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Nelson Rodrigues

MORRER COM
O S E R AM AD O
Desculpem, mas volto à minha infância.
Tenho usado muito uma imagem, que é a seguinte:
— o menino está enterrado no adulto como um
sapo de macumba. Nada mais verdadeiro. Esse
menino perene, dos seus sete, oito anos, existe em
mim como no dr. Brito. Eu o sinto, a toda hora e
em toda parte. E assim qualquer emoção é um
pretexto para a volta à rua Alegre, à Aldeia
Campista.
No capítulo de ontem, isto é, de anteontem,
falei, de passagem, na fome de 1918, 19 e, até, 20.
Dirá alguém que a fome é a mesma em qualquer
tempo em qualquer idioma. Ilusão. Não é a mesma
ou por outra: — conforme a época e o país, varia
de tipo, de gosto, de ênfase. Ora, naquele tempo a
fome era mansa e quase agradecida. Direi mais: —
o pobre não tinha nem o direito de invejar. Minha
infância está cheia de cenas cruéis. Lembro-me de
um roto, de um esfarrapado, que viu um rico, e o
lambeu com a vista.
Anos depois, a fome passou a ter outras
reações. Há pouco tempo, houve um episódio que
seria inviável em 1919. Vamos ao fato. Na véspera
do Natal, houve um assalto. Era um boteco, na

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hora de fechar. O português ia justamente arriar a
porta de aço quando sentiu um cano nas costas e a
voz: — “É um assalto”. Tudo aconteceu numa
progressão fulminante. O luso entrou e, atrás dele,
os três bandidos (exatamente três). Era um boteco
não sei se da Penha, Brás de Pina ou por aí. Um
dos assaltantes baixou a porta de aço. Disseram ao
português: — “Senta aí”. E ameaçaram o homem
de um “banho de balas” caso arriscasse um gesto
suspeito. Naquele momento, o nosso luso era
esperado em casa para a grande ceia. Parentes
chegados de Portugal estavam lá. Três ou quatro
garrafões de um santo vinho iam inundar a família.
O português começou por chamar os
assaltantes de “meus filhos”. Disse-lhes onde
estava o dinheiro; deu-lhes a chave; e só pedia,
como uma criança: — “Levem tudo, mas não me
façam mal”. Um crioulo magro o encara: — “Está
falando muito. Quer morrer, ô galego?”. O outro
parou. O terror alumiava o olho enorme. E, então,
os bandidos limparam tudo, rasparam o dinheiro,
arrancaram o anel e o relógio da vítima. O
português ainda balbuciou que não lhes queria mal
e quase os abençoava.

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Chegou a hora de fugir. Disseram: — “Fica
quieto ou morre”. Dois iam na frente e o crioulo
magro por último. Meia porta de aço foi erguida.
Passaram os dois primeiros, o crioulo magro pára
um momento. Fala: — “Toma um presente de
Natal”. Estava de revólver na mão e puxou o
gatilho.
Uma bala estourou a barriga do português.
No seu espanto, ergueu-se. Morreu na hora. Estava
morto e continuava de pé. Adiante, um táxi
esperava os bandidos. O crioulo magro, de peito
cavo, foi o último a entrar.
O carro partiu. Ao dobrar a primeira esquina,
derrapou como os gangsters de filme. E, por um
momento, ainda ficou de pé o cadáver espantado.
Morreu sem saber por que o matavam.
Eis o que eu queria dizer: — na minha
infância, o presente de Natal era uma
impossibilidade. É certo que em 1919 ainda se
falava muito do crime de Roca e Carleto. Mas Roca
foi preso e dizia: — “Sou inocente!”. Julgado e
condenado, repetiu: — “Sou inocente!”. Passou não
sei quantos anos na prisão. Lá, de vez em quando,
punha-se a berrar: — “Eu não matei! Eu não

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matei!”.
Não sei se Roca matou. Sua obsessão de
inocência era tão feroz que ele próprio há de ter
perdido qualquer noção de culpa. Mas eis o que eu
quero ressalvar: — se matou, não foi por fome. A
fome daquele tempo não matava. (Mataria antes e
depois: naquele tempo, não.) O assassino ou
suicida era o amoroso. Aí está dito tudo: — o ódio
nascia do amor e não da fome.
Se alguém traduzisse as manchetes de O Dia
e da Luta Democrática para um turista, este havia
de pensar, por outras palavras: — “O brasileiro vive
matando o ser amado”. Cabe uma retificação: —
antes matava mais. Por toda a Belle Époque, até
1920, por aí, o marido, a mulher, os namorados
brincavam com a morte. Sem desconfiar brincavam
com a morte. Uma jovem nunca sabia se estava
flertando com o seu assassino.
Em nossos dias, um dos tipos de relação
conjugal não excepcionais é o seguinte: — a
infidelidade recíproca e consentida. Os dois sabem.
O “último a saber” das velhas gerações passou de
moda. Hoje é comum que o marido saiba antes dos
outros e, por vezes, antes da infidelidade. Há os

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que adivinham, sim, os proféticos.
Via de regra, o nosso jornal moderno tem
pudor de valorizar e dramatizar o crime passional
(fora os casos já referidos de O Dia e da Luta
Democrática). Marido que mata mulher, ou mulher
que mata marido, é tratado sem nenhum patético,
em forma de pura, sucinta e objetiva informação.
(O Jornal do Brasil vai mais longe. Ignora qualquer
modalidade de crime e de criminoso. Os
atropelados, os esfaqueados, os enforcados, que
comprem outros jornais. O do Brasil não lhes dará
a mínima cobertura. Um dia, por força do seu
desenvolvimento, este país terá o seu vampiro. Mas
não se preocupem. No dia em que alguém chupar a
carótida de alguém, o sangue há de tingir todas as
primeiras páginas. Só a do Jornal do Brasil
continuará firme no seu preto e branco.)
Em 1919 a nossa imprensa gostava de
sangue. O futebol ainda não se instalara na
primeira página. E a adúltera assassinada era mais
promovida do que a Bovary ou a Karenina. A
reportagem invadia o necrotério, a alcova, e fazia
um saque de fotografias e cartas íntimas. Lembro-
me de um senador, tribuno fabuloso, patriota de

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causas sublimes. Um dia descobre que era traído e
fuzilou a mulher. Não houve o flagrante e, depois
das 24 horas, lá estava ele na porta do cemitério.
Quando o caixão da vítima ia passando, cuspiu-lhe
em cima.
Tudo isso, inclusive a cusparada, saiu nos
jornais mais graves. E a Aldeia Campista em peso
disse: — “Bem feito! Bem feito!”. O senador fez
isso, ainda enxugou com o lenço a saliva vingadora
e foi tomar o táxi, adiante. Eu então já sabia ler.
Saí do Tico-Tico para as histórias de amor e morte.
Descobria que o homem mata e se mata por amor.
E quando num crime havia amor, eu me crispava
de beleza.
Dizia eu que o idílio mais terno e manso
podia ser um ensaio para a morte. Um dia saiu nos
jornais um episódio que assombrou a cidade.
Imaginem dois namorados, ele dezessete, ela
dezesseis anos. As duas famílias faziam gosto. Ao
cair da tarde, passeavam na calçada de mãos
dadas. Iam ficar noivos e, de quinze em quinze
minutos, um gostava mais do outro. Até que um
dia saíram para visitar uma tia. E lá não chegaram.
No dia seguinte, encontraram os dois, perto da

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Cascatinha, e mortos. Ao lado, um vidro de um
desinfetante então muito usado — Lysol. Um
bilhete assinado pelos dois, dizendo: — “Morremos
felizes”. Só. Foi então que eu, ferido de espanto,
descobri: — quem nunca desejou morrer com o ser
amado, não conhece o amor, não sabe o que é
amar.

O GLOBO, 8. 1. 1968

APEDEUTEKA GUINEFORT 2014

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