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Conversas em exposição:
sentidos da arte no contato com ela1
Lígia Dabul
Ao abordar conversas de visitantes em exposições de arte, o texto apresenta suas
variações e as maneiras como perpassam outras práticas sociais e contribuem para a
produção de significados sobre as obras expostas e sobre as próprias exposições. Impli-
cações analíticas de tomá-las para estudo são também indicadas.
Público, exposições de arte, conversas, centros culturais.
De tudo o que visitantes fazem juntos numa exposição, dando sentido a essa experiên-
exposição de arte – observar obras, ler pla- cia e determinando consideravelmente o tipo
cas, etiquetas e textos afixados em paredes, de relação que vão estabelecer com os ob-
brincar, estudar, acompanhar o monitor, na- jetos expostos.
morar etc. –, conversar talvez seja a prática
Há muitas formas de conversa que ocorrem
mais freqüente. E conversar é das ações mais
durante uma exposição de arte, como as que
difundidas também em outras ocasiões e
costumam ter lugar em visitas monitoradas.
momentos da vida social. Seu estudo, além
Nelas não há flexibilidade nas interações
de levar a formas bastante comuns – e pou-
entre os indivíduos quando demarcadores
co conhecidas – de a população ter contato
(tom de voz, pausas, ritmo, vocabulário,
com produtos das artes plásticas, elucida gestual etc.) as definem como “conversa”,
mecanismo de produção coletiva de signifi- algum ator social ocupando a posição de
cados sobre objetos e eventos. Conversar “principal”,3 ou seja, com identidade social
também é maneira fundamental de os indi- precisa e que o leva a falar representando a
víduos interagirem. Em alguns casos, mais do instituição à qual é identificado. Existem
que o assunto, o conteúdo tratado, importa muitas outras, e neste trabalho vamos nos
para eles a própria conversa, o estar conver- centrar em maneiras de conversar mais fle-
sando, atividade que, dependendo do lugar e xíveis e corriqueiras.
circunstância histórica, tem certas regras e
aglutina este ou aquele grupo social.2 É na verdade muito difícil, operação na maio-
ria da vezes só justificada por fins analíticos,
Sabemos que indivíduos estão em exposi- isolar a conversa de outras práticas que ela
ções de arte boa parte das vezes acompa- traspassa – brincar, namorar, observar obras,
nhados, interagindo com outros com os quais caminhar, acompanhar visitas monitoradas
para lá se dirigiram. Essas interações, em ge- etc. – efetuadas por aqueles que estão no
Visitantes na exposição ral baseadas em relações como parentesco, espaço de uma exposição. Indivíduos con-
Os Trópicos, O sonho da amizade, coleguismo, são traço fundamental versam enquanto caminham, enquanto lan-
planta do escritório
escritório, 2008 da chamada experiência artística: estar junto çam os olhos e atentam para uma determi-
CCBB, Rio de Janeiro,
Gerda Steiner e Jörg
– brincando, observando obras, conversan- nada obra ou enquanto, juntos, fazem ano-
Lenzlinger do etc. – muitas vezes é o que marca a im- tações para entregar a um professor que as
Foto: Christina Bocayuva portância para os indivíduos estarem numa irá ler e avaliar.
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tos e a considerações sobre fatos comparti- to da atenção em relação às obras, é o que
lhados ou conhecidos por eles, que não têm envolve comentários sobre pessoas presen-
relação com aquela situação da exposição. tes no espaço da exposição, relacionadas ou
Por exemplo, numa exposição de objetos não ao grupo do qual fazem parte. Conver-
de cerâmica, amigas derivaram observações sam, por exemplo, sobre figuras públicas com
sobre peças expostas para comentários a as quais se deparam ou sobre o comporta-
respeito de dotes de outra amiga para trans- mento de outros visitantes – turistas que se
formar objetos, sobre a beleza de bijuterias vestem de maneira considerada chamativa,
de cerâmica, sobre como ocupar casas de adolescentes que riem e falam alto, crianças
veraneio com peças artesanais. Mas há con- especiais que passam caladas pela exposi-
versas que exploram longamente detalhes ção. Em Fortaleza, no Centro Dragão do Mar
das obras. Então visitantes usam seu rol de de Arte e Cultura, dois jovens estrangeiros
conhecimentos sobre o artista, sobre o que vestidos de preto, fortes, muito claros e al-
pensam ser o referente de uma obra ou de tos, cabelos raspados, braços e nucas tatua-
sua produção em geral, sobre outros artis- dos, por algum tempo foram objeto de aten-
tas considerados equivalentes ou próximos ção e conversas dos demais presentes na
ao expositor, sobre técnicas utilizadas, so- exposição sobre arte popular do Cariri.6
bre a localização da obra ou de sua produ- Outra importante matéria de conversas é a
ção na história da arte. Mas, não raro, esses exposição. São freqüentes, por exemplo, os
comentários sobre as obras derivam-se e comentários sobre a temperatura das salas,
deslocam-se para cada um desses itens, pro- a escuridão ou excessiva luminosidade, o som
longando-se em especificações deles e es- alto, a cor de uma parede, a dificuldade para
tendendo-se ou somando-se a comentários ler as etiquetas, a densidade da distribuição
sobre itens da vida cotidiana.5 de peças no espaço da exposição, o quase-
Visitantes na exposição
Os Trópicos
Trópicos, CCBB,
pisar uma escultura colocada no chão no
Outro modo de os visitantes conversarem, centro do salão.
Rio de Janeiro, 2008
Foto: Christina Bocayuva e que também corresponde a um afastamen-
Por meio de comentários feitos nessas con-
versas que naturalizamos como, talvez, ruí-
dos, em um ambiente cuja vocação estaria
numa atenção, especialmente visual, sobre
os trabalhos expostos – por meio deles é
estabelecida uma continuidade da arte com
diversas outras esferas da vida. Experiências
compartilhadas, fatos da vida pessoal a se-
rem relatados, trocas de palavras que cons-
tituem ocorrências a acumular no rol de
experiências comuns daqueles visitantes são
suscitados por muitas coisas, incluindo co-
res, traços, idéias, técnicas, tamanho, figuras,
referentes, menções e tudo mais que possa
ser reconhecido num trabalho exposto
como artístico. Pensar sobre essa modalida-
de de conversa, os comentários, parece ser
oportunidade de escaparmos para dentro da
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corrência, nas conversas, costuma ser fluida escolar, eventual conhecimento da técnica
e entremeada de negociações, composições usada, informações que dispõem sobre a
e superposições de significados e argumen- exposição. Mas esses elementos submetem-
tos, afora quando algum dos visitantes se se a interações e experiências durante a ex-
coloca como especialista e como tal é reco- posição e, entre outros efeitos, fazem com
nhecido pelos demais. A busca e composi- que compartilhem por meio de conversas
ção do “sentido” da obra por vezes conti- esses itens mobilizados para a compreensão
nua depois de saírem da exposição, no sa- das obras. Nessas conversas, têm necessida-
guão, no bar, após a sessão de cinema segui- de de comunicar impressões sobre as obras
da à exposição, no caminho ou ao chegar na e por isso formulam verbalmente o que
escola, ou quando em outra ocasião se en- experimentariam de modo apenas difuso,
contram pessoas que foram juntas à exposi- desorganizado, se estivessem na exposição
ção. Mesmo quem faz o percurso sozinho sozinhos. Comunicando impressões estão
pode depois praticar essa composição de também sondando-as e lhes agregando itens
significado com alguém, por exemplo, com das impressões e formulações daqueles com
amigos que também visitaram a mostra. quem tentam interpretar a obra.
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to significado e, por isso, gostar da obra. Mas siste em ação social que adquire importância
o que de fato a obra significa, eles admitem, para além dos conteúdos comunicados com
varia muito, e pontos de vista muito diferen- essa declaração e dos meios através dos quais
tes tendem a se compor, a própria dinâmica pôde ser constituída. Declarar a avaliação de
da conversa, como vimos, permitindo esse uma obra perfaz ação, no sentido proposto
arranjo. por Austin (1970), que estabelece um fato,
qual seja, indicar um momento crucial da
Dos conteúdos e resultados das conversas, atenção que um indivíduo ou grupo de indi-
talvez a avaliação seja a que mais contenta- víduos dispensa a uma obra e localizar o in-
mento fornece aos que percorrem a expo- divíduo frente ao grupo com o qual percor-
sição juntos – mas também a boa parte dos re a exposição.
que estão sozinhos. A incapacidade de pro-
duzir e expressar uma avaliação (por exem- Os itens de uma avaliação dizem respeito a
plo quando alguém que acompanha um visi- muitos elementos do objeto observado, e,
tante emite uma avaliação de uma obra, e no limite, passam a constituir também jul-
ele não sabe como se manifestar) produz gamentos em torno da possibilidade de esse
mais constrangimento do que não conseguir objeto poder ou não ser considerado arte.
interpretar ou não ter nada a comentar, si- “Isso não é arte” é afirmativa feita por visi-
tuações que também geram embaraço. tantes com alguma freqüência e costuma
desencadear reações de quem acompanha
Gostar e não gostar constituem objetivo da ou está perto – seja de aquiescência ou
presença dos indivíduos nas exposições. É discordância, seja ainda de potencializar sua
Visitantes na exposição
Os Trópicos,
esperado que todos tenham alguma avalia- atenção em relação à obra. Dada a disposi-
Máscara
Máscara, 2005 ção, positiva ou negativa, extensa ou não, ção de os atores sociais a princípio aceita-
Marcos Chaves “profunda” ou não, do que está sendo ex- rem que aqueles objetos sejam expostos
vídeo-instalação no posto. Declarar se gosta ou não desta ou
CCBB, Rio de Janeiro como obras de arte, um objeto – ou um
Foto: Christina Bocayuva daquela obra, e mesmo da exposição, con- conjunto deles, ou mesmo todos de uma
exposição – costuma ser excluído da cate-
goria arte apenas quando não se encontram
de fato elementos que possam justificar sua
classificação como tal. Há, nesse sentido,
grande tolerância do público, e, diferente
do gostar ou não gostar, essa inclusão ou
exclusão de obras da categoria arte pode
ser transformada mediante o fornecimento
de informações e outros elementos para sua
avaliação – por exemplo, quando alguém
durante a exposição fala ou lê algum mate-
rial sobre as intenções do artista com aque-
la obra ou sobre a dificuldade de se achar
ou trabalhar com algum material utilizado
em sua confecção. Assim, excluir da cate-
goria arte corresponde ao grau máximo da
avaliação negativa de uma obra, e por isso
sua comunicação é procedimento diferen-
Visitantes na exposição
Os Trópicos, O sonho da
planta do escritório
escritório, 2008
Gerda Steiner e Jörg
Lenzlinger, CCBB, Rio de
Janeiro,
Foto: Beatriz Pimenta
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Com esses e outros critérios obras são Notas
avaliadas corriqueiramente nas exposições, ao
1 Essas reflexões resultam de pesquisa etnográfica em expo-
lado ou junto de comentários e interpreta- sições de arte de centros culturais, sobretudo as volta-
ções feitos em conversas entre visitantes. Às das para o chamado grande público e para contingente
vezes é por meio de uma conversa que eles significativo de escolas. Se com os dados de que dispo-
constroem um mínimo de compreensão da mos, pela própria natureza da pesquisa, não pretende-
obra para se sentir seguros e expressar uma mos efetuar generalizações, eles permitem discutir pro-
posições bastante difundidas sobre o contato da popu-
avaliação para seus acompanhantes. E à saída lação com objetos de arte. Para a apresentação com-
da exposição, grupos, pares, amigos come- pleta dos dados da pesquisa e desenvolvimento de ar-
çam a avaliar, individualmente, qual a obra de gumentos, ver Lígia Dabul. O público em público: práticas
que mais gostaram – e eventualmente da que e interações sociais em exposições de artes plásticas, tese
menos gostaram, se gostaram ou não da ex- de doutorado em sociologia. Fortaleza. PPGS/ UFC.
posição, e novas avaliações são feitas referi- 2 Em A arte de conversar, textos explicitam e preconizam
das completamente a esses novos contextos. regras da conversação, prática oral difundida nos hôtels
parisienses e voltada para a diversão, nos séculos 17 e
Assunto sem fim 18. Como outras práticas sociais, essa é também passí-
vel de aprendizagem, “por experiência e ‘impregnação’,
Tal como não podemos separar comentári- enquanto técnica de adquirir o ofício ‘que não se deve
os das interpretações e avaliações que visi- fazer sentir’”. Alcir Pécora. “Prefácio. Variações para con-
tantes fazem em uma exposição, não encon- versas entre espécies de salão”. In Morellet et al., A arte
tramos a conversa isolada das outras práti- de conversar. São Paulo: Martins Fontes, 2001: VII.
cas sociais que presenciamos e compartilha- 3 Erving Goffman [1981]. Façon de parler. Paris: Les Éditions
mos nessas situações: brincadeiras, observa- de Minuit, 1987.
ção de trabalhos expostos, convivência, es- 4 Erving Goffman. Behavior in Public Places. Notes on the soci-
tudo, carícias, ensino etc. Já não podemos al organization of gatherings. New York: The Free Press,
mais, também, afastar a experiência de con- 1969.
tato dos indivíduos com as obras expostas 5 Mesmo atores sociais considerados especializados, em di-
nas exposições que freqüentam, de tantas ferentes graus, mas com grande incidência, tendem a
outras experiências que estão tendo naque- fazer comentários com essas características.
le exato lugar e momento, na maioria das 6 Exposição permanente Admiráveis belezas do Ceará ou o
vezes junto com outros visitantes. Pensar a desabusado mundo da cultura popular.
arte, e sua relevância social, a partir do que
7 P. Bourdieu. Esboço de uma teoria da prática. In Ortiz,
de fato ocorre nessa sua ponta por vezes
Renato (org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática,
esquecida – a tocada pelo público tal como 1983.
ele se apresenta para ela – talvez consista
em esquecer sua especificidade. Ou 8 Leçons et conversations sur l’esthétique, la psychologie et la
croyance religieuse. Paris: Gallimard, 1971.
encontrá-la em conjunções inusitadas de
parcelas da vida social que teimam em inva- 9 M. Mauss [1921]. A expressão obrigatória de sentimentos.
di-la e experimentá-la. Talvez a conversa, In Cardoso de Oliveira, Roberto (org.). Marcel Mauss.
Antropologia. São Paulo: Ática, 1979.
como sociabilidade, forma de interação vol-
tada para ela mesma,10 contribua para man- 10 Ver Simmel, G., Sociabilidade – um exemplo de sociolo-
ter indefinido o sentido da arte e, assim, o gia pura ou formal.. In Moraes Filho, Evaristo de (org.).
ímpeto de os indivíduos se perguntarem a Georg Simmel. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
seu respeito.
Lígia Dabul é doutora em sociologia (PPGS/UFC), poe-
ta, professora do Departamento de Sociologia da UFF e
colaboradora do PPGAV – EBA/UFRJ.