termo em afirmação pode ter dois significados diferentes —
no caso que nos ocupa referindo-se tanto a seres humanos como a anjos — faz lembrar a dupla regra
de interpretação adotada por alguns dos líderes religiosos da Escritura devem ser interpretados
literalmente e alegoricamente. Com o transcorrer do tempo, este princípio desenvolveu-se até chegar
a quádrupla regra da exegese: histórica, etiológica, analógica e alegórica. Se a gente começar esse
caminho, onde terminará? Veja-se L. Berkhof, Principles of Biblical Interpretation, Grand Rapids,
1950, p. 22. É justo dizer, no entanto, que a teoria do Cullmann é muito mais limitada em sua
aplicação.
2. A Escritura não ensina em nenhum lugar que certos anjos tenham perdido seu caráter maligno e
tenham sido reasignados a prestar serviço a Cristo.
3. Quanto a 1Co 2:8, não há lugar algum na Escritura em que se a atribua a crucificação do Senhor
de glória aos anjos, bons ou maus.
4. Quanto a 1Co 6:3 é difícil imaginar-se como pode alguém interpretá-lo de modo tal que chegue
a significar que certas pessoas chegarão a ser agentes executivos dos poderes angélicos. O verdadeiro
significado da passagem é: Se havemos de julgar anjos, quanto mais deveríamos ser capazes de
resolver disputas que têm que ver com a vida presente?
5. Aqui em Rm 13:1–7 tudo aponta a um governante terreno, não a um anjo ou anjos. Notem-se
detalhes tais como os seguintes: o governante não porta a espada “em vão”; também castiga ao
delinquente e valoriza ao que faz o bem.
6. A referência à necessidade de pagar impostos (Rm 13:6) demonstra também que a passagem
nada tem que ver com anjos ou com o âmbito celestial.
7. 1Pe 2:13–17 é uma passagem paralela de Rm 13:1–7. Mas Pedro descreve o governo do rei e
dos governantes dizendo que é uma “instituição humana”; isto provavelmente indica uma instituição
estabelecida entre os seres humanos, mas que deriva sua autoridade de Deus. Não há ali insinuação de
conexão alguma com os anjos. De fato, segundo o ensino apostólico, nunca se descreve a Satanás ou
seus lacaios, servindo de sustento para a boa tarefa desenvolvida pela autoridade civil. Ao contrário, a
influência que os maus espíritos exercem é e continua sendo má, e seus autores estão condenados.
Veja-se Rm 16:20; 2Co 4:4; Ef 6:10–12; 1Pe 5:8; 2Pe 2:4.
Mas Cullmann não foi o único defensor desta teoria do sentido duplo que se aplica a Rm 13:1–7.
Veja-se, por ex., também o escrito por M. Dibelius, Die Geisterwelt in Glauben des Paulus, Gotinga,
1909. Outros que de algum modo defenderam esta opinião, ou que ao menos o fizeram durante certo
Romanos (William Hendriksen) 570
A favor do enfoque positivo — quer dizer, o enfoque daqueles que
sustentam que Rm 13:1–7 não só é parte da Palavra de Deus e que foi
composta por Paulo, mas também quadra com o presente contexto —
note-se o seguinte:
a. Esta seção não é tão alheia ao contexto — quer o precedente ou o
subsequente — como alguns parecem pensar. Quanto ao contexto
precedente, em Rm 12:1, 2, Paulo exortou os leitores a sacrificar suas
vidas a Deus. Uma entrega agradecida e total é a única resposta correta à
maravilhosa misericórdia que Deus demonstrou. Isto significa,
naturalmente, que a nova vida deve manifestar-se em cada esfera da
atividade ou do empenho cristão. Em consonância com este ponto de
partida, o apóstolo indicou qual deveria ser a relação do crente para com
Deus (Rm 12:1, 2), para com outro crentes (Rm 12:3–14), e para com os
estranhos, inimigos inclusive (Rm 12:14–21). É tão estranho, então, que
ele comente agora sobre a atitude correta dos crentes para com as
autoridades civis, sobretudo se levarmos em conta que ele, que é cidadão
romano por nascimento e que recebeu muitos benefícios do governo
romano, está escrevendo a uma igreja situada na própria capital do
Império Romano, coração e centro do governo?
b. A exortação a obedecer aos que estão em autoridade começa a
parecer ainda mais razoável quando se leva em conta as seguintes
verdades: uma proporção considerável — embora provavelmente não a
maioria — dos membros da igreja de Roma estava formada por judeus.
Que muitos judeus dessa época buscavam uma oportunidade para sacudir

tempo, foram K. L. Schmidt, K. Barth, G. Dehn, etc. Até Cranfield se sentiu atraído pela mesma
durante algum tempo. Mas é justo esclarecer que entre os que abandonaram esta teoria atrás de alguns
estudos adicionais estavam Dibelius, Barth e Cranfield. Veja-se o reconhecimento deste último, op.
cit. p. 659.
Lekkerkerker, em seu muito interessante resumo (op. cit. Vol. II, pp. 129–136) rastreia a essência
desta teoria até chegar aos gnósticos do século II de nossa era, e demonstra como a mesma deu origem
entre muitos à convicção de que os governos podiam entregar-se a poderes demoníacos; sirva de
exemplo a Alemanha sob o governo do Hitler. Em outras palavras, a gente começou a ver uma estreita
vinculação entre Rm 13:1–7 e Ap 13, como o interpretavam eles.
É justo mencionar que a teoria do duplo significado perdeu já muito de sua antiga fascinação.
Romanos (William Hendriksen) 571
o jugo da submissão a Roma, e que estavam ansiosos para voltar a ser
independentes, com seu próprio rei, é algo que as Escrituras deixam bem
claro (Jo 6:14; 8:33; At 5:36, 37), como também o fazem os escritos de
Josefo e de outros. Mesmo na própria capital tinha ocorrido distúrbios,
por causa dos quais o Imperador Cláudio havia expulso todos os judeus
de tal cidade (At 18:2 e introdução desta obra). Quando este decreto
perdeu vigência, muitos exilados tinham voltado a Roma. Mas se
levarmos em conta a possibilidade de que a atitude básica de muita desta
gente provavelmente não tenha sofrido uma mudança total, é fácil de
entender que o apóstolo emitisse esta advertência.
c. Isto tem mais sentido mesmo quando percebemos que o apóstolo
não deseja que Roma pense que o evangelho de salvação por meio de
Jesus Cristo é antagônico em sentido algum a um governo romano de
funcionamento correto. Quanto a isso, é preciso levar em conta que a
carta aos Romanos foi escrita vários anos antes dos terríveis dias de 64
d.C. (veja-se C.N.T. sobre Lucas, p. 44).
d. A conexão entre Rm 13:1–7 e o contexto que lhe precede bem
pode ser ainda mais estreita da qual foi indicada até aqui. Em Rm 12:14–
21 Paulo tinha enfatizado o princípio de não vingar-se. Não é possível
que algum crente respondesse: “Com a ajuda de Deus certamente
devolverei amor por ódio. Continuarei fazendo-o, por meio de sua graça,
embora meu oponente continue me sendo hostil. Invocarei a bênção de
Deus sobre ele e continuarei sendo bom para com ele. Mas, significa isso
então que se deve permitir que criminosos cruéis e calejados triunfem?
Favorece isso as pessoas em geral, e servirá realmente à causa do
evangelho?” Se isso for o que o crente tinha em mente, o apóstolo
fornece a resposta em Rm 13:1–7: o governante não em vão usa a
espada!
e. A tudo isso deve acrescentar-se que o que Paulo diz aqui em Rm
13:1–7 se conforma ao ensino do próprio Jesus Cristo (Mc 12:13–17), a
menos que adotemos, como o fazem alguns, a posição de certos
redacionistas, ou seja, que o que diz Marcos não é mais que uma
Romanos (William Hendriksen) 572
invenção. Não se pode entrar em dialogo com essa posição. O debate
conclui e o crente e o não crente vão cada um por seu próprio caminho.
Paulo não nos dá nestes poucos versículos um tratado completo
sobre os direitos respectivos da igreja e do estado. Não nos dá respostas
explícitas a perguntas tais como: “Se o governo me ordena fazer algo, e
Deus, por meio de Sua palavra, diz-me que faça o oposto, o que devo
fazer?”, ou “Chega alguma vez o momento em que — em vista da
continuada opressão do governo e sua corrupção — os cidadãos têm o
direito e até o dever de derrocar um governo desse tipo e estabelecer
outro em seu lugar?” Embora a resposta bem pode estar sugerida pela
declaração “aquele que está em autoridade … é servo de Deus para te
fazer o bem”, e embora a resposta à primeira das perguntas já foi
claramente expressa por Pedro (At 5:29), a indagação em assuntos tais
está além do âmbito do interesse imediato de Paulo. Veja-se, não
obstante, o que se diz sobre Rm 13:2.
Por ser o maior missionário que houve no mundo, com exceção do
próprio Jesus Cristo, Paulo se ocupa de manter uma boa ordem social
para que a causa da proclamação do evangelho para a glória de Deus
possa avançar.
Quanto à conexão entre Rm 13:1–7 e o contexto que lhe segue
imediatamente, a mesma pode-se indicar em poucas palavras, visto que é
muito clara. O v. 7 diz: “Paguem a todos o que (eles) devam …”. E o v. 8
(o primeiro da nova seção) começa: “Não sigam devendo nada a
ninguém, senão o amar-vos uns aos outros”.
1. Submeta-se toda pessoa às autoridades que governam.
Em termos literais Paulo diz: “Submeta-se toda alma …”, mas a
palavra “alma”, tal como aqui a usa, significa pessoa, ser humano. 355 O
355
Na totalidade do Novo Testamento, ψυχή aparece 100 vezes, e πνε_μα mais de 370 vezes. É
completamente impossível fazer uma distinção muito definida entre estas duas palavras — coisa que
frequentemente se faz — como se no Novo Testamento ψυχή tivesse sempre um significado e πνε_μα
outro. É verdade que quando o apóstolo Paulo pensava no ser invisível do homem em sua relação com
Deus, habitualmente usava a palavra πνε_μα. No entanto, no Novo Testamento em geral há uma
considerável superposição de significados. A gente nunca deveria dizer: “No Novo Testamento ψυχή
Romanos (William Hendriksen) 573
apóstolo, ao escrever sob a inspiração divina, deseja que todos se
submetam voluntariamente às autoridades de governo que naquele então
havia. 356 Por obra da providência divina o governo romano da época de
Paulo era de tal natureza que era possível, dentro de seu marco, cumprir
a vontade de Deus e consagrar-se totalmente a ele. Tal qual Paulo o diz:
Porque não há autoridade senão de Deus, e as que existem foram
estabelecidas por Deus.

é a parte invisível do homem que se considera animadora de seu corpo; πνε_μα é essa mesma entidade
imaterial vista em sua relação com Deus”. O tema é muito mais complicado do que indica esta
generalização. Por exemplo, o equivalente grego de alento pode ser ou ψυχή (At 20:10) ou πνε_μα
(2Ts 2:8). Do mesmo modo, o conceito vida, que enfatiza o físico, pode ser expresso quer seja por
πνε_μα (Lc 8:55) ou por ψυχή (Mt 2:20). Não só é possível que o πνε_μα se revolte (At 17:16);
também a ψυχή pode ser excitada (At 14:2). É certo, o πνε_μα alegra-se em Deus (Lc 1:47), mas
também lhe diz à ψυχή que engrandeça ao Senhor (Lc 1:46). Um ser incorpóreo pode ser um πνε_μα
(Hb 12:23), mas também pode ser uma ψυχή (Ap 6:9). Por um lado, quando a referência aponta ao
Espírito Santo, a palavra que sempre se usa é πνε_μα, com ou sem modificador (Mc 1:8–12; 3:29;
12:36; 13:11; Lc 1:15, etc.) Um espírito imundo é πνε_μα _κάθαρτον (Mc 1:23, 26, etc.). Às vezes
usa-se um sinônimo (Mc 9:17, 25). A palavra πνε_μα até pode chegar a indicar um aspecto (1Co 4:21,
“espírito de mansidão”). Por outro lado, quando a referência aponta a todo o ser ou pessoa, de modo
que numa passagem paralela se use ou se possa usar um pronome pessoal, este ser é sempre ψυχή (Mc
10:45; cf. 1Tm. 2:6). Também pertencem aqui Rm 2:9, onde a expressão grega “toda alma de homem”
significa “toda pessoa (ou ser humano),” e Rm 11:3, onde “minha alma” ou “minha vida” significam
“para mim”. A palavra ψυχή indica também o pronome pessoal em Mt 12:18; Lc 12:19; At 2:27, 41,
43; 3:23; 7:14; Hb 10:34, 39; Tg 1:21; 5:20; 1Pe. 1:9; 3:20; Ap 16:2. E também aqui em Rm 13:1
“toda alma” equivale a “toda pessoa”. É provável que este significado de ψυχή esteja influenciado
pelo uso hebraico.
Pelo fato de que existem estas distinções como assim também áreas de superposição, é impossível
estabelecer regras rígidas. Pode-se talvez dizer, em termos gerais, que πνε_μα enfatiza a atividade
mental e ψυχή a emocional. É o πνε_μα aquele que percebe (Mc 2:8), planeja (At 19:21), e conhece
(1Co 2:11). É a ψυχή que se entristece (Mt 26:38). O πνε_μα ora (1Co 14:14), a ψυχή ama (Mc
12:30). ψυχή é também mas ampla em seu alcance ao indicar a soma total de vida que se eleva acima
do físico; πνε_μα, enquanto, é mais limitado. Com frequência (em especial nas epístolas de Paulo),
embora, de modo algum, sempre, πνε_μα indica o espírito humano em sua relação com Deus, a
personalidade ou autopercepção vista como sujeito em atos de culto ou relacionados com o mesmo,
tais como orar, dar testemunho, etc. Mas, mais uma vez, não se pode estabelecer uma regra
inamovível. Cada caso de cada uma das palavras deve interpretar-se à luz da origem da passagem
específica no qual ocorre e à luz de seu contexto específico e das passagens paralelas.
356
Note-se a palavra _περεχούσαις, dat. pl. f. gerúndio de _περέχω, estar em (poder). Este sentido de
“estar em” ou “ter”, ser supremo, ser melhor (que), transparece em cada instância de seu uso no Novo
Testamento: considerar a outra pessoa melhor que a si mesmo (Fp 2:3); a excelência que tudo supera
(Fp 3:8); a paz de Deus que ultrapassa todo entendimento (Fp 4:7); autoridade suprema (1Pe 2:13).
Romanos (William Hendriksen) 574
Os magistrados civis aos quais Paulo faz referência, do imperador
até os governantes de menor posição, deviam em todo caso sua
nomeação e direito de governar a Deus. Era por Sua providência e Sua
vontade que eles tinham sido nomeados para manter a ordem, promover
a boa conduta e castigar a maldade.
2. Como resultado, aquele que se opõe à autoridade, está resistindo a
ordenança de Deus …
Quer isso dizer, então, que o apóstolo exortava a uma obediência
sem limites, a uma submissão tão absoluta que embora o mandato do
magistrado estivesse em conflito direto com a vontade revelada de Deus,
devia, não obstante, ser obedecido? Naturalmente que não!
Não temos que esquecer que Paulo era judeu, e conhecedor
profundo do Antigo Testamento, tal qual o demonstra vez após vez em
suas epístolas. Portanto, também conhecia e aprovava vigorosamente o
valor demonstrado por Daniel e por seus três companheiros quando
desafiaram os decretos e ordenanças reais que eram manifestamente
contrários à vontade de Deus revelada em Sua lei. Veja-se os caps. 1, 3,
e 6 do livro de Daniel. Estes capítulos demonstram que Deus
recompensa a quem, em circunstâncias extremamente difíceis,
permanecem fiéis a Ele, e que por tal causa desobedecem
deliberadamente ao seu governante terrestre.
Fica claro, então, que o apóstolo, ao escrever deste modo aqui em
Rm 13:2, está pensando no governante que cumpre seu dever de
preservar a ordem, de dar aprovação à boa conduta, e de castigar o mal.
Em tal caso, aquele que se opõe à autoridade resiste, sem dúvida, à
ordenança divina. A isso Paulo acrescenta:
… e os que o fazem trarão juízo [não necessariamente condenação]
sobre si mesmos.
O apóstolo não está aqui estabelecendo um princípio
universalmente válido, que postula que opor-se à autoridade e
desobedecer uma ordem dada por um magistrado civil é sempre algo
mau. Ao ler as cartas de Paulo, cheias de instruções e de exortações, a
Romanos (William Hendriksen) 575
pessoa deve assegurar-se de abrir espaço a restrições ou qualificações,
quer sejam implícitas ou explícitas. Veja-se, por exemplo, 1Co 5:9, 10,
onde o apóstolo, por assim dizer, está dizendo: “Por favor, não
interpretem esta exortação como se não houvesse limites para sua
aplicação”.
Que o apóstolo se referia a um funcionamento normal do governo, e
não a um que fosse vergonhoso ou errôneo, fica evidenciado pelo
versículo 3:
3. Porque os governantes não são um terror para a boa conduta
senão para a má.
Nestes versículos Paulo rebate aquela atitude puramente negativa
para com as autoridades civis, como se sempre estivessem tratando de
fazer o mal, e como se a pessoa sempre deve ter temor delas. É certo, os
magistrados castigam, mas sob circunstâncias normais os que recebem o
castigo só podem culpar-se a si mesmos do que lhes sucede. “Os
governantes”, diz Paulo, “não são um terror para a boa conduta senão
para a má”. Nota-se que ao dizer isso ele está personificando estas duas
classes de conduta. Ele quer dizer, naturalmente, que os governantes não
são um terror para os que se conduzem corretamente senão para os que
se conduzem mal. São estes últimos os que têm causa para temer.
Tem-se dito que é estranho que Paulo falasse tão favoravelmente
dos governantes. Não tinha sido ele mesmo tratado cruelmente pelas
autoridades civis? Veja-se At 16:19–24. Cf. 2Co 11:25: “três vezes fui
açoitado com varas”. E não tinha sido acaso o “governador” romano
Pôncio Pilatos quem tinha condenado Jesus injustamente à morte?
A resposta que geralmente se dá é: “Estas são as exceções que
evidenciam a regra”. Embora possa haver algo de mérito nesta resposta,
não se pode acrescentar algo mais à mesma, algo que destaque mais
claramente que o apóstolo tinha razão quando disse o que consta aqui em
Rm 13:3?
No caso da experiência que Paulo sofreu em Filipos, cabe dizer que
as autoridades tinham sido induzidas pela multidão, de tal modo que
Romanos (William Hendriksen) 576
pensavam que na verdade estavam castigando a delinquentes. Mais tarde,
ao notar o seu erro, trataram de corrigi-lo (At 16:38, 39).
Quanto a Pilatos, vez após vez ele se negou a condenar Jesus à
morte (Lc 23:4, 13–16, 20, 22). Finalmente, por razões egoístas,
sucumbiu às demandas dos judeus (Lc 23:24). Com relação a este
assunto, bem vale notar as seguintes palavras, muito significativas: “Vós
o entregastes e negastes diante de Pilatos, quando este havia resolvido
deixá-lo em liberdade” (At 3:13).
A declaração de Paulo que diz que, sob circunstâncias normais, os
governantes não são um terror para a boa conduta senão para a má,
continua sendo válida apesar de tudo.
Voltando-se agora ao crente individual — note-se a mudança do
plural ao singular (tu, em vez de vós) — o apóstolo prossegue:
Queres ser livre do temor daquele que está em autoridade? Faz,
então, o bem, e receberás sua aprovação.
Isto não significa necessariamente que a pessoa que faz o bem vai
receber uma insígnia, faixa ou medalha de honra ou — falando em
termos da época de Paulo — um monumento. Mas quer dizer que aquele
que está em autoridade formará uma opinião favorável dessa pessoa de
boa conduta e a aprovará, quer seja só em seu coração ou talvez até por
meio de algum elogio expresso abertamente. Cf. Rm 2:29; 1Pe 2:14.
4. Porque ele é servo de Deus para te fazer bem.
O magistrado civil é certamente um servo de Deus visto que, tal
como o demonstraram os vv. 1 e 2, em todo caso ele foi designado por
Deus e recebeu sua autoridade de Deus. Em circunstâncias e condições
normais o governante, na esfera do governo civil, representa a vontade
divina com relação à conduta das pessoas em seu caráter de cidadãos.
Por outro lado, o propósito básico de quem está em autoridade não
é o de ferir mas o de ajudar: “te fazer o bem”. Como resultado da obra e
vigilância destes representantes do governo, o crente pode “viver quieta
e tranquilamente em toda piedade e honestidade” (1Tm. 2:2).
Mas se fizeres o mal, teme, porque não em vão usa a espada.
Romanos (William Hendriksen) 577
Aquele que faz o mal deve temer. Em primeiro lugar, deveria ter
tido temor de fazer o mal. E depois de tê-lo feito, é melhor que tema,
visto que o castigo não andará longe. Deve notar que o magistrado não
usa a espada “em vão”, quer dizer “sem razão” ou inutilmente. O
governante usa essa espada para inculcar o medo de fazer o mal; e para
infligir o castigo quando se fez o mal. Aquela opinião segundo a qual
Paulo só quer dizer que o imperador e quem o representa exercem o
poder militar para poder reprimir as forças da rebelião, não faz
verdadeira justiça ao presente contexto, que se refere a delinquentes em
geral, e não só a rebeldes. Por meio da espada se castiga o delito. De
fato, os criminosos perigosos até podem ser executados.
O fato de que no Novo Testamento o uso da espada está
frequentemente vinculado com a ideia de matar vê-se em passagens
como Lc 21:24; At 12:2; 16:27; Ap 13:10. Veja-se também Hb 11:14,
onde “escaparam ao fio da espada” quer dizer “escaparam da morte”.
Deve ficar claro, por conseguinte, que o argumento a favor de executar a
criminosos perigosos, que cometeram crimes horríveis, baseia-se não
somente em Gn 9:6 mas também em Rm 13:4.
Ele é servo de Deus, vingador para trazer a ira (de Deus) sobre o que
pratica o ml.
Aqui se repete a verdade que a autoridade é “servo de Deus”. Veja-
se vv. 1, 2 e o começo do v. 4. O apóstolo acrescenta, “… vingador para
trazer a ira (de Deus)” etc. Alguém perguntou: “a ira de quem?” A sua
própria ou a “de Deus?” A resposta, no entanto, é clara, visto que a
oração começa com as palavras: “É servo de Deus para trazer a ira”, a de
Deus, por conseguinte. Para provas adicionais veja-se sobre Rm 12:19.
Deus, em Sua infinita bondade, fez com que por meio de Paulo Sua
mensagem chegasse até a igreja de Roma, para que seus membros — e
ainda mais, todos os que lessem ou ouvissem ou lhes fosse explicada esta
carta ao longo das idades — pudessem ser guardados de praticar o mal e
(para que) pudessem, pela graça de Deus e pelo poder do Espírito Santo,
Romanos (William Hendriksen) 578
voltar-se a Deus buscando perdão e as forças para viver vidas ordenadas
e santificadas.
5. Por isso é necessário submeter-se, não somente para evitar a ira
(de Deus), mas também por causa da consciência.
Agora, a conduta política do cristão não deve estar motivada ou
regulada somente pelo temor de cair sob a ira de Deus. Ao contrário,
submeter-se à autoridade civil divinamente instituída tem que ver com a
relação do crente para com Deus. O crente sabe que é a vontade de Deus
que se sujeita às autoridades que Deus, em Sua providência, pôs sobre
ele para o seu bem. Por conseguinte, não submeter-se a eles faz com que
se eleve a voz acusadora da consciência. Portanto, por causa destas duas
razões, ou seja, para evitar a ira de Deus e para satisfazer a consciência, a
pessoa deve submeter-se voluntariamente à autoridade governante.
Este assunto da consciência não deve ser passado por alto
descuidadamente. É preciso levar em conta que a consciência iluminada
do crente é seu sentido de obrigação diante de Deus. É preciso prestar
atenção às palavras de 1Pe 2:13: “Por causa do Senhor submetei-vos a
toda autoridade instituída entre os homens”.
Sobre o tema da consciência veja-se também sobre Rm 2:15 e 9:1; e
também At 23:1; 24:16; 1Co 8:7, 10, 12; 10:25–29; 2Co 1:12; 4:2; 5:11;
1Tm. 1:5, 19; 3:9; 4:2; 2Tm 1:3; Tt 1:15.
6. Por isso também pagais 357 impostos, porque quando (as
autoridades) fielmente se dedicam a este fim são ministros de Deus.
O antecedente mais próximo à palavra “isso é “por causa da
consciência”. Era porque sua consciência lhes dizia que era justo pagar
os impostos que eles o faziam. Era o correto, visto que estava em
harmonia com o propósito de Deus para suas vidas. A arrecadação de
impostos não deve ser considerada uma imposição oprobriosa e tirânica.
Não, é algo necessário para a manutenção das condições que fazem
possível uma vida normal. Por isso os que fielmente cumprem o seu

357
Note-se a volta ao plural.
Romanos (William Hendriksen) 579
dever de arrecadar impostos o fazem em sua capacidade de ministros de
Deus.
Para a palavra “ministros” Paulo usa no original uma palavra (pl. de
leitourgos; cf. liturgia) que geralmente tem implicações religiosas. É
assim que os anjos são ministros de Deus (Hb 1:7) e espíritos
ministradores (Hb 1:14). Muito apropriadamente esta palavra é usada ao
referir-se a sacerdotes e, em Hb 8:2. Cristo, em Sua capacidade de sumo
sacerdote, é chamado “ministro (leitourgos) do santuário, e daquele
verdadeiro tabernáculo …” Também Paulo se denomina a si mesmo, e
muito corretamente, “ministro (leitourgos) de Cristo Jesus aos gentios”
(Rm 15:16). Não obstante, aqui em Rm 13:6, Paulo, em vez de usar a
palavra mais comum (pl. de diakonos, cf. diácono) como designação
destes servos que arrecadam impostos, chama-os leitourgoi; por ex.,
ministros; na verdade “ministros do Deus”.
Tudo o que foi dito antes, não sugere então que em todo caso as
autoridades devem sua autoridade não às pessoas mas a Deus, diante de
quem são responsáveis por todas as suas ações? E não se deduz daí que
os cidadãos devem considerá-los desse modo; e que quando estes
funcionários cumprem fielmente os seus deveres, até o de arrecadar
impostos, aqueles devem honrá-los como corresponde? 358
Naturalmente, este mesmo princípio tem também suas implicações
para os funcionários, tal como o faz notar corretamente Calvino ao dizer:
“Incumbe-lhes lembrar que tudo o que recebam do povo é, por assim

358
Consideradas de um ponto de referência ideal, quer dizer, tal como Deus as vê e deveriam ser
consideradas, as esferas espiritual e política não estão tão grandemente separadas como geralmente
pensamos. Note-se como no Novo Testamento aplica a ambas esferas a mesma terminologia:
Esfera Esfera
espiritual política
_ποτάσσω submeter-se a Rm 8:7 Rm 13:1
_ξουσία autoridade Ap 22:14 Rm 13:1
διάκονος servo Cl 1:7 Rm 13:4
λειτουργός ministro Rm 15:16 Rm 13:6
Romanos (William Hendriksen) 580
dizê-lo, propriedade pública e não deve ser gasta na gratificação de
complacências particulares”.
Em estreita conexão com a passagem que lhe precede de forma
imediata (“Esta é também a razão pela qual pagais impostos”, etc.),
Paulo prossegue:
7. Paguem a todos o que (lhes) deveis: ao que (lhe corresponda)
imposto, imposto; ao que tarifa, tarifa; a quem respeito, respeito; a quem
honra, honra.
Quanto às obrigações monetárias para com o governo, exorta-se
àqueles a quem a carta se dirige — também a todos nós — a que
qualquer coisa que se deva deve ser paga às pessoas indicadas: o
“imposto”, sobrecarregado a pessoas ou propriedades (Lc 20:22–25),
deveria pagar-se a quem o imposto corresponda; a “tarifa” alfandegária,
sobrecarregado a bens importados ou exportados, tem que ser abonado,
de modo similar, a quem corresponde.
Sobre a próxima expressão (“a quem respeito, respeito”) as opiniões
variam muito. A palavra que aqui se traduz “respeito” 359 indica às vezes
“terror” (veja-se v. 3, mais acima), ou “temor” (por exemplo, “aos
judeus”, Jo 7:13; 19:38; 20:19), ou “reverência”, com Deus como objeto
dela (Fp 2:12). A mesma palavra pode, no entanto, significar também
“respeito” (de um escravo por seu amo, 1Pe 2:18; e cf. Ef 5:33, onde o
verbo cognato é usado para indicar o respeito que uma mulher deve ao
seu esposo). Se levarmos em conta que aqui (em Rm 13:7) Paulo exorta
os romanos a dar aos funcionários o que lhes corresponde, a tradução
“respeito” pareceria ser a melhor. 360
O que Paulo quer dizer é provavelmente algo assim: «Não é
suficiente que vocês se limitem a pagar seus impostos. Dizer aos

359
φόβος (aqui ac. s. -ν).
360
Os argumentos que Cranfield usa para defender a teoria de que o apóstolo refere-se à dívida, ou
seja, de temor, que se lhe deve a Deus, não me convenceram. A referência a Mc 12:17, onde a palavra
nem sequer aparece, não resgata esta teoria. Mas para não pecar de ser injusto sugiro que se leia a
extensa argumentação do Cranfield em defesa de sua opinião, op. cit., pp. 670–673.
Romanos (William Hendriksen) 581
funcionários: ‘Aqui está o dinheiro, e agora fora daqui!’, não servirá.
Vocês devem respeitar estas pessoas por causa de sua investidura, e
honrá-los por sua fiel devoção a sua tarefa (veja-se v. 6). Lembrem: eles
são ministros de Deus!, e que por meio do que se faz com este dinheiro,
não só o povo em geral, inclusive vocês mesmos, beneficia-se, mas
também beneficia a causa do evangelho”.

F. Atitude do justificado para com todos. Rm 13:8–10

8. Não continueis devendo a ninguém, senão o amar-se uns aos


outros …
Outras traduções:
a. “Não deveis nada a pessoa alguma …”. 361 Embora do ponto de
vista gramatical esta tradução seja possível, estaria fora de foco com o
contexto, visto que Paulo acaba de dizer àqueles a quem se dirige que
devem pagar a todos tudo o que devem; ou seja, todas as suas dúvidas (v.
7). Por conseguinte não é o modo indicativo mas sim o imperativo o
orçamento aqui no v. 8.
b. “Não devais nada a ninguém …”. Esta tradução criaria a
impressão de que Paulo considera que todo empréstimo é errôneo,
posição claramente contrária à Escritura. Veja-se Êx 22:25; Sl. 37:26; Mt
5:42; Lc 6:35.
c. “Não devais nada a ninguém; só amai-vos uns aos outros”. Esta
tradução é talvez pior ainda. Divide o belo pensamento unitário do
original em duas ideias separadas: não só diz aos leitores-ouvintes que
nunca devam nada a ninguém, mas também os exorta a amar-se uns aos
outros! Não se pode pensar que a cláusula original de só oito palavras
transmita tudo isso. 362

361
A palavra que se usa no original pode ser interpretada quer seja como 2ª. pes. pl. pres. indic., ou
imperativo. O original usaria a mesma forma para ambos _φείλετε.
362
Não posso, por isso, concordar com a interpretação do Murray, op. cit., pp. 158, 159; em vez disso,
estou de acordo com o raciocínio do Cranfield neste ponto, op. cit., p. 674.
Romanos (William Hendriksen) 582
d. “Que não fique nenhuma dívida por pagar, exceto a contínua
dívida de amar-vos uns aos outros …”. Esta é a tradução da New
Internacional Version e, palavra mais, palavra menos, de outras duas.
Não desaprovo esta tradução, que é excelente. É completamente fiel ao
original. Por outro lado, se se deseja mostrar do modo mais claro
possível a estreita relação que existe entre os vv. 7 e 8, em que o original
usa palavras baseadas na mesma raiz, 363 a tradução “Pagai a todos o que
(lhes) devais …” (v. 7), seguido de “Não continuem devendo nada a
ninguém, senão o amar-vos uns aos outros …” (v. 8) pareceria impor-se.
Há três pensamentos que estão claramente implícitos aqui:
Em primeiro lugar, encontramos uma condenação do hábito de
alguns, que sempre estão preparados para pedir emprestado, mas que são
muito remissos em devolver a soma emprestada. Quanto a isso, veja-se o
Sl. 37:21: “O ímpio tomada emprestado e não paga …”.
Em segundo lugar, encontramos um louvor do amor, composto por
um autor que pouco tempo antes tinha escrito 1 Coríntios 13. Ele diz que
entre todas as dívidas que uma pessoa possa ter contraído há uma que
nunca pode ser paga totalmente, ou seja, a dívida do amor. Além disso,
no presente caso, Paulo não está pensando em primeiro lugar na dívida
que temos com Deus, mas sim, tal qual o indica o contexto, na dívida
que temos com o próximo. Trata-se, então …
Em terceiro lugar, de um amor de “uns por outros”. Mas esta
expressão, no caso presente, não significa meramente “por todos os
irmãos crentes”. Claro, não há dúvida que estes estão incluídos. Ainda
poderia dizer que estão incluídos de um modo especial (veja-se Rm
12:10, 13; Gl 6:10), mas ao acrescentar: “porque aquele que ama o
próximo cumpriu a lei” fica esclarecido que se inclui a todos aqueles
com quem o crente entra em contato — e em particular, naturalmente,
aqueles que têm necessidades especiais. De fato, em certo sentido
ninguém fica excluído deste amor que tudo abrange.

363
_φειλάς … _φείλετε
Romanos (William Hendriksen) 583
A santa lei de Deus, é certo, não salva ninguém. Veja-se Rm 8:3.
Não obstante, uma vez que uma pessoa foi justificada pela fé, por
gratidão, e motivada e capacitada pelo Espírito Santo, esta deseja fazer o
que Deus quer que faça. E isto se encontra na lei dos Dez Mandamentos
tal qual a resume em Lv 19:18, e mais tarde nas palavras de Jesus
registradas em Mt 22:39; Mc 12:31; Lc 10:27b.
9. Porque isto: “Não adulterarás, não matará, não furtarás, não
cobiçarás”, e qualquer outro mandamento que houver, resume-se na
declaração: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
O próprio fato de que Paulo mencione estes mandamentos na
sequência de 7, 6, 8, 10 (cf. Êx 20:1–17), sem mencionar sequer o quinto
e o nono, mas abrangendo-os com a expressão totalizadora “e qualquer
outro mandamento que houver”, demonstra que sua intenção principal
não é a de entrar no conteúdo de cada proibição. Antes, o que ele deseja
enfatizar na grande verdade, ou seja, que todos estes mandamentos que
têm que ver com a atitude do crente para com seus congêneres “são
todos reunidos sob um item” na grande regra abarcante: “Amarás o teu
próximo como a ti mesmo”.
Isso demonstra que cada mandamento negativo (“Não …”) é no
fundo um mandato positivo. O significado é, portanto: “Amarás, e por
isso não cometerás adultério mas preservarás o caráter sagrado do
vínculo conjugal. Amarás, e por isso não matarás, mas ajudarás o teu
próximo a manter-se vivo e bem. Amarás, e por isso não furtarás nada
que pertença ao teu próximo, mas antes, protegerás suas posses. Amarás,
e como resultado não cobiçarás o que pertence ao teu próximo, mas te
alegrarás de que seja dele”.
A expressão: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” merece
umas palavras de explicação. O que Paulo realmente quer dizer — e
Jesus antes dele — deve incluir pelo menos este pensamento: é verdade
que uma pessoa se amará a si mesma, e também é verdade que o fará
apesar do fato de que o “eu” a quem ama tem muitas faltas. Portanto “ele
Romanos (William Hendriksen) 584
certamente deve amar também o seu próximo. Pode ser que não goste
dele, mas deve amá-lo, e deve fazê-lo apesar das faltas desse próximo.
10. O amor não danifica o próximo. Portanto, o cumprimento da lei
é o amor.
Nas palavras: “O amor não danifica o próximo” temos um exemplo
de um tipo de expressão chamada litotes. Isto quer dizer que uma
expressão negativa deste tipo implica uma afirmação forte. É assim que
“Esse não é nenhum parvo” pode significar “Esse é muito ardiloso”. De
modo similar “O amor não danifica o próximo” quer dizer “O amor
beneficia grandemente o próximo”. “… não danifica” é um modo
elíptico de dizer “beneficia grandemente”. A razão pela qual esta
verdade é expressa aqui de forma negativa pode muito bem ser devido ao
desejo de fazê-la coincidir com as proibições da lei.
Preste-se atenção à beleza de estilo do v. 10: começa e conclui com
a palavra amor. O apóstolo é, por certo, muito lógico, visto que se o
cumprimento da lei não danifica o próximo, mas o beneficia, e se o amor
— e somente o amor — faz precisamente isso, então o cumprimento da
lei deve ser o amor.
É precisamente o amor produzido pelo Espírito, e só este amor, que
é o suficientemente poderoso para fazer com que uma pessoa tire todos
os obstáculos e ame o seu próximo, embora essa pessoa não seja
agradável!
É o amor que: “não maltrata, não procura seus interesses, não se ira
facilmente, não guarda rancor ... Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo
suporta” (1Co 13:5, 7, NVI). O amor humano desse tipo tem sua origem
em Deus, porque “Deus é amor” (1Jo 4:8). Foi Jesus quem, poucas horas
antes de Sua crucificação, disse aos Seus discípulos: “Dou-lhes um novo
preceito, que continueis amando uns aos outros; como eu vos amei,
assim continuem amando-vos uns aos outros” (Jo 13:34).
Romanos (William Hendriksen) 585
G. Atitude do justificado para com o Senhor Jesus. Rm 13:11-14

O estudo desta seção seguirá o seguinte esboço:


a. Exegese dos vv. 11, 12a; dos vv. 12b, 13; e do v. 14.
b. Declaração do problema que surge com relação a esta seção (vv.
11–14).
c. Análise das soluções propostas.
Que há uma relação estreita entre os vv. 11, 12a e o que os precede
é evidente pelas palavras iniciais:
11, 12a. E (fazei isto) especialmente porque sabeis quão crítico é este
tempo. Chegou a hora para que desperteis do sono, porque nossa salvação
está agora mais perto que quando (primeiro) cremos. A noite está muito
avançada; aproxima-se o dia. 364
Quando Paulo diz: “E (fazei isto)”, ele se refere como mínimo ao
que encontramos nos versículos que precedem imediatamente a essa
exortação. Por conseguinte, Paulo agora diz: “Amai o vosso próximo
como a vós mesmos”, porém não o façais somente porque a lei o
demanda, mas também, e especialmente, porque sabeis quão crítico é
este tempo em que vivemos”. É possível, no entanto, que ao dizer: “E
(fazei isto)” ele se esteja referindo ao contexto mais amplo, que se
retroage até Rm 12:1s.
Ao dizer: “especialmente porque sabeis quão crítico é este tempo”,
e acrescentar imediatamente: “Chegou a hora para que desperteis de
364
κα_ το_το, e a respeito; ou e também isto; e especialmente. Veja-se 1Co 6:6, 1.
ε_δότες, 2ª. perf. masc. at. nom. pl. part, de ο_δα, com sentido de presente. Deve-se suprir o verbo
principal, talvez ποιήσατε, 2ª. p. pl. aor. at. imper. de ποιέω, fazer.
καιρόν, acus. s. de καιρός, que aqui provavelmente signifique o tempo crítico, o momento
decisivo, o momento do destino. Em Rm 5:6 e 9:9 esta palavra significa tempo assinalado; em Rm
8:18 e 11:5, tempo presente. A palavra καιρός deve distinguir-se de χρόνος, que indica tempo em
progressão do passado até o presente e para o futuro, progressão por momentos.
_πνου, gen. s. de _πνος, sonho, adormecimento. Cf. hipnotismo.
_γερθ_ναι, aor. med. e pas. inf. de _γείρω, despertar; em med. animar-se; daí, despertar; aqui usa-
se simbolicamente, animando-se à uma vida de maior santificação.
προέκοψεν, 3ª. pes. s. aor. ind. de προκόπτω, avançar, aqui; estar (muito) avançada.
_γγικεν, 3ª. pes. s. perf. ind. de _γγίζω, aproximar-se, aproximar-se.
Romanos (William Hendriksen) 586
vosso sono, porque nossa salvação está agora mais perto que quando
(primeiro) cremos”, ele está exortando os membros da igreja de Roma —
e a todos nós — a deixar de lado seus (nossos) hábitos pecaminosos e,
com a ajuda do Espírito Santo, a avançar na santificação. “Nossa
salvação está agora mais perto que quando (primeiro) cremos” quer
dizer: «A culminação de nossa salvação está agora mais perto de nós no
tempo do que o estava quando confessamos pela primeira vez nossa fé
no Senhor Jesus Cristo e fomos batizados».
É evidente que o apóstolo recorre aqui à escatologia; isto é, à
doutrina da volta do Senhor. Usa-a como incentivo para viver uma vida
santa. Encontra-se exortações e argumentos similares em Fp 4:4–7; 1Ts
5:1–11, 23; Hb 10:24s; Tg 5:7–11; 1Pe 4:7–11 e, naturalmente, também
nos ensinos de Jesus (Mt 25:31–46; Mc 13:33–37 etc.).
Este apelo à escatologia é mais compreendido facilmente se
levarmos em conta que o Senhor deve recompensar os Seus servos”. Cf.
a parábola dos Servos alertas (Lc 12:35–48); a Das cinco jovens néscias
e as cinco sensatas (Mt 25:1–13) e também, na verdade, ao resto de Mt
25. Acrescente-se a isto Rm 14:10; 2Co 5:10; 2Tm 4:1; Tg 5:9; 1Pe 4:5;
cf. Ec 12:14.
As palavras: “A noite está muito avançada; aproxima-se o dia”
indicam que para o povo de Deus a presente era de escuridão, pecado e
tristeza aproxima-se rapidamente do seu fim; e que a inacabável era de
luz, santidade e alegria está perto. É como se Paulo, por assim dizer,
ouvisse o grito da sentinela noturna: “Despertai, está amanhecendo!”
Mas aqui temos que tomar cuidado. Paulo não quis dizer: “Cristo
voltará amanhã. Voltará imediatamente”. Um ensino assim teria sido
uma impugnação do que declarou anteriormente, ou seja, que a volta
estaria precedida pelo ocorrer da apostasia e pela chegada do iníquo, o
filho da perdição (2Ts 2:1–5). Compare-se isso com o ensino similar do
próprio Jesus Cristo (Mt 24:21, 29; 25:5). Então, o que o apóstolo está
dizendo é o seguinte: “O dia chegará muito em breve”.
Romanos (William Hendriksen) 587
12b, 13. Assim que, desprezemos as obras das trevas e vistamos a
armadura da luz. Andemos honestamente, como em pleno dia, não em
orgias e bebedeiras, não em excessos sexuais e depravação, não em
dissensão e ciúme. 365
Devido ao tempo crítico em que viviam Paulo e seus coetâneos, e
por causa das tremendas realidades que estavam em jogo — nada menos
que glorificar a Deus para sempre no céu a sofrer para sempre com
Satanás e todos os condenados no inferno —, Paulo insiste com todos
(inclusiva a si mesmo: note-se o “desprezemos”) a desprezar as obras das
trevas e a vestir a armadura da luz.
Ele resume as obras da escuridão no v. 13. E embora os seis vícios
que se mencionam não constituem um lista completa, são o
suficientemente representativos para indicar o que o apóstolo tem em
mente. Por outro lado, nos permite, logicamente, acrescentar “e outros

365
_ποθώμεθα, ponhamos de lado; e _νδυσώμεθα, nos ponhamos, são a. pen. pl. aor. med. subj.;
respectivamente, de _ποτίθημι e de _νδύω. Deste último verbo, a 2ª. pes. aor. imper. med. aparece no
v. 14 (“pode-vos”, ou “revesti-vos”).
τ_ _πλα, armas, armadura; veja-se também sobre Rm 6:13, nota 174 inclusive.
_ς, como, que quer dizer: como na verdade sucede.
ε_σχημόνως, lit. em boa forma; por conseguinte: de forma agradável, com graça, honradamente.
Cf. 1Co 14:40; 1Ts 4:12.
Os seguintes seis substantivos (três pares de cada um) estão todos dados no caso dativo. No
original os quatro e primeiros substantivos estão no pl., os restantes dois em sing.
κ_μος (veja-se também Gl 5:21; 1Pe 4:3), farra desbocada, folguedo, orgia.
μέθη (Lc 21:34; Gl 5:21), embriaguez.
Quanto ao significado de κοίτη veja-se sobre Rm 9:10. Aqui (em Rm 13:13) significa indecência,
excesso sexual.
_σέλγεια, desenfreio, luxúria; o mesmo que em Mc 7:22; 2 Cor. 12:21; Gl 5:19; Ef 4:19; 1Pe 4:3;
2Pe 2:2; Jd 4.
_ρις (Rm 1:29) e Rm 13:13, a encontra também em 1Co 1:11; 3:3; 2Co 12:20; Gl 5:20; Fp 1:15;
1Tm. 6:4; e em Tt 3:9.
ζ_λος, segundo o contexto pode significar zelo, entusiasmo, ardor (Rm 10:2; 2Co. 9:2; Fp 3:6);
mas também pode significar ciúme, como aqui em Rm 13:13 e em 1Co. 3:3; 2Co. 11:2; 12:20; Gl
5:20. Em 2Co. 7:7, 11 parece referir-se à uma preocupação candente. O πυρ_ς ζ_λος de Hb 10:27 é
um fogo desatado, devorador; e o ζ_λος de Tg 3:14, 16 indica inveja. Esta palavra também está em Jo
2:17 com o sentido de zelo, e duas vezes no livro de Atos (At 5:17; 13:45), com o significado de
ciúme.
Romanos (William Hendriksen) 588
semelhantes” com a lista, como sucede numa passagem similar embora
mais extensa que encontramos em Gl 5:19–21.
Estes vícios compreendem as obras da escuridão, que com
frequência ainda são praticadas na escuridão, mas que por certo são
sempre incitadas pelo “príncipe das trevas”.
Embora não seja necessário supor que nem os judeus nem os
gentios estivessem livres destas más obras e inclinações, algumas das
quais se mencionam, nos lembram especialmente os pecados atinentes
aos gentios (cf. Rm 1:28s). Tal como se demonstrou anteriormente na
introdução a maior parte da igreja de Roma procedia do mundo dos
gentios. há mais informação sobre os vícios aqui mencionados na nota
365.
Os que vivemos nesta época em que toda a ênfase recai no positivo,
e na qual somos advertidos constantemente a nunca dizermos “Não
faças” mas sempre “Faze”, notamos que Paulo não tem medo de dizer:
“Não … nem … nem”.
Mas ele também sabe que a única maneira de conquistar o mal é por
meio do bem. É assim que entre duas expressões negativas:
“Desprezemos” e “não em orgias”, etc., ele coloca: “vistamos a
armadura da luz”. Agora, se trevas indica estupidez, depravação e
desesperança (espiritual), a luz certamente manifesta aprendizagem,
amor e alegria (a alegria inexprimível e cheia de glória que se menciona
em 1Pe 1:8), embora no contexto presente a ênfase recaia no amor (Rm
13:8–10).
Note-se que aqui Paulo utiliza mais uma vez linguagem militar
(“armadura de luz”), coisa que faz com frequência (Rm 6:13; 13:2; 1Co
9:7; 2Co 9:7; 10:4; Ef 6:10–20; 1Ts 5:8; 2Tm 2:3). Deve haver uma
razão para isso. Um bom soldado não se afrouxa em sua tarefa, esforça-
se ao máximo, tem uma meta definida em mente, utiliza uma armadura e
armas eficazes, obedece regras. Não se aplica tudo isso também aos
soldados de Cristo?
Romanos (William Hendriksen) 589
14. Antes, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não façam provisão
para (a satisfação de) os apetites da carne. 366
Esta admoestação é um resumo muito adequado e belo do que o
apóstolo esteve dizendo em Rm 12:1–13:13. Abrange tanto a justificação
como a santificação. Isto quer dizer que, depois de haver aceito a Cristo
e ter sido batizados, os crentes não têm que voltar a dormir sobre seus
louros, mas devem ocupar-se em fazer na prática o que já fizeram em
princípio (Gl 3:27). É como se Paulo estivesse dizendo: «Depois de ter
posto de lado a roupagem do pecado, revistam-se cada vez mais com o
manto da justiça de Cristo, para que quando o demônio lembrar vocês do
seu pecado, possam imediatamente lembrar a ele e a vocês mesmos
sobre a nova posição de vocês diante de Deus.
«Estejam cada vez mais unidos espiritualmente a Cristo,” para que
Ele seja a Luz de sua luz, a Vida de sua vida, a alegria de sua alegria, e a
Força de sua força”.
A pessoa que, em virtude do poder capacitador do Espírito Santo,
faz isto pode cantar:
Jesus o é tudo para mim …
Will L. Thompson
Uma pessoa assim não deve fazer provisão para a satisfação dos
obrigações de sua natureza humana pecadora. É certo, haverá tentações,
visto que o crente continua sendo um pecador até ao ir-se transformando
num santo (Rm 7:14s). Mas se for realmente um filho de Deus, deve
aprender e aprenderá a controlar e dominar cada vez mais estas
incitações que há no âmbito do Prazer (apetências desordenadas para a

366
Quanto a _νδύσασθε, veja-se sob a nota anterior, Nº. 365.
σαρκός, “para a carne” (genit. obj.). A cláusula final significa literalmente: “e para a carne não
façam (ou: deixem de fazer) provisão para sua luxúria”. Outra instância de expressão abreviada. Sobre
o significado de σάρξ veja-se nota 187.
O significado h. (natureza humana pecadora) é aquele que tem aplicação aqui.
πρόνοια, só aparece no Novo Testamento aqui (no sentido de provisão) e em At 24:2 (previsão).
_πιθυμίας, acus. pl. de _πιθυμία, que aqui significa luxúria, desejo pecaminoso. Pode encontrar um
estudo mais detalhado desta palavra no C.N.T. sobre 2Tm 2:22, nota 147.
Romanos (William Hendriksen) 590
satisfação de apetites físicos), o Poder (desejo de brilhar e ser
dominante) e as Posses (o apetite incontrolado por posses materiais e
pelo prestígio que as acompanham). Com Cristo como Senhor soberano
a vitória está assegurada!

*****

Sucedeu a fins do verão do ano 386 de nossa era. No jardim de uma


casa de campo perto de Milão, na Itália do norte, encontrava-se sentado
Agostinho, nascido em 13 de novembro de 354. Na beira de um banco
havia um exemplar das epístolas de Paulo. Mas ele não parecia estar
especialmente interessado no mesmo. Experimentava uma intensa luta
espiritual, uma agitação violente do coração e da mente. Levantando do
banco, jogou-se na grama debaixo de uma figueira.
Enquanto permanecia ali ouve a voz de uma criança, embora não
pôde dizer se era menino ou menina. Essa voz repetia vez após vez:
“Tolle, legue; tolle, legue” (“Toma e lê; toma e lê”).
Levantou-se, voltou ao banco, e após tomar o exemplar das
epístolas de Paulo, leu a primeira passagem na qual caíram seus olhos, a
versão latina de Rm 13:13b., 14 - “Não em orgias e bebedeiras, não em
excessos sexuais e depravações, não em dissensão e ciúme. Antes,
revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não façais provisão para (a
satisfação de) os apetites da carne”.
Foi esta passagem, junto com o amor e orações constantes de sua
devota mãe, Mônica, os que levaram Agostinho à sua conversão,
chegando ele a ser eventualmente um dos maiores líderes da igreja.
Veja-se Confissões VIII, xII. 28, 29.

*****
Romanos (William Hendriksen) 591
O problema
Paulo escreveu: “Nossa salvação está agora mais perto que quando
(primeiro) cremos. A noite está muito avançada; aproxima-se o dia” (Rm
13:11, 12). Mas passaram mais de dezenove séculos desde que o
apóstolo escreveu isto. Será que cometeu um erro?
Nem todos os expositores tentam resolver este problema. Alguns
nem sequer o mencionam. Aqueles que o enfrentam propõem alguma das
seguintes soluções:

Soluções propostas
I
Paulo não está pensando necessariamente — ou pelo menos não
exclusivamente — no dia da vinda de Cristo. Em possível que ele tenha
estado pensando no momento em que a pessoa morre, ou pelo menos
incluindo tal ideia em sua consideração. É então quando para o filho de
Deus a escuridão torna-se luz. 367
Esta solução não nos servirá, visto que quando Paulo se refere, no
caso que nos ocupa, à salvação futura, deve ter estado pensando na
culminação da salvação para o corpo e a alma. Esta grande bênção não
será outorgada aos crentes um por um, mas a todos os filhos de Deus
simultaneamente quando Cristo voltar. Além disso, o “dia” ao qual ele se
refere no v. 12 é melhor interpretado dando o mesmo sentido que se dá a
este termo em 1Co 3:13; 1Ts 5:4; Hb 10:25; e em 2Pe 1:19. Em todos
estes casos a referência aponta para o dia da volta de Cristo e do juízo
final.

367
Assim o veem Sanday e Headlam, op. cit., p. 378; Greijdanus, Kommentaar, Vol. II, pp. 578, 579;
A. T. Robertson, Word Pictures IV, p. 410; Cranfield, op. cit., p. 682.
Romanos (William Hendriksen) 592
II
As palavras, “Nossa salvação está agora mais perto que quando
(primeiro) cremos. A noite está muito avançada; aproxima-se o dia”
significa que no desenvolvimento do plano salvífico de Deus falta
somente um grande evento mais para suceder, ou seja, a volta de Cristo
para julgar os vivos e os mortos. 368
Esta proposta é muito útil. Poderíamos resumir o curso da história
da redenção como segue:

Neste diagrama a ENCARNAÇÃO inclui a crucificação (2Co. 8:9).


Agora estamos vivendo na última parte do período que se estende da
ENCARNAÇÃO até a CONSUMAÇÃO; vale dizer, na parte que se
estende da EXALTAÇÃO (ressurreição, ascensão, coroação,
derramamento do Espírito Santo) até a CONSUMAÇÃO (Segunda
vinda, ressurreição dos mortos, juízo final).
Esta resposta, por conseguinte, contribui muito para explicar a
linguagem que Paulo utiliza aqui em Rm 13:11, 12. Mas talvez não seja
suficiente. Não consegue explicar o que quis dizer o apóstolo quando
disse “porque a nossa salvação está agora mais perto que quando
(primeiro) cremos”, visto que se poderia ainda apresentar a seguinte

368
Murray, op. cit., Vol. II, p. 168; e vários outros.
Romanos (William Hendriksen) 593
objeção: “Se o tempo que há entre a redação de Romanos e a chegada
(na volta de Cristo) da plena salvação é ainda não menor de dezenove
séculos, que diferença faz realmente o intervalo entre (a) começar a crer
e (b) o ‘agora’ (da data da redação de Romanos?)” Se levarmos em conta
o período muito longo de mais de dezenove séculos, é difícil entender
por que Paulo diria: “porque a nossa salvação está agora mais perto que
quando (primeiro) cremos”. Temos vontade de dizer: “Sim, Paulo, mais
perto, mas certamente por uma muito pequena fração de tempo!”
Por outro lado, ainda temos alguma dificuldade com a expressão
“aproxima-se o dia”, quando notamos que passaram mais de dezenove
séculos, e a predição continua sem cumprir-se.

III
Talvez devemos fazer referência, em primeiro lugar, a 2Pe 3:8.
Uma interpretação completa dessa passagem corresponde a comentários
sobre 2 Pedro. Mas pode-se fazer uma observação. Aos incrédulos e
zombadores da época de Pedro foi dito que seu modo de calcular o
tempo estava errado.
Por uma razão diferente, o cálculo de tempo adotado pelos que têm
dificuldade com Rm 13:11, 12 também esteja provavelmente errado. O
erro não é cometido por Paulo, mas por nós quando aplicamos a
cronologia da terra ao modo de vida do céu. Na verdade não temos
direito de dizer que os santos a quem Paulo enviou esta carta deviam
esperar pelo menos dezenove séculos antes de que para eles se
transformasse a noite da escuridão na luz da plena salvação.
O que sucede quando uma pessoa morre e sua alma vai ao céu?
Torna-se essa alma atemporal? Adota um dos atributos incomunicáveis
de Deus, o da eternidade, de existência fora do tempo? Claro que não.
Nem naquele então nem nunca. A passagem que frequentemente se cita
(Ap 10:6) não demonstra nada a respeito. Tampouco o fazem alguns de
Romanos (William Hendriksen) 594
nossos hinos populares que se baseiam numa tradução errada de Ap
10:6. “Não mais tempo” deveria ser “não mais demora”.
No entanto, o que sim é verdade é que o modo de computar o tempo
será diferente do outro lado da tumba. A dor implica tempo lento, mas a
alegria inexprimível e cheia de glória indica tempo que passa
rapidamente. Ap 6:11 nos diz que para as almas redimidas que estão
“debaixo do altar” o período entre seu martírio e o juízo final será
equivalente a um “um pouco de tempo”. Vamos adaptar-nos a uma
escala diferente de tempo. 369
Assim que, chegamos à conclusão que o que Paulo escreveu aqui
em Rm 13:13, ou seja: “Nossa salvação está agora mais perto que
quando (primeiro) cremos”, realmente tem sentido. E também o tem: “A
noite está muito avançado; aproxima-se o dia”.
Não temos que esquecer, no entanto, que a lição principal de Rm
13:11–14 é: “desprezemos as obras das trevas e vistamos a armadura da
luz”. Em outras palavras” “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo”.

Lições práticas derivadas de Romanos 13


Rm 13:1. “Submeta-se toda pessoa às autoridades que governam”.
Chegou o ano da eleição presidencial. Num periódico alguém escreveu
um artigo que poderia resumir-se assim: “O pastor, em sua pregação, não
deveria considerar as implicações do evangelho para o exercício da
cidadania cristã, visto que a Igreja e o Estado devem permanecer
separados”. Verdadeiro ou falso?
Rm 13:2, 3, 4. “… aquele que se opõe à autoridade está resistindo a
ordenança de Deus … os governantes não são um terror para a boa
conduta senão para a má … ele [o magistrado] é servo de Deus para te
fazer bem.”

369
Há uma análise mais completa de TEMPO no CÉU em G. Hendriksen, La Biblia y la vida
venidera, pp. 96–98.
Romanos (William Hendriksen) 595
Se a igreja deseja exercer uma influência para bem sobre o Estado,
não deveria recorrer à separação mas à infiltração espiritual. Não nos
surpreende que pouco tempo depois Paulo pudesse escrever: “… fez-se
notório por toda a guarda pretoriana e a todos outros que minhas cadeias
são por Cristo” (Fp 1:13); e “Todos os santos vos saúdam especialmente
os da casa de César” (Fp 4:22).
Rm 13:6. “Por isso também pagais os impostos, porque quando (as
autoridades) fielmente se dedicam a este fim, são ministros de Deus”.
Este pensamento, não faz com que o pagar impostos seja uma carga
menos dolorosa?
Rm 13:8. “Não continuem devendo nada a ninguém, senão o amar-
vos uns aos outros …”.
Procurar pagar uma dívida contínua pode parecer uma tarefa
frustrante. Contudo, no caso que nos ocupa isto não é realmente assim,
visto que no processo de saldar esta dívida a pessoa recebe quanto menos
as seguintes bênçãos: (a) a satisfação de saber que estamos servindo ao
próximo; (b) a certeza da salvação (1Jo 3:18, 19) e (c) a convicção de
que estamos fazendo o que Deus quer que façamos; quer dizer, que por
gratidão nós, com a ajuda do Espírito Santo, estamos cumprindo sua lei.
Rm 13:12. “A noite está muito avançada; aproxima-se o dia”.
Disse o pastor do púlpito: «Sobre o dia e a hora da volta de Cristo
não sabemos nada (Mt 24:36). De fato, sobre a vida depois da morte a
Bíblia não nos diz quase nada. Por conseguinte, os que querem entregar-
se a febris especulações, façam-no. Quanto a mim, concentrarei minha
atenção em assuntos mais importantes». É este um bom enfoque do
assunto?
Romanos (William Hendriksen) 596
Resumo de Romanos 13
Depois de ter falado sobre a atitude correta dos crentes para com
Deus, para com os irmãos na fé e para com os estranhos (inimigos
inclusive), Paulo passa agora a descrever como devem relacionar-se os
filhos de Deus com as autoridades que governam. Paulo diz que estes
governantes foram constituídos por Deus, pelo qual quem se opõe a eles
se estão resistindo às ordenanças divinas. Além disso, os receptores da
carta devem ter em mente que os magistrados foram constituídos por
Deus para promover os interesses do povo sobre o qual foram postos a
governar. Por esta razão, para evitar a ira de Deus e por causa da
consciência, aqueles para quem foi escrita a carta — crentes de todas as
épocas — devem submeter-se às autoridades civis. Os que tomam o
caminho oposto, convém lembrar-se que se estão opondo ao próprio
Deus; e também que o magistrado não em vão usa a espada.
Também é preciso pagar impostos, de qualquer tipo que sejam; e
quem os arrecada devem ser respeitados judiciosa e fielmente. Esta seção
conclui com as palavras: “Pagai a todos o que (lhes) deveis: ao que
(correspondem) impostos, impostos; ao que tarifas, tarifas; ao que
respeito, respeito; ao que honra, honra” (vv. 1–7).
Depois de dizer: “Pagai a todos o que (lhes) deveis”, Paulo
acrescenta: “Não continuem devendo nada a ninguém, senão o amar-vos
uns aos outros”. Por meio destas palavras ele condena o costume
daqueles que sempre estão preparados para pedir emprestado e sempre
lerdos para devolver; enfatiza que a dívida de amor que temos para com
os demais nunca poderá ser saldado completamente; e deste modo
esclarece que em nosso abraço de amor não só temos que incluir os
irmãos crentes, mas também a qualquer pessoa a quem Deus tenha posto
em nosso caminho para que a ajudemos e protejamos, qualquer que seja
sua necessidade. Declara que: “Porque isto, ‘Não adulterarás, não
matarás, não furtarás, não cobiçarás’, e qualquer outro mandamento que
houver, resume-se na declaração: ‘Amarás o teu próximo como a ti
Romanos (William Hendriksen) 597
mesmo’. O amor não danifica o próximo. Portanto, o cumprimento da lei
é o amor” (vv. 8–10).
É claro, portanto, que devemos amar o próximo como a nós
mesmos visto que isso é o que a santa lei de Deus demanda. O apóstolo
acrescenta agora outra razão pela qual devemos fazê-lo, e provavelmente
também por que temos que nos esforçar para viver segundo todas as
exortações que encontramos em Rm 12:1s (devoção total a Deus, etc.).
Ele escreve: “E (fazei isto) especialmente porque sabeis quão crítico é
este tempo. Chegou a hora para que desperteis de (vosso) sono, porque
nossa salvação está agora mais perto que quando (primeiro) cremos. A
noite está muito avançada; aproxima-se o dia”. É evidente que se estava
referindo ao dia da volta de Cristo em glória. Nas páginas acima ficou
indicado que o que ele disse quanto ao caráter iminente deste grande
evento e sobre a plena salvação para a alma e o corpo, a ser comunicada
a todos o que andam na luz, é certo. Paulo, portanto, exorta os receptores
da carta a abandonar essa classe de atos que se associam com a escuridão
(orgias, bebedeiras … dissensão, ciúme), e, em vez disso, a vestir “a
armadura da luz”. Para fechar esta seção, ele diz: “Revesti-vos do Senhor
Jesus Cristo [quer dizer, esforçai-vos por obter uma união espiritual
plena com Ele], e não façais provisão para (a satisfação de) os apetites da
carne” (vv. 11–14).
Romanos (William Hendriksen) 598
ROMANOS 14
H. Atitude do justificado para com o fraco e o forte. Rm 14:1-23

Paulo, ao ir chegando ao fim desta epístola percebe que há um


importante problema que não abordou ainda, ou seja, o da relação entre
os fracos e os fortes. Os fortes eram aqueles que podiam captar o
significado da morte de Cristo para a vida diária; quer dizer, para a
comida e a bebida, etc., os fracos não podiam fazê-lo.

1. A origem do problema
Deus tinha estabelecido certas regras com relação a animais puros e
impuros. Só os puros eram permitidos como comida. Ver Lv 11:1–45; Dt
14:3–21. Cf. Dn 1:8s; Tobias 1:10–12; 1 Mc. 1:62; 2 Mc. 7; Josefo,
Antiguidades IV.vi.8.
Com relação ao seu ensino de que o que entra numa pessoa de fora
não é o que o torna impuro, Jesus tinha pronunciado puros todos os
alimentos (Mc 7:15–19). Mas se levarmos em conta que até Pedro foi
lento em apropriar as plenas implicações deste pronunciamento do
Senhor, tal qual o demonstram At 10:9–16; 11:1–18; Gl 2:11–21, é
compreensível que a situação seria ainda mais difícil a outros judeus
conversos ao cristianismo.
Há os que têm sugerido que na igreja de Roma o choque entre quem
comia carne e quem se abstinha de fazê-lo tornou-se mais explosivo
quando os judeus que tinham sido expulsos da cidade por Cláudio (veja-
se a Introdução) retornaram. Durante sua ausência a igreja de Roma não
teve dificuldades, mas quando eles voltaram a Roma começou a
desenvolver-se uma relação um tanto tensa entre os dois grupos étnicos.
Não se pode determinar se esta teoria é correta, mas poderia ser. A
opinião segundo a qual “os fortes” eram a parte gentílica da
congregação, a maioria (veja-se a Introdução), enquanto “os fracos”
Romanos (William Hendriksen) 599
eram a parte judaica, parece ser confirmada por Rm 15:7s (veja-se sobre
tal passagem). No entanto, isso não significa que somente gentios
pertenciam à parte forte, e só judeus à fraca. Paulo era um “hebreu de
hebreus”; não obstante, ele se incluía entre os fortes (Rm 15:1).
Não é acaso que Cristo, por Sua morte na cruz, tinha cumprido, e
por isso abolido, os símbolos do Antigo Testamento? E se até as regras
dietéticas estabelecidas divinamente tinham perdido validez, não devia o
mesmo ser verdade, e ainda mais definitivamente, com relação a todas as
regras humanas que se tinham imposto sobre as mesmas?
Por certo que sim, mas esta inferência legítima não tinha sido tirada
por todo crente em Cristo. Muitos deles, especialmente os que viviam em
Jerusalém e em sua zona circundante, embora também em Roma e
provavelmente em outros lugares, continuavam apegados às suas
tradições”.
Agora, enquanto não se adjudicasse significado salvífico ou mérito
de nenhum tipo à manutenção de sortes regra e estatutos, e que não se
ocasionasse ofensa, esta persistência a aferrar-se ao antigo podia ser
tolerada. Seus aderentes deviam ser tratados com amor e paciência. Isto
era certo especialmente durante o que poderíamos denominar “o período
de “transição”.
No entanto, nas comunidades mistas imediatamente se
apresentaram problemas. Era inevitável que os costumes — gentios
contra judaicos — viriam a estar em conflito. O fato de que a lei de
ordenanças tinha sido cravada na cruz, e que junto com isso todas as
regras de origem humana haviam logicamente perecido, era algo que não
tinha ficado claro para todos os crentes em Cristo. E o fato adicional e
estreitamente vinculado ao anterior, que “em Cristo” o muro de
separação entre judeu e gentio tinha sido derrubado para nunca voltar a
ser erigido, era algo frequentemente ignorado, como o é até hoje em
certos círculos!
Romanos (William Hendriksen) 600
2. O que os dois grupos — os fortes e os fracos — tinham em comum:
a. Os membros de cada grupo devem ser considerados como
verdadeiros crentes (Rm 14:1–4, 6, 10, 13).
b. Cada grupo criticava o outro (14:3, 4, 13).
c. Cada grupo terá que prestar contas de si mesmo ao Senhor (Rm
14:11).

3. Os pontos com relação aos quais os dois grupos diferiam:


a. Os fortes criam que lhes era permitido comer de tudo (carnes
tanto como verduras); os fracos eram vegetarianos (Rm 14:2).
b. Os fortes consideravam que todos os dias eram “bons”. Os fracos
consideravam que alguns dias eram melhores que outros (Rm 14:5). A
ênfase recai sobre o ponto a.

4. A atitude de Paulo para os dois grupos e suas exortações


dirigidas aos grupos e à congregação em geral:
a. Ao menos num ponto importante Paulo coincide com os fortes,
ou seja, em crer que nada (nenhum alimento) é impuro em si mesmo
(Rm 14:14, 20; 15:1).
b. Exorta cada grupo a não desprezar o outro (Rm 14:3, 5, 19).
c. Fica especialmente enfático ao denunciar a atitude de alguns
fortes para com os fracos (Rm 14:14–21), e exorta os fortes a suportar
com amor as fraquezas dos fracos (Rm 15:1).
d. Enfatiza que este assunto de comer e beber não é nem
remotamente tão importante como o de ser cidadão do reino de Deus,
visto que a essência do reino não é “comer e beber; mas sim justiça e paz
e alegria no Espírito Santo” (Rm 14:17).
e. Exorta a ambos os grupos — de fato, a toda a congregação — a
buscar as coisas que levam à paz e à edificação mútua (Rm 14:19; 15:2,
3).
Romanos (William Hendriksen) 601
f. Assinala o exemplo de Cristo, quem não Se agradou a Si mesmo,
mas esteve disposto, por amor a nós e para a glória de Deus, a sofrer
recriminação (Rm 15:3–6).
g. Resume suas exortações, rogando-lhes: “Aceitem-se uns aos
outros, da mesma forma que Cristo os aceitou, a fim de que vocês
glorifiquem a Deus” (Rm 15:7, NVI). Ele demonstra que em Cristo os
judeus e os gentios obtêm sua unidade. Diz que “Cristo se tornou servo
dos que são da circuncisão, por amor à verdade de Deus ... a fim de que
os gentios glorifiquem a Deus por sua misericórdia”, citando passagens
do Antigo Testamento para comprovar o que acaba de dizer com relação
aos gentios (Rm 15:8–12, NVI).
h. Ele conclui esta seção — e em certo sentido, toda a carta até este
ponto — com a bela oração e voto: “Que o Deus da esperança os encha
de toda alegria e paz, por sua confiança nele, para que vocês
transbordem de esperança, pelo poder do Espírito Santo” (Rm 15:13,
NVI).

5. Semelhanças e diferenças entre o ensino de Paulo (com respeito


a dietas e dias) em Romanos e em outras epístolas:
Há semelhanças e também diferenças entre o que Paulo diz sobre
este tema aqui em Romanos, por um lado, e o que, por outro lado, diz a
respeito em 1 Coríntios, Gálatas e Colossenses; diferenças que não têm
que ver com a doutrina mas com enfoque e estilo.

a. Romanos e 1 Coríntios
Tanto aqui em Romanos como em 1Co 8:1–13; 10:14–33 Paulo
ensina que a igreja — e naturalmente também os crentes individualmente
— deve tratar com consideração e ternura os que são fracos; quer dizer,
os que não são, ou não parecem ser, capazes de captar o significado da
morte de Cristo para a vida diária. Os fortes e os fracos devem tratar-se
mutuamente com bondade.
Romanos (William Hendriksen) 602
“Aquele que come de tudo não deve desprezar o que não come, e
aquele que não come de tudo não deve condenar aquele que come, pois
Deus o aceitou” (Ro. 14:3, NVI). “Contudo, tenham cuidado para que o
exercício da liberdade de vocês não se torne uma pedra de tropeço para
os fracos” (1Co. 8:9, NVI).
Na passagem de Coríntios Paulo fala de comidas oferecidas aos
ídolos (1Co 10:20, 28). Isto não é mencionado em Romanos, embora
talvez esteja implícito. Também há em Romanos (Rm 14:5s) uma
referência à observância de dias especiais. Este elemento está ausente de
1 Coríntios.

b. Romanos e Gálatas
Também há uma semelhança entre o que Paulo diz aqui em Rm
14:1–15:13 e o que diz em Gl 4:10, 11. Em ambas as cartas faz-se
referência à observância de certos dias especiais. Mas o modo em que o
apóstolo refere-se a estes dias difere muito nestes dois epístolas. Em
Gálatas a referência é aos sábados, aos dias da nova lua, e às datas de
festivais que correspondiam ao céu judaico, e também uma referência
que pode apontar ou a (1) os anos sabáticos e de jubileu, ou a (2) ao ano
novo (Rosh Hashana) do primeiro dia do mês do Tishri. Paulo diz que a
observância estrita de tais dias e festivais nada tem que ver com ganhar o
favor divino. Como fundamento sobre o que edificar a esperança de ser
justificado diante de Deus tal observância não é mais que uma
superstição. É totalmente inútil, não melhor que areias movediças. É
como se Paulo sacudisse a cabeça com total desagrado ao considerar que
uma adesão rígida e meticulosa à lei mosaica com relação a certos dias ia
substituindo a simples fé em Jesus Cristo. Ele até chega a exclamar:
“Temo por vós, não seja que talvez tenha trabalhado em vão entre vós”
(Gl 4:11).
Aqui em Rm 14:5, Paulo diz simplesmente: “Um considera que um
dia é melhor que outro; outro considera que todos os dias são bons.
Romanos (William Hendriksen) 603
Esteja cada um convencido em sua própria mente”. O estilo muito crítico
e denunciatório que caracteriza as passagens de Gálatas está totalmente
ausente de Romanos; a razão disso está em que para os irmãos fracos de
Roma a observância de determinados dias não era vista como algo que
tivesse que ver obter a salvação. Assim que em Rm 14:1, 5, 19; 15:1, 7 o
apóstolo se expressa de um modo muito moderado e suave.

c. Romanos e Colossenses
Também há semelhanças e diferenças entre Rm 14:1–15:13 e
Colossenses. Em Cl 2:16, 17 Paulo escreve: “Portanto, não permitam que
ninguém os julgue pelo que vocês comem ou bebem, ou com relação a
alguma festividade religiosa ou à celebração das luas novas ou dos dias
de sábado” [NVI]. E em Cl 2:20, 21 pergunta: “Já que vocês morreram
com Cristo para os princípios elementares deste mundo, por que, como
se ainda pertencessem a ele, vocês se submetem a regras: ‘Não
manuseie!’, ‘Não prove!’, ‘Não toque!’?” [NVI]
É claro que aqui, em Colossenses, Paulo repreende severamente
mais uma vez àqueles a quem se dirige. A razão disto era que esta gente
atendia a falsos mestres que lhes diziam: «A fé em Cristo não lhes dará
plenitude de conhecimento, sabedoria, poder, salvação. Por isso, vocês
devem seguir nossas regras com relação a dias e comidas». No fundo
isso era um ataque à supremacia e à suficiência total de Cristo, “em
quem habita corporalmente toda a plenitude da deidade” (Cl 2:9).
Como já indicamos, o tratamento que Romanos dá ao mesmo tema
geral — dias e comidas — difere muito, uma vez que os fracos a quem
se fala nesta epístola não atribuíam significado salvífico ao seu comer,
beber e abster-se, nem à sua observância de certos dias especiais.
Romanos (William Hendriksen) 604
1. Aceitem ao que é fraco na fé, porém não com a ideia de fazer juízo
sobre (suas) opiniões. 370
Paulo está dizendo aos membros da igreja de Roma, aos quais
considera “fortes” — é evidente que ele está pensando na maioria — que
não devem cometer o erro moral de julgar fazer juízo sobre os que são
“fracos” na fé, que não devem condená-los por recusar-se a comer carne.
Os membros “fracos” provavelmente raciocinavam do seguinte
modo: «Nesta cidade pagã, como sabemos se alguma carne é de fato
‘limpa’? Como sabemos se o animal de que provém era realmente um
animal ‘limpo’? E como sabemos se foi carneado do modo prescrito? E
como sabemos se não ter sido primeiro oferecido aos ídolos?»
O apóstolo raciocinava que enquanto o vegetarianismo desta gente
não resultasse desta convicção: «Ao nos tornarmos vegetarianos pomos a
Deus em dívida conosco», eles deviam ser considerados crentes, irmãos
e irmãs em Cristo. Deviam ser plenamente “aceitos”, vale dizer, não só
devem eles ser reconhecidos como membros da igreja com todo direito,
mas também devem ser afetuosamente bem-vindos na comunhão diária
com os outros crentes. De todo ponto de vista as boas-vindas que lhes
era estendida deve ser cálida e genuína. Nem mesmo a sugestão de
“aceitá-los” com o fim de criticá-los adversamente por suas “opiniões”
(ou “escrúpulos”) deve passar pela cabeça de ninguém.
2, 3. Um crê que pode comer qualquer coisa, mas outro, sendo fraco,
come (somente) verduras. Não despreze aquele que come ao que não

370
προσλαμβάνεσθε (Rm 14:1 e 15:7) 2ª. pes. pl. pres. med. imper. de προσλαμβάνω, tomar para a
gente mesmo, quer dizer, aceitar, dar as boas-vindas. Note-se o 3ª. pes. aor. med. indic. do mesmo
verbo em Rm 14:3 e novamente em Rm 15:7.
διακρίσεις. nom. e acus. pl. (aqui acus. depois de ε_ς) de διάκρισις, distinguir ou julgar. Cf. 1Co
12:10 (a habilidade de distinguir ou julgar).
διαλογισμ_ν, gen. pl (genitivo objet. neste caso) de διαλογισμός, opinião, pensamento, raciocínio.
Com relação a esta palavra (s. e pl.) veja-se também C.N.T. sobre Marcos, pp. 296–300. Em quase
todos os casos as deliberações ou raciocínios são de natureza pecaminosa. Veja-se as seguintes
passagens: Mt 15:19; Mc 7:21; Lc 5:22; 6:8; 9:46, 47; 24:38; Rm 1:21; 1Co 3:20; Fp 2:14; 1Tm. 2:8;
Tg 2:4.
Romanos (William Hendriksen) 605
come, nem aquele que não come julgue ao que come, porque Deus o
aceitou.
Uma pessoa, ou seja, a forte, está convencida de que não há
restrição válida contra os tipos de comida que possa comer e desfrutar.
Outra pessoa, por ser fraca — há uma explicação acima do que significa
ser “forte” ou “fraco” — só come verduras. O forte, aquele que come,
não deve desprezar o fraco, o que se abstém.
E no entanto, isto é exatamente o que o forte se sentirá inclinado a
fazer. Tal como foi explicado anteriormente, os fortes, os que comiam
tudo, eram principalmente gente convertida vinda dos gentios, e que na
igreja de Roma constituíam a maioria (veja-se a Introdução). «Por que
andar preocupando com esses poucos vegetarianos?» bem poderia ter
sido sua desdenhosa exclamação — o Concílio de Jerusalém tinha sido
muito mais conciliador (At 15:20).
Os fracos ou abstêmios, por sua vez, bem poderiam ver-se tentados
a encontrar sua satisfação no próprio fato de estar na minoria — não é
um só do lado de Deus já uma maioria? — e a começar por isso a julgar
os que comiam.
O apóstolo condena ambas as atitudes, a de desprezo e a de
condenação. Embora deseja que os direitos do fraco sejam plenamente
respeitados e que o vegetariano seja tratado com consideração
compreensiva e deferência genuína, ele não é menos insistente em
demandar que o fraco se abstenha de condenar o forte, ao que come,
alegando como razão que “Deus o aceitou”. Deve ficar claro que no
presente contexto o pronome “ao” só pode referir-se ao que come, ao
forte. 371 Esta opinião recebe confirmação adicional do versículo
seguinte:
4. Quem és tu que te atreves a fazer juízo sobre o servo de outro? É
pelo seu senhor que ele se mantém em pé ou cai.

371
O ponto de vista oposto pode encontrar-se em Käsemann, op. cit., p. 369. A menos que haja
alguma boa razão para fazer o contrário, o pronome (aqui α_τόν) deve interpretar-se como fazendo
referência a seu antecedente mais próximo, que no caso que nos ocupa é τ_ν _σθίοντα.
Romanos (William Hendriksen) 606
O modo de expor a pergunta nos faz lembrar Rm 9:20: “Mas quem
é você, ó homem, para questionar a Deus?” [NVI]. O que Paulo diz é que
aquele que come, a saber, o forte, só deve responder “ao seu próprio
senhor”, ou seja, ao Senhor Jesus Cristo, assim como, em comparação,
um servo ou escravo responderia somente diante de seu próprio senhor.
Aquele que come certamente não está obrigado a prestar conta ao que se
abstém. Este último não tem direito de condená-lo. E Paulo prossegue: E
ficará em pé, porque o Senhor é capaz de mantê-lo em pé.
É preciso levar em conta que “aquele que come”, ou seja “o forte”,
é a pessoa que obteve, pela graça soberana de Deus e o poder iluminador
do Espírito Santo, uma visão esclarecedora do significado da morte de
Cristo para a vida diária. Ele captou melhor que a pessoa “fraca” ou
“abstinente” a verdade tão belamente expressa em Cl 2:14, ou seja, que
Cristo “cancelou o documento escrito à mão que estava contra nós, o
qual por meio de suas demandas testificava contra nós, e o tirou ao
cravá-lo na cruz”.
A pergunta, então, é esta: «Uma vez que a pessoa, pela graça de
Deus, tomou a peito esta lição, renderá esta preciosa joia?» É verdade
que não pode permanecer em pé por seu próprio poder. Mas tem um
Salvador que disse: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz, e eu as
conheço, e elas me seguem, e eu lhes dou a vida eterna, e não perecerão
jamais, nem ninguém as arrebatará da minha mão” (Jo 10:27, 28). Ou,
como Paulo expressa esta mesma verdade em Rm 14:4: “E ficará em pé,
porque o Senhor é capaz de mantê-lo em pé”. A outra pergunta, ou seja,
se o termo “o Senhor” refere-se, no caso presente, a Cristo ou a Deus, é
puramente acadêmica. Uma boa resposta poderia ser: “Refere-se a Cristo
e, por conseguinte, a Deus”.
Na introdução a este capítulo notamos que além da diferença de
opinião entre o forte e o fraco com relação à comida, havia também uma
diferença no concernente à observância de dias especiais. Tratando
agora deste tema Paulo diz:
Romanos (William Hendriksen) 607
5. Um considera que um dia é melhor que outro; outro considera que
todos os dias são bons. 372
Qual era o dia que “um”, quer dizer, este ou aquele converso ao
cristianismo, considerava mais sagrado que outro dia? Segundo alguns
deve ter sido o sétimo dia da semana, o sábado judaico. 373 Embora tal
pessoa se unisse ao resto dos membros da igreja para adorar no primeiro
dia da semana (cf. At 20:7), ele fechava seu negócio e cessava seu
trabalho no sábado. Outros expositores, não obstante, chamam a atenção
para o fato de que a lei de Moisés não só distinguia entre carnes,
apontando-as como “limpas” ou “imundas”, mas também prescrevia a
observância de certos dias específicos como festas religiosas. Então esta
gente continuaria aderindo-se à legislação mosaica neste ponto. 374 Mais
uma vez, pelo fato de que o próprio tema de comidas, ao qual Paulo faz
referência nos vv. 2–4, traz à tona o do jejum, sugeriu-se que o apóstolo
refere-se aqui a dias de jejum, segundo o modo que se indica em Lc
18:12. 375
Por outro lado, é necessário rejeitar a ideia que Paulo estivesse
distinguindo no presente contexto entre dias de boa sorte e de má
sorte. 376 Se este for o caso, Paulo certamente teria condenado tal prática
sem contemplações. Não teria escrito: “Esteja cada um convencido em
sua própria mente.” 377
Também cabe dizer que, visto que o Novo Testamento certamente
adjudica um significado muito especial ao primeiro dia da semana (Mt
28:1; Mc 16:2, 9; Lc 24:1; Jo 20:1, 19; At 20:7; 1Co 16:2; Ap 1:10), é
muito duvidoso que o apóstolo se expressou de um modo tão moderado
372
Embora o apoio textual a favor da conjunção γάρ no começo desta oração, que leria _ς μ_ν γ_ρ
κρίνει, etc., é bastante forte, o contexto deixa bem claro que se este γάρ é autêntico não se pode
interpretá-lo como causa indicativa mas que se deve considerá-lo como continuativo. E quer seja que
se o considere continuativo ou não autêntico, pode omitir-se da tradução em ambos os casos.
373
Como o faz Lenski, p. ex., nesta passagem.
374
C. Hodge, op. cit., pp. 660, 661.
375
Veja-se Ridderbos, op. cit., p. 306.
376
Ponto de vista que Käsemann favorece, op. cit., p. 370.
377
Por conseguinte estou em acordo total com o Cranfield neste ponto (op. cit., p. 705).
Romanos (William Hendriksen) 608
se os membros “fracos” da igreja de Roma tivessem sido indiferentes
com relação a separar este dia dos demais (na medida que fosse prático
naqueles dias) como dia de descanso e adoração.
Devemos admitir que não podemos determinar em que sentido
consideravam os membros fracos da igreja de Roma que certo dia fosse
melhor que outro, enquanto guardavam e honravam o Dia do Senhor, a
saber, o primeiro dia da semana. Que esta ignorância nossa não é muito
séria fica demonstrada pelo fato de que, depois dos vv. 5, 6, o apóstolo
nunca volta a referir-se em toda a epístola a esta diferença com relação a
dias. Mas ele insiste em que “cada um esteja convencido em sua própria
mente” de que o que faz é o correto. Ninguém deve fazer o que é
contrário aos ditames de sua própria consciência iluminada pela Palavra!
Não condene o fraco ao forte; mas tampouco olhe o forte com desprezo
ao fraco, visto que:
6. Aquele que considera que um dia é especial, o faz para honrar ao
Senhor; e aquele que come o faz para honrar ao Senhor, visto que dá
graças a Deus. E aquele que se abstém o faz para honrar ao Senhor, e dá
graças a Deus.
Tal como o demonstra uma comparação com o v. 5: “Aquele que
considera que um dia é melhor que outro” é a pessoa fraca. Agora Paulo
diz que a pessoa que faz esta distinção entre dias, uma distinção que as
pessoas fortes não fariam, não deve ser desprezado por fazê-la, visto que
o faz com o propósito de honrar ao Senhor. 378 Do mesmo modo, aquele
que come sem prestar atenção à distinção dietética entre limpo e imundo
não pode ser acusado de ser indiferente à vontade de Deus. Ao contrário,
ele também honra ao Senhor ao fazer o que faz. Tanto o fraco como o
forte, neste assunto indiferente, honram ao Senhor; o fraco, dando graças
por sua comida vegetariana; o forte, dando graças por sua carne, etc.
7–9. Porque nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum de nós
morre para si mesmo. Se vivermos, vivemos para o Senhor; e se
morrermos, morremos para o Senhor. Assim que, quer seja que vivamos
378
Literalmente: “ao Senhor”. Um dativo deste tipo pode ser considerado de vantagem.
Romanos (William Hendriksen) 609
ou que morramos, somos do Senhor. Porque para este fim Cristo morreu
e viveu, para ser Senhor dos mortos e dos vivos.
Note-se o seguinte:
a. “Porque nenhum de nós vive para si mesmo”, etc.
O fato de que “nós”, ambos os tipos de cristãos, os fortes e os
fracos, agimos como o fazemos deve-se a que nenhum de nós vive uma
vida egocêntrica. Ao contrário, enquanto ainda vivemos nesta terra
vivemos para o Senhor Jesus Cristo. Cf. Fp 1:21. Nossa meta principal é
agradá-Lo. Quando morremos nós nos esforçamos, ainda por meio de
nossa morte, em glorificar ao Senhor.
b. “Assim que … somos do Senhor”
Em todo caso é deste Senhor que somos servos, e a quem
pertencemos. Não nos comprou Ele com o Seu precioso sangue? (1Co
6:20).
c. “Porque para este fim Cristo morreu e viveu …”.
Não se trata aqui de “viveu e morreu” (Phillips), como se “viveu”
se referisse à vida de Cristo na terra antes de Sua morte por crucificação,
mas de “morreu e viveu”. Morreu, e logo, depois de ter ressuscitado
dentre os mortos, foi viver no céu. Note-se o paralelo:
Cristo morreu e viveu para ser Senhor dos mortos e dos vivos.
Como nosso Mediador, Cristo obteve o direito incontestável de
exercer Sua soberania tanto sobre os crentes que já morreram como
sobre aqueles que ainda vivem na terra. Este senhorio mediador foi a
recompensa pelo preço que Ele pagou, pela morte que morreu. Por meio
de Sua morte vicária, seguida de Sua vida de intercessão nos céus (Hb
7:25), Ele se empenha para que tudo o que Ele mereceu para nós, Seus
filhos, seja-nos outorgado. Cf. 2Co 4:10: “Sempre andamos levando em
nosso corpo a morte de Jesus, para que a vida de Jesus possa ser revelada
em nosso corpo”. Cf. Rm 6:4; Fp 3:10. 379

379
Em primeiro lugar veja-se a nota 192. A tradição textual de Rm 14:9 não é de maneira nenhuma
uniforme, mas _πέθανεν κα_ _ζησεν tem o apoio mais forte. Alguém tratou de mudar o texto
substituindo _νέστη por _ζησεν. Há também uma variante que substitui _νέζησεν por _ζησεν, e há
Romanos (William Hendriksen) 610
10–12. Portanto, você, por que julga seu irmão? E por que despreza
seu irmão? Pois todos compareceremos diante do tribunal de Deus.
Porque está escrito: ‘Por mim mesmo jurei’, diz o Senhor, ‘diante de mim
todo joelho se dobrará e toda língua confessará que sou Deus’. Assim,
cada um de nós prestará contas de si mesmo a Deus [NVI].
No v. 3 Paulo tinha advertido os fortes contra desprezar os fracos, e
aos fracos contra condenar os fortes. Que não obstante isso era
precisamente o que ocorria e que era um pecado indesculpável fica claro
no v. 10, onde, em ordem inversa (referindo-se agora ao fraco em
primeiro termo) o apóstolo pergunta com tom acusador por que um
membro da igreja está pecando contra outro. Estes críticos deveriam
lembrar que aquele a quem condenam ou desprezam é, no fundo, um
irmão. Note-se como este termo de afeto, que não foi usado desde Rm
12:1, indica a seriedade do pecado que se estava cometendo. Há mais
informação sobre isso na exposição sobre Rm 1:13 e Rm 7:1, 4.
Os que julgam, ou desprezam, um irmão devem também lembrar
que não são senhores, mas Cristo é o Senhor; por conseguinte, eles não
são os juízes legítimos, mas sim Cristo é o Juiz. Isto quer dizer que eles
estão então adotando para si uma prerrogativa que corresponde somente
a Cristo e a Deus.
Paulo diz: “Todos compareceremos diante do tribunal de Deus”. E
para confirmar este fato, ele cita o Antigo Testamento. Como sucede
com frequência, também aqui a citação é composta: a primeira parte:
“Tão certamente quanto eu vivo, diz o Senhor” pode considerar-se
extraída de Is 49:18 (cf. Nm. 14:28; Dt 32:40; Ez 33:11); o resto da
citação: “Diante de mim se dobrará todo joelho, e toda língua confessará

variantes que têm os fres verbos. Às vezes a sequência em que _πέθανεν e _ζησεν seguem-se um ao
outro foi alterada. A lógica da passagem favorece o paralelo já indicado: morreu e viveu seguido pelos
mortos e os vivos. É evidente, naturalmente, que as palavras “Cristo viveu” implicam sua ressurreição.
A possibilidade de que _ζησεν seja um aoristo de ingresso e que signifique “começou a viver” tem
que ser concedida. Mas o óbvio paralelo notado anteriormente parece requerer “morreu e viveu”. É
pela morte de Cristo e por sua vida no céu que os filhos de Deus vivem para a glória de Deus.
Romanos (William Hendriksen) 611
a Deus” provém de Is 45:23, do texto da LXX, com a transposição de
duas palavras, 380 mas sem mudança de significado.
As palavras citadas confirmam realmente o pensamento que Paulo
tinha expresso, ou seja, que no final cada pessoa, sem exceção, renderá
homenagem a Deus (cf. Fp 2:10, 11), O reconhecendo como Soberano
sobre todas as coisas, e O aclamando como justo juiz de todos.
Que certamente haverá um juízo universal é algo que a Escritura
ensina (Ec 12:14; Ef 6:8; Ap 20:11–15). Que os crentes tanto como os
incrédulos comparecerão diante do tribunal de Deus é algo que fica claro
em Hb 10:27; 1Co 3:8–15; 4:5; 2Co 5:10, e nos ensinos de Jesus (Mt
16:27; 25:31–46). Que certamente será Deus, por meio de Cristo, Aquele
que julgará o ensinam Mt 16:27; 25:31–46; Jo 5:22; At 10:42; 1Co 4:5;
2Co 5:10. É tal como o expressa Rm 2:16: “Deus, através de Jesus
Cristo, julgará os segredos dos homens”.
Repetindo o pensamento do v. 10 (“Porque todos compareceremos
diante do tribunal de Deus”), Paulo conclui sua reflexão sobre este tema
dizendo: “Assim que cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus”.
Note-se: cada um de nós! Ninguém ficará eximido. E além disso, a
rendição de contas não será aos homens, mas a Deus, o Onisciente, o
Santo e Justo, que é também o Deus de Amor.
Resumindo a ideia principal dos vv. 10–12 — e em certo sentido
ainda dos vv. 1–12 (veja-se especialmente vv. 1, 3, 4, 10–12) — Paulo
dirigindo-se aos fortes e aos fracos (note-se: “uns aos outros”), embora
provavelmente de modo especial aos fortes, e tirando uma conclusão,
passa a formular a seguinte exortação:
13. Portanto, deixemos de nos julgar uns aos outros; mas antes, seja
este seu juízo, ou seja, que não ponham pedra de tropeço ou obstáculo no
caminho de seu irmão.
Note-se o jogo de palavras: julgar … seja este seu juízo, ou
decisão. 381
380
LXX: _ξομολογήσεται π_σα γλ_σσα; Pablo: π_σα γλ_σσα _ξομολογήσεται.
381
Em grego: μηκέτι … κρίνωμεν. Não julguemos mais _λλ_ το_το κρίνατε, mas decide isto.
Romanos (William Hendriksen) 612
Paulo exorta os fracos a deixar de criticar os fortes, e os fortes a
deixar de achar defeitos nos fracos. Ambos os grupos devem decidir não
pôr nenhum obstáculo no caminho de seus irmãos. Ao contrário — visto
que o negativo implica o positivo — cada grupo deve ajudar o outro a
ser uma testemunha mais eficaz de Cristo. 382
Dado que os dois grupos amam o Senhor, põem sua confiança nEle,
e desejam andar em Seus caminhos, seria errôneo ferir-se mutuamente
insistindo que haja absoluta unanimidade com relação a cada aspecto da
prática da religião.
Se algum domingo de noite, talvez depois do culto, você convida
seis pessoas a sua casa, mas sabe que três delas objetam a que se canto
certo hino, então, embora as outras três e você achem o hino
incontestável, você não incluirá esse hino em seu programa de atividades
sociais dessa noite. Em vez disso, você se preocupará que todos recebam
uma bênção e se sintam felizes. O mesmo princípio deve aplicar-se a um
grande número de situações parecidas. Se estiver em jogo um importante
princípio religioso, você não vai guardar silêncio a respeito, mas em
todas as circunstâncias você observará esta regra: «Nas coisas essenciais,
unidade; nas duvidosas (ou indiferentes) liberdade; em todas as coisas,
caridade» (a identidade do autor deste dito não é totalmente segura).
Veja-se também o que se disse com relação à flexibilidade de Paulo na
introdução.

382
πρόσκομμα, além de seu aparecimento aqui em Rm 14:13, encontra-se também em Rm 9:32, 33;
14:20; 1Co 8:9; e 1Pe 2:8. Significado:
(a) literal, uma rocha ou outro objeto duro contra o qual um pessoa possa chocar-se com o pé,
fazendo-o tropeçar ou até cair, (b) figurativo, uma ocasião para ofender, um obstáculo no
desenvolvimento da vida ou felicidade espiritual, uma incitação ao pecado.
σκάνδαλον, também em Mt 13:41; 16:23; 18:7; Lc 17:1; Rm 9:33; 11:9; 16:17; 1Co 1:23; Gl 5:11;
1Pe 2:8; 1Jo 2:10; Ap 2:14.
Significado: (a) literal, a ceva numa armadilha ou cilada; (b) figurativo (mais ou menos o mesmo
que πρόσκομμα), obstáculo, aquilo que causa oposição, ressentimento, ofensa, pecado. Com relação a
πρόσκομμα e σκάνδαλον veja-se também G. Stählin, Th. D.M.T., respectivamente, Vol. VI, pp. 756,
757, e Vol. VII, pp. 352–358.
Romanos (William Hendriksen) 613
A essência desta exortação está totalmente em consonância com o
ensino de Cristo, e ainda pode ter sido induzida por ela (Mt 18:1–9; Mc
9:42–48; Lc 17:1, 2).
14. Eu sei e estou convencido no Senhor Jesus de que nada é impuro
em si mesmo …
A linguagem de Paulo é muito enfática. 383 Sua convicção é firme,
profunda e incomovível. Cf. Gl 5:10; Fp 2:24; 2Ts 3:4; 2Tm 1:5, 12. É
uma convicção baseada não só no ensino de Jesus, mas também na
proximidade espiritual que o apóstolo tinha com seu Senhor e Salvador.
Quanto ao ensino de Jesus sobre este assunto veja-se Mt 15:10, 11, 16–
20; Mc 7:14–23. O ensino de Paulo, similar ao do Senhor, encontra-se
também em 1Tm. 4:4: “Tudo o que Deus criou é excelente, e nada é para
desprezar-se se for recebido com ação de graças”. Acrescente-se Tt 1:15:
‘Todas as coisas são puras para os que são puros”.
Como resultado, a impureza está não na comida como tal, e sim na
pessoa que questiona se deve comê-la ou não: mas se alguém considera
que algo é impuro, então para ele é impuro. Isto não quer dizer que o
pecado é só um assunto de consciência ou de opinião subjetiva. Não, a
verdade é que há muitas coisas que estão definitivamente proibidas.
Nenhuma mera opinião de homem, nem sequer o silêncio da
consciência, pode tornar bom o que Deus declarou mau. Mas significa
que até uma atividade humana — no caso que nos ocupa, comer carne
que a pessoa considera impura — é má para os que a consideram má.
Ao se expressar como o faz, o apóstolo consegue duas coisas: (a)
anima os fortes ao demonstrar claramente que está do seu lado; veja-se o
v. 14a.; (b) ajuda os fracos lembrando aos fracos que têm razão ao
recusar comer o que estes (os fracos) consideram impuro (v. 14b.). Não
deveria este consumado e delicioso tato ser uma lição para todos, e
também em especial para cada pastor? Que coração amoroso o de Paulo,
e quão sábia sua atitude! não admira que continue como segue:
383
πέπεισμαι, 1ª. pes. perf. pas. ind. de πείθω, persuadir. A efeitos de fortalecer a expressão, este
verbo vem precedido até por ο_δα.
Romanos (William Hendriksen) 614
15. Porque se o teu irmão fica seriamente perturbado pelo que
comes, já não andas em amor.
A palavra “porque” demonstra que a cláusula que introduz se liga
com o v. 13b. em vez de com o v. 14 (é melhor considerar o v. 14 como
um parêntese). Assim que, o que Paulo diz é: «… Não ponha pedra de
tropeço ou obstáculo no caminho do seu irmão, porque se o seu irmão
fica seriamente perturbado, 384 você já não anda em amor”. Paulo recorre
agora à 2ª. pes. sing., inculcando esta urgente lição, fazendo com que
cada um dos receptores a grave. Volta ao mesmo tema, o amor mútuo,
sobre o qual se espraiou com tanta calidez e eloquência em Rm 12:9, 10;
13:9, 10, e mesmo antes (1Co 13). O amor era um tema muito próximo
não só do coração de Paulo, mas também do de Pedro (1Pe 4:8) e de
João (1Jo 4:8); de Deus (Jo 3:16) e de Cristo (1Jn.3:16)!
Paulo prossegue: Não destruas por tua comida o teu irmão por
quem Cristo morreu. É como se o apóstolo dissesse: «Pense no que está
fazendo! Esse seu irmão é tão querido por Cristo que este morreu por
ele. E no entanto, você, por meio de sua conduta pouco fraternal, o está
tratando de uma maneira tal que, se não fosse pela graça irresistível de
Deus, destruí-lo-ia. Ponha fim imediatamente ao que você está fazendo,
e faça precisamente o oposto!”
16. Portanto, não permitas que o que para ti é uma coisa boa seja
ocasião de conversa caluniosa.
Paulo compreende que se na presença do fraco a pessoa forte comer
o que é considerado por aquele “impuro”, estará ferindo o fraco. Isto
seria mais certo ainda se, devido à insistência do forte, o irmão fraco se
rendesse finalmente a fazer o que sua consciência lhe proíbe fazer. Além
disso, disputas públicas entre os dois grupos certamente dariam ocasião a
conversa caluniosa da parte dos estranhos.

384
λυπε_ται, 3ª. pes. s. pres. pas. indic. de λυπέω, causar pesar sério ou aflição. Este verbo aparece
também em Mt 14:9; 17:23; 18:31; 19:22; 26:22, 37; Mc 10:22; 14:19; Jo 16:20; 21:17; Ef 4:30; 1Ts
4:13; 1 p. 1:6; e frequentemente em 2Co 2:2 daí em diante.
Romanos (William Hendriksen) 615
Assim que o apóstolo adverte os fortes contra permitir que aquilo
que para eles é algo “bom” se transforme em causa de conversa
caluniosa. Mas, o que é “a coisa boa”? As opiniões diferem muito, como
o demonstra a nota 387
O que é, então, que Paulo quer dizer quando, ao se dirigir aos
fortes, diz: “o que para ti é uma coisa boa”? Se levarmos em conta o
contexto que imediatamente o antecede, a resposta natural pareceria ser
“sua liberdade cristã”. É preciso admitir a possibilidade de que esta
resposta seja correta. Não obstante, pode-se construir um bom argumento
a favor do Nº. 4; o evangelho. Não é mais provável que um estranho
caluniasse o evangelho mesmo em vez de tomar partido neste debate
entre os fortes e os fracos? Além disso, o apóstolo certamente considera
que o evangelho é evidentemente uma coisa boa. Ele usa o termo
“evangelho” 60 vezes em suas epístolas. Entesoura-o tanto que chega a
chamá-lo “o meu evangelho” (Rm 2:16; 16:25), e ainda nos diz que está
disposto a tolerar qualquer coisa antes que estorvar o evangelho de
Cristo (1Co 9:12). O que ele considera uma coisa boa para si mesmo
deve tê-la considerado também uma coisa boa para outros.
Quanto às respostas 2 (o reino ou reinado de Deus) e 3 (a salvação),
se a resposta correta for “o evangelho”, este é certamente “o evangelho
da salvação”, e se olharmos com cuidado ao significado do termo
“reino” ou “reinado”, tal qual o define o próprio Paulo no v. 17, ou seja,
“justiça e paz e alegria no Espírito Santo”, o provável é que cheguemos à
conclusão que esta definição faz com que “reino” (ou “reinado”) de Deus
seja equivalente a “salvação”. 385

385
Veja-se a bibliografia geral.
As referências indicam os comentários escritos pelos seguintes:
Expositor ou autor Teoria
1
Calvino, p. 506
Harrison, p. 148
Käsemann, p. 376 liberdade cristã, liberdade
Murray, p. 193 da observância cerimonial.
Romanos (William Hendriksen) 616
Há mérito, então, em cada uma das quatro respostas, embora
pessoalmente, se devo escolher, eu daria uma pequena margem de
vantagem a “o evangelho da salvação”; quer dizer, a atualização do
reinado de Deus nas vidas dos filhos de Deus.
Depois de dizer: “Não destruas por tua comida o teu irmão por
quem Cristo morreu. Portanto, não permitas que o que para ti é uma
coisa boa seja ocasião de conversa caluniosa”, o apóstolo prossegue:
17. Porque o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça e
paz e alegria no espírito Santo.
A essência do reinado real de Deus, a evidência desse bendito
reinado em meio de vós, diz Paulo, por assim expressá-lo, não é afetada
pelo tipo de comida que uma pessoa consome, quer seja cerimonialmente
pura ou impura, quer seja apenas verduras ou também carne, mas é
testemunhada pela posse que se tem do estado de justiça diante de Deus,
pela percepção da paz de Deus, paz que resulta da reconciliação com
Deus (Rm 5:1, 10). Está caracterizada pela experiência da alegria do
Espírito, alegria inexprimível e cheia de glória (1Pe 1:18).
Faz-se imediatamente evidente que esta resposta está em total
acordo com as palavras de Jesus: “O reino de Deus não vem com
desdobramento exterior; ao dizer o povo: ‘Vejam, aqui (está)!’ ou ‘Ali
(está)!’ porque, notem bem, o reino de Deus está dentro de vós” (Lc
17:21). 386

Sanday and Headlam, p. 391


2
Van Leeuwen & Jacobs, p. 263 reino (ou reinado) de Deus
Greijdanus (Kommentaar), Vol. II, p. 605 3
kerkerker, Vol. II, p. 165 (menciona ambas, a salvação e a liberdade evangélica)
ski, p. 839 (a totalidade da fé cristã, toda nossa salvação,
o evangelho) a salvação
Lutero, Works, Vol. 25, p. 504
Ridderbos, p. 312
Cranfield, Vol. II, p. 717 4
Hodge, pp. 667, 668 o evangelho
386
Veja-se também C.N.T. sobre Mateus, pp. 261–263.
Romanos (William Hendriksen) 617
18. Porque todo aquele que serve a Cristo deste modo agrada Deus e
é respeitado entre os homens.
Note-se: “serve a Cristo deste modo”; quer dizer (tal como o
especificam os versículos precedentes), em plena consciência de ter sido
justificado por Deus, estando em paz com Deus, e experimentando a
alegria que foi comunicada pelo Espírito Santo.
Uma pessoa assim é, em primeiro lugar, “agradável a Deus”. Vive
verdadeiramente para Deus, para honra e glória de Deus. Veja-se Rm
14:6–8 e uma passagem prévia, Rm 6:22.
Note-se também a frase: “e respeitado 387 entre os homens”. Os que
dizem: «Eu não me importo absolutamente com o que as pessoas pensem
de mim», podem ser culpados de uma ultramundanalidade que não é
precisamente piedosa.
Paulo já havia escrito: “Procurem fazer o que é correto aos olhos de
todos” (Rm 12:17b, NVI).
Calvino estava bem certo quando, ao comentar sobre Rm 14:18,
escreveu: «Esse homem é aceitável a Deus porque obedece sua vontade;
ele testifica que é aprovado pelos homens, visto que estes não podem
fazer outra coisa que dar testemunho daquela excelência que veem com
seus olhos; não que sempre os incrédulos favoreçam os filhos de Deus;
ao contrário, mesmo quando não haja causa, eles com frequência
proferem contra eles muitas recriminações …, mas Paulo fala aqui de
homens de juízo honesto, não misturado com aspereza, nem ódio, nem
superstição”.
19. Busquemos então as coisas que levam à paz e à edificação
mútua. 388

387
δόκιμος, aprovado, respeitado, estimado. Vejam-se também Rm 16:10; 1Co 11:19; 2Co 10:18;
13:7; 2Tm 2:15; Tg 1:12.
388
Embora διώκομεν em vez de διώκωμεν tenha bom apoio textual, não pode ser aceita. A transição
da expressão conjectural “Buscamos então as coisas que levam a paz …” (v. 19) a “Não destruas a
obra …” seria muito forçada e abrupta. Além disso, assim como o estilo didático prepondera na parte
anterior de Romanos, cabe esperar um estilo exortatório na parte final. Veja-se, por exemplo, Rm
14:13. Quanto ao resto, chamamos a atenção do leitor à nota 140.
Romanos (William Hendriksen) 618
Note-se o seguinte:
a. Paz é um dom que Deus em Cristo comunica à igreja (Jo 14:27;
16:33; 20:19, 21, 26; Rm 15:33; 16:20; 2Co 13:11). Ele é “o Deus de
paz” (Fp 4:9; 1Ts 5:23; 2Ts 3:16). Portanto, a paz genuína é “o dom de
Deus” (Fp 4:7).
Isto não significa, porém, que devemos dar esta paz por sentada. Ao
contrário, aqui em Rm 14:19 somos lembrados que é nosso dever
“buscar as coisas que levam à paz”. Isto está de acordo com o
pensamento de Pedro (1Pe 3:11), com o do escritor da epístola aos
Hebreus (Hb 12:14), e, muito antes, com o do salmista (Sl. 34:14).
b. Edificação mútua. Esta expressão demonstra que Paulo visualiza
a igreja como um edifício. Isto implica que se procura um corpo unido.
No entanto, não se deve pensar que este edifício está terminado. Não,
está sempre sendo elevado (Ef 4:16). Mesmo as pedras individuais
distam de ser coisas estáticas. Se as coisas forem como devem, as pedras
estão em processo de ser feitas cada vez mais belas. Ainda mais, trata-se
de pedras vivas! (1Pe 2:5).
O material de construção principal é o amor (Ef 4:16). Este é ainda
mais importante que a liberdade. “Vede, porém, que esta vossa liberdade
não venha, de algum modo, a ser tropeço para os fracos” (1Co 8:9). Na
verdade, o amor é melhor ainda que o conhecimento. “O conhecimento
envaidece, mas o amor edifica” (1Co 8:1).
20. Não destruas a obra de Deus por causa da comida. Com efeito,
tudo é limpo, mas é mau para uma pessoa comer o que faz tropeçar (a
outro).
Já tomamos nota que no v. 16 Paulo dirigia-se aos fortes. Não há
razão para crer que nos versículos que vêm imediatamente a seguir —
inclusiva o v. 20 — ele esteja dirigindo suas palavras de advertência e
exortação a um grupo diferente. A primeira parte da passagem não causa
nenhuma dificuldade. Paulo volta para a segunda pessoa singular, que
usou pela última vez no v. 15. Isto aumenta a força de suas
admoestações.
Romanos (William Hendriksen) 619
Depois de momentos antes ter encorajado a obra da edificação, o
apóstolo adverte agora contra fazer o oposto, ou seja, destruir ou
derrubar (cf. Mt 5:17; 24:2; 26:61; 27:40; 2Co 5:1; Gl 2:18). Este
destruir é tanto pior porque tem que ver com a obra de Deus no coração
e a vida do irmão fraco, e porque se faz somente por algo material, ou
seja, a comida!
E se alguém chegasse a objetar que está perfeitamente certo que a
pessoa forte coma o que gosta, visto que toda comida é limpa, como
Paulo mesmo acaba de admitir (Rm 14:14; cf. Mc 7:19–23; 1Tm. 4:4), a
resposta é: “Não há dúvida que tudo é puro, mas é errôneo — mau,
nocivo — que uma pessoa coma algo que causa tropeço (a outro)”.
No original, no entanto, esta cláusula final do v. 20 está comprimida
em muito poucas palavras: “mas mau para uma pessoa o comer com uma
pedra de tropeço [ou: com ofensa]”.
A pergunta surge: “Quer Paulo dizer que a pessoa forte deve estar
em guarda, não seja que por seu comer esteja dando ofensa o irmão
fraco?” Ou está ele dizendo: “Está errado que a pessoa fraca coma com
uma consciência perturbada”? 389 Com relação à primeira alternativa,
consulte-se Robertson, Word Pictures, Vol. IV, p. 415; e Cranfield, Vol.
II, pp. 723, 724. Com relação à segunda, Murray, Vol. II, p. 195. Destas
duas, na opinião do presente intérprete, é a primeira a que merece a
preferência. As razões são: (a) Não só no contexto que imediatamente
lhe antecede, mas também no que lhe segue (v. 21) Paulo está se
dirigindo aos fortes. É natural, então, supor que o faz também aqui no v.
20. (b) Esta conclusão faz com que esta passagem harmonize com o v.
13b, em que Paulo exorta os fortes a deixar de criticar os fracos. (c) Em
outra parte, num contexto parecido, o apóstolo declara: “Por
conseguinte, se o que como faz cair o meu irmão em pecado, nunca
voltarei a comer carne, para não fazê-lo pecar” (1Co 8:13).

389
O original diz, _λλ_ κακ_ν τ_ _νθρώπ_ τ_ δι_ προσκόμματος _σθίοντι. Aqui a frase δι_ πρ
expressa acompanhamento ou circunstância concomitante.
Romanos (William Hendriksen) 620
Depois de declarar que é o mau, uma expressão com relação ao bem
procede naturalmente.:
21. É melhor 390 não comer carne ou não beber vinho ou não fazer
qualquer outra coisa que leve a tropeçar o seu irmão.
Não é a intenção do apóstolo “estabelecer a lei” quanto a comer e
beber. Não está dando uma ordem, mas está, antes, de modo paternal ao
forte a limitar voluntariamente o uso de sua liberdade, e a fazê-lo em
consideração ao seu fraco irmão em Cristo; que na presença dessa pessoa
fraca ele se abstenha do privilégio de comer carne. 391 É o mesmo Paulo,
que no v. 15 dizia: “Porque se o teu irmão fica seriamente turbado pelo
que come, já não andas em amor”, aquele que fala aqui no v. 21.
Há três coisas das quais, segundo o v. 21, aconselha-se à pessoa
forte que se abstenha, em consideração aos que são fracos:
a. comer carne
b. beber vinho
c. fazer qualquer outra coisa que leva a tropeçar o “teu irmão”. 392
Com relação a (a) abster-se de comer carne, isto procede
naturalmente do pensamento expresso nos vv. 2, 15, 16, 20.
Com relação a (b) abster-se de beber vinho, cabe dizer que sem
outra informação adicional é provavelmente impossível determinar com
exatidão por que Paulo acrescenta isso. Segundo alguns — veja-se
Cranfield, Vol. II, p. 725 — isso não significa que os fracos realmente se
abstinham da bebida, mas que se menciona só porque no v. 17. Paulo fez
referência a comer e beber. Por outro lado, parece-me preferível a
opinião do Murray (Vol. II, p. 195), compartilhada por muitos outros
expositores, ou seja, que beber vinho era parte dos escrúpulos do fraco.

390
O que se recomenda como “bom” ou “melhor” é expresso por meio de um infinitivo (articular, no
caso presente), que forma o sujeito da cláusula. Cf. 1Co 7:1, 8, 26; Hb 13:9.
391
Aqui não se usa βρ_μα, termo mais geral (v. 15, 20) nem βρ_σις (v. 17), e sim κρέα, pl. de κρέας,
“comida de carne”, como em 1Co 8:13, o único outro caso desta palavra no Novo Testamento. Cf.
pãocria; lit.: todo carne.
392
Supondo que o texto Nestle-Aland seja o correto, deve-se suprir algo assim como _λλο τι ποι_σαι
(fazer qualquer outra coisa).
Romanos (William Hendriksen) 621
Não se esclarece razão desta abstinência. Abstiveram-se os fracos do uso
do vinho porque o vinho era usado como libação nos sacrifícios de
animais? A verdade é que não sabemos, mas veja-se também Dn 1:8, 16.
Com relação a (c), o apóstolo “simplesmente está recomendando a
outros o que por algum tempo já foi sua própria regra” (E. F. Harrison,
op. cit., p. 149). Cf. 1Co 8:13.
Não há dúvida que o apóstolo estava dando um conselho excelente
e inspirado ao dizer:
22. O que crês (quanto a estas coisas), guarda-o entre ti e Deus. 393
Note-se a forte ênfase no pronome tu, que no original aparece no
começo da oração. É como se Paulo estivesse ouvindo, com sua
imaginação, um crente “forte”; mas um que adora ouvir-se a si mesmo.
Esse sonoro falador está dizendo: «Eu insisto em minha liberdade; e eu
digo que eu não permitirei que ninguém interfira com essa ilimitada
minha liberdade”, etc. E é como se Paulo, por assim dizer, respondesse:
«É melhor que você guarde entre você e Deus essa convicção que você
tem”. E logo acrescenta: Bem-aventurada a pessoa que não precisa
condenar-se a si mesma no que aprova; com o que quer dizer,
internamente feliz aquela pessoa — ou seja, o crente “forte” — que evita
trazer sobre si mesma o juízo de Deus por insistir no exercício de sua
liberdade” embora tal insistência resulta em dano para seu irmão “fraco”.
Diante da pessoa que não precisa condenar-se a si mesma está a que
“tem receios” e, por conseguinte, “é condenada”.
Paulo diz:
23. Mas aquele que tem receios 394 ao comer está condenado, porque
(seu comer) não (procede) da fé …
O crente “fraco” — a saber, a pessoa que não está segura de estar
fazendo o correto, mas que “vacila” (cf. Rm 4:20) quando come (carne)
— está condenado. Isto é assim porque seu comer “não procede da fé”,

393
Literalmente: A fé que tens, tem para ti mesmo diante de Deus.
394
Ou: que vacila.
Romanos (William Hendriksen) 622
quer dizer, “não está em harmonia com uma convicção interior de estar
fazendo o que está em consonância com sua fé cristã.
Esta pessoa peca porque procura silenciar a voz de sua consciência.
Está convencido de que o que está prestes a fazer é mau e, no entanto, o
faz. Portanto, peca. Paulo diz: e tudo aquilo (que) não (procede) da fé é
pecado; quer dizer, qualquer pensamento, ação, etc., que não procede da
convicção interior de estar em consonância com a fé da pessoa em Deus
— ou, para dizê-lo de outro modo — qualquer ação que é contradita pela
própria consciência cristã —, é pecado. Na verdade, a consciência da
pessoa não é o juiz final de suas ações, sejam as passadas, as presentes,
ou as que se contemplam. O juiz final é Deus, ou, se preferir-se, a
Palavra de Deus. Mas isso não altera o fato de que mesmo para a pessoa
que não tenha conseguido estar totalmente informada com relação à
vontade de Deus revelada em Sua palavra, é mau opor-se por meio de
seus atos à voz de sua consciência cristã.
Romanos (William Hendriksen) 623
ROMANOS 15
I. Atitude do justificado para com o fraco e o forte
(continuação). Rm 15:1-13

O começo do capítulo 15 tem a aparência de um novo princípio. Na


verdade o apóstolo resume o que esteve dizendo sobre os fracos, e indica
qual tem que ser a atitude dos fortes para eles. Mas o começo não se
detém ali. Logo se amplia em seu alcance e fixa a atenção de toda a
congregação — e de todos aqueles que posteriormente serão postos em
contato com esta carta — em Cristo, cujo exemplo de abnegação a favor
de outros devesse ser seguido tanto pelos fracos como pelos fortes.
1. Nós que somos fortes devemos suportar as fraquezas dos fracos e
não agradar-nos a nós mesmos.
Quando Paulo diz: “Nós que somos fortes”, situa-se a si mesmo
entre os fortes. E quando continua: “devemos suportar as fraquezas dos
fracas”, quer dizer, «Há uma obrigação moral-espiritual que pesa sobre
nós, os fortes; ou seja, não pensar somente em nós, mas também nas
necessidades de outros, e no caso que nos ocupa, nas necessidades dos
que são fracos». Veja-se 1Co 10:33.
O que Paulo diz aqui em Rm 15:1 não pode estar muito longe da
sua exortação que encontramos em Gl 6:2: “Suportai as cargas uns dos
outros, e assim cumpri a lei de Cristo”. A expressão “suportar” as
fraquezas não significa meramente “tolerar”, ou “suportar” tais
fraquezas, nem sequer “ser indulgente” com eles e “ter paciência” com
os que as têm. Significa “Devemos pôr nossos ombros sob essas
fraquezas, e ajudar significativamente nossos irmãos fracos a levá-
las”. 395

395
O verbo βαστάζω — aqui βαστάζειν, pres. act. inf .— aparece mais de 25 vezes no Novo
Testamento. É especialmente habitual nos Evangelhos e em Atos. Significa levar (um cântaro, Mc
14:13; Lc 22:10), um féretro (Lc 7:14), pedras (Jo 10:31), dinheiro (p. ex. levando-o, roubando-o, Jo
12:6); e também levar (um cadáver, transferindo o de um lugar a outro, Jo 20:15), um jugo (At 15:10),
Romanos (William Hendriksen) 624
A nobreza obriga! Gente de berço elevado deve conduzir-se
nobremente com os demais. Este bem conhecido dito, aplicado à
presente situação, significaria que aquela gente altamente privilegiada
que foram dotados de uma percepção clara do significado libertador da
morte de Cristo para a vida diária, de modo que os chama corretamente
“os fortes”, têm a obrigação de comportar-se de uma maneira de acordo
com seu alto privilégio. Por isso devem ajudar de um modo vigoroso,
generoso e prazeroso às pessoas que são (em algum sentido) menos
privilegiadas, “os fracos”.
Quando Paulo acrescenta: “Nós que somos fortes não devemos
agradar-nos a nós mesmos”, não quer dizer: «Nós, os fortes, nunca
devemos fazer nada que promova nosso próprios interesses». Agradar a
Deus acima de todas as coisas (Rm 8:8), e ao fazê-lo, agradar também
aos que levam a Sua imagem, inclusive a nós mesmos, é precisamente o
propósito para o qual Deus nos criou e redimiu (Mt 22:37–39; Rm 13:9;
1Co 10:33; Tt 2:9). O que aqui se condena é agradar-nos a nós mesmos
fazendo caso omisso de como este agradar afeta a outros.
No entanto, a aprovação divina nem sequer recai necessariamente
sobre cada esforço por agradar o próximo. Como o indica Gl 1:10, há um
esforço por agradar o próximo que é nocivo. Aquele que, para ser
“agradável” com algum propósito egoísta, ajusta suas velas a cada brisa
de opinião ou preferência, age perversamente. A pessoa que “com
motivos ulteriores” (cf. Rm 12:8) luta por agradar a outros é condenada.
Um vívido exemplo disso é Absalão:

um homem, Paulo (At 21:35), uma mulher (Ap 17:7). Em Gl 6:2 e também aqui em Rm 15:1 o
interpreta mejór lhe dando o sentido figurativo de levar ou carregar as cargas, preocupações ou
escrúpulos, penas ou fraquezas de outra pessoa ou pessoas. Há um significado diferente em Gl 5:10
(levar ou carregar com a sentença de uma pessoa = pagar seu castigo); e em Ap 2:2 (tolerar,
suportar). Em Mt 20:12 o sentido é suportar, e em Jo 16:12 e Gl 6:17, suportar.
_σθενήματα, pl. de. _σθένημα, que só aparece no Novo Testamento neste lugar e que significa
fraqueza, fraqueza. No contexto presente a palavra refere-se aos escrúpulos daqueles a aqueles que
Paulo descreve como “fracos”. O significado literal de _σθενής é “sem força”.
Romanos (William Hendriksen) 625
“Levantando-se Absalão pela manhã, parava à entrada da porta; e a
todo homem que tinha alguma demanda para vir ao rei a juízo, o
chamava Absalão a si e lhe dizia: De que cidade és tu? Ele respondia: De
tal tribo de Israel é teu servo. Então, Absalão lhe dizia: Olha, a tua causa
é boa e reta, porém não tens quem te ouça da parte do rei. Dizia mais
Absalão: Ah! Quem me dera ser juiz na terra, para que viesse a mim todo
homem que tivesse demanda ou questão, para que lhe fizesse justiça!
Também, quando alguém se chegava para inclinar-se diante dele, ele
estendia a mão, pegava-o e o beijava. … e, assim, ele furtava o coração
dos homens de Israel” (2Sm 15:2–6, RA).
Como se assinalou, não é somente o fato, mas também — talvez
ainda mais que o fato — o motivo e propósito os que contam. É por essa
razão que Paulo diz:
2. Agrade cada um de nós o seu próximo para (seu) bem, buscando
(sua) edificação.
Em outras palavras, tendo como meta o proveito espiritual desse
próximo. Agora, o fazer o bem para benefício de outros faz com que
Paulo lembre a Cristo (2Co 8:9), cujo exemplo deveríamos seguir.
Portanto, ele prossegue:
3. Porque nem mesmo Cristo se agradou a si mesmo, mas sim, como
está escrito: “Os vitupérios dos que te vituperavam caíram sobre mim”.
Citação do Sl. 69:9.
Isto significa que Cristo está Se dirigindo a Deus, e dizendo: «Por
amor ao Meu povo tomo sobre Mim mesmo os vitupérios feitos contra
Ti».
A principal lição que Paulo quer ensinar é esta: Se Cristo, o Santo,
esteve disposto a tomar sobre Si mesmo tanto sofrimento, em forma de
insultos lançados contra Ele por Seus inimigos, não deveríamos nós
então estar dispostos a sacrificar um pouco do prazer de comer e beber
por amor aos nossos irmãos crentes?

Vejamos agora os detalhes:


Romanos (William Hendriksen) 626
a. Como o faz com frequência — veja-se 1Co 11:1; 2Co 8:9; 10:1;
Ef 5:1, 2; Fp 2:5s; Cl 3:13 — Paulo dirige a atenção de seus leitores a
Cristo. Ao fazer isso, não estava imitando a Cristo? Veja-se Mt 11:29;
16:24; 20:27, 28; Mc 10:42–45; Jo 13:31. Com relação a Cristo como
nosso exemplo, veja-se também Hb 3:1; 12:2; 1Pe 2:21.
Com relação a este tema deve evitar-se dois extremos: (1) o de
negar a verdade que primeira e principalmente Cristo não é nosso
exemplo, e sim nosso Salvador, e (2) o de negar que há um sentido em
que nosso Salvador Jesus Cristo é certamente também nosso exemplo.
Naturalmente, Ele não pode ser nosso exemplo a menos que seja
primeiro nosso Salvador!

b. As palavras “Cristo não se agradou a si mesmo” são um exemplo


notável de litotes ou afirmação muito modesta de Seu maravilhoso, total
e abnegado sacrifício a favor dos pecadores. Veja-se especialmente Is
53; Mt 20:28; Mc 10:45; 2Co 8:9; Fp 2:5s.
c. Quando se pergunta: «Por que se refere o apóstolo aos insultos a
vitupérios que foram lançados contra Cristo pelos homens em vez de
referir-se a muito mais terrível ira de Deus que Ele sofreu?», a resposta
pode ser que ao fazê-lo Paulo consegue que seu argumento seja tanto
mais eficaz, visto que os insultos lançados contra Cristo pelos homens
foram ouvidos, discutidos e lembrados, enquanto que a ira de Deus
permaneceu oculta. 396

d. Paulo cita o Sl. 69:9b. As palavras citadas encontram-se


exatamente nessa mesma forma na versão da LXX do Salmo 68:10.

396
Há uma resposta diferente e digna de consideração séria em Cranfield, op. cit., Vol. II, pp. 733,
734.
Romanos (William Hendriksen) 627
O Salmo 69 é um dos seis salmos a que se fazem a maior
quantidade de referências no Novo Testamento, sendo os outros os
salmos 2, 22, 89, 110 e 118. 397
e. Segundo o Sl. 69:9b, interpretado à luz do contexto que o
antecede imediatamente, ou seja, v. 9a, era o “zelo” pela casa de Deus
que consumia quem falava, ou seja, Cristo, segundo é descrito nesta
passagem do Antigo Testamento. A lição implícita é que também os
crentes “fortes” da nova dispensação têm que estar cheios de zelo;
devem estar desejosos de fazer sacrifícios não só por seus irmãos
“fracos”, mas também e mais ainda, por Deus. Deveriam esforçar-se por
promover sua glória.
f. Os olhos dos que sustentam que o Sl. 69:9 simplesmente registra
o lamento de um devoto filho de Deus, e não tem nada que ver com o
Messias, estão cobertos com um véu (2Co 3:14). Esta gente esquece duas
coisas: primeiro, o inquebrável vínculo que há entre a antiga e a nova
dispensação (Lc 24:27, 44; Jo 5:46; 1Co 10:1–4); e segundo, o
indissolúvel laço que há entre Cristo e Seus verdadeiros seguidores (At
9:4; 22:7; 26:14; Cl 1:24).
O correto de apelar à Escritura, como o faz Paulo com frequência, e
como o acaba de fazer, está baseado no princípio incorporado no
versículo 4:
4. Porque tudo o que foi escrito em tempos antigos, foi escrito para
nossa instrução, para que através de uma perseverante paciência e o
alento das Escrituras, tenhamos esperança.

397
Outras citações neotestamentárias do Sl. 69 são as que seguem:
Salmo 69 Novo Testamento
Versículos(s)
4 Jo 15:25
9a Jo 2:17
21 Mt 27:34, 48; Mc 15:23, 36; Lc 23:36; Jo 19:28, 29.
22, 23 Rm 11:9, 10
24 Ap. 16:1
25 At 1:20
28 Fp 4:3; Ap 3:5; 13:8; 17:8; 20:12, 15; 21:27.
Romanos (William Hendriksen) 628
Eis aqui uma passagem prática e inesquecível! Em poucas palavras
nos informa que se a religião deve significar algo para nós, devemos
praticá-la. Tudo o que foi escrito nas Escrituras — que para Paulo era o
que hoje chamamos o Antigo Testamento — foi escrito “para nossa
instrução”.
Como sucede com frequência, também aqui a palavra “instrução”
indica muito mais que a comunicação de conhecimento intelectual. A
ênfase, de fato, recai no conhecimento prático, conhecimento que pode
ser, e deve ser, aplicado a viver a vida como crente.
Duas coisas são necessárias para que os escritos sagrados nos sejam
de benefício:
a. perseverante paciência. Qualquer que estuda diligentemente as
Escrituras, pedindo a Deus que aplique seus ensinos ao seu coração e
vida, será ferido por elas vez após vez, porque se dará conta cada vez
mais que a distância entre sua própria conduta e o ideal com que as
Sagradas Escrituras a confrontam é verdadeiramente grande. E no
entanto, deve orar pedindo forças para persistir neste estudo,
aprendendo cada vez mais como aplicá-lo à sua vida.
b. o alento das Escrituras. Aqueles que pela graça e poder de Deus
persistem nesse estudo prático, descobrirão que estes escritos sagrados,
escritos em tempos passados, não só ferem, mas também curam. Com
efeito, eles estão cheios de promessas alentadoras que, quando são
aceitas por meio da fé que Deus dá, resultam no nascimento e
crescimento, nos corações dos homens, da esperança cristã firmemente
enraizada. Veja-se sobre o v. 12.
Por conseguinte, o que Paulo diz é que o modo de conseguir que a
Escritura se transforme em bênção para nós e por meio de nós para
outros, é pô-la em prática.
Na comovedora conclusão de seu livro, 398 o Coronel E. W. Starling
enfatiza que para nosso bem-estar e da nação devemos começar a

398
Starling of the White House, Chicago, p. 327.
Romanos (William Hendriksen) 629
entender que o cristianismo não é somente uma teoria que é preciso crer
mas sim uma força vital.
5, 6. Que o Deus (que é fonte) da perseverante paciência e do alento
vos conceda o viver em harmonia uns com os outros, de acordo com
Cristo Jesus, para que com um só coração e uma só boca glorifiqueis ao
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.
Na presente passagem são retomados do v. 4 os dois conceitos: a
“perseverante paciência” e o “alento”. O apóstolo, dirigindo-se aos
membros da igreja de Roma e a todos os outros que então ou depois
conheceriam o conteúdo desta epístola, pronuncia a solene prece e desejo
que seus leitores, por meio do uso prático e devocional das Escrituras, e
tendo sido feitos receptores das duas preciosas bênçãos já mencionadas,
possam alcançar a meta de viver em harmonia uns com os outros. Cf.
Rm 12:16.
Ele acrescenta uma frase que foi causa de muita controvérsia, mas
cuja melhor tradução provavelmente seja “de acordo com Cristo Jesus”.
Mas o que quer dizer Paulo com isso?
Alguns dizem que esta pequena frase significa “de acordo com a
vontade de Cristo Jesus”. 399 Outros, “de acordo com o padrão ou
exemplo de Cristo Jesus”. 400 Se fosse necessário escolher entre estas
duas opções, minha preferência seria a última, pelo fato de que o
contexto refere-se duas vezes a Cristo como exemplo dos crentes (vv. 3 e
7).
No entanto, não é possível que “de acordo com Cristo Jesus” 401 seja
uma expressão o suficientemente ampla para abranger ambas as ideias?
Não significa: «de acordo com aquilo que Cristo Jesus revelou com
relação a Si mesmo por meio de preceito e exemplo»? Ao intérprete
presente parece que Murray está certo quando afirma que o que está em

399
Cranfield, p. 737; Michaelis, Th.D.N.T., Vol. I, p. 669; Käseman, p. 383.
400
Harrison, p. 152; Greijdanus, Vol. II, p. 621. Ridderbos, p. 322.
401
Original: κατ_ Χριστ_ν _ησο_ν.
Romanos (William Hendriksen) 630
consonância com o exemplo de Cristo deve sempre concordar com Sua
vontade. 402
Como resultado, Paulo expressa a oração-desejo de que os
verdadeiros crentes em todas as partes e de toda classe, sejam “fortes” ou
“fracos”, esforcem-se por alcançar a meta de viver em harmonia uns com
os outros e também desse modo viver de acordo com o exemplo e a
vontade de Cristo Jesus.
Não é necessário que os cristãos pensem exatamente o mesmo sobre
cada assunto. Mas é necessário que nas vidas de todos os filhos de Deus
o amor de Cristo Jesus seja refletido e Sua vontade feita. Será assim que
cheguem a estar verdadeiramente unidos numa comunhão santa e
poderosa, um corpo. Cf. Ef 4:1–6. É deste modo, e somente deste modo,
que o propósito expresso se cumprirá, ou seja, que “com um só coração e
uma só boca (cf. At 1:14; 2:46) glorifiqueis ao Deus e Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo”. Sobre o tema de glorificar a Deus veja-se também
Sl. 150; Jo 17:1; Rm 11:36; 1Co 10:31.
A expressão: “O Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (cf. 2Co
1:3; 11:31; Ef 1:3; 1Pe 1:3) não deve apresentar dificuldades. O título
“Deus de nosso Senhor Jesus Cristo” põe a ênfase na natureza humana
de Cristo, e o de “Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” chama a atenção à
natureza divina do Filho, porque não se alude aqui a uma filiação de
nascimento, e sim trinitária, o tipo de filiação na qual Cristo, por
qualquer nome que for chamado, é posto em pé de igualdade com o Pai e
o Espírito. Há mais sobre isto no comentário sobre Rm 8:9–11, e sobre
9:5. Vejam-se também Mt 27:46 (= Mc 15:34) e Jo 20:17.
Se nos detivéssemos neste ponto, ainda não teríamos feito justiça a
esta bela oração-desejo dos vv. 5 e 6. Para captar o verdadeiro
significado da passagem deve ser posta com relação à pessoa de Paulo, o
apóstolo; quer dizer, com a situação em que estava Paulo no momento
em que ditou esta epístola.

402
Vol. II, p. 201.
Romanos (William Hendriksen) 631
Como se demonstrou anteriormente (na Introdução), quando Paulo
escreveu Romanos encontrava-se trabalhando em Corinto. De maneira
nenhuma se pode dizer que vivia abastado em tal cidade; nem agora (At
20:3), nem anteriormente. Com relação à situação anterior em Corinto
veja-se At 18:6, 12; cf. 1Co 1:11s; 2:3; 3:1; 5:1s; 10:14; 11:20s. Além
disso, mesmo antes de redigir Romanos o apóstolo tinha experimentado
uma série de aflições (veja-se a Introdução) tão penosas e amargas que
bem podemos nos perguntar se sob circunstâncias similares muitos
pastores de hoje em dia não teriam enviado sua carta de renúncia.
Não obstante, a resolução de Paulo de continuar está tão
firmemente ancorada que, aconteça o que acontecer, ele assim mesmo se
alegra no Senhor, e fala aqui em Rm 15:5, 6 de Deus como fonte da
“perseverante paciência e alento” dos crentes. Além disso, quando fica a
pensar no Salvador, seu entusiasmo não conhece limites, de modo que
sua linguagem se move para uma culminação impressionante: “Cristo”
(Rm 15:3), “Cristo Jesus” (v. 5), “nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 6). Que
maravilhoso líder cristão, este Paulo! Antes, que maravilhoso Deus,
fonte de perseverante paciência e alento, este Deus e Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo!
7. Aceitai-vos uns aos outros, então, como Cristo vos aceitou, para a
glória de Deus.
Com relação a esta passagem surgiu a seguinte pergunta: «‘Para a
glória de Deus’ modifica ‘Cristo vos aceitou’, ou combina com ‘Aceitai-
vos uns aos outros’?» Provavelmente a resposta correta seja: «Em certo
sentido modifica a ambos». O que Paulo diz equivale a algo assim:
«Como Cristo vos aceitou para que por meio dessa aceitação Deus fosse
glorificado — visto que Ele certamente é glorificado pelos corações e as
vidas dos aceitos — assim, com o mesmo propósito essencial em mente,
deveríeis aceitar-vos uns aos outros”.
O alto ideal expresso nos vv. 5 e 6, ou seja, viver em harmonia uns
com os outros e glorificar a Deus com a boca e o coração, transforma-se
aqui (no v. 7) na base para a exortação de que os leitores se aceitem uns
Romanos (William Hendriksen) 632
aos outros. Veja-se o que se disse com relação a esta aceitação em Rm
14:1 (incluindo a referência 372). Contudo, o que aqui (Rm 15:7)
enfatiza-se é o caráter recíproco desta aceitação. Não só deve o forte
aceitar o fraco (como em Rm 14:1), mas também deve o fraco receber o
forte.
Antes de deixar esta passagem cabe assinalar que entre (a) a
aceitação de pecadores da parte de Cristo, transformando-os em amados
filhos e filhas, e (b) a aceitação recíproca entre eles, há uma diferença
qualitativa quase infinita. Para Cristo o aceitar pecadores significou nada
menos que deixar as glórias do céu, entrar nas misérias da terra, e sofrer
uma morte tão angustiosa que não há palavras para descrevê-la. Para os
pecadores salvos o aceitar-se mutuamente não implica nenhum sacrifício
tal. Muitos autores de hinos religiosos deram expressão a este contraste
entre o sacrifício divino e os sacrifícios humanos. Sirva como exemplo o
conhecido hino de Isaque Watts “A cruz excelsa ao contemplar”, e o de
Francisca Havergal “Minha vida dei por ti”.
O dever que judeus e gentios têm de viver em harmonia uns com os
outros para glória de Deus volta a ser enfatizado nos versículos:
8, 9a. Pois eu lhes digo que Cristo se tornou servo dos que são da
circuncisão, por amor à verdade de Deus, para confirmar as promessas
feitas aos patriarcas, a fim de que os gentios glorifiquem a Deus por sua
misericórdia ... [NVI]
Os vv. 8, 9a indicam que Cristo Se tornou “servo” (Cf. Is 42:1) e
continua sendo não só dos judeus (lit. “para a circuncisão”; cf. Rm 3:30;
4:12; Gl 2:7–9, e veja-se a nota 119), mas também dos gentios. Foi nos
judeus que Cristo pôs primeiro sua atenção (Mt 10:5, 6; 15:24; Jo 1:11)
durante o Seu ministério público. Ministrou-lhes, isto é, prestou-lhes
serviço humilde e pessoal (Mt 20:28; Mc 10:45; Lc 22:27).
Fez isso para confirmar a verdade de Deus, sua confiabilidade, Sua
fidelidade à promessa da aliança, a promessa feita a Abraão (Gn 12:1–3;
15:1; 17:7; 18:19; 22:18), a Isaque (Gn 26:1s), a Jacó (Gn 28:13–15;
32:28; 46:2–4), e a Israel como povo (Êx 20:1; 24:8). Cristo confirmou a
Romanos (William Hendriksen) 633
promessa fazendo com que se cumprisse vez após vez em corações e
vidas. Note-se o plural “promessas”, indicando as diversas afirmações
da promessa central e única.
No entanto, não só os judeus, mas também os gentios foram
abençoados pela obra de Cristo, visto que desde o princípio tinha sido a
intenção divina reunir os Seus escolhidos também dentre estes últimos.
Veja-se sobre Rm 4:9s e 9:23s.
Portanto, embora, falando em termos estritos, Deus tinha
estabelecido originalmente Sua aliança com Abraão, Isaque, Jacó e o
povo de Israel — todos eles judeus —, contudo, Sua misericórdia se
estendeu também aos gentios; de fato, “até os limites da terra” (Is 45:22;
52:10), a todas suas famílias” (Gn 12:3).
Porque o amor de Deus é maior
Que a medida da humana mente;
E o coração do Senhor
É maravilhosamente clemente.
de Hay una anchura en la misericordia de Dios,
de F. W. Faber
Assim que, com relação à obra de Cristo para com Israel é
especialmente a verdade de Deus, Sua fidelidade na aliança, a que
ressalta; e com relação à Sua obra para com os gentios é
predominantemente Sua misericórdia total e condescendente que brilha.
Sugeriu-se que a razão pela qual Paulo faz esta distinção entre Israel
e os gentios é que ele está ainda pensando nos “fracos” diante dos
“fortes”, sendo os primeiros em sua maior parte judeus, e os últimos
principalmente gentios. Esta sugestão pode andar perto da verdade.
porém não haveria, talvez, uma razão mais fundamental para explicar a
distinção que Paulo estabelece? É absolutamente certo que ninguém se
salva a menos que seja por meio de uma fé pessoal no Senhor Jesus
Cristo, comunicada por Deus! (Jo 3:16; 14:6; At 4:12). Mas o modo de
aproximar-se de um grupo difere do que se usa com o outro. Esta
distinção é claramente especificada aqui em Rm 15:8, 9a, e não deve ser
Romanos (William Hendriksen) 634
403
ignorada. Compare-se a chamada que Pedro faz com base na
promessa da aliança, conforme a encontramos em At 2:38, 39, com a
chamada que Paulo faz a partir da bondade ou misericórdia de Deus
conforme consta em At 14:17 e 17:24, 25. Tanto Pedro como Paulo
agiam corretamente ao falar como o faziam, mas Pedro se dirigia a um
auditório predominantemente judeu, enquanto Paulo, tanto em Listra
como em Atenas, falava com gentios.
Antes da conversão, a aproximação inicial aos judeus difere do que
se usa com os gentios, embora At 4:12 vale para ambos. Mas uma vez os
judeus e gentios que chegaram a ser crentes, são um só povo, como
Paulo o ensina com clareza meridiana (Rm 10:11, 12), usando o símbolo
de uma só oliveira (Rm 11:17s).
À luz da obra mediadora de Cristo, agora há um só corpo de
crentes. A consolidação desta unidade (veja-se vv. 5–7) era uma das
metas principais deste missionário aos gentios. Por meio da obra de
Paulo e outros, Deus Se ocupou para que também os gentios
glorificassem a Deus, como Rm 15:9b–12 está prestes a demonstrar. 404
9b–12. Como está escrito: “Portanto, eu te louvarei entre os gentios,
e cantarei hinos ao teu nome”. E também diz: “Alegrai-vos, vós, gentios,
juntamente com o seu povo”. E novamente: “Louvai ao Senhor, todos vós
os gentios, que todos os povos te louvem”. E mais uma vez, Isaías diz:
“Brotará a raiz de Jessé, aquele que se levanta para reger sobre os
gentios. Nele esperarão os gentios”. 405

403
Há mais sobre isto em minha pequena obra El pacto de gracia, especialmente nas pp. 9–11; 39–79.
404
Possivelmente o melhor seja considerar que tanto Χριστ_ν … πατέρων como τ_ δ_ _θνη … θεόν
dependem diretamente de λέγω. Entendido desta maneira, notem-se os paralelos contrastantes:
judeus gentios
verdade misericórdia
405
Detalhes que concernem ao texto grego:

Versículo 9b
Isto está tirado do que é Sl. 18:49 em nossa Bíblia. Na Bíblia hebraica encontra-se em Sl. 18:50; e
na lXX em Sl. 17:50. O texto de Paulo aqui em Rm 15:9b está totalmente de acordo com o texto
massoreta. O texto da LXX acrescenta a palavra κύριε (Ó, Senhor) depois de _θνεσιν (gentios,
nações). Veja-se também 2Sm 22:50.
Romanos (William Hendriksen) 635
Mais uma vez, como tantas vezes antes, Paulo apela à Escritura
para corroborar o que acaba de dizer (veja-se vv. 8, 9a). Cita quatro
passagens muita apropriadas. A primeira e terceira são do livro dos
Salmos; a segunda é da Lei; a quarta, dos Profetas, o que faz com que as
três divisões principais do Antigo Testamento estejam representadas
aqui. Note-se “como está escrito”; e também “e outra vez diz”, onde a
Escritura é a que diz.
As quatro citações não foram escolhidas por acaso, mas progridem
até formar uma culminação notável. 406
Na primeira citação (v. 9b; cf. Sl. 18:49) o salmista expressa que ele
declarará o nome de Deus entre os gentios. Na segunda (v. 10; cf. parte
de Dt 32:43) convoca-se os gentios a unir-se no louvor a Deus. Na
terceira (v. 11; cf. Sl. 117:1) chama-se os gentios a louvar a Deus
independentemente. E na quarta (v. 12; cf. Is 11:10), a atenção se
centraliza em (o Renovo que brota de) a Raiz de Jessé, que regerá sobre
os gentios, e em quem os gentios esperarão. Ele é Aquele à parte de
quem as promessas feitas aos pais (v. 8) ficariam descumpridas, e sem
Ele os gentios (v. 9a) nunca poderiam glorificar a Deus.
Para Paulo, a “esperança” é uma expectação justificável. É o
fundamento sólido da bem-aventurança futura. É o móvel principal da
coragem e da perseverança dos crentes. Não só para o escritor da epístola

Versículo 10
Esta é uma citação exata da versão dos LXX de (parte de) Dt 32:43.
Versículo 11
Isto reflete o que é Sl. 117:1 em nossas bíblias: a LXX Sl. 116:1.
LXX (traduzido ao português) Paulo (palavra por palavra)
Louvai ao Senhor, (todos vós os gentios) Louvai, todos vós, gentios (ao Senhor)
Louvai-o, (todos vós, povos.) E louvai-o, (todos os povos.)
Uma comparação do texto de Paulo com o da LXX demonstrará que ele fez três mudanças
menores: uma transposição no primeiro artigo; e no segundo o acréscimo de “E” mais a substituição
da terceira pela segunda pessoa.
Versículo 12
Quanto a citação de Is 11:10, Paulo segue o texto da LXX, mas omite _ν τ_ _μέρ_ _κείν_ (em tal
dia).
406
Também Ridderbos o entende assim, p. 326.
Romanos (William Hendriksen) 636
aos Hebreus, mas também por certo para Paulo, a esperança é “a âncora
da alma, firme e segura, e que penetra até o santuário interno … onde
está Jesus” (Hb 6:19, 20). Este mesmo Jesus é Aquele à parte de quem as
promessas feitas aos pais (Rm 15:8) ficariam descumpridas, e sem Ele os
cristãos dentre os gentios (v. 9a) nunca poderiam glorificar a Deus.
Não admira, então, que a esperança seja um tema que Paulo se
encanta em elaborar (Rm 4:18; 5:2, 4, 5; 8:20, 24, 25; 12:12; 15:4; 2Co
3:12; Gl 5:5; Ef 1:18; Cl 1:5, 23, 27, etc.). Tanto que no versículo que
segue imediatamente ao que nos ocupa o apóstolo dirige a atenção dos
ouvintes e leitores mais uma vez à esperança e à sua origem.
13. Que o Deus da esperança os encha de toda alegria e paz, por sua
confiança nele, para que vocês transbordem de esperança, pelo poder do
Espírito Santo.
Note-se o seguinte:
a. Eis aqui outro desejo fervoroso e notável transformado em
oração. Cf. v. 5.
b. “o Deus da esperança”. Esta “esperança” não indica uma
aspiração fraca, mas uma expectação firmemente enraizada. Veja-se Hb
6:19, 20. A frase “o Deus da esperança” quer dizer: o Deus que é a
origem da esperança e a comunica aos que confiam nEle.
c. O objeto desta esperança é o triúno Deus que Se revela no
Renovo que brota da Raiz de Jessé; em outras palavras, o Deus que Se
revela no Senhor Jesus Cristo. Veja-se também sobre o v. 12.
d. “alegria e paz”. Esta é a “alegria indizível e gloriosa” (1Pe 1:8,
conforme RA 1999), e “a paz de Deus que ultrapassa todo
entendimento” (Fp 4:7). Veja-se sobre Rm 5:1, 2; 8:5–8.
Paulo percebia muito bem que na presença de uma alegria e de
uma paz tais, já não haveria lugar para disputas entre “os fracos” e “os
fortes”.
e. “por sua confiança nele”. A fé é um dom de Deus, mas isto não
cancela o fato de que o homem deve exercê-la. Veja-se Lc 8:50; Fp 2:12,
13; 2Ts 2:13.
Romanos (William Hendriksen) 637
f. Embora seja o homem quem deve exercer a fé, não pode fazê-lo
por seu próprio poder, mas “pelo poder do Espírito Santo”.
g. “para que vocês transbordem de esperança”. Nos escritos de
Paulo encontramos uma ênfase constante no caráter transbordante ou
extraordinariamente abundante da redenção em Cristo. Veja-se Rm 5:20;
e também 2Co 7:4; Fp 4:7; 1Ts 3:10; 2Ts 1:3; 1Tm. 1:14; etc. Na
passagem que nos ocupa note-se: “encha … tudo … transbordem”.
h. “de esperança”. Veja-se mais acima, sob b.
E será a esperança cristã “esvaziada em deleite”? Ela se desvanecerá
no momento em que a alma entre no céu? A resposta encontra-se em
1Co 13: “Agora permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três …”.
Que maravilhosa oração-desejo!

Lições práticas derivadas de Romanos 14:1–15:13


Rm 14:1. “Aceitai ao que é fraco na fé, porém não com a ideia de
fazer juízo sobre (suas) opiniões”. O tempo voa. A eliminação de brigas
sobre coisas não essenciais conservaria tempo e energias para proclamar
as boas novas da salvação a um mundo perdido em pecado. Além disso,
se você deseja corrigir uma pessoa do seu erro, em primeiro lugar faça-a
sentir-se “aceita”. Se seu erro não for fundamental, ela talvez possa vê-lo
e, com a ajuda de Deus, corrigi-lo mesmo antes de você o mencionar.
Rm 14:4. “Quem é você que se atreve a fazer juízo sobre o servo de
outro?” Veja-se também Mt 7:1. O irmão sobre o qual você faz juízo não
é seu servo, mas o servo de Deus. Além disso, só Deus sabe tudo o que é
necessário saber antes de pronunciar juízo. Não temos o direito a brincar
de ser Deus!
Rm 14:15a. “Porque se o seu irmão fica seriamente perturbado pelo
que você come, você já não anda em amor”. Tenha isto sempre presente:
Um gesto de amor tem mais valor que cem opiniões corretas.
Rm 14:15b. “Não destrua por seu comer a seu irmão por quem
Cristo morreu”. Lembre: esse irmão a quem você ofende é uma pessoa
Romanos (William Hendriksen) 638
de muito valor. Foi comprado com o próprio sangue de Cristo! Tome
cuidado, então, como o trata!
Rm 14:19. “Busquemos então as coisas que levam à paz e à
edificação mútua”. Antes de me pôr a discutir com meu irmão sobre
comida ou bebida ou qualquer outro assunto de significado religioso
secundário, devo me fazer as seguintes pergunta:
a. Estou suficientemente bem informado sobre este assunto?
b. Ajudará o irmão esta discussão? Realmente o edificará?
Rm 14:21. “É melhor não comer carne ou não beber vinho ou não
fazer qualquer outra coisa que faça tropeçar o seu irmão”.
O que está fazendo ou está por fazer pode ser muito, mas muito,
legal. Mas o pergunta é: “Ajudará”? Servirá ao irmão? Veja-se 1Co
6:12; 10:23.
Rm 15:7. “Aceitai-vos uns aos outros, então, como Cristo vos
aceitou, para a glória de Deus”.
Um texto muito apropriado para qualquer sermão … em qualquer
domingo do ano, mas talvez especialmente no começo de um novo ano:
Tema: ACEITAI-VOS UNS AOS OUTROS
1. Necessidade universal
2. Provisão generosa
3. Obrigação concomitante
4. Propósito final
Os primeiros dois pontos seriam principalmente de introdução.
Veja-se Rm 3:10, 23 para o ponto 1; e Rm 3:24 para o ponto 2. A ênfase
principal do sermão recairia sobre o ponto 3 (veja-se Rm 15:7a) e sobre
o ponto 4 (veja-se Rm 15:7b).
Rm 15:13. “Que o Deus da esperança os encha de toda alegria e
paz, por sua confiança nele, para que vocês transbordem de esperança,
pelo poder do Espírito Santo”.
Embora falando precisamente esta não é uma oração mas um
desejo, o mesmo pode ser facilmente transformado numa oração, visto
que certamente implica a oração: «Ó Deus da esperança, encha-nos com
Romanos (William Hendriksen) 639
toda alegria e pão … para que pelo poder o Espírito Santo transbordemos
de esperança».
Note-se o seguinte:
a. Que tipo de alegria e paz? Veja-se 1Pe 1:8 e Fp 4:7. Por que são
tão importantes estes dons? Veja-se sobre Rm 15:13, ponto d.
b. Como se obtêm estas bênçãos? Resposta: exercendo a fé, o que
implica a obra do Espírito Santo em nossos corações.
c. Com quanta generosidade são providos? Note-se: “encha”,
“tudo”. De fato, Deus nos concede ainda mais do que pedimos. Pedimos
alegria e paz. Dá-nos alegria, paz e esperança; uma esperança tão
abundante que transborda os limites de nossos corações e mentes … e
nunca deixará de fazê-lo. Com relação a isso, veja-se o meu livro La
Biblia y la vida venidera, pp. 75–79.

Resumo de Romanos 14:1–15:13


O mesmo pode encontrar-se no ponto 4 no começo deste capítulo.

J. Recomendações finais. Rm 15:14–16

Ao chegar a esta parte da epístola de Paulo aos Romanos deve


evitar-se o erro de pensar que o que há em Rm 15:14–16:27 é somente
uma conclusão, como uma pós-data ou apêndice que se poderia passar
por alto sem perder muito. Ao contrário, passar por alto ou ainda
subestimar a importância de Rm 15:14–16:27 significaria perder uma
parte muito importante da aplicação da doutrina da justificação pela fé.
Deveríamos lembrar que a pessoa que compôs esta carta tinha
experimentado, e continuava experimentando, os efeitos desta doutrina
muito fundamental em sua própria vida. Que tipo de pessoa resultou?
Por meio do mesmo espírito que se manifesta em Rm 1:1–15:13 Paulo já
nos disse algo sobre si mesmo (veja-se, por exemplo, o capítulo 12),
coisa que tem feito também em passagens como Rm 1:8–16; 7:7–25;
Romanos (William Hendriksen) 640
8:38, 39; 9:1–4; 10:1; 11:1. Não obstante, é preciso admitir que em
grande medida a maior parte de Rm 1:1–15:13 é de caráter doutrinal.
Mas ao chegar a Rm 15:14 e mais adiante, Paulo se torna intensamente
pessoal. De uma maneira muito natural — quase se diria não intencional
— ele demonstra, com seu próprio exemplo, em que tipo de pessoa ele,
pessoa justificada pela fé, se transformou. Já ao ler os versículos iniciais
desta conclusão nos chamam a atenção seu tato, modéstia, prudência,
humildade, e preocupação pelos sentimentos alheios.
Como resultado, aqui há material para sermões! Não são
precisamente estas qualidades — associadas, com a extremamente
importante confiança em Deus — as que devem evidenciar-se em nossa
vida? E se algum pregador tivesse medo de espraiar-se quanto a estas
virtudes porque sabe que em sua própria vida estes aspectos não são
precisamente notáveis, não é essa consciência mais uma razão que deve
levá-lo a proclamar a necessidade destas virtudes em voz alta e clara
para que tanto sua congregação como ele mesmo possam receber uma
bênção transformadora?
Ao ler esta conclusão nos vem à mente Rm 1:5, 8–16. Nos
primeiros versículos Paulo deu expressão ao seu anelo de visitar seus
amigos em Roma. Este pensamento volta aqui (Rm 15:23, 24, 32). Em
Rm 1:5 ele mencionou seu “dom do apostolado”. Em Rm 15:15 volta a
referir-se a este “encargo que Deus em sua graça lhe concedeu”.
Assombrou-nos a profundeza da humildade de Paulo manifestada em sua
expressão anterior: “Anelo ver-vos … para que possamos nos animar
mutuamente por nossa fé … (Rm 1:11, 12)? Não estamos menos
assombrados agora por sua generosidade sem limites, ao escrever ele: “E
certo estou, meus irmãos, sim, eu mesmo, a vosso respeito, de que estais
possuídos de bondade, cheios de todo o conhecimento, aptos para vos
admoestardes uns aos outros” (Rm 15:14, RA).
Mas embora o que Paulo escreve em Rm 15:14 seja uma
reafirmação ampliada do que ele tinha escrito na primeira parte de sua
carta, também há diferenças. Em Rm 1:13 não fez mais que dizer que até
Romanos (William Hendriksen) 641
agora tinha sido impedido de visitar seus amigos romanos. Aqui, em Rm
15:19–23, ele dá ao menos uma resposta parcial à pergunta do que o
havia impedido de ir. Além disso, nesta última seção (Rm 15:23–29) ele
é muito mais explícito que antes (Rm 1:8–15) com relação a revelar seus
planos de viagem. Note-se também o pedido de oração que agora se
adiciona (Rm 15:30s).
14. Meus irmãos, eu mesmo estou convencido de que vocês estão
cheios de bondade e plenamente instruídos, sendo capazes de aconselhar-
se uns aos outros [NVI].
Paulo não faz uso da lisonja. No entanto, ele sente que visto que
indicou certas fraquezas que tocam a grupos e indivíduos dentro da
igreja, ele deveria enfatizar agora a alta consideração que ele tem pela
igreja em geral. Ele diz: “Eu mesmo estou convencido de que vocês
estão cheios de bondade”; quer dizer, em benignidade, em generosidade
de coração e ação (cf. Gl 5:22; Ef 5:9; 2Ts 1:11). Acrescenta:
“plenamente instruídos”, de sabedoria prática. Ele ainda lhes lembra a
capacidade de advertir-se uns aos outros contra faltas específicas de
modo independente — ou seja, sem a ajuda de Paulo nem de nenhum
outro.
Hoje em dia se ouve falar vez após vez de “Conselho pastoral”. São
muitíssimos os livros e artigos que se têm escrito sobre este tema. Pois
bem, o apóstolo revela aqui que também nisso “não há nada novo
debaixo do sol”.
Já havia conselho mútuo nessa época, e era de alto nível. Em termos
gerais os membros da igreja de Roma eram “capazes de aconselhar-se
uns aos outros”.
O que faz com que a observação de Paulo seja ainda mais
comovedora é o fato de que ao fazê-la ele se dirige a eles chamando-os
“irmãos”. Sobre este termo de afeto veja-se sobre Rm 1:13 e 7:1. Note-se
aqui (Rm 15:14) o modificador que reforça a expressão: “meus” (“meus
irmãos”), que aumenta a natureza cordial desta passagem que mostra
quão cheio de amor — sim, até transbordar — estava o coração de
Romanos (William Hendriksen) 642
Paulo; ou melhor dizendo, quão ricos eram os frutos da operação do
Espírito Santo em sua vida.
Paulo prossegue:
15a. A respeito de alguns assuntos, eu lhes escrevi com toda a
franqueza, principalmente para fazê-los lembrar-se novamente deles
[NVI].
O apóstolo tinha formulado advertências contra males tais como as
tendências antinomianistas (Romanos 6), a arrogância de alguns (Rm
11:20, 21; 12:3), a oposição às autoridades do governo (Rm 13:2), e a
zombaria que os fortes faziam dos fracos e a condenação dos fracos aos
fortes (Rm 14:1s). Com generosidade ele acrescenta “para fazê-los
lembrar-se,” como se dissesse: «Naturalmente, vocês sabiam estas
coisas, e somente necessitavam uma lembrança”.
O que Paulo diz não é o mesmo que dizem as linhas do Ensaio
sobre a crítica de Pope, mas igualmente nos vêm à mente:
Os homens devem ser ensinados como se não se ensinasse,
E as coisas desconhecidas propostas como esquecidas.
15b, 16. (Eu o fiz) por causa da graça que Deus me deu, 407 de ser um
ministro de Cristo Jesus para os gentios, com o dever sacerdotal de
proclamar o evangelho de Deus, para que os gentios se tornem uma oferta
aceitável a Deus, santificados pelo Espírito Santo. 408 [NVI]
Note-se o seguinte:

407
Literalmente: por causa da graça dada a mim por Deus.
408
δι_ τ_ν χάριν, por causa da graça; vale dizer, o dom que me fora comunicado pela graça de Deus.
Quanto a λειτουργός (aqui em acus. s. -ν) cf. “liturgista”. Outros que a aplicam a palavra “ministro”,
quer seja literalmente ou por implicação, são Zacarias (Lc 1:23), os “profetas e mestres” de Antioquia
(At 13:1, 2), santos anjos (Hb 1:7, 14) e até ao próprio Jesus (Hb 8:2, 6). Num sentido um tanto mais
geral este termo é aplicado àqueles que contribuem à causa da benevolência cristã (2Co 9:12). Quanto
ao seu uso com relação aos coletores de impostos, veja-se sobre Rm 13:6.
_ερουργο_ντα, acus. s. masc. part. pte. de _ερουργέω, cumprir um dever sacerdotal, oferecer como
sacerdote; no N.T. só aparece neste lugar.
προσφορά (cf. At 21:26; 24:17; Ef 5:2; Hb 10:5, 8, 10, 14, 18). O substantivo se deriva de
προσφέρω, trazer, trazer para a frente.
Romanos (William Hendriksen) 643
a. Paulo foi franco não porque carece de bondade, mas por seu
sentido do dever como ministro de Cristo Jesus aos gentios.
b. Quando o apóstolo diz que escreveu desta maneira como
“ministro de Cristo Jesus para os gentios”, não está dando a entender que
a maior parte daqueles a quem se dirige eram crentes que provinham dos
gentios?
c. “…com o dever sacerdotal de proclamar o evangelho de Deus,
para que os gentios se tornem uma oferta …”.
Quer dizer Paulo que ao proclamar o evangelho aos gentios,
naqueles casos em que a mensagem era aceita pela fé, ele mesmo trouxe
esses gentios a Deus como sacrifício? Ou está dizendo que os próprios
gentios se ofereceram a Deus como sacrifício?
A primeira interpretação pareceria servir como um paralelo à
passagem de Is 66:20, ou seja: “E eles trarão todos os seus irmãos dentre
todas as nações, ao meu santo monte de Jerusalém, como oferta ao
Senhor”. Visto que vez após vez foi evidente que Paulo conhecia muito
bem o Antigo Testamento — e certamente também as profecias de
Isaías! — é bem possível que esta seja a interpretação correta. 409
Mas, claro, mesmo em tal caso Paulo não esquece que estas pessoas
convertidas também se ofereceriam a si mesmos “como sacrifício, vivo,
santo e agradável a Deus …” (Rm 12:1).
d. Tais sacrifícios são “aceitáveis” (cf. 1Pe 2:5) a Deus, por estar
“santificados pelo Espírito Santo”.

K. Olhar retrospectivo. Rm 15:17–22

17–19a. Em Cristo Jesus, então, tenho direito a me gloriar de minha


obra para Deus. Porque não me atreverei a falar de nada senão do que
Cristo, ao levar os gentios a Deus, obteve através de mim por meio do que

409
A noção de que se pode apresentar a gente diante do Senhor como sacrifício espiritual não lhe era
alheia aos judeus. Veja-se, por ex., também sob o S.BK. I. p. 84; III, p. 153.
Romanos (William Hendriksen) 644
tenho dito e feito. (Ele o conseguiu) pelo poder de sinais e prodígios
(feitos) pelo poder do Espírito. 410

Note-se o seguinte:

a. A relação entre este versículo e o contexto que o antecede é


evidente imediatamente. Paulo se descreveu como “ministro de Cristo
Jesus para gentios”. E agora prossegue: “Em Cristo Jesus, então, tenho
direito a me gloriar”. A exultação tem seu lugar; quer dizer, a exultação
“em Cristo Jesus”, não a autoglorificação. 411 Cf. 1Co 1:29–31; 2Co
10:17. Note-se a humildade de Paulo. Não diz: “Não me atreverei a falar
de nada senão do que obtive por meio de Cristo”, e sim “Porque não me
atreverei a falar de nada senão do que Cristo … conseguiu através de
mim pelo que tenho dito e feito”.

b. “Cristo … conseguiu … pelo poder do Espírito”. Atribui a


ambos uma honra e um reconhecimento igual. Há mais sobre este tema
em Rm 8:9–11.

c. O [Cristo] obteve-o pelo poder de sinais e prodígios”. 412 Ambos,


os “sinais” e os “prodígios”, são milagres, atos sobrenaturais. Um
milagre é chamado “prodígio” quando a ênfase recai sobre o efeito que o
mesmo tem sobre o espectador, fazendo com que fique cheio de um
sentido de assombro e reverência. Por outro lado, quando o milagre

410
Variantes, tais como πνεύματος θεο_ e πνεύματος _γίου surgem provavelmente como resultado de
acréscimos dos copistas. Não parece haver nenhuma boa razão para rejeitar o texto mais breve.
411
A palavra καύχησις, gloriar-se, jactar-se, razão de gloriar-se, direito a jactar-se, orgulho (aqui o
significado exato depende, como sempre, do contexto específico), foi usada anteriormente em Rm
3:27, e aparece também em 1Co 15:31; com frequência em 2Co, começando com 1Co 1:12; e deste
modo em 1 Ts. 2:19 e em Tg 4:16. Quanto ao verbo καυχάομαι e formas cognatas, veja-se sobre Rm
2:17–20, incluindo as notas 62–64.
412
Cf. 2Co 12:12, “sinais e milagres e atos poderosos”.
Romanos (William Hendriksen) 645
aponta para além de si mesmo e significa as qualidades (poder,
sabedoria, graça, etc.) dAquele que o faz, se chama “signo” ou “sinal”. 413

d. Sem dúvida, o melhor comentário sobre esta afirmação de Paulo,


em que ele repassa suas tarefas anteriores para o Senhor, é o livro de
Atos. É estranho que mesmo alguns dos melhores livros sobre Romanos
não se refiram a Atos com relação a isso. Não obstante, se não lemos
meditativamente o que Lucas nos diz nesse livro sobre os sinais e os
prodígios que acompanharam a obra de Paulo, corremos o perigo de
perder o significado e a importância verdadeiros do que o apóstolo
afirma.
Estes “sinais e prodígios” foram muitos em número e enormes em
seus efeitos. Aqui o leitor deveria ir a Atos e ler as seguintes seções: At
13:6–12; 14:1–3; 14:8–10; 16:16–18; 16:25s; 19:11–16. Como resultado
do primeiro destes milagres, “… quando o procônsul viu o que tinha
sucedido, creu …”. E como resultado do último: “… o nome do Senhor
Jesus foi glorificado”.
No entanto, tal como Paulo esclarece, muitos dos milagres que
ocorreram durante seu extenso ministério pré-romano foram os
resultados imediatos da pregação (note-se o “pelo que tenho dito e
feito”) aplicados aos corações e vidas pelo Espírito Santo. Estes êxitos
eram “triunfos do evangelho”. Cf. 2Co 2:14. De fato, no livro de Atos a
ênfase recai nestas vitórias espirituais. Veja-se as seguintes passagens:
At 13:42–44, 48, 49; 16:5, 14, 15, 32–34; 17:4, 11, 12; 18:4, 8, 27, 28.
Apesar da feroz oposição tanto da parte dos judeus como dos pagãos, até
os inimigos deviam reconhecer que Paulo e seus companheiros estavam
“transtornando o mundo” (At 17:6). A formulação inspirada do apóstolo
mesmo é muito melhor: “Cristo estava levando os gentios a Deus”.

413
No original um milagre ou obra de poder é um δύναμις, uma maravilha é uma τέρας, e um sinal é
uma σημε_ον. Há mais informação sobre este tema em R. C. Trench, op. cit., par. XCI.
Romanos (William Hendriksen) 646
19b–21. Assim, desde Jerusalém e arredores, até o Ilírico, proclamei
plenamente o evangelho de Cristo. Sempre fiz questão de pregar o
evangelho onde Cristo ainda não era conhecido, de forma que não
estivesse edificando sobre alicerce de outro. Mas antes, como está escrito:
“Hão de vê-lo aqueles que não tinham ouvido falar dele, e o entenderão
aqueles que não o haviam escutado” [NVI].

A expressão “desde Jerusalém e arredores, até o Ilírico” terá escasso


significado para o leitor de hoje a menos que tenha diante de si um mapa
ou esboço da região indicada. Veja-se o na p. 544. Note-se
especialmente a linha que se estende de Jerusalém no sudoeste até o
Ilírico (Iugoslávia e Albânia, veja-se a introdução) no noroeste. Embora
o livro de Atos não mencione nenhuma atividade missionária no Ilírico,
Paulo pode ter entrado em tal território, ou pode ter chegado a seus
limites numa da ocasiões em que esteve na Macedônia; veja-se
especialmente At 20:2.

Por que Paulo menciona Jerusalém como ponto inicial da atividade


missionária? Se levarmos em conta que as três grandes viagens
missionárias começaram em Antioquia da Síria (At 13:1–3; 15:40, 41;
18:22, 23), por que não diz ele, então, “de Antioquia” em vez de “de
Jerusalém”? Será porque parte de sua pregação anterior — embora não a
mais anterior — tinha tomado lugar em Jerusalém (At 9:26–29)? Ou terá
sido talvez porque (depois da primeira viagem missionária) os líderes da
igreja de Jerusalém tinham apoiado entusiasticamente a Paulo e a
Barnabé como missionários aos gentios (Gl 2:9; cf. At 15:1–35)? Ou terá
sido talvez porque foi enquanto orava no templo de Jerusalém que o
Senhor tinha aparecido e lhe havia dito: “Vê, porque eu te enviarei longe
para os gentios” (At 22:17–21)?

Todos estes fatos são importantes, e um ou mais deles pode ter sido
em parte a razão pela qual Paulo escrevesse como o fez. No entanto, a
Romanos (William Hendriksen) 647
razão mais importante provavelmente tenha sido o fato de que não tinha
sido Antioquia da Síria mas Jerusalém o limite mais austral da região
percorrida pelo apóstolo em suas viagens.

Deve recordar-se que a primeira viagem cobriu um território


pequeno: de Antioquia da Síria até a ilha de Chipre, chegando logo até
um grupo de povos da Galácia, 414 e mais tarde, voltando virtualmente
sobre seus passos nestes povos, retornou por mar a Antioquia da Síria
(At 13:1–14:26).

Na segunda viagem Paulo partiu de Antioquia da Síria para a


Macedônia via Galácia e Trôade. Logo, voltando-se para o sul e
cruzando em algum ponto a diagonal que vai de Jerusalém ao Ilírico, foi
a Atenas e dali a Corinto.

Mais tarde, via Éfeso e Cesareia, é provável que ele visitasse a


igreja de Jerusalém 415 e que dali retornasse a Antioquia da Síria. Vemos
então que nesta viagem ele literalmente fez um círculo em redor da
diagonal (At 15:36–18:22).

A terceira viagem com rumo ao estrangeiro era um tanto parecida


com a segunda. Desta vez, no entanto, depois de partir de Antioquia da
Síria e tornar a visitar as igrejas da Galácia, entrou na Macedônia via
Éfeso, onde permaneceu muito tempo, em vez de fazê-lo via Trôade
(como o fez na segunda viagem). Da Macedônia foi a Corinto onde o
encontramos agora, compondo e ditando sua epístola aos Romanos (At
18:23–20:3a).

414
Veja-se C.N.T. sobre Gálatas, pp. 12–22.
415
Se “a igreja” de At 18:22 significa “a igreja de Jerusalém” (seja como for provável).
Romanos (William Hendriksen) 648
“Desde Jerusalém e arredores, até o Ilírico” Rm 15:19

Esta rápida recapitulação, junto com o mapa, torna muito


compreensível a expressão “desde Jerusalém … até o Ilírico”. Numa
época em que as viagens eram muito mais lentas que agora, a área
percorrida por Paulo e seus companheiros era certamente assombrosa em
sua extensão.
Ao contemplar o passado Paulo pôde dizer: “proclamei plenamente
o evangelho de Cristo”. Há quem tenha interpretado esta frase com o
significado: “Em minha proclamação da mensagem não omiti nenhuma
Romanos (William Hendriksen) 649
doutrina importante”. Dado o presente contexto, no entanto, o provável é
que não seja esse o significado, ou ao menos nem todo o significado que
o apóstolo está procurando transmitir. Como ficará claro num momento,
ele está começando a dizer a razão pela qual não visitou Roma
anteriormente. Ao menos em parte, o que ele diz significa: “Em qualquer
ocasião anterior não teria completado minha excursão de pregação do
evangelho. Agora a cumpri ou completei”. O v. 23 tem a explicação do
próprio Paulo: “Mas agora, não havendo nestas regiões nenhum lugar em
que precise trabalhar”.
Paulo considerava-se um abridor de caminhos, um missionário
pioneiro, um fundador de igrejas. Ele plantou. Que agora venha algum
“Apolo” para regar a semente! Veja-se 1Co 3:6. Cabe reconhecer,
porém, que este programa básico não impedia o apóstolo de modo algum
de visitar alguma congregação florescente para desfrutar e compartilhar
as bênçãos da comunhão cristã, e até para pregar ali algumas mensagens.
Mas a meta principal do apóstolo era proclamar as boas novas àqueles
que ainda não tinham ouvido esta mensagem transformadora. Sua
ambição era a de estabelecer novos alicerces (igrejas) e não a de edificar
sobre alicerces alheios.
Ele justifica este método de operar citando muito apropriadamente
Is 52:15, segundo o texto da LXX, que neste caso é uma tradução fiel do
hebraico original.
Esta porção da Escritura merece uma consideração mais detalhada
da que geralmente se dá. É preciso levar em conta que Is 52 precede
imediatamente o capítulo mais famoso e conhecido de Isaías, o cap. 53.
A divisão em capítulos entre 52 e 53 não é muito feliz. Teria sido melhor
que o novo capítulo começasse em Is 52:13. Esse novo capítulo (o que é
agora Is 52:13–53:12) poderia ter recebido o título: “Do sofrimento à
glória na vida do Messias vindouro”. Os que agora constituem os
versículos finais do capítulo 52 contêm um breve sumário deste caminho
da humilhação até a exaltação, e o que é o agora o capítulo 53
desenvolve este tema num detalhe muito maior.
Romanos (William Hendriksen) 650
Não há dúvida que esta profecia segundo o Novo Testamento,
refere-se diretamente a Jesus, Veja-se Jo 12:37; At 8:26–35; Rm 10:16;
1Pe 1:11; 2:24. De fato, o próprio Jesus o considerava assim (Lc 22:37).
Ao descrever a humilhação do Messias, Is 52:14 prediz que “muitos
ficarão espantados por causa de seu desfiguramento”. Cumprimento: o
abuso físico e as zombarias sofridas por Jesus. Mas esta humilhação dá
lugar à exaltação: “Ele será levantado, elevado, altamente exaltado”.
Pense-se na ressurreição de Cristo, em Sua ascensão e coroação
(tomando Seu assento à destra do Pai nos céus).
Is 52:15 demonstra que muitas nações irão maravilhar-se devido à
Sua glória. Por respeito e reverência os reis guardarão silêncio diante
dEle. O que segue é o que Paulo cita aqui em Rm 15, ou seja: “Hão de
vê-lo aqueles que não tinham ouvido falar dele, e o entenderão aqueles
que não o haviam escutado”.
Tal tinha sido a gloriosa predição. Embora muitos de sua própria
gente rejeitariam o Messias, os reis e nações gentílicas ouviriam os
gloriosos anúncios de salvação e, por obra da graça soberana de Deus,
ouviriam e compreenderiam.
O que Paulo está dizendo, então, é que esta predição estava se
cumprindo em seu próprio tempo; e ainda mais, que um importante
elemento estava se cumprindo nele mesmo, que era “o apóstolo dos
gentios”.
Resta ainda a pergunta: «O que foi que fez com que Paulo, ao
escrever de Corinto depois de cumprir a primeira parte de sua terceira
viagem missionária — essa parte que o levou de Antioquia da Síria, via
Galácia, Éfeso e Macedônia até depositá-lo em Corinto — cresse e
afirmasse que agora havia finalizado a grande tarefa de plantar o
evangelho desde essa parte do Império Romano que ia de Jerusalém até
o Ilírico? O que foi que tornou possível que ele dissesse isso agora e não
antes; por exemplo, depois da culminação do segunda viagem
missionária? Esta convicção e expressão devem ter surgido do obtido na
terceira viagem, durante seu longo ministério em Éfeso. Foi a partir de
Romanos (William Hendriksen) 651
Éfeso que, por obra de Paulo e de seus ajudantes, um dos quais era
Epafras (Cl 1:7), o evangelho se disseminou às cidades e povos
circundantes; muito provavelmente a Colossos e aos outros sítios
localizados no vale do Lico, 160 km. a leste de Éfeso, e às “sete cidades”
mencionadas em Ap 1:11.
Seria difícil exagerar os resultados da obra destes plantadores de
igrejas durante este período de três anos: “Todos os residentes de [a
província de] Ásia ouviram a palavra do Senhor, tanto judeus como
gentios” (At 19:10). “Deste modo a palavra do Senhor se estendeu
amplamente e cresceu em poder” (At 19:20). Não foi até que isto foi
conseguido que Paulo se sentiu livre para ir a Roma. Ou, usando as
palavras do próprio Paulo:
22. Essa foi a razão por que também, muitas vezes, me senti
impedido de visitar-vos [RA].

L. Plano para o futuro. Rm 15:23–29

23, 24. Mas agora, não havendo nestas regiões nenhum lugar em que
precise trabalhar, e visto que há muitos anos anseio vê-los, planejo fazê-lo
quando for à Espanha. Espero visitá-los de passagem e dar-lhes a
oportunidade de me ajudarem em minha viagem para lá, depois de ter
desfrutado um pouco da companhia de vocês [NVI].
Note-se o seguinte:
a. Paulo menciona duas razões que ativam seu plano de visitar à
igreja de Roma: a primeira tem que ver com sua tarefa de missionário
pioneiro; a segunda, com seu amor para com os cristãos romanos. A
primeira: “nestas regiões nenhum lugar em que precise trabalhar” (já
explicada); a segunda: “há muitos anos anseio vê-los”. Cf. Rm 1:10, 11.
b. As palavras “planejo fazê-lo quando 416 for à Espanha”
demonstram que visitar Roma não é a meta final do apóstolo. Isto está

416
Em grego _ς _ν = _ταν seguido pelo pres. med. subj. πορεύωμαι, “quando quer que eu vá”,
indefinido; cf. “quando for a Espanha, seja quando for”.
Romanos (William Hendriksen) 652
em consonância com seu princípio básico manifestado no v. 20. Não
obstante, visitar seus amigos cristãos em Roma era certamente algo que
ele esperava com grande antecipação.
c. Chegou Paulo a Espanha? Não se pode dar uma resposta
definitiva. Temos, no entanto, os seguintes testemunhos anteriores:
“Paulo, depois de ter ensinado justiça a todo mundo e de ter
chegado aos limites do Ocidente e de ter dado testemunho diante dos
governantes, foi assim tirado do mundo e levado para o Santo Lugar,
transformado num sobressalente modelo de perseverança” (Clemente de
Roma, 1 Coríntios V.vii). A expressão “os limites do Ocidente” faz
referência mais naturalmente à parte ocidental da Europa; e, no contexto
presente, provavelmente a Espanha. Isto é especialmente certo se, como
no caso presente, a afirmação é feita por alguém que escreve desde
Roma.
“Lucas os relata [estes eventos] para o excelentíssimo Teófilo, visto
que estes eventos transcorreram individualmente em sua presença, tal
qual ele o declara claramente ao omitir a paixão de Pedro como assim
também a saída de Paulo quando este último partiu da cidade (Roma)
para a Espanha” (Fragmento do Muratori).
d. As palavras “Espero visitá-los de passagem” não deve
interpretar-se como se a intenção do apóstolo fosse a de passar
rapidamente pela cidade em sua viagem à Espanha. Esta expressão não
faz outra coisa senão reforçar o pensamento de que o destino último de
Paulo não é Roma, e sim a Espanha. Que sua intenção é a de permanecer
em Roma por um tempo o evidencia a próxima linha. Além disso, Rm
1:11, 12, 15 demonstram que o apóstolo esperava desfrutar de doce
comunhão com os membros da igreja de Roma, e ainda pregar o
evangelho em Roma.
e. “e dar-lhes a oportunidade de me ajudarem”. O que quer dizer
isto? Neste ponto alguns comentadores restringem o significado da
Romanos (William Hendriksen) 653
417
forma verbal que Paulo usa , limitando-a a ser encomendado à graça
de Deus pelos membros da igreja de Roma (At 14:26; 15:40; implicados
em At 13:1–3). Claro, isto é elementar. Não obstante, de acordo com o
uso que este verbo tem em outros lugares, também se incluíam alguns ou
todos os seguintes detalhes: ser dotado de informação, guias, provisões e
dinheiro para a viagem. O pleno significado do verbo se esclarece
quando as seguintes passagens do Novo Testamento em que aparece são
lidos à luz de seus contextos específicos: At 15:3; 20:38; 1Co 16:6, 11;
2Co 1:16; Tt 3:13; 3Jo 6. Veja-se também Lições práticas sobre Rm
15:24.
No entanto, os receptores da carta não devem começar a pensar que
Paulo está prestes a ir diretamente a Roma:
25–27. Agora, porém, estou de partida para Jerusalém, a serviço dos
santos. Pois a Macedônia e a Acaia tiveram a alegria de contribuir para os
pobres dentre os santos de Jerusalém. Tiveram prazer nisso, e de fato são
devedores aos santos de Jerusalém. Pois, se os gentios participaram das
bênçãos espirituais dos judeus, devem também servir aos judeus com seus
bens materiais [NVI].
Mesmo quando Paulo considera que pregar o evangelho é sua tarefa
principal (v. 16 e 20), percebe muito bem que há outra obrigação
importante que pesa sobre ele, obrigação que tem que ser descarregada
antes que ele possa dirigir-se à Roma, ou seja, ajudar a aliviar a pobreza
dos santos de Jerusalém. Ele sabe que não só a alma, mas também o
corpo deve receber sustento. O próprio Senhor Jesus Cristo que pregou o
Sermão da Montanha também alimentou os cinco mil e os quatro mil. As
palavras do Salvador registradas em Mt 25:35, 36 são inesquecíveis.
Por outro lado, o apóstolo lembrava que alguns anos antes Tiago,
Pedro e João, líderes da igreja de Jerusalém, ao estender a ele a mão
direita da comunhão aprovando sua missão entre os gentios, tinham
acrescentado as palavras: “Só te assegures de lembrar-te dos pobres”,
referindo-se, é claro, de modo especial aos crentes pobres de Jerusalém.
417
προπεμφθ_ναι. aor. inf. pasiv. de προπέμπω, enviar ou ajudar a ir, escoltar.
Romanos (William Hendriksen) 654
Isto estava bem de acordo com o pensamento pessoal e com o
planejamento de Paulo (Gl 2:10). Ele desejava fazê-lo porque era uma
pessoa de coração terno, desejoso de fazer algo em gratidão pelas
bênçãos do Senhor que ele tinha recebido. Além disso, depois de ter sido
reduzido ele mesmo vez após vez à pobreza (2Co 11:27; Fp 4:12), podia
entender e compartilhar o sentir dos que estavam similarmente afligidos.
E como último ponto, porém não menos importante, sendo uma pessoa
eminentemente prática, ele confiava em que uma doação proveniente dos
gentios contribuiria para o cumprimento de seu glorioso propósito, ou
seja, derrubar de uma vez para sempre a terrível barreira que havia entre
judeu e gentio, e estabelecer uma única santa igreja universal. Cf. Rm
10:12; Ef 2:14, 18; 4:4.
Merece atenção especial que Paulo diz aos romanos que Macedônia
e Acaia — ou seja, os cristãos que viviam em tais províncias — tiveram
por bem fazer uma contribuição; quer dizer, dar uma expressão material
à sua participação na comunhão cristã que tinham com os crentes que
viviam em Jerusalém. 418 Embora sem dúvida isto seja verdade, vale
notar que Paulo muito generosamente omite assinalar que ele mesmo,
por meio de suas exortações diligentes e urgentes (1Co 16:1–4; 2Co 8 e
9), tinha contribuído substancialmente para que se tornasse realidade.
O apóstolo assinala, além disso, que a ação dos gentios ao aliviar a
necessidade dos pobres de Jerusalém não deve ser vista como causa de
autolouvação (“que boa gente somos!”), mas antes, como uma obrigação
moral. Os gentios começaram a participar das bênçãos espirituais dos
judeus, que vinham como resultado de aceitar o evangelho. Não deviam
então fazer todo o possível por tornar mais leve a carga material sob a
qual gemiam seus doadores? Não é verdade que as bênçãos espirituais

418
É interessante observar que a palavra que se usa em Gl 2:9 para indicar comunhão é a mesma que
aqui em Rm 15:26 indica uma contribuição. O vocábulo grego — koinonia — se tornou tão habitual
em alguns círculos que aparece como um vocábulo inglês, por exemplo, na terceira edição do
Dicionário Webster Internacional.
Romanos (William Hendriksen) 655
excedem qualquer coisa de natureza material que se pudesse oferecer
como devolução?
28, 29. Quando tiver cumprido esta tarefa, e lhes tiver entregue este
fruto, irei a vós em meu caminho para a Espanha. Eu sei que quando for
a vós, irei na plenitude da bênção de Cristo. 419
As palavras: “quando tiver cumprido esta tarefa … irei a vós em
meu caminho para a Espanha” são claras. A explicação a encontramos
nos vv. 25 e 26. Veja-se também At 24:17.
No entanto, a expressão: “E lhes tiver entregue este fruto” está entre
as mais controversas de Romanos. Em lugar de incomodar ao leitor com
todo tipo de teorias que eu, junto com muitos outros, não posso aceitar,
permita-me apresentar imediatamente a opinião que me parece ser a mais
razoável. 420
Estabeleceu-se uma igreja em Jerusalém. A grande maioria de seus
membros eram, naturalmente, cristãos judeus. Eles haviam aceito a Jesus
Cristo como seu Senhor e Salvador; mas era-lhes difícil estar totalmente
de acordo com a doutrina da “liberdade em Cristo”. Quando souberam
que os gentios já não estavam obrigados a submeter-se à circuncisão ou a
evitar comidas que na lei tinham sido declaradas “impuras”, alguns
objetaram (At 15:1, 5). Veja-se o dito anteriormente sobre esta tema com
relação a “os fracos” e “os fortes” (Rm 14:1–23).
Além disso, quando esta gente tomou nota de que as igrejas
gentílicas aumentavam rapidamente em número enquanto eles — suas
igrejas de Jerusalém — viam-se em problemas para manter-se,
começaram a olhar com receio ao que sucedia no mundo gentílico.

419
ε_λογίας Χριστο_, apoiado pelos MSS mais importantes deveria preferir-se à expansão το_
ε_αγγελίου το_ Χριστο_, que tem o apoio de testemunhas posteriores.
420
Meu ponto de vista tem muito em comum com o dos seguintes autores:
S. Greijdanus, op. cit., Vol. I, pp. 649, 650.
E. F. Harrison, op. cit., pp. 158, 159.
H. Ridderbos, op. cit., pp. 337, 338.
G. B. Wilson, op. cit., pp. 239, 240.
Romanos (William Hendriksen) 656
Realmente não havia desculpa que justificasse suas vacilações,
escrúpulos, crítica e dúvida. Se eles houvessem aceito na verdade todos
os ensinos de Jesus, não teriam tido problemas. Não tinha pronunciado
Jesus uma bênção sobre o centurião, que não pertencia ao povo da
circuncisão (Mt 8:5–13)? E não tinha declarado o Senhor que todos os
alimentos eram “puros” (Mc 7:14–19)?
Agora, uma das razões para organizar a campanha para ajudar os
pobres santos de Jerusalém tinha sido provavelmente a de convencer os
judeus de Jerusalém e a outros que concordavam com eles, que deveriam
aceitar os cristãos gentios como iguais. Veja-se At 10:1–11:18. Então,
quando o apóstolo descreve a contribuição ou oferta como “fruto”, o
provável é que deve ser considerada como produto da fé genuína dos
gentios e de sua gratidão sincera pela boa disposição dos crentes judeus
de compartilhar com eles sua fé em Cristo.
O donativo dos gentios demonstrava que o evangelho estava
produzindo um efeito benéfico em suas vidas. Era uma evidência visível
da operação do Espírito Santo nos corações e vidas dos doadores. E a
entrega desta doação selava ou certificava este fato gratificante aos
receptores judeus. Cf. Ef 1:14, e veja-se também C.N.T. sobre Filipenses
1:11 e 4:17.
Implicam as palavras “Sei que, quando for visitá-los” etc. que Paulo
percebia que os romanos poderiam sentir-se desiludidos pela notícia de
que ele não iria a eles diretamente, mas devia visitar Jerusalém primeiro?
Seja como for, ele agora lhes assegura que quando for fará “na plenitude
da bênção de Cristo”.
À luz de Rm 15:24 e também de Rm 1:11, 12, 13b, 15, ele deve ter
tido em mente bênçãos tais como a alegria de encontrar-se e de
conversar juntos, sua pregação no meio deles, o ouvir eles o relatório do
apóstolo sobre as bênçãos divinas em outras congregações, o
planejamento conjunto de sua viagem à Espanha, etc.
Quando Paulo escrevia isso, não tinha modo de saber que seu
verdadeiro encontro com seus amigos de Roma tomaria lugar um par de
Romanos (William Hendriksen) 657
anos mais tarde (veja-se At 24:27; 28:11) pelo que ele tinha suposto, e
que chegaria como prisioneiro. Mas até então o esperava calorosas boas-
vindas (At 28:11–15), e receberia muito alento (Fp 1:12–14), embora
algumas das condições em que se encontrava a igreja de Roma
demonstrariam ser de natureza decepcionante (Fp 1:15, 17).

M. Pedido de oração. Rm 15:30–33

O que aqui temos é (a) um pedido, (b) uma descrição do caráter da


oração solicitada por Paulo, (c) uma indicação de seu conteúdo, e (d) de
seu propósito. Tudo isso culminou com (e) uma apropriada oração-
desejo final.

A. O pedido
30. Exorto-vos, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo e pelo amor
do Espírito …
O próprio modo de expressão indica que Paulo percebe muito bem
a necessidade de que a igreja ore por ele. Note-se a solenidade da
expressão “por nosso Senhor Jesus Cristo”, que faz referência ao
Salvador em toda a plenitude de seu ser e significado para a igreja. Note-
se especialmente a palavra “nosso”, visto que Ele é tanto Senhor de
Paulo como Senhor daqueles a quem ele se dirige.
Paulo apela a “nosso “Senhor Jesus Cristo” porque era o próprio
Senhor que Se tinha sacrificado por Paulo por amor a ele (Gl 2:20), e que
o havia designado pessoalmente para ser apóstolo dos gentios (At 22:17–
22).
Ele apela também ao “amor do Espírito”, indicando provavelmente
(embora nem todos estejam de acordo esse mesmo amor que o Espírito
derramou nos corações de todos os que pertencem a Cristo (Rm 5:5) e
que, como resultado, cabe esperar que orem uns pelos outros.
Romanos (William Hendriksen) 658
B. Descrição do caráter da oração solicitada
… que me acompanhem em minha luta orando a Deus por mim.
Não há nada superficial com relação à oração genuína. Isaías a
descreve como um agarrar-se a Deus (Is 64:7). Para Jacó — quer dizer,
“Israel” — foi uma luta corpo a corpo com Deus (Gn 32:24–30). E
Paulo similarmente a chama aqui uma luta. Cf. Cl 2:1; 4:12. O apóstolo
deseja que os crentes romanos se unam a ele numa petição intensamente
séria e anelante.

C. Seu conteúdo
O primeiro pedido solicitado é:
31a. Orem para que eu esteja livre dos desobedientes da Judeia …
Paulo se refere aqui à oposição que espera da parte de judeus
incrédulos em seu próprio país. Ele os chama “desobedientes” por causa
de sua negativa a sujeitar-se à vontade de Deus revelada no evangelho
(Rm 10:21; 11:30). Que estes judeus se opunham inflamadamente a
Paulo manifestou-se claramente quando ele estava prestes a navegar a
Síria em caminho para Jerusalém e se descobriu um complô dos judeus
contra a sua vida. Como resultado houve uma mudança de planos de
viagem, com o apóstolo viajando a Jerusalém via Macedônia (At 20:3).
Além disso, ele não tinha esquecido que também antes os judeus tinham
tentado assassiná-lo (At 9:29, 30). Veja-se também At 20:22, 23; 21:4,
10, 11, 27s.
O segundo pedido solicitado é:
31b. e que o meu serviço em Jerusalém seja aceitável aos santos
[NVI]
Paulo tinha trabalhado esforçada e longamente a favor desta
“oferta” ou “contribuição” dos gentios para os santos pobres de
Jerusalém. No entanto, temia que aqueles para quem a trazia não
estivessem dispostos a aceitar a doação. Ele sabia muito bem que apesar
das decisões do Concílio de Jerusalém (At 15:19–29), a oposição contra
Romanos (William Hendriksen) 659
ele mesmo e contra seu evangelho de liberdade em Cristo nunca tinha
cessado. Veja-se At 15:1, 5; Gl 3:1s, 17; 5:1–4; 6:12. Isto explica sua
solicitude desta séria petição.

D. Seu propósito
32.… de forma que, pela vontade de Deus, eu os visite com alegria e
juntamente com vocês desfrute de um período de refrigério [NVI].
A perspectiva que aqui se visualiza é muito agradável: os complôs
dos judeus são rebatidos, e os santos de Jerusalém, libertos de seus
preconceitos, não só recebem a Paulo cheios de alegria, mas também
estão encantados com a “benevolência” que traz. Como resultado Paulo,
cheio de alegria, parte para Roma, onde encontra distração na companhia
de seus queridos amigos.
Mas isso não foi de maneira nenhuma o que sucedeu. Em alguns
aspectos o que sucedeu foi precisamente o contrário. Isto nos lembra o
refrão: “O homem propõe; Deus dispõe”; expresso de um modo
igualmente sucinto em alemão: der Mensch denkt, Gott lenkt; cf. o
holandês: de mens wikt, God beschikt; el inglés; man proposes, God
disposes.
O que na verdade sucedeu está escrito em At 21:17–28:16. O que é
preciso enfatizar, no entanto, é que Paulo submete-se, em corpo e alma,
para a vida, a morte e a eternidade, à sábia e soberana vontade de Deus.
Ele escreve “pela vontade de Deus”. No contexto presente se indica a
vontade de decreto de Deus. O resultado é que embora os eventos
ocorreram de uma maneira que Paulo não podia ter antecipado, depois de
ter estado em Roma durante certo tempo, ele pôde escrever: “Quero que
saibam, irmãos, que as coisas que me aconteceram na verdade
contribuíram para o progresso do evangelho …” (Fp 1:12).
Romanos (William Hendriksen) 660
E. A oração-desejo
33. O Deus de paz seja com todos vós. Amém.
Note-se o seguinte:
a. Paulo esteve falando da congregação de Roma, dos judaizantes
de Jerusalém, da gente da Macedônia e Acaia, de seus próprios planos de
viagem, etc. Todos estes estão sujeitos a mudança. A contingência é a
regra universal. A estabilidade não pode ser achada em nenhuma parte.
Em nenhuma parte? Não, em nenhuma … exceto em Deus! É por isso
que a presente passagem quadra tão bem neste contexto; se,
especialmente aqui, onde o apóstolo acaba de revelar sua incerteza com
relação ao que possa ou não acontecer com ele em Jerusalém. Além
disso, no artigo imediatamente anterior ele fez menção da vontade de
Deus. Por esta razão também é muito apropriada aqui a menção do
“Deus de paz”.
b. A expressão “o Deus da paz” deve significar “o Deus que é o
autor da paz”, vale dizer, aquele que comunica a paz. Veja-se 2Ts 3:16.
À parte de estreita comunhão com Ele não há paz.
c. A expressão “o Deus da paz” aparece também em Rm 16:20; 2Co
13:11; Fp 4:9; 1Ts 5:23; e Hb 13:20; a frase muito estreitamente
vinculada, “o Senhor da Paz”, aparece em 2Ts. 3:16.
d. O significado da palavra paz já foi explicado com relação a
passagens anteriores (por exemplo Rm 1:7; 2:10; 5:1; 8:6; etc.).
Fundamental para tê-la é a reconciliação com Deus por meio da morte de
Seu Filho. Como resultado, a pessoa que foi assim reconciliada tem a
segurança interior de que os pecados passados foram perdoados, os
acontecimentos presentes são encaminhados para o bem, e que no futuro
nada poderá separá-lo do amor de Deus em Cristo. Por conseguinte, esta
pessoa recebeu a mais rica de todas as bênçãos: a salvação plena e
gratuita, a “prosperidade”, o “shālōm” em seu sentido mais total e
religioso, incluindo a serenidade, a confiança de que “tudo está bem”.
Romanos (William Hendriksen) 661
e. Quando o apóstolo expressa agora a oração-desejo de que este
Deus da paz seja com aqueles a quem se dirige, ele quer dizer que seu
desejo interior — desejo a cumprir-se em todos os que amam o Senhor
— é que este Deus da paz possa aproximar-se tanto deles que possam
experimentar esta paz em suas vidas, possam meditar nela, possuí-la,
desfrutá-la. Compare o título Emanuel, quer dizer Deus conosco”; ou
seja, com os doentes para curá-los, com os famintos para alimentá-los, e
acima de tudo, com os perdidos para buscá-los e salvá-los. Veja-se
C.N.T. sobre Mateus, p. 152.
f. O apóstolo conclui esta oração-desejo acrescentando aquela
palavra de solene afirmação e entusiasta aprovação: Amém. Cf. Rm 1:25.
Romanos (William Hendriksen) 662
ROMANOS 16
N. Recomendação de Febe. As saudações do próprio Paulo e as
de todas as igrejas. Rm 16:1–16

Quanto à integridade do texto de Rm 16:1–23, veja-se a introdução.


Com relação ao v. 24, veja-se a nota 437. E no que diz respeito à
autenticidade de Rm 16:25–27, veja-se o Apêndice.

A. A recomendação do Febe
1, 2. Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que é (também) uma
servidora da igreja em Cencreia. Peço-lhes que lhe deis as boas-vindas no
Senhor que seja digna dos santos, e que lhe deis qualquer ajuda que possa
necessitar de vós, porque ela foi de ajuda a muitas pessoas, inclusive a
mim mesmo.
A lista de saudações é precedida por uma nota na qual certa mulher
chamada Febe é apresentada e calidamente recomendada à igreja de
Roma. É razoável pensar que foi Febe quem, ao partir para Roma, levou
consigo a carta de Paulo e a entregou aos seus destinatários. Alguns
manuscritos até fazem menção disso numa pós-data. É-nos fácil
compreender que uma nota ou carta de recomendação, que servisse de
credencial, era de grande valor tanto para o portador como para os
receptores. Cf. 2Co 3:1.
O nome da dama, Febe, quer dizer brilhante, radiante. Deriva da
mitologia pagã ao ser outro dos nomes aplicáveis a Ártemis, a brilhante e
radiante deusa da lua, identificada com a deusa romana Diana. Há quem
pensa que Febe deve ter sido uma cristã gentia visto que — segundo eles
— os judeus não teriam posto em seus filhos nomes pagãos.
Este raciocínio, entretanto, poderia ser questionado. Devemos
lembrar que, como resultado da conquista de Alexandre Magno, com a
consequente difusão da cultura helenística, os nomes de origem grego-
Romanos (William Hendriksen) 663
pagão tornaram-se populares em todo o império. Também os judeus logo
adotaram o hábito de dar a seus filhos nomes gregos, assim como hoje
em dia pais cristãos não vacilam em chamar seus filhos Dario, Penélope,
Diana ou Alexandre, etc. E há acaso alguém que se incomode em mudar
os nomes pagãos dos dias da semana? 421
Quando Paulo chama Febe “nossa irmã”, ele quer dizer “nossa irmã
no Senhor”. E prossegue: “que é (ou “que também é”) 422 uma servidora
da igreja em Cencreia”. Cencreia era o porto de Corinto que dava para a
Ásia. Estava situada sobre o Golfo Sarónico. Poucos anos antes Paulo
tinha zarpado desde este porto em caminho de Corinto para Éfeso (At
18:18).
Ao chamar Febe servidora da igreja de Cencreia. Paulo
provavelmente indica que ela ocupava uma posição estável e desenvolvia
nessa igreja e para a mesma uma função definida e importante. Como
resultado ela é chamada uma diakonos de tal congregação. Em Rm 15:8
é dito que Cristo Se fez um diakonos, quer dizer, um servo, dos
circuncidados. A eles Ele ministrou. Mas o palavra diakonos pode ser
usada também em certo sentido mais especializado ou técnico. Em Fp
1:1 e em 1Tm. 3:8, refere-se, no plural, a diáconos.
Se esse sentido técnico for aplicável à palavra tal como é usado aqui
em Rm 16:1, então Paulo está chamando Febe de diaconisa. Agora, é
preciso reconhecer que num século posterior, o ofício eclesiástico de
diaconisa não era desconhecido.423 A pergunta, no entanto, é: “Faz o
Novo Testamento, aqui ou em algum outro lugar, referência a um ofício
eclesiástico tal, ou seja, o de diaconisa?” Quanto a este tema, há
diferenças de opinião. Os detalhes estão na nota 424 .

421
Pode encontrar-se mais informação sobre este tema dos nomes pagãos no C.N.T. sobre Filipenses,
pp. 162, 163, nota 116.
422
Não há certeza com relação a se καί é autêntico.
423
Veja-se Apostolic Constitutions II 26, 57; III 7, 15. Consulte-se também sobre este tema a
S.H.E.R.K., Vol. 1, p. 245.
424
Entre os que estão a favor de traduzir diaconisa aqui em Rm 16:1 encontramos aos seguintes: C.
Hodge, p. 704; J. A. C. Van Leeuwen e Jacobs, p. 279; R. C. H. Lenski, pp. 898, 899; C. E. B.
Romanos (William Hendriksen) 664
A ausência de qualquer menção de diaconisas no resto do Novo
Testamento é um fato. Quanto a 1Tm. 3:11, veja-se C.N.T. sobre esse
versículo e sobre Tt 2:3–5.
Para descobrir que classe de função específica tinha Paulo em
mente quando chama Febe diakonos da igreja em Cencreia, devemos
prestar muita atenção ao que diz; ou seja: “que lhe deis as boas-vindas no
Senhor que seja digna dos santos”, ou seja as boas-vindas como a que se
espera dos santos. Logo acrescenta: “que lhe deis qualquer ajuda que
possa necessitar de vós, porque ela foi de ajuda 425 a muitas pessoas,
inclusive a mim mesmo”.
É possível que esta seja a chave que nos dê o significado do
problema que estamos considerando. À luz dos fatos registrados em Rm
16:1, 2, que tipo de ajuda necessitaria Febe ao chegar a Roma, que
evidentemente não era seu lugar de residência? Não seriam proteção e
especialmente hospitalidade? E que tipo de ajuda necessitavam aqueles
viajantes que ao viajar do oriente ao ocidente ou do ocidente ao oriente
detinham-se temporariamente no porto de Cencreia, a cidade de Febe?
Não é um fato que até hoje grandes pontos de confluência tais fazem
com que os estranhos se sintam um pouco nervosos? Não era que eles
necessitavam uma cordial palavra de boas-vindas, um bom
assessoramento, proteção contra o perigo e com frequência um lar

Cranfield, p. 781; A. Schlatter, p. 396; W. Sanday y A. C. Headlam, p. 417; O. Michel, p. 377, A. F.


N. Lekkerkerker, Vol. II, p. 187; e, mais recentemente, R. Y. K. Fung, “Charismatic versus Organized
Ministry”, EQ, 4 (1980), pp. 195–237.
Por outro lado, B. H. Beyer, em seu artigo referente a esta palavra (Th. D. N. T., Vol. II, p. 93), diz
que é uma pergunta sem resposta certa se Paulo está-se referindo a uma acusação fixa ou
simplesmente ao serviço que Febe brindava à comunidade. J. Denny, p. 717, considera que a tradução
“diaconisa” é “muito técnica”. S. Greijdanus (Vol. II, p. 657) também rejeita “diaconisa”. H.
Ridderbos assinala que se Febe ministrar aos santos, tal qual o esclarece o v. 2, ela é uma servidora da
igreja. O que Paulo enfatiza é a importância do Febe para a igreja. Que a palavra διακονος, tal como
aqui a usa, refira-se à acusação eclesiástico de diaconisa é algo que não pode ser provado. Ridderbos
acrescenta que em nenhuma outra parte menciona o Novo Testamento a diaconisas (pp. 341, 342).
425
προστάτις fem. de προστάτης, alguém que se põe à frente, um protetor, ajudante.
Romanos (William Hendriksen) 665
amigável no qual passar a noite ou até os dias e noites que faltavam até
que partisse o próximo navio para seu destino?
Em outras palavras, era hospitalidade o que se necessitava na muito
ativa Cencreia. E era hospitalidade o que Febe sabia oferecer. Não é
acaso provável que, como Lídia (At 16:11–15, 40), Febe fosse uma dama
cristã de recursos, abençoada com uma mente alerta e com um coração
transbordante de bondade e serviçalismo? Talvez, tal como Lídia, Febe
fosse uma mulher de negócios.
É fácil entender que Paulo deve haver enviado muitos “casos” a
Febe. Por esta razão, e provavelmente por outras, Paulo pode dizer:
“visto que ela foi de ajuda a muitas pessoas, inclusive a mim mesmo”.
Pode encontrar-se uma lista de boas mulheres, incluindo Febe, que
se mencionam na Escritura, no C.N.T. sobre 1 Timóteo, pp. 153, 154. A
lição é clara. Há dois extremos que é preciso evitar: (a) o de ordenar
mulheres para ocupar ofícios eclesiásticos quando não há nas Escrituras
justificação para fazê-lo; e (b) o de passar por alto os muito importantes
e valiosos serviços que mulheres alertas e devotas podem render à igreja
de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

B. As saudações do próprio Paulo


A pergunta que surge com relação às saudações (Rm 16:3–16a), ou
seja: «Como podia Paulo ter conhecido tantas pessoas em Roma se ele
mesmo nunca tinha estado ali?», já foi respondida. Veja-se a introdução
(sob 3a e sob Com relação a 3a).
Também é preciso considerar o seguinte:
1. Alguns destes mesmos nomes aparecem em inscrições achadas
em Roma ou em suas cercanias (em lápides, etc.). Isto não significa
necessariamente que o mesmo nome se refira à mesma pessoa. Mas
indica que já não podemos surpreender-nos com o aparecimento de tal
nome na epístola de Paulo aos Romanos.
Romanos (William Hendriksen) 666
2. Alguns dos nomes são definitivamente latinos: Júnias, Amplíato,
Urbano.
3. Marcos, ao escrever aos romanos, menciona a “Simão, pai de
Alexandre e Rufo”, como se dissesse; «gente que vocês, que estão em
Roma, conhecem bem”. Cf. Rm 16:13, “Saudai Rufo”.
4. Todos os códices contêm esta lista de nomes como parte da
epístola de Paulo aos Romanos.
Além da razão indicada anteriormente para a inclusão de todos estes
nomes, o próprio fato de que Paulo não tivesse estado em Roma tornava
aconselhável que saudasse calorosamente àqueles membros da
congregação a quem conhecia, a fim de ganhar assim acesso ao coração
de toda a igreja de Roma.
3–5a. Saúdem Priscila e Áquila, meus colaboradores em Cristo
Jesus. Arriscaram a vida por mim. Sou grato a eles; não apenas eu, mas
todas as igrejas dos gentios. Saúdem também a igreja que se reúne na
casa deles.
Áquila era um judeu, nativo do Ponto. Podemos supor que sua
esposa, Prisca (que em Atos é chamada Priscila), era também judia. 426
Estas duas pessoas sempre são menciona juntas. Seus nomes são
mencionados três vezes por Paulo (Rm 16:3; 1Co 16:19; 2Tm 4:19), e
também três vezes por Lucas (At 18:2; 18:18; 18:26).
Eram grandes viajantes, que com frequência se mudavam de uma
parte a outra, como já se indicou (veja-se a introdução). Quando Paulo os
encontrou pela primeira vez, eles tinham chegado recentemente de
Roma, expulsos de tal cidade pelo decreto do imperador Cláudio, que
tinha ordenado que todos os judeus saíssem de Roma (At 18:2).
Ambos trabalhavam em fazer tendas, como também Paulo. Melhor
ainda, eram cristãos. Terá sido Paulo quem serviu de instrumento para
fazer nascer sua fé no Senhor Jesus Cristo? Aqui em Rm 16:3 Paulo os
chama “meus colaboradores em Cristo Jesus”. Isto quer dizer que os três

426
Significado dos nomes: Áquila = águia; Prisca = velha; Priscila = velhinha.
Romanos (William Hendriksen) 667
— Paulo, Prisca e Áquila — eram sócios tanto em sua vocação diária
como na proclamação do evangelho. Não admira, então, que Paulo se
alojou com eles em Corinto (At 18:3).
Quando Paulo, durante sua segunda viagem missionária, partiu de
Corinto em sua viagem de volta, com a intenção de fazer uma rápida
escala em Éfeso, com a promessa de retornar mais tarde, Prisca e Áquila
foram com ele. Mas quando Paulo partiu de Éfeso e zarpou para a
Cesárea, Prisca e Áquila permaneceram em Éfeso (At 18:18–21). Em
essa cidade havia trabalho para eles. Isto pode descrever-se como a
colocação do fundamento do subsequente ministério extenso do apóstolo
em tal cidade, que está relatado em Atos 19.
Certo dia um famoso e fervente pregador, um judeu alexandrino
chamado Apolo, chegou a Éfeso. Quando Prisca e Áquila notaram que
apesar de sua eloquência e grandes conhecimentos havia algo que faltava
em seu conhecimento do “caminho de Deus”, convidaram-no ao seu lar e
lhe deram instrução adicional (At 18:24–26).
Foi no final do longo ministério de Paulo em Éfeso que ele escreveu
1 Coríntios. Mais uma vez estava com Prisca e Áquila, como é claro
quando em suas saudações ele inclui o seguinte: “No Senhor, muito vos
saúdam Áquila e Priscila e, bem assim, a igreja que está na casa deles”
(1Co 16:19, RA).
Aqui em Rm 16:3–5a Paulo faz com que a saudação a Prisca e
Áquila seja o primeiro de uma longa lista. Não só é a primeira, mas
também é a mais completa e extensa dos saudações. Agora surge que
este casal tinha “arriscado tudo” por Paulo; vale dizer, que tinham
arriscado a vida por ele. Sucedeu isto durante o tumulto que se
desencadeou em Éfeso e que se descreve em At 19:23–41? Cf. 1Co 16:9,
19; 2Co 1:8–10. Não podemos estar seguros quanto a isso. O que, sim,
fica claro é que este devoto casal foi e continuou sendo leal a Paulo em
grau máximo.
Paulo, por sua vez, não alardeava, dando a conhecer a todos o que
Prisca e Áquila faziam por ele. Nossa passagem demonstra que de todas
Romanos (William Hendriksen) 668
as partes, onde quer houvesse igrejas gentílicas estabelecidas, chegavam
mensagens de louvor e gratidão por esta abnegada lealdade de Prisca e
Áquila. Note-se também que agora este casal está de volta a Roma, lugar
ao qual o apóstolo dirige esta carta. Mais uma vez, tal como em Éfeso, o
lar de Prisca e Áquila é lugar de reunião para a congregação. Quanto a
«igrejas no lar» veja-se a introdução. É por isso que Paulo acrescenta:
“Saúdem também a igreja que se reúne na casa deles”. 2Tm 4:19
pareceria indicar que mais tarde ambos deixaram Roma mais uma vez e
retornaram a Éfeso. A causa desta volta pode ter sido a perseguição de
Nero. Foi desde sua prisão em Roma que Paulo, pouco antes de sua
morte, enviou uma última saudação a estes dois leais colaboradores.
É digno de nota que em duas das três ocasiões em que Paulo
menciona este casal, o nome de Prisca aparece antes que o de Áquila. Do
mesmo modo, em duas das três passagens de Atos, Priscila é mencionada
em primeiro lugar. Perguntamo-nos por que será assim. Será a razão que
neste caso a esposa sobressaía acima do esposo em sua obra para Cristo?
Seja qual for o caso, Prisca (= Priscila) não pode deixar de aparecer na
lista de mulheres dignas de honra que a Escritura menciona. Seu nome
merece ser mencionado conjuntamente com o de Lídia, Febe, e todas as
outras. E também seu esposo estava plenamente comprometido com a
causa de Cristo.
Deve ter sido com uma ênfase especial — com o coração
palpitando um pouco mais apressadamente e com os olhos úmidos de
lágrimas de amor e gratidão — que Paulo escreveu: “Saúdem Prisca e
Áquila”.
Ao longo de sua carreira missionária Paulo teve vários colegas e
colaboradores. Mas lhe pareceu necessário opor-se a Pedro em sua
própria cara (Gl 2:11s). Com Barnabé teve um desacordo tão sério que se
separaram (At 15:39). Houve um tempo em que Paulo se negou a
permitir que João Marcos continuasse sendo um de seus companheiros
(At 15:38). Chegado seu tempo repreenderia a Evódia e Síntique (Fp
4:2); e Demas o abandonaria (2Tm 4:10). Mas embora Prisca e Áquila
Romanos (William Hendriksen) 669
estiveram em certo sentido mais perto dele que qualquer dos outros —
visto que eram seus companheiros tanto no ofício como na fé — todos os
registros indicam que entre Paulo, por um lado, e Prisca e Áquila, por
outro, sempre houve perfeita harmonia!
5b. Saúdem meu amado irmão Epêneto, que foi o primeiro
convertido a Cristo na província da Ásia [NVI].
Epêneto significa digno de louvor. 427 É justo que Epêneto (ou
Epaéneto), que é “o primeiro fruto” da Ásia 428 ou “primeiro convertido a
Cristo”, seja mencionado imediatamente depois da saudação dirigida a
Prisca e Áquila, que estavam muito envolvidos na atividade missionária
que se levava a cabo nessa zona geral, a parte ocidental da Ásia Menor,
com sua cidade principal Éfeso.
A expressão mesma, “o primeiro fruto”, dá a entender que muitos
outros seguiriam, que é o que na verdade sucedeu (At 19:10, 20). Com
relação ao termo “o primeiro fruto”, veja-se também sobre Rm 8:23;
11:16. Note-se “a Cristo”, visto que os crentes Lhe pertencem, por tê-los
ele comprado com Seu precioso sangue (1Co 6:20; 7:23; 2Pe 2:1), para
que glorifiquem a Deus.
É fácil imaginar-se que quando Paulo ou seus colaboradores tais
como Prisca e Áquila olhavam para trás e viam a extraordinária
expansão do cristianismo na província romana da Ásia e seus arredores,
deviam ter dito: «E pensar que tudo começou com Epêneto; ele foi as
primícias.» É bem possível que essa tenha sido uma das razões pela qual
o apóstolo, com o coração transbordante de profunda emoção, escreve:
“Saúdem meu amado irmão Epêneto”. Naturalmente, podem ter existido
também outras razões pelas quais Paulo usasse o modificador “amado”
neste lugar e com relação a Amplíato (v. 8), Estáquis (v. 9), e Pérside (v.
12), razões que não podemos discernir agora.
6. Saudai Maria, que trabalhou muito por vós.

427
Cf. _παινος, louvor, Rm 2:29.
428
Não “de Acaia” (como consta em algumas traduções ao inglês), visto que carece de sólida
justificação textual, e que provavelmente surgiu devido a uma confusão com 1Co 16:15.
Romanos (William Hendriksen) 670
“Maria” (ou Miriã) é um nome semítico que usavam também várias
outras mulheres mencionadas no Novo Testamento: a mãe de Jesus (Mt
1:16), a mãe de João Marcos (At 12:12), Maria de Betânia (Lc 10:42; Jo
11:1), a mãe de Tiago e José (Mt 27:61; cf. Jo 19:25), e Maria Madalena
(Lc 8:2). Como sabia Paulo que esta Maria, especificamente (Rm 16:6),
tinha trabalhado muito pela igreja de Roma? Encontramos a resposta em
At 18:1, 2: “Depois disto, Paulo partiu para Atenas e foi a Corinto. Ali
conheceu um judeu chamado Áquila, nativo do Ponto, que tinha chegado
recentemente da Itália com sua esposa Priscila, porque Cláudio tinha
ordenado que todos os judeus abandonassem Roma”. Paulo não se
mantinha alheio ao que sucedia nas diversas igrejas. Veja-se também v.
19 e cf. Rm 1:8.
7. Saúdem Andrônico e Júnias, meus parentes que estiveram na
prisão comigo. São notáveis entre os apóstolos, e estavam em Cristo antes
de mim.
É necessário fazer uma tentativa de responder as seguintes
perguntas, com relação às quais as opiniões diferem:
a. Temos que ler Júnias (masc.) ou Júnias (fem.)? 429 Neste último
caso, Andrônico e Júnias poderiam ser marido e mulher.
b. Escreveu Paulo “meus compatriotas”, ou “meus parentes”?
c. A expressão: “notáveis entre os apóstolos”, significa “estimados
na opinião dos Doze”, ou “que, como apóstolos, se destacam”?
Sugiro as seguintes respostas:
Quanto a a.: a continuação da frase, que pode traduzir-se “notáveis
entre os apóstolos”, favorece a conclusão de que ambos eram homens. 430
Quanto a b.: quando o apóstolo usa pela primeira vez em Romanos
a palavra em questão, 431 ou seja, em Rm 9:3, a mesma significa
obrigatoriamente “compatriotas”, vale dizer, compatriotas judeus. Não se
indicou nenhuma boa razão para adotar um significado diferente para

429
Vale dizer, qual acentuação aceitaremos, _ουνι_ν ou _ουνίαν?
430
O original lê _πίσιμοι _ν το_ς _ποστόλοι.
431
plural de συγγενής.
Romanos (William Hendriksen) 671
esta palavra em seu uso nesta passagem, Rm 16:7. É difícil crer que
Paulo tinha três “parentes” (vv. 7 e 11) em Roma, e outros três
“parentes” (v. 21) junto com ele em Corinto. Quando Paulo se tornou
cristão, a maior parte de seus “parentes” devem ter-se renegado dele. Cf.
Fp 3:7.
Quanto a c.: os Doze não entram aqui em questão. Além disso, no
Novo Testamento a palavra apóstolo usa-se em certo sentido geral e em
um estrito. Segundo a aplicação mais ampla do vocábulo, gente como
Barnabé, Epafrodito, Apolo, Silvano e Timóteo são chamados
“apóstolos”. Todos eles evangelizam. Pode-se descrevê-los como
missionários ou evangelistas cristãos itinerantes. O que Paulo diz, então,
é:
«Façam chegar minhas saudações a Andrônico e Júnias, meus
compatriotas — quer dizer, por sua nacionalidade judaica — ex-
companheiros da prisão (cf. 2Co 6:5; 11:23), homens que são apóstolos
e, como tais, dignos de nota, e que eram cristãos mesmo antes que eu o
fosse».
Fica aberta a possibilidade de que o que Paulo tenha querido dizer é
que o simples fato de que eles tenham aceito a Cristo antes que ele o
fizesse os fazia notáveis entre os apóstolos.
8. Saúdem Amplíato, meu amado no Senhor.
Em latim Amplíato significa ampliado, engrandecido. Este nome
era comum entre escravos. Entre Paulo e seus compatriotas judeus
existia um forte afeto (Rm 9:1–4a), mas entre o apóstolo e seus
companheiros de fé o vínculo era muito mais forte. Amplíato é para
Paulo “amado no Senhor”. É assim que, em certo sentido, o vínculo que
os une um ao outro é similar ao que existia entre Davi e Jônatas (1Sm
20:41, 42). Com relação a isso veja-se o que se diz mais acima, sobre o
v. 5b, e assegure-se de ler 2Co 6:14–18.
9. Saúdem Urbano, nosso colaborador em Cristo, e (saúdem) a meu
amado Estáquis.
Romanos (William Hendriksen) 672
Urbano, e aqui voltamos a encontrar um nome latino, significa, tal
qual o nome o indica, urbano, elegante, educado. Este nome era usado
por gente de toda extração social. O fato de que Urbano seja chamado
“nosso” colaborador, diferente de Prisca e Áquila, que são chamados
“meus” colaboradores (v. 3), poderia dar a entender que a relação entre
Urbano e Paulo não era tão estreita como a que havia entre Prisca-Áquila
e Paulo. É necessário lembrar que o apóstolo tinha compartilhado seu lar
com estes dois últimos, porém não, pelo que sabemos, com Urbano. Por
isso, “nosso” pode indicar que em alguma ocasião este irmão em Cristo
tenha sido um dos colaboradores pessoais de Paulo, mas que agora era
um obreiro cristão em Roma; ou talvez somente indique que visto que
Urbano leva a cabo uma obra de evangelismo em Roma — obra que em
qualquer lugar em que se efetuasse estava perto do coração de Paulo—
este o chama por essa razão “nosso colaborador”, um colaborador numa
causa que é muito querida por todos nós.
“E … ao meu amado Estáquis”. Note-se mais uma vez, como nos
vv. 5, 8 e 12, este modificador precioso, “amado”; aqui, como nos vv. 5
e 8, inclusive “meu amado”. Estáquis significa espiga, e é um nome
grego, embora não muito comum.
10a. Saúdem Apele, que está aprovado em Cristo.
Apele é um nome grego que também era usado pelos judeus. Paulo
acrescenta “que está aprovado em Cristo”, o que quer dizer que em meio
de difíceis circunstâncias Apele tinha permanecido fiel à fé, e era digno
de confiança. Cabe lembrar que Paulo diria mais tarde a Timóteo: “Faz
todo o possível para apresentar-te a Deus aprovado (2Tm 2:15). Veja-se
também 1Co 11:19; 2Co 10:18. A pessoa aprovada é aquela que, depois
de ter sido completamente examinada pelo Juiz supremo, tem a
satisfação de saber que Deus está agradado dele e o elogia. Para
encontrar o oposto de “aprovado” — ou “desaprovado, desqualificado,
rejeitado — veja-se 1Co 9:27.
Isto é tudo o que sabemos de Apele, mas o modo em que Paulo lhe
faz chegar sua saudação é certamente muito alentadora.
Romanos (William Hendriksen) 673
10b. Saúdem os que pertencem à casa de Aristóbulo.
Era este Aristóbulo neto de Herodes, o Grande? A expressão “a
casa de Aristóbulo” provavelmente refere-se aos escravos da pessoa que
Paulo tem em mente. Se esta conjetura for correta, então pareceria que o
próprio Aristóbulo não era cristão, ou que já havia morrido quando Paulo
compôs Romanos. Por ocasião da morte de seu amo estes escravos eram
mantidos juntos e passavam a ser propriedade do imperador. Esta teoria
indicaria, por sua vez, que quando Paulo, no v. 11, continua falando e
diz: “Cumprimentem a Herodião”, está se referindo a um liberto de
Aristóbulo ou talvez a alguém cujo nome quer dizer “associado a” ou
“que tem admiração pela família de Herodes. A verdade é que toda esta
reconstrução 432 está cheia de hipótese.
11a. Saúdem Herodião, meu compatriota.
Como Andrônico e Júnias, Herodião era compatriota de Paulo, a
saber, judeu.
11b. Saúdem os da casa de Narciso, que estão no Senhor.
O nome Narciso pode nos fazer lembrar de (a) uma planta de bulbo
com folhas suaves e ramalhetes de flores alaranjadas, brancas e
amarelas; ou de (b) um jovem belo (mitológico) que se consumiu de
amor por seu próprio reflexo num manancial; e por conseguinte também
de (c) qualquer pessoa que se distingue por seu excessivo amor por si
mesmo. Mas esta passagem pode nos fazer lembrar especialmente de (d)
um liberto que, durante a época em que Cláudio foi imperador, chegou a
ser muito rico e poderoso. Não obstante, não há maneira de determinar
se este Narciso era aquele que Paulo tinha em mente. Tudo o que
podemos dizer é que o nome soa muito lógico numa carta dirigida à
igreja que estava em Roma. Nem todos os que pertenciam à casa de
Narciso eram crentes, como é claro pelo fato de que Paulo envie suas
saudações àqueles membros desta casa que estavam “no Senhor”.
12a. Saúdem Trifena e Trifosa, que trabalham no Senhor.

432
Veja-se também J. B. Lightfoot, St. Paul’s Epistle to the Philippians, reimpressão Grand Rapids,
1953, pp. 172–175.
Romanos (William Hendriksen) 674
Eram Trifena (=delicada) e Trifosa (refinada, ou talvez exuberante)
irmãs? Bem podem ter sido. Pense-se, por exemplo, em Maria e Marta
(Jo 11:1); e hoje em dia na Ana e Joana, ou Rute e Raquel. Os pais com
frequência dão a suas filhas nomes com sons parecidos.
Mas embora Trifena e Trifosa bem possam ter pertencido a uma
família que vivia na Rua Cômoda, elas mesmas não viviam uma vida de
conforto. Sempre que Paulo pensa nelas, sua alma enche-se de
admiração. Portanto, assegura-se de que este alto conceito que tem delas
se reflita na saudação que recebem; por isso diz: “Saúdem Trifena e
Trifosa, que trabalham no Senhor”. Elas eram pessoas que trabalhavam
para o Senhor a quem tinham entregue suas vidas.
12b. Saúdem Pérside, a amada, que trabalhou muito no Senhor.
Pérside=Dama persa. Como Epêneto (v. 5), Amplíato (v. 8), e
Estáquis (v. 9), descreve-se a esta serva do Senhor dizendo dela que é
“amada”. Para ser mais preciosos, dizem-se no caso presente “a (não
somente minha) amada”, enfatizando talvez o fato de que ela é objeto do
amor de Deus e do amor de toda a congregação.
Como a Maria (v. 6), ela é descrita dizendo que “trabalhou muito”.
A diferença de tempo verbal que há entre Trifena e Trifosa, que
trabalham (v. 12a.) cf. Pérside trabalhou (v. 12b.) indica acaso que a
fraqueza que vem com a velhice já havia alcançado Pérside, de tal modo
que ela já não pode trabalhar tão diligentemente como uma vez o fez? Se
for essa a situação, Paulo se assegura de que seus trabalhos passados não
sejam esquecidos. Uma boa lição para todos nós!
13. Saúdem Rufo, escolhido no Senhor, e a sua mãe e minha.
Esta passagem nos faz lembrar imediatamente de Mc 15:21, onde se
diz que os legionários, fazendo uso de sua capacidade requisitória,
obrigaram um cireneu, Simão, pai de Alexandre e Rufo, a levar a cruz de
Cristo. Visto que o mais provável é que Marcos tenha escrito seu
Evangelho em Roma e para os romanos, e visto que aqui, na carta aos
romanos é mencionado um homem chamado Rufo, a opinião popular,
que retroage aos primeiros séculos, e que sustenta que ambas as fontes se
Romanos (William Hendriksen) 675
referem ao mesmo indivíduo, bem pode estar certa. No entanto, não
podemos estar seguros disso.
A interpretação da frase “escolhido no Senhor” vai do extremo da
posição de Cranfield, que diz que efetivamente a mesma significa
“escolhido de Deus, eleito”, até o extremo da posição de Lenski, que diz
que a mesma não tem nada que ver com a eleição para vida eterna, mas
indica simplesmente que Paulo considerava que Rufo era um cristão
seleto. 433
Não se pode passar por alto que dos dois filhos de Simão
(Alexandre e Rufo) somente Rufo (=vermelho) é mencionado por Paulo.
A razão disso pode ter sido que quando o apóstolo escreveu Romanos,
Alexandre já tinha morrido, ou que este filho de Simão não vivia em
Roma. Também Simão fica sem mencionar. Já teria morrido?
Restam, naturalmente, outras possibilidades. Uma delas é que
embora Alexandre não fosse cristão, Rufo era, e que isso não tinha
sucedido por nenhuma bondade inata dele, mas porque era um
“escolhido no Senhor”.
Por outro lado, não temos que esquecer que não há grande
segurança de que Rm 16:13 e Mc 15:21 se refiram à mesma família.
Seja qual for a verdade deste assunto, não parece haver nenhuma boa
razão pela qual interpretar a expressão “escolhido” de um modo
diferente do que o fazemos em outros lugares dos escritos paulinos (Rm
8:33; Cl 3:12; 2Tm 2:10; Tt 1:1; quanto ao verbo cognato veja-se 1Co
1:27, 28; Ef 1:4). Chegamos assim à conclusão de que o significado
“escolhido de Deus, eleito” deve prevalecer.
Note-se também a frase “e a sua mãe e minha”, que provavelmente
signifique: “e a sua mãe (ou seja à esposa ou viúva de Simão de Cirene,

433
Veja-se Cranfield, p. 794; Lenski, p. 911. Murray (p. 231) também declara decididamente que
“escolhido no Senhor” não se refere à eleição em Cristo, dando como razão para tal opinião que isto
se aplicaria a todos os santos mencionados neste capítulo. Este argumento não é muito convincente,
visto que a gente poderia também dizer que “amado” se aplicaria a todos os crentes; e no entanto a
palavra é somente usada com relação ao Epêneto, Amplíato, Estáquis e Pérside.
Romanos (William Hendriksen) 676
se é que Mc 15:21 tem aplicação aqui), que foi também uma mãe para
mim”. Não sabemos exatamente quando ou em que lugar a mãe do Rufo
tenha sido como uma mãe para Paulo. Mas o fato é que aqui, como o faz
com frequência, o apóstolo demonstra mais uma vez um apreço pelo que
os membros femininos da igreja fizeram e fazem por ele mesmo e pela
igreja, para glória de Deus.
14. Saúdem Asíncrito, Flegonte, Hermes, Pátrobas, Hermas e os
irmãos (que estão) com eles.
Sobre estes cinco homens — acaso se trataria de escravos ou
libertos? — não temos nenhuma outra informação. A expressão “e os
irmãos que estão com eles” provavelmente faça referência aos outros
membros da mesma igreja no lar.
15. Saúdem Filólogo e Júlia, Nereu e sua irmã, Olimpas e todos os
santos (que estão) com eles.
Entre os escravos da casa imperial havia muitos que se chamavam
Filólogo e Júlia. Estes dois podem ter sido marido e mulher, e os outros
dois seus filhos. “Olimpas, e todos os santos (que estão) com eles”
podem possivelmente ser considerados como os outros membros de uma
igreja no lar.
16a. Saúdem uns aos outros com um beijo santo.
Há três grupos de passagens nas quais o Novo Testamento refere-se
ao beijo e/ou a beijar.
A primeiro se encontra em Lc 7:36–50, onde Jesus diz ao seu
anfitrião, Simão o fariseu: “Beijo não me deste, porém ela (a penitente),
desde o momento em que entrei não cessou que beijar meus pés”. A
lição é essa: não só deve haver afeto, mas também deve ser expresso.
Deve haver algum sinal de afeto; por exemplo, um beijo.
O segundo está em Lc 22:47, 48 (cf. Mt 26:47–49; Mc 14:44–45).
Jesus diz a Judas: “É com um beijo que trais o Filho do Homem?” O
amor não só deve ser expresso, mas também este amor deve ser
verdadeiro; o beijo deve ser sincero.
Romanos (William Hendriksen) 677
O terceiro tem que ver com o beijo intercambiado entre os membros
da comunidade cristã, a igreja. É a este beijo que se faz referência aqui
em Rm 16:16 (= 1Co 16:20) e também, com transposição de duas
palavras, em 2Co 13:12. Não somente deveria haver um beijo e não
somente deveria este ser símbolo de um afeto genuíno, mas também
deveria ser santo. Em outras palavras, nunca deveria envolver a menos
de três participantes: Deus e as duas pessoas que se beijam. O beijo santo
simboliza o amor de Cristo mutuamente compartilhado.434 O mesmo é,
por certo, e tal como o indica 1Pe 5:14, “um beijo de amor”, e por
conseguinte um beijo de harmonia, de paz. Se isso for corretamente
entendido os crentes não omitirão deliberadamente beijar àqueles de
quem não simpatizam. Amarão até àqueles de quem não gostam. O beijo
santo é para todos os membros (1Ts 5:26).
Entre os Pais da igreja é Justino Mártir quem primeiro menciona
este beijo. Ele indica o momento preciso da liturgia em que se dava este
beijo, com as pessoas do mesmo sexo, beijando-se umas às outras. “No
fim das orações nos cumprimentamos uns aos outros com um beijo”. 435

C. Saudações de todas as igrejas


16b. Todas as igrejas de Cristo enviam-lhes saudações [NVI].
Em suas viagens de um lugar a outro Paulo entrava em contato com
muitíssimas igrejas. Delas reunia informação para transmitir a outras. É
razoável supor que as igrejas visitadas pelo apóstolo pediriam que ele
transmitisse suas saudações aos irmãos e irmãs em Cristo que ele
encontraria em outros lugares.

434
Também assim o entende E. F. Harrison, op. cit., p. 165.
435
The First Apology (Primeira Apologia) Capítulo 65, citação tomada The Fathers Of The Church (tr.
ao ingl. de T. B. Falls), New York, 1948, p. 105; também a referência 1 da mesma página. Na citação
desta oração (que se ocupa do beijo santo) que figura em The Ante-Nicene Fathers (editada por A.
Roberts e J. Donaldson), Vol. I, p. 185, Grand Rapids, 1950, há uma referência que informa ao leitor
que o beijo santo chegou a ser um costume cristão habitual, continuou em existência até o século
treze, e que ainda se pratica na Igreja Copta.
Romanos (William Hendriksen) 678
Paulo estava mais que disposto a aceder a este pedido, visto que ele
mesmo enfatizava em cada oportunidade possível a unidade de todos os
crentes em Cristo. Veja-se o que foi dito sobre isso com relação a Rm
9:24.
Além disso, como apóstolo de Jesus Cristo, ele tinha sido investido
com autoridade para promover esta unidade. «A totalidade da igreja de
Deus na terra: um corpo com muitos membros», tal era o tema que lhe
encantava desenvolver. A ideia de manter as diversas congregações
locais informadas sobre o que sucedia em cada uma, de encorajá-las a
ajudar umas a outras em suas respectivas necessidades, tanto físicas
como espirituais, e por conseguinte transmitir também as saudações de
uma congregação a tantas das outras quanto como fosse possível, tudo
isso estava em consonância com esse tema.
Algum dia Roma ia a ser a fortaleza mais poderosa do cristianismo
no mundo. Para o propósito de unificar as diversas partes desse império
que gradualmente se estava formando, as saudações — quer dizer, os
objetos de um amoroso interesse que se estendiam de uma parte de uma
ampla zona à outra — outras vigas eficazes.

O. Advertência final. Rm 16:17–20

17. Recomendo-lhes, irmãos, que tomem cuidado com aqueles que


causam divisões e colocam obstáculos ao ensino que vocês têm recebido.
Afastem-se deles [NVI].
Há aqueles que sustentam que a passagem que vai do v. 17 a 20 não
pode ter sido parte da epístola de Paulo aos Romanos porque seu tom é
diferente ao que encontramos no resto desta carta. Eles sustentam que
está “fora de contexto”. (Algo já se disse sobre isto na Introdução).
Perguntam:
«Visto que o apóstolo esteve prodigalizando um efusivo louvor aos
membros da igreja de Roma (Rm 1:8; 15:14), como pode ser que agora,
sem mais nem menos, ele os esteja repreendendo?»
Romanos (William Hendriksen) 679
Os que assim pensam devem voltar a ler com mais cuidado. Um
exame mais minucioso lhes permitirá ver que o que Paulo diz aqui em
Rm 16:17–20 está definitivamente “dentro de contexto”. No versículo
precedente Ele lhes disse que “saúdem uns aos outros com beijo santo”.
Este beijo era evidentemente um sinal de amor, unidade e harmonia. E
por isso agora, no v. 17, adverte a congregação que se cuide das pessoas
cujo propósito é turvar esta harmonia e criar divisões. A conexão é
evidente.
Além disso, Paulo acaba de referir-se a “todas as igrejas de Cristo”.
Será possível que ao pensar nas condições em que se encontram tais
igrejas ele possa ter deixado de lado o fato de que algumas delas tinham
sido alvoroçadas, ou o estavam sendo, por falsos mestres que os
enganavam e que faziam todo o possível por derrubar a doutrina da
salvação só pela graça? Estas pessoas estavam constantemente causando
divisões e pondo obstáculos (veja-se sobre Rm 14:13, nota 384) no
caminho, com o propósito de obstruir o ensino verdadeiro que os
romanos tinham aprendido.
Em nenhum lado diz ou dá a entender o apóstolo que estes
alvoroçadores eram membros da igrejas de Roma. Provavelmente eram
forasteiros, propagandistas itinerantes do erro.
Não carece pensar que todos fossem do mesmo grupo. Alguns
podem ter sido legalistas (judaizantes), outros antinomianistas ou talvez
ascetas, ou propugnadores de alguma combinação de dois ou mais
“ismos” desorganizadores.
Paulo não diz: «oponham-se a eles»; visto que embora alguns
daqueles a quem se dirige poderiam ter feito isto com êxito, outros
poderiam ter sido facilmente desencaminhados se entrassem em debate.
Portanto, Paulo insiste com os irmãos (sobre isso veja-se Rm 1:13; 7:1) a
evitar totalmente a estes dissidentes. Ele tinha plena consciência de que a
possibilidade de que alguns membros pudessem perder o rumo era real
se não seguiam este plano de evitar estas pessoas, especialmente se for
Romanos (William Hendriksen) 680
levado em conta os ardilosos métodos empregados pelos propagandistas,
como ele os assinala no versículo 18:
18. Porque tais pessoas não servem a nosso Senhor Jesus Cristo, mas
a seus próprios ventres; e com suaves palavras e lisonjas enganam o
coração dos ingênuos.
A expressão que se usa no original e que traduzimos “tais pessoas”
contém neste caso um sotaque de desprezo. Talvez poderia traduzir-se
“gente desta espécie”, ou “esta classe de pessoas”. Paulo evidentemente
os considera impostores, enganadores.
Ao afirmar que: “tais pessoas não servem a nosso Senhor Jesus
Cristo, mas a seus próprios ventres”, é como se o apóstolo dissesse: «Ou
servimos a nosso Senhor Jesus Cristo» — note-se a plenitude deste
glorioso título — «ou nos servimos a nós mesmos. Fazer ambos ao
mesmo tempo é impossível. Rendemos nossa lealdade ao um ou ao
outro». Cf. Mt 6:24.
Assim no marco de umas poucas palavras Paulo expõe o erro
fundamental da turma contra a qual faz a advertência. Visto que no caso
destes falsos mestres a primeira alternativa, ou seja, servir a nosso
Senhor Jesus Cristo, está fora de toda possibilidade, deve ser que estão
servindo a seus próprios ventres. Cf. Fp 3:19. Significa esta expressão,
“seus próprios ventres”, que necessariamente estes perturbadores são
todos libertinos, sensualistas? Provavelmente não seja assim, visto que
em tal caso a advertência teria sido dirigida somente contra um certo tipo
de alvoroçadores. Portanto, o verdadeiro significado provavelmente seja:
«egoístas de todo tipo, gente que é escrava de seu próprio ego». Quer se
trate de judaizantes, antinomianistas, ascetas, ou o que seja, como
gostam de fazer-se ouvir! Estão inchados pela exaltada opinião que têm
de si mesmos (cf. Cl 2:18, 23). Vivem “segundo a carne”, permitindo
que suas vidas sejam determinadas pelos apetites de sua pecaminosa
natureza humana (cf. Rm 8:4, 5).
Que o dito é certo evidencia-se também pelos métodos que utilizam
para capturar seus auditórios. Fazem uso de suaves palavras e da lisonja.
Romanos (William Hendriksen) 681
Cf. Judas 16. São os que alguns considerariam “oradores eloquentes”,
embora sejam na verdade “enganadores hábeis”. Na verdade não estão
ajudando ninguém, embora pretendam fazê-lo. São enganadores porque
afastam as pessoas da plenitude da salvação em Jesus Cristo. São os
corações dos simples, confiantes, ingênuos, crédulos, os que são
desencaminhados por estes enganadores.
Cabe fazer-se a pergunta: «É a advertência dos vv. 17, 18 tudo o
que é preciso para fazer com que aqueles a quem se fala continuem
vivendo vidas de glória a Deus o Pai e ao Senhor Jesus Cristo (Rm 15:6),
vidas ricas em bondade (Rm 15:14), e que estejam de acordo com o
ensino que aprenderam (Rm 16:17)?» Provavelmente que não. É por isso
que Paulo acrescenta,
19a. Porque o relatório de vossa obediência chegou a todos, pelo que
me alegro por vós …
É evidente que o apóstolo está mencionando outro incentivo para a
conduta cristã: o desvio da vereda da fé e da obediência seria uma grande
desilusão, não só para o próprio Paulo senão para os crentes de todas as
partes. A fé dos romanos era mencionada por todo mundo, o que faz com
que o apóstolo esteja constantemente dando graças a Deus por eles e
alegrando-se por eles (Rm 1:8). Certamente eles não quererão deter esta
ação de graças e este regozijo, e estragar a reputação que agora
desfrutam.
Notem-se as palavras: “o relatório de vossa obediência”.
Obediência é um termo de que Paulo gosta (Rm 1:5; 6:16; 15:18; 16:26).
Para tornar mais fácil que os ouvintes-leitores continuem no
caminho reto, o apóstolo formula uma regra simples e ao mesmo tempo
compreensiva, ou seja:
19b. mas quero que sejais sábios com relação ao que é bom e
inocentes quanto ao que é mau.
Esta passagem imediatamente traz à mente vários outros textos
paulinos, tais como 1Co 14:20; Fp 2:15; e 1Ts 5:21, 22; como também o
conhecido dito de Jesus: “Portanto, sede sagazes como as serpentes e
Romanos (William Hendriksen) 682
inocentes como as pombas” (Mt 10:16), o que, no entanto, não quer dizer
que Paulo estivesse necessariamente citando Jesus.
A sabedoria pela qual Paulo aqui advoga é mais que conhecimento.
É uma qualidade espiritual ao mesmo tempo que mental. Cf. Rm 11:33.
É o resultado da experiência santificada. Paulo deseja que os romanos
vivam de tal maneira que sejam capazes de escolher o que é bom aos
olhos de Deus, e que sejam inocentes ou sem malícia 436 quanto ao que é
mau. Devem ser sábios para poder fazer e promover o que é bom, e não
“misturar-se” com nada que seja mau aos olhos de Deus.
Nos vv. 17–19 Paulo esteve dizendo aos romanos como devem
conduzir suas vidas. Isso é muito importante. Em tantas passagens a
Escritura enfatiza a responsabilidade humana. Porém não se pode passar
por alto a soberania divina. Em todo caso, o homem nada pode fazer à
parte da força que Deus lhe comunica.
Um exemplo instrutivo de como dar o devido reconhecimento a
ambas as verdades temos na vida do jovem Davi:
“Davi, porém, disse ao filisteu: “Você vem contra mim com espada,
com lança e com dardos, mas eu vou contra você em nome do Senhor
dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel, a quem você desafiou.
Hoje mesmo o Senhor o entregará nas minhas mãos. ... e toda a terra
saberá que há Deus em Israel. ... Tirando [Davi] uma pedra de seu
alforje, arremessou-a com a atiradeira e atingiu o filisteu na testa, de tal
modo que ela ficou encravada, e ele [Golias] caiu, dando com o rosto no
chão” (1Sm 17:45–49, NVI, citado em parte).
Davi não se esqueceu de atribuir toda a glória a Deus … mas
tampouco se esqueceu de atirar a pedra! O contrário, aqui em Rm
16:17–20, Paulo exorta a quem se dirige a fazer o seguinte: estar em
guarda … evitar … obedecer … ser sábios … e ser inocentes. Em outras
palavras: Assumam a sua responsabilidade! Mas ele imediatamente

436
_κεραίους, _ -negt. mais κεράννυμι, misturar; daí vem sem mescla, puro.
Romanos (William Hendriksen) 683
continua enfatizando que para que haja alguma vitória — e a haverá! —
é Deus, e somente Ele, quem a conseguirá:
20a. O Deus da paz logo esmagará Satanás debaixo dos pés de vocês!
Deus exercerá sua vontade soberana a favor do Seu povo! Quanto à
expressão “Deus de paz”, veja-se sobre Rm 15:33. O apóstolo esteve
falando dos que causam divisões, desacordos, lutas. Diante deles está o
Todo-poderoso, que é “o Deus da paz”. Com relação ao que este Deus da
paz fará, mencionam-se três coisas:
a. Esmagará Satanás. Em outras palavras, cumprirá a promessa de
Gn 3:15. Não Satanás, mas sim Deus é o vencedor.
b. Ele o esmagará debaixo dos pés de vocês. Os que são co-
herdeiros (Rm 8:17) são também conquistadores. Os santos participarão
da vitória de Deus sobre Satanás. Veja-se Ap 19:13, 14.
c. Ele o fará logo. Em certo sentido pode dizer que Deus está
continuamente esmagando Satanás. A vitória obtida no Calvário foi
muito decisiva. Não há dúvida, porém, de que a passagem que nos ocupa
faz referência à vitória final, escatológica, de Deus sobre Satanás, uma
vitória que terá lugar quando Cristo voltar em glória (2Ts 2:8). Que esta
grande bênção dos escolhidos certamente lhes será comunicada logo é
algo que já não apresenta nenhum problema verdadeiro. Veja-se sobre
Rm 13:11.
d. O triunfo de Deus sobre Satanás demonstra que Ele é, para Seu
povo, “o Deus da paz”, vale dizer, da salvação total.
20b. A graça de nosso Senhor Jesus (seja) convosco.
Note-se o seguinte:
a. A graça é o favor imerecido de Deus. Há um estudo sobre o
significado desta palavra no C.N.T. sobre Lucas 2:40.
b. Aqui diz “nosso”, e não só “o” como em 1Co 16:23. “Nosso” é
aqui a palavra de confiante autoapropriação.
c. “Senhor Jesus”. Jesus significa Salvador, mas para ser nosso
Salvador ele deve ser reconhecido como nosso Senhor. Aquele que,
Romanos (William Hendriksen) 684
tendo nos comprado com Seu sangue, é nosso Dono agora, e cuja
soberania sobre nós reconhecemos com alegria.
d. A palavra “seja” — em “(seja) convosco” — não está
explicitamente no texto, mas está subentendida. A bênção não é um mero
desejo. É uma promessa que se transforma na verdade na vida daqueles
que abraçaram a “nosso Senhor Jesus Cristo” com uma fé viva. Cf. a
bênção araônica, a qual se acrescenta: “E assim porão meu nome sobre
os filhos de Israel, e eu os abençoarei”. Há mais informação sobre isso
no C.N.T. sobre 1Ts 1:1. Podem encontrar-se outras bênçãos paulinas
em 1Co 16:23 (já mencionada); 2Co 13:14; Gl 6:18; Ef 6:23, 24; Fp
4:23; 1Ts 5:28; 2Ts 3:18; 1Tm. 6:21; 2Tm 4:22; Tt 3:15; e Fm 25.
e. Realmente é notável que na providência de Deus a epístola aos
Romanos tenha chegado a nós de tal maneira que enquanto em Rm 15:33
temos uma oração-desejo, e aqui em Rm 16:20 uma bênção final, a
gloriosa doxologia, indubitavelmente muito apropriada para uma epístola
tão básica e maravilhosa, fique reservada para os últimos versículos (25–
27). Há mais informação sobre o caráter genuíno e a localização destes
versículos no Apêndice.

P. Saudações de amigos. Rm 16:21–23

O envio de saudações pessoais é continuada aqui, porém com esta


diferença: que as saudações prévias eram as do próprio Paulo (vv. 1–
16a) e as de “todas as igrejas de Cristo” (v. 16b), enquanto, como
contraste, as presentes saudações (vv. 21–23) são os de pessoas que, de
uma maneira ou de outra, estavam associados com o apóstolo.
Certamente não há nenhuma razão de peso para criticar este modo
de organizar o material. A verdade é que se pode ainda chegar a
argumentar que agrupar todos as saudações, de maneira tal que o que
agora encontramos nos vv. 21–23 seguisse imediatamente os vv. 1–16,
com a dolorosa advertência dos vv. 17–20 servindo de introdução à
doxologia dos vv. 25–27, não teria sido de modo nenhum um
Romanos (William Hendriksen) 685
melhoramento. A ordem que agora temos é, sem dúvida alguma, a
melhor.
21. Timóteo, meu colaborador, vos saúda; (também o fazem) Lúcio,
Jasom e Sosípatro, meus compatriotas.
Entre aqueles que enviam suas saudações, Paulo menciona em
primeiro lugar a Timóteo. Timóteo era uma pessoa muito notável. Seu
caráter era uma combinação de amabilidade e fidelidade, apesar de um
acanhamento natural. Dele escreveria Paulo anos depois: “Não tenho a
ninguém como ele … Como um filho (serve) com (seu) pai, assim serviu
ele comigo no evangelho” (Fp 2:19–22). O apóstolo chegaria a chamar
Timóteo “meu amado filho” (2Tm 1:2). não admira que Paulo, ao
escrever de Corinto, mencione a Timóteo como um dos que estavam
com ele. O livro de Atos nos diz que na primeira etapa de sua segunda
viagem missionária, Paulo e Silas, ao chegar a Listra, levaram Timóteo
consigo. Nessa mesma viagem Timóteo, que se tinha separado de Paulo
durante um breve lapso, reuniu-se com ele em Corinto, a mesma cidade
da qual o apóstolo, em sua terceira viagem, compõe agora Romanos.
Não é estranho, então, que também nesta ocasião Timóteo esteja com
Paulo e envie suas saudações. Há mais informação sobre Timóteo no
C.N.T. 1 e 2 Timóteo e Tito, pp. 42–47. Ao chamar Timóteo
“colaborador”, Paulo dizia a verdade. Mas tratava-se, na verdade, de
uma verdade parcial. Timóteo era, sem dúvida, um companheiro de
tarefas, mas para Paulo ele significava muito mais que isso.
Outro pessoa que envia saudações é Lúcio. Não há nenhuma razão
válida para identificar esta pessoa com o Lúcio mencionado em conexão
com a igreja de Antioquia da Síria (At 13:1) nem com Lucas, embora
pareça que, com efeito, Lucas esteve com o apóstolo durante este
período. Veja-se At 20:5s. Mas Paulo nunca em seus escritos o chama
“Lúcio”. Veja-se Cl 4:14; 2Tm 4:11; Fm 24.
O Jasom mencionado aqui poderia ser o mesmo a quem se faz
referência em At 17:5–9, e o Sosípatro poderia ser o Sópatro de At 20:4.
O apóstolo chama Lúcio, Jasom e Sosípatro “meus compatriotas”. Em
Romanos (William Hendriksen) 686
outras palavras, descreve-os como judeus (uma razão adicional para não
identificar o Lúcio desta passagem com “o médico amado”). A
justificação de traduzir “compatriotas” em vez de “parentes” pode achar-
se no comentário sobre Rm 16:7.
22. Eu, Tércio, que escrevi esta carta, saúdo-vos no Senhor.
Que o autor de uma carta tivesse um secretário não era nada fora do
habitual. Que Paulo também tinha um secretário e que no fim do escrito
poria sua própria assinatura, acrescentando em algumas ocasiões
algumas palavras, é evidente em Gl 6:11; 2Ts 3:17. Veja-se também 1Co
16:21; Cl 4:18. 437
No presente caso, o secretário, Tércio, que era também cristão —
Paulo certamente não confiaria este tipo de tarefa a um incrédulo! —
sente também a necessidade de acrescentar sua própria saudação pessoal.
Esta saudação certamente é, como todas as outras, “no Senhor”, vale
dizer, expresso por alguém que está incluído nessa comunhão mística e
maravilhosa que une todos os crentes com Cristo.
Só o Senhor sabe quão grande é a dívida que têm os escritores de
cartas e/ou de livros para com suas fiéis e competentes secretárias ou
secretários cristãos!
23. Gaio, que é meu hospitaleiro e de toda a igreja, saúda-vos.
Erasto, o tesoureiro da cidade, e nosso irmão Quarto vos saúdam.438
Este Gaio bem pode ser a mesma pessoa que se menciona em 1Co
1:14. Porém não deve ser identificado com o “Gaio de Derbe” de At
20:4. Quando Paulo chama Gaio seu hospitaleiro, provavelmente quer
dizer que pelo fato de que Prisca e Áquila já não estavam em Corinto,
era este homem, Gaio, quem lhe abria seu lar. A expressão que se
acrescenta: “que é … hospitaleiro … de toda a igreja” provavelmente
não signifique que de cada bairro de Corinto se apinhavam na casa de
Gaio para participar dos cultos. A expressão pode simplesmente indicar

437
Também A. Deissmann, op. cit., pp. 171, 172.
438
O v. 24, “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja com todos vós. Amém”, não encontra apoio
adequado na evidência textual.
Romanos (William Hendriksen) 687
que Gaio sempre estava preparado a oferecer hospitalidade a qualquer
crente que precisasse dela. Pensamos em especial nos viajantes. Isto,
porém, não exclui a possibilidade de que o lar de Gaio tenha servido
como igreja do lar para parte da congregação.
“Erasto, o tesoureiro da cidade”. Muito se tem escrito sobre ele.
Alguns autores, e até alguns tradutores, identificam-no com o homem do
mesmo nome que é chamado aedile numa inscrição de Corinto; quer
dizer, comissionado de obras públicas. Esta classe de oficial estava a
cargo de edifícios, rotas, jogos públicos, etc. Mas um aedile não é o
mesmo que um oikonomos, que é o termo que se usa aqui em Rm 16:23.
Cf. a palavra economista em nosso idioma, que faz com que se pense
num tesoureiro. Os que se apegam à tradução “comissionado de obras
públicas” às vezes respondem que Erasto poderia ter executado ambas as
funções, a de comissionado de obras públicas e a de tesoureiro da cidade.
Mas mesmo se aceitarmos isso, acaso justifica alguma outra tradução
que a de “tesoureiro da cidade” aqui em Rm 16:23?
Identificar este Erasto com aquele que se menciona em At 19:22,
vinculado com Éfeso, também é difícil. Podemos fazê-lo, talvez, com o
Erasto mencionado em 2Tm 4:20? Quanto a isso, veja-se o C.N.T. sobre
2Tm 4:20, pp. 374, 375, nota 184.
Nada sabemos sobre Quarto à parte do que se diz aqui. É chamado
“nosso irmão”, o que certamente é um termo de carinho, que no presente
contexto significa “nosso irmão em Cristo”. O mais provável é que
Quarto tenha tido conhecidos em Roma, razão pela qual manda
saudações.

Q. Doxologia. Rm 16:25–27

Esta é uma extensa doxologia. No entanto, o Novo Testamento


contém outras doxologias de igual extensão (Rm 11:33–36; Hb 13:20,
21). Mesmo as que encontramos em Ef 3:20, 21 e em Jd 24, 25 não são
precisamente breves.
Romanos (William Hendriksen) 688
Para fins exegéticos, este parágrafo pode dividir-se em duas partes:
vv. 25, 26; e v. 27.
25, 26. Ora, àquele que é poderoso para vos confirmar segundo o
meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do
mistério guardado em silêncio nos tempos eternos, e que, agora, se tornou
manifesto e foi dado a conhecer por meio das Escrituras proféticas,
segundo o mandamento do Deus eterno, para a obediência por fé, entre
todas as nações [RA].
Vários dos conceitos que foram introduzidos no começo de
Romanos (veja-se Rm 1:1–11; e especialmente Rm 1:1–5) voltam a
aparecer aqui em Rm 16:25, 26; tais como:
a. afirmar ou fortalecer (Rm 16:25), cf. Rm 1:11;
b. meu evangelho (Rm 16:25), cf. o evangelho de Deus (1:1);
c. o mistério oculto durante longas idades passadas (Rm 16:25, 26),
cf. o evangelho que tinha prometido de antemão (Rm 1:1, 2);
d. por meio das Escrituras proféticas (Rm 16:26); cf. por meio de
seus profetas nas Escrituras Sagradas (Rm 1:2);
e. a fim de que haja obediência por fé entre todas as nações ou
gentios (Rm 16:26 e 1:5).
Mas embora o vínculo entre a passagem presente (Rm 16:25–27) e
o começo da epístola é estreita, a que há entre a passagem presente e os
vv. 17–20 também é estreita. Note-se especialmente no v. 19 a expressão
“o relatório de vossa obediência”, e aqui em Rm 16:26 a que diz “a fim
de que haja obediência de fé”.
Com relação aos vv. 25, 26 note-se o seguinte:
a. “Ora, àquele que é poderoso para vos confirmar”.
Como em Rm 1:11, também aqui Paulo se refere a um
fortalecimento espiritual, e não à comunicação de algum dom
carismático específico, tal como o de falar em línguas.
b. “segundo o meu evangelho”
Tal como o fez já em Rm 2:16 e em 2Tm 2:8, também aqui Paulo
tem direito a descrever as boas novas como “meu evangelho”, visto que
Romanos (William Hendriksen) 689
havia sido revelado a ele pelo Senhor; e porque ele, Paulo, o amava (cf.
1Co 9:16), proclamava-o, e procurava, pela graça de Deus, demonstrar
seus efeitos em sua própria vida. Vejam-se também 1Co 15:1; Gl 1:11;
2:2, 7; Ef 3:6, 7. Quanto a “nosso evangelho”, vejam-se 2Co 4:3; 1Ts
1:5; 2 Ts. 2:14.
c. “e a pregação de Jesus Cristo”
O que Paulo queria dizer era: “meu evangelho, quer dizer, a
proclamação de Jesus Cristo”. 439 Era por meio das boas novas, tal como
Paulo as amava e proclamava, que Deus podia confirmar os receptores.
d. “a pregação”
A verdadeira pregação é o vigoroso e entusiasta grito do arauto ao
anunciar a vinda e chegada do Rei, e ao chamar o povo a lhe dar as boas-
vindas com alegria e a submeter-se a ele. Veja-se o que se disse sobre
este tema com relação a Rm 10:14, 15. Segundo o apóstolo, é com
relação a uma proclamação tal do evangelho e por meio dela que Deus
pode firmar os que recebem a mensagem. É essa classe de boas novas a
que Paulo dá o nome de meu evangelho.
e. “conforme a revelação do mistério guardado em silêncio nos
tempos eternos, e que, agora, se tornou manifesto”.
Um mistério, segundo o uso que o apóstolo dá ao termo, é algo que
— em alguns casos até alguém que — teria permanecido ignoto se Deus
não o tivesse revelado; ou, em caso de ser o mistério uma pessoa, se
Deus não a tivesse revelado.
O apóstolo vai dizer três coisas sobre este mistério; primeiro, que
esteve oculto durante longas eras passadas (v. 25b); em segundo lugar,
que agora foi revelado (v. 26a); e em terceiro lugar que, segundo o
mandato do eterno Deus, estava sendo esclarecido por meio das
Escrituras proféticas, a fim de que haja obediência de fé entre todas as
nações ou gentios (v. 26b).

439
“de Jesus Cristo” = “com relação a Jesus Cristo” (gen. objet).
Romanos (William Hendriksen) 690
f. A essência do mistério era esta: que algum dia os gentios não só
entrariam no reino de Deus em grandes números, mas também o fariam
como co-participantes nos mesmos termos que os escolhidos dentre os
judeus. “Cristo em vós, esperança de glória” (Cl 1:27) seria a base sólida
para a salvação presente e para a glória escatológica futura para todo
aquele que, sem consideração de raça, pusesse, pela graça soberana de
Deus, sua confiança no Salvador. Sobre este tema veja-se também Ef
2:11–22.
Este era o mistério que tinha permanecido oculto durante longas
eras passadas, porque embora a decisão tinha sido já feita no plano
eterno de Deus, e embora já na antiga dispensação tinha havido
prefigurações do cumprimento da promessa de salvação para ambos,
gentios e judeus, o período de cumprimento em grande escala não tinha
sido alcançado até agora. Mas agora, com a chegada da nova
dispensação, e com a proclamação do evangelho feita por toda a
extensão do mundo, este mistério estava sendo manifestado, ia sendo
evidente. Manifestava-se no cumprimento da profecia. É preciso pensar
em Gn 12:3 e 22:18. Há mais sobre este tema no C.N.T. sobre Ef 3:5, 6.
Por acaso não ia esta epístola dirigida a uma igreja constituída por
judeus e gentios que de forma unida serviam a Deus? É preciso pensar
no Pentecostes e em seu significado (At 1:4–8; cap. 2).
Porém não só lançavam luz os fatos de salvação sobre as antigas
profecias, mas estas, por sua vez, esclareciam verdades e eventos
salvíficos. Um crente que agora fosse a Is 53 e lesse sobre o sacrifício
substitutivo do Messias e seu significado para sua vida (a do crente)
certamente exclamaria: “Agora, à luz de Isaías 53, vejo muito mais
claramente que antes o que a morte do Messias significa para mim!”
Veja-se também Ef 1:9–14; 3:1–13.
g. “para a obediência por fé, entre todas as nações [ou gentios]”
Esse era o propósito ou meta do esclarecimento indicado. Deus Se
deleita ao ver em qualquer pessoa esse tipo de obediência que se baseia
numa fé «como a de uma criança» posta nEle. Quanto ao conceito
Romanos (William Hendriksen) 691
“obediência por fé” veja-se sobre Rm 1:5. Note-se também a menção
“entre todas as nações”, que se torna compreensível à luz de Rm 10:12 e
de Mt 28:19; Jo 3:16, e At 2:21.
Paulo conclui este parágrafo, este capítulo, e na verdade toda a
epístola, com as palavras do versículo 27:
27. Ao único Deus sábio, por meio de Jesus Cristo, (seja) a glória
para sempre! Amém. 440
Aqui se retoma o pensamento do v. 25, com o que chegamos a: “E
agora, ao que pode … ao único Deus sábio”, etc.
Quando Paulo reflete sobre o que tem composto com base na
inspiração, enche-se de assombro. É por isso que se vê constrangido a
acrescentar esta linha final à sua doxologia.
Ele esteve falando do amor dAquele que é Santo por aqueles que
são em si mesmos completamente indignos; do amor dAquele que é
autossuficiente e que se estende para os que são totalmente incapazes de
dar nada que, por sua, vez pudesse enriquecer o Doador; o amor dAquele
que não esperou para brindar Sua ajuda até que aqueles que
necessitavam desesperadamente tal amor estivessem favoravelmente

440
Literalmente, o que Paulo escreve é: “ao único sábio Deus, por meio de Jesus Cristo, a quem (seja)
glória para sempre”. Isto é o que ele escreve se _ é autêntico. Se for interpretado desta maneira, a
glória se atribui não a Deus mas a Cristo, e a primeira frase da oração, que se refere a Deus, ficaria
“pendurando no vazio”. Agora, é verdade que Paulo às vezes começa uma oração sem completá-la
imediatamente; por ex., em Rm 5:12 e em Ef 2:1. Mas em tais ocasiões ele retoma o pensamento um
pouco mais adiante, de modo que não fica incompleto. No caso de Rm 5:12 ele o faz no v. 18 de tal
capítulo; e quanto a Ef 2:1, veja-se Ef 2:5. No caso que nos ocupa, no entanto, ele teria esquecido
completamente o pensamento com que teria começado. Dificilmente isto seja certo. Por conseguinte, é
muito mais razoável pensar que o pronome relativo, se for autêntico, refere-se a Deus. Não obstante,
devido à posição do pronome na oração, na qual segue imediatamente à designação “Jesus Cristo”,
uma tradução que retivesse a ordem de palavras do original faria com que o apóstolo estivesse
atribuindo a glória não a Deus mas a Jesus Cristo, e deixaria a oração incompleta.
Portanto, o tradutor poderia bem omitir completamente o pronome relativo, tal como sucede em
várias traduções publicadas.
A 26ª. edição do Novum Testamentus Graece de Nestle-Aland, Struttgart, 1979, coloca colchetes
ao redor da totalidade dos vv. 25–27, com explicação destas sinalizações no p. 44* da Introdução. O
argumento a favor de pensar que foi o próprio Paulo quem foi responsável pela doxologia final, veja-
se o Apêndice do presente livro.
Romanos (William Hendriksen) 692
dispostos, mas antecipou o amor deles; um amor que é totalmente
soberano e sem par: “Mas Deus demonstrou seu próprio amor por nós
nisso, que quando ainda éramos pecadores, Cristo morreu por nós” (Rm
5:8). Cf. 2Co 5:19–21; 1Jo 4:10.
O que enche a alma do apóstolo de assombro, ao concluir sua
epístola, é o fato de que Deus é capaz de resgatar pecadores de tal
índole; mais ainda, não só de resgatá-los, mas também de abrir-lhes a
entrada à glória eterna e de fazê-los entrar nela … e a que custo! (Rm
8:32).
É com todas estas coisas em mente que Paulo finaliza sua epístola
tão notavelmente bela e imponente, exclamando; “ao único Deus sábio,
por meio de Jesus Cristo, (seja) a glória para sempre!” O fato de Deus ter
sido fora capaz de resgatar tais pecadores e que estivesse disposto a isso
faz com que Paulo fixe sua atenção na sabedoria divina; quer dizer, na
habilidade que Deus tem para empregar os melhores meios para a
realização da mais alta meta, ou seja, a glória que a Deus atribuem os
corações, vidas e lábios dos redimidos. Há mais sobre este conceito de
sabedoria em Rm 11:33. Veja-se também 1Co 2:6–13.
Note-se a formulação exata: “Ao único Deus sábio, por meio de
Jesus Cristo, (seja) a glória para sempre!” Por certo que foi por meio de
Jesus Cristo (sua saída do âmbito da alegria e honra eternas; seu
autossacrifício até a morte, morte na cruz; Sua vitória sobre a morte e o
inferno, etc.) que os pecadores foram, são e serão salvos. E é também
“por meio de Jesus Cristo” que os redimidos tributam um louvor sem fim
a seu Benfeitor, o Deus triúno. A Ele, portanto, seja a glória para sempre.
Podem encontrar-se outras adjudicações de glória a Deus em Rm 11:33–
36; Gl 1:4, 5; Ef 3:20, 21; Fp 4:20; 1Tm. 1:17; 1Pe 5:11; e Jd 24, 25.
Tal como o fez anteriormente, ou seja, ao concluir a primeira parte
desta carta (Rm 11:36), também agora, no fim de toda a carta, Paulo
acrescenta sua palavra de solene e entusiasta afirmação e aprovação:
AMÉM.
Romanos (William Hendriksen) 693
APÊNDICE
A propósito de Rm 16:25–27
Escreveu Paulo Rm 16:25–27? Que não o fez é a opinião de muitos
eruditos neotestamentários. Que, sim, ele o fez é algo defendido
vigorosamente por outros.
Devido ao seu preconceito contra Roma e contra o Antigo
Testamento, Marcião e seus seguidores não reagiram favoravelmente às
referências a Roma em Rm 1:7, 15, e ao Antigo Testamento em Rm
15:4, 8, 9s. Há quem pensa que foi o próprio Marcião quem mutilou o
texto de Romanos. Foi Orígenes quem disse: “Marcião, por quem foram
falsificados os escritos evangélicos e apostólicos, tirou esta seção [Rm
16:25–27] completamente da epístola, e não só isso, mas também
suprimiu tudo o que vai do lugar onde está escrito: ‘tudo aquilo que não
brota da fé é pecado’ [Rm 14:23] até o próprio fim”. 441
Mas quer seja que a remoção dos dois capítulos finais fora obra do
próprio herege, como cria Orígenes, ou de outros, é algo que faz pouca
diferença.
Em parte como resultado da manipulação, alguns manuscritos
evidenciam a existência, numa ou outra época, de uma epístola aos
romanos de 16 capítulos, outros de uma de 15 capítulos, e até outros, de
uma que tem só 14 capítulos.
Para a maioria das edições considerava-se necessário que houvesse
uma conclusão adequada. Há muitos que consideram que uma conclusão
tal foi composta por um editor ou comissão editorial. A mesma foi logo
acrescentada a várias edições. Não obstante, ainda ficam algumas
testemunhas bastante anteriores que testemunham a omissão total da
doxologia (nossa seção Rm 16:25–27); e também alguns nos quais esta

441
Commentaria in epistolam ad Romanos (cf. Rom. 16:25–27), em Migne, Patrologia Graeca XIV,
1290 AB.
Romanos (William Hendriksen) 694
passagem aparece duas vezes, ou seja, primeiro depois de Rm 14:23,
logo após Rm 16:23 (24).
O resultado de tudo isto foi a aparição, em um ou outro momento,
dos seguintes cinco grupos de testemunhos textuais:
a. doxologia depois de 16:23 (24) ‫ אּ‬B C D E 81 436 630 1739 1962
2127 syrp cop vg, etc.
b. doxologia depois de Rm 14:23: L Ψ 181 326 330 451 460 614
1241 1877 1881 1984 1985 2492 2495 et plur.40 syrh goth41, etc.
c. doxologia depois de ambos, Rm 16:23 (24) e Rm 14:23: A P 5 17
33 104 109.
d. doxologia depois de Rm 15:33: p46. 442
e. sem doxologia: G F 629 g E 26 Marcião, etc.
Houve eruditos que, embora atribuíssem a Paulo a composição da
totalidade dos 16 capítulos, defendiam a tese de que ele mesmo era
responsável pela aparição desta epístola de uma forma mais extensa e em
outra mais abreviada. Segundo esta opinião o apóstolo percebeu que a
maior parte do que tinha escrito nesta carta — vale dizer, tudo menos os
capítulos 15 e 16 — era de importância para toda igreja e poderia servir,
por conseguinte, como uma espécie de circular. Por isso, ele mesmo fez
com que Romanos estivesse disponível em duas edições, uma das quais
continha 14 capítulos, e a outra 16.
A objeção insuperável contra este ponto de vista é, naturalmente,
que ao fazer isso o apóstolo teria cortado pela metade o argumento de
Rm 14:1–15:13 (que se ocupa dos fortes e os fracos). Por conseguinte,
esta teoria deve ser rejeitada.
Houve muitas outras teorias igualmente discutíveis, com relação às
quais se deve consultar comentários mais antigos.
Todos estes estudos, no entanto, ficaram relegados à obsolescência
pela aparição de uma dissertação doutoral (revisão) de Harry Gamble,
Jr., a saber, The Textual History of the Letter to the Romans (História

442
Este é o famoso Papiro Chester Beatty que data do período próximo no começo do século três.
Romanos (William Hendriksen) 695
textual da Carta aos Romanos), Grand Rapids, 1977. Centralizaremos
agora nossa atenção em tal obra.
A dissertação está escrita com excelente estilo. O autor, embora
trate um tema difícil, dominou completamente a arte de captar e reter a
atenção do leitor do começo da obra até o fim. Além disso, a distribuição
do material é lógica. Gamble apresenta uma boa quantidade de
informação de valor; como exemplo citamos a que tem que ver com o
padrão helenístico de redação de cartas, e sua influência sobre os
escritores (Paulo inclusive) dos livros do Novo Testamento.
Na p. 92 e em outros lugares ele demonstra que somente se o que
agora reconhecemos como a Epístola aos Romanos foi realmente
dirigida aos romanos — e não, por exemplo, aos efésios — tem sentido o
caráter peculiar dos saudações de Rm 16. Na verdade, como o leitor
pode estabelecer por si mesmo fazendo uma comparação, alguns dos
argumentos de Gamble a favor de um destino romano (não efésio) para
esta carta são em substância os mesmos que se podem encontrar na
introdução do comentário que ele (o leitor) está agora estudando.
Nas pp. 15–55 Gamble examina a evidência textual das três formas
principais em que Romanos apareceu: as de 14, 15, e 16 capítulos. Chega
à conclusão de que a forma de 16 capítulos é a autêntica.
Outro característico excelente da dissertação é que defende a
posição que afirma que Romanos não é uma carta geral, quer dizer, uma
carta que bem poderia ter sido dirigida a qualquer outra igreja, mas seu
escritor manifesta um conhecimento específico da situação prevalecente
em Roma, p. 136.
Além disso, o autor apresenta na p. 53 uma avaliação muito
imparcial do Papiro Chester Beatty, e sustenta que não pode ser
considerado como prova de que o livro de Romanos de 15 capítulos
fosse o texto original.
Há um ponto importante com relação ao qual a dissertação do
Gamble não me convenceu. Gostaria que o leitor avaliasse este ponto por
si mesmo e que não dependa só da minha crítica.
Romanos (William Hendriksen) 696
A posição do Gamble é que a passagem de Rm 16:25–27 não é
autêntica. As razões que aduz são as seguintes:
a. O testemunho dos manuscritos favorecem a localização da
doxologia depois do capítulo 14, e não depois do 16. A conclusão de
uma carta com uma doxologia está em claro contraste com o costume de
Paulo de concluir com uma bênção de graça (pp. 67, 123).
b. Em concordância com Harnack, Gamble crê que a doxologia está
redigida com certa estupidez e com um estilo pleonástico (p. 108).

A resposta ao expresso pode formular-se como segue:


Como sabemos que o original não continha a doxologia no fim da
carta? A verdade é que as testemunhas alexandrinas vigorosamente
favorecem esta posição. E quanto ao hábito de Paulo de concluir a
epístola com uma bênção de graça, podemos dizer que em 1Co 16:23 a
bênção de graça não ocupa a posição final, coisa que o próprio Gamble
admite. Além disso, alguns dos outros livros do Novo Testamento não
terminam com uma bênção. 2 Pedro termina com uma doxologia, e
também o faz Judas.
É bem evidente que a epístola de Paulo aos Romanos está dividida
em duas grandes seções: os capítulos 1 a 11 constituem a seção
doutrinal, e os capítulos 12 a 16 a seção prática. A primeira grande
seção culmina definidamente com uma doxologia (Rm 11:33–36) de
uma extensão (aproximada) de 52 palavras. Por que não pode então a
segunda grande seção terminar igualmente com uma doxologia (Rm
16:25–27) de aproximadamente o mesmo número de palavras? Devemos
na verdade dar por sentado que Paulo terminaria sua epístola — na qual
expõe a imerecida graça de Cristo em termos tão maravilhosos — com
as palavras “Erasto, o tesoureiro da cidade, e nosso irmão Quarto, vos
saúdam”? Não seria esta terminação algo torpe?
Quanto ao resto, à parte de um par de passagens nos quais Gamble
lança dúvida sobre a autenticidade de Colossenses e 2 Tessalonicenses
Romanos (William Hendriksen) 697
sem contribuir com provas que legitimem estas dúvidas (p. 80),
recomendo a leitura desta dissertação tão informativa e interessante.

Lições práticas derivadas de Romanos 15:14–16:27


Rm 15:14. “Meus irmãos, eu mesmo estou convencido de que
vocês estão cheios de bondade e plenamente instruídos, sendo capazes de
aconselhar-se uns aos outros”. O apóstolo indicou certas fraquezas que
caracterizavam os membros da igreja de Roma. Por conseguinte, ele se
mostra também pressuroso a mencionar também suas virtudes. Se este
método fosse adotado em cada igreja hoje, não se mostraria em bênçãos
para muitos e em melhores relações em geral?
Ro. 15:15. “A respeito de alguns assuntos, eu lhes escrevi com toda
a franqueza, principalmente para fazê-los lembrar-se novamente deles.
(Eu o fiz) por causa da graça que Deus me deu …”. Em nossa sociedade
democrática tendemos a menosprezar ideias tais como a de “ofício”,
“autoridade”, etc. Esta atitude está claramente em conflito com a
Escritura. A pessoa que foi investida de um cargo deve cumprir
fielmente os deveres que lhe correspondem e deveria, com a graça de
Deus, honrar tal acusação com uma vida piedosa. Por outro lado, os
membros da igreja que se beneficiam da instituição de tal cargo
deveriam honrar a quem o ocupa, lembrá-lo em suas orações, e em toda
ocasião possível cooperar com ele.
Rm 15:24. “Espero … dar-lhes a oportunidade de me ajudarem
…”. Paulo tinha a noção correta, ou seja, a de obter que os membros da
igreja de Roma contribuam. As pessoas mostrarão entusiasmo por uma
causa a que eles mesmos contribuíram.
Ro. 15:27. “…se os gentios participaram das bênçãos espirituais
dos judeus, devem também servir os judeus com seus bens materiais”.
Para receber uma bênção a pessoa deveria esforçar-se para ser uma
bênção!
Romanos (William Hendriksen) 698
Rm 15:31 (e Rm 16:19). “Orem (a Deus por mim) para que eu
esteja livre dos desobedientes da Judeia ... Porque o relatório de vossa
obediência chegou a todos ...”.
Nesta época em que se põe tanta ênfase na liberdade de
pensamento, palavra e ação, não se deve esquecer que Deus requer
obediência aos seus mandatos. É nosso dever amar e adorar a Deus.
Naturalmente, é nosso privilégio fazer isso, mas também é nossa
obrigação. Às vezes ouvimos dizer: “Não procuramos influir sobre
nossos filhos no que concerne à sua religião. Deixamos isso totalmente à
sua escolha”. É correto esse curso de ação? A Palavra de Deus ensina
algo diferente. Veja-se Gn 18:19; Dt 6:4–9; Ef 6:1–4. Uma obediência
tal deveria brotar do amor e da gratidão.
Rm 15:30. “… pelo amor do Espírito …”.
Para que o Espírito Santo queira habitar em nosso coração
pecaminoso, não há dúvida que deve ser muito amoroso! Note-se
também o seguinte:
a. O Pai nos ama (1Jo 3:1)
b. O Filho nos ama (Rm 8:35)
c. O Espírito Santo nos ama (Rm 15:30)
E os três são UM. Que bênção! E que motivação para que nós, da
nossa parte, amemos ao Deus triúno!
Rm 16:12. “Saúdem Trifena e Trifosa, que trabalham no Senhor”.
Com relação a estas pessoas, note-se o seguinte:
a. Trata-se de mulheres, talvez de irmãs. Até pode ser que tenham
sido gêmeas. A obra do reino necessita tanto de mulheres como de
homens.
b. Não só oravam, mas também trabalhavam duro, esforçavam-se.
c. A semelhança no nome é interessante. A semelhança no zelo
religioso e na devoção é o melhor.
Ro. 16:19b, 20a. “… quero que sejais sábios com relação ao que é
bom e inocentes quanto ao que é mau ... O Deus da paz logo esmagará
Satanás debaixo dos pés de vocês!”
Romanos (William Hendriksen) 699
A lição prática é: dai tanto à responsabilidade humana como à
soberania divina o que lhes corresponde; veja-se a ilustração sobre Rm
16:19.

Resumo de Romanos 15:14–16:27


Em estreita relação com a oração-desejo que precede de forma
imediata esta seção, Paulo assegura aos romanos que reconhece suas
excelentes qualidades espirituais. Não obstante, às vezes ele sentiu que
era necessário expressar-se com certo atrevimento para benefício deles,
exercendo seu dever como ministro de Cristo Jesus aos gentios, que tem
como meta levar os gentios a Deus (Rm 15:14–16).
Com agradável humildade, atribuindo toda a glória só a Deus, o
apóstolo descreve não o que ele tem feito, mas o que Cristo conseguiu
por meio dele ao levar muitos gentios a Deus. Ele desfrutou do privilégio
de proclamar o evangelho de Cristo desde Jerusalém e arredores até
chegar ao Ilírico (Iugoslávia-Albânia). Por meio de sinais e milagres,
afeitos por meio do poder do Espírito Santo, tal obra recebeu assinaladas
bênçãos. Paulo tinha sido um pioneiro do evangelho. Desde o princípio
seu propósito tinha sido proclamar o evangelho em lugares e regiões
onde Cristo não era conhecido (cf. Is 52:15). Isto explica por que ele não
tinha podido fazer uma visita a Roma antes (vv. 17–22).
Paulo informa aos romanos que uma vez que sua obra de
estabelecer igrejas na parte oriental do império romano tinha finalizado,
e visto que fazia já vários anos que tinha desejado visitar seus irmãos
crentes de Roma, pensava fazê-lo quando viajasse a Espanha. No
entanto, não poderá fazê-lo imediatamente, visto que deveria acima de
tudo fiscalizar a entrega de uma generosa doação que os crentes gentios
da Macedônia e Acaia tinham reunido para os santos necessitados de
Jerusalém. E acrescenta: “Tiveram prazer nisso, e de fato são devedores
aos santos de Jerusalém. Pois, se os gentios participaram das bênçãos
espirituais dos judeus, devem também servir aos judeus com seus bens
Romanos (William Hendriksen) 700
materiais. Quando tiver cumprido esta tarefa … irei a vós em meu
caminho para a Espanha. Eu sei que quando for a vós, irei na plenitude
da bênção de Cristo” (vv. 23–29).
Necessitado da intercessão da igreja, Paulo pede aos romanos que
se lembrem dele em suas orações:
a. para que ele possa ser libertado dos complôs dos judeus
incrédulos;
b. para que seu ministério para com Jerusalém — um ministério de
benevolência — possa ser aceitável aos judeus, para que
c. sua chegada onde estão os romanos possa ser causa de alegria, e
para que, junto com eles, ele possa refrescar-se.
Esta oração certamente foi respondida, embora não se cumprisse em
todos os seus aspectos do modo como Paulo poderia ter antecipado.
Com relação a a., realmente houve um complô contra sua vida da
parte dos judeus, mas foi descoberto a tempo, de modo que os planos de
viagem foram alterados (At 20:3);
Quanto a b., Atos 21:17 nos informa que os irmãos em Jerusalém
realmente deram as cálidas boas-vindas a Paulo e a seus companheiros, e
glorificaram a Deus quando ouviram o relatório de Paulo com relação
aos resultados de sua obra de missão entre os gentios. Não consta,
porém, informação alguma com relação a se os santos de Jerusalém
receberam também a generosa oferta com agradecido entusiasmo.
Quanto a c. também esta petição foi concedida, embora não no
tempo e na maneira como Paulo imaginava. Mas vejam-se At 28:11–15;
Fp 1:12.
Este parágrafo conclui com a oração-desejo de v. 33 (vv. 30–33).
O apóstolo afetuosamente encomenda à igreja a Febe, uma
servidora da igreja de Cencreia, um dos portos de Corinto. Tudo aponta a
que ela foi quem entregou a carta à igreja de Roma.
A seguir ele faz chegar suas próprias saudações a muitas pessoas —
homens e mulheres, crentes gentios e judeus — que eram membros da
igreja de Roma e conhecidos por Paulo. A lista de pessoas a quem envia
Romanos (William Hendriksen) 701
saudações começa com Prisca e Áquila com quem Paulo fixou sua
morada quando este casal ainda vivia em Corinto. Eles eram fabricantes
de tendas, como o era Paulo. Mas de maior importância era o fato de que
eles eram “colaboradores em Cristo Jesus”. Tão leais tinham sido com
Paulo que uma vez até arriscaram sua vida por amor a ele. Isto pode ter
sucedido durante o tumulto em Éfeso que se relata em At 19:23–41,
porém não podemos estar seguros disso.
Paulo acrescenta: “Saúdem também a igreja que se reúne na casa
deles”. Pareceria que onde quer Prisca e Áquila vivessem — quer em
Corinto, Éfeso ou Roma — sempre convidavam os seus irmãos na fé
para reunir-se com eles para adorar a Deus.
Depois disso, Paulo envia suas saudações a Epêneto, “o primeiro
fruto da Ásia para Cristo”. Entre muitos outros a quem se mandam
saudações encontramos Rufo. Paulo acrescenta: “e a sua mãe e minha”,
indicando que a mãe do Rufo tinha sido também como uma mãe para
com Paulo; quer dizer, que lhe tinha prestado um serviço maternal. Este
Rufo nos faz lembrar do Rufo que se menciona em Mc 15:21, porém não
é possível estar seguro se é a mesma pessoa que se indica em ambos os
lugares. No fim da lista Paulo escreve: “Todas as igrejas de Cristo
enviam-lhes saudações” (Rm 16:1–16).
Paulo passa a dizer à igreja de Roma que deve estar alerta contra
falsos mestres. Que os membros estejam em guarda, e isso especialmente
por duas razões: (a) por meio de suaves palavras e lisonjas estes
alvoroçadores procuram enganar os corações dos ingênuos; e (b) os
crentes romanos não devem estragar a boa reputação que obtiveram em
outros lugares (por sua obediência à verdade). Fazendo uso de uma
expressão que nos lembra um dito de Jesus (Mt 10:16), o apóstolo
acrescenta: “Quero que sejais sábios com relação ao que é bom, e
inocentes quanto ao que é mau”. Além de pôr ênfase na
responsabilidade que os romanos devem assumir, ele os consola
lembrando-os que Deus, no exercício de Sua soberania, logo esmagará a
Romanos (William Hendriksen) 702
Satanás debaixo dos pés deles. E acrescenta: “A graça de nosso Senhor
Jesus Cristo (seja) convosco” (vv. 17–20).
A seguir vêm as saudações que os amigos enviam à igreja de Roma.
Quem o faz são Timóteo, um querido amigo e colaborador de Paulo;
Tércio, o secretário de Paulo, a quem o apóstolo ditou a carta; e Gaio, em
cuja casa Paulo estava, e que sempre estava disposto a demonstrar sua
hospitalidade no interesse de toda a igreja (vv. 21–23).
Por meio de uma doxologia impactante, que em muitas formas
reflete os versículos iniciais da epístola, Paulo leva esta maravilhosa
carta à uma terminação apropriada (vv. 25–27).
Romanos (William Hendriksen) 703
BIBLIOGRAFIA SELETA
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