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Nelson Rodrigues

A AT R IZ
IN T E L IG E N T E
Não há dúvida que se cavou um abismo, um voraz abismo, entre
o antigo teatro e o novo. (Pode parecer que eu esteja aqui dizendo o
óbvio ululante. Paciência). E não se trata do estilo de representação.
Outrora, um ator entrava em cena com uma saúde e um estardalhaço de
centauro. E o último suspiro da Dama das camélias era um rugido. Hoje,
berra-se pouco, urra-se menos. Sim, o artista é mais sóbrio, mais
contido. Morre e mata com mais cerimônia e polidez. Sua tensão é
superiormente controlada.
Mas o que me impressiona não é a dessemelhança de
comportamento cênico. O artista mudou até na vida real.
Voltemos, por um momento, à belle époque. Faz de conta que
ainda não houve a primeira batalha do Marne, nem os táxis de Paris
salvaram a França. Imaginemos por um momento que Mata-Hari, a
espiã de um seio só, ainda não foi fuzilada, e que tampouco ocorreu a
primeira audição do Danúbio azul.
Pergunto: – e que fazia então, no palco e fora dele, uma atriz?
Qual o seu tipo de vida? As prima-donas vinham realizar, cá fora, todo o
patético e todo o sublime dos papéis românticos. Uma Sarah Bernhardt
amava mais no mundo do que no palco. Seria uma humilhação para uma
atriz passar quinze minutos sem uma paixão suicida e homicida. O que
a Duse amou D’Annunzio! O grande homem estava, então, em furioso
apogeu. Durante vinte anos, o poeta reinou em toda a Europa. Era uma
vergonha não ser amante de D’Annunzio. E a Duse o amou e, pior do
que isso, deu-lhe dinheiro. Não satisfeita, a trágica mandava o seu
“relações-públicas” espalhar que pagava o esteta. A humilhação
também era promocional. Vejam bem: – uma atriz precisava ter, por
fundo, amores reais e crudelíssimos. Ou ateava paixões e suicídios ou
deixava de ser bilheteria.

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Hoje, não há mais similitude entre o real e o ideal. A ficção vai
para um lado e a vida para outro. Vejam o teatro brasileiro. As nossas
musas não amam ou, se amam, ninguém sabe. Dirá alguém que, hoje, o
sexo é menos promocional. Pode ser, quem sabe? E, realmente, depois
de Freud, o homem passou a amar menos. Ainda outro dia, uma
mocinha, em pânico, correu à mãe. Soluçava: – “Estou amando! Estou
amando!”. A mãe tremeu em cima dos sapatos, horrorizada. O pai soube
e também pôs as mãos na cabeça. Foi chamado, às pressas, um
psiquiatra. Finalmente, a menina recebeu um tratamento de choques
para se curar do amor. O amor virou doença.
Volto ao teatro. Há uns meses que faço a pergunta, sem lhe
achar a resposta: – “O que é que mudou essencialmente nas atrizes,
nos atores, nos diretores?”. Outra pergunta: – “E por que não há mais
Duse, nem há mais D’Annunzio?”. Imaginem vocês que, de repente,
descobri toda a verdade.
Ontem, eu ia ver, no Teatro Jovem, a peça de José Wilker,
Trágico acidente destronou Teresa. (Um texto admirável. Resta saber que
tratamento lhe deu Kleber Santos). Mas aconteceu não sei o que e
fiquei em casa. Ligo a televisão. E, por felicidade, vi e ouvi a entrevista
da sra. Maria Fernanda. Foi aí que, de supetão, descobri qual é,
exatamente, a dessemelhança entre a atriz moderna e a da belle époque.
Uma é inteligente e a outra não.
Não exagero. No antigo teatro, a atriz não pensava,
simplesmente não pensava. A maioria absoluta, para não dizer a
unanimidade, nascia, vivia e morria sem ter arriscado jamais uma frase
própria. Graças a Deus, não havia rádio, nem televisão. E, na hora de
dar uma entrevista, a diva chamava o poeta mais à mão e este redigia,
com o maior rigor estilístico, as suas declarações. Mas, no teatro

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moderno, a atriz pensa como nunca. E as que não pensam pensam que
pensam. (Desculpem o jogo de palavras). Pois bem. O que a televisão
nos mostrou foi a sra. Maria Fernanda pensando.
O repórter e deputado Amaral Neto fazia as perguntas.
E justiça se lhe faça: – como a atriz falou bem! Não me refiro
somente às idéias, todas de uma fascinante originalidade. Há também a
considerável vantagem do métier, que é a inflexão.
E como a TV é imagem, a atriz faz uma composição cênica da
mais fina qualidade. Assim o sorriso, e o olhar, e o movimento das mãos
e, mesmo, o clima que se evolava da entrevistada. O fato é que a sra.
Maria Fernanda não dizia duas ou três frases sem lhes salpicar outras
duas ou três verdades eternas.
A notável atriz está representando, no momento, uma peça do
falso grande dramaturgo Arthur Miller. E discorreu, exatamente, sobre
esse texto e respectiva encenação. O repórter Amaral Neto pediu-lhe
que resumisse a mensagem do drama. Outra qualquer se teria
arremessado em uma fulminante resposta. Não a sra. Maria Fernanda.
Fez uma pausa de duração calculada. E, por fim, respondeu: – “A peça
é o problema de opção”.
Nos lares, as donas de casa, os chefes de família, as tias se
entreolharam. Rola, por toda a cidade, um suspense atroz. Mas havia
mais, havia mais. E a sra. Maria Fernanda varreu todas as dúvidas: –
“O problema da nossa época é a opção”. Alguns descontentes, que
sempre os há, poderão insinuar que a atriz não disse nada, nem de novo,
nem de profundo. Vejamos: – “O problema de nossa época é a opção”.
Isso, dito por qualquer outra, não teria maior transcendência. Mas, em
teatro, a inflexão é tudo. Um vago “bom-dia”, dito da maneira certa,
adquire uma profundeza inimaginável. E a “opção” da sra. Maria

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Fernanda deu-nos uma vertigem de abismo. Ao mesmo tempo, ela
parecia ter, na testa, a seguinte manchete: – “Inteligência aqui é
mato”.
Sim, subiu muito o nosso nível intelectual. Contei o caso
daquela grã-fina que leu as orelhas de Marcuse. Leu as orelhas e saiu,
na passeata, ao lado dos intelectuais e como um deles. Mas voltemos ao
nosso teatro. Tenho um amigo que é um retrógrado, um obscurantista,
que os íntimos chamam de “a própria Idade Média”. Ele mesmo, antes
de opinar, faz sempre a ressalva: – “Eu, que sou a Idade Média” etc.
etc. Esse amigo relembrava, com inconsolável nostalgia, as gerações
românticas. Naquela época, o ator era grande porque não pensava. E
essa radiante obtusidade dava-lhe a tensão dionisíaca que a poesia
dramática exige. Quanto à “opção”, não sei se ela existe. A meu ver,
nunca optamos tão pouco. Somos pré-fabricados.
É difícil para o homem moderno ousar um movimento próprio.
Nossa vida é a soma de idéias feitas, de frases feitas, de sentimentos
feitos, de atos feitos, de ódios feitos, de angústias feitas. A última
passeata mostrou como é rala a nossa autodeterminação.
Eis o fato: – no meio do caminho, o líder Vladimir Palmeira
trepou no automóvel e disse: – “Estamos cansados”. Ninguém estava
cansado. Mas, como ele o dizia, começamos a arquejar de uma dispnéia
induzida. (Parecíamos uns barqueiros do Volga). Em seguida, ele
acrescentou: – “Vamos sentar”. Falava para a parte mais lúcida do
Brasil. Ali, estavam médicos, romancistas, poetas, atores, atrizes,
arquitetos, professores, sacerdotes, estudantes, engenheiros (só não
víamos um único preto ou um único operário).
Como reagiu a elite espiritual do país? Sentando-se no asfalto e
no meio-fio. A única que permaneceu de pé e assim ficou foi uma grã-

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fina, justamente a que lera as orelhas de Marcuse. Estava com um
vestido chegado de Paris. E não quis amarrotar a saia. Todos sentados, e
ela, alta, ereta, numa solidão de Joana D’Arc.

[O GLOBO, 30/7/1968]

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