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SIMON SCHAMA

O DESCONFORTO DA RIQUEZA

A cultura holandesa
na Época de Ouro
Uma interpretação
Tradução:
HILDEGARD FEIST

COMPANHIA DAS LETRAS


UXICAIWP
- Irca
VNIOAMP
Copyrlght © 1987 by Simon Schama Para Ginny, de todo o coração
N.O CF1M't) Titulo original:
The embarrassment of riches
vI- ............. J.,x An Interpretation of Dutch culture
M44*II in lhe Goklcn Age
Capa:
ct DJJ Moema Cava/canil
PREÇO Preparação:
DATA _ Mário Vilela
N.° CD 7 JOCO2.V! £20
Índice remissivo:
Beatriz Calderari de Miranda
Revisão:
Ana Maria Barbosa
Eliana Antonioli
Isabel Cury Santana

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cii')


(Câmara Brasileira do Livro, si', Brasil)

Schama, Simon, 1945-


O desconforto da riqueza A cultura holandesa na
Época de Ouro, uma interpretação / Simon Schama tra-
dução Hlldegard Peist. - São Paulo companhia das Le-
tras, 1992.

ISBN 85-7164-206-0

1. Holanda - Civilização - Século 17i. Título. ii. Titu-


lo: A cultura holandesa na época de Ouro.

91-2471 cor,-949.204

índices para catálogo sistemático:


1. Holanda Civilização Século 17 949.204
2. Século 17 : Holanda civilização 949.204

1992
Editora Schwarcz Ltda.
Rua Tupi, 522
01233 - São Paulo - SP
Telefone: (011) 826-1822
Fax: (011) 826-5523
Caso a moral da história não fosse clara, a "explicação" opunha desfavo-
ravelmente a covarde bajulação do francês-escravo à retidão do holandês adep-
to da liberdade: "Por holandeses, entendemos homens que nasceram e se cria-
ram sob um governo livre e que não se afastarão facilmente de seus velhos
estilos de vida e de expressão, ainda que seja sua desgraça ser transportados
para os domínios de reis e príncipes soberanos".""
Era um discurso belicoso, o escovão de Tromp mais uma vez pregado 5
ao gurupés. Mas, ao mesmo tempo que aquecia os ânimos da velha Vaderlands-
gevoel, prudentemente aludia às calamidades iminentes. O holandês da fábu-
O DESCONFORTO DAS RIQUEZAS
la, é bem verdade, morreu como homem honrado. Mas morreu.

Pois ocorre com demasiada freqüência que as riquezas trazem a


saciedade, e a superfluidade dos prazeres produz frouxidão, con-
forme podemos constatar em regiões e cidades ricas (onde há mer-
cadores). Agora, os que navegam para lugares distantes já não se
contentam com os confortos do lar e levam consigo luxos desco-
nhecidos. Assim, visto que a riqueza é a mãe da extravagância,
o profeta aqui menciona mobiliários caríssimos, querendo dizer
que pelo modo excessivo como decoraram suas casas os judeus
atraíram para si o castigo de Deus. Pois às imagens acrescentam
caras tapeçarias como bordados frígios e vaso moldados com re-
quintada arte.
João Calvino,
Comentário a Isaías 2, 12 e 16

Aferre-se o mercador a esta preciosa máxima: a honra antes do ouro.


Godfried Udemans,
Guia espiritual do comércio

Aquijaz Isaac le Maire, mercador, que durante seus negócios atra-


vés do mundo pela graça de Deus conheceu grande abastança e
em trinta anos perdeu tudo (exceto a honra).. mais de 150 milfio-
rins. Morreu cristãmente aos 30 de setembro de 1624.
Epitáfio

CORNUCÓPIA

Em meio às longas sombras da tarde, um au revoir se processa com va-


gar. Uma carruagem adornada de dourado aguarda seus passageiros diante do

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portão de uma casa de campo holandesa. Uma elegante saia é recolhida, en-
quanto sua portadora se prepara para subir os degraus da carruagem, deixan-
do a companheira com expressão de desconsolada relutância. Os homens se
demoram nas despedidas, um braço afetuoso pousado num ombro que parte.
Os negócios podem ser urgentes, mas, como o pequeno criado que aguarda
com uma jarra de refresco, abstêm-se de se intrometer.
Dificilmente essa cena de gênero elaborada por Ludolf de Jonghe consti-
tui espécime de uma cultura calvinista. A ética do trabalho não podia estar
mais distante da obra. Trata-se de um poema à ética holandesa do lazer: um
arranjo de pilastras coríntias, sedas farfalhantes, cães esguios e brisas vesper -
tinas. O quadro está impregnado de deliciosa satisfação com o mundo mate-
rial. Prazeres bucólicos como esse podem ter levado os pastores calvinistas
a denunciá-los como sensuais, mas evidentemente na década de 1660 tornaram-
se moda nos círculos abastados.'
O viajante inglês William Aglionby descobriu esse mundo de pequenas
delícias ao topar com Leiderdorp. Como o nome indica, o vilarejo ficava nos
arredores de Leiden, cidade que se encontrava então no auge da fama e da
prosperidade.' Junto com uma constelação de aldeias fervilhantes - Oegst-
geest, Souterwoude e Achterhoven -, durante muito tempo forneceu laticí-
nios e produtos hortícolas para a cidade (que agora abrigava 80 mil almas) e
foi parada obrigatória das barcaças que se dirigiam para Gouda e Amsterdã.
Mas, quando Aglionby visitou Leiderdorp, no verão de 1660, o vilarejo já ul- 134. Ludolf de Jonghe, Despedidas diante de uma casa de campo. Anteriormente na
trapassava sua humilde condição. Menos horta e mais jardim, tornava-se o ti- Gailery P. de Boer, Amsterdã
po de lugar coberto de bosques que médicos humanistas como Johan van Be-
verwijck recomendavam para o revigoramento de exaustos corpos e almas 135. Anônimo, gravura, Ockenburg, de Jacob Westerbaen, Alie de gedichten ('s Grave-
urbanos. Entre prados viçosos e bosques de olmos e faias, erguiam-se belas nhage, 1672). Houghton Library, Harvard University
vilas, muito semelhantes à que figura no quadro de Jonghe, construídas para
os patrícios e fabricantes de tecidos de Leiden. Em forma e função, deviam
muito aos protótipos de Andrea Palladio, no Veneto, modificados pelo ele-
gante classicismo holandês de Pieter Post e Jacob van Campen, mais rico em
tijolos vermelhos e calcário de Bentheim que em mármore. Como as vilas ita-
lianas, foram concebidas para dar a agradável ilusão do pastoril sem nenhuma
de suas rústicas incomodidades, sendo bem iluminadas, espaçosas e harmo-
nicamente proporcionadas. Parques frondosos propiciavam saudáveis passeios
com cães criados para fazer companhia e, eventualmente, caçar. Sítios bem
cuidados ofereciam ao homem de negócios a oportunidade de representar o
papel do fidalgo rural, em conformidade com o título de beer que adquirira
junto com a propriedade e com o brasão colocado na entrada. Acima de tu-
do, o buitenplaats [a casa de campo] era um repouso purificador do sujo co-
mércio da cidade.
Leiderdorp não era nem o mais antigo nem o mais grandioso desses aglo-
merados de elegantes mansões rurais. Já na década de 1630, os patrícios mais
ricos e cultos deixaram suas cidades superpovoadas em busca da bucólica ar-
cádia, embora o ritmo das construções se tivesse acelerado consideravelmen-

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te a partir de 1650. 3 A elite de Haarlem decidiu transferir-se para o revigo- de todas as atenções ao longo do "Zegepralende Vecht": Goudcstc1n,' Em
rante ar puro das dunas, onde abastado confeiteiro faliu para criar o grandilo- 1640, Huydecoper adquiriu o título de heer do vilarejo vizinho, Maarsseveen,
qüente Elswout em 1634-5, mas demoraram outros vinte anos para que a cons- e para proclamar a promoção acrescentou à casa uma cúpula. Em 1674, Jan
trução se concluísse nas mãos do novo proprietário, Gabriel Marcelis, comer- van der Heyden pintou a casa, que, situada junto ao rio, tinha uma entrada
ciante de armas e cônsul do rei da Dinamarca. Na década de 1640, a família devidamente encimada por urnas e uma fachada com o busto do solar no
Coymans, com suas raízes em Haarlem e ramos florescendo em Amsterdã, cons- frontão.
truiu De Kruidberg, também entre as dunas. No entanto, o maior incentivo Além do esplendor do Vecht, Leiderdorp podia vangloriar-se de residên-
ao refúgio no campo partiu de cortesãos de Haia que detestavam a corte. A cias mais modestas, que, no entanto, impressionaram Aglionby não só pela
inspiração italianizante, o entusiasmo pela horticultura e a afetada convenção elegância mas também pelo prazer que seus donos tinham em ostentá-las. O
de opor a decadência corrupta da vida cortesã ao rejuvenescimento moral do vilarejo tem "mais palácios que casas dos habitantes rurais", escreveu ele. "É
campo se conjugavam para estimular a fuga da cidade. Constantijn Huygens, aqui que se admira a magnificência dos cidadãos, pois crer-se-ia que entre eles
o secretário do stadhouder Frederico Henrique, e Jacob Cats investiram, res- havia emulação para saber qual daria maior demonstração de suas riquezas.' '6
pectivamente, grande quantidade de dinheiro e outra ainda maior de versos Ao descrever outras cidades holandesas, Aglionby voltou ao mesmo tema, pois
em Hofwijk (Longe da Corte) e Zorghvliet (Fugir das Preocupações). Grande a visível opulência de pessoas e locais evidentemente foi o que lhe causou
advogado da terapia rural para doentes urbanos, Cats também tinha uma ca- a impressão mais profunda. Considerava Leiden uma cidade extraordinária,
sa, De Munnikenhof, em sua Zelândia natal, perto da aldeia de Grijsperk. Zorgh- por ser tão fartamente dotada com as riquezas da erudição e do dinheiro. Quan-
vliet era mais imponente, e há indícios ocasionais de que sua consciência cal- to a Haia, pela "largueza de suas ruas, pela nobreza de seus edifícios, pela agra-
vinista era no mínimo um pouco defensiva com relação ao assunto. Ele gosta- dável sombra de suas árvores e pela civilidade de seus habitantes, pode, com
va de dizer que a casa se situava num ermo arenoso (na verdade, bem irrigado toda a justiça, reivindicar o título do lugar mais agradável do mundo e fazer
por generoso regato) e que quaisquer prazeres que pudesse ter com a pro- todos os homens invejar a felicidade dos que ali vivem". Quanto a Amsterdã,
priedade eram frutos do árduo trabalho agrícola.' "diz-se comumente que essa cidade se parece muito com Veneza. A meu ver,
Amsterdã é muito superior em riquezas ". Não se tratava apenas de com-
Já os deslumbrantes casarões que se estendiam junto ao rio Vecht, entre [...]

parar aristocracias, pois Aglionby observou sinais de prosperidade e conforto


Amsterdã e Utrecht, competindo entre si em elegância e esplendor, não sus-
também entre o povo. E foi perspicaz ao registrar que o brilho do ornamento
citavam em seus proprietários nenhuma atitude defensiva. Um dos mais po-
se destacava com vantagem num contexto modesto. O povo do campo que
derosos e persistentes governantes de Amsterdã, Joan Huydecoper, fez Phi-
ele encontrou no coração de Holanda vestia-se de fustão preto, mas as mu-
lips Vingboons construir, provavelmente em 1639, o que se tornou o alvo
lheres exibiam nos dedos e nos chapéus anéis e alfinetes de ouro. Não era
"raro", diz ele (com exagero perdoável), "encontrar camponeses que possuem
10 mil libras". 7
Com base em tudo isso, pode-se afirmar que William Aglionby era admi-
=
rador incondicional da República, embora perplexo, como alguns contempo-
râneos, com suas instituições governamentais. Sem dúvida, tudo que viu e
136. Adriaen van desfrutou virou-lhe a cabeça; não obstante, seu relato é notável pela ênfase
de Venne, gravura, não só nas riquezas do país mas também no prazer dos holandeses em exibir
de Jacob Cats, sua fortuna. Na década de 1760, quando Joseph Marshall percorreu mais ou
Ouderdon en menos o mesmo caminho de Aglionby, o prazer de gastar parecia ter-se insti-
buitenleven (edição tuído como hábito da abastança. Ele comentou:
de obras completas
de 1655) Não conheço outro país em que as pessoas gastem seu dinheiro com maior libera-
lidade para passar o tempo de forma agradável e desfrutar tudo que lhes permi-
tam sua posição e sua fortuna. Por toda a parte, vêem-se boas casas, bem mobilia-
das, com mesas fartas e elegantes, criadagem numerosa, ricas vestimentas,
[...] [...]

e na educação dos filhos nada poupam. Em suma, vêem-se ali não só as comodi-
dades da vida mas também aqueles aprimoramentos, aqueles refinamentos que
só as épocas de riqueza e luxo conhecem. 8

292 293
personalidade coletiva que ouvia diatribes disparadas do púlpito contra a Rai-
nha Pecúnia e a Dama Terra exultava em ostentar seu poder nas ruas e cm
casa. Essa singular ambivalência era tão verdadeira com relação ao século xvi
quanto no tocante ao xviii. Tanto Lodovico Giucciardini quanto Thomas
Coryate (este mais tarde, em fins do século xvi) mostraram-se tão deslumbra-
dos com o espetáculo das cidades holandesas que parece impossível ter ja-
mais havido uma era dourada da aversão ao ouro. Em Gorinchem, Coryate
extasiou-se com "o encanto da localização, a elegância dos edifícios, a beleza
das ruas, tudo me agradou de tal forma que ao entrar numa das ruas mais lon-
137. Jan van der
Heyden, Goudestein gas acreditei ter chegado repentinamente aos amenos lugares da Tessália ou
Wellington Museum, de Antioquia" 12 Embora a maioria dos autores de economia no século xvii
Apsley House, .. possa ter afirmado uma relação entre frugalidade e prosperidade, pelo menos
Londres alguns (como Nicholas Barbon, John Houghton e Dudley North) 13 achavam
que a ostentação - ou a satisfação dos caprichos - era inteiramente compa-
tível com a fortuna nacional.
Havia, portanto, uma escola minoritária na Inglaterra que continuava hostil
à manipulação da procura como fator da produtividade econômica. Mas teria
sido bizarro citar os holandeses como justificativa. Nenhuma inibição desse
tipo deteve, porém, o gênio travesso de Bernard de Mandeville. Nascido em
Roterdã, Mandeville conhecia seus antigos compatriotas melhor que os admi-
radores dos holandeses e em Thefable of the bees [A fábula das abelhas] in-
Essa visão da elite dos Países Baixos como perdulária parece discrepar vocou o clichê da suposta austeridade desses últimos como caso elementar
da imagem mais convencional dos holandeses como os cidadãos mais sovi- de fraude. "Os holandeses podem atribuir como quiserem sua atual grandeza
nas da Europa. Josiah Child encaixou-se melhor na tendência geral dos co- à virtude e à frugalidade de seus ancestrais", escreveu. "Contudo, o que tor-
mentaristas estrangeiros ao escrever sobre "seu estilo de vida parcimonioso nou esse insignificante pedacinho de chão tão considerável entre as potên-
e frugal, [ ... ] tão extraordinário que um mercador com bens no valor de 100 cias da Europa foi sua sabedoria política de subordinar tudo ao comércio e
mil libras dificilmente gastará por ano o que um comerciante com uma pro- à navegação [e] a ilimitada liberdade de consciência de que desfrutam.
priedade de 1500 libras gasta em Londres". 9 Esse lugar-comum, repetido in- As respostas, pensava ele, estavam na história, não na religião; na racionalida-
contáveis vezes no século xvii, mais tarde incluiu a convicção de que os ho-
de, não no fervor; no humanismo, não no calvinismo. A frugalidade foi me-
landeses deviam boa parte de seu sucesso econômico a arraigada aversão ao
nos uma escolha consciente que a conseqüência das "agruras e calamidades
consumo conspícuo, isto é, à aquisição de bens evidentemente caros com a
da guerra". Instaurada a paz e afastadas essas dificuldades, seu estilo de vida
única finalidade de ostentar riqueza e posição social. "São econômicos a pon-
encaminhou-se para o sensual e o luxuoso:
to de guardar uma casca de ovo", escreveu Owen Felitham, com sua habitual
mistura de inveja e escárnio.' (' No entanto, se o depoimento de viajantes, so- em quadros e mármores, são profusos; em seus edifícios e jardins, são extrava-
bretudo na segunda metade do século, parece contradizer a imagem de um gantes ao exagero. Em outros países, pode-se deparar com cortes e palácios im-
estilo de vida austero e ascético, a discrepância podia ser explicada, à manei- ponentes que ninguém esperaria [encontrar] numa comunidade na qual existe ta-
ra de sir William Temple, por desastroso afastamento de estilos mais antigos, manha igualdade como na Holanda, mas em toda a Europa não se encontram edi-
mais estritos. 11 Dizia-se comumente que os hábitos frugais e modestos que fícios privados tão suntuosos e magníficos como são a maioria das casas de mer-
criaram as bases da prosperidade holandesa perdiam-se na década de 1660 em cadores e outros senhores em Amsterdã e em algumas grandes cidades dessa pe-
espetáculo de vaidade e luxo. Isso era nada mais que a última versão do la- quena província, e geralmente há maior proporção entre sua posição [social] e
as casas nas quais residem que em qualquer outro povo do mundo. 15
mento dos romanos estóicos pela sibarítica corrupção da virtude republica-
na. Não há dúvida de que os moralistas holandeses repisaram isso ao longo Mas não se deve exagerar o apego dos holandeses ao conforto. Mande-
3
dos séculos xvii e XVIII; menos certo, porém, é que seus rebanhos tenham da- ville - que se deliciava em embaralhar chavões - não estava querendo dizer
do atenção a tais jeremiadas (a não ser em fases de crise nacional). A mesma (nem eu tampouco) que Versalhes fosse uma choupana escura, se comparada

294 295
Di, Kocuxs
.L. BmrJ à prefeitura de Amsterdã. Como ele apontou, avaliar o consumo conspícuo
dos holandeses segundo os pródigos padrões de uma corte real é comparar
alhos com bugalhos e acabar confirmando o óbvio. Todavia, descobrir se a
religião teve o efeito específico que Max Weber dizia é empreender compara-
ção diferente e mais interessante. Equivale a demonstrar se os holandeses ti-
veram comportamento de consumo pessoal diferente, comparados a outras
culturas comerciais, sobretudo não calvinistas, como Veneza, Antuérpia ou
Londres no século xviii. Segundo um índice imaginário de parcimônia euro-
péia que permeia relatos os mais casuais, os holandeses parecem situar-se abaixo
dos genebrinos mas acima dos venezianos. Isso pode levar a confundir retóri-
ca com realidade, sermões com ação social. Pois, por mais acerba que fosse
138. 1. Veenhuijzen, a polêmica contra mundanalidade e luxo, parece não haver razão para supor
Mercado de cereais. que os grupos "fundamentais" da sociedade holandesa - desde o patriciado,
Coleção do autor no topo, até os artesãos e profissionais especializados na base - mostrassem
especial propensão a evitar o consumo a fim de economizar e investir. Assim,
qualquer que fosse o efeito dos ataques calvinistas contra a Dama Terra (e vol-
taremos a isso mais adiante), parece que não desviaram o capital de consumo
para a produção. Isso não quer dizer que em meados do século, com toda
a superabundância de capital que ocorreu, não houvesse altas taxas de acú-
mulo de capital, só que é difícil atribuir o fato, direta ou indiretamente, aos
G100tC Comptoir ensinamentos do clero .1 6
. .-.,- -j £'•_". De qualquer modo, alguns autores holandeses não se acanhavam nem um
-' pouco de enaltecer a República como paraíso do consumo - o grande empo-
- ,

num mundi. Alardear as atrações de uma cidade holandesa - não só monu-


cíacj- iiCV Oii ) mentos públicos e igrejas mas também edifícios comerciais e residências par-
)iiuux-
ticulares - tornou-se elemento obrigatório dos panegíricos urbanos. Estes fo-
ram encomendados e publicados a partir da primeira década do século xvii
com o expresso propósito de suscitar orgulho cívico, mais ou menos na linha
:r rJDCtbo beba oI!attbt' rflbe tabtztucj-. de publicidade da moderna câmara de comércio. Os notáveis da cidade espe-
ravam tornar-se objeto de dedicatórias bajuladoras, assim como esperavam
ser retratados em grupo, posando como oficiais da milícia ou dirigentes do
139. Xilografia, orfanato municipal. Não faltavam artistas pobres dispostos a atendê-los. Seus
página de rosto de modelos eram descrições e elogios de cidades produzidos na Itália, em Flan-
Groote Comptoir
Almanach, 1664.
dres e em Brabante durante a Renascença. Eles os superaram em bombásticas
Atlas van Stolk,
hipérboles, mas tendiam a ser menos antiquários e mais impudentes em sua
Roterdã
vulgar euforia. Quase todos escreveram em vernáculo e numa rima enfado-
nha que servia tanto para a mitologia e a história locais (sobretudo martiroló-
gios heróicos da Guerra dos Oitenta Anos) quanto para biografias de persona-
lidades urbanas e meticulosa descrição topográfica. De modo, mesmo nos for -
matos mais baratos in-quarto e in-oitavo, esses livros lof en bescbryving (louvor-
e-descrição) incluíam gravuras de sofisticação variada que mostravam pano-
ramas genéricos e vistas individuais de uma cidade. As gravuras mais ambi-
L ( JooS .. nrT,-b ttTtr n
ciosas e detalhadas - como as de Simon de Vlieger, Jan van de Velde ii e
Claes Janszoon Visscher - foram elaboradas tanto para ilustrar esses livros
296 297
como para ser vendidas em lotes avulsos. As mais triviais como as que Vee- Barlaeus, Vos e Joost van Vondel, que compuseram longos elogios líri-
nhuijzen elaborou na década de 1650 para Bescbryving van Amsterdam, de cos para comemorar a construção da nova prefeitura e o Crescimento de Ams-
Tobias van Domselaer simplesmente compunham o estoque dos editores terdã, representavam o entusiasmo da cultura requintada. No extremo opos-
que as utilizavam incontáveis vezes em livros e edições de diferentes forma- to e, de algum modo, mais característico do gosto popular, estava Bescbry-
ving der wijdt-vermaerde koop-stadt Amstelredam (Descrição da muifamo-
tos. Não era incomum esses dicionários geográficos incluírem informações
sa cidade mercantil de Amsterdã), de Melchior Fokkens. Uma bem-sucedida
de ordem prática para os viajantes, como o horário de abertura das Bolsas, história-e-dicionário-geográfico, que pouco depois de seu lançamento, em
a hora aproximada da partida ou chegada de frotas mercantes de longa distân- 1662, teve mais três edições, o livro de Fokkens foi o equivalente literário
cia, localização de igrejas de diferentes credos (exceto os conventículos cató- da triunfante estatuária de Quelijn no frontão da prefeitura: uma clarinada de
licos, formalmente proibidos) e, em alguns casos, até o horário das barcaças ufania.
trekschuit que transportavam passageiros) 7
Os mais famosos dentre os primeiros panegíricos eram Rerum et urbis Assim, Amsterdã ascendeu pela mão de Deus ao cume da prosperidade e da gran-
Amstelodamensium (1661), de Johannes Pontanus, traduzido para o holan- deza. [ ... ] O mundo inteiro está perplexo com suas riquezas e, de leste e oeste,
dês em 1614, e Lof en bescbryving van Haarlem (1628), do pregador Samuel de norte e sul, vem admirá-las.
O Grande Senhor Onipotente elevou esta cidade acima de todas as outras.
Ampzing. Seguiram-se, porém, Outros, dedicados a Leiden, Delft, Dordrecht [...}

Sim, ele até lhes tirou a navegação do leste e do oeste (pois outrora Antuérpia
e Roterdã' 8 Como seria de esperar, foram os encomiastas de Amsterdã que
e Lisboa também floresceram) e despejou seus tesouros em nosso seio.
em meados do século xvii se tornaram os mais líricos em relação a sua cida-
de natal. Quando invocavam outras cidades da Antigüidade, era só para lançá-las Enquanto outras cidades se exauriam em guerras internas e externas "entre
nas sombras opostas ao brilho contemporâneo de Amsterdã. Motivo de orgu- o tumulto e o estrondo da fuzilaria", Amsterdã florescera. Isso foi mais que
lho, a Bolsa inspirou versos famosos, repetidos em gravuras, placas, medalhões: justo, pois ela desde o início abrira suas portas para abrigar .os perseguidos
Roemt Ephesus op haer kerk
Tyrbus op haer markt en haven
Babel op haer metzel werk
Memphis op haer spitze gaven,
Romen op haer heerschappy
AI de werelt roemt op my
• fama de Éfeso era seu templo,
• de Tiro seu mercado e seu porto,
• de Babilônia suas muralhas de alvenaria,
• de Mênfis suas pirâmides,
• de Roma seu império.
• mundo inteiro louva a mim. 19

Se já não havia necessidade de prestar respeitosas homenagens à Antigüi-


dade, poetas ou oradores tampouco se ajoelharam diante da linhagem real. 140. Página de rosto de P. von
Em 1638, quando Maria de Médicis, a rainha-mãe dos franceses, fez sua céle- Zesen, Beschreibung der stadt
bre entrada em Amsterdã, o erudito e orador humanista Gaspar Barlaeus pro- Amsterdam, 1664. Houghton
nunciou discurso que equiparava "a qualidade de seu sangue e a de seus an- Library, Harvard University
cestrais" à "grandeza desta cidade no comércio e na abastança e felicidade
de seus cidadãos". " Os grandiosos eventos organizados em homenagem à
rainha que incluíram torneios aquáticos, banquetes, fogos de artifício e ale-
gorias espetaculares encenadas em ilhas flutuantes atracadas no Ij (ver figura
113) - visavam a incutir a lição dessa nova paridade. Nem mesmo quando
se tratava de grandiosos esbanjamentos Amsterdã precisava do patrocínio das
aristocracias. . -

298 299
- AMsT,Àu)AM W).M }ANT AA1. V,,tic ci AmÇc1-Lla,u,du. coft de Ia mcc, au fleuvc Ye

141. O porto de
v V Amsterdã visto do Ij.

- De Gaspar Commeliri
, et ai., Beschryving der
stad Amsterdam,
A 1665.
.
Houghton Library,
Harvard University

Naturalmente, era uma terra prometida, "como se dizia em Outros tem-


e oprimidos de Estados vizinhos. No fim, tornara-se simplesmente "a maior pos, uma terra na qual jorram leite e mel; na verdade, essa é Holanda, e, aqui
e mais poderosa cidade mercantil de toda a Europa. [ ... ] Realmente, é maravi- em Amsterdã, há uma terra e uma cidade onde leite e queijo transbordam". 13
lhoso poder dizer que, de criança e jovem pouco crescida que era, Amsterdã Trata-se de texto convencional e bombástico, mas o verdadeiro interes-
se tornou adulta, de modo que nossos vizinhos e os estrangeiros pasmam [com se da obra de Fokkens está na minuciosa descrição dos prazeres mundanos
o fato de] que em tão poucos anos Amsterdã tenha chegado a conquistar tão que Amsterdã oferece. Além do habitual levantamento de edifícios e monu-
gloriosas riquezas" . 21 Há nisso boa dose de gabarolice de adolescente, em mentos públicos, ele apresenta uma lista de ruas e bairros especializados em
grande parte enfatizando os aspectos mágicos da transformação de "lama e determinados artigos, como se estivesse se dirigindo pessoalmente ao possí-
lodo" em "pérolas e ouro". Obviamente, os amsterdameses apreciavam (e vel comprador. (De fato, uma novidade da visita de Maria de Médicis em 1638
ainda apreciam) a natureza paradoxal de seu hábitat, captada no famoso verso foi sua excursão pelas lojas de Amsterdã, onde, dizia-se, ela pechinchou com
"às avessas mastros de madeira [as colunas sobre as quais se construiu a cida- os comerciantes como verdadeira especialista.) No Nieuwe Brug, diz Fokkens,
de] [ ... ] pântanos cheios de pedras, sacos repletos de ouro". Também gosta- encontram-se livrarias, papelarias, lojas de artigos náuticos, como mapas, sex-
vam de gabar a ampla variedade de seu comércio: tantes, diagramas. Na mesma área, podem-se encontrar lojas de ferragens, tin-
Que existe que não se encontre aqui? turarias e boticas com preciosos e arcanos remédios da Palestina, Grécia e Egito.
Grãos, vinho francês ou espanhol, Na ilha de Bicker, no Ij, há fornecedores de suprimentos para navios e refina-
Qualquer produto das Índias que se procure rias de sal; no canal Singel, o mercado para onde os sitiantes granjeiros levam
Em Amsterdã pode-se comprar. seus produtos hortícolas, transportados em barcaças, e onde atracam os pa-
Aqui não há fome [ ... ] a terra éfarta.22 quetes costeiros que chegam de Flandres e Zelândia. No Nes, estão as famo-
sas confeitarias e padarias; na Kalverstraat, lojas de gravuras e armarinhos; na

300 301
Halsteeg, sapateiros e fabricantes de calçados. A Warmoesstraat, o antigo co- ornamentação variava nas diferentes regiões do país. Nas cidades dc Frísla e
ração medieval da cidade, que ligava as velhas docas e os cais do Ij com o Zelândia que abrigavam mercados, seria considerado sacrilégio ostentar riqueza
Dam e o Rokin, era o centro têxtil de tecidos e móveis, apinhado de lojas de de formas que em Amsterdã passavam despercebidas. Apesar das variações,
todos os tamanhos. Em duzentas casas, Fokkens observa, há 230 tabuletas (o contudo, obviamente essa não era a austera cultura de negação do prazer pre-
uythangboord tornou-se arte decorativa tão popular em Holanda que livros
sente no clichê histórico. Na verdade, parece bastante provável que o merca-
inteiros foram consagrados a coligi-la) . 21 Na cornucópia da Warmoesstraat, o do de artes decorativas e aplicadas fosse mais desenvolvido nos Países Baixos
comprador dedicado podia adquirir porcelana de Nuremberg, maiólica da Itália que em qualquer Outro país europeu em meados do século xvii. Se é verdade
ou faiança de Delft; sedas de Lyon, tafetá da Espanha ou linho de Haarlem que os espelhos venezianos, os tapetes turcos, as sedas persas e a laca japone-
magnificamente alvejado. sa eram reexportados, também é verdade que o mercado interno era fervi-
Quanto mais atraente e suntuoso é o artigo, mais lírico se torna o texto lhante, sobretudo na segunda metade do século. Na realidade, a procura se
de Fokkens. Ele destaca um artesão, Dirk Rijswijk, por sua prodigiosa criação alastrara pelas camadas inferiores à elite milionária, de modo que as oficinas
de mesas de "pedra de toque" escura marchetada com desenhos de madre- de Amsterdã produziam imitações, sobretudo de espelhos e caixas de laca,
pérola. As tulipas e rosas criadas por Rijswijk eram tão belas, diz Fokkens, que a preços mais acessíveis. Na Família tocando música (1663), de Pieter de
nem o pintor mais habilidoso poderia competir com elas em detalhe e Hooch, é impossível distinguir os artigos mais requintados dos produzidos
brilho. 25 em Amsterdã, conquanto em outros aspectos a sala seja transcrição visual de
A alegre vulgaridade do "guia" de compras é reforçada pelo hábito de uma descrição de Fokkens. No alto do armário de carvalho há vasos de por-
Fokkens de eventualmente anotar preços e valores. Naturalmente, o que mais celana Kang-hsi; e o tapete sobre a mesa aparentemente é procedente de uma
o empolga são os valores altos e a suntuosidade, que ele cita para impressio- igreja da Transilvânia. 28 A parede do fundo está coberta de tapeçaria, e à es-
nar seus leitores provincianos e talvez para anunciar os preços correntes das querda há um pórtico interior de mármore com colunas coríntias e volutas
casas mais elegantes de Amsterdã. A casa de Wouter Geurtsen, no Rokin, era jônicas. A menina que está no aposento vizinho usa uma versão do traje bri-
tão imponente que foi alugada por 1600 florins. Mais além, no Prinsengracht, lhante e caríssimo da mãe. Como certamente se tratava de encomenda, a obra
o aluguel variava entre 1200 e 1500 florins. Foi, porém, para o endereço mais não hesita muito em exibir riqueza.
elegante de todos, o Herengracht, que Fokkens reservou seu aplauso mais Mesmo em casas menos grandiosas, os objetos domésticos nada tinham
entusiástico:
de simples ou modestos. Desde o começo do século XVII, o gosto dos holan-
Aqui, não se vêem casas com lojas abertas; todos os prédios são altos, [ ... ] alguns deses voltava-se para a profusão, o rebuscamento, o detalhe intrincado. An-
com dois andares, outros com três e quatro; às vezes, seus imensos porões estão tes que defensores do classicismo italiano como Salomon de Bray e Pieter Post
repletos de mercadorias. Por dentro, as casas estão cheias de ornatos inestimá- impusessem ao estilo local harmonias mais severas, seus predecessores ma-
veis, de modo que mais parecem palácios reais que casas de mercadores; muitas neiristas como Lieven de Key e Hendrick de Keyser foram capazes de levar
possuem esplêndidas colunas de mármore e alabastro, soalhos com incrustações a excêntricos extremos o velho gosto "flamengo". O elo entre o maneirismo
de ouro e nos aposentos, paredes forradas de valiosas tapeçarias ou painéis de do sul e o do norte era a talentosa família de Vredeman de Vries. Em 1560,
couro estampado com ouro ou prata que valem muitos milhares de florins. [ ... ] Hans Vredeman de Vriespublicou em Antuérpia seu Variae architectura for-
Nessas casas, também se encontram objetos valiosos, como quadros e ornatos orien-
mae, o qual logo se tornou o manual da ornamentação arquitetônica que, a
tais, de modo que o valor de todas essas coisas é verdadeiramente inestimável partir dos Países Baixos, se impôs, na Inglaterra, passando pelo norte da Fran-
- mas talvez seja de 50 mil ou até 100 mil. 26
ça. O livro parecia apresentar os elementos da arquitetura italiana, mas na ver-
Um único aposento, calculava ele, podia conter objetos no valor de 3 ou dade introduzia caprichosas variações onde fosse possível, rompendo fron-
4 mil florins. tões, substituindo por bizarra estatuária exótica colunas das ordens usuais e
Tais estimativas devem ser consideradas com muita cautela, pois resul- fazendo uso abundante do grotesco. Escrevendo em 1608, Karel van Mander
tam muito mais do ingênuo entusiasmo de Fokkens que de um inventário cui- lamentava que "essa rédea é tão solta e essa licença é tão mal usada por nos-
dadoso. No entanto, seu catálogo é menos importante como descrição acura- sos holandeses que no decorrer do tempo surgiu entre eles grande heresia,
da do que pelo que revela sobre as atitudes dos holandeses com relação aos com multiplicidade de adornos e a ruptura de pilastras ao meio e o acréscimo
bens e prazeres terrenos criticados pelo clero. Isso só pode ser caracterizado de pedestais [,1 [e tudo] muito desagradável de ver". 29
como consumismo intenso, que os artesãos não apenas de Amsterdã mas ain- Muitos dos projetos de Hans Yredeman de Vries ficaram no reino da fan-
da de Delft e Haarlem procuravam satisfazer o melhor possível. 27 O gosto pela tasia ou se limitaram a exercícios de desenhistas ou a efêmeros elementos tea-

302 303
trais. Mas a publicação do Verscheyclen scbrynwerck (Marcenaria variada,
1630), de seu filho Paul, em Amsterdã, fez que versões atenuadas dos proje-
tos de Vredeman de Vries para aparadores, camas, armários e pórticos inter-
nos se concretizassem nas oficinas dos marceneiros já no segundo quartel do
século. No retrato de família que De Hooch elaborou em 1663, há bom exem-
plo do armário de carvalho trabalhado que exemplificava os grandes guarda-
roupas holandeses. Nos jardins, onde havia maior liberdade para soltar a fan-
tasia, portões e arcos continuavam ostentando caprichosos frisos, volutas e
recortes. Os ourives de Amsterdã também fabricavam jarras e saleiros de es-
pantosa extravagância, criando as formas onduladas dos estilos "lobulado"
e "auricular" característicos do artesanato holandês desse período. Mesmo
depois que o estilo decorativo maneirista nas artes aplicadas caiu de moda, 143 e 144. ClaesJansz. Visscher segundo Hans Vredeman de Vries. De Verscheyden scbrynwerck
na década de 1670, a ornamentação rebuscada não se ausentou dos salões ho- (Amsterdã, 1630). Bodleinan Library, Oxford
landeses abastados. A ilustração dos prêmios de uma loteria que foi organiza-
da por Henricus van Soest e que deveria estimular a procura por portadores vura, uma sala cheia de "tapeçarias que mostravam os doze meses do ano,
de bilhetes mostra um grupo de cidadãos bem-vestidos a contemplar uma sé- ricamente trabalhadas com ouro e belíssimas; camas com cortinados de velu-
rie fulgurante de artigos de luxo. Entre estes, havia, segundo o texto da gra- do, todos eles com preciosos bordados, e muitas outras camas e divãs, [ ... ]
escrivaninhas e armários admiráveis; diversos trajes finíssimos; e outro assen-
142. Pieter de Hooch, Família tocando música, 1663. Cleveland Museum of Art
to de pereira ou incrustações de prata e ouro; e ainda outras raridades" 30 To-
dos esses tesouros, o texto sugere, constituíam apenas parte dos prêmios
oferecidos.
Os prêmios de loteria fornecem alguma indicação dos artigos de luxo
mais cobiçados pela burgerij holandesa. A loteria oferecia rara oportunidade
de adquirir tais tesouros, sem atrair o opróbrio que o desejo de ouro e prata
costumava suscitar. Eram ocasiões cívicas, geralmente organizadas pela ma-
gistratura local a fim de arrecadar fundos para algum propósito caritativo
ou público do município. Em Amsterdã, por exemplo, realizou-se uma lote-
ria em 1601 para construir um manicômio novo; em 1606, a Câmara de Re-
tórica Pellikanisten (Pelicanos), de Haarlem, organizou uma loteria com a ajuda
de irmãos retóricos para construir novo asilo de velhos. A loteria contava
com a sanção oficial dos Estados de Holanda e Zelândia e com as bênçãos
da Igreja Reformada, por ser uma forma de doação caridosa. 3 ' Também era
controlada com rigor e publicamente, tomando-se imenso cuidado para evi-
tar fraudes: criavam-se comissões especiais para garantir que os prêmios fos-
sem de fato encomendados aos ourives. O sorteio, que às vezes se estendia
durante semanas, processando-se dia e noite, ocorria em lugar público bem
visível, onde os cidadãos podiam vigiar tudo. Era acontecimento bem carac-
terístico da engenhosidade holandesa (embora tivesse surgido muito antes,
em Flandres do século xv), pois na ocasião os mais impudentes desejos mun-
danos eram manejados para fins religiosos. O próprio princípio do sorteio
ia ao encontro dos critérios humanistas e calvinistas referentes à distribuição
dos benefícios divinos, exemplificando ou os caprichos da Fortuna ou a
atribuição predestinada de um quinhão, dependendo da inclinação reli-
304 305
giosa de cada um. Uma gravura de Claes Janszoon Visscher exemplifica esse
delicado equilíbrio moral entre religiosidade e cobiça. A gravura foi elabora-
da provavelmente para atrair doadores de Haarlem e Amsterdã para a loteria
organizada em 1615, com a finalidade de construir novo asilo de pobres em
Egmond-op-Zee. Conforme esclarecia o folheto da lotterij-kaart, esse vilare-
jo pesqueiro sofrera duplamente com as devastações causadas pela guerra e
pelas inundações, e grande número de suas viúvas e órfãos pobres ficou sem
ajuda. A gravura de Visscher mostra duas pessoas necessitadas em atitudes
de adequada modéstia e humildade. De maneira incoerente para os olhos mo-
dernos, mas evidentemente não para o holandês do século xvii, os futuros
beneficiários da caridade exibem a gravura dentro da gravura - a própria
lotterij-kaart, com uma ilustração da Gasthuis acima de uma profusão de prê-
mios: taças cinzeladas, saleiros, copos e canecas. Embora não fosse incomum
incluir anuidades ou até ações de companhias autorizadas ao lado dos prê-
mios mais palpáveis, esses utensílios preciosos geralmente constituíam a maio-
ria. Na loteria realizada em 1662 em benefício dos pobres da cidade zelande-
sa de Veere, por exemplo, houve seis prêmios principais e 828 secundários,
bem como bonificações especiais para "o moto mais bem rimado e mais bre- 1592. Museu Histórico de Amsterdã
146. Gillis Coignet, Sorteio de loteria na "Rússia",
ve"(sendo proibidos os textos indecentes) Os seis primeiros prêmios eram
. 32

os seguintes: 147. Claes Jansz. Visscher, bilhete de loteria de Egmond-aan-Zee, 1615

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145. Bilhete de loteria, década de 1660. Bodleian Library, Oxford

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306
Primeiro: um serviço de mesa em prata, composto de pratos, travessas, jarras, pos com belas roupas e jóias e suas casas com belos objetos de arte e móveis
canecas, castiçais e [surpreendentemente] garfos, bem como outras peças, no va- - embora esses últimos custassem mais barato que os primeiros. Por exem-
lor de 4 mil florins plo, em 1612 Pieter Stael, pintor de Delft que pertencia à ala gomarista mais
Segundo: uma corrente de ouro no valor de mil florins, mais 2 mil florins em ativa na cidade, concordou em elaborar uma Sodoma e Gomorra em troca
dinheiro de uns calções listrados de vermelho e enfeitados com passamanaria. 34 Um
Terceiro: uma jarra e um copo de prata no valor de seiscentos florins, mais 1400 século depois, o inventário da casa de Remmert Clundert, comerciante de Ams-
florins em dinheiro terdã, elaborado por ocasião de sua falência, incluiu como o artigo mais caro
Quarto: uma cesta de prata para pão (trezentos florins), mais mil florins em
dinheiro um roupão de damasco azul avaliado em 95 florins.35 Mesmo quando se tra-
Quinto: três castiçais de prata, cada um no valor de cem florins, mais quinhen- tava de traje em preto-e-branco, em deferência às restrições dos pregadores,
tos florins o preto geralmene era cetim ou veludo, às vezes discretamente adornado de
Sexto: dois espelhos, cada qual no valor de cem florins, mais duzentos florins pele de animal. O branco teria sido renda ou linho de Haarlem ofuscante pela
alvura. Se o piso se compunha de losangos pretos e brancos, o material utili-
Os prêmios menores consistiam em doze punhos de espada e de adaga zado na maioria das vezes era o mármore. Naturalmente, esse era o estilo dos
feitos de prata; taças e copos variados para vinho; jarras de prata para óleo; ricos, mas não há motivo para imaginar que, dispondo dos meios necessários,
saleiros; baldes de gelo; e (a 24 florins cada uma) anáguas. os que se situavam mais abaixo na escala social se comportassem de modo
Trata-se de amostra bastante característica dos prêmios oferecidos nas lo- diferente. Quando o pequeno lojista se tornava grande comerciante ou o co-
terias mais modestas. Os eventos maiores em Amsterdã e Middelburg e o merciante se tornava proprietário de terras e passava a viver de rendas, am-
mais grandioso de todos, que se realizara em Antuérpia no século anterior - bos adotavam as maneiras do grupo superior a eles, e sua cupidez crescia na
chegavam a centenas de milhares de bilhetes e a extraordinário catálogo de mesma proporção.
prêmios. Parece que as loterias holandesas propriamente ditas foram extin- Se de modo geral não se considerou o consumo dos holandeses conspí-
guindo-se no final do século xvii e acabaram institucionalizando-se como for- cuo, isso talvez se deva ao fato de que na Renascença e no Barroco o consu-
ma convencional de levantar dinheiro extra; mesmo assim, a lista de prêmios mo conspícuo era associado à cultura da corte ou ao estilo italiano de ostenta-
que citamos constitui testemunho eloqüente do amplo entusiasmo popular ção cívica. Na verdade, sempre houve nos Países Baixos rica tradição de "es-
pela opulência providencialmente distribuída. A loteria parecia ser oportuni- banjamento ritual", que se tornou mais complexa sob influência da cultura
dade para a equiparação ocasional de bens preciosos. Na verdade, como não borgonhesa nos séculos xiv e xv. Antuérpia quinhentista - onde esse idio-
havia limite para o número de bilhetes que cada um podia comprar, os ricos ma neerlandês de exibição cerimoniosa atingiu o auge nas procissões omme-
tinham maiores probabilidades de aumentar sua fortuna do que os pobres. gangen dos dias dos santos e nas competições landjuweel das câmaras de re-
No entanto, os livros de participantes de algumas loterias que chegaram até tórica - nada devia, em ostentação, a suas réplicas meridionais, 36 Amsterdã,
nós deixam claro que todo tipo de condição e posição social fazia os maiores por sua vez, herdou essa paixão da pompa e circunstância pública e satisfazia-
esforços para adquirir o maior número possível de bilhetes, pagando não só a plenamente nos desfiles das companhias das milícias scbutter ou nos ban-
com dinheiro mas com todo tipo de artigos. O pintor Maarten van Heems- quetes, fogos de artifício e apresentações teatrais ao ar livre que assinalavam
kerck - que estava muito preocupado com o tema da riqueza - ofereceu fatos históricos.
um de seus quadros, um Adultério de Marte com Vênus, a fim de adquirir Contudo, o cenário mais importante e eficiente no qual o patrício holan-
cem bilhetes para a grande loteria de Middelburg de 1553. 33 Outras pessoas dês exibia sua riqueza era sua própria casa. É no interior das casas ao longo
também levavam coisas ligadas a sua ocupação. Lavradores ofereciam cabe- dos canais que o historiador deve olhar a fim de julgar se os exageros de Pok-
ças de gado, queijos, cavalos e carregamentos de turfa. Comerciantes ofere- kens e Mandevilie têm relação com a realidade. Até suas proporções globais
ciam lã e linho, tonéis de cerveja ou de vinho ou, num caso, um saco de cabe- e a aparência exterior guardam alguma semelhança com residências italianas
los. Armas, botas, peças do vestuário: tudo era aceitável. Alguns dos objetos e francesas. Todavia, enquanto a dimensão mais extensa dos palazzi venezia-
utilizados na aquisição de bilhetes - como jóias ou tapeçarias - sugerem que nos estava na fachada paralela ao canal, a das casas holandesas posicionava-se
para o comprador mais abastado a loteria era um jogo calculado em que espe- em ângulo reto com relação ao canal. Limitações de espaço em cidades que
rava trocar artigos de luxo menos valiosos por outros de maior valor. se superpovoavam rapidamente, como Leiden e Amsterdã, foram em parte
Tudo isso indica que os holandeses não eram mais imunes às tentações responsáveis pela convenção segundo a qual a profundidade devia ser maior
da opulência que outras culturas renascentistas e barrocas. Parece que os ser- que a largura. No entanto, o gosto holandês e o legado de residências muito
mões calvinistas não os impediram de gastar à vontade para adornar seus cor- menos pretensiosas do final da Idade Média condicionaram uma preferência

308 309
pela ostentação no interior das casas. Mesmo quando Amsterdã passou a cons-
truir canais radiais, concebidos para criar caras unidades residenciais, a "me-
dida régia" estabelecida pelos stadsfabriekmeester e pelos patriarcas da cida-
de determinava fachada de uns nove metros contra uma profundidade de
5737 Naturalmente, havia muitas maneiras de arquitetos decididos e seus
clientes evitar ou pelo menos contornar essas limitações. Philips Vingboons
especializou-se na criação de peculiar formato de casa trapezoidal, como a que
construiu na Herengracht 138, em 1638, onde os aposentos centrais e dos fun-
dos eram mais largos que os da frente. No jardim, o terreno tinha quase um
terço da largura da fachada. As famílias que queriam impressionar com uma
frente de proporções imponentes podiam associar-se numa forma primitiva
de condomínio: duas casas separadas no interior e unidas exteriormente por
única e extensa fachada, geralmente emprestada dos livros de Palladio. Em
1642, Jacob van Campen construiu uma casa dessas para os irmãos Baithasar
eJohan Coymans, e em 1662 Justus Vingboons projetou uma ainda maior pa-
ra os irmãos Trip na Kloveniersburgwal. A Trippenhuis (ou huizen) tinha duas
portas de entrada separadas, mas uma fachada contínua, unificada por imen-
sas pilastras coríntias, peitoris ornamentados e frontão único.
Mesmo em fachadas modestas, era possível adornar o espaço entre as ja-
nelas e, sobretudo, o frontão com uma infinidade de esculturas ou de deta-
lhes. A decoração do frontão consistia no escudo heráldico do comerciante,
e os proprietários encomendavam todo tipo de lemas que os promovessem.
Brasões, alusões ao comércio ou mesmo emblemas tirados de bestiários as-
trológicos podiam estar presentes, sobretudo quando o trapgevel (frontão em
degrau) se transformou no mais elaborado e profuso balsgevel (frontão de "pes-
coço") em meados do século. Para os irmãos Trip, Justus Vingboons esculpiu
no frontão morteiros cruzados,, proclamando o comércio de armamentos que
fizera a prodigiosa fortuna da família. Arquitetos que também eram pedreiros
e escultores às vezes recebiam a incumbência de criar esculturas para a deco-
ração exterior, como os bustos que De Keyser produziu para a casa de Nico-
las Soyhier na Keizersgracht ou a exuberância dos adornos que concebeu pa-
ra a casa Bartolotti na Herengracht.
A casa Bartolotti é o exemplo mais esplêndido do estilo grandioso das
casas patrícias que sobrevive do início do século xvii (1617-8). O nome ita-
liano da família na verdade não anuncia presença mediterrânea num canal nór-
dico, pois a decoração suntuosa era inteiramente holandesa. Parece que De
Keyser iniciou o projeto para um especulador chamado Keteltas mas concluiu-o
para um diretor da Companhia das Índias Ocidentais e mercador no Levante,
Van den Heuvel, que, atendendo ao desejo de sua sogra, batizou a casa com
o nome do falecido sogro, um calvinista originário de Bolonha - e em troca
recebeu substancial legado. 38 Em sua época, era a última palavra em magni-
ficência de três andares.
Um inventário elaborado em 1665, por ocasião da morte de Jacbba van
Erp, nora de Van den Heuvel/Bartolotti, permite reconstituir a forma e o con-
148. Hendrick de Keyser, A Casa Bartolotti. Foto: cortesia do dr. G. Leonhardt
310
teúdo da casa. 3 ' O surpreendente documento mostra que os mais suntuosos estava repleta de arcas de carvalho e cadeiras de nogueira, gaiolas, mapas, gra-
interiores pintados por Metsu e De Hooch na verdade diminuíram a qualida- vuras e desenhos de Amsterdã. Os andares superiores ostentavam salas de vi-
de e a quantidade de objetos que abarrotavam a casa do holandês patrício. sitas e aposentos íntimos de igual opulência, cheios de excelente mobília, te-
Ao contrário do piano nobile veneziano - e, na verdade, ao contrário cidos caros, camas trabalhadas e numerosas obras de arte. Evidentemente, a
da maioria das casas patrícias da era Van Campen/Vingboons -, os aposentos casa Bartolotti era característica apenas da elite mais endinheirada, conquan-
mais imponentes situavam-se no andar térreo. A porta toscana de De Keyser, to as residências das famílias dominantes geralmente não fossem decoradas
com arco rústico, abria-se para um saguão (voorbuis) quase quadrado, espa- com maior modéstia. A Huydecopers, junto ao Singel, a monumental mansão
çoso, onde se viam dois mapas das possessões das Índias Ocidentais, anun- que Vingboons construiu para loan Poppen no Kloveniersburgwal, com seu
ciando a ligação de Bartolotti com a Companhia. No mesmo saguão, havia ainda "salão nobre" de doze metros, a casa de Van Nij na Keizersgracht e as dos
vasta paisagem e doze outros quadros, acúmulo de decoração visual caracte- Bicker, Corver, Backer e Valckenier - todas competiam entre si em esplen-
rístico de todo o conjunto da casa. O modesto dormitório da viúva Van Erp, dor. Nem o grau nem o tipo de envolvimento religioso pareciam afetar o esti-
por exemplo, continha doze quadros, e num dos quartos das criadas havia lo de vida dos patrícios. Poppen converteu-se ao catolicismo e transformou
sete - somando esses últimos apenas um florim, segundo a estimativa do seu salão nobre em capela. Regalando-se em seu palácio, Bartolotti/Van den
avaliador. 40
Heuvel pertencia ao grupo calvinista mais militante da cidade e mandou pre-
O mobiliário do voorbuis era bastante escasso, como convinha a um lo-
gar na parede externa uma placa com os dizeres Religione et probitate. Fac-
cal de espera: um espelho, um banco de madeira, um aparador de carvalho
e oito cadeiras de couro vermelho. A zijkamer, ou câmara lateral, à esquerda ções adversárias se encontravam na loja de tecidos ou na oficina do ourives.
do saguão, era mais confortável. Tinha nas paredes painéis de couro estampa- É muito mais difícil estabelecer com certa margem de segurança os pa-
do a ouro e dispunha de um armário das Índias Orientais; uma mesa redonda drões de consumo das "camadas médias" - negociantes, pequenos funcio-
de nogueira coberta com tapete turco, em estilo tipicamene holandês; um apa- nários, notários -' que levavam vida confortável mas não luxuosa. Testamen-
rador também de nogueira; doze cadeiras; e um armário menor. Havia ainda
um cravo, sugerindo que ali seria a sala de estar da família, usada para saraus
musicais. Além dos painéis de couro, pendiam da parede quinze quadros e
grande espelho com moldura de ébano. Na zijkamer da direita, havia tapeça-
rias avaliadas em 900 florins tax (quase o valor de uma casa inteira para um
pequeno comerciante). No mesmo cômodo, havia doze cadeiras, entre as quais
quatro poltronas forradas com a mesma tapeçaria, uma mesa redonda de éba-
no, outro espelho grande e um aparador de ébano que continha "o mais fino
e melhor serviço de mesa", indicando que ali se situava a eetsaal (sala de jan-
tar), função que já era separada de outras atividades sociais nas casas holande-
sas. Ao fundo e à direita do voorbuis, ficava o "grande salão", usado para acon-
tecimentos mais formais e festivos, com longa mesa de carvalho, doze cadei-
ras estofadas de veludo vermelho, outro espelho com moldura de ébano e
cortinas de sarja vermelha nas janelas. Acima da lareira, havia um quadro da 149. Bebedouro, final do
século xvii, Casa Bartolotti.
Natividade, tendo de cada lado anjos de madeira e embaixo a grande placa Foto: cortesia do dr. G.
de ferro da lareira. Nas paredes, retratos dos filhos e de vários príncipes de Leonhardt
Orange. O quarto da viúva, também situado no térreo, apresentava decora-
ção mais antiquada, porém era muito gezellig [aconchegante]. Tinha três cor-
tinas, extensa mesa de carvalho, outra mesa retangular coberta com tecido
listrado, quatro poltronas, quatro cadeiras de madeira, um atril para a Bíblia,
um armário, um espelho octogonal com moldura de tartaruga e ébano, um
enorme divã com pés de ferro em volta, uma cama e uma espineta.
Esse é apenas brevíssimo resumo de extenso inventário de bens. Mesmo
no térreo, a lista não inclui a longa galeria que cruza a largura da casa e que

312 313
tos e contratos matrimoniais, inventários detalhados, estão nos arquivos no- Essas casas relativamente modestas podiam conter bom mobiliário, cujo
tariais da maioria das cidades holandesas, mas é difícil consultá-los, a não ser custo era baixo em comparação com os padrões de outras sociedades euro-
aleatoriamente, sem indicação prévia da identidade dos clientes . 41 Listas de péias urbanas. Peças de vestuário custavam muito mais. 45 Uma cadeira de es-
bens (às vezes com preços) leiloados em função de bancarrota dos proprietá- paldar reto podia sair por vinte stuivers; uma mesa simples, por pouco mais
rios constituem outra fonte valiosa, embora por definição possam descrever de um florim. O que havia de mais caro numa casa era a cama. As camas mais
estilos de vida atipicamente suntuosos. A pesquisa dessas fontes ainda está no simples, embutidas na parede, custavam de quinze a 25 florins, enquanto as
início, mas os documentos já conhecidos permitem arriscar uma impressão mais adornadas podiam exceder cem florins,, incluindo o dossel e o cortina-
preliminar do tipo de casa dos "remediados". É preciso tomar cuidado para do.46 Famílias mais humildes tinham de satisfazer-se com um único armário
não incluir num só grupo todos os profissionais do mesmo ramo, pois dentro ou só uma cama embutida na parede e bancos rustbank com colchões para
de determinada ocupação qualificada os muito ricos coexistiam com os mui- as crianças e/ou uma criada. Outros móveis caros eram os armários de todo
to humildes. Por exemplo, Frans de Vicq era um médico de Amsterdã rico tipo. Podia-se adquirir uma arca de carvalho por apenas dez florins (o que um
o bastante para ter uma casa "italianizada" espetacular, construída para ele artesão ganhava em duas semanas), mas praticamente todas as famílias cobi-
na Herengracht em fins da década de 1660; já um médico-cirurgião de uma çavam (ou, o que era comum, herdavam) os grandes armários de madeira en-
cidadezinha da província vivia num estilo e numa casa bem parecidos com talhada que constituíam a marca registrada da autêntica prosperidade. Um ar-
os de um comerciane de tecidos ou de um mestre-cervejeiro. Rendimentos mário decente para a roupa de cama (e havia muito para guardar) podia custar
anuais de 1500 a 3 mil florins permitiam uma vida que se pode chamar con- vinte florins novo ou quinze num leilão, e um modelo mais elaborado, em
fortável - quinhentos florins por ano era o rendimento médio de um mestre- nogueira entalhada, podia sair por cinqüenta ou sessenta. Uma peça dessas
carpinteiro de Amsterdã em meados do século. 42 Um comerciante próspero e mais uma arca bastariam para anunciar as credenciais da classe média, con-
compraria uma casa, se não a tivesse herdado, talvez por mil florins e com quanto em inventários modestos seja possível encontrar até três ou quatro. 47
outros mil podia provê-Ia do necessário. Pelo menos duas camas, duas ou três Os artigos "de luxo" mais comuns nas famílias de condição média eram os
mesas, dois ou três guarda-roupas ou armários compunham o mobiliário, ao espelhos, que o clero condenava por estimularem a vaidade diabólica. Eram
qual se acrescentavam cortinas pesadas e algumas de renda, as louças e azule- baratos e onipresentes, uma vez que os vidraceiros e carpinteiros produziam
jos de Delft (obrigatórios), uns doze candelabros, pratos e canecas de latão, cópias de modelos venezianos. Um espelho pequeno podia sair por apenas
prata ou estanho, muitos quadros, alguns livros - pelo menos a Bíblia e as três florins; um emoldurado com ébano ou tartaruga ou ainda cortado em for-
obras de Cats - e uma quantidade assombrosa de roupa de cama e mesa. mato incomum (as molduras octogonais eram populares em meados do sécu-
Certo Ter Hoeven, alfaiate da Prinsengracht, cuja casa foi vendida na pri- lo) custava entre dez e quinze florins.
mavera de 1717, parece-me bastante característico de seu grupo social. Em- A cozinha e a sala de visitas eram, talvez, os cômodos mais bem providos
bora instalado no centro de bairro abastado da cidade, exercia seu ofício em de uma casa holandesa da classe média. Na verdade, panelas e frigideiras eram
casa e provavelmente não a ocupava toda com isso. A lista de seus bens cons- muito caras e geralmente constituíam parte importante do enxoval de uma noi-
titui inventário equivalente a um interior pintado por Jacob Duck ou Quirijn va. Uma caçarola grande de ferro, para cozinhar o butsepot da família, podia
Brekelenkam. Incluía cinco quadros (total avaliado em cinco florins), três me- custar de um e meio florim a dois, e um caldeirão ou uma assadeira saía por
sas, um berço e uma cadeira para criança, livros variados, louças e azulejos uns três florins. As panelas maiores chegavam a cinco florins, mesmo que fos-
de Delft, canecas e travessas de estanho, uma roca de fiar, sete cortinas de sem vendidas em leilão. Nas casas da classe média, o cobre era reservado para
renda, duas camas e um banco com colchão, uma arca de carvalho, um armá- finalidades mais elevadas - um braseiro para aquecer a cama, por exemplo,
rio de roupa branca, várias almofadas, dois espelhos (um quebrado), vinte e que podia custar sete florins; uma chaleira (depois da década de 1680), que
tantas cadeiras (algumas usadas no trabalho), seis jogos de roupa de cama, 41 saía por uns cinco florins. Utilizava-se o cobre também em recipientes que de-
guardanapos e uma gaiola. 43 Uma casa semelhante, pertencente a Jan van Zoe- viam ser leves o bastante para se transportar, como era o caso do doofpot (ex-
len e Neeltje Zuykenaar, cujos bens somados não chegavam a mil florins, era tintor de incêndio), que por isso mesmo custava bastante caro. Outro objeto
ainda mais bem provida. Incluía quatro mesas, dezoito cadeiras para a família obrigatório era o ferro de passar, que custava cerca de três florins. Os utensí-
e outro conjunto para o trabalho, dezoito jogos de roupa de cama, doze toa- lios de mesa usados no dia-a-dia eram de estanho e muito baratos. Podia-se
lhas de mesa e 35 guardanapos, a inevitável louça de Delft e imensa bateria adquirir um conjunto de quatro tigelas e colheres por quatro florins, enquan-
de colheres, garfos, panelas e chaleiras de cobre. Parece que tinha só um li- to oito canecas de estanho com capacidade para um quarto de litro custavam
vro, mas com encadernação incrustada com prata, que valia nove florins . 44 apenas 1,35 florim em leilão (talvez amassadas). Naturalmente, as colheres

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de prata eram bem mais caras, e a posse de qualquer prataria indicava que um exemplar ilustrado da Embiemata de Brune foi vendido por apenas dois
se galgara degrau importante na hierarquia da ostentação doméstica. Uma co- florins e um do Self-strijt de Cats não passou de quinze stuivers. 511
lher podia custar cerca de sete florins em meados do século, e meia dúzia saía O preço das águas-fortes variava muito, conquanto a Gravura de cem J'lo-
por quarenta. O preço dos copos variava muito. Os roemers comuns - as rins de Rembrandt fosse totalmente excepcional. Igualmente variado era o
taças com pé, verdes, douradas ou azuis, tão apreciadas pelos pintores de preço dos óleos sobre madeira ou tela, e em suas avaliações lançadores de
naturezas-mortas - eram surpreendentemente baratos. Constituíam utensí - impostos e leiloeiros levavam em consideração o tamanho e a qualidade da
lios básicos das tabernas e não saíam por muito mais que um florim a dúzia. moldura. Num leilão realizado em Amsterdã em 1681, uma "batalha naval"
Contudo, a resistência e a durabilidade do estanho certamente recomenda- e um "homem com criança e passarinho" alcançaram respectivamente vinte
vam as sólidas canecas que comparecem com freqüência muito maior nos in- e 25 florins, sendo quase certo que tais lances se deveram ao fato de possuí-
ventários da classe média. Taças de vidro especiais, gravadas para noivados, rem molduras douradas. 51 Não era o caso da maioria dos quadros, e sua pre-
aniversários ou datas históricas, custavam mais caro. Saíam por uns cinco flo- sença em muitos inventários, se não na maior parte deles, nos quais o valor
rins e, como as jarras de vinho ou de água, podiam ser ainda mais adornadas dos bens imóveis não ultrapassava mil florins, tende a confirmar a idéia geral
no estilo alemão, acrescentando-se alça e base de prata. O latão era comumente de que na República holandesa as famílias citadinas comumente possuíam obras
utilizado em castiçais, ficando o ferro para as camadas mais humildes e o co- de arte. Parece provável que tais obras fossem tidas mais como peças de arte-
bre para as mais ricas. A louça de Delft aparece com crescente freqüência a sanato, assim como a maioria dos pintores eram considerados artesãos e nes-
partir de meados do século, embora o fato de os inventários usualmente con- sa condição remunerados. 52 Quadros com crianças brincando, paisagens de
terem travessas e pratos de estanho ao lado de porcelana sugira que essa últi- inverno, navios e cenas bíblicas forravam as paredes das casas, assim como
os azulejos decoravam a sala de estar com o mesmo tipo de imagens narrati-
ma em geral se destinava à exposição ou a ocasiões especiais. Os azulejos de
vas ou levemente moralizantes. Como a maioria dos historiadores de arte cor-
Delft constituíam modalidade barata de decoração doméstica. No início do
retamente pensou, as cenas de caserna e de bordel, os interiores humildes e
século, os azulejos policromados que procuravam imitar as cores da maiólica
os retratos de "criadas" parecem ter sido os mais baratos. Num leilão de 1682,
italiana continuavam relativamente caros - um e meio a quatro stuivers cada
um, ou 75 a cem florins o milheiro. No entanto, quando passaram a imitar uma cena rural slagtyd foi vendida por dois florins e dez stuivers, enquanto
uma de bordel (especificada como tal) alcançou somente um florim e dez. 53
a porcelana Ming, os famosos azulejos em azul e branco rapidamente ganha- (Na mesma ocasião, um espelho com moldura de ébano conseguiu dez flo-
ram a preferência de todos, sendo excluídos só das salas e cozinhas muito po- rins!) Paisagens pequenas também podiam custar pouco. Uma vista de moi-
bres. Na década de 1660, podiam ser adquiridos por 25 florins o milheiro, nhos de água - talvez no estilo de Ruisdael/Allaert van Everdingen - obteve
de modo que por algo como o equivalente ao salário de três semanas um arte- apenas um florim, e uma vista urbana, dois. Parece que o preço médio de uma
são especializado podia decorar uma cozinha grande, começando pela base paisagem pequena variava entre três e quatro florins, situando-se a marinha
das paredes, a fim de evitar a umidade. 48 nessa mesma faixa (o que não era o caso de grandiosas batalhas navais). Nas
Por fim, havia os quadros, que eram tão abundantes nas casas da classe décadas de 1670 e 1680, as paisagens em estilo mais nobre e formato maior
média e que tanta surpresa causaram aos visitantes estrangeiros. O comentá- - o estilo "italianizante" de Cuyp ou as cenas de caçada e vida campestre
rio de John Evelyn, em 1641, foi citado com tamanha freqüência que parecia elaboradas por Wouwerman - tinham procura no extremo superior do mer -
referir-se a algo incomum. Na verdade, porém, muitos outros viajantes - Pé- cado e podiam ser muito mais caras. Num leilão de 1681, por exemplo, uma
ter Mundy, Jean de Parival, William Aglionby - observaram mais ou menos paisagem "Bruegelachtig" - com o termo referindo-se provavelmente a Jan,
no mesmo tom que "os quadros aqui são tão comuns que praticamente não e não a Pieter, o Velho - alcançou trinta florins. As naturezas-mortas tam-
há um comerciante mediano que não decore sua casa com eles' , 49No extre- bém variavam muito em tamanho e tema. Estudos fijnschilder esmerados, do
mo mais barato do que foi de fato o primeiro mercado de arte para consumo tipo que Kalf e Van Beyeren popularizaram, podiam chegar a seis ou sete flo-
em massa na história européia, podiam-se comprar gravuras por alguns stui- rins, enquanto quadros menores, focalizando peixes ou flores, saíam por três
vers cada uma ou, o que era mais comum, em lote. Livros de emblemas e his- ou quatro florins. Retratos e cenas históricas (que aparecem com menor fre-
tórias ilustradas também eram relativamente baratos, a não ser quando se tra- qüência a partir de meados do século) eram os mais caros, como se poderia
tava das luxuosíssimas edições in-fólio. (Ver Apêndice 2.) A mais esplêndida prever, alcançando os preços mais elevados os portraits historiés feitos sob
de todas, a que Schipper fez em 1659 de Alie de werken de Cats, foi vendida encomenda. Todavia, mesmo na década de 1680 ainda era possível comprar
num leilão em Zelândia por sete florins e quinze stuivers em 1687. Mais ca- cenas históricas modestas por menos do que custava um espelho elegante e
racterístico, talvez, foi um leilão realizado em Middelburg em 1658, quando por muito menos do que se pagava por um aparador de carvalho. Num leilão

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de 1682, uma 'história romana" obteve apenas cinco florins, e urna "paisa- 1704 conseguiu poupar dois terços. Nesse último ano, recebeu 93 342 fio-
gem com Jacó [Isaac?] e Rebeca", da vasta coleção de François van der Noordt, rins, gastou 19 886 e pagou 10 688 em impostos diretos. Esse sucesso devia
alcançou somente nove florins. pouco a qualquer aversão calvinista ao consumo conspícuo e muito a ilimita-
Em comparação com utensílios de cozinha, pequenas peças de mobiliá- das oportunidades de especular numa época de guerra, quando a procura era
rio e objetos decorativos, a roupa pessoal custava mais caro. Uma tigela de grande e a inflação, alta - não devemos esquecer que ele era recebedor-geral
estanho saía por alguns stuivers, ao passo que uma camisa de mulher chegava das Províncias Unidas. A partir da década de 1680, quando Van Ellemeet e
a um florim. A julgar pelos inventários, parece que as famílias de classe média sua mulher, Maria Oyens, também muito rica, se instalaram numa casa de 15
adquiriam poucos tipos de artigos, mas todos em grande quantidade. Não era mil florins na Lange Vijverberg, no coração de Haia, gastaram à vontade em
raro, por exemplo, uma buisvrouw ter trinta ou mais toucas. O linho engo- praticamente tudo que pudesse favorecer o estilo de vida patrício. Parece que
mado era o tecido típico da família holandesa. Doze ou catorze jogos de ca- só economizaram em criadagem: tinham apenas quatro empregados mas pe-
ma, para duas ou três camas; trinta ou quarenta guardanapos; e até uma dúzia riodicamente compravam novas librés.
de lenços (chamados mais explicitamente "panos de nariz") não eram inco- Suas despesas pertenciam a uma categoria diversa daquelas realizadas pe-
muns. No início do século xviii, o guarda-roupa da mulher de Remmert Clun- los habitantes de Amsterdã. Até seus quadros eram muito mais caros. Van El-
dert, de Amsterdã, incluía treze camisas, cinco saias e três anáguas, além de lemeet contratou Constantijn Netscher por 63 florins para pintar o retrato de
dois vestidos finos de damasco - um preto e outro azul - para ocasiões es- seus três filhos; apreciava a pintura histórica, estendendo-se seu gosto pelo
peciais. Cada uma das saias custou cerca de dois florins; já os vestidos repre- gênero aos mestres setentrionais do século xvi. Uma crucifixão de Frans Flo-
sentaram despesa considerável, tendo sido avaliados em vinte e 95 florins, ris custou-lhe 29 florins. Em 1690, gastou trezentos florins com cortinados
respectivamente. O vestuário masculino saía mais ou menos pelos mesmos para a "sala de jantar superior" e, em 1713, duzentos com quatro poltronas.
preços. Uma camisa custava aproximadamente um florim; um roupão, cerca Em 1702, quando por fim resolveu que sua elevada posição requeria carrua-
de dez florins; e, no final do século, um conjunto de casaca e colete chegava gem com quatro cavalos, desembolsou 2593 florins - soma nababesca para
a quarenta ou cinqüenta florins (sem brocado). 14 Nessa categoria de bens mó- os padrões da época. Adquiria prataria e jóias com igual avidez, custando uma
veis avaliados entre mil e 2 mil florins, os inventários de Amsterdã sugerem baixela de doze peças mais de oitocentos florins. Sua grande fraqueza, porém,
que cerca de dois terços deles se compunham de utensílios domésticos e pe- eram diamantes. A florescente indústria de lapidação sediada em Amsterdã,
ças de mobiliário e um terço era de roupas. Para muitos holandeses da classe bem como o controle dos holandeses sobre os fornecimentos de pedras pre-
média, os confortos do lar constituíam demonstração básica de posição e ciosas - não só diamantes mas ainda esmeraldas brasileiras e safiras das Ín-
fortuna. dias Orientais -, transformou a República no centro do mercado internacio-
Como vimos no inventário Bartolotti, os ricos não faziam economia na nal de gemas, e patrícios como Van Ellemeet não tinham problemas - mo-
decoração de suas casas. O mobiliário mais esmerado preferido no final do rais e materiais - para adquiri-Ias em grandes quantidades. Em 1687, ele pre-
século xvii proporcionava novas oportunidades de consumo conspícuo den- senteou a mulher (cujo dote incluía bom número de jóias) com um diamante
tro de casa. Painéis de couro estampado começavam a ser substituídos por adquirido por 487 florins. Em 1691, empatou quase 2 mil florins num colar
outros de seda ou papel pintado em que podiam figurar cenas campestres no de 21 pedras; em 1696, apenas quinhentos num coração e onze pedrinhas;
estilo de Wouwerman. Tecidos como moiré e cetim substituíram os veludos e 1115 florins, três anos depois, num único bioksteen colossal. Adquiria obje-
e sarjas mais antigos. No entanto, atingido certo nível de riqueza, a necessida- tos de ouro com enorme desenvoltura. Quando lhe roubaram sua bolsa de
de de ostentar a posição exigia um tipo e urna qualidade diferentes de despe- ouro no Haagse Kermis, comprou outra por cerca de duzentos florins, apa-
sa, por mais suntuosa que fosse a casa. Em seus primeiros anos como recebedor- rentemente sem pestanejar.
gera! da República (1685-9), Cornelis de Jonge van Ellemeet tinha rendimen- Naturalmente, a pompa e o brilho de seu estilo de vida correspondiam
to anual de cerca de 20 mil florins e gastava a metade em vários tipos de con- ao tipo de comportamento extravagante que os pregadores e moralistas mais
sumo pessoal 51 Dez anos depois, ganhava mais de 60 mil (aumento fantásti- deploravam. Prodigalidade e gosto pela opulência, preveniam, só podiam le-
co, mesmo para os padrões holandeses) e consumia uns 17 mil. Só em mó- var a um único resultado: enfraquecimento material e moral que inevitavel-
veis, sua despesa anual média dobrou, passando de mil para 2 mil florins, apro- mente culminaria em ruína. O preço da futilidade seriam os velhos horrores,
ximadamente. Em 1699, ele investiu num único tapete o dobro do que paga- tão conhecidos: guerra, invasão, servidão e novo dilúvio punitivo. 57 Essas ad-
va por ano para o caseiro que cuidava de sua propriedade rural. 56 Apesar des- vertências desempenharam papel importante na cultura holandesa, como an-
sa prodigalidade, sua renda sempre aumentava mais rapidamente que suas des- tídoto profético de suas paixões consumistas. No entanto, a idéia de que o
pesas, e, se em 1685 Van Ellemeet economizou a metade do que ganhou, em esbanjamento estava destruindo o patrimônio nacional pertence mais à esfera

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dependendo do ponto de vista moral, podiam ser definidos corno produtivos
do sermão que das previsões econômicas. Tal idéia se baseava no velho axio-
ou improdutivos: propriedade urbana e fundiária (inclusive pântano, para fins
ma mercantilista de que havia determinado estoque de capital que podia
de recuperação ou exploração de turfa), anuidades, títulos provinciais e mu-
destinar-se a fins produtivos ou improdutivos. Altos índices de consumo dis-
nicipais, letras de câmbio e, sobretudo, empréstimos a curto e médio prazo
sipariam os recursos que poderiam frutificar por meio do investimento. To-
feitos para finalidades não especificadas. A carteira típica de um capitalista de
davia, como Mandevilie compreendeu com grande perspicácia, esse não foi
Amsterdã incluiria todos esses investimentos, com proporções que variavam
necessariamente o modo pelo qual as primeiras economias modernas prospe-
de ano para ano e de setor para setor segundo exigiam as necessidades e o
raram. Altos índices de consumo podiam na verdade incentivar o movimento
discernimento pessoal. Por exemplo, nas décadas de 1650 e 1660 Louis Trip
de trabalho e capital e coincidir com a formação de capital. Naturalmente, muita
transferiu capital de empreendimentos comerciais primeiro para ações comer-
coisa dependia do crescimento global da economia, e sem estimativas sobre
ciais e depois, em amplitude e quantidade cada vez maiores, para emprésti-
o produto nacional bruto é difícil avaliar o ritmo desse crescimento. Todavia,
mos públicos e propriedades, que eram negócios relativamente seguros. 63
segundo a visão "pessimista" de um capital cada vez mais aplicado em em-
Portanto, parte da famosa proposição de Max Weber, segundo a qual a
preendimentos não produtivos, a economia holandesa começou a estagnar
ética protestante refreou o consumo favorecendo o acúmulo de capital, não
no comércio e na indústria já na década de 1680.58 Hoje, essa avaliação pa-
parece verdadeira com relação aos Países Baixos, o capitalismo mais formidá-
rece absurdamente prematura. O que começou a desaparecer, lá pelo final do
vel que o mundo até então conhecera. Louis e Hendrick Trip - muitopróxi-
século, foi a vantagem dos holandeses sobre outras nações no tocante a cus-
mos do tipo ideal de magnata do comércio e da indústria que se poderia ima-
tos de construção naval e transporte, mas o comércio no Atlântico, no Levan-
ginar para o século xvii - gastaram um quarto de 1 milhão de florins em sua
te e nas Índias Orientais continuou intenso ao longo do século xviii. Quando
magnífica mansão projetada por Vingboons. Isso, porém, não quer dizer que
a economia holandesa começou de fato a sofrer com a concorrência, foi me-
o calvinismo acatasse mansamente o epicurismo desenfreado. Muito pelo con-
nos em função de um estilo de vida decadente que de circunstâncias exterio-
trário. De um lado a outro da República, ouvia-se sua voz retumbando nos
res: guerra e os custos exorbitantes da proteção imperial. 59
púlpitos, denunciando as iniqüidades da Dama Terra e os sacrilégios da Rai-
Assim, apesar dos estereótipos reinantes, em seu apogeu a economia ho-
nha Pecúnia. Mas com que objetivo e com que efeito? Sua voz avisava mas
landesa não adquiriu o hábito da parcimônia. Há motivo para defini-la tanto
parece que não conseguia refrear. Se não podia refrear, então, conforme We-
como economia consumista e próspera quanto como economia poupadora
ber também argumentou, sancionou o crescimento das riquezas como o sinal
e próspera, pois poupar e consumir não se excluíam reciprocamente. O que
pelos padrões europeus eram rendimentos reais elevados - em grupos so- exterior da salvação?
ciais que iam dos artesãos qualificados aos patrícios que viviam de rendas -
permitia níveis proporcionalmente mais altos de rendimento líquido disponí-
vel para o consumo. No entanto, paradoxalmente, quanto mais se consumia NOS DOMÍNIOS DA RAINHA PECÚNIA
em termos absolutos, menor era a proporção desses gastos em relação aos
Que nível de prosperidade convinha aos holandeses? À primeira vista,
ativos globais. O carpinteiro que ganhava seiscentos florins por ano prova-
diante das condições miserabilíssimas que a Europa vivenciara desde o sécu-
velmente (segundo Posthumus) gastava a metade dessa quantia com alimenta-
lo xiv, a pergunta era absurda. A República era ilha de abundância num ocea-
ção, enquanto Cornelis de Jonge van Ellemeet, com renda anual de aproxi-
no de penúria. Seus artesãos, até mesmos seus trabalhadores não qualificados
madamente 100 mil florins, gastava um terço com a alimentação de sua ca-
e seus agricultores (pois parece errôneo chamá-los camponeses), tinham ren-
sa!60 Entre os dois extremos, as proporções variavam muito, conforme a po-
dimentos reais mais elevados, alimentação melhor e meios de vida mais segu-
sição social e as tendências de cada um. Bens móveis, como jóias e peças de
ros que em qualquer outro país do continente. Todo o infortúnio que parti-
mobiliário, constituíam apenas 10% do ativo de um dos artistas de Delft estu-
lhavam com seus pares sociais de outros lugares era a peste, a qual, contudo,
dados por Michael Montias; já no caso de Boudewijn de Man (que também
parece ter sido um pouco mais branda em Amsterdã que em Londres. Em 1664,
era recebedor-geral), quase um terço do ativo se compunha de "bens de con-
na pior semana da pandemia .que se alastrou por Amsterdã, realizaram-se 1041
sumo duráveis" 61 Nos contratos matrimoniais e inventários das grandes fa-
mílias de Amsterdã em meados do século, jóias, dinheiro vivo e objetos pes- enterros, ao passo que no final do verão de 1665 houve 7 mil sepultamentos
em Londres, cidade que tinha o dobro do tamanho de Amsterdã .64 Ademais,
soais respondiam por algo entre 12% e 25% do ativo fixo. Em 1660, quando
a imigração permitiu que Amsterdã não sofresse nada parecido com as condi-
se casou em segundas núpcias com Catherina Raye, Cornelis Backer tinha quase
ções de recessão existentes em Veneza, que perdeu um terço da população
tanto dinheiro empatado em jóias quanto em especulações comerciais (res-
pectivamente, 6 mil e 7 mil florins) e apenas 3 mil florins em outros tipos de
150. Na página seguinte: Gravura. Igreja Nova no Botermarkt. Bodleian Library, Oxford
investimento .12 Na verdade, grande parte da riqueza consistia em bens que,
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nas pestes terríveis da década de 1630. As riquezas do país pareciam invulne- vaidades constituía a provação diária a que os humanistas erasmianos se sujei-
ráveis aos flagelos que se abateram sobre o resto do mundo com implacável tavam,. Sempre havia o risco terrível de que com isso o mundo os dominasse,
intensidade. O capital gerava capital com surpreendente facilidade; e, longe sobretudo no caso de homens como More, que aceitou um alto cargo, mas
de recusar seus frutos, os capitalistas se regalavam com os confortos mate- era um risco que não podiam evitar. 67
riais que o dinheiro podia comprar. Em meados do século, parecia não haver A sensibilidade dos capitalistas flamengos no século xvi - e seus satéli-
limite, e por certo não havia limites geográficos, para o alcance de suas frotas tes distantes no norte, em Haarlem e Leiden - era, pois, ambivalente. Muito
e a criatividade de seus empresários. Nem bem determinada procura se sacia- dinheiro era gasto em ataques formais, cerimoniais, contra o dinheiro. Em
va ou se exauria, já se descobria outra promissora matéria-prima, e a oferta 1561, o desfile anual pela cidade, o ommegang da Festa da Circuncisão [1?
era monopolizada, a procura estimulada, os mercados explorados no país e de janeiro] organizado por uma de suas câmaras de retórica, foi dedicado ao
no exterior. A maré da prosperidade baixaria um dia? circulus vicissitudinis rerum humanorum - o ciclo fatal das coisas terre-
Esse justamente era o problema. Se alguma vez os holandeses imagina- nas .68 O artista (e especulador da loteria) Maarten van Heemskerck elaborou
ram sua ruína, terá sido não pelas mãos de um vizinho predatório, mas por projetos de oito carros alegóricos e seus séquitos. Em 1564, os desenhos fo-
suas próprias mãos. Podiam provocar sua falência simplesmente por exagerar ram transformados em gravuras e, juntamente com "ordens" relativas ao fes-
em tudo. Seus pregadores incansavelmente lhes lembravam isso, o exemplo tival e que chegaram até nós, fornecem uma descrição detalhada do evento.
de Israel, onde a corrupção de Baal fora o arauto do desastre. O comentário Começando com o triunfo do mundo e passando por riqueza, orgulho, inve-
de Calvino sobre a advertência de Isaías a Társis prevenia que, "se os judeus ja, guerra (ruptura crucial), penúria, humildade e paz, o ciclo é ominosamen-
querem aprender a submeter-se a Deus, precisam despojar-se de sua rique- te retomado enquanto a paz origina riquezas no "triunfo" final . 69 Só o Juízo
za- . 65 A idéia de que se sua taça transbordasse derramaria em inundação pu- Final de Deus podia interromper o ciclo fatal - e, curiosamente, Van Heems-
nitiva estava profundamente arraigada no folclore nacional. Quando William kerck não deixou nenhum projeto sobre sua representação. O tema era um
Aglionby, esse connaisseur da abastança dos holandeses, visitou as prósperas velho favorito dos humanistas, mas por certo os cidadãos de Antuérpia não
aldeias do Betuwe, no sul de Holanda, percebeu que os agricultores falavam podiam deixar de perceber a relação imediata com seus próprios interesses
das grandes inundações do século xv como se tivessem ocorrido na véspera. e preocupações. Um século depois, pastores e moralistas continuavam a ad-
Em seu discurso, havia um tom de medo, uma versão rústica do pessimismo vertir e profetizar em termos idênticos.
humanista. Aglionby ouviu atentamente, embora sua mentalidade baconiana Dentro dessa cronologia humanista cristã, a riqueza evidentemente de-
se divertisse com aquela irracionalidade engraçada: "Acontece com freqüên- sempenhava papel importantíssimo. O segundo carro triunfal representava a
cia que, quando ignoramos a causa de uma coisa, tendemos a atribuí-Ia a algu- Opulência a dominar a Fama, acompanhada de todos os atributos indesejá-
ma força invisível, sobrenatural, como a nossos pecados, que provocam a ira veis e usuais de sua vitória. Seu cocheiro era o Embuste, seus corcéis a Fraude
de Deus; assim, alguns têm dito que esses vilarejos foram inundados porque e a Rapina, seus servidores a Usura, a Tradição e a Luxúria. Atrás do carro
fizeram mau uso de suas grandes riquezas, não usavam senão esporas de ouro e adiante do Vão Prazer (Vana Voluptas), caminha a figura da Falsa Alegria,
e viviam em grande luxo" 66 lançando as bolhas de sua efemeridade. Na verdade, caminharia direto para
Assim, parece que as riquezas causavam desconforto e que a abastança a iconografia da especulação capitalista - essa feira da bolha que explode.
convivia com a ansiedade. Essa síndrome, ao mesmo tempo estranha e fami- lija Veldman propôs convincentemente estreita relação entre esses temas
liar à sensibilidade moderna, não se originou com a Reforma nem era exclusi- e a literatura moralizante de Dirck Volkertszoon Coornhert. 71 Na verdade,
va dos Países Baixos. A crítica que os romanos estóicos fizeram ao luxo e à Coornhert foi uma das ligações cruciais entre o humanismo moralizante de
avareza (codificada nas leis suntuárias italianas a partir do século xiii) e os re- Flandres, o papel social da magistratura dos Países Baixos e seu deslocamento
petidos ataques dos franciscanos à riqueza da Igreja e dos laicos foram incor- para Haarlem e Amsterdã. Sua Comedie van de r(/cke man (A comédia do ho-
porados ao humanismo setentrional. No entanto, ao atacar a futilidade das ri- mem rico), publicada em 1550, e as críticas insistentes de sua Zedekunst dat
quezas e dos poderes mundanos, Erasmo afastou-se da tradição quietista de is wellevenskunst (a Arte da moral, a Arte de viver corretamente) - depois
recolhimento que conhecera no mosteiro dos agostinianos em Steyn. Tam- das obras de Erasmo, a Bíblia dos humanistas holandeses - estavam de pleno
pouco o atraía a tradição franciscana de pureza mendicante. Sua crítica da ri- acordo com a polêmica formal contra a opulência. De fato, muitas das diatri-
queza não admitia a fuga das provações do mundo material; ao contrário, im- bescontra a riqueza ultrapassavam as críticas aos excessos suntuários ou à ava-
punha o encontro com elas. O novo miles Christianum, o cavaleiro cristão, reza e à usura para atacar o próprio etos pecuniário. Em Roerspel der ketters-
devia enfrentar seus inimigos - cupidez, lascívia, orgulho e vaidade - cara che werelt (1550), de Coornhert, o Homem Comum figura vestido como rico
a cara na arena do cotidiano. Sair para o mundo a fim de melhor dominar suas mercador e é convertido pelo Dinheiro à crença de que a riqueza pode adqui-

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xo de desaprovar a cobiça. Como Erasmo, Coornhert estava empenhado em
martelar suas lições de moral na cabeça das crianças de todas as classes sociais
e esclareceu que a Zedekunst não se destinava a eruditos, mas sim a "pessoas
incultas, porém desejosas de aprender". 72 Outras gravuras com temas seme-
lhantes - por exemplo, a imagem do capitalismo como guerra total, A bata-
lha dos cofres e dos sacos de dinheiro, de Pieter Brueghel, o Velho, ou O mau
uso da prosperidade, série de xilografias concebidas por Cornelis Anthonis-
zoon - naturalmente visavam a um público popular.
Nada disso é incompatível com a noção de que, enquanto o catolicismo
humanista continuava dificultando a afirmação de valores capitalistas, a ética
protestante abria espaço para eles. Todavia, mesmo que, corno Weber asse-
gura, o clero calvinista tivesse permitido que isso acontecesse acidentalmen-
te, com certeza não é o que se evidencia no teor das observações dos prega-
dores sobre o lugar do dinheiro na vida cristã. Na verdade, parece ininterrup-
to o fluxo de invectivas contra a riqueza de Flandres a Holanda, de Antuérpia
a Amsterdã. Conquanto no fim não houvesse lugar para Coornhert na Repú-
blica reformada, seus ensinamentos se imprimiram nas maneiras das pessoas,
mesmo estando elas ocupadas em fazer fortuna. Tampouco se pode julgar que
o clero calvinista fosse neutro nesse assunto, deixando que o caráter sagrado
151. Philips Gaile segundo Maarten van Heemskerck, 1 563, Divitum misera sors. Kress
Library, Harvard University
152. Jan Galie segundo Pieter Brueghel, o Velho, A batalha dos cofres e dos sacos de
dinheiro. Kress Library, Harvard University
rir a salvação física e espiritual. Depois, a Falsidade lhe ensina que os meios
de obtê-la são (naturalmente) o logro, a usura e o roubo. 71 Esse ataque à na-
tureza odiosa da riqueza é ainda mais inequívoco em outra série de desenhos
elaborada por Heemskerck sob a inspiração dos ensinamentos de Coornhert,
a Divitum misera sors (O infeliz quinhão dos ricos), gravada por Philips Gal-
le em 1563. A imagem é de um desfile, que pode ter sido organizado por uma
câmara de retórica para edificação pública. Começa com um homem rico ten-
tando inutilmente entrar no céu, enquanto se providencia um camelo para
passar pelo buraco da agulha. A terceira estampa mostra figuras que encar-
nam os malefícios da riqueza - Luculo, Crasso, Creso e Midas -' com os res-
pectivos atributos de sua loucura. Na quarta, a Rainha Pecúnia, Regina Pecu-
nia, é vista em seu carro, puxado pelo Medo e pelo Perigo, guardando o La-
trocínio sob o manto. Atrás dela, a Estultícia fita a Pandemia - a figura de
"todos os povos", que equilibra o mundo na cabeça, com a cruz e a cornucó-
pia invertidas, enquanto o Roubo lhe surripia a bolsa.
Muitos desses temas simbólicos - a efemeridade da bolha, o roubo do
vaidoso e tolo, a loucura da Dama Terra e o despotismo da Rainha Pecúnia
- tiveram vida extraordinariamente longa na cultura verbal e visual dos Paí-
ses Baixos. Apesar de sua riqueza alegórica, esses símbolos não constituíam
meras fantasias destinadas a uma elite letrada e ociosa que podia dar-se ao lu-

326 327
da "vocação" e a incerteza de pertencer ao número dos eleitos estimulassem tos humanistas e cristãos tradicionais: tratar os outros como gostaria de ser
o capitalismo. Os pregadores não ficaram parados enquanto o Bezerro de Ouro tratado; "honra antes do ouro"; honrar os compromissos; sempre agir no In-
se erguia por entre as tendas de Israel. Longe de endossar tacitamente o capi- teresse da pátria - Vaderland - "pois os homens também precisam saber
talismo financeiro, os sínodos gerais holandeses fizeram de tudo para procla- que nasceram uns para os outros, já que nos ensinaram que a comunidade
mar sua desaprovação. Um decreto de 1581 excluía dos ofícios religiosos os deve progredir mediante a troca de nossos dons [isto é, bens] [...]
e mediante
banqueiros, acrescentando uma lista de outras ocupações duvidosas - pe- nosso conhecimento, habilidade e empenho' '
nhoristas, atores, malabaristas, acrobatas, charlatães e proxenetas - que não Assim, a integridade religiosa e a comunidade - não o indivíduo, muito
estavam habilitadas a receber a graça divina. As esposas desses profissionais menos sua ansiedade quanto a fazer parte do número dos eleitos (assunto so-
podiam participar da Ceia do Senhor, mas com a condição de que declaras- bre o qual as seiscentas páginas de Udemans não se pronunciam) - eram os
sem publicamente repudiar a atividade dos maridos! A família partilhava a má- árbitros da conduta comercial correta. Mesmo com relação a assuntos como
cula e só obtinha permissão para participar das funções religiosas depois de a pobreza, essa obra tipicamente calvinista adotou linha tipicamente huma-
uma declaração pública de aversão ao manuseio do dinheiro. Apenas em 1658 nista e tradicional. "Que o comerciante tenha por máxima: a honra acima do
os Estados de Holanda convenceram a Igreja Reformada a retirar essa humi- dinheiro, pois mais vale ser homem pobre que mentiroso. { ... ] Pois um ho-
lhante proibição imposta aos banqueiros. mem honrado é e sempre será cidadão, mesmo que seja pobre; mas, se sobre-
Se os banqueiros continuavam sob a suspeita de prática usurária, o calvi- vive à própria honra, é um tormento.' '76 Para muitos clérigos calvinistas, um
nismo holandês considerava a possibilidade de um comerciante cristão não capitalismo verdadeiramente cristão era pura quimera - e passaram muito
constituir uma contradição Vários tratados procuraram conciliar comércio mais tempo denunciando o ganho que louvando-o. Choviam sobre abastadas
e religião, sendo o mais importante deles Geestelijke roer van 't coopmans congregações sermões que opunham explicitamente a ganância profana à hu-
schip, de Godfried Udeman, um pastor de Zelândia. Já que essa obra extensa mildade dos eleitos. Seus efeitos, porém, sempre foram duvidosos. Em 1655,
abordava a missão religiosa nas Índias, a conduta de marinheiros e oficiais na Simonides, pregador de Haia, criticou os negociantes hipócritas cuja devo-
frota mercante e na de guerra e o comportamento cristão com respeito a in- ção terminava na porta da igreja. "Quando sai da igreja e vai para casa, apa-
fiéis como os turcos, seu título, que contém um trocadilho, significa ao mes- nha o Livro Sagrado de Deus para meditar sobre o sermão? Não. Ao contrá-
mo tempo "O guia espiritual do comércio (koopmanschap)" e "O guia espi- rio, pega o jornal do dia e se ocupa com os cálculos de juros e liqüidações
ritual do navio do comerciante". Num exame superficial, parece que o livro de dívidas. Seria melhor que no Dia do Senhor prestasse contas sobre si mes-
foi escrito para defender a tese de Weber, com seu frontispício de um tetra- mo e, em vez de contar seu dinheiro, contasse seus pecados." 77 Jacobus
grama benigno reluzindo na Bolsa de Amsterdã e seu objetivo declarado de Lydius também investiu contra os "loucos por dinheiro" e os "atos de esper-
apaziguar a consciência intranqüila do comerciante mostrando-lhe o caminho teza, trapaça, fraude e maldade" comuns entre comerciantes que "pecam con-
do bem. 73 No entanto, sua definição da "justa" prática comercial continha
tra o velho nome da honra" 78 Outros se irritavam com a presença do ouro
tantas proibições e escrúpulos tradicionais que, no fim, não era mais permis- dentro da própria igreja, sob a forma de Bíblias ricamente encadernadas ou
sivo do ponto de vista econômico que os textos humanistas clássicos - Cíce-
de bancos extravagantemente decorados. Até mesmo as galerias dos órgãos
ro, Sêneca e os estóicos -, citados tão amplamente quanto as Escrituras. NãÕ
eram esquadrinhadas em busca de adornos indesejáveis .79 Trigland, em Ams-
havia espaço para a mobilidade vertical, por exemplo, proibindo-se o peque-
terdã, exasperava-se sobretudo com a ostentação leviana de suas congrega-
no comerciante de emular o "grande comerciante", sob pena de cometer o
ções, com brincos suscitando-lhe a cólera. "Como pode o povo de Deus an-
pecado da inveja. A inveja, nem é preciso dizer, constituía a chama da con-
corrência. O risco excessivo era condenado como esbanjamento irresponsá- dar tão adornado de prata e ouro?", perguntou retoricamente. Como podiam
vel de capital; o comércio de futuros era considerado jogo imoral; e havia cir- cidadãos decentes comparecer ao culto divino vestidos de cetim, brocado e
cunstâncias em que qualquer tipo de lucro continuava ilícito para um bom damasco, "trabalhados com ouro, prata e não sei mais que adornos espalhafa-
cristão - por exemplo, lucrar na revenda de uma casa. 74 Justamente as prá- tosos, que bagatelas". Amsterdã devia refletir sobre o destino de Antuérpia
ticas mais bem-sucedidas do capitalismo holandês - monopólios, controle e moderar-se. Seu texto predileto era Sofonias 1, 11: "Uivai, habitantes de
de preços, especulação imobiliária, comércio internacional de munições etc. Mactes, porque todo o povo de Canaã está destruído e aniquilados todos os
eram estigmatizadas de não cristãs e pertencentes ao campo da cobiça, não que pesam a prata". 80
do verdadeiro comércio. Contudo, a aversão ao monopólio não significava A crítica humanista da riqueza material e do fausto persistia ao lado da
que Udemans encorajasse o individualismo. Ao contrário, suas regras de ou- doutrina da Igreja, tanto como história erudita quanto como conhecimento
ro para o comerciante eram as mesmas que estavam contidas nos ensinamen- popular. Típica obra de circunstância, Gedacbten op gelt (Reflexões sobre o

328 329
dinheiro)reunia em algumas páginas provérbios e ditados sobre dinheiro. A
maioria desaprovando-o, como seria de esperar:
1
O dinheiro é tão valorizado,
Torna os maus piedosos e os idiotas sábios.

Porque os homens exaltam jovens senhores ricos,


Os tolos desejam o dinheiro. 81

Wereld-hatende nootzaakelyke (Sobre a necessidade da espiritualidade), 153, W. Swanenburgh


de Jan. Krul, insistia no mesmo refrão, vituperando o "snoode geld" (vil me- segundo Abraham
tal): o traidor da lealdade, o corruptor da justiça, o perversor do afeto entre Bloemaert, Opulentia.
os sexos. Mais no espírito do casal de Quintijn Metsys que dos Arnolfini de Kress Library, Harvard
Van Eyck, gravadores e pintores continuamente retomavam o tema da degra- University
dação do amor pelo dinheiro. 82 Um contrato de casamento entre uma viúva
rica e seu pretendente é selado por uma encarnação feminina do diabo que
vomita moedas e tem os mamilos da gierigheid, avareza. O texto de Krul rela-
ciona intimamente o dinheiro ao orgulho e à loucura mundana:
Qual é, infelizmente, o atrativo do mundo
Senão coroas de ouro incrustadas de pérolas?
Qual é o único orgulho do mundo
Senão a vil bruxaria, na qual nunca se deve confiar?83

E a Rainha Pecúnia reapareceu repetidas vezes para a Holanda do século


xvii, tal qual se mostrara a Flandres e Brabante do século xvi, como a quin-
tessência da futilidade e do prazer efêmero. Em Opulentia (1611), de Abra-
ham Bloemaert, ela retoma os conhecidos atributos simbólicos: as bolhas, a
fumaça fugidia e a profusão das riquezas - moedas, taças e canecas cinzela-
das - que indicam seu reino. Num quadro inquietante de Hendrick Pot, ela
reaparece como Avareza, segurando entre as mãos um saleiro, em blasfema
paródia de oração. Suas faces murchas justapõem-se a gordos sacos de dinheiro.
No interior, há moedas, pratarias e morte; no exterior, luz, árvores e ressur-
reição. Numa fonte mais popular de 1630, um dos emblemas de Cats, Adriaen
van de Venne apresenta Mevrouw Geld, Senhora Pecúnia, a ditar leis para to-
da a humanidade. Está sentada num trono com dossel, porta a coroa de péro-
las que Krul abominava, e rodeiam-na as insígnias usuais de sacos e cofres trans-
bordantes de moedas. Na mão direita, segura uma balança na qual, sugere a
obra, são pesadas não só as moedas de ouro, mas também as almas de seus
escravos. À sua volta, apinha-se multidão covarde, em diversas atitudes de adu- 154. Hendrik Pot,
lação ou cobiça. Compreende as nações mercantis do mundo; os refinados A avarenta
italianos, ou turcos de turbante e a Hansa empolada, todos facilmente identi-
ficáveis. Ao fundo, no quadro usual do comentário secundário, Dânae recebe
Júpiter, seu amante, metamorfoseado em chuva de ouro.
Portanto, o credo oficial do calvinismo e o do humanismo concordavam
em que o lucro era algo sujo e que cultuá-lo constituía uma espécie de idola-
tria aviltante. Em suas formas extremas de avareza e cupidez, podia perturbar

330
Rorrt het burgeílijck /e)2cfl,
ca, em tempos muito difíceis, jurara perante Deus doar aos pobres duzentos
4ei.çaia hcrefae rnutc edun. id,'fl:
florins por ano em nome de cada um de seus filhos. Deus ouvira suas preces
Pcctinix obcdiunc Offlflih e o fizera prosperar; e, por sua vez, ele cumprira o juramento. Recomendava
aos filhos que imitassem seu exemplo. 84
Em alguns aspectos, é bemverdade, De Geer se aproxima do "tipo ideal"
de empresário devoto descrito por Weber. Mas é importante compreender
que, longe de harmonizar-se com os negócios, a religião causou-lhe um boca-
do de desconforto moral. Gastos conspícuos com objetos piedosos e pessoais
155. Adriaen van de Venne, apenas tornavam tal desconforto mais tolerável. Assim, em vez de inibir o con-
emblema deJacob Cats, Spiegel sumo (o que por certo era seu objetivo), a ansiedade religiosa pode ter inibi-
van de oude een de nieuwe do o lucro e o acúmulo de capital e indiretamente estimulado os gastos. Isso
tyt (em Obras completas, me parece bastante paradoxal, porém não mais que a engenhosa formulação
1655). Houghton Library,
Harvard University
de Weber.
Tudo isso significa que, apesar da infindável ladainha, as críticas da Igre-
ja calvinista à corrupção do dinheiro não receberam atenção, exceto quanto
ao gesto de filantropia ocasional e propiciatório? Ou todo o fogo do inferno
não passava de cortina de fumaça atrás da qual a Igreja Reformada na verdade
também aderia às realidades dos negócios? Não era bem assim. A doutrina ofi-
cial de que o dinheiro fazia ao mundo mais mal que bem e de que a riqueza,
tal qual as obras, não tinha serventia nenhuma para a salvação manteve-se co-
3lt boct Dewtw, mo ensinamento ortodoxo. No entanto, a Igreja se viu em situação difícil quan-
do tentou impor seu dogma sobre questões sociais e econômicas. As atas dos
sínodos locais e provinciais estão repletas de irritadas denúncias de negociar
a consciência e a razão e transformar almas livres em escravos bajuladores. aos domingos, violando o Dia do Senhor bem debaixo do nariz dos magistra-
Essa forte concepção da natureza repreensível do enriquecimento persistiu dos. Jacobus Hondius, pregador de Hoorn, elaborou um Registro negro de
mesmo enquanto os holandeses acumulavam suas fortunas individuais e co- mil pecados, em ordem alfabética, colocando "todos os que trabalham aos
letivas. A estranha conseqüência dessa disparidade entre princípios e prática domingos" na letra A e de B a D padeiros, branqueadores de linho, cirurgiões,
foi estimular os gastos de capital a fim de afastar a suspeita de avareza. As for - avaliadores da casa da moeda, brunidores de diamante etc. etc. 85 No entan-
mas de tais gastos tinham de ser sancionadas coletivamente e consideradas to, era raríssimo os magistrados locais processarem os malfeitores com real
impecáveis do ponto de vista moral tanto pelos clérigos quanto pelos leigos. empenho ou coerência. Assim, ao identificar os pecadores, a Igreja contava
Contudo, podiam ir dos gastos virtuosos, como a filantropia, a gestos menos apenas com sua própria disciplina eclesiástica para admoestá-los. A força des-
altruístas, como emprestar dinheiro a instituições públicas a juros baixos e sa censura nunca seria subestimada, mas naturalmente dependia da participa-
prazos longos, ou mesmo à necessidade de criar um ambiente doméstico con- ção do malfeitor numa congregação reformada conhecida, e nada garantia nem
fortável, no qual uma patriótica família cristã pudesse viver. Louis de Geer, essa participação nem a continuidade de domicílio. Se o transgressor sabida-
que era ao mesmo tempo calvinista ardente e empresário dinâmico, conse- mente pertencia a uma congregação específica, havia uma série de medidas
guiu conciliar estilo de vida austero com gastos piedosos. Comprou a Casa disciplinares, escalonadas segundo a gravidade da falta, às quais o infrator po-
com as Cabeças da família Soyhier, na Keizersgracht, e mobiliou-a com dis- dia sujeitar-se. À primeira notificação da falha, o pecador suspeito podia rece-
pendiosas peças de nogueira, em boa parte importadas da França e da Itália. ber a visita particular de dois membros do conselho da igreja para com eles
Mas, em compensação, o dízimo que se impôs pagar aos pobres era do co- ter "conversa fraternal". Confirmada a falha, seguiam-se uma advertência e
nhecimento geral, assim como sua ajuda sincera a refugiados calvinistas dos uma crítica. Se o transgressor se revelava impenitente, recebia outra visita,
palcos da Guerra dos Trinta Anos na Europa central. Em 1646, quando elabo- do sacristão ou do próprio pastor; por fim, exposto o caso ao conselho reuni-
rou um "testamento" para os filhos e herdeiros, exortou-os a "temer a Deus do, era-lhe negada a comunhão durante algum tempo ou indefinidamente. A
e cumprir seus mandamentos e pensar nos pobres e oprimidos; assim, desfru- punição final dos pecadores empedernidos era o gravame total da "censura":
tareis as bênçãos do Senhor". Lembrou-lhes que, quando chegou à Repúbli- sua expulsão pública do corpo da Igreja e o anúncio formal da excomunhão.
332 333
Havendo alguma esperança de arrependimento, realizava-se ritual de intimi- produtos, destacando-se bens de consumo e alimentos, A Igreja Reformada
dação: um círculo de justos (geralmente o conselho) rodeava o pecador e se empenhava em combater os contrabandistas de açúcar e manteiga e desco-
perguntava-lhe, pela última vez, se se arrependeria, livrando-se assim da ex- brir estabelecimentos nos quais se consumia cerveja não tributada. Em pelo
comunhão. 86 Tudo isso parece terrível. No entanto, o número de pessoas menos um caso, os clérigos condenaram certo Dirk Martens, que fabricava
eminentes e abastadas (para não falar dos obscuros e pobres) submetidas à sabão relativamente barato em Haarlem e o contrabandeava para Amsterdã
excomunhão indica que nem todos os fiéis se apavoravam. Os conselhos da em tonéis feitos e selados ali. 89
Igreja Reformada em Amsterdã, por exemplo, censuraram o empresário e es- Em todos esses casos, a Igreja Reformada atuava como polícia espiritual
peculador Isaac le Maire; o secretário do Almirantado de Amsterdã, Jacob Lau- para as autoridades laicas. Mas isso não significa que fosse instrumento nas mãos
reszoon Reael; e pelo menos dois membros fundadores da Companhia das do capitalismo de mercado. Pois tanto o clero quanto a magistratura concor-
Índias Orientais 87 davam com um sistema de controle cuidadoso, concebido para limpar o mun-
Havia ocasiões em que uma facção "piedosa" dentro de uma elite domi- do do dinheiro de suas impurezas mais gritantes. Normalmente, isso equivalia
nante podia levar a cabo ordens e regulamentos cívicos em conformidade com a agir para isolar a sociedade cristã, a fim de resguardá-la da ameaça de um mer-
os ensinamentos da Igreja Reformada relativos a questões sociais. Contudo, cado livre de capital ou trabalho. Tanto os clérigos quanto as autoridades mu-
a intromissão desse estilo "genebrino" de calvinismo na atmosfera mais prag- nicipai's, por exemplo, defendiam tenazmente o sistema de guilda contra qual-
mática do governo em grandes centros comerciais como Amsterdã e Haarlem quer tentativa de destruí-lo por meio da mão-de-obra imigrante. No caso dos
dependia de circunstâncias anormais que rompessem o consenso. Como vi- cortadores de tecido das cidades holandesas, havia especial coincidência de
mos, foi somente num cenário de peste violenta, derrotas na guerra contra interesses, pois eles eram famosos por trabalhar aos domingos. Muitos vinham
os ingleses e recessão comercial que Tulp e Bontemantel puderam ter espe- das províncias meridionais e nos últimos anos da década de 1620 fizeram al-
ranças de ver sua legislação suntuária aprovada em 1655. gum esforço para organizar-se em "sínodos", que podiam negociar livremen-
Mais comumente, a Igreja contava apenas com sua própria disciplina con- te com fabricantes de tecidos onde quer que houvesse trabalho e salários satis-'
gregacional para impor seus preceitos sobre assuntos sociais e econômicos. fatórios. Em 1638, autoridades laicas e clericais denunciavam formalmente tais
Na falta de algo mais poderoso, restringia-se ao papel auxiliar de condenar associações como complôs. 90 Numa atitude semelhante, a Igreja Reformada
transgressões que interessavam ao Judiciário processar. Tratava-se de proce- condenava altas taxas de juros. Quanto a isso, contava com autoridade muito
dimentos econômicos fraudulentos que muito antes de Calvino, ou, na ver- respeitável: o próprio Calvino, que desconfiava muito da legitimidade de ta-
dade, antes da Reforma, os magistrados humanistas dos Países Baixos consi- xas superiores a 5%. 91 Dentro da Igreja, discutiu-se muito a conduta correta
deraram abusos e procuraram punir com todo o rigor da lei. Por exemplo, no tocante a juros, com alguns clérigos insistindo em que todo juro devia ser
cunhagem e cerceamento falsos, ou o aviltamento da moeda com lata ou chum- considerado fonte imoral de lucro gerado com base em circunstâncias nefas-
bo em lugar de prata (prática bastante difundida num país transbordante de tas. Johannes Cloppenburgh, de Leiden, teólogo e autor de obras sobre eco-
dinheiro vivo onde as casas da moeda proliferavam) eram passíveis de morte. nomia, gostava de citar Levítico 25, 37 - "Não lhe emprestarás dinheiro a ju-
A Igreja Reformada ajudava a magistratura em Amsterdã tentando punir os in- ros, nem lhe darás alimento para receber usura" - ou Ezequiel 18, 8 - "Não
fratores que, pensava-se, cunhavam moedas falsas nos limites da República empresta com usura, não aceita juros, abstém-se do mal, julga com verdade
- em Roermond, Limburgo, ou em Emmerik, Cleves - e as despachavam entre homens e homens". Contudo, em Defoenore et usuri procurou estabe-
para centros comerciais holandeses. Outras infrações semelhantes que iam con- lecer uma tarifa que estivesse em conformidade com a circunstância do em-
tra as leis da Igreja e do Estado (e que Udemans relacionou como pecados préstimo e a posição social de quem o contraía .92 Isso se opunha aos princí -
comerciais cardeais)" eram: apropriação indébita de bens; vendas fraudulen- pios do mercado (mas se coadunava perfeitamente com os preceitos de Calvi-
tas; falsificação de contratos ou documentos autenticados por notário (tudo no), no sentido de que, quanto mais humilde o que tomava emprestado e quanto
envolvendo perjúrio); lorrendraijerij(negociar com o inimigo); fugir sem pa- mais insignificante sua garantia, tanto menor devia ser a taxa de juros. Assim,
gar aluguel; não honrar os termos de um empréstimo ou exigir juros excessi- enquanto os comerciantes podiam pagar 8% legitimamente por projetos de
vos; praticar monopólios, contratos arch-listig (ardilosos demais) ou contra- relativo risco, nunca se devia cobrar dos agricultores mais de 4%, e no caso
bando; sonegar impostos; contrair deliberadamente dívidas desastrosas e pro- dos necessitados a taxa era igual a zero. 93 Foi esse de fato o pensamento dos
vocar bancarrota passageira (distinguindo-se esta última da insolvência infe- magistrados e dirigentes que em 1614 fundaram o Banco Van Lening especifi-
liz). Dada a divisão da República holandesa em miríades de jurisdições locais, camente para fazer pequenos empréstimos e evitar o domínio dos agiotas. A
cada uma com suas tabelas de imposto e impressionantes variações em pesos escultura em sua fachada mostra uma mulher pobre a receber ajuda, e a inscri-
e medidas, o contrabando equivalia a atividade menor com amplo leque de ção adverte o abastado de que deve dirigir-se a outro local.

334 335
Para os capitalistas mais práticos (bem como para os historiadores mais seu acúmulo, desde que a insolvência tivesse, ocorrido de boa-fé, por assim
céticos), isso podia ainda parecer amável apologia do mundo do dinheiro que dizer. De modo que, em 1624, Le Maire pôde vangloriar-se em seu curioso
a Igreja Reformada declarava desprezar. No entanto, não se tratava, penso eu, epitáfio:
de racionalização do capitalismo violento, e sim de uma defesa contra ele. Era
Aqui faz Isaac le Maire, mercador, que em seus
ainda uma forma de dirigentes leigos e religiosos conviver com o que de ou-
negócios através do mundo conheceu grande abastança
tro modo teria sido um sistema de valores intoleravelmente contraditório, eter- [...]

e em trinta anos perdeu mais de 150 mil florins.


no combate entre ganância e ascetismo. Mediante esse acordo prático, os go- [...]

[Omitiu-se um zero]
vernantes admitiam a necessidade de algum tipo de ética antipecuniária para Morreu cristãmente aos 20 de setembro de 1624.
coibir anarquia e abusos do capitalismo, e a Igreja Reformada reconhecia que,
conquanto perigosa para uma República devota, a riqueza dos holandeses era Portanto, o individualista renegado, o arquicapitalista, era um transgres-
fato concreto e podia ser utilizada para fins justos. Assim, por inércia, os pre- sor dos códigos de decoro comercial e eclesiástico. Nem os veteranos do ca-
ceitos sociais do calvinismo retornavam a suas origens humanistas. Continua- pitalismo de Amsterdã acreditavam que o zelo religioso constituísse qualifica-
vam rejeitando com a maior inflexibilidade possível a idéia de que as boas ção suficiente para romper suas práticas altamente regulamentadas. Na verda-
ações poderiam levar a um estado de graça; recomendavam-nas, porém, co- de, a intromissão dos roervinken agitadores, como os chamava o burgo-
mo elementos obrigatórios de uma vida íntegra. Se perdeu a batalha da dou- mestre Hooft - era indesejável por vários motivos. Ameaçava perturbar o de-
trina, a via media erasmiana conseguiu tornar-se a norma segundo a qual se licado equilíbrio das congregações de Amsterdã, do qual, supunha-se tradi-
patrulhavam os perigosos domínios da Rainha Pecúnia. cionalmente, sua prosperidade dependia. E os sulistas mais ardentes, como
Esse trabalho em conjunto com os reguladores patrícios da economia pas- Usselincx, não só se opunham de modo inflexível à trégua de 1609 com a Es-
sava por tensões periódicas. Às vezes, a Igreja Reformada se encontrava em panha mas também acalentavam esperanças de converter o projeto de "cons-
situação de precisar punir alguns de seus próprios entusiastas por causa de trução do império" em grande causa missionária de fé e colonização. Mesmo
infrações do código vigente de propriedade econômica. Isaac le Maire, um na década de 1640, os que ainda mantinham essa opinião tentaram comprar
dos mais notáveis capitalistas do sul que emigraram para o norte, era particu- ações das Índias Orientais em número suficiente para prevalecer, e apoiava-
larmente famoso por infringir tais normas. Em 1604 e de novo em 1605, ele os o insistente conselho de uma sucessão de governadores-gerais em Batávia,
foi o tema de um inquérito realizado pelo consistório de Amsterdã sobre ques- desde Coen e Van Goens até Speelman e Van Diemen. O grupo de patrícios
menos calvinistas era o que defendia os princípios mais puramente comer -
tões internas e práticas desonestas; nesse período, ficou proibido de partici-
ciais de máximo de lucro com mínimo de risco e desaprovava a apropriação
par do serviço religioso e sujeito a pagar multa. Acionista da Companhia das
dos instrumentos de comércio para obscuros propósitos fanáticos. Diante disso,
Índias Orientais com o montante de 60 mil florins, foi obrigado a retirar-se
e a firmar um compromisso de não empreender nenhuma expedição inde- a Igreja Reformada precisava usar de alguma prudência. Não surpreende que
seus pastores entrincheirados em Amsterdã estivessem entre os que mais ati-
pendente ao cabo da Boa Esperança ou ao estreito de Magalhães. Afastado do vamente reclamavam uma política religiosa e encontrassem aliados na fac)ão
círculo restrito de empresas coloniais e comerciais, Le Maire organizou uma
militante dos dirigentes liderada pêla família Pauw. No entanto, quand os
coligação para provocar a queda de preços em detrimento da Companhia das sínodos foram considerar as questões, agiram com maior cautela, porque al-
Índias Orientais, que entre seus membros contava cidadãos antigos de Antuér- guns teólogos eram acionistas da Companhia das Índias Orientais. Plancius,
pia — como Reinier Lems - ou homens que se haviam casado com moças
que além de grande cartógrafo era doutor da Igreja, investiu nada menos de
da família de Le Maire. Numa manobra ainda mais incomum, passou a nego-
ciar in bianco na Bolsa com papéis referentes a mercadorias que ainda não 6 mil florins, tornando-se hoofdparticipant. Ainda atuava como intermediá-
rio de outros pregadores que também eram investidores mas, em deferência
possuía - na verdade, um início do mercado de futuros. Essa conduta, que à Igreja, recusou papel ativo na direção de uma das câmaras. 95 Agentes da co-
por certo não visava a granjear-lhe popularidade nem respeitabilidade, falhou roa francesa planejavam o afastamento de Plancius e á criação de uma compa-
também como estratégia de revanche econômica. Os baixistas faliram, sendo nhia rival que, reunindo o imenso capital de Moucheron, Le Maire e Usselincx,
alguns condenados por fraude; Le Maire foi exilado em Egmond, e, por or- operaria sob a proteção do rei da França. Não havia como os holandeses con-
dem da Companhia das Índias Orientais, Coen confiscou em Batávia (antiga cordarem com isso, sobretudo num momento em que os calvinistas militan-
Jacarta) os navios que estavam a serviço de sua "Companhia Australiana". Le tes estavam tão comprometidos com a causa do stadhouder. Muito menos ha-
Maire provavelmente perdeu algo em torno de 1,5 milhão de florins em seus via como a Igreja Reformada prestar-se a qualquer coisa que pudesse equiva-
esforços para romper o sistema colonial vigente. Todavia, no acerto de con- ler à ruína de uma empresa autorizada pelos Estados Gerais. No entanto, a sim-
tas com o Contador Celeste a destruição de grande fortuna era preferível a ples plausibilidade de tal plano indica o nível de hostilidade da facção sulista.

336 337
Mantidos à distância pelos pilares mais sólidos e conservadores da comu- minado produto ou manter um preço artificialmente eram, na verdade, cons-
nidade mercantil de Amsterdã, com seu firme controle sobre a mina de ouro pirações contra o consumidor e, portanto, formas de comércio incorreto. Os
dos produtos bálticos, por inclinação ou por necessidade os sulistas voltaram-se sulistas (especialmente Usselincx) indignavam-se com tais abusos mas, muito
para as franjas especulativas e mais arriscadas da economia holandesa. Mou- provavelmente, teriam feito a mesma coisa, se lhes fosse dada a oportunidade.
cheron, por exemplo, destacou-se na especulação imobiliária (que necessa- Se na teoria era desejável ou não, na prática o capitalismo holandês de-
riamente envolvia suborno) em Utrecht e em negociações fraudulentas de con- pendia fundamentalmente de um sistema de proteção complicado e extenso.
tratos militares. Quando surgiu oportunidade de participar com seus amigos Violet Barbour estava certa ao considerar que essa dependência se aproxima-
de uma empreitada mais legítima - a Companhia das Índias Ocidentais -, va mais, em etos, do comércio medieval ou renascentista do que de uma ma-
eles se lançaram com uma imprudência e um fervor que para seus inimigos nifestação precoce do comportamento econômico moderno (conquanto seja
eram irracionalmente não comerciais. 96 Moucheron, sobretudo, teimou em discutível que qualquer sistema econômico moderno tenha florescido graças
subsidiar a malfadada aventura no Brasil, onde os gastos para manter uma for- à dedicação à concorrência perfeita). No entanto, os estoques de segurança
ça de ocupação militar contra os portugueses eram totalmente desproporcio- adquiridos para controlar preços, com o objetivo deliberado de suplantar a
nais ao retorno esperado. No fim, isso resultou em sua ruína, em imenso de- concorrência, faziam parte do mercado básico. P. W. Klein, cujo estudo so-
sastre financeiro e nas explosões de júbilo dos sabichões dos grachten [ca- bre a família Trip é a exposição mais brilhante do etos empresarial holandês,
nais]. Pois os Bicker e os Hooft, esses plutocratas devotos, com todo o fervor tem razão ao dizer que "a idéia geralmente aceita de que o empresário é um
ostensivo e a opressão plutocrática, eram tipos duvidosos: menos sombrios indivíduo sempre disposto a assumir riscos parece aberta à discussão. Na ver -
que os judeus sefarditas, talvez; menos fechados que os menonitas; mas, co- dade, ele sempre se esforçou para evitar riscos" 98 Afinal, os riscos estavam
mo negociantes, fundamentalmente indignos de confiança. incorporados às próprias circunstâncias de sua existência nacional, e o cons-
Na essência, portanto, quanto mais apaixonado seu calvinismo, menos tante esforço para proteger-se de novos perigos incutira-se fundo na mentali-
probabilidade tinha um empresário de adequar-se ao modus operaidi mais dade dos holandeses. Apesar de toda a sua bravura e engenhosidade, os gran-
antigo do capitalismo de Amsterdã. Mas não se deve generalizar com muita des marinheiros, navegantes e colonizadores agiam segundo o imperativo ho-
desenvoltura nessa veia antiweberiana. Em outros setores da economia ho- landês de força adequada ao mínimo de risco. Isso era verdade, quer se tra-
landesa - a indústria têxtil de Leiden, por exemplo -, industriais de origem tasse de arrancar craveiros nas Índias Orientais para proteger um preço em
sulista tinham muito menos dificuldade de conciliar suas devoções com seu Amsterdã, quer se tratasse de efetuar um pagamento inicial em dinheiro vivo
apego ao lucro. Na verdade, em sua exploração do trabalho de mulheres e para obter direitos exclusivos sobre toda uma floresta norueguesa. A finalida-
crianças e em sua visão "integrada" dos trabalhadores - desde fornecer-lhes de sempre era suplantar a concorrência, monopolizar o fornecimento, con-
alojamentos precários até dar auxílio financeiro aos enfermos - os empresá- trolar todas as condições de um mercado, desde a produção de matéria-prima
rios de Leiden se aproximavam muito do tipo ideal de Weber e, nesse aspec- até os termos da comercialização em âmbito nacional ou internacional. Os Trip
to, do capitalista arquetípico da Revolução Industrial. Mais ao sul, em Roter - eram mestres em tais práticas. Conseguiram direitos exclusivos para importar
dã e Zelândia, uma concepção mais ardente da religião se harmonizava com alcatrão da Suécia, negociando com uma firma que por sua vez detinha o mo-
uma aversão generalizada dos monopolistas de Amsterdã --- e com a atenção nopólio de exportação. Mas essa -firma era financiada pelos Trip, seu princi-
voltada para o Atlântico - a arregimentar aliados para os fanáticos da Com- pal cliente, que também organizavam o transporte. O processo todo se asse-
panhia das Índias Ocidentais. Udemans, por exemplo, era tremendo propa- melhava mais às transações de uma empresa internacional com suas próprias
gandista da causa no Brasil, que estava a ponto de malograr. No entanto, ape- subsidiárias que a um negócio realizado entre partes diferentes de fato. 99 Sem-
sar de todas essas advertências, continua verdade que a concentração de ati- pre que possível, invocavam-se as lealdades familiares para mais eficazmente
vidade econômica em torno de Amsterdã e no norte de Holanda era determi- proteger o negócio da concorrência externa. Os irmãos Trip eram famosos-
nada por acordos muito pragmáticos. Boa parte deles não agradava à Igreja por dividir o mundo entre seus respectivos interesses - basicamente ferro
Reformada, que nada podia fazer senão concordar. e matéria-prima do Báltico para munições, mas também negócios no Levante
Os monopólios e as coligações eram práticas essenciais. A Igreja Refor- e em Moscóvia. Sua aliança com os De Geer, mediante casamentos, visava a
mada manifestava abertamente sua hostilidade a tais arranjos, que Petrus Wit- fechar ainda mais o mercado de armas setentrional. A única coisa que perio-
tewrongel condenou como "escandalosos aos olhos de Deus e dos ho- dicamente ameaçava esse controle era a determinação de Louis de Geer de
mens".97 Não que a Igreja, mais que os sulistas inimigos dos monopólios, fos- atuar por conta própria.
se precursora paladina do laissez-faire. Ela simplesmente sustentava que os Portanto, o comércio holandês transcorria tranqüilo graças não à harmo-
sindicatos ou os contratos planejados para obstruir o fornecimento de deter- nização espontânea de empresas individuais, mas a um sistema rigidamente

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dades, e não sua antagonista. Afinal, tinham um inimigo comum: o dinheiro,
Uma vez livre de seus guardiães, a Rainha Pecúnia podia causar danos terrí -
veis a uma República Devota. Tinha o poder de jogar irmãos uns contra os
outros, perturbar a razão dos sábios e seduzir os virtuosos. Para isso, contava
em seu arsenal com os vis instintos da avareza, inveja e cobiça - a maldição
da pandemia. O dinheiro bruto, irrestrito, tinha o significado da posse diabó-
•1 lica, concordavam magistrados e clérigos.
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L.. DINHEIRO IRRESTRITO:
"EU INVISTO, ELE ESPECULA, ELES JOGAM"

De todos os relevos que adornam o interior da prefeitura de Amsterdã,


nenhum é mais surpreendente que a figura sobre a porta da Câmara da Ban-
carrota - a Desolcite Boedeis Kamer. Como os motivos atribuídos a outras
salas - a discreta Silentia para o gabinete do secretário municipal, o Julga-
mento de Salomão para o tribunal vierschaar -, alude alegoricamente à fun-
ção da câmara. Aborda um tema humanista bem conhecido: a Queda de Íca-
ro, simbolizando o preço da ambição desmedida e da insensatez. Mas muito
menos convencional é a decoração que encima a cena, na qual a realidade
se vale do lugar-comum, pois em guirlandas pendem os atributos reais (não
simbólicos) do desastre financeiro - cofres vazios, contas por pagar, ações
sem valor -, enquanto entre os detritos de uma fortuna corre um bando de
ratos famintos. 100
Como tantas outras coisas na prefeitura, essa advertência surpreendente-
mente literal é de teor humanista, e não calvinista. A bancarrota assemelha-
va-se a um giro da roda da Fortuna, uma restauração do equilíbrio decente
por meio da calamidade. O conjunto dos bens envolvidos pressupunha livre-ar-
bítrio capaz de evitar tal ruína mantendo-se na aurea mediocrítas. Da mesma
forma, o longo e complicado processo di, bancarrota era caminho que passa-
va pela exposição do infortúnio deliberado e conduzia à reparação. Visava me-
nos a punir o transgressor que a reabilitá-lo e restaurar o dano causado ao equi-
líbrio econômico da cidade. Era o equilíbrio entre prodigalidade e avareza,
entre risco e segurança, que devia ser preservado, e o objetivo final do pro-
cesso, em sua terminologia legal, consistia na reconciliação entre o infrator
e seus credores. Chegava-se a isso mediante o pagamento de uma porcenta-
gem determinada de dívidas pendentes feito com o dinheiro obtido num lei-
lão de bens seqüestrados. Em termos específicos, os "curadores" da liqüida-
1 5ó. Artus Quellijn, porta da Câmara da Bancarrota, Palácio Real (ex-Prefeitura), Amsterdã ção da dívida levavam em consideração a natureza dos débitos, a maneira pe-
la qual foram contraídos e os recursos totais do devedor, inclusive sua capa-
controlado de práticas regulamentadas. Por mais que desaprovasse os mono- cidade de ganhos futuros. Fortunas de família - dotes, por exemplo - eram
pólios, a Igreja Reformada nunca pretendeu sabotá-los em nome de um prin- tidas como bens individuais e protegidas das conseqüências da bancarrota do
cípio econômico mais livre ou mais justo. Ao contrário, sua insistência nos marido, a menos que um acordo matrimonial anterior dispusesse de outra for-
perigos e engodos do dinheiro ganhava mais sendo ela cúmplice das autori- ma. Os termos do acordo variavam muito, desde severos ônus (para os pródi-
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gos) até as porcentagens mínimas para infratores situados no extremo mais publicamente envolvidos que fizessem depósitos sempre que previa retiradas.
humilde do espectro social. Conquanto os credores pudessem ressentir-se por Apesar de todas as ramificações globais dos pagamentos bancários, no final
lhes imporem o que consideravam termos penais, não havia outro meio legal do século xvii o banco contava apenas 2 mil depositantes. Como tudo se re-
a sua disposição, de modo que, após muita discussão, cabia aos curadores a sumia a transferência entre contas, nunca ocorria de as retiradas superarem
última palavra. No fim, tinha lugar uma cerimônia formal em que falido e cre- o valor das reservas. Foi essa confiança inabalável que tornou os papéis ban-
dores assinavam sua "reconciliação" na presença de um notário, além da porta cários de Amsterdã uma forma tão apreciada de realizar negócios, embora os
sobre a qual se viam os ratos e os cofres vàzios.'°' depositantes pagassem para ter conta, ao invés de receber juros. (As taxas de
Os funcionários que arbitravam o processo eram juízes e administrado- abertura e transferência de contas deviam cobrir as despesas com administra-
res; tanto quanto o delegado da cidade ou os dirigentes do orfanato, tinham ção e serviço.) "Sem dúvida, a única razão pela qual as pessoas aceitam depo-
a seu encargo uma custódia. Cabia-lhes a responsabilidade não só pela eqüi- sitar seu dinheiro em tais termos", escreveu o observador inglês Onslow Bur -
dade mas ainda pela paz cívica, e isso significava ter sempre em mente a regra rish, "é a firme convicção de que ele permanece inviolável, intocado, não sen-
de ouro do equilíbrio, tão cara aos humanistas. Para os oligarcas no vroeds- do aplicado para nenhum outro fim. Os magistrados de Amsterdã, todos os
chap que os designaram, havia analogias entre discernimento político e finan- que estão envolvidos na administração do banco e, de modo geral, o corpo
ceiro. No campo do poder, o equilíbrio exigia que nenhuma facção única mo- das Sete Províncias esforçam-se para difundir essa opinião, e parece que pelo
nopolizasse cargos e que nenhum grupo (por mais que suas posições desagra- menos a partilham." 103 Essa sólida segurança conseguiu resistir até às crises
dassem à maioria) fosse totalmente apartado da elite dominante. Da mesma mais terríveis dos negócios públicos. Em 1672, quando com boa razão houve
forma, no campo do dinheiro os guardiães da paz cívica tinham de traçar ca- medo generalizado de que já tivesse se iniciado uma corrida ao banco, os fun-
minho cauteloso entre as zonas "seguras" e "incertas" da economia. Sem se- cionários ofendidos tomaram providências decisivas para evitar o pânico. Em
gurança não poderia haver prosperidade constante, mas sem risco não pode- ostensiva demonstração de honra ultrajada, convidaram os clientes a inspe-
ria haver crescimento. cionar os cofres se assim o desejassem e comprovar que o dinheiro existente
Que eram zonas "seguras" e "incertas"? Seguras eram as áreas de ativi- cobria todas as contas até o último stuiver. Essa atitude pública produziu o
dade controladas ou protegidas pelas autoridades públicas no tocante a con- efeito desejado, mas os magistrados tomaram a ofensiva contra os céticos de-
seqüências de risco desnecessário. Incertos eram empreendimentos de alto clarando que "os que continuassem a desconfiar deles e a abalar a confiança
risco e alto lucro o comércio das Índias Orientais e Ocidentais ou as op- pública fazendo exigências quando o Estado enfrentava crise tão grande de-
ções na Bolsa. A câmara municipal de seguro marítimo - algumas portas além viam ser estigmatizados como maus súditos e proibidos de recolocar seu di-
da Desolate Boedeis Kamer na galeria sul da prefeitura - constituía bom exem- nheiro no banco depois que passasse a tempestade- .104
plo de zona segura rigorosamente controlada. No entanto, o lugar mais segu- O banco era o guardião do capitalismo em Amsterdã. Seu maior interesse
ro de Amsterdã era seu Wisselbank, fundado em 1609 (o primeiro ano da tré- não era gerar fundos para empreendimentos, mas sim controlar as condições
gua com a Espanha). Foi criado como instrumento para facilitar pagamentos em que tais fundos podiam ser movimentados - sua razão de ser. Sua pró-
no crescente comércio exterior de Amsterdã. 102 Contudo, seu sucesso em pria existência testemunhava uma determinação de neutralizar os piores ma-
convencer os comerciantes, no país como no exterior, a fazer pagamentos les relacionados com o mundo ilimitado do dinheiro: usura, falta de pagamento,
em letras sacadas contra o banco dependeu basicamente de sua identificação falsificação e outros tipos de fraude. Seu lema era probidade, não lucro. Con-
como instituição pública, e não privada. Nesse aspecto, sua impessoalidade tudo, esses admiráveis guardiães da economia não podiam impor regulamen-
e seu status de corporação contrastavam vivamente com os bancos privados tação tão sufocante que destruísse todos os incentivos à empresa. Se a ansie-
do Rialto veneziano ou com os bancos dinásticos de Gênova e Augsburgo. dade com relação à amoralidade do dinheiro crescia na mente dos magistra-
Na verdade, era uma cidadela de probo humanismo: decidindo e protegen- dos, eles não eram imunes a uma tendência contraditória da cultura: a admi-
do, sua viabilidade se harmonizava com a integridade da própria magistratu- ração pelo materialismo heróico. Esta se evidenciava (e se inocentava) quan-
ra. De acordo com isso, seus membros estavam instalados na prefeitura, e seus do envolvia alguma ação espetacular de descobrimento geográfico, com os
valores eram guardados nos cofres do mesmo prédio. Assim, o banco estava, empreendimentos coloniais colocando singulares problemas para os conscien-
literal e metaforicamente, nas bases do poder da cidade. Acima de tudo, fun- ciosos patriarcas da cidade. Por um lado, tais empreendimentos indiscutivel-
cionava como instituição rigidamente conservadora, evitando todo papel de mente levaram para a cidade e a Pátria imensos tesouros e lucros, além dos
emissor e todo empréstimo de risco. Seu interesse primordial era manter o navios capturados aos inimigos ibéricos. Por outro lado, no entanto, as incer-
ágio - a diferença entre as cotações dos papéis bancários e as do valor cor- tezas com relação ao transporte e os altos custos da presença colonial nas Ín-
rente - áais alto possível, sé hecressário pedindo a grupos de capitalistas dias ou no Brasil tornavam o negócio duvidoso, se não arriscado. Isso saltava

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aos olhos sobretudo quando se pensava que os produtos do Báltico eram trans- o sexo de uma criança que estava por nascer. Apostava-se nas ruas, nas taber-
portados com segurança por distâncias relativamente curtas e a um preço uni- nas, em casa, nos barcos. Apostava-se desde uma casa inteiramente mobiliada
tário baixo. até uma caneca de cerveja. Era, talvez, o domínio da Fortuna mantido contra
Para os pregadores e moralistas calvinistas, os perigos se justificavam em todas as doutrinas de predestinação que a Igreja pudesse apresentar. Com fre-
função menos da perspectiva de grandes lucros do que da oportunidade de qüência, o limite entre as apostas casuais e o negócio organizado de ações era
derrotar as hostes do anticristo em águas distantes e conduzir os nativos ao difuso. Enquanto os muitos acionistas de determinada aventura comercial (ge-
Evangelho verdadeiro. 105 Mas eles também partilhavam as apreensões dos ma- ralmente com pequenas cotas, apenas 1/64) estavam realmente interessados
gistrados quanto à baixa condição e aos motivos dos que se sentiam atraídos no retorno de um cargueiro, os que negociavam com papéis dependiam não
pelo serviço nas Índias. Paradoxalmente, foi o brilho das mais celebradas via- tanto do desfecho de uma viagem e do lucro sobre as mercadorias quanto
gens ao Oriente que conferiu aura fabulosa às explorações coloniais e levou das flutuações de preço a curto prazo na Bolsa. A informação tinha suprema
os crédulos a visualizar tesouros inimagináveis. Na verdade, tais tesouros eram importância nessas transações flutuantes, e a publicação regular dos registros
regularmente expostos nos cais e armazéns da companhia e relacionados nos fornecia dados políticos e militares para ajudar os investidores a tomar deci-
registros de Amsterdã, de modo quase premeditado para provocar cócegas sões conscientes. Parentes ou correspondentes estrategicamente posiciona-
nas mãos e água na boca. Por exemplo, em 27 de junho de 1634 o navio que dos em vários portos do mundo ajudavam a transmitir informações impor-
partira na primavera retornou à Pátria (graças a Deus) e segundo o registro tantes, mas os especuladores profissionais da Bolsa recorriam a mensageiros
descarregou: e espiões que atuavam nos cafés da Kalverstraat para colher novidades sobre
326 733,5 libras de Amsterdã de pimenta de Málaca; 297 446 libras de cravo; os planos de uma empresa ou espalhar otimismo ou pessimismo em confor-
292 623 libras de salitre; 141 278 libras de índigo; 483 082 libras de sapão; 219 027 midade com seus interesses.
peças de porcelana azul Ming; 52 baús de porcelana coreana e japonesa; 75 jarros Os patriarcas da cidade encaravam tudo isso com falsa reverência. Consi-
e vidros grandes com compotas, boa parte de gengibre 660 libras de cobre
[ ... ];
deravam a Bolsa um poço de iniqüidade mas compreendiam muito bem que
japonês; 241 peças de fina laca japonesa; 3989 diamantes brutos de grande quila- ela era indispensável às operações comerciais da cidade. Mesmo nos primei-
te; 93 caixas de pérolas e rubis (de quilates variados); 603 peças de seda e gorgo-
ros anos após a criação da Companhia das Índias Orientais, em 1602 (embora
rão [ ... ] da Pérsia; 1155 libras de seda chinesa bruta; 199 800 libras de açúcar de
Kandy [o Ceilão] não refinado.'° 6
naturalmente a Bolsa operasse com todo tipo de ação), tornara-se claro que
já não bastariam as negociações informais nos mercados abertos da Warmoess-
Tamanha riqueza podia despertar o apetite dos ambiciosos, mas não era traat e perto da Oude Kerk. A nova Bolsa foi construída no Rokin em 1608,
a carga em si que constituía o "perigo" do negócio, segundo os mais conser- bem próximo da prefeitura e do posto de pesagem (Waag) - símbolos da ju-
vadores. Era, isto sim, a visão de riquezas incontáveis adquiridas sem traba- risdição paterna sobre a economia. Confinada em seu belo pátio de colunatas
lho e existentes só para atender à vaidade ou à moda. Tal visão parecia mos- no estilo maneirista flamengo, tinha mais ou menos suas próprias normas. A
trar um caminho mágico que conduzia à fortuna e, portanto, atuava como mau
exemplo para cidadãos que se deixavam levar facilmente pelas loucuras do
mundo. Mais especificamente, estimulava uma movimentação de ações que
representavam mercadorias das Índias Orientais na Bolsa, a qual era notória
pela inconstância especulativa.
A Bolsa de Amsterdã era a antítese moral do banco — tão arriscada quan- 157. A Bolsa, de
to o banco era seguro. Menos seguros para se colocar dinheiro só havia os Commeliri et al.,
musicos, antros de jogatina e bordéis, aos quais constantemente se compara- Beschryving der stad
va a Bolsa. Se o banco constituía o baluarte do conservadorismo prudente, Amsterdam, 1665.
a Bolsa era arena de paixões desenfreadas e entusiasmos incautos. O banco Houghton Library,
era a igreja do capitalismo holandês; a Bolsa era seu circo. Como muitas ou- Harvard University
tras coisas em Amsterdã, tanto a arquitetura quanto as práticas comerciais da
Bolsa foram transplantadas de Antuérpia. A cidade flamenga era famosa por
seu amor ao jogo, e nisso também sua contraparte holandesa seguiu-lhe o exem-
plo. Apostava-se a qualquer pretexto, sobre o desfecho de um cerco ou sobre

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cidade não se importou tanto em estabelecer regras para os negócios da Bolsa vel. Um especulador típico "rói as unhas, estala as juntas dos dedos, fecha
quanto em colocar barreiras entre estes e o comércio restante. Eram barreiras os olhos, dá quatro passadas e quatro vezes fala sozinho, leva a mão à face
no tempo e no espaço. A Bolsa era o único local autorizado para esse tipo como se estivesse com dor de dentes e acompanha tudo isso de uma tosse
de transação, o qual, por sua vez, só podia realizar-se entre meio-dia e duas misteriosa' '109 Esses especuladores agitados eram especialistas em movimen-
horas da tarde. Os horários de abertura e fechamento eram rigidamente con- tar pequenos lotes de ações ou pacotes de ações desdobradas a preços baixos
trolados pelo imenso relógio da torre que dominava o pátio, e quem chegasse (os ducatoons). Viviam mais da esperteza que de recursos reais, pois tornou-
atrasado estava sujeito a multa. Conquanto alguns quadros como os de Job se prática usual oferecer ações que ou ainda não possuíam ou pelas quais não
Berckheyde e Emmanuel de Witte mostrem grupos bastante tranqüilos, há tex- haviam pago, supondo que poderiam repassá-las com lucro quando expirasse
tos que transmitem impressão mais bizarra do comportamento na Bolsa. Tam- seu prazo de pagamento. Era muita ousadia - a prática tornou-se conhecida
bém parecem prefigurar a frenética teatralidade que caracteriza as bolsas de como negociar no ar ou in bianco e enfureceu magistratura e Igreja, que a
valores ao longo dos séculos e em todo local onde criaram raízes. O texto condenaram como forma de fraude. Nó entanto, só quando Le Maire passou
mais vívido é Confusión de confusiones, da autoria de um judeu ibérico, Jo- a empregá-la em larga escala os Estados de Holanda a proibiram formalmente.
seph de Ia Vega, que obviamente conhecia a Bolsa muito bem. 117 Ele subli- Na realidade, parece que a prática reviveu (na clandestinidade, porém) tão lo-
nha a natureza bizarra das operações, o comportamento compulsivo dos par - go o calor de um escândalo notório arrefeceu.
ticipantes, sua irracionalidade em meio à tensão e o acanhamento teatral que Os que criticavam os negócios no ar caracterizavam-nos de funesto des-
ostentavam na ocasião. A Bolsa tinha tamanha reputação de bazar indigno que vio das convenções corretas que regiam a compra e venda de ações. Consti-
os grandes capitalistas que recebiam polpudos dividendos do comércio de tuíam convite ao esbanjamento e ao logro, diziam eles. Mas, deixando o mo-
ações lá não punham os pés, delegando a corretores profissionais o negócio ralismo de lado, tratava-se na verdade só de uma forma mais extrema das prá-
diário de compra e venda. Com taxas de juro tão baixas raramente flutuan- ticas que surgiram espontaneamente numa economia em que os prazos de en-
do acima de 3 % e 5 % - e com capital tão fecundo, havia necessidade óbvia trega tendiam a ser incertos e prolongados. Com certeza, não era menos in-
de investimentos a curto prazo com rendimen, maiores. Os corretores tra- correta que os gastos governamentais (geralmente em construções ou campa-
balhavam para muitos clientes ao mesmo tempo, atendendo-os com sua habi- nhas militares) que "antecipavam" (ou seja, previam, graças a qualquer fonte
lidade e sua constante presença na Bolsa. Em suma, faziam o que seus colegas que fornecesse o dinheiro) receitas futuras. Num entreposto internacional como
fazem hoje, vivendo de seu conhecimento acerca não só dos produtos repre- Amsterdã, onde o excesso de capital procurava aplicações e onde rumores
sentados pelas ações mas também das maneiras específicas de negociá-las na e mexericos faziam e destruíam fortunas, era virtualmente impossível repri-
Bolsa. Na verdade, tinham interesse de perpetuar a mística algo imoral da Bolsa mir a especulação improvisada. Se fosse retirada da Bolsa, provavelmente sur -
que diziam dominar. giria em outro lugar e de forma espontânea. Pois esses longos lapsos de tem-
Era a atuação dos corretores, comprando ou vendendo grandes lotes de po entre a "visão" de um produto e sua concretização eram convidativos de-
actien a clientes ricos, que determinava o fluxo e refluxo diário dos preços. mais para quem se encontrava em situação de manipular expectativas que au-
Mas em suas águas nadava um tipo completamente diverso de investidor: o mentavam ou decresciam. Da habilidade dessa gente e da impaciência do pe-
pequeno especulador, que trabalhava para si mesmo e esperava ganhar bom queno investidor em ver sua sorte mudar num passe de mágica surgiram as
dinheiro adiantando-se às oscilações de preços. Seu comportamento espalha- grandes manias especulativas do século xvii e início do xviii. Mais que quais-
fatoso criava a atmosfera de dinamismo que o Confusión achou tão excêntri- quer outros fenômenos, revelaram a uma elite amedrontada a fragilidade de
ca. Intensificava-a ainda mais o horário estabelecido pára as operações, so- seu sistema de estoques controlados e preços protegidos quando pressiona-
bretudo na última meia hora - pois à uma e meia o caixa começava a regis- do pela procura espontânea do mercado. A especulação era a vingança da Rai-
trar as cotações diárias das grandes ações. O ritual relativamente cerimonioso nha Pecúnia contra seus guardiães. Confinada pelos regulamentos, podia ser
em que um vendedor estendia a mão e um comprador a apertava, com um libertada pela impetuosa arremetida de seus devotos, ansiosos para esbanjar
segundo e exagerado aperto de mão confirmando o preço, degenerava em todo o dinheiro disponível que tivessem, na esperança desarrazoada de fazer
exibição frenética de palmadas veementes e rápidas. "As mãos ficam verme- fortuna da noite para o dia. Com freqüência, tratava-se de pessoas bem mo-
lhas, [ ... ] aos apertos de mão seguem-se gritos, insultos, impudência e empur- destas - pequenos proprietários ou artesãos -, e por isso mesmo suas ilu-
rões." 108 A Bolsa não era lugar para os tímidos, nem para os que relutavam sões pareciam ainda mais perigosas aos olhos do patriciado. Textos e gravu-
em representar o papel que sua posição do momento determinava: baixista ras representavam sua insensatez não só como pura quimera mas também co-
(contremines) ou altista (liefbebbers). Os atores mais talentosos chamavam a mo uma espécie de anarquia econômica que ameaçava destruir todo o edifí-
atenção para si como se fossem guardiães secretos de um mistério intolerá- cio da ordem, mantido com tanto cuidado.

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a indústria local adaptava tais raridades dispendiosas ao mercado geral. No
entanto, a louça azul e branca de Delft e os tapetes flamengos, que caracteri-
zavam esse tipo de negócio, quando muito podiam assemelhar-se aos origi-
nais, nunca reproduzi-los fielmente. Assim, duas séries de produtos atendiam
a clientelas diversas: os autênticos para a elite endinheirada e as adaptações
para o restante dos compradores. A democratização do gosto nas artes aplica-
das significou ainda certa vulgarização, que os holandeses aceitaram com
entusiasmo.
Mas o caso da tulipa era diferente. Tratava-se também de um luxo impor-
tado, proveniente da Turquia, só que podia ser literalmente transplantado com
facilidade e reproduzido ad infinitum separando-se os brotos. Variedades va-
lorizadíssimas - como a Semper Augustus, de flamantes flores listradas - eram
zelosamente protegidas de imitações. Contudo, o que de outra forma teria si-
do uma prática semelhante à cautelosa manutenção de estoques de segurança
para preservar diferenciais de preço era continuamente abalado pelo comér-
cio de rebentos e pelos esforços dos próprios plantadores para criar varieda-
des novas e mais atraentes. Em tais condições, era praticamente impossível
158. Judith Leyster, a uma guilda hipotética de plantadores manter o controle sobre a produção
"Amarela-vermelha de Leiden", como outros produtores ou comerciantes. Na verdade, seu interesse profis-
de Livro da Tulipa. sional em experimentar ilimitadas combinações de cor, formato e tamanho
Frans Hals Museum, Haarlem levou a extenso leque de variedades, destinado a atrair não só o especialista
abastado mas também milhares de pequenos compradores. As unidades de
venda estimulavam essa expansão do mercado. No início, quando o comér-
cio estava nas mãos de gentis-homens horticultores e de seus jardineiros (en-
tre a primeira década do século e a década de 1620), as vendas se restringiam
a unidades extensas e dispendiosas: canteiros inteiros ou ainda a peso por mil
"ases" (1/20 de grama). À medida que o mercado se expandia rapidamente,
no final da década de 1620 e início da de 1630, tornava-se possível comprar
por libra de Amsterdã [494 gramas] cesta ou pequenas quantidades de ases.
O mais espetacular, e com certeza o mais alarmante, desses surtos espe- Em troca, isso gerou um comércio do vodderij - o "refugo" dos tipos mais
culativos foi a grande mania da tulipa em 1636-7. Foi tema de muito texto comuns, até então desprezados. Ao contrário do que ocorria com outros pro-
perplexo, talvez por causa da aparente incongruência entre a banalidade da dutos "decorativos", havia uma cadeia contínua que ligava as flores mais va-
flor e a extravagância do tratamento que recebeu. 110 Só mesmo uma cultura lorizadas no topo do mercado às modestíssimas vermelhas e amarelas, como
profundamente burguesa, concluiu-se, poderia escolher a humilde tulipa - Gouda, que se tornaram a base do comércio de massa. Ao mesmo tempo que
em vez de esmeraldas ou garanhões, por exemplo para transformá-la em mantinha sua aura de tesouro precioso, a tulipa estava, no entanto, ao alcance
troféu de especulação. Mas no século xvii a tulipa nada tinha de suburbano. do homem comum. Por módica quantia, podia entrar no circuito de compra
Era uma flor no mínimo exótica, atraente e até perigosa. Justamente porque, e especulação, que, como todo jogo, logo podia transformar-se em vício.
apesar de rara, a tulipa se revelou capaz de adaptar-se a um mercado de mas- Havia outro aspecto da produção dos bulbos que os fazia objetos de es-
sa, seu potencial de provocar imensa procura se concretizou. Foi essa trans- peculação ideais: sua dependência com relação às estações do ano. Para os
formação de espécime para connaisseur em produto acessível a todos que aficionados autênticos, a estação de compra restringia-se ao período entre a
possibilitou a mania. Outras propriedades inerentes ao bulbo alteraram o pro- arrancadura dos bulbos em junho e o novo plantio em outubro. Não faria sen-
cesso pelo qual um objeto exótico passava a integrar o cotidiano banal da cul- tido comprar para receber a mercadoria meses depois. No entanto, os planta-
tura. A reprodutibilidade era a chave de tudo. A porcelana Ming e os tapetes dores estavam tentados a satisfazer a crescente procura vendendo rebentos,
turcos também se transformavam em bens de consumo comuns depois que que só podiam ser separados e entregues ao fim de alguns meses. Assim, com-

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prar no inverno para receber futuramente tornou-se aceitável e logo - por
volta de 1634, ao que parece - estendeu-se à venda "futura" de bulbos intei-
ros. Tendo de esperar bastante tempo para receber o produto, era inevitável
que os compradores se vissem tentados a negociar nesse intervalo, ou reven-
dendo com lucro ou valorizando seu estoque. Naturalmente, faziam isso sem
nunca ter posto os olhos nas flores nem nos bulbos, e logo novos comprado-
res procuravam esses vendedores em potencial que, como bem sabiam, ain-
da não dispunham da mercadoria. Por sua vez, ofereciam um preço "no pa-
pel" condicionado à entrega, tencionando repassar a venda "no papel" a ter-
ceira pessoa. Com a aproximação da primavera, os preços baseados em ex-
pectativas subiam, e aumentava o movimento no que era de fato uma bolsa 159."Viúva", de Jacob Cats,
de futuros da tulipa. No início de 1637, quando a especulação chegou ao au- Houwelijck, 1658. Houghton
ge, o objeto da compra deixara de ser um bulbo de tulipa e se tornara papel Library, Harvard University
negociável com data teórica de entrega, como duvidosa letra de câmbio. Quan-
to mais próximo da data da entrega fosse fechado o negócio, maior o risco
de o comprador ter de discutir com um plantador, porém maior a possibilida-
de de lucrar com preços que cresciam não só dia a dia mas também hora a
hora. A essa altura, a mania decolara com seu próprio impulso, e foi preciso
a intervenção de uma autoridade pública para trazê-la de volta à terra - com
tremendo tombo.
Há, portanto, quatro fases nessa história fantástica: a fase dos connais-
seurs e estudiosos; a fase da profissionalização dos plantadores; a invasão ma-
ciça dos especuladores; e, por fim, a intervenção de autoridades ansiosas pa-
ra reconduzir a Rainha Pecúnia (vestida de Flora) a seu obediente confinamento.
A chegada da tulipa à Europa ocidental nada tem de misterioso. Ela chegou
aos Países Baixos no século xvi, numa época em que os contatos comerciais
e culturais entre o Levante otomano e o império dos Habsburg floresciam ape-
sar de sua belicosidade oficial. O embaixador Busbeq viu plantações de tulipa
em Adrianopólis, e agentes e diplomatas, bem como mercadores, levaram os
bulbos para os jardins de cortesos, eruditos e banqueiros de Antuérpia, Bru-
xelas e Augusburgo na década de 1560.111 Botânico e também comerciante,
Joris Rye cultivou variedades em Malines, e na década de 1590 a planta era
vista em jardins do norte, talvez até no Hortus Botanicus da Universidade de 160.Claes Jansz. Visscher,
emblema de Roemer Visscher,
Leiden, onde Clusius e Johan van Hooghelande fizeram experiências com co- Sinnepoppen (Amsterdã, 1614).
res e tamanhos diversos. Nessa época, cultivá-la era essencialmente prazer aris- Houghton Library, Harvard
tocrático - novidade que se espalhou de Paris a Praga, onde o imperador University
Rodolfo ii, esse inovador apaixonado, dava vazão a sua curiosidade. Boisot,
• almirante da Frota dos Mendigos do Mar, e Philip van Marnix, que integrava
• círculo de Guilherme, o Taciturno, eram aficionados da tulipa; no entanto,
só depois da publicação dos primeiros catálogos substanciais a admiração pe-
la flor se alastrou dos meios cortesãos e humanísticos para um grupo mais am-
plo. Publicado em Frankfurt em 1612, o Florilegium, de Emmanuel Sweerts,
incluía cerca de cem ilustrações com as variedades que já estavam à venda
em Amsterdã. Contudo, foi Hortusfioridus, de Chrispijn van de Pas, lançado
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em 1614 em edição holandesa e em latina, que difundiu a tulipa pelas cidades que após a morte de Oldenbarneveld se tornou pensionário de Amstcrd, pas-
holandesas e alemãs do baixo Reno. sou a cultivar tulipas em sua propriedade rural de Heemstede tão logo a com-
No início da década de 1620 1 a tulipa se afirmou como a inigualável flor prou, em 1623, e se revelou um entusiasta, produzindo novos híbridos listra-
da moda em todo o norte da França, nos Países Baixos e nas regiões ociden- dos de vermelho e branco. Dentre os plantadores profissionais, os mais cria-
tais da Alemanha. Numa época em que a consciência da hierarquia era muito tivos e prolíficos, como Abraham Catoleyn em Amsterdã e Pieter Boi e Jan
forte, não demorou muito para que um sistema de classificação dispusesse as Quackel em Haarlem, conquistaram a reputação de especialistas, graças aos
variedades por ordem de posição, das mais nobres às mais comuns. Uma po- bulbos que levavam seus nomes e constavam dos catálogos e também graças
sição superior não indicava necessariamente (conquanto geralmente indicas- a sua clientela bem relacionada. Contudo, em inícios da década de 1630 outra
se) raridade, mas sim exuberância e requinte na combinação de cores. As va- gei'açLo de cultivadores COCÇOU a apartar-se desse comércio relativamente
riedades flamantes e com listras irregulares eram as mais admiradas, agrupa- i'fstocrltico e cii'cunscrlto e a mudar as condições de distribuição e venda.
das em três níveis aristocráticos, segundo a cor predominante: rosa (verme- A1f4u11M dcMMcS homens fizeram seu aprendizado de jardineiros com profissio-
lho e rosa sobre fundo branco), violeta (lilás e púrpura sobre fundo branco)
e bizarden (vermelho ou violeta sobre fundo amarelo). No topo dessa nobre-
za, estavam as raridades imperiais: a Semper Augustus (chamas vermelhas so-
bre branco) e a Parem Augustus, que procurava reproduzi-Ia. Havia também
Vice-reis, mas nos Países Baixos, onde a realeza era malquista, plantadores cria-
tivos batizaram suas tulipas com nomes heróicos que lançavam sobre eles bri-
lho patriótico. Assim, por toda a parte brotaram almirantes e generais (pois
a tulipa sempre era antropomorfizada como ser masculino). Assim, as tulipas
General Boi e Almirante Pottebacker deviam o nome não a heróis militares,
mas a seus plantadores, Pieter Boi, de Haarlem, e Henrik Pottebacker, de Gou-
da. A flor inspirou aos poetas idéias ainda mais extravagantes, tendo um deles
comparado a Tulipa clusiana, com suas pétalas brancas matizadas de carmim,
ao "tênue rubor na face da casta Susana". 112
Nesse estágio de sua entrée no norte da Europa, a tulipa era ou admirada
ou desprezada como elegante extravagância. Os críticos (sobretudo pastores
calvinistas) que condenavam os rufos ultrajantes e os calções adornados de
fitas ou as camas trabalhadas consideravam a tulipa mais um perigoso acrésci-
mo ao extenso catálogo de futilidades que estavam subvertendo a ordem da
devota República. Na iconografia de textos moralizantes, há eventuais exce-
ções a sua hostilidade, é certo. Um emblema parece que importou a associa-
ção oriental sufista das tulipas com a eternidade. Apresenta uma imagem da
virtude em lugar do vício: uma velha viúva aguarda a morte entre os atributos
de sua honrada atividade, o fuso, e de sua fidelidade, o cão (igualmente ve- 161. S. Fokke, água-forte.
Atlas van Stolk, Roterdã
lho). A iminência da morte é simbolizada pela mão descarnada que agarra o
talo da tulipa. No entanto, é rara uma conotação de virtuosa resignação. O
mais comum era associar a tulipa à insensatez mundana. O Sinnepoppen de
Roemer Visscher tinha como lema "o tolo e seu dinheiro logo se separam"
quase vinte anos antes de iniciar-se a mania especulativa. 113 Numa época em
que um único bulbo de Semper Augustus podia facilmente chegar a mil flo-
rins, o sentimento era bastante compreensível.
Mesmo no final da década de 1620, a tulipa continuava uma flor cara, cul-
tivada ou por gentis-homens botânicos para si mesmos ou por número restri-
to de plantadores profissionais para sua clientela aristocrática. Adriaan Pauw,

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nais mais velhos e agora se estabeleciam, com grandes ambições empresariais, pular. A repentina onda de procura abruptamente os levou ao extremo opos-
em terrenos alugados. Barent Cardoes, por exemplo, havia sido jardineiro- to. As entressafras e o esforço da produção para atender à demanda acelera-
chefe de Pieter Bpl e aos trinta e poucos anos se desligara para instalar-se per- ram ainda mais a alta dos preços. Em 1636, muitas variedades, mesmo as co-
to de Haarlem como plantador independente. 114 Com seu rico solo de alu- muns, triplicaram de preço na época da arrancadura. Uma tulipa Gouda que
vião, os arredores dessa cidade estavam-se transformando no centro da pro- em dezembro de 1634 custava trinta stuivers dois anos depois chegou a mais
dução de bulbos, e dentro de Haarlem, no Houtweg, muitos desses homens de três florins. No mesmo espaço de tempo, uma Almirante De Maan saltou
mais novos, como Jan. van Damme, abriram lojas para comerciar diretamen- de quinze para 175 florins. Uma Centen foi de quarenta florins para 350 ao
te. Ao mesmo tempo, alugavam mais terras (no caso de Van Damme, de um fim de poucos meses; uma Scipio passou de Oitocentos para 2200 florins no
asilo de pobres) para atender a futuras demandas. Não havia nenhuma guilda ,crfoc10 de algumas semanas. Tais exemplos se multiplicavam indefinidamen-
a controlar sua atividade, seu produto ou seus preços. Empresários marginali-
zados que teriam encontrado dificuldades para ingressar em profissões mais Logo o pagamento passou a ser feito à base de troca, em parte porque
antigas podiam, com seu conhecimento especializado, abrir caminho entre g çl1ntøia de baixa renda podia oferecer mais sob forma de produtos que de
os homens das tulipas. O judeu português Francisco Gomez da Costa, por dlnhcivo vivo De modo geral, o comprador entregava suas mercadorias ao'
exemplo, era grande plantador em Vianen, especializando-se em bizarcien bri- fcchar o negócio e completava o pagamento em dinheiro ao receber o bulbo.
lhantes e altamente variegadas. Por exemplo, um quarto de libra de Coroas Brancas era vendido por 525 fio-
Os novos negociantes se prepararam para fornecer um leque de escolha rins, a serem pagos mediante a entrega e quatro vacas pagas na hora da com-
muito mais amplo, indo desde os híbridos caríssimos até as variedades 'de cor pra. Uma Centen de uma libra saía por 1800 florins, mais a transferência ime-
única e berrante, como as Switsers e as Coroas Amarelas, que custavam al- diata de "excelente casaco [ ... ], uma moeda de ouro antiga e uma moeda com
guns poucos stuivers por ás. Peso e preço diferiam muito, de modo que os uma corrente de prata para pendurar no pescoço de uma criança"."' Uma
clientes podiam escolher de acordo com seus recursos. A Amarela e Verme- Vice-rei comprada por novecentos florins foi revendida, ainda no chão, por
lha de Leiden (ver figura 158) era baratíssima por ás; no entanto, chegava a mil florins, a serem pagos mediante a entrega e mais o pagamento imediato
pesar até quinhentos ases. A Generalíssimo, uma das especialidades de Da Cos- sob forma de um costume e um casaco. Os diferentes tipos de artigos ofereci-
ta, que se tornou rapidamente popular, não passava de pequeno bulbo com dos como pagamento fornecem alguma indicação da ampla gama de ocupa-
cerca de dez ases mas custava nove florins por ás. Alterações nas unidades ção e posição social dos compradores. Muito provavelmente, foi um agricul-
de venda de modo que se pudessem comprar bulbos por cesta, libra ou até tor que pagou 2500 florins por uma Vice-rei na forma de quatro toneladas
peça expandiram ainda mais o mercado. Não contentes com negociar direta- de trigo e oito toneladas de centeio, quatro bois gordos, Oito porcos, doze
mente nos viveiros ou nas lojas, os plantadores tinham vendedores itineran- ovelhas, dois tonéis de vinho, quatro toneladas de manteiga, 450 quilos de
tes que percorriam feiras e mercados de locais afastados dos principais cen- queijo, uma cama, algumas peças de roupa e um copo de prata. 117 Ferramen-
tros produtores em Holanda e Utrecht. No inverno de 1635, os compradores tas e outros utensifios profissionais eram oferecidos comumente. Assim co-
de tulipas incluíam todos os tipos e grupos sociais, desde mercadores e lojis- mo Van lleemskerck comprara seus bilhetes de loteria com um quadro, as-
tas até trabalhadores e artesãos especializados. Já se disse que, após violento Mim jan v:in Goyen - s vésperas do desastre - pagou a um burgomestre
surto de peste entre 1633 e 1635, uma escassez de mão-de-obra aumentou de:Fluia i900 florins por dez bulbos e ainda prometeu uma tela de Salomon
os salários reais, a tal ponto que sobrava algum dinheiro para adquirir artigos van Ruysdael mais um quadro de Judas elaborado por ele mesmo. Em 1641,
"de luxo". Seja como for, parece que nessa época tecelões e carpinteiros, mo- quatro anos depois, ainda não havia entregado o quadro nem quitado suas
leiros e ferreiros e pilotos de barcaças já estavam todos acometidos da loucu- dívidas e morreu insolvente. 118 No topo do mercado dos especuladores,
ra hortícola. faziam-se negócios fantásticos, todos cautelosamente registrados pelo notá-
As inovações no mercado e a produção de variedades mais baratas acar- rio. Uma Semper Augustus de 193 ases foi comprada por 4600 florins, mais
retaram algo como uma explosão da procura no decorrer de 1634 e 1635. A uma carruagem com uma parelha cinza-mosqueado (avaliada em 2 mil flo-
popularização da tulipa despertou nos holandeses uma fome de consumo que rins). 119 No auge da mania, os poucos bulbos da variedade mais valorizada de-
só uma novidade colorida e o gasto conspícuo podiam satisfazer. O sucesso vem ter chegado a custar 6 mil florins cada um. Terrenos, casas, baixelas de
dos plantadores ultrapassara suas expectativas mais ambiciosas. Eles haviam prata e ouro, móveis finos - tudo era negociado comumente no ritmo cada
inventado um estereótipo nacional. O efeito sobre os preços foi extraordiná- vez mais febril das transações.
rio. No início, durante o ano de 1634, o surgimento de muitas variedades no- A histeria dos bulbos era bem real. Pequenos plantadores não poupavam
vas provocou baixa de preços a ponto de torná-los acessíveis ao mercado po- esforços para proteger seu investimento noite e dia. Um horticultor de Hoorn,

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no norte de Holanda, instalou em sua plantação um arame que ao ser tocado tipo de concordância, as duas partes deliberavam em particular, e o preço com-
acionava um sino, alertando-o da presença de intrusos. 120 Mas o momento em binado era anotado nos discos com marcas de giz. Se o negócio se realizava,
que a especulação causou sérias preocupações a plantadores profissionais e as marcas permaneciam; caso contrário, uma das partes as apagava. A parte
magistrados municipais foi no final de 1636, quando se transformou em puro que desistia entregava à outra pequena taxa, à guisa de compensação. No mé-
windhandel, jogo de papel. Como o período inflacionário de qualquer bulbo todo "do nada", o vendedor traçava um desenho numa lousa e sobre ele co-
diminuía constantemente (os preços duplicavam ou triplicavam por semana locava uma quantia de dinheiro que seria entregue como prêmio a quem fi-
ou por dia), o objetivo dos especuladores era comprar muitos compromissos zesse o lance mais alto no leilão.
de entrega e revendê-los com maior margem de lucro. A velocidade da reven- Qualquer que fosse o método adotado, boa dose de convivilidade obri-
da dependia do palpite do especulador: seus papéis continuariam valorizando- gatoriamente acompanhava os negócios. A quantia destinada ao vinho foi fi-
se ou seria melhor converter logo seu lucro em dinheiro? A segunda alternati- xada em meio stuiver para cada florim despendido na transação, até o máxi-
va nem sempre era correta, pois muitos compradores faziam ofertas condi- mo de três florins. No caso de uma venda bem-sucedida, era o comprador
cionadas a longos prazos de pagamento, de modo que na realidade os vende- quem pagava bebida para o resto do grupo. Se os negócios fluíam sem parar
dores estavam negociando com mercadorias que ainda não possuíam e por (como devia ser), essas pequenas quantias cresciam de tal modo que Gaer-
valores ainda não concretizados. Tanto seu estoque quanto seu lucro eram goedt relatou: "Várias vezes, trouxe para casa mais dinheiro do que levei para
papel "no ar". a taberna. E tomei vinho e cerveja, fumei, comi peixe cozido ou assado, car-
Conforme esclareceram os poemas, diálogos e gravuras satíricas divulga- ne, aves e coelho, e doces para completar, e isso desde a manhã até três ou
dos após o desastre, a elite encarava com profunda desconfiança essa degene- quatro horas da noite" .122 Assim, mesmo na economia subterrânea dos colé-
ração de negócios em jogo - e, naturalmente, a Igreja Reformada via a situa- gios de especuladores, assomava à superfície o instinto holandês de compen-
ção com declarado horror. Era o contágio da pandemia: as massas crédulas sar a inconstância de ganho e perda com a alegria partilhada e as obrigações
arrastadas à loucura e arruinadas pela ânsia do ganho imerecido. A seu ver, partilhadas. O "dinheiro do vinho" pagava não só comida e bebida mas tam-
tratava-se de furiosa investida do dinheiro, tipo de anarquia em que todas as bém aquecimento, iluminação e "as moças" (provavelmente para servir a me-
convenções e normas da conduta comercial virtuosa e sóbria eram lançadas sa). Num aparte piedoso que não lhe é característico, Gaergoedt registrou que
ao vento. No entanto, o que de fato impressiona na fase especulativa popular se costumava "lembrar os pobres". Até mesmo um tecelão, após uma noite
da mania da tulipa é a rapidez com que ela improvisou convenções altamente de flerte com essas perigosas senhoras Pecúnia e Fortuna, sentia necessidade
ritualizadas e formais para conduzir as transações. Não se fechavam negócios de proteger-se por meio de um gesto de redentora caridade.
nos mercados ou nas feiras, e sim em grupos formalmente organizados, co- Nada disso tornava o fenômeno menos assustador para a classe gover-
nhecidos como colégios, que se reuniam em determinadas tabernas e em ho- nante. Os autênticos aficionados das tulipas mantinham distância do wind-
rários específicos. Os Diálogos entre Waermondt e Gaergoedt deixam claro handel dos colégios; e, como o ritmo dos negócios se tornava mais febril, os
que esses grupos se compunham de pessoas que consideravam os contratos plantadores começaram a temer que uma quebra os deixasse com um esto-
notariais uma despesa desnecessária e queriam ficar livres do controle oficial. que sem valor em seus canteiros. Deve ter sido difícil para eles avaliar se al-
Suas normas, porém, não eram menos complicadas. A semelhança dos colé- gum tipo de Intervenção tornaria tal desastre mais ou menos provável. Quan-
gios com os rituais das guildas e a iniciação dos artesãos reforça a impressão do o desastre efetivamente ocorreu, não se sabe se foi como reação aos ru-
de que se tratava de instituições genuinamente populares nas quais as pessoas mores de Intervenção oficial ou vice-versa. De qualquer modo, os primeiros
do povo plagiavam os corretores. alarmes soaram em Haarlem, possivelmente no dia 2 ou 3 de fevereiro, adver-
Os novatos - compradores ou vendedores em potencial - tinham de tindo as pessoas de que parassem de comprar. No dia 4 de fevereiro, em meio
ser apresentados a um grupo no qual, relatava o diálogo, "alguém dirá 'uma ao pânico generalizado em Haarlem, o preço dos bulbos caía de hora em ho-
prostituta nova no bordel' mas não lhe dará atenção"."' Havia três métodos ra, e no final da semana dizia-se que não havia mais possibilidade de vender
de compra, sendo o mais simples o leilão holandês, no qual o vendedor par- os estoques. Quanto ao mercado de futuros, este perdeu todo o valor quando
tia de um preço alto e ia reduzindo-o até surgir um lance. Contudo, os méto- a queda dos preços se iniciou. Não surpreende, portanto, que a atitude inicial
dos mais comuns eram o "dos pratos" e o "do nada". No primeiro, distribuíam- partisse dos plantadores, os quais se defrontaram com a perspectiva de ser
se discos de madeira com as unidades de valor, e as pessoas que os recebiam tachados de especuladores e de ver seu estoque perder o valor. Agiram então
tinham de fazer um lance. Os vendedores estavam proibidos de oferecer seus com o que, para os padrões holandeses, vinha a ser a velocidade de um ralo.
próprios artigos diretamente, cabendo-lhes insinuar, mediante estranhos ro- No dia 7 de fevereiro, reuniram-se em Utrecht e designaram representantes
deios, que os venderiam por um preço que fora proposto. Notando-se algum de todos os grandes centros plantadores para uma conferência que se realiza-

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ria em Amsterdã no dia 24. Entre os representantes, estavam Gomez da Cos- forma de panfletos, sermões e gravuras contra a insensatez, éuja especial mal-
ta, de Vianen; Barent Cardoes, de Haarlem; Jacques Baalde, de Leiden; e Fran- dade fora desviar do bom caminho as pessoas comuns. Para os oligarcas hu-
çois Sweerts, de Utrecht. O encontro decidiu (com a desaprovação de Ams- manistas, a mania da tulipa violara todos os seus princípios mais sagrados: mo-
terdã) que todas as vendas anteriores a novembro de 1636 deviam ser consi- deração, prudência, discrição, bom senso e a reciprocidade entre esforço e
deradas de boa-fé. Depois dessa data, os compradores que tivessem pago 10% recompensa. Oferecera o medonho espetáculo das multidões seguindo seu
do preço pedido podiam romper o acordo. Na verdade, essa foi atitude pre- Instinto gregário sem o controle ou a orientação de mãos sábias. Assim,
ventiva, concebida a fim de assegurar aos plantadores margem razoável de definiam-na como uma espécie de alquimia econômica pela qual os tolos ima-
proteção para mercadorias que já haviam sido vendidas no papel mas aguar- ginavam que poderiam transformar simples cebolas (os bulbos) em ouro. No
davam a entrega. No entanto, sem a participação das autoridades o acordo final cio "Terceiro diIogo" entre Gaergoedt e Waermondt, o presunçoso Gaer-
não teria validade. A Suprema Corte de Holanda, à qual os Estados submete- MOCCLL dly, que ns flores superam ''ouro e prata, pérolas e todas as pedras pre-
ram o problema, não mostrou a menor disposição de ajudar os homens que eIosus"1 Mftts i'nUsta, Waermonclt adverte: "É verdade, se consideras sua be-
a opinião pública responsabilizava por aquela loucura e que agora tentavam • .. . 1rnu qwindo lelas] existem e levas em conta quem conduz os negócios. Mas
evitar o dano pior. Em fins de abril de 1637, a corte efetivamente ignorou fluo o é quando consideras sua pereciblilciade e levas cm conta quem valoriza
a resolução de Amsterdã anulando todos os negócios realizados desde o plan- ptotil ti OUt(), pérolas e gemas e trabalhos artísticos, pois estes são apreciados
tio de 1636 e remetendo os casos controvertidos à jurisdição de cada cidade. por geiile ilustre e aquelas flores, por pessoas comuns". 123 Para a "gente ilus-
A condição dos 10% foi invalidada, mas os plantadores receberam permissão tre", havia ainda algo de sinistro num fenômeno que de tal modo desatinara
de tentar vender seus estoques desvalorizados a terceiros, em detrimento dos os homens. Alguns textos o representavam como uma espécie de igreja social
clientes que teoricamente compraram os bulbos. Nas circunstâncias do que herética, com todas as suas bruxarias, crenças primitivas e práticas rituais. Na
chegava à proporção de uma moratória, era muito improvável que tais esfor- verdade, era o mundo econômico de pernas para o ar, uma Bolsa de Tolos.
ços, quando existiram, conduzissem a compradores ansiosos. Assim, os plan- De acordo com tradicional estilo holandês, boa parte do material didáti-
tadores arcaram com boa parte dos prejuízos financeiros, pois não puderam co satirizava a ambição e a futilidade dos simplórios que esperavam das tuli-
realizar novas vendas nem fazer muita coisa para que os clientes do outono pas uma transformação mágica de sua sorte. Imitando Erasmo, o autor dos
de 1636 lhes pagassem. Em janeiro de 1638, era óbvio que para reconduzir Diálogos colocou na boca de Gaergoedt todas as tolices que o humanista acha-
o cultivo a condições normais havia necessidade de maior regulamentação. va mais repreensíveis. Gaergoedt se vangloria de hipotecar a casa a fim de ad-
A que Haarlem adotou na primavera desse ano era bem típica de outras cida- quirir o capital para lançar-se à especulação, de deixar para trás sua vida de
des e teve o apoio dos Estados de Holanda. Uma comissão de cinco pessoas tecelão, de estar ansioso para dispor de conforto e luxo. Waermondt (Boca
foi autorizada a intimar as partes para discutir contratos e a pronunciar julga- Verdadeira) é mais prudente, zomba dos "que pensavam enriquecer neste ve-
mentos. A princípio, o objetivo consistia em reconciliar as partes, mas logo
rão" e que por antecipação passaram a fazer grandes extravagâncias, como
se tornou necessário pronunciar julgamentos, por mais que isso desconten-
encomendar carruagens e cavalos. Apesar de todo o seu ceticismo, porém,
tasse uma das partes ou ambas. Todos os contratos pendentes podiam ser li-
ele é irresistivelmente atraído pela perspectiva do ganho rápido:
qüidados mediante o pagamento de 3,5% do preço original de compra. Isso
não deve ter atendido às reivindicações dos plantadores - diziam eles que Inutilmente fiz trabalhos tão árduos, e muitos de meus ancestrais mourejaram co-
foram penalizados pela irresponsabilidade das massas - mas era, afinal, uma mo escravos. Que necessidade têm os mercadores de suportar [tanta coisa] ou
forma de compensação. Os plantadores mantiveram a posse dos bulbos e, uma arriscar seus bens além-mar; as crianças de aprender um ofício ou os camponeses
vez passada a mania, retomaram a velha hierarquia de preços determinados de plantar e trabalhar tanto na terra; o capitão de navegar nos mares terríveis e
pelas condições reais do mercado. perigosos; o soldado de arriscar a vida em troca de ganho tão pequeno, se é pos-
De qualquer forma, os magistrados das cidades holandesas achavam que sível adquirir lucros dessa espécie? 124
as sutilezas da Justiça eram menos prementes que a necessidade de acabar de Em outras palavras, tudo que havia de decente na vida holandesa, a rela-
vez com a mania da tulipa. Apressou sua intervenção a urgência de recolocar ção adequada entre trabalho e ganho, o sacrifício dos pais pelos filhos, os ris-
na garrafa o gênio da especulação que dali escapara e arrolhá-la com toda a cos dos comerciantes - as provações que estavam no centro da visão de mun-
firmeza para evitar que o caso se repetisse. Em certa medida, podiam dar-se do humanista -, tudo seria fatalmente minado pela vileza da especulação. Os
por satisfeitos, pois as ações inelutáveis da Fortuna já haviam punido os teme- pobres, que mais precisavam dessa orientação moral, eram os que corriam
rários levando-os da miséria à riqueza e devolvendo-os à miséria em curto pra- o maior perigo de se deixar levar pela loucura. É essa a razão da ilustração
zo. Contudo, ainda se sentiam impelidos a lançar uma campanha didática sob gráfica do perigo em Floraes geks-kap (O gorro dos tolos de Flora), de Nolpe,

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uma das muitas gravuras de 1637 que inseriram o novo estilo de narrativa do- F LOR\I G1s
cumentária na tradição mais antiga de loucuras e vícios ilustrados. Enquanto /
Flora é conduzida para longe, montada num asno "por causa de sua devassa
imoralidade", conforme explica o texto no pé da gravura, seus acólitos, na
companhia de aficionados da tulipa, fecham negócios no interior de imensa
carapuça de bufo que lembra os gorros utilizados por Pieter Brueghel na com-
posição do bizarro ambiente de sua ilustração sobre o Orgulho. Por insígnia,
a carapuça-pavilhão ostenta uma bandeira de carnaval que o proclama "In de
2 Sottebollen", trocadilho que significa tanto bobos ou loucos quanto bulbos
reles e apresenta dois bufões lutando. Camponeses esfarrapados carregam bul-
bos em carrinhos e cestas, enquanto um janota manda jogar bulbos ao acaso
no chão. À sua esquerda, está um demônio - o espírito mau da loucura -
que segura uma ampulheta vazia e suspende sobre a cabeça do janota uma
haste com outro gorro de bufão e mais contratos e compromissos de entrega.
Os dois figuram sobre o cenário de um edifício em ruínas. No caso de o leitor
não ter compreendido, o título da gravura : "Ilustração do espantoso ano
de 1637, em que um tolo atrás do outro concebeu um plano de enriquecer
sem ter bens e tornar-se sábio sem ter entendimento".
O motivo moralizante do gorro do bufão está presente em muitas outras
ilustrações que ridicularizam a mania da tulipa. Na mais famosa de todas, atri-
buída a Crispijn van de Pas Jr., Floraes mailewagen (O carro dos truões de
Flora), três de seus acompanhantes - Lekkebaard (Barba Bela), Graagryk (Ávi-
do de Riquezas) e Leegwagen (Luz Itinerante) - usam roupas de bufão en-
guirlandadas de flores, enquanto o capuz mais uma vez figura na bandeira has-
teada na parte de trás do carro: o zeil-wagen, o carro do vento, de Simon Ste- 62. Peter Nolpe, Floraes geks-kap, 1637. Atlas vau Stolk, Roterdã
vin, que por volta de 1602 fora objeto de gravuras satíricas e agourentas. 125
Nada podia ter sido mais adequado a uma sátira sobre o windhandel - negó- de contas, e um dos especuladores coça a cabeça, desalentado, quando recu-
cios ou especulação no ar - do que o carro de vento. Mas a gravura também pera a razão. A parte central da gravura está repleta de referências a loucura,
pertence à tradição do desfile triunfal ommegang dos vícios e virtudes reali- calamidade e moda fútil e também de alusões específicas à mania da tulipa.
zado em Antuérpia, só que, em vez de utilizar a alegoria para reforçar uma No alto da cena, preso ao topo do mastro - pois trata-se de um carro a vela
moral humanista generalizada sobre os perigos da riqueza e da cobiça, o au- holandês, conduzido pelas dunas -, encontra-se a bandeira de carnaval, a ver-
tor a adaptou para contar uma história específica e local (mais ou menos no /eeerde wereld, o mundo de pernas para o ar, com a cruz invertida presa a
estilo das gravuras dos cachalotes encalhados). Na verdade, Floraes mallewa- um globo. O macaco que escala o mastro refere-se a um provérbio sobre a
gen é característica do jornalismo gráfico carregado de símbolos que era tão ambição tola - quem sobe deve pensar que há de mostrar as nádegas nuas
caro aos holandeses e que lançou as bases para as gravuras e sátiras políticas -, enquanto o kak nos que estão embaixo dispensa explicações. Flora está
da geração seguinte. 126 A história da mania da tulipa é relatada em quatro qua- vestida como uma cortesã e leva por atributos as tulipas mais procuradas -
drinhos, um em cada canto da gravura, mostrando à esquerda a plantação de General Boi, Semper Augustus e Almirante Van Hoorn. Muitas outras das va-
Pottebacker em Haarlem (no alto) e um grupo de aficionados da tulipa reuni- riedades mais caras, como Vice-rei, Spinnecoop Verbeterde e Almirante De
dos numa taberna da mesma cidade, enquanto duas mulheres ao fundo be- Maan, espalham-se pelo chão ao lado do carro. A cidade que se vê ao fundo,
bem e atiçam um fogo que já está chamejante (embaixo). Nenhuma dessas alu- identificável graças à torre de são Bavo, patrono de Haarlem, é a própria Haar-
sões evidentes passou despercebida aos holandeses ávidos de símbolos; eles lem, e tabuletas de tabernas como Gibão Branco e Galinhazinha, presas ao
"liam" essas ilustrações como uma gazeta de notícias, e não como arte. À di- carro, referem-se aos locais mais conhecidos da cidade como ponto de en-
reita, o negócio degenera rapidamente; no alto, um grupo de Hoorn negocia contro dos aficionados da tulipa. Graagryk ostenta suas bolsas de dinheiro,
bulbos e ao mesmo tempo se embebeda; embaixo, chegou a hora do acerto enquanto Lekkebaard bebe aos crédulos. As duas mulheres são Ver Gaet Ai

361
(Esquecimento), que pesa bulbos, e Ydel Hope (Esperança Vã), que solta o
pássaro Vã Esperança que Voou - símbolo usual da perda da inocência. Atrás
do carro, cidadãos bem vestidos, aflitos com o valete do bloemisten, pedem
para subir no carro, enquanto nos baixios o naufrágio do negócio é represen-
tado com uma tripulação abandonando o carro atolado; um camponês de
Zaantvoort observa, e o xerife se aproxima.
Apesar da abundância de imagens, nada disso era obscuro para um públi-
co familiarizado com as notícias contemporâneas e o simbolismo eterno. Co-
mo muitas sátiras gráficas, a gravura visava a instruir e divertir mas, sobretu-
do, a prevenir para que a loucura não se repetisse. Na década de, 1730, quan-
do isso ameaçou acontecer com a repentina popularidade dos jacintos, as ve-
lhas sátiras da tulipa foram reeditadas para alertar nova geração de especula-
dores. 127 Na verdade, as imagens sobre a insensatez dos especuladores que
surgiram com a formação do capitalismo holandês nunca o abandonaram. Nem
se limitaram às flores. Em 1720, quando milhares de pequenos investidores
viram seu capital desaparecer na falcatrua da Companhia do Mississipi - a

163. Crispijn van de Pas, o Jovem, Floraes maliewagen, 1637 Kress Library, Harvard Uriiversity

164. Gravuras da série Het groote tafereel der dwaasheid...

versão holandesa da South Sea Bubble* -, houve mais uma enxurrada de es-
tampas moralizantes, reunidas na antologia Het groote tafereel der dwaasheid
(O grande espelho da loucura).128 Como as gravuras da tulipa, conjugavam
alegoria e sátira local para ridicularizar os crédulos, denunciar os fraudulen-
tos e, por meio do contraste, defender o que à luz do humanismo eram os
padrões decentes da conduta econômica. Um par de gravuras, apresentando
as musas da pintura e da Fama/História, incorporaram muitos desses topoi agora
bem conhecidos. Enquanto um quadro (leia-se engodo) mostra um cargueiro
que chega a rico porto chamado Mississipi, anjinhos sopram bolhas (o efême-
ro) e se ocupam com as ações. Sob o banco do guarda-livros, mordiscam os
ratos da bancarrota, e os pés do trono da pintora, em forma de garras, lem-
bram os cascos fendidos da especulação demoníaca. Fora do oval, a realidade
continua, a "mina de ouro" literalmente vira fumaça no cachimbo de um in-
dígena do Mississipi - a fraude envolveu terra que, dizia-se, continha abun-
dância de tabaco. No quadrinho de baixo, um corretor distribui ações sem
valor, enquanto seu cavalo defeca dinheiro. O processo se inverte na segun-
da gravura: no quadrinho da esquerda, no alto, um corretor consome dinhei-
ro mas defeca ações com os nomes das câmaras municipais nas quais foram
(*) South Sea Bubble: nome dado a uma febre de especulação financeira baseada no tráfico
de escravos que seria realizado pela South Sea company, mas que nunca se concretizou. (N. T.)
carro de Jaganá, puxado pelas figuras simbólicas da confusão - entre elas,
as índias, Ocidentais e Orientais, o banco e o indígena do Mississipi - e es-
magando com as rodas o livro de contabilidade da companhia e seu guardião
(os raios da roda são as câmaras da empresa). O bestiário heráldico do leão
holandês, do galo francês e do leão britânico reduz-se a proporções ridículas
no carro da Fortuna, que é conduzido pela Loucura no disfarce de Diana (im-
pudica), com crinolina de barbatana - "mais uma das tolas modas de nossa
época", explica o texto. Nas nuvens que envolvem a cena, a Fama toca sua
derrisória trombeta, enquanto o diabo sopra bolhas e a Fortuna despida dis-
tribui seus favores - as ações - sobre a multidão.
Apesar, ou tal vz por causa, de sua sátira arrasadora, a gravura de Picart
foi troinndo $Ues$O, Houve uma versão ingfcsa ambientada em Change Alley,
com o eat cio Jonathan substituindo o da rue Quinquempoix e o hospício
dc Am#tor(IA cedendo lugar a l3edlam. Outras gravuras no Tafereel serviram
do protótipos evidentes para sátiras e pasquins ingleses relativos à South

11

165. ...(0 grande espelho do desatino), 1720. Coleção do autor I 1f1f


vendidas, de modo que os "compradores podem enriquecer com repolho,
raízes, arenque". Rodeados de livros com o registro de dívidas, os navios da
companhia afundam, enquanto os investidores (embaixo, à esquerda) são re-
duzidos à penúria. A Vã Esperança que Voou reaparece no quadrinho do alto,
à direita, enquanto na cena de baixo uma peixeira oferece um único peixe
em troca de um porco; graças a um insulto anti-semita comum entre os ho- 166. Gravura da série
landeses, o condutor dos porcos é identificável como smous (judeu). O grande espelho do desatino,
As carrozze delie trionfi os carros triunfais do desfile de Van Heems- 1720-1
kerck - continuaram simbolizando o capitalismo que destrói seus devotos. I 4

Numa gravura bem mais simples, João Lei conduz o carro puxado por uma
parelha de galos que substituem a Fraude e a Rapina de Van Heemskerck.
Um investidor que está em seu "castelo no ar" perde a peruca e a fortuna
no vento em que negociara (figura 166). O carro leva o nome do destino •t; jj i:
dos investidores - o asilo de pobres e o hospital -, tema que se repete na
mais elaborada de todas as gravuras do windbandel, a de autoria de Bernard
Picart. Ao fundo, multidões são conduzidas ao hospital, ao hospício e ao asi-
lo de pobres, que ostentam as armas de Amsterdã - o centro da especula-
ção. A multidão da esquerda, em primeiro plano, representa os ricos e tolos
entre seus sedutores - um dos quais segura uma lanterna mágica -, e à di-
reita eles saem do café da rue Quinquempoix, em Paris, onde a especulação (*) Jaganá: ídolo de Krishna transportado anualmente num carro enorme sob cujas rodas,
dizia-se, os devotos se atiravam para ser esmagados. (N. T.)
começou a mover o carro da Fortuna. Este se transformou numa espécie de
365
364
wa MMEt9N
1 .•
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169, Gravura da série O grande espelho do desatino. Coleção do autor


167. Bernard Picart, Monumento consagrado à posteridade, 1721. Coleção do autor Sea Bubble, Quem vai cavalgar?, de Hogarth, pode dever alguma coisa à ro-
da da tortura em Grandes misérias da guerra, de Cailot, mas havia uma fonte
mais à milo cm Maliemoolen, o Carrossel dos Loucos, de Picart, com o diabo
montando um cavalo de carrossel, enquanto um navio parte para o país ima-
ginário de Pcpperlandla
'0m waurcid's doen on doolen/Is muar een mailemoolen" - ' O mun-
do ntic)pussa dc um carrossel de loucos" - diz a inscrição, idéia que em 1720
tinlui antiga autoridade. Na verdade, não era muito mais do que Erasmo leva-
do íi bolsa de valores e obrigado a presenciar o medonho espetáculo da cobi-
ça e da estupidez humanas. Nada o teria surpreendido menos. No entanto,
a Ininterrupta tradição do comentário moral sobre a loucura do dinheiro -
168. Picart, desde a guerra dos cofres e sacos de dinheiro de Brueghel até os rebuscados
Monumento... espetáculos barrocos da ilusão das massas apresentados por Picart - pode
(detalhe) fornecer duas lições, um pouco contraditórias entre si. Por um lado, a fre-
qüência com que se invocavam os adágios dessa iconografia capitalista indica
como era tênue o controle da regulamentação humanista sobre a efervescên-
cia comercial e financeira. Por outro lado, contudo, sugere grau impressio-
nante de determinação para conter o comportamento econômico dentro dos
limites da "segurança" e do decoro.. Como em tantos outros departamentos
da cultura holandesa, impulsos opostos conciliavam-se harmoniosamente na
366 367
prática. Os hábitos incorrigíveis do prazer material e o atrativo dos empreen-
dimentos arriscados que estavam arraigados na economia comercial dos ho-
landeses inspiraram todos aqueles brados de alerta e julgamentos solenes por
parte dos guardiães da velha ortodoxia. Cabia-lhes proteger os holandeses das
conseqüências de seu próprio sucesso econômico, assim como era a tarefa
do povo garantir sucesso suficiente para ter de haver proteção. Esse vaivém Parte 3
moral pode ter contribuído para alimentar a incongruência mas não confun-
diu muito o artesão, o comerciante ou o banqueiro em seus negócios do dia- VIVER E CRESCER
a-dia. A singular coexistência de sistemas de valores aparentemente opostos
era o que eles esperavam de sua cultura. Ela lhes dava espaço para manobrar
entre o sagrado e o profano segundo exigiam as necessidades materiais ou a
consciência, sem arriscar-se a uma escolha brutal entre pobreza ou perdição.
Com certeza, não precisavam que o calvinismo lhes dissesse que a riqueza cau-
sava desconforto, mas não lhes custava necessariamente a salvação. Essa lição
foi bebida junto com o leite materno do capitalismo holandês na mais antiga
contabilidade entre o comércio setentrional e o Evangelho. Tampouco requeria
grande sabedoria perceber que o mundo não estava dividido entre abstinên-
cia e prazer. Qualquer tolo podia ver que as mesmas pessoas, em diferentes
épocas, em diferentes locais, encarnavam os valores adequados a seu papel
transitório fossem ministros de mentalidade mercantil, como Sylvius, fos-
sem piedosos capitães de indústria, como De Geer (fazendo seu testamento)
-; que os especuladores espezinhados se assemelhavam muito aos correto-
res tolerados; que apenas os caprichos da Fortuna separavam o banqueiro da
bancarrota. Isso era o oposto de predestinação. Pode ter servido de consolo
para aqueles que, prestes a cruzar o umbral da fria câmara de Desolate Boe-
deis, olhavam para cima e viam ratos de mármore a mastigar títulos de már -
more. Em Holanda, afinal, a solenidade nunca se afastou muito da farsa, e aos
irreverentes talvez aqueles ratos parecessem tranqüilizadoramente ridículos.

368
G 31) Ver D. P. Snoep, "Classicism and His- de Leiden construíram seu refúgio, de modo que cente. Ver E. Beins, "Die Wirtschaftsethik der ception falte à Ia Roy?W néro do I?j' t?'éN
tory Paintjng in the Late Seventeenth Century", ali havia "plus de palais que de cabannes Calvinischen Kirche der Niederlande Chrétien... par les l3ourgmalstnis vi liourguol
in Gods, Saints and Heroes, 237-9. rustiques". 1565-1650", Nederlands Archief voor Kerlsges- sie de ta Vilie d'Amsterdam (Amsterd1, 1638),
(132) Ver Gérard de Lairesse, Groot Schil- (3) Sobre os estilos arquitetônicos e alguns chiedenis (1951), 24; eJ. H. van Stuijvenberg, prefácio.
derboeck (Amsterdã, 1707). exemplos importantes, ver Kuyper, Dutcl, Clas- "The Weber Thesis: An Attempt ar Interpreta- (21) Meichior Fokkens, Beschryvinge der
(133) Sobre as ramificações culturais e po- sicistArchitecture (Delft, 1980), 153-64; também tion", Acta Historiae Neerlandica (1975),55-66; Wijdt-Vermaerde Koop-Stadt Amstelredam... 3
líticas da guerra da Liga de Cambrai, ver Felix H. W. M. van der Wijck, "Country Houses in Nils M. Hansen, "Early Flemish Capitalism: The ed. (Amsterdã, 1664), 333.
Gilbert, "Venice in the Crisis of the League of the Northern Netherlands", Apolio (novembro Medieval City, the Protestant Ethic and the (22) "Van ao veel Steens om hoog, op zo
Cambrai", inJ. R. Hale, ed., Renaissance Veni- de 1972). Emergence of Economic Rationality", Social Re- veel houts van onder", in Constantijn Huygens,
ce (Londres, 1973), 274-92. (4) Kuyper, Classicism, 160-1; ver Cats, Ou- searcb (1967), 226-48; Jeile C. Riemersma, Re- Koren-bloemen (Amsterdã, 1672), 282.
(134) Joseph Addison, Present State ofthe derdom, buyten-leven en hofgedachten op ligious Factors in Early Dutch Capitalism (23) Fokkens, Beschryvíng, 351.
War and tbe Necessity o! an Augmentation (Lon- Sorghvliet (Amsterdã, 1656). 1550-1650 (Haia, 1967). Riemersma analisa parte (24) Ver [Jeroen Sweerts], Ernstige en Kod-
dres, 1707); ver também Coombs, Conduct, 185. (5) Kuyper, 129-30; ver também Lukas Rot- da literatura religiosa mas chega à surpreendente dige opschriften op luyffels, waggens, glazen
(135) Coombs, Conduct, 307. garis, "Gezang op Goudestein", Poezy van Vers- conclusão de que "a impressão geral que se tem en uythangboorden (Amsterdã, 1682-9). Publi-
(136) Ibid., 364-5. cheideMengelstoifen (Amsterdã, 1735), 253-64. das declarações dos clérigos holandeses é que cada anualmente, essa era uma antologia de ins-
(137) "De Witt", Fables Moral and Politi- (6) Aglionby, Present State, 266. não estavam muito preocupados com os abu- crições - algumas indecentes, muitas engraça-
cal, n. 3. (7) Ibid., 267. sos na conduta econômica" - conclusão que das, outras sérias - encontradas numa infini-
(138) Ibid., 12-3, (8) Marshall, Travels tbrough Holland, 347. muitos sermões e panfletos desmentem. dade de objetos, inclusive em placas. Pata a his-
(9) Josiah Child, Brief Observations Con- (17)0 mais conhecido era G. J. Saeghman, tória das placas na Holanda, ver J. van Lennep
5. O DESCONFORTO DA RIQUEZA cerning Trade (Londres, 1668), 4. Ver também Groot Comptoir Almanach, publicado em Ams- e J. ter Gouw, Het boek der Opschriften (Ams-
(pp. 289-367) William Letwin, SirJosiah Child, Merchant Eco- terdã a partir da década de 1650 e tão famoso terdã, 1869).
nomist (Cambridge, Mass., 1959). que figura até em naturezas-mortas, sobretudo
(25) Fokkens, Beschryving, 396.
(1) A maior celebração da casa de campo (10) Felltham, Brief Account, 62. na magnífica Vanitas de Gerrit Dou que atual-
está em Lukas Rotgans, Zegepralende Vecht (26) Ibid., 395.
(11) Temple observou que "nestes últimos mente se encontra na Gemãldegalerie de Dres-
(1719). Mas ao longo do século xvn os orgulho- (27) Sobre a indústria de artes decorativas
anos muitos mercadores da cidade adotaram vi- den. Sobre almanaques de cidadezinhas, ver em Delft, ver o texto muito bem documentado
sos proprietários dessas casas escreveram poe- da de luxos e gastos como nunca se ouviu fa- Schotel, Vaderlandsche Volksboeken, 1: 31 ss. de Michael Montias, Artists and Artisans in
mas que exaltavam a vida do campo em geral lar; o que foi comentado e lastimado". Sir Wil- Sobre horários das barcaças, ver Jan de Vries,
Delft: A Socio-economic Study (Princeton, 1982),
e sua propriedade em particular ou encomen- liam Temple, Observations Upon the United Dutch Rural Economy, 205-9, e idem, "Barges
sobretudo cap. 9; ver também Peter Thornton,
daram versos a terceiros. Por exemplo, Joan Provinces of the Net/.'erlands, sir George Clark, and Capitalism: Passenger Transportation in the
Huydecoper, comerciante, patrício, diplomata Seventeenth-Century Interior Decoration in En-
ed. (Oxford, 1972) [reimpressão], 124. Dutch Economy, 1631-1839", in AAG Bijdra-
e patrono de Rembrandt, encomendou ajan Vos gland, France and Holland (New Haven,
(12) Thomas Coryate, Coryate's Crudities, gen, 21 (Wageningen, 1978), 33-361.
esse tipo de elogio sobre Goudestein. A moda Conn./Londres, 1978).
hashly gobled up in five months travells in (18) Samuel Ampzing, Beschryving ende LO!
desses versos laudatórios, como as próprias ca- (28) Peter Sutton, Pieter de Hooch (Nova
France, Savoy, Italy, Rhetia commonly called der Stad Haerlem in Holland (Haarlem, 1628).
sas de campo e os valores bucólicos que deviam Yorkl0xford, 1980), 92.
the Grisons country, Helvetia alias Switzerland, Reunindo verso, prosa, gravuras e mapas, a obra
expressar, certamente foi muito influenciada pe- (29) Karel van Mander, Schilderboeck, foi.
, some parts of High Germany and the Nether- foi a primeira laudatio digna desse nome publi-
las vilas italianas do Cinquecento. Não foi sim- lands (Londres, 1611), 639.
168; citado in Thornton, Interior Decoration,
cada na Holanda, mas uma dose de religiosida-
plesmente um modismo de fins do século xvii. (13) Barbon, por exemplo, disse em 1690 de tipicamente holandesa atenuava o panegíri- 340n.
Em 1627, Huydecoper comprou o livro Palaz- que a nação "nunca prospeta mais do que quan- co humanista. Foi Ampzing quem adaptou Oví- (30) Bodleian Library, Oxford, Douce Prints
zi Antichi e Moderni, mas Philip Vingboons só Portfolio, 136, o. 95.
do as riquezas passam de mão em mão". Sobre dio a um estilo totalmente calvinista para cunhar
começou a construir em Goudestein por volta esses autores, ver Appleby, Economic Thought a frase "Vaderland der vromen" (a Pátria dos pie- (31) G. A. Fokker, Geschiedenis der Lote-
de 1639. Jacob Cats e Constantijn Huygens de- and Ideology in 17th Century England (Prince- dosos). A obra mais importante nessa primeira rijen in Nederland (Amsterdã, 1862), 76.
ram vazão a suas fantasias campestres na primei- ton, N. J., 1978), 169 ss. geração de guias laudatórios foi [Olfert Dapper (32) Ibid., 89-92.
ra metade do século e compuseram longuíssi- (14) Bernard de Mandeville, The Fable of e] Tobias van Domselaer, Beschryving der Stat (33) Ibid., 30. Fokkens observa que o catá-
mos versos líricos que celebravam o repouso da lhe Bees or, Private Vices, Publick Benefits, D. Amsterdam van haar Eersfe Begínselen oud - logo oficial de prêmios da loteria de Middelburg
natureza. Até Jacob Westerbaen se tornou "Heer Garman, ed. (Londres, 1934), 144. theydt vergrootingen en gebouwen en geschie- tinha 83 páginas!
van Brandwijk" e escreveu os louvores de sua (15) Ibid., 148-9. denis tot op den 1665 (Amsterdã, 1665). Para ou- (34) Montias, Artists and Artisans, 192.
casa, Ockenburgh. Ver também seu Lands- (16) Naturalmente, esse é o argumento clás- tros guias laudatórios, ver Bibliografia, pp. 664-5. (35) Gemeente Archief, Amsterdã, Desola-
Levens Lo! in Alle de gedichten ('s Gravenhage, te Boedels Kamer (a partir de agora GAAIDBK), ju-
sico de Max Weber, Protestant Ethic and the (19) A medalha, com versos dejan Vos, foi
1672), 2: 291. Spirit of Capitalism. Realizaram-se várias ten- cunhada no prédio da nova Bolsa de Amsterdã, lho de 1726. O roupão de damasco azul eviden-
(2) Jean de Parival, Les Délices de Ia Hol- tativas para validar a "tese de Weber" com ba- em 1611; ver Van Loon, Beschryving, 1: 81. temente era dos mais sofisticados e foi avaliado
lande (Leiden, 1662), 81, descreveu Leiderdop em 95 florins, preço elevadíssimo para qualquer
se em indícios colhidos na Holanda, mas em mi- (20) Casparus Barlaeus, Marie de Médicis
como o vilarejo onde os magistrados e patrícios nha opinião nenhuma delas é muito convin- entrant dans Amsterdam, Ou Histoire de Ia Ré- peça de roupa.

626 627
(36) Sheila Williams e J. Jacqun, ''Omme- leu (Amslcrdíl, 1946). Um armário desses no in- (58) Para o debate sobre "declínio relativo 1955), 81 ss. O dinheiro também figura na peça
gangs anversois. ..", In Les Fêtos de Ia Renais- venlilrio de Flcndrlck ter Hoeven em 1717 al- e absoluto", ver Joh. de Vries, De economische como o agente de práticas infames e sinistras.
sance (Paris, 1969), vol. 2, 359-88. caísçou 16 florins. achteruitgang der Republiels in de achttiende (72) Veldman, Maarten van Heemskerck,
(37) Sobre a expansão dc Amstcrdíl e ou- (48) Ver 23-4; Montias, Artists and Artisans, Eeuw (Amsterdã, 1958). 93.
tros centros urbanos da Holanda no século XVII 312. (59) Ver Carter, Neutrality or Commitment; (73) G. C. Udemans, Geestelijk Roer van 't
e também sobre como 'planejar" se transfor- (49) E. S. de Beer, ed., Tias Diary of John Schama, Patriots, 26-45. Coopmans Schip (Dordrecht, 1640). A dedica-
mou em eufemismo para o caótico desenvolvi- Evelyn, 2 vols. (Oxford, 1955), 2: 39. Tias Tra- (60) Muinck, Regentenhuishouding, 312 ss. tória (aos diretores das companhias das Índias
mento comercial, ver o brilhante estudo de E. veis of Peter Mundy (Londres, 1975), 4: 70-1; (61) Montias, Artists, 263. Orientais e Ocidentais) menciona as "grandes
Taverne, In 't land van belofte: in de nieuwe Jean de Parival, Délices, 25; Aglionby, Present (62) GAA, Familie Archief Backer, n. 75, Hu- reflexões e dúvidas de consciência delicadas"
stadt; ideaal en werkel(fkhejd in de Republiels, State, 224-5. welijkse voorwaarden, en inventaris van huwe- no mundo do comércio (p. 4).
1580-1680 (Maarssen, 1978); para uma história (50) MSS catálogos de leilão, Bibliotheek Ve- lijksgoed van Cornelis Backer en Catharina Ra- (74) Ibid., 5.
detalhada de casas particulares, ver R. Meisch- reeniging van de Belangendes Boekhandels, ye, 1660. (75) Ibid., foi. 19.
ke e H. J. Zantkuil, Het Nederlandse Woonhuis Amsterdã. (63) P. W. Klein, De Trlppen in de 17de (76) Ibid., foi. 15.
van 1300-1800 (Haarlem, 1969). Eeuw. Een studie over het ondernemersgedrag
(51) GAA/DBK 386, 8 de fevereiro de 1681, (77) Simonides, Vier Boecken van Godt '5
(38) Gustav Leonhardt, Het Huis Bartolot- inventário de François van der Noordt. op de Hollandse stapelmarkt (Assen, 1965), Ordeel (Roterdã, 1655).
ti en zijn bewoners (Amsterdã, 1979). (52) Baseado em numerosos indícios que 176-80. (78) Jacobus Lydius, "Een gelt-hont" In
(39) Ibid., 91-9; Meischke e Zantkuil, Woo- encontrou em arquivos, Montias afirma em Ar- (64) Tobias van Domselaer, Beschryving der Vrolycke Uren ofte der Wijse Vermaeck (Dor-
nhuis, 407-11. tists and Artisans que havia na comunidade ar- Stat Amsterdam, 442, menciona 16727 mortes drecht, 1650); Wee-klagh.
(40) Ibid., 409. Esse é um preço extraordi- tística uma considerável variação de expectati- em 1655 e 24 148 em 1664 (comparado com (79) Ver Evenhuis, Ook dat was Amster-
nariamente baixo, e ainda não encontrei em ne- vas com relação a status e rendimentos, desde uma média "normal" de aproximadamente 4500 dam, 2:12. 15-7.
nhum inventário um quadro vendido por me- pintores de cenas históricas que eram muito bem em meados da década de 1620). O ano de 1664 (80) Ibid., 36-7.
nos de um florim, embora muitos fossem esti- pagos e se encontravam em elevada posição so- foi um dos piores da peste na cidade, mas mes- (81) Gedachten op Geldt (s/i, sld):
mados em pouco mais que isso. Será que os cial, como era o caso de Michiel Miereveld, até mo no auge de mortes ainda se revela um pou- Om dat men Rycke viegeis eert
schilder(jen do inventário Bartolotti incluíam burros de carga como Evert van Aelst, que mo- co melhor que a situação de Londres no verão Is 't geldt by sotten meest begeert
gravuras, que eram realmente uma "pechincha" rava num quarto alugado de um alfaiate e mor- de 1665. Na pior semana de 1664 (a 36), ocor- Daerom is 't Geldt zoo hoogh in prys
no mercado de arte? reu na falência. Os preços que Montias cita, ba- reram em Amsterdã 1041 enterros, enquanto em 't maeckt schelmen vroom en busseis wys.
(41) Para um estudo preliminar sobre as fon- seado no marchand de Delft, Abraham de Coo- Londres, cidade com o dobro do tamanho, hou-
(82) Sobre esse tema, ver Simon Schama,
tes de legitimação testamentária na Holanda, ver ge, em 1680 - que se estendem de um Tinto- ve entre 6 mil e 7 mil. "The Sexual Economy of Genre Painting", in
Johannes Faber, Thera Wijsen Beek e Anton retto por 250 florins e uma Passagem do mar (65) João Calvino, Commentaries and Let -
Schurman, in Ad van der Woude e Anton Schur- Christopher Brown, ed., Images of tias World:
Morto (sic, deve ser Vermelho?) de Schoonho- ters (trab. e ed.) J. Haroutanion e L. Pettibone Dutch Genre Painting in its Historical Context.
man, eds., "Probate Inventories", AAG B(fdra- ven por trinta florins, mas não eram inferiores Smith (Filadélfia, 1958), 350.
gen, 23 (Wageningen, 1980): 149-89. (83)J. Krul, Wereldt-hatende nootsaecke-
a vinte florins por um paisagem de Cuyp -, fo- (66) Aglionby, Present State, 291.
(42) Ver De Vries, "Wages". lijcke (Amsterdã, 1627), 91. O subtítulo do ser-
gem muito aos preços encontrados nos leilões (67) Esse era o tema do Enchiridion de mão, em versos, era "Como uma abundância
(43) GAA/DBK, 2 de março de 1717. de Amsterdã nessa mesma época, que parecem Erasmo e foi abordado por muitos humanistas
(44) GAA/DBK, 1717. Os preços citados são (overvloed) de riquezas pesa no coração".
bem mais baixos e na verdade são muito diver- holandeses, mais admiravelmente por Dirck
os obtidos em leilão. (84) Evenhuis, Ook dat was Amsterdam, 2:
sos em sua variação de gêneros. Volkhertszoon Coornhert em Zedekunst Dat is
(45) Em 1720, por exemplo, um lote de dez 80.
(53) GAA/OBK 386, 27 de março de 1682. Wellevenskunst (A arte da moral, isto é, a arte
cadeiras da propriedade de Barent Meynders van (54) No inventário de Remmert Klundert (85) Jacobus Hondius, Swart Register van
do bem-viver). Sobre a questão das "provações
Lee alcançou três florins e dez stuivers, enquanto (o/DBK, julho de 1726), seis camisas de ho-
Duysent Sonden (Hoorn, 1675; Amsterdã, 1724).
diárias" na vida de humanistas públicos, ver o
uma única peça descrita como "vestido e saia", (86) Evenhuis, 2: 84 ss.
mem foram avaliadas em 8,15 florins; sete ca- belo estudo biográfico de Alistair Fox, Thomas
provavelmente em alto estilo, obteve oito flo- misas de mulher, em 7,10 florins; e um roupão More: History and Providence (New Haven, (87) Sobre a ação disciplinar da Igreja con-
rins em leilão. GAA/DBK, 17 de setembro de tra Le Maire, ver J. G. van Diflen, "Isaac le Mal-
de damasco preto, em 19,15 florins. Conn., 1983).
1720. Em 1717, doze cadeiras, pertencentes a re et le Commerce de Ia Compagnie eles Indes
(55) B. E. de Muinck, Een Regentenhuishou- (68) Williams e Jacquot, "Ommegangs an-
Jan van Zoelen e Neeltje Zuykenaar, consegui- ding omstreeks 1700 ('s Gravenhage, 1955), 342. orientales", Revue d'Histoire moderne 16:
versois", art. cit., 359-88.
ram, juntas, menos de dez florins, e três mesas O relato e os dados que se seguem foram reti- (69) Sobre as gravuras que Heemskerck ela- (1935); 7-8.
custaram apenas nove florins no total. Sobre a rados da notável monografia de Muinck. borou para o ciclo, ver llja Veldrnan, Maarten (88) Udemans, Geestelijk Roer.
evolução do mobiliário holandês, ver K. Sluy- (56) Ibid., 180, 198. vau Heemskerck and Dutch Humanism in the (89) Evenhuis, 2: 117-8.
terman, Huisraad en Binnenhuis in Nederland (57) Esta era a mensagem de Beklagh over Sixteenth Century (Maarssen, 1977), 133-41. (90) Ibid., 2: 156.
in Vroegere Eeuwen ('s Gravenhage, 1918). den Bedroefden Toestant in de Nederlandse (70) Ibid., esp. cap. 4, "Dirk Volkertsz. (9 1) John Calvin, Consilia, De usuri, In O.
(46) Sobre camas, ver Thorton, 149-73. Provintien (KN 10 237) e muitos straf-predika- Coornhert anel Heemskerck's Aliegories", 55-93. Baum et ai. (eds.). Opera (1863-1906), vol. X.
(47) Sobre armários de roupa de casa, ver ties (sermões punitivos) semelhantes no "ano da (7 1) Ver P. van der Meulen, ed., Het Roers- (92) Johannes Cioppenburgh, De Foenoro
G. T. van Ysselstein, Van Linnen en Linnekas- catástrofe", 1672. pel en de Comedies van Coornhert (Leiden, et Usuris brevis institutio (Leiden, 1640).

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(93) Sobre a posição da Igreja com relação (110) Os melhores textos sobre a mania da com muita freqüência, sobretudo quando se (23) Lulkcn, lluls,'a,kI, 70,
às taxas de juros, ver também Evenhuis, 2: 156. tulipa são: E. H. Krelage, Bloemenspeculatje in queria dar a conotação de pureza. Zindelijk en- (24) Ver capítulo 3, P1 , 158-03.
(94) Sobre a "coligação" de Le Maire con- Nederland (Amsterdã, 1942); N. W. Posthumus, volvia tanto limpeza quanto ordem, organiza- (25)Jacob Cats, Proteus ofle Minnebeelclen
tra a Companhia das Índias Orientais em 1609, 'The Tulip Mania in Holland in the Years 1636 ção. Jacob Campo Weijerman, cético livre- (Amsterdã, 1628), i-ii.
ver Van Dilien, Isaac le Maire et te Commerce and 163 7",Journal ofEconomic and Bus iness pensador do século xviii, escreveu uma sátira (26) Ibid., "Huiselijke Zaken", 171.
des Indes Orientales", Revue d'histoire moder- History 1: 4 (agosto, 1929): 434-66. sobre a obsessão doméstica, Hollands Zindelijk- (27) Ibid., xxviii.
ne, 17 (1935): 121-37. (111) Krelage, Bloemenspeculatie, 17 ss. (28) Cais, Self-Slryt dat is Krachtige Bewee-
heid (Amsterdã, 1717).
(95) Evenhuis, 2: 158, 316-21. (112) Ibid., 31. ginge van Vleas en Geesl, 28-9.
(2) The Present State ofHolland; or, A Des-
(96) Sobre a Companhia das Índias Ociden- (113) Roemer Visscher, Sinnepoppen, ed., cription of the United Provinces (Londres, (29) Johan van Beverwijck, Van De Wtne-
tais, ver W. J. Hoboken, "The Dutch West In- L. Brummel ('s Gravenhage, 1949; Amsterdã, 1765), 211. mentheyt des Vrouwelicken Geslachts, 2? ed.
dia Company: the Political Background of lia Ri- (Dordrecht, 1643), 206-12.
1614), n. vc, 5; Johan de Brune, Emblemata (3) The Dutch Drawn to Life (1665).
se and FalI", inJ. S. Bromley e E. H. Kossmann, (Middelburg, 1624). (4) Felitham, Brief Character, 27. (30) Ibid.; ver também idem, Schat der Ge-
eds., Britain and the Netherlands, vol. 1 (Lon- (114) Krelage, Bloemenspeculatie, 42. zondheid, 192-3.
(5) De Ervarene en Verstandige Huyshou-
dres, 1960). (115)Ibid., 51. (3 1) De Ervarene en Verstandige Huyshou-
der, 2? ed. (1743), 30 ss.
(97) Evenhuis, 2: 157. (116)Ibid., 64. der, xv.
(6) Antoine de Ia Barre de Ia Beaumarchais,
(98) P. W. Klein, 'The Trip Family in the (117)Ibid., 67, Le Hollandois, ou Lettres sur Ia Hollande an- (32) Sobre a organização do buurt, ver o
1 7t Century", in Acta Historjae Neerlandica, (118)Ibid., 66. cienne et moderne (Frankfurt, 1738), 158. texto da época por Aglionby em Present State,
208. 226 ss.; ver também Donald Haks, Huwel(jk en
(119) Ibid., 65. (7) [Aglionby], Present State; Parival, Déli-
(99) Idem, De Trippen, in De 1 7de Eeuw; (120) [Pieter Jansz. van Campen], Gescho- ces, 29; De Ia Barre de Ia Beaumarchais, Le Hol- Gezin in Holland lo de 1 7de en 18de Eeuw (As-
een Studie over het ondernemersgedra,opde herde Blom-Cap... (Hoorn, 1637); ver também landois, 274. sen, 1982), 60-9.
Hollandse Stapelmarkt (Assen, 196), '49 Krelage, Bloemenspeculatie, 65. (33) Ver A. M. van de Woude, "De omvang
(8) The Works ofSir William Temple Bart,
(100) Ver Katherine Fremantle, The Baro- (12 1) Posthumus, "Tulip Mania", 451 (ex- 4 vols. (Nova York, 1815; Nova York, 1968), 2: en samenstelling van de huishouding in Neder-
que Town Hall of Amsterdam (Utrecht, 1959), traído do primeiro Dialogue between Waer- land in het verleden", in P. A.M. Geurts e F. A.
472-3.
73. Messing, eds., Economische ontwikkeling en so-
mondt and Gaegoedt on lhe rise and decline (9) De Blainville, Traveis Through Hol-
(101) Sobre os procedimentos adotados em of Flora [Samen-spraeck tusschen Waermondt cial emancipatie, 18 opstellen over economis-
land..., 43.
Amsterdã com relação a falências, ver a intro- ende Gaergoedt nopende de opkomste ende on- (10) Bargrave, Sundry Relation, 13. che en sociale geschiedenis, 2 vols. (Haia, 1977),
dução do arquivo da Desolate Boedeis Kamer, dergangh van Flora] [Haarlem, 1637]. O mesmo (11) Parival, Délices, 29; [Alexandre-Jean- 1: 200-39; ver também Haks, Huwelijk en Ge-
Gemeente Archief, Amsterdã. diálogo apresenta descrição detalhada dos pro- Joseph de Ia Poupeliniêre], Journal du voyage zin, 143-50.
(102) Ver J. G. van DilIen, "Oprichting en cedimentos das companhias de tulipa no tocante (34) A. M. Van der Woude, "Variations in
en holiande ( Paris, 1730), 88; De Ia Barre dela
functie der Amsterdamse wisselbank in de ze- a vendas.) the Size and Structure of Households in the Uni-
Beaumarchais, Le Hollandois, registrou "1 'alta-
ventiende Eeuw", in Mensen en Achtergronden, (122) Ibid. ted Provinces of the Netherlands in the Seven-
chementpresque superstitieux" das holandesas
336-84. (123) Posthumus, "Tulip Mania", 459; com relação ao asseio da casa. teenth and Eighteenth Centuries", in P. Laslett,
(103) Onslow Burrish, Batavia lllustrata; Samen-spraeck tusschen Waermondt ende (12) Samuel Paterson, An EntertainingJour- ed., Household and Family in Past Time (Cam-
or, A View of the Policy and Commerce of the Gaergoedt... (Haarlem, 1637). bridge, Ingl., 1972), 315.
ney to lhe Netherlands (Londres, 1782), 150.
United Provinces (Londres, 1728), 288. (35) Luiken, Huisraad, 75.
(124) Posthumus, "Tulip Mania", 452. (13) Joost van Damhouder, Praclycke in
(104) Ibid., 292. (125) Ver A. Eijffinger, 'Twee Historie- (36) C. H. Boxer, The Dutch Seaborne Em-
Crimineele Saecken (Roterdã, 1618), 334.
(105) Essa é, com certeza, a posição de Ode- prenten. (14) Pepys, Diary, 28 de março de 1667. pire (Londres/Nova York, 1965), 70-3.
mans, Geestelijk Roer... (foi. 166), que estava (126) [Chrispijn van de Pas, Jr.?], Floraas (37) Van Beverwijck, Wtnemenlheyt, 206;
(15) Citado in Schotel, Het Oud-Hollandsch
particularmente interessado no trabalho missio- Mallewagen, behoordende bif deprent De Mal- Gezin, 3. Cats, Christelyke Huyswijf, 366; Visscher, Sin-
nário e fornece detalhes das escotas missioná- lewagen alias het Valete der Bloemisten (1637). (16) Jan Luiken, HeI Leerzaam Huisraad nepoppen, 98.
rias de Amboina, citando-as como exemplo de (127) Krelage, Bloemenspeculatie, 142-96; (Amsterdã, 1711), 78. (38) Ver Tirtsah Levie e H. Zantkuil, Wo-
catequese bem-sucedida nas Índias. Flora 's Bloem-Warande in Holland... 3 vols. (17) Mary Douglas, Purity and Danger: An nen in Amsterdam (Amsterdã, 1984).
(106) Courante uytltalien en Duytschland, (Amsterdã, 1734-6). Analysis of lhe Concepts of Pollution and Ta- (39) Swildens, Vaderlandsch ABC, Emble-
27-28 de junho de 1634. (Em 23 de julho de 1633, (128) Ver A. H. Cole, The GreatMirror of ma "2".
boo (Londres, 1966), 7-57.
registrou-se a presença de um elefante e um ti- Folly (HeI Groole Tafereel der Dwaasheid).' An (40) Ver Schama, "Unruly Realm"; Peter
(18) Ibid., 'The Abominations ofLeviticus",
gre na carga procedente das Índias Orientais.) Economic-Biblíographícal Study (Boston, 1949). 41 ss. Sutton, "The Life and Art ofJan Steen", inJan
(107) Joseph dela Vega, Confusion de Con- Steen: Comedy and Admonition, Builetin of Phi-
(19) Ibid., 35.
fusiones, 1688, in Portions Descr(ptive of lhe 6 DONAS-DE-CASA E LIBERTINAS: ladelphia Museum ofArt, vol. 78, n. 337-8, pp.
(20) Johan de Brune, Emblemata, 11.
Amsterdam Stock Exchange, ed., H. Kellenbenz O LAR E O MUNDO (pp. 371-471) (21) Luiken, Huisraad, 74-5. 3-7.
(Boston, 1957). (41) De Brune, Emblemata, 231.
(22) "Publius Felicius", De Beurs der Vrou-
(108) Ibid., 21. (1) Schoon não é o único termo que desig- (42) Visscher, Sinnepoppen, 9. Cabe assina-
wen geslicht op Tien Pilaaren, 4? ed. (1684),
(109) Ibid., 11. na limpo em holandês. Reyn era empregado lar que aqui Visscher utilizou o emblema do
272-4.

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