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O conceito de linguagem em Bakhtin

Luis Filipe Ribeiro


Universidade Federal Fluminense

Resumo:
Este artigo, na verdade uma conferência para alunos de Letras,
tenta fazer entender, de forma didática, os conceitos
fundamentais, através dos quais Mikhail Bakhtin aborda a difícil
problemática filosófica da linguagem humana.
Indagar-se sobre os conceitos na obra de Mikhail
Bakhtin é sempre um desafio, pois sabe-se que aí
está tudo em movimento permanente e não há
terreno sólido para as construções formais. Mesmo
porque, se há alguma coisa que caracterize o seu
pensamento, essa alguma coisa é uma adesão
inconteste à filosofia do movimento. Nada é, em sua
obra, definitivo, nada está estabelecido
permanentemente, tudo oscila com as alterações do
quadro histórico, em que as ações humanas se
desenrolam.
Minha proposta, hoje, é tentar alinhavar em linhas
gerais como seu pensamento trabalha com a
linguagem.
Este é um terreno minado, pelas muitas teorias e
filosofias que dele se ocuparam. Mas, tanto melhor,
pois será do diálogo de tantas vozes discordantes que
poderá surgir uma possibilidade de entendimento
desse fenômeno que é absolutamente central tanto
na vida social, como na nossa existência pessoal.

Talvez, uma primeira aproximação possa ser feita


pela comparação do seu pensamento com o de
Ferdinand de Saussure, fundador da lingüística
tradicional. Este, ao aproximar-se do fenômeno da
linguagem, assim se expressa:

Mas, o que é a língua? Para nós ela não se confunde com a


linguagem, ela é apenas uma parte dela, essencial, é verdade.
É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da
linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas
pelo corpo social para possibilitar o exercício de tal faculdade
pelos indivíduos. Considerada em sua totalidade, a linguagem é
multiforme e heteróclita; cavalgando sobre diferentes domínios,
ao mesmo tempo físico, fisiológico e psíquico, ela pertence
ainda ao domínio individual e ao domínio social; ela não se
deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos, e é
por isso que não sabemos como determinar sua unidade.
A língua, ao contrário, é um todo em si mesmo e um princípio
de classificação. Uma vez que nos lhe atribuímos o primeiro
lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem
natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra
classificação.1

O lingüista genebrino faz um movimento


epistemológico, no mínimo curioso. Primeiro admite
que a linguagem é diferente da língua, que ele define
como o objeto de estudo da lingüística. A língua é
uma parte apenas da linguagem que ele admite ser
muito mais ampla que a primeira. Logo, a lingüística
não tem como objeto de estudo a linguagem
humana, mas uma parte dela.
De outra parte, ao afirmar que a língua é um
“produto social da faculdade da linguagem e um
conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo
corpo social para possibilitar o exercício de tal
faculdade pelos indivíduos”, Saussure está nos
dizendo que a língua é apenas um instrumento que
possibilita o exercício da linguagem pelos indivíduos,
ademais de ser um conjunto de convenções.
Trocando em miúdos, a língua não pode ser
confundida com o uso da linguagem humana. Até
porque o nosso lingüista vai afirmar, também, que

a linguagem é multiforme e heteróclita; cavalgando sobre


diferentes domínios, ao mesmo tempo físico, fisiológico e
psíquico, ela pertence ainda ao domínio individual e ao domínio
social; ela não se deixa classificar em nenhuma categoria dos
fatos humanos, e é por isso que não sabemos como determinar
sua unidade.

Ou seja, Saussure descarta a possibilidade de um


conhecimento científico da linguagem humana e, em
função disto, determina que se estude apenas o seu
aparato técnico. É um pouco como dizer que “já que
não posso entender sistematicamente a música, vou
estudar o tocador de cds”.
Isto, em absoluto, não desqualifica a estudo da
lingüística que, de todo modo, é fundamental.
Apenas sublinha claramente que ela não foi
construída para entender a linguagem humana, mas
seu instrumental técnico, a língua. Isto explica
porque o campo da semântica sempre foi o irmão
mais pobre em estudos e em bibliografia lingüísticas.
Exatamente porque ele aponta para a única coisa que
fica realmente fora da língua, ou seja, o mundo. Um
clarividente lingüista americano, Edward Sapir,
afirmou, com propriedade, que a semântica não
pertencia à lingüística, mas à antropologia. Num
gesto que marca bem claramente o problema que
estamos tentando desenhar.
O estudo da língua é fundamental, sem ele não
avançamos muito no campo da linguagem; mas, por
outro lado, é insuficiente, se nosso objetivo é
conhecer o exercício efetivo da fala em sociedade.
A partir daí, o mais é decorrência deste movimento
fundador básico. Para Saussure, além da linguagem
e da língua, existe ainda a fala. A linguagem é
incognoscível; a língua é o estudo dos signos e das
suas regras de combinação; a fala é o mero exercício
individual dentro dos limites da língua e, igualmente,
é descartada como objeto de estudo da lingüística.
Ou seja, nem a linguagem — fenômeno social por
excelência —; nem a fala — o exercício pessoal da
linguagem — podem ser estudados pela lingüística.
Ela vai dedicar-se inteiramente ao estudo do
instrumental que nos possibilita a fala. Para entender
melhor tal afirmação — e uso aqui uma gratificante
experiência com meu filho caçula de um ano e três
meses de idade — uma criança que ainda não fala,
nem por isso deixa de possuir linguagem. Ela se
comunica, expressa seus desejos, manifesta seus
desagrados, busca seus objetivos práticos no dia-a-
dia. Mas ela ainda não fala. E não fala porque não
domina totalmente o instrumental técnico que é a
língua. Não a usa como emissor, mas a entende
perfeitamente como receptor. Ou seja, dela tem um
domínio parcial, com ela se orienta no mundo, mas
não lhe conhece as manhas e as produções vocais,
que há de aprender por imitação direta dos falantes
que a cercam. Mas não se pode dizer que não tenha
linguagem. E, voltando atrás no seu tempo de vida,
antes mesmo de que pudesse entender a língua
falada, já tinha uma linguagem, com a qual se ia
inserindo no mundo adulto e agindo sobre ele. Não
têm os pais que aprender a identificar diferentes
tipos de choro de um bebê, para poder atendê-lo,
quando é o caso, e desatendê-lo, quando não?
Isto pode tornar os limites entre os nossos dois
teóricos — Saussure e Bakhtin — mais claros e mais
palatáveis. Ou seja, torná-los acessíveis ao maior
número. Pois se há uma coisa de que quero afastar-
me é de uma universidade vem desaprendendo
gradualmente a falar claro e em língua de gente.
Bakhtin — que é o objeto de minha exposição nesta
mesa — situa-se quase como antípoda de Saussure
e, por isso, nós que o estudamos, não o vemos como
um lingüista, mas como um filósofo da linguagem. E
por que? Porque, para ser lingüista ele teria que
aceitar as premissas da lingüística traçadas por
Saussure, o que ele absolutamente não aceita. Quase
contemporâneo de Saussure, Bakhtin critica
duramente os fundamentos de sua concepção teórica
ao longo de sua obra, mas com especial atenção em
Marxismo e Filosofia da Linguagem.
E qual é, basicamente, sua proposta teórica?
Bakhtin pretende, no fundamental, entender o
exercício da linguagem humana por parte dos
indivíduos. Ele escolhe a música e não o CdPlayer,
por difícil que seja o caminho a desbravar. O que
Saussure excluiu do estudo da lingüística é
exatamente o que atrai as atenções de Bakhtin.
Para ele o único objeto real e material de que
dispomos para entender o fenômeno da linguagem
humana é o exercício da fala em sociedade. A língua
falada, nas casas e nas feiras, na rua e na igreja, no
quartel e na repartição, no baile e no bordel, é
sempre o que existe de materialmente palpável para
o estudo. Para ele, a língua — que Saussure
considera o objeto da lingüística — não passa de um
modelo abstrato, construído pelo teórico a partir da
linguagem viva a real. Coerentemente Saussure
afirmava que “não é o objeto que precede o ponto de
vista, mas é o ponto de vista que cria o objeto”. No
caso da lingüística é exatamente o que ocorre: o seu
objeto é criado a partir do ponto de vista de que a
linguagem humana não pode ser objeto de
conhecimento científico, assim como o exercício da
fala.
Para entender um pouco mais a fundo tal diferença,
é necessário remontar às origens filosóficas de cada
um deles. Saussure surge em cena, durante a onda
ascendente do positivismo, que balizava, de forma
muito ampla, a produção da ciência ocidental. E o
método por excelência do positivismo é o
quantitativo. Só é real e material aquilo que pode ser
medido, pesado, tocado, manipulado. Era uma forma
de contrapor-se às teses escolásticas e metafísicas
que constituíram, durante séculos, o cenário do
pensamento no Ocidente.
Já Bakhtin surge na cena científica, na Rússia
Soviética nascente e em que o marxismo, na sua
leitura leninista e stalinista, constituía o único
pensamento aceitável. Bakhtin se defronta, então,
com dois problemas ao mesmo tempo. De um lado,
pensar o marxismo com Marx e não com o Partido
Comunista; de outro, discutir o modelo ocidental,
positivista por excelência. Sua saída foi buscar apoio
em uma erudição literária invejável e um
conhecimento filosófico sofisticado. A erudição
literária ofereceu-lhe um contacto privilegiado com a
linguagem humana real e o conhecimento filosófico
uma vacina eficaz contra as simplificações
positivistas seja do marxismo oficial, seja da ciência
que se fazia no Ocidente. Sua escolha foi
decididamente por uma filosofia do movimento, que
vem de Heráclito aos nossos dias. E, esta opção pelo
movimento, afasta-o decididamente das filosofias da
forma, que trabalham com um mundo pronto,
acabado e congelado em formas imutáveis, cuja
origem remonta a Platão com o seu mundo das
idéias, fora do tempo e fora do espaço.
Bakhtin trabalha com um mundo em movimento e
em perene transformação, seu objeto está sempre
em processo, não se submete a uma forma fixa e
imutável.
E é exatamente por isso que ele não pode aceitar que
uma língua seja um conjunto de formas (signos) e
suas regras de combinação (sintaxe). Para Saussure,
um signo é uma relação entre um significante (um
som, uma imagem acústica ou um grafema) e um
significado (um conceito). Para Bakhtin, o significado
é uma impossibilidade teórica. Um signo, aceitando-
o provisoriamente, não tem um significado, mas
receberá tantas significações quantas forem as
situações reais em que venha a ser usado por
usuários social e historicamente localizados. Em uso,
a língua é muito diferente do seu modelo teórico.
Para a lingüística um signo tem um significado.
Sabemos entretanto que, ao falar, nós estamos
diariamente modificando, acrescentando, excluindo,
torcendo os significados codificados pela língua.
Mas, muito mais do que isto, para Bakhtin, já que se
trata de linguagem e não de língua, a unidade básica
não pode ser o signo, mas o enunciado. Um
enunciado não é um signo pela simples razão de que
para existir ele exige a presença de um enunciador
(quem fala, quem escreve) e de um receptor (quem
ouve, quem lê). O signo faz parte de uma construção
teórica que dispensa os sujeitos reais do discurso.
Um signo, num dicionário, não é e não pode ser um
enunciado. Este exige uma realização histórica. Um
enunciado acontece em um determinado local e em
um tempo determinado, é produzido por um sujeito
histórico e recebido por outro. Cada enunciado é
único e irrepetível. A mesma frase, exatamente a
mesma, pronunciada em situações sociais diferentes,
ainda que pelo mesmo enunciador, não constitui um
mesmo enunciado e não pode constituir. Imaginem
que, daqui a algumas horas, eu leia este mesmo
texto, palavra a palavra, na Estação Rodoviária de
Campos, para um público que não esperava ouvir-
me. Será o mesmo texto, mas seguramente não o
mesmo enunciado. Aqui, leio uma palestra para um
público que, presumivelmente (eu espero!), deseja
ouvir-me dissertar sobre as questões da linguagem
num teórico de nome estrangeiro e complicado. Lá,
as pessoas estarão possivelmente esperando as
chamadas para as suas viagens e sem nenhum
interesse pelas coisas que eu venha a dizer. Tudo o
que conseguirei é uma fama de maluco, maior do que
a já carrego, por ser professor universitário nesse
nosso triste país.
O enunciado não é um conceito meramente formal;
um enunciado é sempre um acontecimento. Ele
demanda uma situação histórica definida, atores
sociais plenamente identificados, o
compartilhamento de uma mesma cultura e o
estabelecimento necessário de um diálogo. Todo
enunciado demanda outro a que responde ou outro
que o responderá. Ninguém cria um enunciado sem
que seja para ser respondido. Mesmo isto que eu
agora leio, ainda que não venha a receber respostas
exteriorizadas, por certo as provocará interiormente
e, desde já, esboço as minhas réplicas neste diálogo
sem fim.
Como se vê, cada enunciado é um ato histórico novo
e irrepetível. E é este enunciado a unidade básica do
conceito de linguagem de Bakhtin. Toda linguagem
só existe num complexíssimo sistema de diálogos,
que nunca se interrompe. Ao decidir falar sobre este
tema, nesta mesa, retomei meu já longo diálogo com
Mikhail Bakhtin; mas com Paulo Bezerra, meu amigo
dileto e tradutor da sua obra; mas com minhas
experiências ao lidar com a linguagem, antes de
conhecer a obra de Bakhtin; mas com outros textos
que venho escrevendo e lendo ao longo de uma vida
de estudos. Tudo isto está aqui, neste enunciado que,
neste momento, centraliza o diálogo com essa
coleção tão ampla de outros enunciados.
Mas, para que adquira consistência histórica e possa
acontecer, este enunciado que agora leio precisou,
primeiro, dialogar com um público ainda virtual, no
momento em que foi escrito, e, agora, dialogar, ao
vivo e em cores, com vocês, seus receptores reais.
Dá para perceber que não estou me referindo a
apenas um enunciado, mas a, pelo menos, dois.
Quando, no meu escritório em minha casa do Rio de
Janeiro, dialogava com um público virtual — que é o
único de que disponho agora quando escrevo —
produzia um enunciado. Agora, quando leio este
texto — que, para o escritor que está escrevendo,
“esse agora” é futuro —, dialogando com um público
real (e seguramente diferente do que poderia
imaginar quando escrevia), produzo outro
enunciado, ainda quando o texto seja exatamente o
mesmo (pelo menos até esta frase, pois não posso
ainda saber das futuras que chegarão a seu turno).
Mas, notem bem, para poder escrever o que escrevo
tenho que construir um receptor muito definido. Sei
que vou falar na UENF, em Campos, para um público
universitário ligado preferencialmente à área de
Comunicação, com a presença inteligente e vigilante
do Mário Galvão — companheiro de tantas jornadas
de vida —, possivelmente com a presença de colegas
da área que estarão conferindo os meus possíveis
desvios de rota e assim por diante. Sem construir
esta imagem de enunciatário, não teria como
escrever, pois só os chupadores de nuvens são
capazes de escrever para ninguém. Pois mesmo os
solilóquios dos momentos de crise e solidão pessoal
são feitos para um enunciatário que construímos, que
é um outro eu, capaz de sentir peninha de mim
mesmo.
Mas, para poder escrever o que escrevo, tenho que
construir uma imagem de mim mesmo, uma imagem
de autor. Tenho que avaliar que expectativa
depositam em mim, que imagem construíram desse
senhor que vem de fora para lhes falar. Tenho que
me perguntar se já leram algum de meus textos, se
já tinham referências prévias ou se serei um
completo desconhecido. Ou seja, quem lhes escreve
também teve que se construir como escritor, para
que o diálogo pudesse se estabelecer. Mas, assim
como o púbico real não há de coincidir com aquele
que imaginei previamente, por outro lado, quem
escreve neste momento não é a mesma pessoa que
será daqui a quatro dias, quando deverá estar lendo
o que agora escreve. O enunciador de hoje não será
o mesmo que lerá o texto no dia 1º. No mínimo
estará quatro dias mais velho, o que, no meu caso,
já constitui um sério problema...
Serão enunciados diferentes, unidades de análise
distintas.
Por outro lado, todo diálogo — ou seja, todo
enunciado — além de um enunciador e de um
enunciatário ou receptor, demanda a presença
daquilo que Bakhtin denominou de o terceiro do
diálogo. É que todo diálogo (ou todo discurso)
sempre pressupõe alguém diante de quem se
dialoga. Posso supor, neste momento e neste
diálogo, que o terceiro, para mim, possa ser o próprio
Bakhtin (ou seja, a imagem que tenho dele, pois não
sou espírita), que me olha preocupado com o que
ando a fazer com suas idéias, ou mesmo seu
representante mais autorizado nesta mesa, meu
amigo Paulo Bezerra. É com a responsabilidade de
não lhe ser muito infiel que falo diante dessa imagem
de Bakhtin que, de alguma forma, baliza meu
discurso. Ele constitui o terceiro diante de quem em
falo. Mas, este é apenas o meu “terceiro”. Para quem
me ouve, os terceiros poderão e deverão variar.
Imagino, por exemplo, um leitor desses problemas
que discorde do pensamento que tento expor aqui.
Ele, seguramente, me ouvirá com as orelhas do
espírito afiadíssimas pelas suas convicções
filosóficas, buscando os argumentos para me
contradizer. O seu “terceiro” será constituído por
essas mesmas convicções. Já um outro, leitor de
Bakhtin que com ele possa concordar, estará me
ouvindo tendo como “terceiro” a sua imagem de
Bakhtin e estará atentíssimo, buscando
concordâncias que o satisfaçam e registrando
discordâncias que o conduzirão ao diálogo.
Resumindo, sempre construímos um enunciado a
partir de uma referência axiológica, um conjunto de
valores que, paradoxalmente, darão consistência ao
que dizemos e estarão vigiando a nossa adequação
ou não às propostas que dizemos defender. Este
conjunto de valores constituirão a imagem do
“terceiro do diálogo”. É por isso que ele pode ser
representado por uma imagem de autor, por uma
autoridade, religiosa ou laica, por uma ideologia, por
entidades como classe, história, destino e quejandos.
Ou seja, falamos sempre diante de alguém ou de algo
que acreditamos respeitar. E, mesmo quando
falamos contra alguém, o fazemos diante de alguém
ou algo que supomos concordar com nossa avaliação.
É o terceiro que nos ampara e nos vigia, na difícil
tarefa de entender o mundo e os nossos
semelhantes.
Dando um passo adiante, na construção do
enunciado, pode-se observar que existem duas
dimensões distintas e complementares: de uma lado,
existe a materialidade técnica do texto e, de outro,
aquilo que escapa aos limites de língua, para
ascender ao plano da linguagem. Nas palavras do
próprio Bakhtin:
Portanto, por trás de cada texto está o sistema da linguagem. A
esse sistema correspondem no texto tudo o que Ž é repetido e
reproduzido e tudo que pode ser repetido e reproduzido, tudo o
que pode ser dado fora de tal texto (o dado).
Concomitantemente, porŽém, cada texto (como enunciado) Žé
algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu
sentido (a sua inten•ção em prol da qual ele foi criado). É
aquilo que nele tem rela•ção com a verdade, com a bondade,
com a beleza, com a história.2
Vemos assim que aquilo que diz respeito à língua é o
que é repetível, o que é recorrente, o que é
reprodutível. O que, enfim, não tem identidade
própria. Os fonemas (ou as letras na linguagem
escrita), os significantes, a sintaxe, enfim, os signos
e sus regras de combinação, na linguagem de
Saussure. As mesmas palavras podem participar de
enunciados diferentes, as mesmas figuras de
retórica, uma mesma construção sintática. Tudo isto
fica no domínio da língua, do aparato técnico da
linguagem. Mas o que efetivamente identifica um
enunciado é aquilo que ele efetivamente diz, naquele
momento, para aquele enunciatário, nas condições
específicas em que é produzido e recebido. Assim,
uma única e mesma palavra dicionarizada —
repetível, portanto — pode participar de enunciados
diferentes. Basta que mudem as condições de sua
enunciação. O clássico exemplo da palavra “fogo”. Se
pronunciada pelo comandante de um batalhão de
fuzilamento para os seus comandados, diante de um
condenado atado ao muro de execuções, constituirá
um enunciado completamente diferente, do que
enunciada por um fumante aflito, com um cigarro
apagado na mão, dirigindo-se a um possível
possuidor de fósforos ou isqueiro. Ou, um passeante
noturno solitário, flagrando um princípio de incêndio
e dirigindo-se a quem quer possa prestar auxílio na
emergência. O que se repete é a palavra e esta
pertence ao plano da língua. O irrepetível em cada
caso é a situação que confere a essa mesma palavra
significações tão distintas em cada um dos
enunciados.
Mas para que esta construção de enunciados possa
ser realizada, há que levar em consideração um outro
fenômeno extremamente rico de possibilidades. É a
distinção que Bakhtin vai estabelecer entre tema e
significação. Aqui, igualmente, pertence à
significação aquilo que é repetível, reiterável e que
portanto se situa no plano da língua. O conjunto de
palavras de um dicionário está nesta situação: elas
apresentam uma significação que é socialmente
compartilhável e que garantem à língua a sua
continuidade e à comunicação a sua possibilidade. Já
o tema é único em cada enunciado, corresponde a
uma significação global daquele enunciado e inclui
uma série de elementos que, além de não pertencer
à língua, podem inclusive ser não-verbais. Aqui,
nesta minha fala, meus gestos, minha entonação, as
pausas que faço, as expressões faciais que assumo,
minha forma de falar e de vestir, tudo se inclui no
conjunto do tema do enunciado. Um tema não pode
ser nunca exaustivamente delimitado e não se repete
de uma enunciação a outra.
Assim, num enunciado estaremos diante de uma
permanente dialética entre as significações, já
cristalizadas, e o tema, a cada vez outro. Na verdade
há uma luta permanente entre o velho e o novo a
cada enunciado que pronunciamos. O velho são as
significações que herdamos ao aprender a falar uma
língua e ao longo de seu exercício social. O novo,
aquilo que cada situação de enunciação apresenta de
novidade e de ato histórico original. Posso assim
afirmar, sem medo de erro, que vocês nunca leram
duas vezes o mesmo livro. Se o livro, materialmente,
é o mesmo, o leitor e a situação de leitura não podem
sê-lo. Numa segunda leitura, o leitor é um leitor que
já conta com a experiência da primeira leitura, entre
uma e outra sua vida e suas convicções podem e
devem ter mudado, e o livro para ele é um livro que
ele já conhece e de que tem uma primeira leitura e,
logo, não é o mesmo livro.
Este exemplo reafirma a questão do tema e da
significação. O livro, enquanto objeto material, está
dotado de um conjunto de palavras cuja significação
me imprescindível, ou quase, conhecer para que a
leitura seja possível. E aí estamos no plano da língua,
no plano da significação. Mas, sabemos todos, por
óbvio, que conhecer cada uma das palavras de um
livro não significa havê-lo entendido. A leitura não é
um acúmulo de significações buscadas num
dicionário. Se assim fosse, eu ignorante do Alemão,
com a ajuda de um bom dicionário e com uma boa
dose de disciplina germânica, poderia ler o Fausto de
Goethe, no original. E, mais que isso, um
computador, igualmente amparado em um bom
dicionário da Língua Russa, dispensaria o meu
fraterno amigo Paulo Bezerra da tarefa hercúlea de
traduzir Dostoiévski.
Não. A leitura é adentrar de cabeça no tema e não
ficar catando milho nos dicionários, escritos ou não.
Ler é tentar entender, recriando-as, as circunstâncias
em que o livro foi pensado e escrito; é adentrar pelas
possibilidades culturais da época; é comparar a
sociedade em que o livro foi escrito com aquela em
que ele é lido; é construir um mundo imaginário
equivalente àquele que habitou o escritor antes,
durante e depois da escrita. E tudo isto constitui o
tema deste grande enunciado que é um livro. Se não
o alcançarmos, a leitura se frustra e se torna um
exercício maçante de decodificação de palavras.
Creio que com estas pinceladas, rápidas e
superficiais, se possa fazer uma idéia, ainda que
pálida, de alguns dos conceitos chaves com que
Mikhail Mikhailovitch Bakhtin tenta pensar a questão
da linguagem. Seria inviável, no limite de uma
palestra, tentar esgotar um assunto que ele não
conseguiu esgotar numa longa e produtiva existência
pessoal e intelectual.
Apenas pretendi trazer algum ordenamento e alguma
organização às idéias mais gerais desse pensador
genial que, com o riso e o carnaval, com a galhofa e
os destronamentos, tentou nos mostrar que a
linguagem, como tudo o que é humano, é sempre
muito mais complexo do que pretende a arrogância
intelectual do saber acadêmico.
Para finalizar, bastaria lembrar que a sua tese de
doutoramento — A Obra de François Rabelais: a
Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento
— foi recusada pela Academia de Ciências da União
Soviética. Para alguém que sempre pensou na
contra-mão dos discursos oficiais, que valorizou a
cultura popular, que resgatou a força da oralidade,
que valorizou o riso como forma de denúncia, foi
realmente uma sorte. Se a Academia de Ciências da
União Soviética o houvesse aprovado como doutor,
isto hoje poderia comprometer a força irreverente e
devastadora de seu pensamento radicalmente
revolucionário.
Rio de Janeiro, 27 a 29 de novembro de 2006.

Notas:
1 Saussure, Ferdinand de - Cours de Linguistique Générale.
Paris:Payot, 1966. P. 25
2 Bakhtin. Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução de
Paulo Bezerra, edição eletrônica.

FONTE: http://revistabrasil.org/revista/artigos/crise.htm

Mikhail Bakhtin- O filósofo que deu vida à linguagem

Ao analisar o discurso na arte e na vida, Mikhail


Bakhtin revolucionou a teoria linguística no
século 20
Mikhail Bakhtin dedicou a vida à definição de noções, conceitos e
categorias de análise da linguagem com base em discursos
cotidianos, artísticos, filosóficos, científicos e institucionais. Em
sua trajetória, notável pelo volume de textos, ensaios e livros
redigidos, esse filósofo russo não esteve sozinho. Foi um dos mais
destacados pensadores de uma rede de profissionais
preocupados com as formas de estudar linguagem, literatura e
arte, que incluía o linguista Valentin Voloshinov (1895-1936) e o
teórico literário Pavel Medvedev (1891-1938).
Um dos aspectos mais inovadores da produção do Círculo de
Bakhtin, como ficou conhecido o grupo, foi enxergar a linguagem
como um constante processo de interação mediado pelo diálogo -
e não apenas como um sistema autônomo. "A língua materna, seu
vocabulário e sua estrutura gramatical, não conhecemos por meio
de dicionários ou manuais de gramática, mas graças aos
enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos na
comunicação efetiva com as pessoas que nos rodeiam", escreveu
o filósofo.
Segundo essa concepção, a língua só existe em função do uso
que locutores (quem fala ou escreve) e interlocutores (quem lê ou
escuta) fazem dela em situações (prosaicas ou formais) de
comunicação. O ensinar, o aprender e o empregar a linguagem
passam necessariamente pelo sujeito, o agente das relações
sociais e o responsável pela composição e pelo estilo dos
discursos. Esse sujeito se vale do conhecimento de enunciados
anteriores para formular suas falas e redigir seus textos. Além
disso, um enunciado sempre é modulado pelo falante para o
contexto social, histórico, cultural e ideológico. "Caso contrário, ele
não será compreendido", explica a linguista Beth Brait, estudiosa
de Bakhtin e professora associada da Universidade de São Paulo
(USP) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC), ambas na
capital paulista.
Nessa relação dialógica entre locutor e interlocutor no meio social,
em que o verbal e o não-verbal influenciam de maneira
determinante a construção dos enunciados, outro dado ganhou
contornos de tese: a interação por meio da linguagem se dá num
contexto em que todos participam em condição de igualdade.
Aquele que enuncia seleciona palavras apropriadas para formular
uma mensagem compreensível para seus destinatários. Por outro
lado, o interlocutor interpreta e responde com postura ativa àquele
enunciado, internamente (por meio de seus pensamentos) ou
externamente (por meio de um novo enunciado oral ou escrito).

Fonte
http://educarparacrescer.abril.com.br/aprendizagem/mikhail-bakhtin-
498487.shtml

Mikhail Bakhtin
Biografia
Mikhail Mikhailóvitch Bakhtin nasceu em Orel, ao sul de Moscou,
em 1895. Aos 23 anos, formou-se em História e Filologia na
Universidade de São Petersburgo, mesma época em que iniciou
encontros para discutir linguagem, arte e literatura com
intelectuais de formações variadas, no que se tornaria o Círculo de
Bakhtin. Em vida, publicou poucos livros, com destaque
para Problemas da Poética de Dostoiévski (1929). Até hoje, porém,
paira a dúvida sobre quem escreveu outras obras assinadas por
colegas do Círculo (há traduções que as atribuem também a
Bakhtin). Durante o regime stalinista, o grupo passou a ser
perseguido e Bakhtin foi condenado a seis anos de exílio no
Cazaquistão (só ao retornar, ele finalizou sua tese de doutorado
sobre cultura popular na Idade Média e no Renascimento). Suas
produções chegaram ao Ocidente nos anos 1970 - e, uma década
mais tarde, ao Brasil. Mas Bakhtin já havia morrido, em 1975, de
inflamação aguda nos ossos.

Cada esfera de produção exige uma escolha de palavras

A reflexão bakhtiniana sobre a linguagem e suas infinitas


possibilidades privilegiou o romance como objeto de estudo,
especialmente a prosa do autor russo Fiodor Dostoiévski (1821-
1881). De acordo com Irene Machado, doutora em Letras pela USP
e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC, isso não se deve
ao fato de esse ser o gênero de maior expressão na cultura letrada.
"O romance só interessou a Bakhtin porque este viu nele a
representação da voz na figura dos homens que falam, discutem
ideias e procuram posicionar-se no mundo", explica ela em Bakhtin
Conceitos-Chave, livro organizado por Beth Brait.
O exame dos discursos no romance possibilitou ao pensador
percorrer também os caminhos da análise das práticas de
linguagem no dia a dia. Nesse ir e vir entre discursos artísticos e
cotidianos, Bakhtin instaurou uma linha de pensamento
alternativa à retórica e à poética delineadas por Aristóteles (384-
322 a.C.) e consagradas até então nas análises de gêneros literários.
Uma das distinções que ele se permite fazer é a classificação dos
gêneros quanto às esferas de uso da linguagem. Os discursivos
primários são espontâneos e se dão no âmbito da comunicação
cotidiana, que pode ocorrer na praça, na feira ou no ambiente de
trabalho. Já os secundários são produzidos com base em códigos
culturais elaborados, como a escrita (em romances, reportagens,
ensaios etc.).

Pensar a linguagem para além das teorias da época


Bakhtin e seu Círculo dialogaram com as principais correntes
de pensamento de seu tempo. Na Rússia da década de 1920,
tinham destaque as teorias de Karl Marx (1818-1883), das quais o
Círculo aproveitou a noção fundamental da vida vivida como
origem da formação da consciência. Na mesma época, o
formalismo imperava como modelo de análise da literatura.
Segundo essa linha, o primeiro passo para a construção de uma
ciência literária era considerar nesse campo de estudo apenas o
que fosse estritamente "literário" (com ênfase na poesia e num
claro desprezo à prosa, considerada gênero menor, o que mereceu
contestações severas do Círculo). No que tange à reflexão sobre a
linguagem, as teorias bakhtinianas se distanciaram da abordagem
proposta pelo suíço Ferdinand Saussure (1857-1913), que concebia
a língua como social apenas no que concerne às trocas entre os
indivíduos. Bakhtin e o Círculo, porém, viam a língua sofrer
influências do contexto social, da ideologia dominante e da luta de
classes. Por isso, era ao mesmo tempo produto e produtora de
ideologias.

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