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COPQUE, B.. Fotografar: expor (e se expor).

A utilização da fotografia no contexto da


pesquisa antropológica.. In: Lígia Ferro; Renata Gonçalves; Otávio Raposo. (Org.).
Expressões artísticas urbanas: Etnografia e criatividade. 1ed.Rio de Janeiro: Editora Mauad,
2015, v. , p. 0-0.

Fotografar: expor (e se expor). A utilização da fotografia no contexto


da pesquisa antropológica.
Bárbara Copque

Durante a minha formação nas Ciências Sociais, a ideia de “distanciamento”


como um conceito necessário para a compreensão dos mundos sociais, como condição
para a análise antropológica foi muito enfatizada, solicitada inclusive (VELHO,1978:
36). Todavia, esse exercício do distanciamento não é fácil de ser compreendido e muito
menos de ser praticado, pois o que se pede é também a separação da reflexão em relação
às demandas “imediatas” da vida. E como desejava compreender a lógica das coisas, fui
levada – por alguns momentos - a querer viver as razões práticas dos atores que
participavam dos fenômenos que buscava conhecer. Por esse motivo, e desde o início,
tentei dar conta de minhas simpatias, ou não, em relação ao fenômeno que desejava
investigar; aliás, nunca foi tão difícil, tão necessário e tão desafiador colocar em
suspensão minhas pré-noções e valores para tentar compreender - mais particularmente
- os grupos que constituíram o objeto desta comunicação, cujas temáticas, da violência e
sua relação com as estruturas familiares, são recorrentes: meninos em situação de rua
advindos do tráfico, homens e mulheres em cumprimento pena nas penitenciárias do
Rio de Janeiro.

Alba Zaluar, por exemplo, ao recordar os seus estudos sobre a violência urbana
na cidade do Rio de Janeiro, iniciados no começo dos anos de 1980, chama atenção para
os limites das possibilidades de interação entre o antropólogo e seus sujeitos, impostos
pela própria temática:

“Para quem estuda grupos à margem da lei, enfrentando a


perseguição da polícia e da justiça, muitas armadilhas e perigos vão
aparecer, a maior parte dos quais sem roteiro, sem expectativas já
discutidas, sem um código claro de como se comportar para adquirir a
confiança dos estudados sem ter que se tornar um criminoso como
eles. Não há fórmulas para passar adiante. A arte de se relacionar e a
criatividade em fazer as perguntas certas a pessoas certas não se
aprende em textos acadêmicos, mas na experiência vivida, na atenção
redobrada para "saber entrar" e "saber sair", expressões nativas
corriqueiras, principalmente nas vizinhanças dominadas por
traficantes.” (2009, pp. 567-568)

A leitura dessa e outras passagens foram de importância considerável, pois


compreendi que os obstáculos e os problemas encontrados no trabalho de campo não me
eram exclusivos. Embora existam muitas reflexões sobre essa temática específica
(FOOTE-WHYTE, 2005 [1943]; SILVA , H. R. & MILITO, 1995; ZALUAR, 1994 ),
me deparei com uma questão crucial para as minhas pesquisas: a difícil entrada e
permanência no campo de “risco" com uma câmera fotográfica, o acesso restrito às
dinâmicas do grupo e às redes de informantes. Como assinala Zaluar, as estratégias
adotadas e o modo como elas são usadas determinam não apenas a maneira de realizar a
pesquisa, mas também o tipo de investigação a ser produzida, tudo associado à posição
e, portanto, ao lugar que assumimos no campo e, particularmente, nas pesquisas com
grupos à margem da lei em contextos de violência, desvios e/ou ilegalidades. Cabe
ressaltar que os problemas de acesso e de interação não são exclusivos desse tipo de
investigação, eles estão presentes em muitas situações etnográficas, mas cada uma tem a
sua especificidade. Já nos trabalhos de Alba Zaluar (1994; 2009), por exemplo, essa
preocupação está de tal modo presente que todas as estratégias empregadas são por ela
explicitadas para que possamos entender as circunstâncias em que obteve os dados da
pesquisa e sua qualidade. No caso da minha pesquisa, que inclui a produção de
fotografias, a insegurança me obrigou a (re)pensar algumas estratégias para a sua
viabilização. Em primeiro lugar, as mais evidentes: estabelecer uma rede de
interlocutores; e em seguida, garantir a minha entrada e permanência com o(s)
equipamento(s) fotográfico(s).

O “CONTRADOM AUDIOVISUAL”
COM OS MENINOS
Na dissertação, com a mediação de uma ONG - a Ex-Cola - atuante no bairro da Lapa -
Rio de Janeiro, quinze máquinas fotográficas (analógicas), de fácil manejo, foram
distribuídas aos “meninos”. A idéia era de que cada um - seguindo algumas orientações
de ordem técnica -, fotografasse o seu dia-a-dia, criando trajetórias individuais de
apreensão da realidade. Dessa forma, o encontro etnográfico foi mediado pela utilização
da fotografia que, além de reforçar a interação com os “meninos”, permitiu a
intensificação do ato de olhar dos envolvidos, animando narrativas visuais e relatos
verbais sobre as identidades e subjetividades relativas ao contexto em que viviam: a rua.
Entretanto, a rua se impôs como um obstáculo ao diálogo, pois transforma a realidade
através dos personagens que nela passeiam (COSTA LEITE, 1998: 67), conferindo
àqueles que fazem dela a sua moradia os atributos próprios do lugar: sujeira e
periculosidade (DAMATTA, 1997). Ela está, assim, associada à violência.

Com efeito, a imagem do “menino de rua” reafirma a ameaça e o incômodo causado na


sociedade, o que pode significar a construção de uma representação social deste como
perigoso (GOFFMAN, 2001), uma ameaça constante ao mundo da ordem, sendo a sua
própria presença um incômodo a ser isolado, excluído e até mesmo exterminado 1.
Tiago, um dos “meninos”, trazia várias marcas no corpo que traduziam a violência de
seu cotidiano nas ruas: “tenho o corpo todo furado. E foi de bala. É sério, aqui ó!”. Tais
cicatrizes são conseqüência de “uns vacilos aí” nas ruas, do consumo de drogas ilícitas,
de alguns furtos que “pegava com as mãos pra comprar algumas coisas que tava
precisando” e da violência praticada por policiais2. Tiago foi pego por agredir um
guarda municipal numa discussão. Situação que resultou em sua apreensão. No
momento da pesquisa, ele estava em liberdade assistida. Diante disso, temia ser
abordado pelos policiais com uma câmera fotográfica nas mãos: “[...] e se me param na
rua e eu for preso?!” Entretanto, a utilização de um crachá de identificação com a
inscrição Oficina de Fotografia, ajudou a delimitar as fronteiras que estabeleciam as

1
Ver ALVIM, Rosilene Barbosa et alii. Da violência contra o menor ao extermínio de crianças e
adolescentes. Rio de janeiro, Nepi-CBIA, 1991.; DIMENSTAIN, Gilberto. A guerra dos meninos:
assassinatos de menores no Brasil. 6.ed., São Paulo: Brasiliense, 1991.; MILITO, Claudia et alii.
Homicídios dolosos praticados contra menores no Estado do Rio de Janeiro – 1991 a julho de 1993. Rio
de Janeiro, Fase/Ibase/Idac/Iser, 1993 e; MNMMP/Ibase/Nev/USP. Vidas em Risco: assassinato de
crianças e adolescentes no Brasil. 1991.
2
A relação dos policiais com os meninos é envolta de muitas ambigüidades por ser o policial ora protetor,
ora cúmplice e assassino. Em alguns casos, os próprios furtos são estimulados e divididos entre os
policiais.
diferenças entre ser menor infrator reincidente e ser um adolescente em situação de
risco.

...

A fotografia em campo com os “meninos de rua” criou algumas situações inusitadas


para eles, ao deslocá-los, momentaneamente, da situação de risco em que se
encontravam, para uma nova situação, a de relativizar seu cotidiano - tal qual o
movimento antropológico. O fascínio pela linguagem fotográfica esteve presente
durante todo o projeto, principalmente porque alguns nunca haviam tido contato com
sua imagem, com uma câmera e nem com a imagem fotográfica. Ao longo das saídas
individuais, aconteceram fatos surpreendentes: um dos participantes, Leonardo, de 16
anos, morador de rua há 7 anos, ansioso por fotografar, “comprou” uma câmera
fotográfica, o que me deixou apreensiva. Outro episódio surpreendente diz respeito à
relação que se estabeleceu entre nós. Segundo C. Peixoto, “o ato de reproduzir a
imagem do outro exige uma contrapartida” (2000: 82) e a doação das fotografias, seria o
meu “contradom audiovisual” (idem, 1995: 73). No entanto, por não possuírem abrigos
para guardar as fotografias produzidas - muitas das vezes os bueiros servem de armários
para os habitantes de rua – elas foram a mim confiadas. E esta era, talvez, uma das
minhas mais importantes obrigações: levar a cada encontro, todas as fotos, já que eles as
solicitavam a cada instante. Um esquecimento era motivo de repreensão da parte deles.

Num outro movimento, a imagem enquadrada apontava para o seu extraquadro:


Vicente, também participante da oficina, em seu primeiro relato sobre os motivos que o
levaram à produção e à escolha do seu auto-retrato, se justifica evasivamente: “porque
sou eu”.
Auto-retrato de Vicente.

No entanto, no trabalho de campo, as fotografias fazem suas próprias perguntas e,


como uma interlocutora, faz-nos falar. Com efeito, a indisposição de Vicente ao diálogo
foi rompida quando percebeu a sua semelhança com o pai e, assim, novas revelações
foram compartilhadas: “Todo mundo fala que pareço com meu pai. Eu olho assim e não
vejo tanto. Eu não tenho muita foto minha. Minha mãe é que tem”. Nos encontros
seguintes, a mesma imagem foi apresentada com o intuito de provocar, em Vicente,
reflexões sobre sua trajetória pessoal e, como resposta, obtive:

“Penso: Esse cara é um canalha! Olha só a aparência dele, calmo! Mas, lá no


fundo é um canalha. Mas nunca fui amigo urso, não! (...) me vejo nela assim
não triste, não pensativo ... pensamentos de culpa e revolta é o que sinto
hoje. Hoje só penso nisso. Às vezes não durmo e choro. Mas, fico revoltado,
não é com as pessoas não! A ponto de chegar agredir. É comigo mesmo. Por
não poder mudar meus erros. Tenho sentimento de culpa. Por causa de mim
mesmo e não por causa que matei alguém. Mas, porque sou ruim comigo
mesmo. Porque eu matei e não tive culpa em matar. Sou um monstro!”

Continuando o relato,

“Na rua, durante um assalto assassinei um comerciante a queima-roupa sem


testemunhas e a imagem do sangue jorrando ainda permanece nos meus
sonhos. Não consigo dormir. Foi eu e mais dois amigos lá [pausa]. Foi a
primeira vez que peguei numa arma, uma 38... foi de noite e eu tava muito
nervoso, nunca tinha assaltado... e foi sem querer, foi do nervoso.”

Podemos perceber, assim, que a leitura e a (re)interpretação de uma mesma imagem


incentiva a criação de um campo dialógico que amplia o significado original da imagem
fotografada.

...

Ao longo do trabalho de campo desenvolvido com um grupo de “meninos de rua” tive a


oportunidade de estar em contato com o universo feminino infrator, e essa experiência
suscitou questões sobre a criminalidade feminina que ficaram reservadas para um
estudo posterior. Em 2005 retomo tais questões com a pesquisa de doutoramento que
pretendia, a partir de um estudo etnográfico, investigar os sentidos sobre a gravidez e a
maternidade em mulheres que são mães durante o cumprimento da pena em
penitenciária do Rio de Janeiro. Entretanto, inúmeras foram as tentativas para entrar
oficialmente no Presídio Feminino Talavera Bruce: um empreendimento inacabado seja
pelo rigor dos critérios para obter a autorização, seja por uma total falta de cooperação
dos agentes institucionais. Assim, o caminho foi buscar canais não-oficiais. E, através
rede de informantes, acabei sendo encaminhada ao Complexo prisional de Gericinó.

NO TALAVERA BRUCE

“Se você abrir uma pessoa, irá achar paisagens. Se me abrir, encontrará praias”. É assim
que Agnès Varda (2008), cineasta belga, apresenta seu filme e, através das praias,
atualiza seu passado. Quando, entre os anos de 1976 e 1978, os portões da penitenciária
Talavera Bruce – unidade feminina situada no Complexo Gericinó/Bangu - foram
abertos para a pesquisadora J. Lemgruber (1983), ela se deparou com

“paredes e portas cinzas, despojadas de qualquer elemento decorativo; piso


em cerâmica, de um verde esmaecido e sempre impecavelmente limpo;
corredores que parecem não ter fim – tudo transmite a sensação de vazio
imenso. Internamente também não há que pairar dúvidas: isto é uma prisão.”
(p.29)
No entanto, em 2009, ao ultrapassar os mesmos portões, logo percebi uma mudança da
relação com o ambiente prisional. Não por acaso, a primeira parede com a qual nos
deparamos ao entrar na Talavera Bruce é cor-de-rosa, e uma das portas é totalmente
pintada, tendo como motivo uma paisagem bucólica. Isto aqui é uma prisão?! De
imediato revi R. Barthes (1980) em A Câmera Clara e a foto me aconteceu: fotografei o
studium, esse campo de informações possíveis nessa imagem que se ofereceu ao meu
intelecto (p. 46), ou nas palavras de E. Samain, “a fotografia enquanto ela vem me
procurar – eu sujeito de sua leitura – informando-me, comunicando-me, oferecendo-me
o sentido”. (1998, p.130).

Entrada da Talavera Bruce.

As paredes coloridas e decoradas que encontrei no Talavera Bruce dialogavam com um


dia especial na penitenciária: tratava-se da realização do III Festival da Canção
Penitenciária, um evento que mobilizou não só as detentas, mas também todo o corpo
funcional da instituição, e o meu olhar. Como numa antítese, o Festival da Canção
rompia com a rotina comumente característica das instituições prisionais, alterando as
regras de funcionamento e introduzindo uma nova dinâmica, ainda que fugaz, no
interior da penitenciária. Cabe salientar que no Talavera, diferentemente das unidades
masculinas, as detentas não ficam restritas às celas durante o dia. Há uma aparente
mobilidade; há uma circulação vigiada, um trânsito disciplinado. Entretanto, o que
caracteriza o discurso disciplinar nos meios de confinamento é que ele se torna norma;
ainda que extrínseco ao domínio da lei, acaba substituindo-a e, de uma forma muito
diferenciada, naturalizando as condutas. No caso do Talavera Bruce, encontramos esse
discurso em formas difusas: quando iniciei o meu trabalho de campo tive como
recomendação comparecer somente com o necessário para a pesquisa: uma caneta e o
papel para as anotações, não abordar temas como a visita íntima e as relações
homossexuais. E durante o evento, já com a câmera na mão (autorizada para o evento),
a orientação das agentes era para que o meu fotografar se limitasse ao espaço do
auditório.
No que concerne à natureza da fotografia, o ato de fotografar implica necessariamente
na escolha de um enquadramento no tempo e no espaço, ou seja, numa síntese entre o
evento que se apresenta e as interpretações construídas sobre ele. Dessa forma, adianto
que no meu ato fotográfico não intencionava documentar, mas sim utilizar a fotografia
como um suporte auxiliar para a apreensão daquela realidade, como reiteração das
minhas observações e, principalmente, como facilitadora do meu diálogo em campo,
pois num processo de investigação colaborativa muitas vezes a feitura das imagens era
dividida com as internas e os agentes que me apontavam não só como elas deveriam ser
enquadradas como, também, o seu conteúdo. Foi este o caso, já que enquanto
fotografava fui abordada por uma interna que me pediu para fotografá-la:

Interna da Talavera Bruce.


“Quantos filhos você tem?” perguntei-lhe. “Dois, um casal.” E continuou: “Você pode
me enviar essa foto pra mandar pra eles?!”

O inesperado pedido permite pensar sobre o corpo como suporte de tantos discursos
possíveis, especialmente aquele que revela o modo de vestir e, consequentemente, a
questão do vestir como linguagem. As frases bordadas (pela interna) na camiseta para o
dia de festa, dado que a presença de fotógrafos e jornalistas era conhecida, estimulam a
comunicação e passam o recado: “meus filhos eu te amo”, bordou a interna. Durante o
fotografar descubro que ela raramente recebe a visita dos filhos e de familiares, situação
bastante comum na TB e em outros estabelecimentos prisionais femininos. Segundo o
relatório final 3 do grupo de trabalho interministerial para a reorganização e
reformulação do sistema prisional feminino, as visitas nas unidades prisionais
brasileiras são reduzidas: menos de um terço das presas brasileiras, recebem visitas
(BRASIL, 2007, p.89). E os fatores que dificultam tais visitações são inúmeros, mas a
concentração de unidades em locais distantes associadas aos custos financeiros do
deslocamento, aos calendários que estabelecem as visitas apenas em dias úteis e ao
estigma experimentado pela mulher delituosa são fatores que contribuem decisivamente
para o abandono das presas pela família e amigos.

Ao seguir com o fotografar, outra interna me solicitou: “você poderia tirar uma foto
minha e da minha namorada?”

3
Ver BRASIL, Ministério da Justiça. Sistema Penitenciário Nacional do Brasil. Dados consolidados.
Departamento Penitenciário Nacional. Brasília, 2007.
Internas da Talavera Bruce.

Para a minha surpresa, outras detentas fizeram o mesmo pedido. Entre diálogos e
fotografias, o visor da máquina digital facilitava a interação – o “deixa eu ver como
ficou” – nas escolhas dos enquadramentos e na composição das poses, tornando-as
sujeitos da linguagem fotográfica.

“Envia as fotos pra mim” solicitaram todas. Nomes e localizações eram anotados.
Pavilhões, alojamentos, galerias, alas, celas e cubículos. Aproveitei a oportunidade para
compreender melhor as diferenças entre estes espaços. Elas me explicam que a
distribuição das presas obedece a classificações, não por critérios como delitos ou anos
de condenação, mas sim por comportamento, filiação religiosa, atividades laborativas e
maternagem. Isto porque alguns espaços que não possuem celas individuais, como os
alojamentos, são considerados lugares de castigos, enquanto as celas individuais são
uma premiação já que quem “mora” raramente se envolve em conflitos,
individualizando e decorando o seu espaço.
“Eis-me eu próprio como medida do ‘saber’ fotográfico. O que sabe o meu corpo da
fotografia? Notei que uma foto pode ser o objecto de três práticas (ou de três emoções,
ou de três intenções): fazer, experimentar, olhar” (BARTHES, 1980, p.23). A
interatividade na produção dessas imagens fotográficas foi o que possibilitou o acesso
aos fragmentos das relações daquele grupo. Nesses espaços de anunciação, o grupo
construía uma narrativa num movimento de afirmação de afetos e sexualidades, visto
que por meio do fazer fotográfico, o sujeito enunciador é capaz de revelar a partir de
gestos, poses, enquadramentos aparentemente banais, encenações e máscaras
significativas, como num jogo de ordem performativo (DUBOIS, 1993).

Internas da Talavera Bruce.

Contudo, em dias de festa, corpos uniformizados e distribuídos nos quadriculamentos


são provocados nas suas identidades ou alteridades e recuperam - através de roupas,
sapatos, maquiagens, cabelos, gestuais e subjetividades individuais - as suas
singularidades. Procuro, então, fotografar tais corpos.
Interna da Talavera Bruce.

NO BANGU II

Um funcionário abriu o portão do Alfredo Tranjan,- presídio onde iniciei o meu


trabalho de campo de doutoramento - e fomos encaminhadas à sala da direção, onde
apresentei o meu projeto de pesquisa, fiz inúmeras perguntas e todas foram prontamente
respondidas. Ao indagar sobre a possibilidade de fotografar na pesquisa, fui
surpreendida: o diretor era fotógrafo amador. A fotografia norteou o rumo da conversa.
Recebi de suas mãos álbuns fotográficos cuja temática era a unidade prisional que ele
dirigia. Ao longo da conversa me fez um pedido para que fotografasse as tatuagens dos
presos. Mostrei o palm top com o qual, na época, comumente fotografava, informando-
lhe que qualidade não era muito boa para grandes formatos, somente para pequenas
impressões e projeções. Recebi, então, a (per)missão para fotografar sem questionar e,
mais uma vez, fui invadida por medo e euforia. A fotografia colocava-se, então, mais
uma vez, como um ponto de partida para a minha reflexão antropológica em um campo
considerado de perigo e violência (ZALUAR, 2009).
Com permissão para fotografar as galerias, prontamente, o diretor de convocou uma
reunião com os internos no espaço da escola. Depois de certo tempo, começamos a
incursão ao interior do presídio, na companhia do chefe de segurança. Pesadas portas de
ferro se cerravam depois da nossa passagem, uma após a outra, o que me deixou com
uma sensação angustiante de entrar em um labirinto. Alguns detentos, ou “internos”,
circulavam, enquanto outros limpavam os corredores. Todos usavam uniformes verdes.
Indaguei sobre as tatuagens e o diretor me explicou que “como padrão para todas as
unidades prisionais, na entrada de presos sob a tutela do Estado, cabe ao chefe de
serviço de classificação receber o preso, analisar os documentos que o acompanham e
anotar informações corporais que possam indicar o detento na unidade, como cicatrizes,
ausência de membros, tatuagens [...] ”

A biblioteca da escola foi o espaço indicado para a realização das fotografias. Lá dois
detentos aguardavam: “melhor vir ao poucos”, um agente ordenou. Indaguei quantos
seriam: “vou chamando!”. Informávamos aos detentos o objetivo daquela "ação"
solicitada pela direção: “identificar aqueles que possuíam tatuagens [...]”. Dois deles
recusaram, pois o termo “identificar” foi percebido como uma ação que poderia
comprometê-los. Expliquei que as imagens eram para um trabalho da faculdade cujo
objetivo era “entender” que tipo de tatuagem eles faziam no presídio. O anonimato seria
garantido e não fotografaria rostos e; cada foto seria discutida com eles. Se "identificar"
produziu uma tensão, uma reação à expressão de controle própria do ambiente prisional,
“entender” remetia à compreensão do indivíduo aprisionado. Fotografei quinze
detentos.
Apesar de religiosa, a imagem de Cristo está relacionada ao latrocínio.
Muitos internos costumam tatuar nos dedos ou em qualquer parte do corpo nomes de pessoas queridas
e/ou datas consideradas importantes.
Caveiras, a morte; índias, significam ligação com o tráfico de drogas no presídio, mulheres nuas, o vício
em drogas injetáveis e sereias, condenado por crime de abuso sexual.
Sandro de 24 anos. A pistola pode indicar assalto seguido de morte.
Paulo, 28 anos. A cruz identifica alta periculosidade.

Para Susan Sontag (1981), a fotografia não é o mero resultado do encontro entre um
evento e o fotógrafo; fotografar é um acontecimento em si mesmo, com cada vez mais
direito de interferir, invadir ou ignorar tudo que ocorre ao redor; participar desse
acontecimento fotográfico estimulou toda uma especulação sobre a produção de
imagens fotográficas no espaço prisional. Ainda que não pretenda analisar essas
imagens – não eram os sujeitos do meu estudo -, impossível descartá-las, pois possuem
um valor incomensurável para a compreensão do ethos prisional. Proponho, então, um
percurso pelos seus “extraquadros” como sugerido por Arlindo Machado: “a imagem
enquadrada no recorte aponta para a sua continuidade no extraquadro”, e os sentidos
(medos e dilemas éticos) provocados pelo encontro fotográfico são os “extraquadros”
apontados pelas imagens produzidas (1984, p. 84). No universo carcerário, a tatuagem,
nos termos de M. A. Mendes da Silva (1991), constitui um código fechado que só é
reconhecido pelos indivíduos que pertencem a esse universo da criminalidade. Se me
aproximo da proposta de Sontag de que fotografar é “apropriar-se da coisa fotografada”
em uma certa relação de poder, esse momento fotográfico, me causou desconforto pelo
pressuposto da “subordinação”, dado que se tratava de prisioneiros convocados pelo
diretor para serem submetidos a uma sessão de fotografias.

O “panóptico 4” de Jeremy Bentham e os “corpos dóceis” de Michel Foucault


(2003, [1975]) conduziam o meu fotografar que, naquele instante, significava “invadir,
vigiar e se expor”. Para Hélio Silva e Claudia Milito há situações em que a única
possibilidade de constituir uma interlocução reside na demonstração de certo
desinteresse em obter as informações, pois

“perguntar muito, demonstrar curiosidade, pode inviabilizar inteiramente a


tarefa de campo. A curiosidade é traço que, infelizmente, os pesquisadores
compartilham com policiais, alcaguetes e eventuais membros de redes rivais
de controle” (1995, p.171).

Para me salvaguardar e estabelecer uma relação de confiança, propus que ao final de


cada sessão mostraria as imagens e “deletaria” aquelas não autorizadas. Todavia, a
fotografia possibilitou um diálogo: o visor da máquina digital facilitava a interação – o
“deixa eu ver como ficou” – nas escolhas dos enquadramentos e nas composições das
poses, tornando-os sujeitos da linguagem fotográfica. Corpos à mostra. Braços, pernas,
virilhas, peitos e costas. De “corpos dóceis” a indóceis. Esse “corpo dócil” de que fala
Michel Foucault (op.cit), indiscutivelmente classificado e identificado para a utilização
coercitiva do poder é o mesmo corpo que Pierre Clastres (1988, p.125-126), em A
sociedade contra o Estado, afirma mediatizar a aquisição de um saber; um corpo
propício a conter “o sinal de um tempo, o traço de uma passagem, a determinação de um
destino.” É o corpo transgressor, que resiste e institui novas regras dentro do
confinamento. No interior da prisão, as tatuagens são as marcas de pertencimento que
representam a confirmação de uma outra possibilidade de poder, ou seja, daqueles que
possuem, produzem e reproduzem as cicatrizes que marcam o poder e o domínio. Um
poder que se insurge e resiste dentro da prisão, que ameaça e afronta o poder da
instituição e o poder do Estado. Nesses sinais corporais, acima fotografados, o que
temos são as inscrições das modalidades dos crimes: “tatuagem na cadeia não é coisa
simples, é coisa séria.” Segundo Sandro de 24 anos, condenado a 15 anos por assalto
seguido de morte e “com sete anos cumpridos”, “a tatuagem é o espelho”. Indagado

4
O panóptico (ótico=ver + pan=tudo) constitui um aparelho arquitetural, onde os detentos são vistos e
vigiados, sem, no entanto, ver quem os vigia. A primeira prisão panóptica foi construída em 1800, nos
EUA.
sobre o significado da sua tatuagem, revela: “fiz boladão 5. Tenho seis. Um escorpião
que é esperteza; uma pistola, que é 157 6 [...]”. Já Paulo, 28 anos, condenado a 24 anos e
sete meses de reclusão por tráfico, receptação, homicídio e vício, já cumpriu seis anos e
fez 27 tatuagens, dentre as quais pistolas, caveiras, caveiras cravadas com punhais e um
cruzeiro; algumas são construídas a partir de pontos, que formam cruzes e outras
figuras. Explica-me: • é homicídio; :: uso de drogas e tráfico; :•: assalto, drogas, tráfico,
homicídio, etc.

“Nunca vi tatuarem uma pistola!”, comentei. “E a cruz representa os cruzeiros


instalados nos altos das favelas?”, perguntei receosa, sem saber se o cruzeiro é uma
prática do “CV” ou do “TC”. Fico sabendo que a cruz indicava um “elemento” de alta
periculosidade; que a pistola representava assalto à mão armada com morte, e a caveira
apunhalada significa homicídio de policiais. Mas a caveira também é o símbolo
utilizado pelo BOPE 7, cujo significado é a "vitória sobre a morte e às adversidades".
Nas diversas tatuagens feitas na prisão e pelos próprios detentos, esse jogo de "quem
domina quem" eclode para além dos domínios múltiplos do “TC” e do “CV”.
Identificam os detentos pelo crime, sentença e o que devemos sentir por eles, num jogo
de poder.

Terminada a visita, perguntei ao diretor se poderia voltar. Ele sorriu. Pediu para não
esquecer de repassar as imagens realizadas e disse: “vem!”.

COM A FAMÍLIA À FLOR DA PELE

Ao longo do trabalho de campo desenvolvido com o grupo de meninos tive a


oportunidade de estar em contato com o universo feminino infrator, e essa experiência
suscitou questões sobre a criminalidade feminina que ficaram reservadas para um
estudo posterior. Em 2005 retomo tais questões com a pesquisa de doutoramento 8 que

5
Segundo o interno, “boladão” é uma gíria referente ao estado de quem está “bolado”, ou seja, pensativo,
irritado, com raiva, ódio.
6
157 refere-se ao artigo 157 do Código Penal infrigido: dolo no roubo e culpa na morte.
7
Batalhão de Operações Especiais da Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
8
Tese de doutorado “Uma etnografia visual da maternidade na Penitenciária Talavera Bruce”, defendida
no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/PPCIS-UERJ, 2010, sob a orientação de Clarice
Peixoto.
pretendia, a partir de um estudo etnográfico, investigar os sentidos sobre a gravidez e a
maternidade em mulheres que são mães durante o cumprimento da pena em
penitenciária do Rio de Janeiro. Entretanto, nos dois últimos anos de pesquisa, não
obtive autorização para ter acesso às crianças do Talavera Bruce. Essa dificuldade
decorria da transitoriedade dos cargos de confiança da administração e da própria
direção do presídio. Durante os quase quatro anos de pesquisa, a penitenciária Talavera
Bruce acolheu, com efeito, cinco diretores. Por conta dessa “(i)mobilidade” funcional,
também tive dificuldade para acessar as informações documentais, e o cadastro das
internas gestantes e mães. Essa inconstância também me reconduziu à “romaria
burocrática” para obter as autorizações de pesquisa junto à Secretaria de Estado de
Administração Penitenciária (SEAP) e à Vara de Execução Penal (VEP). Tal situação
sentida a priori como um “bloqueamento” não causou, todavia, impasses nem
comprometeu a qualidade do trabalho. Pelo contrário, acabou engendrando novas
informações.
Autorizada a pesquisa, solicitei usar um gravador e uma máquina fotográfica digital. A
entrada com esses aparatos causou certo desconforto por parte dos agentes
penitenciários e da direção da Unidade Materno Infantil. Numa situação oposta à
vivenciada no início da pesquisa quando o acesso foi mais tranquilo, desta vez, por
conta da máquina fotográfica, fui submetida a procedimentos de identificação e revista
muito mais criteriosos. Diante da atitude impertinente e descortês de um agente tive que
assinar um termo de responsabilidade para prosseguir com a máquina, cujo texto
descrevia o tipo de câmera fotográfica e transferia para mim a responsabilidade pela
segurança do equipamento, alertando sobre a possibilidade de perda e/ou roubo dentro
do presídio. Tratava-se, evidentemente, de uma desconfiança em torno da interferência
que a câmera fotográfica poderia promover naquele contexto, ou seja, comprovar,
oferecer provas e assim, criar tensões. O que nos lembra S. Sontag ao escrever: “tirar
fotos é um evento em si mesmo e, dotado dos direitos mais categóricos – interferir,
invadir ou ignorar, não importa o que estiver acontecendo” (2004, [1977], p.21). Assim
sendo, já que a câmera fotográfica é um potencial “posto de observação” e o ato de
fotografar mais do que uma observação passiva (SONTAG, ibidem), minha entrada com
a máquina Talavera Bruce foi acompanhada por duas agentes penitenciárias e regida por
proibições: “não pode fotografar os muros da creche, os agentes, o berçário, as crianças,
os espaços da creche e nem os espaços da TB”.
As entrevistas foram realizadas em uma sala localizada no prédio da administração, ao
lado da Inspetoria. Sem privacidade, tanto as detentas quanto eu ficamos constrangidas
com a presença das agentes, que procuravam nos convencer de que aqui é mais seguro
pra todo mundo.

“Você vai fotografar?”

Indagada a respeito da gravidez naquele ambiente, Priscila, 29 anos, apesar de me


receber com muita simpatia, não responde muito à vontade. Declara que sua gravidez é
normal, como qualquer outra. Digo que, por nunca ter parido, não entendia o que
significava “normal como qualquer outra”. Ela insiste, repetindo: é tudo normal! Faço
tudo! Logo em seguida, todavia, ela repensa:
Aqui é muito doloroso. Dificultoso para nós. Hoje estou calma, fui à médica,
mas ontem estava nervosa com o barulho. Aqui é muito barulho. E parece
que a gente sente mais.

A penitenciária Talavera Bruce apresenta um ambiente sonoro bem peculiar: sons


constantes das oficinas, sons emanados dos gestos das detentas em tons variados, altos,
gargalhadas, xingamentos, conversas e solicitações. Ruídos metálicos dos portões, das
“trancas” 9 e os timbres dos mandos disciplinares. As confluências dessas expressões
sonoras marcam, em especial, o potencial comunicativo e emocional desse espaço e
acabam apresentando mais um “personagem” na penitenciária, o campo sonoro. Essa
experiência simbólica do som é aqui reclamada por Priscila:
Fico irritada, nervosa, com o barulho daqui. Mesmo morando sozinha. [...] e
ainda hoje tive enjôo e enjoar aqui, sozinha, sem remédio, sem nada e com
esse barulho... nem consegui me alimentar direito [...] nas outras barrigas
não fiquei assim não.

Ela vê a máquina fotográfica:


- Você vai fotografar?
- Sim, se você quiser podemos fazer algumas fotos.
- É lógico que ela quer! Até se arrumou toda, olha! (acrescenta uma das
agentes penitenciárias).

9
Celas individuais de segurança.
Priscila tinha sido avisada da entrevista e da fotografia. Reparo o batom, o penteado, a
roupa. É a maquiagem e o vestir que individualizam os corpos naquele espaço. Mais
que isso, como aponta S. Caiuby Novaes:
A própria presença da câmera já é, em si, elemento que aciona, naqueles que
serão filmados [ou fotografados, acrescento] a consciência da imagem que
eles exibem para o equipamento e o seu operador. Isto desencadeia o
processo de construção de uma imagem a ser exibida, não aquela que é
vivida cotidianamente e sim aquela que se quer projetar, num âmbito externo
à comunidade (2004, p. 12).

Para me salvaguardar de tantas regras para fotografar, e também para estabelecer uma
relação de confiança, propus que ela indicasse como gostaria de ser fotografada,
garantindo-lhe que, ao final de cada sessão, visualizaríamos as imagens e
“deletaríamos” aquelas não autorizadas. Por orientação das agentes, eu não poderia, já
se sabe, fotografar o rosto. Assim fizemos. Conduzimos o fotografar para a barriga:

No Fotografar atento (mais uma vez) para as tatuagens.


Ao me deparar com o universo das tatuagens dentro do sistema penitenciário, pude
constatar, imediatamente, que tratava-se de um sistema de comunicação específico,
fechado e articulado com a criminalidade. No Talavera é comum encontrar corpos
femininos tatuados, entretanto seus significados diferem daqueles produzidos no
universo carcerário masculino, onde as tatuagens na maioria dos casos são marcas de
pertencimentos e domínio. Um poder que se insurge e resiste dentro da prisão, que
ameaça e afronta o poder da instituição e o poder do Estado. Nesses sinais corporais o
que temos são as inscrições das modalidades do crime: “tatuagem na cadeia não é coisa
simples, é coisa séria [...] é o espelho”, diz Sandro (24 anos), condenado a 15 anos por
assalto seguido de morte e “com sete anos cumpridos”, durante uma sessão fotográfica
sobre tatuagens no Presídio Bangu II, descrita acima. Indagado sobre o significado da
sua tatuagem – uma pistola, ele revela: “é 157”. Entretanto, no Talavera Bruce, poucas
são as detentas que inscrevem nos corpos seus atos infracionais e suas associações
criminosas. As internas que entrevistei, por exemplo, não faziam uso aparente da
tatuagem como emblema de desvio. Nelas, nota-se elementos figurativos com motivos
florais, celestiais, pássaros, borboletas e corações. Existem também tatuagens com
motivos escritos, expressando, por exemplo, palavras de amor, iniciais, nomes de
companheiros, de parentes (mãe, filhos, em especial). As escolhas dos locais das
tatuagens também são significativas e merecem atenção. No caso dos homens as
tatuagens são nos braços, costas, peitos, mãos e dedos. Nas mulheres, elas figuram na
parte baixa das costas, no quadril, no pé, no pescoço, na virilha, sendo que três outros
espaços do corpo feminino são os mesmos preferidos pelos homens: o antebraço, as
mãos e os dedos.
Rosi tem os dedos tatuados com iniciais que não quis revelar os nomes. No
antebraço inscreveu o nome da mãe – Maria – com uma tatuagem figurativa construída
a partir de pontos que formam uma cruz e outras figuras 10.

10
• é homicídio; :: uso de drogas e tráfico; :•: assalto, drogas, tráfico, homicídio, etc.
No braço, gravou os nomes dos filhos: “Eduardo e Eduarda”.
Já Priscila tatuou um sol nas mãos e no antebraço “escreveu”: “Mãe te amo”.
No pé gravou três estrelas logo acima do nome dos dois filhos e de uma sobrinha, “a filha que queria ter”:
Patrick, Paloma e Pablo.

Sabemos que as escolhas desses signos não são arbitrárias, mas dotadas de
intencionalidades. Se considerarmos, desta forma, as tatuagens como um sistema de
comunicação que funciona mostrando ou ocultando mensagens inscritas na pele,
podemos supor, pelas suas localizações, que as tatuagens de Priscila e Rosi visam à
projeção gráfica de sentidos, tanto pessoal como social.
Tatuagens possuem forte carga evocatória: filhos e mães. São textos visuais –
sínteses autobiográficas – que fazem do corpo não só o suporte de discursos sobre as
relações familiares (em especial, à maternidade), como também recriam e resignificam
tais relações. Marcar a superfície corporal também pode ser interpretado como a busca
de uma identidade própria, um tornar-se sujeito pelo corpo. Dessa forma, Priscila e
Rosi, ao dedicarem seus corpos às suas mães e filhos, tentam reconstruir suas relações
familiares, pois na impossibilidade de estarem juntas – não foram criadas por suas mães
biológicas e não criaram os seus filhos –, acabam por fixá-los na pele, fazendo com que
eles habitem os seus corpos. “Quero saber logo se é menina pra tatuar. Eu quero uma
menina, Pâmela”, diz Priscila.
No imaginário institucional 11 essas mulheres acabam não correspondendo a prédica
daquilo que seria compreendido como “boa mãe”, e são tratadas como mulheres
“naturalmente agressivas” e “mães desnaturadas”, principalmente, por não se prestarem
aos cuidados dos filhos. O tema cuidado merece destaque porque reforça o papel de
cuidadora das mulheres. Para C. Araújo & C. Scalon (2005, p.22) o cuidado, entendido
como “a provisão diária de atenção social, física, psíquica e emocional das pessoas”,
assim como as responsabilidades familiares ainda é um atributo exclusivo das mulheres.
Estas atividades, ausentes em uma penitenciária feminina, contribuem para a
naturalização da maldade, não só das mães, mas das mulheres que cometem delitos e
esta é uma das mais contundentes construções de gênero presente desde a criação da
Penitenciária Talavera Bruce, no início do século XX, e que surge objetivando a
reabilitação das mulheres aos seus instintos positivos. Entretanto, ao contrário dos
olhares institucionais, encontramos uma ressignificação da maternidade a partir de um
repertório de culpas e vergonhas produzido pelos vínculos prisionais:
Ela (o bebê) é mais uma pena que tenho que cumprir aqui, sabe?! Olho pra
ela (barriga) e sofro por ela, sofro muito por tá dando essa vida pra ela. Essa
vida é minha e não é dela, mas ela tá vivendo aqui. Cadeia não é lugar pra
ninguém, ainda mais pra uma criança. Meus outros filhos estudam, moram
com o meu irmão, mas ela, não sei o que vai acontecer [...], lamenta Priscila
(29 anos).

Eu fico pensativa e preocupada. Aqui a gente pensa muito. Penso porque, eu


vou te dizer, eu sou viciada. Fico preocupada porque aqui fez só dois
encontros (ultras) com a médica e já estou com sete meses. No meu outro
filho, foi tudo certo. Tinha enxoval e tudo. Aqui nem isso eles ajudam.
Tenho uma coisa ali, outra aqui que a gente acaba ganhando, mas muito
pouco. Fico pensando também no parto..., diz Rita (30 anos).

Relembrando M. Foucault (2003 [1975]), é no corpo e através dos regimes de


controle e mecanismos punitivos, que as relações de poder se encerram. Dessa forma,
para este autor, a história do corpo, é na verdade, a história dos saberes ou das técnicas
de procedimentos “prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou
transformá-la”. Técnicas que colocam o corpo humano numa “maquinaria de poder que
o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (p.119). Ou ainda, “uma anatomia política”,

11
Cabe ressaltar que esse imaginário se confunde com o religioso com a ampliação de doutrinas
religiosas, sobretudo dos evangélicos pentecostais, entre as detentas, e especialmente, entre os
funcionários, agentes penitenciários e diretores das unidades. Vide a inscrição religiosa – de filiação
evangélica, de acordo com a direção – no portão principal da penitenciária: "Se o Senhor não guardar a
cidade, em vão vigia a sentinela.” (Sl. 127.1)
saberes que não apenas educam os corpos, mas acabam produzindo subjetividades
principalmente, pelo incitamento e encadeamento de posições e identidades.
Em pé e diante da câmera fotográfica Priscila e Rosi instantaneamente
reproduziram as poses de identificação, típicas das fotografias jurídicas: de frente e de
perfil. Tais gestos recuperaram no meu fotografar o paradigma disciplinar do século
XIX que regulava o corpo desviante. Meu ato fotográfico se aproximou, mais uma vez,
das imagens antropométricas/judiciárias de Alphonse Bertillon, Francis Galton e Cesare
Lombroso (SAMAIN, 1993), que buscavam marcas e inscrições corporais capazes de
tipificar para melhor acusar personalidades ditas “criminosas”, “assassinas”, “loucas”
etc. Num determinado momento e numa demonstração de controle sobre o corpo da
detenta, uma agente ordenou que Rosi levantasse a blusa e me mostrasse sua tatuagem
da barriga. “Veja isso! Olha só!”, disse a agente em tom de reprovação.
A fala da agente lembra a idéia kafkiana 12 expressa no conto “Na Colônia Penal”, no
qual se inscreve no corpo de um condenado a sentença que o levou à punição. O
resultado foi uma fotografia de corpos sujeitados (incluindo também o meu) pelas
técnicas de poder; e ao mesmo tempo, sujeito de um discurso de resistência, pois
contrário aos valores morais e aos discursos sobre a saúde daquela que o descobriria.
Suas poses me incomodaram. O mesmo desconforto vivenciado quando fotografei os
detentos do Bangu “dois”: o pressuposto da “subordinação” transformara, naquele

12
KAFKA, Franz. Na Colônia Penal. Tradução de Modesto Carone. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra,
1996.
instante, minha câmera num “dispositivo fotográfico” acionada por “dispositivos
disciplinares” (FOUCAULT, 2003, [1975]). Resolvi, então, não mais fotografá-la, pois
nessa experiência também compartilhada, fotografei o que não queria, e certamente, o
que Rosi também não desejaria revelar. Fotografei um enquadramento condicionado ao
mando da agente penitenciária. Fotografias também são meios de se “tornar real”
situações, que talvez, preferíssemos ignorar. Dizem que alguns antropólogos se
transformam em nativos, pois eu me senti como Rosi, coagida. Aliás, ali todos somos.
Pois neste espaço, não se sabe o que falar, para onde olhar e, desta forma, fazemos o
que as agentes mandam.

“DEIXA EU VER COMO FICOU!”

Como assinala Alba Zaluar, as estratégias adotadas e o modo como elas são usadas
determinam não apenas a maneira de realizar a pesquisa, mas também o tipo de
investigação e o lugar que assumimos no campo. Principalmente quando as pesquisas
são realizadas com grupos à margem da lei em contextos de violência. No caso
específico das imagens produzidas no interior de um presido de segurança máxima, a
câmera digital foi, sem dúvida, uma importante interlocutora dessa interação. Este novo
“contradom” – entendido como “deixa eu ver como ficou!” e “apaga essa!” – permitiu,
não só a compreensão da rede de relações, dilemas e conflitos dos internos, como
estabeleceu uma relação de confiança, tornando mais transparente o processo de
construção da imagem ao exibir um resultado imediato, intensificando e estimulando a
participação dos envolvidos no encontro. Ademais, nas pesquisas realizadas em
contextos de violência, como em prisões, particularmente, observamos a priori na
fotografia uma maior aderência do seu referente, ou aquilo que R. Barthes chama de
“referente fotográfico”, “a coisa necessariamente real que foi colocada diante da
objetiva sem a qual não haveria fotografia” (1980, p.109). Pois, como toda
representação, a fotografia guarda uma ambiguidade de, ao mesmo tempo, ser e não ser
a coisa representada. Por sua ontologia, a fotografia é produção de uma imagem da
realidade, ou seja, necessita que um objeto se coloque na frente da câmera para que a
imagem se produza. Assim, ela apresenta um componente mimético de ser imagem ou
representação de algo; imagem que permite, uma vez produzida enquanto fotografia,
visualizar aquele referente mesmo na sua ausência. A prisão, por suas características,
obriga o desvio do olhar, ou se pretende como um espaço que se furta ao exame público.
E o fotografar, nesse contexto, significa igualmente, expor (e se expor), pois ao revelar
aquilo que foi enquadrado, a imagem fotográfica pode comprovar e provar.

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