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Apelo de uma fé
perdida
Imagino a seguinte cena: – d. Hélder chega à janela
e olha o céu. No verso do Chico Buarque não há janela
intranscendente, e explico: – qualquer janela nos põe em
relação direta, fulminante, com o infinito. Assim está certo
o poeta popular. É preciso usar as janelas com larga e
cálida abundância.
Mas volto a d. Hélder. Ele olha o céu, e por quê?
Minha infância foi a época dos valores nítidos, sim, dos
valores precisos. Céu era Céu. Deus era Deus. O Diabo era
o Diabo. Por outro lado, o céu era a evidência do
sobrenatural e, repito, por trás do azul residia o
sobrenatural. E, quando o sujeito olhava para o alto, um
arroubo subia de suas entranhas.
Continua de pé a pergunta: – Por que d. Hélder, na
cena imaginária, olha o céu? Será a nostalgia da vida
eterna? Sabemos que, em nosso tempo, a vida eterna
perdeu a sua função, e insisto: – é tão inatural, tão
obsoleta, tão fora de moda como o primeiro espartilho de
Sarah Bernhardt. Mas não importa. Há momentos em que
o homem recebe o apelo da fé perdida. E, por vezes, baixa
sobre nós o tédio do efêmero, do contingente, do perecível.
Quem sabe se d. Hélder quer provar, de novo, o mel
do eterno?
Não creio, eis a verdade, não creio na hipótese
mística. Acreditem: – d. Hélder só olha o céu para saber
se leva ou não o guarda-chuva. Põe-se na janela, como a
Carolina, mas com desígnios estritamente meteorológicos.
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passa fome?”.
Depois disso, o speaker poderia insistir? Nunca. E,
ao mesmo tempo, não sabemos o que mais admirar em d.
Hélder: se a fina inteligência, se a cálida bondade. Uma
telespectadora resmungou: – “Não respondeu”.
Engano da santa senhora. Respondeu, ou por outra,
sua aparente evasiva era já uma resposta. Interrogado
sobre o amor livre, d. Hélder falou da “fome no Nordeste”.
Aí está dito tudo. Vou mais longe: mais do que uma
resposta, as palavras do caro arcebispo encerram uma
solução. É preciso saber ler nas entrelinhas. Não
precisamos namorar em portão, sala de visitas ou cinema.
Nada de andar de mãos dadas como em 1920. Estão
suspensos os beijos. D. Hélder disse que “o Nordeste passa
fome”. Portanto, o amor livre ou enjaulado perde a sua
função. Os problemas da carne e da alma estão resolvidos:
o Nordeste passa fome.
Vejam vocês: na primeira oportunidade eu estaria
disposto a perguntar a d. Hélder: – “Que me diz o senhor
ou que notícias me dá da minha vida eterna?”. Não farei,
porém, tal consulta, porque o querido arcebispo havia de
me atirar na cara a “fome do Nordeste”. Faz-se assim uma
promoção inédita da fome. Mas bolas: – e por que só a do
Nordeste? As outras não merecem uma fatia de pão e um
pouco de manteiga para lhes barrarem por cima? Por
outro lado, é uma visão utópica a desse Brasil, onde só o
Nordeste passa fome.
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[O GLOBO, 29/12/1967]