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Alba Zaluar, por exemplo, ao recordar os seus estudos sobre a violência urbana
na cidade do Rio de Janeiro, iniciados no começo dos anos de 1980, chama atenção para
os limites das possibilidades de interação entre o antropólogo e seus sujeitos, impostos
pela própria temática:
O “CONTRADOM AUDIOVISUAL”
COM OS MENINOS
Na dissertação, com a mediação de uma ONG - a Ex-Cola - atuante no bairro da Lapa -
Rio de Janeiro, quinze máquinas fotográficas (analógicas), de fácil manejo, foram
distribuídas aos “meninos”. A idéia era de que cada um - seguindo algumas orientações
de ordem técnica -, fotografasse o seu dia-a-dia, criando trajetórias individuais de
apreensão da realidade. Dessa forma, o encontro etnográfico foi mediado pela utilização
da fotografia que, além de reforçar a interação com os “meninos”, permitiu a
intensificação do ato de olhar dos envolvidos, animando narrativas visuais e relatos
verbais sobre as identidades e subjetividades relativas ao contexto em que viviam: a rua.
Entretanto, a rua se impôs como um obstáculo ao diálogo, pois transforma a realidade
através dos personagens que nela passeiam (COSTA LEITE, 1998: 67), conferindo
àqueles que fazem dela a sua moradia os atributos próprios do lugar: sujeira e
periculosidade (DAMATTA, 1997). Ela está, assim, associada à violência.
1
Ver ALVIM, Rosilene Barbosa et alii. Da violência contra o menor ao extermínio de crianças e
adolescentes. Rio de janeiro, Nepi-CBIA, 1991.; DIMENSTAIN, Gilberto. A guerra dos meninos:
assassinatos de menores no Brasil. 6.ed., São Paulo: Brasiliense, 1991.; MILITO, Claudia et alii.
Homicídios dolosos praticados contra menores no Estado do Rio de Janeiro – 1991 a julho de 1993. Rio
de Janeiro, Fase/Ibase/Idac/Iser, 1993 e; MNMMP/Ibase/Nev/USP. Vidas em Risco: assassinato de
crianças e adolescentes no Brasil. 1991.
2
A relação dos policiais com os meninos é envolta de muitas ambigüidades por ser o policial ora protetor,
ora cúmplice e assassino. Em alguns casos, os próprios furtos são estimulados e divididos entre os
policiais.
diferenças entre ser menor infrator reincidente e ser um adolescente em situação de
risco.
...
Continuando o relato,
...
NO TALAVERA BRUCE
“Se você abrir uma pessoa, irá achar paisagens. Se me abrir, encontrará praias”. É assim
que Agnès Varda (2008), cineasta belga, apresenta seu filme e, através das praias,
atualiza seu passado. Quando, entre os anos de 1976 e 1978, os portões da penitenciária
Talavera Bruce – unidade feminina situada no Complexo Gericinó/Bangu - foram
abertos para a pesquisadora J. Lemgruber (1983), ela se deparou com
O inesperado pedido permite pensar sobre o corpo como suporte de tantos discursos
possíveis, especialmente aquele que revela o modo de vestir e, consequentemente, a
questão do vestir como linguagem. As frases bordadas (pela interna) na camiseta para o
dia de festa, dado que a presença de fotógrafos e jornalistas era conhecida, estimulam a
comunicação e passam o recado: “meus filhos eu te amo”, bordou a interna. Durante o
fotografar descubro que ela raramente recebe a visita dos filhos e de familiares, situação
bastante comum na TB e em outros estabelecimentos prisionais femininos. Segundo o
relatório final 3 do grupo de trabalho interministerial para a reorganização e
reformulação do sistema prisional feminino, as visitas nas unidades prisionais
brasileiras são reduzidas: menos de um terço das presas brasileiras, recebem visitas
(BRASIL, 2007, p.89). E os fatores que dificultam tais visitações são inúmeros, mas a
concentração de unidades em locais distantes associadas aos custos financeiros do
deslocamento, aos calendários que estabelecem as visitas apenas em dias úteis e ao
estigma experimentado pela mulher delituosa são fatores que contribuem decisivamente
para o abandono das presas pela família e amigos.
Ao seguir com o fotografar, outra interna me solicitou: “você poderia tirar uma foto
minha e da minha namorada?”
3
Ver BRASIL, Ministério da Justiça. Sistema Penitenciário Nacional do Brasil. Dados consolidados.
Departamento Penitenciário Nacional. Brasília, 2007.
Internas da Talavera Bruce.
Para a minha surpresa, outras detentas fizeram o mesmo pedido. Entre diálogos e
fotografias, o visor da máquina digital facilitava a interação – o “deixa eu ver como
ficou” – nas escolhas dos enquadramentos e na composição das poses, tornando-as
sujeitos da linguagem fotográfica.
“Envia as fotos pra mim” solicitaram todas. Nomes e localizações eram anotados.
Pavilhões, alojamentos, galerias, alas, celas e cubículos. Aproveitei a oportunidade para
compreender melhor as diferenças entre estes espaços. Elas me explicam que a
distribuição das presas obedece a classificações, não por critérios como delitos ou anos
de condenação, mas sim por comportamento, filiação religiosa, atividades laborativas e
maternagem. Isto porque alguns espaços que não possuem celas individuais, como os
alojamentos, são considerados lugares de castigos, enquanto as celas individuais são
uma premiação já que quem “mora” raramente se envolve em conflitos,
individualizando e decorando o seu espaço.
“Eis-me eu próprio como medida do ‘saber’ fotográfico. O que sabe o meu corpo da
fotografia? Notei que uma foto pode ser o objecto de três práticas (ou de três emoções,
ou de três intenções): fazer, experimentar, olhar” (BARTHES, 1980, p.23). A
interatividade na produção dessas imagens fotográficas foi o que possibilitou o acesso
aos fragmentos das relações daquele grupo. Nesses espaços de anunciação, o grupo
construía uma narrativa num movimento de afirmação de afetos e sexualidades, visto
que por meio do fazer fotográfico, o sujeito enunciador é capaz de revelar a partir de
gestos, poses, enquadramentos aparentemente banais, encenações e máscaras
significativas, como num jogo de ordem performativo (DUBOIS, 1993).
NO BANGU II
A biblioteca da escola foi o espaço indicado para a realização das fotografias. Lá dois
detentos aguardavam: “melhor vir ao poucos”, um agente ordenou. Indaguei quantos
seriam: “vou chamando!”. Informávamos aos detentos o objetivo daquela "ação"
solicitada pela direção: “identificar aqueles que possuíam tatuagens [...]”. Dois deles
recusaram, pois o termo “identificar” foi percebido como uma ação que poderia
comprometê-los. Expliquei que as imagens eram para um trabalho da faculdade cujo
objetivo era “entender” que tipo de tatuagem eles faziam no presídio. O anonimato seria
garantido e não fotografaria rostos e; cada foto seria discutida com eles. Se "identificar"
produziu uma tensão, uma reação à expressão de controle própria do ambiente prisional,
“entender” remetia à compreensão do indivíduo aprisionado. Fotografei quinze
detentos.
Apesar de religiosa, a imagem de Cristo está relacionada ao latrocínio.
Muitos internos costumam tatuar nos dedos ou em qualquer parte do corpo nomes de pessoas queridas
e/ou datas consideradas importantes.
Caveiras, a morte; índias, significam ligação com o tráfico de drogas no presídio, mulheres nuas, o vício
em drogas injetáveis e sereias, condenado por crime de abuso sexual.
Sandro de 24 anos. A pistola pode indicar assalto seguido de morte.
Paulo, 28 anos. A cruz identifica alta periculosidade.
Para Susan Sontag (1981), a fotografia não é o mero resultado do encontro entre um
evento e o fotógrafo; fotografar é um acontecimento em si mesmo, com cada vez mais
direito de interferir, invadir ou ignorar tudo que ocorre ao redor; participar desse
acontecimento fotográfico estimulou toda uma especulação sobre a produção de
imagens fotográficas no espaço prisional. Ainda que não pretenda analisar essas
imagens – não eram os sujeitos do meu estudo -, impossível descartá-las, pois possuem
um valor incomensurável para a compreensão do ethos prisional. Proponho, então, um
percurso pelos seus “extraquadros” como sugerido por Arlindo Machado: “a imagem
enquadrada no recorte aponta para a sua continuidade no extraquadro”, e os sentidos
(medos e dilemas éticos) provocados pelo encontro fotográfico são os “extraquadros”
apontados pelas imagens produzidas (1984, p. 84). No universo carcerário, a tatuagem,
nos termos de M. A. Mendes da Silva (1991), constitui um código fechado que só é
reconhecido pelos indivíduos que pertencem a esse universo da criminalidade. Se me
aproximo da proposta de Sontag de que fotografar é “apropriar-se da coisa fotografada”
em uma certa relação de poder, esse momento fotográfico, me causou desconforto pelo
pressuposto da “subordinação”, dado que se tratava de prisioneiros convocados pelo
diretor para serem submetidos a uma sessão de fotografias.
4
O panóptico (ótico=ver + pan=tudo) constitui um aparelho arquitetural, onde os detentos são vistos e
vigiados, sem, no entanto, ver quem os vigia. A primeira prisão panóptica foi construída em 1800, nos
EUA.
sobre o significado da sua tatuagem, revela: “fiz boladão 5. Tenho seis. Um escorpião
que é esperteza; uma pistola, que é 157 6 [...]”. Já Paulo, 28 anos, condenado a 24 anos e
sete meses de reclusão por tráfico, receptação, homicídio e vício, já cumpriu seis anos e
fez 27 tatuagens, dentre as quais pistolas, caveiras, caveiras cravadas com punhais e um
cruzeiro; algumas são construídas a partir de pontos, que formam cruzes e outras
figuras. Explica-me: • é homicídio; :: uso de drogas e tráfico; :•: assalto, drogas, tráfico,
homicídio, etc.
Terminada a visita, perguntei ao diretor se poderia voltar. Ele sorriu. Pediu para não
esquecer de repassar as imagens realizadas e disse: “vem!”.
5
Segundo o interno, “boladão” é uma gíria referente ao estado de quem está “bolado”, ou seja, pensativo,
irritado, com raiva, ódio.
6
157 refere-se ao artigo 157 do Código Penal infrigido: dolo no roubo e culpa na morte.
7
Batalhão de Operações Especiais da Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
8
Tese de doutorado “Uma etnografia visual da maternidade na Penitenciária Talavera Bruce”, defendida
no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/PPCIS-UERJ, 2010, sob a orientação de Clarice
Peixoto.
pretendia, a partir de um estudo etnográfico, investigar os sentidos sobre a gravidez e a
maternidade em mulheres que são mães durante o cumprimento da pena em
penitenciária do Rio de Janeiro. Entretanto, nos dois últimos anos de pesquisa, não
obtive autorização para ter acesso às crianças do Talavera Bruce. Essa dificuldade
decorria da transitoriedade dos cargos de confiança da administração e da própria
direção do presídio. Durante os quase quatro anos de pesquisa, a penitenciária Talavera
Bruce acolheu, com efeito, cinco diretores. Por conta dessa “(i)mobilidade” funcional,
também tive dificuldade para acessar as informações documentais, e o cadastro das
internas gestantes e mães. Essa inconstância também me reconduziu à “romaria
burocrática” para obter as autorizações de pesquisa junto à Secretaria de Estado de
Administração Penitenciária (SEAP) e à Vara de Execução Penal (VEP). Tal situação
sentida a priori como um “bloqueamento” não causou, todavia, impasses nem
comprometeu a qualidade do trabalho. Pelo contrário, acabou engendrando novas
informações.
Autorizada a pesquisa, solicitei usar um gravador e uma máquina fotográfica digital. A
entrada com esses aparatos causou certo desconforto por parte dos agentes
penitenciários e da direção da Unidade Materno Infantil. Numa situação oposta à
vivenciada no início da pesquisa quando o acesso foi mais tranquilo, desta vez, por
conta da máquina fotográfica, fui submetida a procedimentos de identificação e revista
muito mais criteriosos. Diante da atitude impertinente e descortês de um agente tive que
assinar um termo de responsabilidade para prosseguir com a máquina, cujo texto
descrevia o tipo de câmera fotográfica e transferia para mim a responsabilidade pela
segurança do equipamento, alertando sobre a possibilidade de perda e/ou roubo dentro
do presídio. Tratava-se, evidentemente, de uma desconfiança em torno da interferência
que a câmera fotográfica poderia promover naquele contexto, ou seja, comprovar,
oferecer provas e assim, criar tensões. O que nos lembra S. Sontag ao escrever: “tirar
fotos é um evento em si mesmo e, dotado dos direitos mais categóricos – interferir,
invadir ou ignorar, não importa o que estiver acontecendo” (2004, [1977], p.21). Assim
sendo, já que a câmera fotográfica é um potencial “posto de observação” e o ato de
fotografar mais do que uma observação passiva (SONTAG, ibidem), minha entrada com
a máquina Talavera Bruce foi acompanhada por duas agentes penitenciárias e regida por
proibições: “não pode fotografar os muros da creche, os agentes, o berçário, as crianças,
os espaços da creche e nem os espaços da TB”.
As entrevistas foram realizadas em uma sala localizada no prédio da administração, ao
lado da Inspetoria. Sem privacidade, tanto as detentas quanto eu ficamos constrangidas
com a presença das agentes, que procuravam nos convencer de que aqui é mais seguro
pra todo mundo.
9
Celas individuais de segurança.
Priscila tinha sido avisada da entrevista e da fotografia. Reparo o batom, o penteado, a
roupa. É a maquiagem e o vestir que individualizam os corpos naquele espaço. Mais
que isso, como aponta S. Caiuby Novaes:
A própria presença da câmera já é, em si, elemento que aciona, naqueles que
serão filmados [ou fotografados, acrescento] a consciência da imagem que
eles exibem para o equipamento e o seu operador. Isto desencadeia o
processo de construção de uma imagem a ser exibida, não aquela que é
vivida cotidianamente e sim aquela que se quer projetar, num âmbito externo
à comunidade (2004, p. 12).
Para me salvaguardar de tantas regras para fotografar, e também para estabelecer uma
relação de confiança, propus que ela indicasse como gostaria de ser fotografada,
garantindo-lhe que, ao final de cada sessão, visualizaríamos as imagens e
“deletaríamos” aquelas não autorizadas. Por orientação das agentes, eu não poderia, já
se sabe, fotografar o rosto. Assim fizemos. Conduzimos o fotografar para a barriga:
10
• é homicídio; :: uso de drogas e tráfico; :•: assalto, drogas, tráfico, homicídio, etc.
No braço, gravou os nomes dos filhos: “Eduardo e Eduarda”.
Já Priscila tatuou um sol nas mãos e no antebraço “escreveu”: “Mãe te amo”.
No pé gravou três estrelas logo acima do nome dos dois filhos e de uma sobrinha, “a filha que queria ter”:
Patrick, Paloma e Pablo.
Sabemos que as escolhas desses signos não são arbitrárias, mas dotadas de
intencionalidades. Se considerarmos, desta forma, as tatuagens como um sistema de
comunicação que funciona mostrando ou ocultando mensagens inscritas na pele,
podemos supor, pelas suas localizações, que as tatuagens de Priscila e Rosi visam à
projeção gráfica de sentidos, tanto pessoal como social.
Tatuagens possuem forte carga evocatória: filhos e mães. São textos visuais –
sínteses autobiográficas – que fazem do corpo não só o suporte de discursos sobre as
relações familiares (em especial, à maternidade), como também recriam e resignificam
tais relações. Marcar a superfície corporal também pode ser interpretado como a busca
de uma identidade própria, um tornar-se sujeito pelo corpo. Dessa forma, Priscila e
Rosi, ao dedicarem seus corpos às suas mães e filhos, tentam reconstruir suas relações
familiares, pois na impossibilidade de estarem juntas – não foram criadas por suas mães
biológicas e não criaram os seus filhos –, acabam por fixá-los na pele, fazendo com que
eles habitem os seus corpos. “Quero saber logo se é menina pra tatuar. Eu quero uma
menina, Pâmela”, diz Priscila.
No imaginário institucional 11 essas mulheres acabam não correspondendo a prédica
daquilo que seria compreendido como “boa mãe”, e são tratadas como mulheres
“naturalmente agressivas” e “mães desnaturadas”, principalmente, por não se prestarem
aos cuidados dos filhos. O tema cuidado merece destaque porque reforça o papel de
cuidadora das mulheres. Para C. Araújo & C. Scalon (2005, p.22) o cuidado, entendido
como “a provisão diária de atenção social, física, psíquica e emocional das pessoas”,
assim como as responsabilidades familiares ainda é um atributo exclusivo das mulheres.
Estas atividades, ausentes em uma penitenciária feminina, contribuem para a
naturalização da maldade, não só das mães, mas das mulheres que cometem delitos e
esta é uma das mais contundentes construções de gênero presente desde a criação da
Penitenciária Talavera Bruce, no início do século XX, e que surge objetivando a
reabilitação das mulheres aos seus instintos positivos. Entretanto, ao contrário dos
olhares institucionais, encontramos uma ressignificação da maternidade a partir de um
repertório de culpas e vergonhas produzido pelos vínculos prisionais:
Ela (o bebê) é mais uma pena que tenho que cumprir aqui, sabe?! Olho pra
ela (barriga) e sofro por ela, sofro muito por tá dando essa vida pra ela. Essa
vida é minha e não é dela, mas ela tá vivendo aqui. Cadeia não é lugar pra
ninguém, ainda mais pra uma criança. Meus outros filhos estudam, moram
com o meu irmão, mas ela, não sei o que vai acontecer [...], lamenta Priscila
(29 anos).
11
Cabe ressaltar que esse imaginário se confunde com o religioso com a ampliação de doutrinas
religiosas, sobretudo dos evangélicos pentecostais, entre as detentas, e especialmente, entre os
funcionários, agentes penitenciários e diretores das unidades. Vide a inscrição religiosa – de filiação
evangélica, de acordo com a direção – no portão principal da penitenciária: "Se o Senhor não guardar a
cidade, em vão vigia a sentinela.” (Sl. 127.1)
saberes que não apenas educam os corpos, mas acabam produzindo subjetividades
principalmente, pelo incitamento e encadeamento de posições e identidades.
Em pé e diante da câmera fotográfica Priscila e Rosi instantaneamente
reproduziram as poses de identificação, típicas das fotografias jurídicas: de frente e de
perfil. Tais gestos recuperaram no meu fotografar o paradigma disciplinar do século
XIX que regulava o corpo desviante. Meu ato fotográfico se aproximou, mais uma vez,
das imagens antropométricas/judiciárias de Alphonse Bertillon, Francis Galton e Cesare
Lombroso (SAMAIN, 1993), que buscavam marcas e inscrições corporais capazes de
tipificar para melhor acusar personalidades ditas “criminosas”, “assassinas”, “loucas”
etc. Num determinado momento e numa demonstração de controle sobre o corpo da
detenta, uma agente ordenou que Rosi levantasse a blusa e me mostrasse sua tatuagem
da barriga. “Veja isso! Olha só!”, disse a agente em tom de reprovação.
A fala da agente lembra a idéia kafkiana 12 expressa no conto “Na Colônia Penal”, no
qual se inscreve no corpo de um condenado a sentença que o levou à punição. O
resultado foi uma fotografia de corpos sujeitados (incluindo também o meu) pelas
técnicas de poder; e ao mesmo tempo, sujeito de um discurso de resistência, pois
contrário aos valores morais e aos discursos sobre a saúde daquela que o descobriria.
Suas poses me incomodaram. O mesmo desconforto vivenciado quando fotografei os
detentos do Bangu “dois”: o pressuposto da “subordinação” transformara, naquele
12
KAFKA, Franz. Na Colônia Penal. Tradução de Modesto Carone. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra,
1996.
instante, minha câmera num “dispositivo fotográfico” acionada por “dispositivos
disciplinares” (FOUCAULT, 2003, [1975]). Resolvi, então, não mais fotografá-la, pois
nessa experiência também compartilhada, fotografei o que não queria, e certamente, o
que Rosi também não desejaria revelar. Fotografei um enquadramento condicionado ao
mando da agente penitenciária. Fotografias também são meios de se “tornar real”
situações, que talvez, preferíssemos ignorar. Dizem que alguns antropólogos se
transformam em nativos, pois eu me senti como Rosi, coagida. Aliás, ali todos somos.
Pois neste espaço, não se sabe o que falar, para onde olhar e, desta forma, fazemos o
que as agentes mandam.
Como assinala Alba Zaluar, as estratégias adotadas e o modo como elas são usadas
determinam não apenas a maneira de realizar a pesquisa, mas também o tipo de
investigação e o lugar que assumimos no campo. Principalmente quando as pesquisas
são realizadas com grupos à margem da lei em contextos de violência. No caso
específico das imagens produzidas no interior de um presido de segurança máxima, a
câmera digital foi, sem dúvida, uma importante interlocutora dessa interação. Este novo
“contradom” – entendido como “deixa eu ver como ficou!” e “apaga essa!” – permitiu,
não só a compreensão da rede de relações, dilemas e conflitos dos internos, como
estabeleceu uma relação de confiança, tornando mais transparente o processo de
construção da imagem ao exibir um resultado imediato, intensificando e estimulando a
participação dos envolvidos no encontro. Ademais, nas pesquisas realizadas em
contextos de violência, como em prisões, particularmente, observamos a priori na
fotografia uma maior aderência do seu referente, ou aquilo que R. Barthes chama de
“referente fotográfico”, “a coisa necessariamente real que foi colocada diante da
objetiva sem a qual não haveria fotografia” (1980, p.109). Pois, como toda
representação, a fotografia guarda uma ambiguidade de, ao mesmo tempo, ser e não ser
a coisa representada. Por sua ontologia, a fotografia é produção de uma imagem da
realidade, ou seja, necessita que um objeto se coloque na frente da câmera para que a
imagem se produza. Assim, ela apresenta um componente mimético de ser imagem ou
representação de algo; imagem que permite, uma vez produzida enquanto fotografia,
visualizar aquele referente mesmo na sua ausência. A prisão, por suas características,
obriga o desvio do olhar, ou se pretende como um espaço que se furta ao exame público.
E o fotografar, nesse contexto, significa igualmente, expor (e se expor), pois ao revelar
aquilo que foi enquadrado, a imagem fotográfica pode comprovar e provar.
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