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Os intelectuais
corajosos
Ah, sou um homem suscetível de violentas nostalgias. Gosto de
falar da vacina obrigatória, do naufrágio da Barca Sétima e do
assassinato de Pinheiro Machado. Sei que essas datas, esses fatos,
exalam um cheiro de remédio de barata. Mas ótimo que assim seja. O
remédio de barata é justamente o passado, sim, o passado em aroma.
Se me perguntarem o que é que se salva em mim, direi, de
fronte erguida: – “A memória!”. Agora mesmo estou evocando o Rio
do Fon-Fon, da Careta, do cinema mudo (o vilão do cinema usava
olheiras de rolha queimada). Era também o Rio dos poetas. Hoje, o
título de “poeta” não acrescenta nada ao próprio, nem aos familiares.
Antes, não.
No tempo de Raul Pederneiras, o homem de rua, de retreta, de
boteco, respeitava a inteligência. Quando eu tinha sete anos, uma
vizinha me chamou. Disse arrepiada: – “Teu pai tem o intelectual
muito desenvolvido!”. Meu pai fazia artigos assinados no Correio da
Manhã. E, quando passava, havia o murmúrio: “Que cabeça! Que
cabeça!”.
Naquele tempo, apontava-se o poeta no meio da rua. Ele era
um sujeito fortemente individualizado como “o soldado”, “o
marinheiro”, “o bombeiro”, “o pintor”. Este último punha no colarinho
uma gravata feérica ou, melhor dizendo, uma gravata que era um
repolho multicolorido. O artista plástico também usava um chapelão de
mexicano de Hollywood. A gravata era como que a farda do pintor.
Hoje, ninguém respeita a inteligência, nem a inteligência se
respeita a si mesma. Mas na minha infância o intelectual tinha o seu
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[O GLOBO, 23/4/1968]
23/4/1968]