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Fevereiro de 2012

Instituto Müller-Granzotto - Especialização em Gestalt-terapia - II ano


Turma Franz Brentano
Fabio Henrique Medeiros Bogo

Bosta

Era o jardim-de-infância em Dois Vizinhos todo de novo; e Felipe tinha certeza de que o
problema não estava no jardim-de-infância, mas sim no “de novo”...
Não importava pra Felipe o evento completamente inconveniente dos tempos de piá no
interior do Paraná, que, caso tivesse ocorrido com outra criança, poderia ter sido uma bosta.
Tinha acontecido era com ele, e ele era forte e intransponível demais para deixar-se perturbar
por esses fantasmas: estava no passado e lá deveria ficar, sem pensar muito. Tinha sido coisa
de criança, e criança precisa passar por isso pra aprender a ser gente, a se segurar, a ter
autocontrole.
Hoje, por exemplo, Felipe era um sujeito super autocontrolado, pra que ninguém tivesse
motivo pra rir dele no alto de seus trinta e quatro anos de barba castanha muito espessa e
muito bem cuidada, e seus sapatos um número menor que o pé, cujo enorme desconforto
Felipe nunca permitiu e que uma única alma percebesse. Hoje era uma pessoa muito, muito
maior do que aquele piá-de-bosta de pés descalços que vivera e permanecera em Dois
Vizinhos enquanto Felipe foi adiante, igualzinho a uma cobra que troca de pele e deixa pra trás
a casca escamosa que já não mais lhe cabe.
Então por que essa lembrança repentina do dia de bosta de três décadas atrás? Felipe
não sabia. O que havia em seu dia de trabalho tão rotineiro - moroso, até - que o fizesse
recordar justamente do dia que tentava esquecer? Felipe também não sabia: ele não sabia
nada, e nada lhe vinha à cabeça.
- Deu branco, Felipe? - perguntou Celine quando passou por ele pela terceira vez - Tá
aí olhando pra essa tela branca há tempo...
- Sei lá, Celine - ele resolveu dar a entender que estava sem ideias pra escrever, o que
não deixava de ser verdade - me diz aí como que eu escrevo a resposta pro banco. Tentei
escrever aqui mas saiu uma bosta.
- Eu? O representante da firma pro banco és tu! - a estagiária da contabilidade se
debruçou sobre a mesa e leu o esboço de parágrafo que Felipe digitara no editor de texto, um
início de resposta ao e-mail do gerente do banco que, tal como já era de costume, vinha tentar
extorqui-los de uma taxa aqui e uma tarifa ali - por que é que tem que ter tanto cuidado na
escrita, é alguma coisa muito importante?
- Não, só tô respondendo uma dúvida que eles mandaram, sobre o pagamento da
nossa anuidade. Mas tem que escrever bem formalzinho, né...
- Quem vai ler isso é o gerente! Tu achas que ele vai o quê, te chamar pra Academia
Brasileira de Letras? Bota qualquer coisa aí!
Felipe respondeu na lata, como sempre conseguia fazer com qualquer um que
ocupasse um posto menor que o dele:
- Vai agindo assim, jogando bosta no ventilador, quero ver se tu vais ser efetivada no
teu estágio. Tás querendo é dar um corte no cara.
Celine endireitou as costas ponderando por um segundo, pensando que era óbvio que
ela queria dar um ponto final nas impertinências do tal gerente do banco, tanto quanto Felipe
também o queria; no segundo seguinte, porém, Celine se deu conta que ela não queria era
nada, só o corretivo emprestado. Encontrou-o no canto da mesa atrás de uma caixa de clipes,
deu as costas e voltou aos seus afazeres, deixando Felipe sozinho com suas lamentações:
- E mais uma vez, sobra pra mim meter a mão na bosta – e, com um sonoro suspiro
(que ninguém pareceu ouvir ou, pior ainda, dar a mínima), tocou a escrever. Quinze minutos e
três parágrafos depois, o corpo do e-mail de resposta estava pronto, com todas as informações
necessárias e um tom que Felipe julgou ótimo, na medida exata entre a polidez e a
assertividade, explicando que a anuidade já estava paga há duas semanas e eles dispunham
do comprovante, ficando claro que tudo não passava de um equívoco da parte do gerente.
Pensou em chamar Celine para conferir seu êxito retórico, mas temendo um olhar de
reprovação por tê-la importunado duas vezes em um período tão curto de tempo, deixou o texto
em banho-maria no editor por quase uma hora, até que ela se levantasse por conta própria
para apanhar um copinho de café. Só então convocou-a.
- Olha só, Celine, que legal que ficou – gabou-se, e descreveu à estagiária linha por
linha de seu e-mail, as razões por ter usado cada termo e a mensagem que intencionava
transmitir – e aí, curtiu?
- Sim, sim, tá legal... e não mandou ainda?
Felipe vacilou tentando achar um motivo para ainda não ter mandado e, ao fim, disse
qualquer coisa sobre esperar estrategicamente passar a hora do rush no banco pra mandar o
e-mail, garantindo assim que o gerente poderia ler com a devida atenção e não correr o risco
de deleta-lo junto com correntes, anúncios de promoções e outros tipos de ​spam​.
Naturalmente, utilizou a palavra “bosta” uma ou duas vezes – há muito não contava o número
de ocorrências do seu cacoete linguajeiro. Olhando-a no rosto, reconheceu seu franzir de testa
e decidiu entende-lo como um sinal de “é, faz sentido, você tem razão”. Isso o satisfez, apesar
do e-mail ainda estar ali, intocado.
E algo mais ainda estava ali, indesejado e irrefreável: o dia do jardim-de-infância em
Dois Vizinhos, todo de novo, com direito a ansiedade, desconcentração e um esfregar contínuo
de um pé no outro, como que para remover a bosta encrustada entre os dedos. Foi o que faltou
fazer há trinta anos, quando Felipe entrou na sala da diretora do jardim-de-infância arrastado
pelo braço pela professora, com os pés descalços enegrecidos pela mistura pastosa de areia
com suas próprias fezes, na qual havia pisado. Nunca um adulto parecera tão grande e
ameaçador, e nunca uma brincadeira fora ressignificada como algo tão sujo quanto aquele
experimento de fazer cocô no ​playground e depois amassa-lo com os pezinhos. Felipe tinha
certeza que sua mente havia há tempo abandonado essa experiência, mas estava começando
a dar-se conta de que seu corpo revivia aquela sensação de novo, e de novo, e de novo. Não
com Celine, claro, que não passava de uma estagiária. Mas o gerente do banco? Esse, sem
rosto, voz ou postura, sem nada além de um endereço eletrônico e uma assinatura
padronizada, acusando-o e cobrando-lhe explicações, esse era perigoso demais.
A face da diretora caía-lhe muito fácil.

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