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MARTA MIRAZÓN

LAHR: Departamento
de Biologia do Instituto
de Biociências da USP.
A origem
SURGIMENTO
DO HOMEM NA AMÉRICA
dos ameríndios
no contexto
da evolução dos
povos mongolóides

M A R T A M I R A Z Ó N L A H R
A
origem dos ameríndios, de sedimentação que criam padrões
isto é, os povos aborígi- estratigráficos são altamente variáveis re-
nes das Américas, é um gionalmente, e as dúvidas a respeito da
tema altamente contro- correlação de estratos entre as Américas e
verso. Bioantropólogos, a Europa, assim como da duração de cama-
arqueólogos, antropólo- das específicas, iam desde alguns milhares
gos sociais e lingüistas de anos até vários milhões. Com o advento
vêm, há mais de cem anos, investigando e de métodos de datação absoluta como o C14
discutindo o problema de quem foram as essa situação melhorou muito e se desen-
primeiras pessoas a ocupar as Américas, volveu um esquema temporal para a pré-
quando elas chegaram, de onde vieram e história mundial recente. Isso não significa
que rota usaram. As dúvidas são de uma que problemas a respeito de cronologia
magnitude importante. O debate questio- desapareceram. Ainda há aspectos metodo-
na, em termos de cronologia, se a entrada lógicos da aplicação do C14 que geram in-
do homem na América data de antes ou certezas na interpretação de resultados,
depois do pico máximo da última glaciação, assim como o problema da falta de fósseis
que ocorreu ao redor de 18.000 anos atrás, ou de material orgânico nos depósitos.
ou seja, questiona se a entrada se deu no O segundo problema no estudo da ori-
Pleistoceno entre 50.000 e 20.000 anos gem dos ameríndios se refere aos próprios
atrás, ou se ela ocorreu no fim do período, restos biológicos – esqueletos fossilizados.
há 11.000 anos. Em termos de biologia, Apesar do número relativamente grande de
questiona-se se todas as populações que sítios arqueológicos na América do Norte,
existem e existiram nas Américas (com ex- o número de esqueletos humanos de gran-
ceção das populações peri-glaciais e afins) de antigüidade é relativamente pequeno.
descendem de um ou vários grupos étni- Na América do Sul, o número de sítios
cos, levando a questionamentos sobre o antigos conhecidos e explorados arqueolo-
número e o caráter das migrações que ori- gicamente é menor, e em comparação, o
ginaram os ameríndios. número de esqueletos bem maior. No en-
Existem dois motivos principais para tanto, até os trabalhos recentes de Walter
tamanha controvérsia. O primeiro é de cu- Neves, esse material não fora estudado sis-
nho arqueológico. Estabelecer o início da tematicamente sob um ponto de vista evolu-
ocupação de uma área em tempo geológi- tivo e com métodos estatísticos modernos.
co, seja por grupos animais ou por pessoas, A estes problemas (o número pequeno
depende de provar a ausência de tal ocupa- de fósseis na América do Norte, e de pes-
ção no período precedente, e ausência de quisadores na América do Sul), soma-se a
evidência não é a mesma coisa que evidên- questão da interpretação da afinidade raci-
cia de ausência. Isso deixa sempre em aberto al no esqueleto humano. Na sua forma e
a possibilidade de restos mais antigos vi- tamanho, o esqueleto humano é um siste-
rem a ser achados, embora essa possibili- ma altamente complexo e plástico. A com-
dade diminua à medida que a evidência plexidade deve-se à sua determinação
negativa aumenta. Ao problema do estabe- poligênica e ao caráter epigenético da ex-
lecimento da primeira ocupação somam-se pressão de diversos caracteres. Isto é, ape-
problemas metodológicos. Os pesquisado- sar de existir uma base genética para várias
res na primeira metade deste século traba- características do esqueleto, a expressão ou
lhavam sem um parâmetro de cronologia o grau de expressão destas depende tam-
absoluta, e a única fonte de calibração das bém de fatores ambientais e ontogenéticos.
datas obtidas na América com aquelas da A plasticidade é igualmente resultado da
pré-história do Velho Mundo era através influência ativa de fatores ambientais (como
de comparações estratigráficas, isto é, a se- estresse, nutrição e histórico epidemioló-
qüência de camadas no solo depositadas gico) sobre a expressão fenotípica de cada
através do tempo. No entanto, os processos indivíduo. Estas características intrínsecas

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do sistema esqueletal o tornariam inútil para mostra que essas duas populações tiveram
estudos. Estudos de ecologia humana so- um ancestral comum que não possuía essas
bre crescimento, nutrição e adaptabilidade características, e as adquiriram depois de
estabeleceram os parâmetros de variação se separar de outros grupos humanos e se
etária, genérica, individual e populacional diferenciar em ameríndios e mongolóides.
de caracteres como estatura, peso e propor- A definição e caracterização das etnias
ções corporais, oferecendo assim um es- humanas continua, no entanto, sendo um
quema interpretativo para diferenciar he- problema complexo e com conotações
rança filogenética, adaptação e adaptabili- sociopolíticas. A interação entre a antropo-
dade em estudos de material esquelético logia biológica e a eugenia na primeira
recente e fóssil. metade deste século assim como o movi-
No entanto, o esqueleto humano apre- mento decorrente que levou a uma negação
senta características comuns a todos os do conceito de raça no mundo acadêmico
primatas, características comuns somente nos anos 50 e 60 tiveram um papel impor-
aos grandes primatas hominóides (gibão, tante tanto na trajetória da pesquisa
orangotango, gorila e chimpanzé), caracte- bioantropológica neste século, como no
rísticas comuns a todos os hominídeos estabelecimento dos debates discutidos
(australopitecíneos e todas as outras espé- hoje, gerando um descrédito da bioantro-
cies já extintas do gênero Homo), caracte- pologia entre arqueólogos e geneticistas
rísticas comuns a toda a humanidade, ca- observado, até certo ponto, ainda hoje,
racterísticas próprias a cada etnia, muitas enquanto o desinteresse subseqüente pelo
vezes características próprias de popula- assunto das afinidades raciais e popula-
ções específicas, e características indivi- cionais dos primeiros americanos levou à
duais. O bioantropólogo tem que reconhe- definição da controvérsia como um pro-
cer e identificar todos esses níveis de dife- blema centrado na questão de cronologia e
renciação biológica para poder interpretar número de migrações, abordado quase que
as afinidades do material fóssil analisado. exclusivamente por arqueólogos e, recen-
Para tal fim, a aplicação dos conceitos de temente, por geneticistas moleculares.
filogenia sistemática (ou cladística) nas Apesar de estes dois problemas básicos
últimas décadas tem sido fundamental para não terem desaparecido em suas diversas
se definirem padrões de afinidade coeren- facetas, vários aspectos metodológicos,
tes com o padrão evolutivo e dar uma dire- tecnológicos, de integração de disciplinas
ção ao processo de diferenciação de espé- e de recursos humanos melhoraram signi-
cies, etnias e populações. A cladística usa ficativamente na última década e nos apro-
como base analítica um método de valor ximaram de respostas a muitas de nossas
relativo dos caracteres estudados, de ma- questões, apesar de não se poder por en-
neira que caracteres primitivos (ou seja, que quanto resolver completamente a contro-
duas populações apresentam porque os vérsia a respeito da origem dos primeiros
herdaram de um ancestral comum não ex- americanos. Para que se possa direcionar
clusivo que já os possuía) não são utiliza- efetivamente a pesquisa futura, é necessá-
dos para mostrar afinidade entre elas. Em ria portanto a integração desse conhecimen-
outras palavras, o fato de que ameríndios e to adquirido, além de uma reformulação
mongolóides têm um cérebro grande e lin- das questões originais.
guagem articulada não os torna Os diversos trabalhos deste dossiê des-
filogeneticamente mais próximos, já que crevem vários destes desenvolvimentos,
tais características foram herdadas do an- cobrindo os temas da arqueologia, genéti-
cestral de todos os homens modernos. No ca, paleantropologia, paleepidemiologia e
entanto, o fato de que ameríndios e lingüística. Seu objetivo é considerar o
mongolóides têm uma face plana e uma caráter morfológico dos primeiros ameri-
dobra epicantelial na pálpebra superior do canos no contexto da evolução dos povos
olho, ausente em outros povos da Terra, na Ásia que poderiam ter lhe dado origem.

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O uso do condicional “poderiam” não se A postura tomada no presente trabalho acei-
deve à existência de dúvidas sobre a ori- ta que as populações da Eurásia, incluindo
gem asiática dos ameríndios, mas ao fato seus descendentes ameríndios, não repre-
de haver dentro do leste asiático vários sentam uma unidade genética. Postula-se
grupos humanos, com características e his- que pelo menos duas populações africanas
tórias diferentes, na condição de possíveis diferentes deixaram aquele continente em
ancestrais de todos ou alguns dos povos momentos diferentes e por rotas diferen-
americanos. tes, uma delas dando origem aos ancestrais
dos povos caucasóides da Europa e oeste e
sul da Ásia, enquanto a outra teria dado
A ORIGEM DOS MONGOLÓIDES origem aos ancestrais dos povos
NO CONTEXTO melanésicos e mongolóides. Dessa manei-
DA DIFERENCIAÇÃO DO ra, as populações da Terra mais próximas
HOMO SAPIENS aos mongolóides por ancestralidade comum
seriam os australo-melanésicos. A popula-
Hominídeos, hoje identificados como ção ancestral a esses dois grandes grupos
Homo erectus e formas afins do Homo humanos teria vindo da África e vivido no
heidelbergensis, habitaram partes da Ásia sudoeste asiático durante a primeira meta-
por um milhão e, possivelmente, dois mi- de do Pleistoceno Superior, entre 120.000
lhões de anos. No entanto, estudos recentes e 60.000 anos atrás, mas desse grupo ainda
sugerem que essas espécies de hominídeos não foram encontrados restos fósseis.
arcaicos não contribuíram geneticamente
para as populações asiáticas modernas, ten-
do desaparecido, como muitas outras espé- A EVOLUÇÃO DAS
cies de hominídeos durante a história POPULAÇÕES MONGOLÓIDES
evolutiva da família, sem deixar descen- NO SUDOESTE
dentes. O homem moderno, reconhecido E LESTE ASIÁTICO
cientificamente como a espécie Homo
sapiens, teve sua origem na África entre Os mongolóides formam um grupo de
200.000 e 100.000 anos atrás. Esses dados populações altamente variável e de difícil
provêm da paleantropologia, que mostra definição. Esse problema se deve não só à
não só que as formas arcaicas fora da Áfri- alta diversidade dentro do grupo, mas ao
ca parecem não ter deixado descendentes, uso, por vários pesquisadores, de suas ca-
mas que os fósseis mais antigos de Homo racterísticas mais especializadas no papel
sapiens se encontram na África, assim como de típicas do grupo, tornando a definição
os indícios mais antigos de mudanças morfológica exclusiva em vez de inclusi-
tecnológicas que posteriormente vieram a va. Sob um ponto de vista evolutivo, as
caracterizar a cultura e o comportamento populações mais especializadas, ou
do homem moderno. A origem recente e apomórficas na linguagem da cladística,
africana do Homo sapiens também é apoi- não permitem a reconstrução do processo
ada por dados genéticos, através de estu- de diferenciação, pois elas representam um
dos multivariados da freqüência de produ- extremo do próprio processo em vez da raiz.
tos gênicos em diferentes populações e Para se estabelecer a base morfológica co-
estudos de marcadores moleculares como mum ao grupo como um todo é necessário
o DNA mitocondrial, genes no cromossomo identificar a direção da evolução
Y ou microssatélites nucleares. morfológica e o caráter provável da popu-
A partir desse ancestral comum a toda a lação ancestral.
humanidade no fim do Pleistoceno Médio A direção do processo evolutivo de
se desenvolveram as etnias e populações qualquer grupo pode ser examinada tanto
humanas. Esse processo de diferenciação através de uma comparação com o grupo
também é um assunto altamente debatido. externo atual mais próximo filogene-

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ticamente, conhecido como o grupo irmão sição de algumas características que passa-
(que serve para estabelecer as característi- ram a ser típicas de todas as populações do
cas do ancestral comum, e portanto o “pon- grupo, como a ausência de prognatismo da
to de partida” no processo de diferencia- parte superior do rosto no sentido bilateral
ção), como através do material fóssil dis- (a face plana dos orientais). Infelizmente, a
ponível. No caso dos mongolóides, o gru- quantidade de fósseis do período em ques-
po mais próximo seria o dos australo- tão é muito pequena para poder se estabe-
melanésicos. Uma comparação da lecer as trajetórias adaptativas das diferen-
morfologia dessas populações com aquela tes populações mongolóides.
de mongolóides sugere que estes passaram No sudoeste asiático, o fóssil de Niah,
por um processo de gracilização, possivel- na ilha de Sarawak, que seria em princípio
mente redução do tamanho corpóreo e aqui- o mais antigo da região, com aproximada-

Inscrições
rupestres em
Várzea Grande
e São Raimundo
Nonato (PI).
Ilustrações do
livro Pré-História
do Nordeste do
Brasil, de
Gabriela Martin

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mente 40.000 anos, foi interpretado como anatomista alemão Franz Weidenreich (o
mostrando características que o aproximam pai do Modelo Multirregional para a ori-
filogeneticamente dos tasmanianos. Os gem do Homo sapiens) como mostrando
achados de Tabon nas Filipinas datam apro- afinidades respectivamente com australia-
ximadamente de 24.000 anos atrás e tam- nos, esquimós e mongolóides. Hoje em dia
bém foram interpretados como apresentan- se acredita que um deles fora deformado
do afinidades com os australo-melanésicos. artificialmente durante a vida (uma prática
Já os fósseis de Wajak em Java receberam estética muito comum na pré-história, es-
interpretações ambíguas, aproximando-os pecialmente nas Américas), o que portanto
tanto dos australianos como dos o inutiliza para estudos de morfometria. As
mongolóides recentes. No nordeste asiáti- interpretações mais recentes dos dois fós-
co, os fósseis da caverna superior de seis restantes indicam maior afinidade com
Zhoukoudian, perto de Pequim (o sítio fa- australianos. Outros restos fósseis do nor-
moso pelo achado de vários fósseis de Homo deste asiático, provavelmente com menos
erectus no começo do século), são os mais de 20.000 anos, são o crânio de Liujiang na
antigos da região, datando entre 24.000 e China e os de Minatogawa no Japão. Esses
29.000 anos atrás. O material é composto fósseis já apresentam características
por restos arqueológicos e três crânios, mongolóides, como a porção superior do
originalmente interpretados pelo famoso esqueleto facial plana. Portanto, o material

Representação
de pirogas com
figuras humanas
de Parelhas e
Carnaúba dos
Dantas (RN),
Buíque (PE) e
Queimadas (PB)

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fóssil de homem moderno na Ásia é insufi- algum ponto do norte da Ásia teria se di-
ciente para desvendar o processo de diferen- ferenciado morfologicamente e dado ori-
ciação, mas indica claramente que a dife- gem a uma população com o complexo
renciação morfológica que hoje separa niti- mais especializado sinodonte. Por sua
damente os australo-melanésicos dos povos vez, esta população sinodonte teria, possi-
mongolóides é relativamente recente. velmente entre 15.000 e 10.000 anos atrás,
Ao se examinar também a proximidade se expandido geograficamente, vindo a
relativa das populações mongolóides, tan- substituir aqueles grupos sundadontes que
to entre si como em relação aos fósseis se encontravam no nordeste da Ásia. Exis-
disponíveis na Ásia e aos australo- tem duas evidências desse processo de subs-
melanésicos recentes, fica claro que as tituição. Primeiro, os fósseis mais antigos
populações mais especializadas são aque- da região apresentam o complexo
las do nordeste asiático, onde as caracterís- sundadonte. A segunda evidência refere-
ticas tidas como “tipicamente mongo- se à história de ocupação do Japão. O Japão
lóides” (crânio curto e largo, face plana, esteve unido ao continente asiático por uma
cara grande, nariz relativamente pequeno, ponte de terra durante a última glaciação,
e certas características dentárias) se encon- vindo a se separar no começo do Holoceno,
tram mais pronunciadas. As populações do entre 12.000 e 10.000 anos atrás. Enquanto
sudoeste asiático, morfologicamente mais esteve unido à Ásia, o Japão foi ocupado
generalizadas, são mais próximas de um pela população de características generali-
protótipo de ancestralidade comum a todos zadas e complexo dentário sundadonte que
os mongolóides, aos fósseis modernos da ocupava o nordeste asiático no período.
Ásia e, em última instância, aos australo- Porém, quando se deu o processo de subs-
melanésicos. Essas observações da tituição dessa população por grupos
morfologia craniana são plenamente apoi- especializados com uma morfologia
adas pelos estudos de morfologia dentária “mongolóide típica” e complexo dentário
de Christy Turner, da Universidade do sinodonte, o Japão já havia se separado fi-
Arizona, e mais recentemente de Tsunehiko sicamente da Ásia. Como conseqüência, um
Hanihara, da Universidade Sapporo no Ja- grupo isolado de sundadontes teria sobre-
pão. Turner identificou dois complexos vivido no Japão (o povo de Jomon e seus
dentários (ou seja, a expressão correla- descendentes atuais, os ainus das ilhas de
cionada de uma série de características Hokaiddo ao norte do país) como prova
morfológicas da dentição) típicos nas po- viva da extensão pré-histórica dos
pulações mongolóides. Um deles ocorre mongolóides generalizados. Contudo, a
em grupos do sudoeste da Ásia e sul da maior parte da população atual japonesa
China, e foi denominado sundadonte, e o tem sua origem não nos jomoneses, mas a
outro ocorre tipicamente no nordeste da partir de dois grupos chineses-coreanos, os
Ásia, e foi batizado de sinodonte. Ele tam- yayois e kofuns, que invadiram as ilhas entre
bém estabeleceu que a morfologia 300 a.C. e 700 d.C.
sundadonte teria dado origem à sinodonte, Para a questão da origem dos ameríndios
estabelecendo portanto uma direção do as considerações acima são muito impor-
processo de diferenciação concordante com tantes, pois estabelecem três fatores funda-
a evidência esqueletal. mentais para a interpretação dos restos dos
Um dos aspectos interessantes da dis- fósseis americanos:
tribuição espaço-temporal desses dois 1) A morfologia típica mongolóide,
complexos dentários é que populações associada à sinodontia, representa uma es-
com o tipo generalizado sundadonte teri- pecialização relativamente recente. Portan-
am, no Pleistoceno, se estendido além do to, se a entrada na América tiver ocorrido
sudoeste asiático e ocupado o nordeste no Pleistoceno, as populações envolvidas
da região, incluindo o Japão. Um grupo não poderiam ter características de
dessa vasta população sundadonte em mongolóides típicos.

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2) A morfologia generalizada morfologia dentária realizados por Christy
mongolóide, associada à sundadontia, é Turner II, da Universidade do Arizona, que
ancestral à morfologia dos mongolóides com base numa amostra de milhares de
típicos. Entretanto, ela ainda é observada esqueletos de ameríndios recentes (mas
tanto no sudoeste asiático como em grupos dentre os quais somente duas séries peque-
isolados no nordeste da Ásia, sendo que a nas provinham da América do Sul) descre-
extensão da sua distribuição geográfica teria ve todos os ameríndios não-circumpolares
sido ainda maior no fim do Pleistoceno. como sinodontes, ou seja, não só como
Portanto, além dos mongolóides típicos, relativamente homogêneos, mas também
existiam nas imediações da Sibéria e es- como caracterizados pelo padrão
treito de Bering, entre 15.000 e 10.000 anos mongolóide típico. Esses achados levaram
atrás, grupos de “mongolóides generaliza- esses três pesquisadores a propor um mo-
dos” que poderiam ter migrado para as delo conjunto multidisciplinar em 1986.
Américas. Esse modelo propõe que a ocupação das
3) A proximidade morfológica das po- Américas ocorreu no fim do período
pulações asiáticas com as australo-mela- Pleistoceno-começo do Holoceno, através
nésicas, provavelmente o grupo humano de três ondas migratórias discretas. A pri-
mais próximo dos mongolóides, era muito meira, de um grupo sinodonte, seria ances-
maior durante o Pleistoceno do que é hoje, tral a todas as tribos das Américas hoje
o que é evidenciado pelo caráter do mate- englobadas na família lingüística
rial fóssil na região. “Amerind”, o que inclui todas as popula-
ções indígenas da América do Sul, Améri-
ca Central e a grande maioria daquelas da
A DIVERSIDADE América do Norte. A diversidade entre elas
DOS AMERÍNDIOS teria sido adquirida já dentro do continen-
te. A segunda migração teria sido de um
Para se estudar a diversidade dos grupo ancestral das tribos pertencentes à
ameríndios três tipos de dados podem ser família lingüística na-dene. Por último, a
utilizados: dados socioculturais, dados ge- terceira e mais recente teria sido de popu-
néticos e dados morfológicos. Entre os pri- lações com uma adaptação peri-ártica, os
meiros, encontram-se os estudos de lingüís- aleutas-esquimós.
tica histórica. Recentemente, Joseph O modelo proposto por Greenberg,
Greenberg, da Universidade de Standford, Turner e Zegura concorda com os dados
estudou e reavaliou a diversidade lingüís- arqueológicos que sugerem que a primeira
tica nas Américas, e chegou à conclusão de entrada nas Américas se deu por uma po-
que, com exceção das populações peri-ár- pulação caracterizada pela cultura lítica
ticas (os povos esquimós) e o grupo conhecida como “Clóvis”, que posterior-
lingüístico na-dene, nômades do noroeste mente teria se diversificado dentro do con-
norte-americano, todas as outras línguas tinente dando origem a todos os grupos
aborígines das Américas podem ser agru- indígenas com exceção dos peri-árticos. No
padas numa única superfamília que recebe entanto, embora esse modelo tenha sinteti-
o nome de “Amerind”. O estudo implica zado e formalizado grande parte do conhe-
que todos os grupos ameríndios, fora as cimento existente sobre a diversidade de
populações circumpolares, têm um ances- ameríndios, existem quatro fontes de críti-
tral comum. Esses resultados foram apoia- ca e controvérsia.
dos por estudos genéticos feitos por Zegura, Primeiro, em termos da cronologia ar-
que mostraram que os ameríndios de hoje, queológica, dados recentes sugerem que
especialmente na América do Norte, são apesar de não ter se confirmado nenhuma
relativamente homogêneos e, por das propostas de sítios de 30.000 ou 50.000
inferência, relativamente próximos anos na América do Sul, existem agora
filogeneticamente, e por estudos de evidências certas, provindas dos sítios de

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Monte Verde no Chile e da região de Lagoa B, O ou AB), e o expressavam em termos
Santa no Brasil, de que teria existido uma de freqüências gênicas em nível
população anterior àquela responsável pela populacional. Com os avanços das técni-
cultura Clóvis. Essa população não parece cas da biologia molecular, hoje é possível
ser muito mais antiga que os primeiros sí- estudar não o produto dos genes, mas a
tios Clóvis na América do Norte abundan- variação na própria seqüência de bases de
temente datados ao redor de 11.500 anos DNA de cada gene. Para fins de
atrás, mas os precederia em aproximada- seqüenciamento, utilizam-se principalmen-
mente 2.000 anos. te genes do DNA de mitocôndrias, já que
Segundo, vários autores argumentam estas organelas celulares são transmitidas
que a homogeneidade do grupo “Amerind”, à descendência apenas pelas mães, sem
tanto em termos biológicos como recombinação com DNA mitocondrial pa-
lingüísticos, é uma simplificação da diver- terno. Essa circunstância permite que se-
sidade realmente existente, especialmente jam traçadas linhagens filogenéticas ma-
no que diz respeito à América do Sul, onde ternas através do tempo. A mesma estraté-
o número de estudos sobre o tema é signi- gia é possível quando são utilizados genes
ficativamente menor. Particularmente em do cromossomo Y, que por definição só se
termos da morfologia esqueletal, estudos transmite, sem recombinação, através da
realizados por mim sobre as populações linha genealógica paterna. Por último, é
que existiram na Terra do Fogo até épocas comum o seqüenciamento dos microssa-
históricas mostram que até recentemente télites cromossômicos, ou seja, regiões de
existiam na América do Sul populações DNA repetitivo e aparentemente inútil. Os
que não se enquadram numa morfologia resultados da antropologia molecular são
mongolóide típica. Esse estudo sobre as de difícil interpretação em termos
tribos do extremo sul do continente mos- filogenéticos, já que descrevem o padrão
trou que suas particularidades de herança dos genes em indivíduos e não
morfológicas não seriam somente decor- em populações. Vários fatores podem afe-
rentes de uma adaptação às condições cli- tar a transmissão de genes específicos atra-
máticas extremas a que esses grupos esta- vés de populações, sem que isso reflita
vam submetidos, e sugere que os adequadamente a verdadeira história
fueguinos, pelo seu nível de isolamento evolutiva dessas populações. Como exem-
geográfico, poderiam ter retido em maior plo, imagine-se o caso de uma tribo x, cujas
proporção que outros grupos as mulheres deixam o grupo para encontrar
caracterísitcas da população ancestral. parceiros em outras tribos, e cujos homens
Terceiro, aos dados de freqüências formam casais apenas com mulheres pro-
gênicas (como aqueles usados por Zegura) vindas de fora. Não só os níveis de diversi-
se adicionou nos últimos dez anos uma dade e árvores genealógicas dos homens
grande quantidade de estudos de antropo- (através do cromossomo Y) e das mulheres
logia molecular. A diferença entre estas (através do DNA mitocondrial) da tribo x
duas fontes de dados sobre a caracteriza- seriam diferentes, como ambos os padrões
ção genética de grupos humanos é impor- seriam diferentes da história evolutiva da
tante. As populações humanas são altamen- população como um todo, se tal história
te polimórficas geneticamente, o que se fosse inferida a partir dos cromossomos
traduz numa diversidade de produtos do nucleares, resultantes da recombinação
genoma (proteínas e enzimas), como por entre homens e mulheres. Mas apesar des-
exemplo a diversidade nos grupos ses problemas de caráter teórico e
sangüíneos ABO. Tradicionalmente, os interpretativo, os dados da antropologia
estudos de genética analisavam a quanti- molecular têm mostrado a possibilidade de
dade relativa das diferentes variantes de haver uma maior diversidade genética nas
certos genes (como as quantidades relati- Américas (especialmente a do Sul) do que
vas de portadores do grupo sangüíneo A, a proposta no modelo de Greenberg e cola-

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boradores. Adicionalmente, esses dados Minas Gerais, escavado no fim do século
sugerem que as linhagens moleculares nas passado e início deste. A esse trabalho ele
Américas têm uma origem relativamente adicionou o primeiro estudo realizado so-
antiga. Isso não implica uma ocupação bre fósseis paleoíndios da Colômbia. Con-
antiga da América, mas uma separação juntamente, os dados levaram-no a afirmar
antiga, ainda na Ásia, entre uma linhagem que os primeiros americanos eram “pré-
ancestral de ameríndios e outra ancestral mongolóides” na sua morfologia. Nos Es-
de mongolóides. Traduzidos no nível das tados Unidos, Gentry Steele e Joseph
populações, esses dados sugerem que o Powell realizaram um estudo comparativo
grupo que originou as linhagens de todos os restos fósseis de paleoíndios na
mitocondriais americanas havia se diferen- América do Norte e chegaram à conclusão
ciado de outros grupos mongolóides antes de que esse material não apresenta as ca-
Desenhos que do aparecimento da população caracteriza- racterísticas de mongolóides típicos. Re-
sugerem ação da morfologicamente como de mongo- centemente, Powell estudou a morfologia
cerimonial em lóides típicos sinodontes. dentária desse mesmo material usando as
São Raimundo Por último, a crítica mais incisiva ao técnicas desenvolvidas por C. Turner, con-
Modelo das Três Migrações provém de es- cluindo que as populações paleoíndias re-
Nonato (PI),
tudos recentes do material fóssil humano presentam sundadontes. Adicionalmente,
Parelhas e
nas Américas. Na América do Sul, Walter um estudo semelhante realizado por Rebeca
Carnaúba dos Neves, da Universidade de São Paulo, es- Haydenblit, de Israel, sobre as populações
Dantas (RN) e tudou e reanalisou todo o material fóssil de pré-históricas do México dos últimos 6.000
Lençóis (BA) paleoíndios da região de Lagoa Santa em anos mostra um aumento progressivo na
freqüência de indivíduos com uma
morfologia sinodonte naquela região.

A IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS


PALEANTROPOLÓGICOS

As críticas provindas da arqueologia e


da genética descritas acima dependem de
maiores estudos e achados para se concre-
tizarem como reais contestações à hipótese
das três migrações ou da entrada tardia de
uma população Clóvis. No entanto, a evi-
dência morfológica de populações fósseis
e recentes é suficiente para justificar uma
alteração nos modelos existentes. Em suma,
os fatos-chaves a serem considerados são
os seguintes:
1) A grande maioria dos ameríndios
recentes, especialmente na América do
Norte, enquadram-se na descrição de
mongolóides típicos de morfologia dentária
sinodonte, o que os aproxima filogeneti-
camente de grupos semelhantes do nordes-
te asiático – chineses, japoneses, coreanos
e mongóis atuais.
2) Todos os restos fósseis de paleoíndios
apresentam maior robustez, certas caracte-
rísticas generalizadas do esqueleto craniano

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(apesar de exibirem uma considerável di-
versidade) e uma morfologia dentária
sundadonte, o que os aproxima filogene-
ticamente de grupos semelhantes do nor-
deste asiático (como os ainus) e do material
fóssil do período Pleistoceno da Ásia.
3) Os restos fósseis na América do Sul
e Central que datam de meados do Holoceno
em diante apresentam características
mongolóides mais pronunciadas.
4) Grupos relativamente isolados da
América do Sul, como as tribos que habita-
ram a Terra do Fogo e parte da Patagônia,
apresentam uma morfologia que, como a
Sítio do
dos paleoíndios, difere dos mongolóides
típicos em termos de robustez, tamanho, Letreiro,
certas proporções cranianas e morfologia Araruna (PB)
dentária.
Esses dados são coerentes entre si e com de diferenciação das populações da Terra é
os dados sobre a diferenciação dos povos necessária para que se possa interpretar
mongolóides na Ásia, e levam a quatro corretamente a diversidade humana de hoje
conclusões importantes a respeito do pro- e do passado. No caso dos mongolóides, tal
cesso de ocupação das Américas: primei- perspectiva mostra que, entre 20.000 e
ro, que independente das duas ondas mi- 10.000 anos atrás, existiam vários grupos
gratórias que originaram os povos que poderiam ter sido ancestrais da popu-
circumpolares e da família lingüística na- lação representada pelos fósseis de
dene, a ocupação da América se deu, numa paleoíndios. Certas semelhanças entre os
primeira instância, a partir de grupos ainda restos de paleoíndios e os aborígines atuais
não especializados morfologicamente, ca- da Austrália podem, nesse contexto, ser
racterizados por uma alta diversidade, maior explicadas como características que ambos
robustez, sundadontia, uma forma de crâ- os grupos herdaram de um ancestral co-
nio alongada, e face relativamente fina e mum na primeira metade do Pleistoceno
curta; segundo, que em algum momento Superior. Tais características viriam a ser
posterior, uma outra onda migratória teria perdidas recentemente pelos povos
trazido grupos diferentes, já com caracte- mongolóides, provavelmente nos últimos
rísticas mais próximas daquelas dos atuais 15.000-10.000 anos. Finalmente, cabe res-
povos mongolóides do nordeste asiático; saltar que todas as inferências históricas e
terceiro, que na América do Norte, e em filogenéticas que podem ser obtidas atra-
certa medida na América do Sul, esses úl- vés da diversidade genética e lingüística de
timos grupos tornaram-se predominantes; populações atuais devem sempre levar em
e quarto, que a explicação para as diferen- consideração o fato de que elas só podem
ças observadas entre os restos fósseis e reconstruir a história e a filogenia dos so-
recentes deve ser procurada, dentro do con- breviventes. A história evolutiva de todas
tinente, no processo microevolutivo de aquelas populações das Américas que, seja
adaptação e interação entre populações por motivos demográficos, epidemiológi-
mongolóides relativamente distintas, envol- cos ou sociais, desapareceram ao longo dos
vendo mecanismos de substituição, fluxo últimos 15.000-12.000 anos, não estão ali
gênico, deriva genética e seleção natural, representadas. A única fonte de informa-
que são os verdadeiros criadores da diver- ção sobre sua existência, suas característi-
sidade atual dos ameríndios. cas, afinidades e adaptações são os seus
Uma perspectiva ampla sobre o padrão próprios restos fossilizados.

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