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Da ontologia à morfologia:
Reflexões sobre a Identidade da Obra Musical
RIO DE JANEIRO
2011
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
MESTRADO EM FILOSOFIA
Da ontologia à morfologia:
Reflexões sobre a Identidade da Obra Musical
RIO DE JANEIRO
2011
C293 Caron, Jean-Pierre Cardoso.
Da ontologia à morfologia : reflexões sobre a identidade da
obra musical / Jean-Pierre Cardoso Caron. Rio de Janeiro,
2011.
97f.
A Fernando Rodrigues, por ter aceitado me acompanhar durante a presente pesquisa, sua
abertura, sua leitura atenta e musical e pela amizade que demonstrou durante o decorrer do
mestrado.
A Vladimir Vieira, pelas ótimas colocações na qualificação e na defesa, pela sua paixão por
música, que, creio, é um pré-requisito básico para se apreciar o presente trabalho.
A Valério Fiel da Costa, por toda a inspiração e amizade ao longo dos anos, por sua música,
pensamento, por ter me acolhido inúmeras vezes em sua casa e em sua vida e por ter aceitado
participar da minha banca de defesa. Este trabalho é também um resultado desta amizade.
A Ricardo Jardim, por ter acreditado em mim, enquanto aluno ingressante de uma outra área,
durante todo o mestrado. Pela atenção e conversas nos cafés após a aula.
Aos amigos Paulo, Sarpa, Ale, Henrique, Mário e Natacha, por serem ótimos companheiros
de moradia (literal e metafórica), neste domínio pouco habitado- ainda que mais do que o
senso comum midiático deixa entrever.
À família- mãe, pai e tias- sem cujo apoio sempre presente não teriam sido realizados este e
outros trabalhos.
A Hannah, namorada por dez anos, amiga por mais três e eterna interlocutora.
A Dora, por todo o amor e por ter me dado o melhor destes dois anos no qual esta pesquisa foi
feita.
RESUMO
One of the most difficult problems in the philosophy of music is the one concerning
the identity of musical works. Many theories have been proposed inside the analytic
philosophical tradition in an attempt to establish the properties that are intrinsic to this kind.
The present work approaches these, taking as paradigmatic example the important theory
proposed by Nelson Goodman in his book Languages of art as a starting point, contrasting it
with investigations that take into account the unstable and changing aspects of the musical
work. We call these investigations, inspired by the research of Brazilian composer Valério
Fiel da Costa, morphological: not a quest for unchanging essences or identity conditions for
every musical work, but an attempt to understand the transformations suffered by each
particular work from performance to performance, in order to grasp the similarities and
differences in each version. Wittgenstein’s reflection about rule-following and errors is
important in this respect.
Introdução 01
2 Identidade e indeterminação 32
2.1 Contextualização histórica: a música experimental 33
2.1.2 Identidades vagas 38
2.1.3 Madrigal 39
2.2 O conceito-obra 41
2.3 A Morfologia da obra musical segundo Fiel da Costa 48
2.3.1 Modelagens 52
2.4 Discussão final 54
Conclusão 79
Referências 88
1
Introdução
Uma das questões mais difíceis enfrentadas por todos aqueles que se propõem a pensar
filosoficamente a música é a questão do estatuto ontológico da obra musical. Algumas
dificuldades enfrentadas pelo ponto de vista ontológico são: a temporalidade da obra musical,
o caráter efêmero da performance, a dependência entre partitura e realização, a multiplicação
de instâncias que poderiam chamar-se “a obra”, e, não menos importante, a própria prática
musical como proponente constante de novas situações entre documento e evento, artista e
público, compositor e intérprete. Este último ponto é tão importante que não permitiria
separar o ponto de vista ontológico de um certo compromisso com um ponto de vista estético.
Em seu esforço para definir de uma vez por todas aquilo de mínimo que poderia constituir
uma obra musical, o ontólogo não consegue em última análise se divorciar de uma visão
herdada da prática musical vigente. Buscando as condições mínimas para a conceituação de
obra, o ontólogo, sem saber, encontra os componentes históricos de obras singulares. O que
está em jogo aqui é a própria possibilidade de generalização de propriedades de objetos
particulares a classes inteiras.
Este é o problema básico que suscitou a presente dissertação. Não é um mero acaso
que o assunto aqui proposto se relacione com a música e nem que ele seja especificamente
uma problemática que lida com os limites da obra musical. Existe um caminho pessoal que
me trouxe até estas questões, partindo especificamente da música, para a seguir encontrar em
abordagens filosóficas da música o seu ponto de apoio principal. Além da atividade filosófica
que aqui se desenha, tenho formação musical e a presente dissertação é uma tentativa de
compreender os problemas intrínsecos à minha própria produção, como compositor e como
intérprete de música contemporânea e underground. Neste contexto, há uma dupla vivência
aqui presente, como praticante de música e como pesquisador em filosofia, e esta vivência dá
origem a um dos temas mais presentes ao longo do trabalho: a tensão entre a teoria, expressa
pelas exigências das caracterizações ontológicas da obra musical, e a prática, mais pautada
pela tentativa de obter um determinado resultado morfológico.
Gostaríamos aqui de propor uma distinção entre ontologia e morfologia da obra
musical. A atitude ontológica versaria sobre as condições que devem ser satisfeitas para que
haja obra. Ela adquire a forma mais básica: o que é uma obra musical? Ou, levando em
consideração a cadeia de dificuldades mencionadas acima: onde está a obra musical? A
2
pergunta da morfologia é um pouco diferente. Ela versa sobre o aspecto perceptual da música
e as transformações sofridas de performance a performance e a maneira como essas
transformações ocorreram. Trata-se de uma questão de captar semelhanças e diferenças e sua
relação com os contextos nos quais tais semelhanças e diferenças são produzidas. A princípio
poderíamos verificar uma circularidade entre as duas noções: a pergunta morfológica como
um possível preâmbulo para a pergunta ontológica, e esta como contendo em certa medida a
pergunta morfológica. Assumimos esta circularidade. A pergunta ontológica poderia de fato
ser respondida se encontrássemos nessa cadeia de performances os elementos constitutivos da
obra, separando-os dos contingentes.
Estrutura da dissertação
identificação da obra como sintoma para a sua existência (passo ontológico efetivamente
dado por Goodman): há obra quando há algo que permanece idêntico de performance a
performance. De qualquer forma, não é tanto o juízo ontológico (“existem objetos tais que são
obras e que possuem tais e tais características”) quanto as exigências lógicas de identificação
estrita de obras o que é o alvo da nossa crítica na presente dissertação. A ênfase colocada aí no
adjetivo estrito. Pois também não é a nossa intenção esvaziar completamente a possibilidade
de identificação de obras, pelo contrário. E é isto o que ficará claro a partir do exame de um
repertório bastante específico de obras dentro da música contemporânea: o repertório dito de
música indeterminada.
Em Experimental Music: Cage and Beyond, Michael Nyman faz uma abordagem que
se tornou clássica nos estudos sobre este repertório. Neste trabalho, o autor propõe uma
distinção básica entre as tradições da avant-garde da Europa continental e o experimentalismo
influenciado pela obra de John Cage de uma certa produção anglo-saxônica a partir da relação
de ambas com o objeto artístico acabado. No contexto da avant-garde manteria-se a exigência
de uma obra consistente, e a abertura ao acaso, quando comparece, é controlada e limitada
pelas estruturas postas em jogo pelo compositor. No contexto da tradição experimental, há um
abrir-se às potencialidades do som e a obra é vista mais como uma oportunidade para que
sons aconteçam e menos como resultado da vontade criativa do compositor. De um lado,
música como obra, de outro, música como processo. É claro que tal distinção parece
reducionista frente a alguns exemplos tidos como pertencentes a cada tradição. Poderíamos
propor como exemplos problemáticos a obra de Stockhausen, Aus den sieben Tagen, que é
composta integralmente por instruções de caráter mais ou menos esotérico e as obras
produzidas por Morton Feldman a partir dos anos 80, com sua escrita rítmica e timbrística
extremamente detalhada. Não aceitamos, portanto, sem questionar, a distinção proposta por
Nyman, e isto ficará claro no contexto do capítulo 2, onde também apresentamos duas teorias
da obra musical que apresentam posições alternativas em relação ao conceito de obra, as
práticas que a ele são associadas e seus limites de aplicação: a de Lydia Goehr, da obra
musical como um conceito regulativo e emergente advindo em um certo momento da história,
e a de Valério Fiel da Costa, da obra como um sistema aberto, que é capaz de acolher
perturbações e diferenças com relação à letra da partitura. Estas duas teorias (além da alçada
pessoal para o autor importantíssima da teoria do Valério, que nos motivou, em parte, a seguir
o caminho que aqui trilhamos) nos servem como passagem de uma concepção de obra
musical pautada na identificação de um objeto-obra, para uma concepção pautada pela ação
dos sujeitos envolvidos na produção e manutenção da identidade de obras. No entanto, uma
7
diferença essencial permanece entre ambas as teorias: a teoria de Goehr se coloca como um
exame da ação de um conceito que fora tomado como conceito regulativo da prática musical
de uma certa época. Portanto, ela se coloca em um nível grande de generalidade, não se
reportando tanto às obras singulares, e sim a como estas se constituem enquanto obras pela
ação do conceito regulativo de obra. A teoria de Fiel da Costa se concentra, ao contrário, nas
transformações sofridas pelas próprias obras de performance a performance e nos graus de
aceitação de perturbações que cada caso de conformação morfológica é passível de aceitar. É
uma teoria, portanto, das obras singulares. Veremos as consequências desta diferença no
momento adequado. Por hora podemos manter uma distinção que aqui se esboça, e que será
mais desenvolvida já no capítulo 3: a distinção entre as normas implícitas que regem uma
prática (como o conceito-obra de Goehr) e as regras explícitas existentes nos documentos-
partituras.
Neste contexto, nos propomos a examinar a aplicabilidade da reflexão de Wittgenstein
acerca do ato de seguir regras na tentativa de propor uma morfologia da obra musical. Num
primeiro momento parece evidente que regras fazem parte de nossa prática musical: as regras
de projeção de partitura a performance, de execução instrumental, de comunicação entre
músicos, até mesmo regras de fruição (o comportamento do público, a atitude de escuta ligada
a certos contextos-escuta num teatro italiano, escuta acusmática, escuta doméstica, entre
outras), todas ligadas às nossas formas de vida. Mas é na tensão entre a ação regrada e seu
sempre possível rompimento ou ainda na possibilidade de redescrição de uma mesma ação em
termos de regras diferentes que repousa a especificidade do pensamento de Wittgenstein, e de
seu aporte para uma filosofia da música. Simultaneamente a um uso operacionalizado das
regras para se pensar o conjunto de nossas práticas, se perfaz uma crítica a uma adoção
automática e mecanicista desta noção. A crítica, tal como exposta por Saul Kripke no clássico
Wittgenstein on rules and private language está expressa no parágrafo 201 das Investigações
Filosóficas e diz: “Este era o nosso paradoxo: nenhum curso de ação poderia ser determinado
por uma regra, porque qualquer curso de ação poderia ser levado a concordar com a regra”. A
posição de Kripke é a de que o argumento da linguagem privada já estaria contido nos
parágrafos que levariam à conclusão no parágrafo 202: “Assim, não é possível obedecer a
uma regra privadamente, porque se este fosse o caso, pensar estar obedecendo a uma regra
seria o mesmo que obedecê-la.”. Esta posição contraria a maioria dos comentadores, que
localizam o argumento da linguagem privada a partir do parágrafo 243. Não é nossa intenção
discutir a pertinência ou não da posição de Kripke enquanto uma tentativa de segmentação do
texto wittgensteiniano, e sim aproveitar a sua intuição em valorizar o que ele chamou de
8
Vale dizer algumas palavras sobre o público ao qual se destina a presente dissertação.
Primeiramente, ela não é um mero requisito para obter um título de mestre e não foi assim que
o autor pensou nela. Com todos os erros que possam estar nela contidos, tentei dar uma
contribuição genuína aos problemas apresentados. Há portanto um leitor ao qual me dirigi, e
por se tratar de uma dissertação em filosofia da música, alguns problemas surgem de
imediato: associo dois campos bastante técnicos do conhecimento, o que pode, na pior das
hipóteses, alienar um dos campos – ou os dois!- e, na melhor das hipóteses, fazer um campo
reconhecer os aportes do outro campo para a sua reflexão própria. Evidentemente meu
objetivo foi o segundo. Tentei, portanto, propor exemplos musicais de uma simplicidade que
permitisse serem compreendidos com um esforço mínimo pelos filósofos. Também na seção
sobre música indeterminada, achei por bem incluir uma rápida contextualização histórica da
prática e algumas de suas características mais marcantes. E, inversamente, tomei mais tempo
na exposição das idéias dos filósofos que aqui trabalho, principalmente nos casos de
Goodman e Wittgenstein, na tentativa de informar a um público de músicos os contextos nos
quais as suas idéias se produziram. Ambos os grupos, filósofos e músicos hão de me perdoar
de ter aqui por vezes repetido o que já sabem.
9
Sobre as citações, utilizei, sempre que disponível, o texto original em nota de rodapé,
além da tradução no corpo do texto. Em casos de utilização de uma tradução já existente da
obra, como foi o caso da obra Linguagens da arte de Goodman, a numeração de página da
tradução aparece entre parênteses no corpo do texto e a numeração do original aparece na nota
de rodapé correspondente.
10
1 A comparação com Wittgenstein se dá aqui em relação à sua dita “segunda” filosofia, exposta principalmente
em suas Investigações Filosóficas.
11
entende a filosofia como atividade a partir de uma visão negativa de filosofia, no sentido em
que a filosofia não criaria teorias, mas dissolveria pela terapia gramatical os falsos problemas
que assombram a imaginação dos filósofos e dos usuários da linguagem comum, a filosofia de
Goodman possui uma ambição criativa. Os conceitos da linguagem corrente nunca são aceitos
como tais e, ainda que sirvam de matéria-prima para as elaborações filosóficas de Goodman,
são submetidos a uma purificação lógica e conceitual com vistas a uma operacionalização
dentro de sistemas explícitos de organização conceitual. O objetivo desta operacionalização é
a sistematização de um determinado setor do conhecimento ou da experiência. Um bom
exemplo deste procedimento é o tratamento da própria noção de notação, que veremos
adiante, e a radical restrição, para fins sistemáticos, dos significados desta noção e sua
repartição em outras etiquetas linguísticas (sistema notacional, sistema discursivo, etc...).
Outro bom exemplo é o tratamento da categoria de verdade dentro do quadro mais abrangente
da categoria da correção: verdadeiro se torna um caso específico da correção adequado a
enunciados da linguagem verbal. Conceitualizações de mundo que não recorrem à linguagem
verbal não podem ser nem verdadeiras, nem falsas, mas podem ser corretas, ou seja,
atenderem a critérios rigorosos de boa-formação e implantação (outro conceito básico de
Goodman) em nossas visões de mundo. Em fazendo isso, Goodman propõe uma
conceitualização mais abrangente do que apenas a linguagem verbal, incluindo os sistemas
das artes, e as formas não-verbais de referência (exemplificação, expressão, etc....).
Fica definida assim uma diferença fundamental com a abordagem de Wittgenstein, no
que Goodman modifica sempre os conceitos da linguagem corrente na tentativa de construir
sistemas de mapeamento de setores da experiência. Mas em que isso se diferencia das
abordagens metafísicas justamente criticadas por ambos os filósofos? Para Goodman, uma
sistematização de mundo nunca é a única viável. Há sempre várias possibilidades de
formações de mundo, ilustradas tanto por sistemas filosóficos, quanto por teorias científicas,
obras de arte, etc... Goodman escaparia assim, tanto ao dogmatismo metafísico, que atribui
valor de verdade unívoco às proposições do sistema, quanto de um pragmatismo puro e
simples, que considera que a atividade filosófica responde ao único e exclusivo critério da
utilidade. Não há fim nem fundamento para a criação de versões do mundo, desde que elas
atendam bem aos critérios exigidos para o seu bom funcionamento.
12
1.2 Nominalismo
2 “Nominalism as I conceive it (…) does not involve excluding abstract entities, spirits, intimations of
immortality, or anything of the sort; but requires only that whatever is admitted as an entity at all be construed as
an individual.” (“A World of individuals” In: GOODMAN, 1979, p. 157)
13
3 Idem, p. 58
4 A contagem de todas as combinações entre os n elementos de uma coleção é dada pela equação 2 elevado a
n-1. No caso presentemente comentado, isto significa que as combinações entre os elementos em si esgotam
tudo o que é admitido no sistema nominalista, estando excluídas combinações de segunda ordem, como
combinações de combinações, etc...
14
sinônimos, mas possuem a mesma extensão, como pegasus e unicórnio – sem serem
sinônimos, ambos possuiriam extensão nula. Goodman lança mão aqui da noção de extensão
secundária, que seriam as extensões não dos termos “unicórnio” ou “pegasus” isoladamente,
mas sim das expressões compostas das quais “pegasus” e “unicórnio” fazem parte. Assim,
“desenho de unicórnio” teria extensão diferente de “desenho de pegasus”. Desta forma,
seriam definidas como sinônimas apenas expressões que possuiriam extensões secundárias
idênticas.
Algumas características dessas estratégias nominalistas serão evidenciadas no
tratamento que Goodman dá ao problema da notação nas obras de arte. Nosso objetivo aqui é
o de esclarecer o sentido que a sua teoria da notação possui dentro de um programa filosófico
mais amplo, mostrando, também, como as tão criticadas distorções em relação à prática
musical comum em sua teoria da identidade da obra musical são resultado de uma fidelidade a
um programa filosófico bastante circunscrito e de um certo método de fazer filosofia. Assim,
concluímos a presente seção com uma citação elucidativa de Panaccio:
5 “Le nominalisme au sens où Goodman l´entend peut facilement être vu comme un cas particulier d´une
attitude intellectuelle plus générale – à laquelle, d´ailleurs, l´étiquette convient beaucoup mieux – et qui consiste,
selon la définition qu´en donnait dejá un group de maîtres parisiens du XVe siècle, à refuser de 'multiplier les
choses selon la multiplicité des termes'. La reformulation goodmanienne circonscrit une thèse bien précise,
certes, mais em lui résérvant une étiquette traditionellement beaucoup plus large, elle risque de perdre de vue la
problématique plus générale – et tout à fait pertinente – dont la question de l´existence de classes n´est qu´une
partie.” (PANACCIO, 1993, p. 163)
16
6 “Let us speak of a work of art as autographic if and only if the distinction between original and forgery
of it is significant; or better, if and only if even the most exact duplication of it does not thereby count as
genuine. If a work of art is autographic, we may also call that art autographic. Thus painting is autographic,
music nonautographic, or allographic.” (LA, p. 113)
7 “ First, a score must define a work, marking off the performances that belong to the work from those
that do not.” (LA, p. 128)
17
recaem sob o domínio deste conceito recaem também sob o domínio de outros, por exemplo
“mesa de aço” recai sob o domínio de “mesa” e de “objetos de aço”. Segundo Goodman, se
perguntados sobre um objeto como uma “mesa de aço” poderíamos passar de um domínio ao
próximo seguindo esta cadeia de pertenças. No contexto de performances de obras musicais,
deve haver não apenas uma determinação a partir da partitura de quais são as performances
corretas, mas também as performances corretas devem nos levar à obra e somente àquela
obra. Nas palavras de Lydia Goehr, as performances devem satisfazer ao teste de
rastreabilidade, ou seja, deve ser possível remontar das performances à partitura correta. Para
Goodman, se considerarmos algo menos do que obediência total à partitura como critério de
identificação, nada impediria de haver um deslizamento de identidade de uma versão para a
próxima.
As partituras e as execuções têm de estar relacionadas de tal modo que todas
as execuções pertençam à mesma obra e todas as cópias das partituras
definam a mesma classe de execuções, em qualquer encadeamento em que
cada passo vá da partitura para a execução em conformidade com ela, ou da
execução para a partitura que a abrange, ou de uma cópia da partitura para
outra cópia correta da partitura.8 (Idem)
Assim, uma série de requisitos devem ser satisfeitos, no intuito de evitar esse
deslizamento de identidades e garantir a identidade da obra musical.
1.3.1 Requisitos
8 “Scores and performances must be só related that in every chain where each step is either from score to
compliant performance or from performance to covering score or from one copy of a score to another correcto
copy of it, all performances belong to the same work and all copies of scores define the same class of
performances.” (129)
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Duas marcas são indiferentes ao caracter se cada uma for uma inscrição (i.e.,
pertencer a um caracter) e nenhuma pertencer a qualquer caracter a que a
outra não pertença. A indiferença ao caracter é uma relação de equivalência
típica: reflexiva, simétrica e transitiva. (p. 154) 10
9 “Goodman utilize 'notation' pour signifier indifféremment 'schéma notationnel' et 'système notationnel',
lá ou le contexte prévient la confusion. Mais une authentique notation est un système notationnel, c´est-à-dire un
schéma notationnel appliqué à un domaine de référence, de telle façon qu´il existe une correspondance bi-
univoque entre les caractères du schéma et leurs concordants dans le domaine de référence, et qu´on puisse par lá
aussi bien déterminer les concordants a partir des caractères que les caractères a partir des concordants." (VG,
p.49)
10 “Two marks are character-indifferent if each is an inscription (i.e. belongs to some character) and
neither one belongs to any character the other does not. Character-indifference is a typical equivalence-relation:
reflexive, symmetric and transitive.” (LA, 132)
19
11 “The syntactic requirements of disjointness and of finite differentiation are clearly independent of each
other. The first but not the second is satisfied by the scheme of classification of straight marks the counts every
difference in length, however small, as a difference of character. The second but not the first is satisfied by a
scheme where all inscriptions are conspicuously differente but some two characters have at least one inscription
in common.” (LA, 137)
12 “Compliance requires no special conformity; whatever is denoted by a symbol complies with it.” (144)
13 “Where each compliant of a compound inscription is a whole made up of compliants of component
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Assim, em português sonoro, “pão” é compósito, pois é composto pelo som de “p”,
seguido pelo som de “ã” e pelo som de “o”; enquanto “p” é primo. No entanto, em português
objetal (referente a objetos, acontecimentos, etc), “p” seria desocupado, pois nenhum objeto
corresponde a “p” a não ser o próprio caracter “p”.
Vamos aos requisitos. O primeiro requisito semântico, que liga os dois lados do
sistema notacional é a ausência de ambiguidade. Ou, na linguagem de Lydia Goehr, a
determinação unívoca. Ela significa que um caracter não deve ser ambíguo, ou seja, ele não
deve ter mais de uma classe de conformidade. O segundo requisito é a disjunção semântica.
Aqui, as classes de conformidade têm que ser disjuntas.
Nos requisitos sintáticos falamos da disjunção sintática, segundo a qual os caracteres
têm de ser disjuntos, ou seja, uma inscrição não pode contar como inscrição de mais de um
caracter. Do lado semântico, são as classes de conformidade que têm que ser disjuntas, ou
seja, as classes de elementos denotados pelas inscrições devem ser disjuntas. A necessidade
de expressar aqui esse requisito para o lado semântico deve-se à independência entre a
inscriptions, and these compliants of components stand in the relation called for by the correlation in question
between modes of inscription-combination and certain relationships among objects the whole inscription is
composite. Any other nonvacant inscription is prime.” (146)
22
disjunção sintática e semântica facilmente observada no caso, por exemplo, de uma inscrição
que conta como inscrição de um único caracter (disjunta de todas as outras), mas cuja classe
de conformidade se intersecta com a de uma outra inscrição que pertence a um outro caracter.
Poderíamos imaginar, a partir do exemplo dado anteriormente mesa e objeto de aço as
diferentes mesas de aço como classe que pertence a ambos os caracteres, ainda que, enquanto
caracteres, eles sejam disjuntos (o caracter “mesa” é diferente do caracter “objeto de aço”). Se
as classes de conformidade não forem disjuntas, pelo menos um elemento pertencerá a mais
de uma classe de conformidade, levando, pela cadeia de inscrição a conformante a inscrição a
conformante e assim por diante, a conectar objetos que não estão na mesma classe de
conformidade. Desta forma a identidade da obra não é garantida.
14 “Even though all characters of a symbol system be disjoint classes of unambiguous inscriptions and all
inscriptions of any one character have the same compliance-class, different compliance-classes may intersect in
any way. But in a notational system, the compliance-classes must be disjoint.” (149-50)
23
Goodman, é a segregação semântica a que um sistema deve estar submetido para que ele seja
notacional.
Um sistema notacional não pode conter qualquer par de termos
semanticamente intersectados, como 'doutor' e 'homem inglês'. Se o sistema
contem o termo 'homem', por exempo, não pode conter o termo mais
específico 'homem inglês', nem o termo mais geral 'animal'. Os caracteres de
um sistema notacional estão semanticamente segregados. (p. 173) 15
15 “A notational system cannot contain any pair of semantically intersecting terms like 'doctor' and
'Englishman'; and if the system contains the term 'man', for example, it cannot contain the more specific term
'Englishman' or the more general term 'animal'. The characters of a notational system are semantically
segregated.” (152)
24
notacionais expressos por Goodman, na medida em que as diferenças entre Andante, Adagio,
Lento, etc não são claramente delineadas, podendo haver zonas de intersecção entre estas
classes. Goodman propõe que se usarmos uma notação metronômica, do tipo semínima = 60,
e alocarmos diferentes valores para cada andamento, poderemos torná-los notacionais. Neste
caso estaríamos impondo uma limitação de conformidade a cada um deles, estabelecendo um
limite a partir do qual um andamento não se pode intersectar com o próximo. Também as
notações de intensidade (p, f, mf, no meio dos dois pentagramas no exemplo acima) não
correspondem a domínios claramente demarcados. Piano significaria meramente “suave”,
forte significaria “forte”, mezzo forte (mf) , “meio forte”. São indicações relativas e na prática
comum sua relatividade umas às outras deve ser observada pelo intérprete. De fato, a
observância destas relatividades e a forma como elas são postas em relação - os valores
atualizados em performance – contam muito normalmente para o valor estético de uma
performance. Veremos em breve como a teoria de Goodman chega a conclusões extremadas à
luz das considerações feitas aqui a partir deste exemplo.
Apesar das distâncias efetivas tomadas com relação à teoria de Goodman em relação
às notações de andamentos e intensidades, a partitura clássica segue, grosso modo, os
preceitos enunciados por sua teoria. De tal forma que ela é passível de fixar um resultado
sonoro claramente reconhecível, ainda que deixando em aberto valores absolutos para
andamentos e intensidades. Suas identidades são verificadas prioritariamente a partir dos
valores melódico-harmônicos e rítmicos, e estes estão de acordo com os requisitos de um
sistema notacional, não deixando dúvidas sobre suas classes de conformidade.
1.4 Recapitulação
Goodman propõe 5 critérios para a existência de uma sistema notacional. São eles:
iv) Disjunção semântica – Classes de conformantes devem ser disjuntas. Não deve
haver interseção de classes.
classificação das obras de arte quanto à sua conformação autográfica ou alográfica. O capítulo
seguinte, “Esboço, partitura, guião”, leva adiante esta classificação, a partir da pergunta: é
necessário ou é possível ou desejável uma notação para x forma de arte? No entanto é
sintomático que a música tenha sido tomada como paradigma de arte alográfica, e tenha sido
ela a engendrar a reflexão de Goodman acerca dos sistemas notacionais. Em que medida uma
teoria da notação poderia ajudar na localização da obra de arte enquanto autográfica ou
alográfica? A notação, no sistema de Goodman é uma maneira de garantir a identidade da
obra. Sendo assim, a necessidade de uma notação é naturalmente sintoma de uma forma de
arte alográfica, na medida em que, nas obras autográficas, a identidade da obra se confunde
com o próprio objeto. Definimos antes arte autográfica, como aquela passível de ser
falsificada, em outras palavras, aquela na qual a diferença entre um original e a cópia é
significativa. Neste caso, como poderia um sistema notacional, cuja finalidade básica é a
produção de réplicas da obra, ser de qualquer ajuda? O ponto problemático aqui é que a
notação garante não apenas a identidade da obra (o que já guarda problemas em si) como ela
garante a própria existência de uma obra. Para garantir a identificação de algo dentro da
performance de que a performance é a performance, Goodman precisa postular que a
performance deve ser absolutamente fiel à partitura. Na ausência de um objeto ideal ao qual
performances possam se conformar com maior ou menor sucesso, apenas a identidade total de
performance a cópia da partitura e de cópia a performance garante a identificação da obra. O
que significa ainda dizer: uma performance com uma única nota errada não conta como
performance da obra.
Com esse parágrafo de Goodman abrimos para as objeções que a sua teoria da notação
comumente vem recebendo. Elas tomam em geral a forma de contra-exemplos da literatura
que não atenderiam aos requisitos propostos por Goodman para uma linguagem notacional. A
objeção mais simples versaria sobre a afirmação de que uma performance com uma nota
errada não contaria como performance da obra, comparando uma hipotética performance
16 “Nothing in Languages of art has given more readers the opportunity to throw up their hands in delighted
horror than the statement that a performance with a single wrong note does not qualify as a genuine instance
of the work in question.” (GOODMAN: 1979, p. 135)
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desse tipo com uma performance de má qualidade com todas as notas corretas. A esta objeção
Goodman responde que sua teoria trata de condições de identidade de obras e não da
qualidade estética das performances. Pode muito bem ser o caso que uma performance ruim
com todas as notas certas conte como exemplar da obra em questão, enquanto uma
performance excelente com um nota errada não conte. Há uma separação entre juízos de valor
e condições de identidade, e as condições de identidade propostas funcionam no interior de
um sistema de definições (como ficará claro a seguir). Uma outra objeção toma a forma de
contra-exemplos cujas notações não se conformariam aos requisitos notacionais. Neste caso,
aparentemente, o problema seria se x ou y obras da literatura, consideradas como exemplares
da prática musical ocidental são ou não notadas em um sistema que atende aos requisitos
propostos por Goodman. Mas a questão acima esconde uma questão mais profunda. A teoria
de Goodman não deixa espaço algum para um objeto obra que não se reduza à sua notação e
às suas performances. Logo, a questão sobre se uma obra x possui uma notação que se
conforme aos critérios de Goodman para um sistema notacional logo converge para uma
questão, mais grave, se x é ou não obra.
Em LA Goodman chega a analisar alguns exemplos problemáticos, como, por
exemplo, algumas notações de John Cage. Nestes exemplos, a impossibilidade de identificar
algo que seja a obra dentro das várias performances leva Goodman a concluir que não há
obra, no seu sentido estrito. Parece que estamos aqui novamente confrontados com uma
dificuldade inerente à sua forma particular de fazer filosofia, e o divórcio resultante entre as
suas definições e aquelas que são efetivamente pressupostas na prática.
Em uma tentativa de responder à objeção, Goodman diz:
Nós não tentamos definir 'branco' – ou 'triângulo' – de tal forma que o termo
se aplique a tudo aquilo a que nós aplicamos em nosso uso diário. O
resultado seria inútil assim como o esforço seria sem esperança. O mesmo é
verdade para as definições que dou para 'notação', 'partitura', 'obra', etc.
Ainda que elas derivem da prática, elas são idealizações raramente de fato
atualizadas. Mas as definições são precisas, e úteis para medir casos reais em
termos de sua aproximação a estes ideais. A performance com uma nota
errada não é estritamente uma performance da obra em questão, não mais
que um homem é estritamente branco ou o diagrama no quadro negro é
estritamente um triângulo. 17
17 “We do not try to define 'white' – or 'triangle'- só that the term applies to everything we apply it to in daily
use. The result would be as useless as the effort is hopeless. The same is true for the definitions I give for
'notation', 'score', 'work', etc. Although they derive from practice, they are idealizations of it seldom actually
realized. But the definitions are precise, and useful for measuring actual cases in terms of their approximation
to these ideals. The performance with a wrong note is not strictly a performance of the work in question, any
more than a man is strictly white, or a diagram on the blackboard stricty a triangle.” (GOODMAN, 1979,
p.135)
28
O parágrafo citado expõe de forma bastante clara a relação de conflito que a filosofia
de Goodman mantém com os domínios não conceitualizados da experiência. Há um ponto de
partida na experiência comum, que é redefinido a partir da intervenção filosófica, na tentativa
de criar domínios sistematizados da experiência. Estes domínios servirão então de padrão para
a comparação com aquilo que é efetivamente o caso. Aqui fica bastante evidente um conflito,
apontado entre outros por Lydia Goehr, entre uma ambição de pureza característica da
ontologia e a sua aliança local com elementos contingentes da cultura. No próximo capítulo
examinaremos algumas alternativas à pergunta ontológica por condições de indentidade
(incluindo aquela proposta por Goehr). Por hora vamos acompanhar Goehr em sua
caracterização do método de Goodman.
Mas Goodman tinha uma razão profunda para adotar a posição que ele
adotou (…) Para justificar sua posição geral, Goodman notou primeiramente
que as definições devem ser às vezes estipulativas. Em um livro anterior,
The Structure of Appearance, ele argumenta que uma definição estipulativa
'é aceitável se não viola nenhuma decisão evidente do uso ordinário. Ela
passa a ser legislativa para instâncias aonde o uso não decide.18
18 “But Goodman had a profound reason for adopting the position he did (…) To justify his general
position, Goodman noted first that definitions sometimes have to be stipulative. In an earlier book The Structure
of Appearance, he had argued that a stipulative definition 'is acceptable if it violates no manifest decision of
ordinary usage. It can become legislative for instances where usage does not decide.” (GOEHR:1993, p. 75)
29
Uma busca por definições de tipo científicas por vezes parece um endosso
ou uma extensão moderna de uma metafísica realista ou essencialista
tradicional. De fato, é dito que (a) objetos particulares recaem sob um
determinado tipo (ou conceito) se e somente se eles possuem as propriedades
essenciais requisitadas; (b) se um objeto do tipo K perde as propriedades que
definem a essência K, ele não é mais do tipo K, e mais, não é mais aquele
objeto, uma vez que aquele objeto era necessariamente K; (c) prover uma
definição para K é descrever as propriedades essenciais associadas com K; e
(d) esta definição se mantém por todo o tempo ou ao menos enquanto o tipo
K existe. De acordo com este essencialismo, conceitos- mesmo aqueles
funcionando nas esferas culturais- são tratados como fixos. Um conceito fixo
é aquele que não muda no tempo e pode ser descrito em termos de um
conjunto imutável de propriedades essenciais ou condições de identidade.19
Essa caracterização é válida para os vários métodos analíticos examinados por Goehr,
não apenas o de Goodman. O problema não está então apenas nas exigências nominalistas e
extensionalistas de Goodman, e sim na necessidade de buscar condições de identidade para
além de toda contingência histórica. Autores que mais tentaram aproximar as suas teorias das
intuições pré-sistemáticas do senso comum evidenciaram um divórcio entre teoria e prática,
na medida em que suas filosofias retém algo do senso comum, afastando-se completamente
em outros pontos. Para Goehr, o problema central, além da adoção de conceitos fixos para
práticas culturais, é a ignorância das condições históricas que possibilitaram a emergência de
um determinado conceito. Sua noção de conceito regulativo procura dar conta das
insuficiências das teorias analíticas da obra musical, e uma tese da emergência histórica do
conceito-obra vêm dar conta da contingência ignorada por aquelas. No entanto, esse será o
assunto para o próximo capítulo. Por hora vamos reter a intuição ainda vaga de um conceito
regulativo de obra que regula práticas sócio-culturais. Este conceito servirá para fornecer a
base de uma morfologia preliminar da obra musical.
19 “A scientifically styled search for definitions has sometimes looked like an endorsement or modern
extension of a traditional realist and essentialist metaphysics. Accordingly, it is claimed (a) that particular objects
fall under a given kind (or concept) if and only if they possess the requisite essential properties; (b) if an object
of kind K loses the properties defining K´s essence, it is no longer of kind K, and what is more, it is no longer,
that object at all because that object was K necessarily; (c) to provide a definition for K is to describe the
essential properties associated with K; and (d) this definition holds for all time or at least as long as kind K
exists. In line with this essentialism, concepts – even those functioning in cultural spheres- have been treated as
fixed. A fixed concept is one that is unchangeable over time and can be described in terms of an immutable set
of either essential properties or identity conditions.” (GOEHR: 1993, p. 72)
30
Uma outra questão que vem balizar a nossa busca, desta vez talvez nos afastando de
Goehr, é trazida por um diálogo entre Goodman e Richard Wollheim precisamente sobre o
estatuto da identidade da obra musical em obras singulares.
Em Of Mind and other matters (M), Goodman se engaja em uma discussão com
Richard Wollheim. A objeção de Wollheim, importante para a nossa argumentação, é a de que
a identificação de obras singulares, tanto autográficas, quando alográficas, envolve referência
à história de produção das obras. Lembrando que, para Goodman, alográfica é a obra para a
qual a história de produção pouco importa na sua definição, tendo como contrapartida o fato
de que a diferença entre um original e a cópia torna-se não-significativa. Sua resposta a
Wollheim mantém essa mesma posição. O que se torna uma questão importante para nós, e
também um ponto de discussão que permite traçar alguns limites dentro da própria obra de
Goodman, é a observação de Wollheim de que “os critérios de identidade para obras em
diferentes artes possuem importância estética por entrarem no âmbito da teoria do artista e,
ato contínuo, de seu trabalho.”20
Em um livro posterior a LA, Ways of worldmaking (WW), Goodman radicaliza suas
teses acerca da alçada cognitiva das diferentes artes, propondo que tanto artes quando teorias
filosóficas ou científicas, quanto quaisquer outras formas de descrição, depicção,
exemplificação ou expressão, contam como versões do mundo, ou versões-mundo no
vocabulário de Goodman. A ideia de um mundo em si, independente de qualquer descrição
que se faça dele, é um alvo já antigo da filosofia de Goodman, que é, inteira, uma tentativa de
sistematizar justamente meios de se descrever de forma frutífera o mundo independentemente
do acesso privilegiado a quaisquer dados que forneçam a verdade unívoca sobre ele. Neste
sentido, a ideia de worldmaking, fabricação de mundos, seria a culminância do projeto
filosófico de Goodman.
Mas dentro desta ideia geral há algumas distinções. Há versões-mundo verbais,
composta por descrições físicas ou filosóficas, literárias ou poéticas; e há versões-mundo não-
verbais: as artes pictóricas, visuais, dança, arquitetura e a música são exemplos desse tipo de
versão. Para Goodman a ideia de uma “teoria implícita” na obra de um artista lhe parece
incompreensível, pois teorias fariam parte das versões-mundo verbais, enquanto que obras
20 “Wollheim goes on to argue that the criteria of identity for works in different arts have aesthetic importance
in that they enter into the artist´s theory and thus into his work.” (GOODMAN, 1984, p. 141)
31
musicais ou pictóricas, por exemplo, fariam parte das versões-mundo não-verbais. Por mais
que a filosofia de Goodman acomode mais de que muitas outras (principalmente de tradição
analítica) a variedade de expressões possíveis, permanece implícita ainda uma função de
segunda ordem para o pensamento filosófico: ele permite expressar as condições de
possibilidade para as várias descrições de mundo possíveis. Neste sentido, por mais que a
singularidade das versões-mundo não-verbais seja respeitada, a ideia de uma auto-colocação
da obra que problematize questões de ordem filosófica ou teórica, ainda que implícitas,
permanece alheia às possibilidades abertas pelo seu pensamento.
A ideia da criação individual por cada obra não apenas de uma versão-mundo
submetida aos parâmetros de correção seja de uma tradição ou prática partilhada, seja aqueles
propostos pela filosofia, permanece uma possibilidade importante a ser abordada no contexto
do nosso trabalho. No próximo capítulo deveremos examinar alguns exemplos musicais
problemáticos e apresentar sumariamente duas teorias da obra musical: a de Lydia Goehr e a
de Valério Fiel da Costa.
32
2 Identidade e indeterminação
Em seu livro Experimental music: Cage and Beyond, Michael Nyman propõe uma
diferenciação entre duas correntes da música do pós-guerra: a européia, que ele chama avant-
garde, tendo como representantes máximos Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen; e a anglo-
americana, que ele chama experimental, aquela influenciada pelas propostas de Cage com
relação ao acaso e à indeterminação. O sentido de uma tal distinção é exposto por Nyman no
capítulo I de seu livro, no qual examina várias estratégias típicas da música experimental,
contrastando-as com a música da avant-garde européia. Segundo Nyman, esta última é uma
representante da tradição pós-renascentista, com o seu interesse em definir um objeto sonoro
repetível. A música experimental, por sua vez, se caracterizaria pela ênfase em processos
mais do que em objetos repetíveis, interessando-se pelo desenrolar em tempo real destes
processos, que frequentemente geram resultados imprevisíveis e de difícil repetição. Esta
ênfase em processos permitiria uma atitude mais flexível com relação à notação musical, que
passa não mais a definir um objeto musical fixo, mas as condições de peformance para se
chegar a um resultado. Por outro lado, a própria noção de resultado por vezes se encontra
questionada, na medida em que muitos desses processos gerariam não sempre o mesmo
resultado e sim resultados específicos a cada performance. No entender de Nyman, e este é o
ponto principal aqui, a música experimental se desinteressa em certa medida por um resultado
fixo, preferindo concentrar-se no momento singular (the unique moment).
Nyman segue Cage em seu capítulo, diferenciando três instâncias do fazer musical – a
composição, a performance e a escuta – nas quais a especificidade da corrente experimental
é enfatizada. No lado da composição, há cinco subdivisões: notação, processos, o momento
singular, identidade e tempo. Cada uma dessas instâncias é religada às outras por suas
funções dentro da obra musical. A notação desvincula-se de sua função na definição de um
objeto musical único, produzindo mais tipicamente processos que se desenrolam durante o
tempo da performance (que passa aqui a ser compreendido como uma tela vazia para o
desenrolar das ações), não fixando um resultado repetível, mas gerando um resultado
específico àquele momento singular, redefinindo, ato contínuo, a identidade da obra. Esta
definição de música experimental é, no entanto, uma idealização, uma tentativa de propor um
conjunto de propriedades que definiriam um objeto que é, por si próprio, como toda a ação
cultural, submetido a contingências particulares. Assim, o minimalismo, por exemplo,
proporia uma possibilidade mais estável de identificação de suas obras, mantendo as outras
propriedades de Nyman, enquanto a música indeterminada de Cage abriria mão de sua
34
identidade mantendo porém por vezes uma proporcionalidade fixa no tempo, assim
sucessivamente. Podemos portanto imaginar que haveria uma semelhança de família entre
estas iniciativas: elas teriam cada qual uma ou várias das propriedades imaginadas por
Nyman, mas não todas.
De qualquer forma, um bom exemplo destas características elencadas por Nyman é a
peça Winter Music de Cage, da qual apresentamos um excerto abaixo, retirado de Pritchett
(1993)
“Há entre um e sessenta e um acordes espalhado por cada página (…). Cada
acorde ou consiste em uma a dez notas, ou é um cluster, estes últimos
notados como duas notas com um retângulo acima delas. Há duas claves
para cada acorde. Se as duas claves são idênticas (aguda ou grave), então
todas as notas do acorde são lidas naquela clave. Se as claves diferem, então
algumas das notas serão lidas em uma clave, algumas em outra. Para acordes
35
com duas notas (ou clusters), uma nota é lida em cada clave. Para acordes
com mais de duas notas, um par de números acima do acorde dá a proporção
de notas a serem lidas nas diferentes claves. A assignação de claves não é
dada por Cage, e sim decidida pelos intérpretes.”21
Não apenas a ordem de leitura dos acordes não é fixa, como pode-se executar páginas
escolhidas e com quantos intérpretes se dispuser de entre um a vinte pianistas. Isso já propõe
um número alto de versões possíveis da peça, que é então multiplicado pelas diversas
possibilidades de execução de cada acorde em sua distribuição pelos registros grave e agudo.
No contexto desta peça também é justificada a asserção de Nyman sobre o papel do tempo
como um recipiente vazio na música experimental. A peça não possui teleologia de qualquer
espécie, podendo durar qualquer tempo previamente combinado para a performance. A
natureza processual desta evidencia-se mais claramente se imaginarmos uma execução com
vários pianistas. Cada um está entretido com a sua escolha de páginas e acordes e as maneiras
de tocá-los, independentemente dos outros, e o resultado final de uma versão de concerto
emerge processualmente, não estando pré-dado, da interação entre os vários pianistas.
21 “There are anywhere from one to sixty-one chords scattered over each page (…) Each chord either
consists of one to ten pitches or is a cluster, these latter notated as two pitches with a rectangle above. There are
two clef signs for each chord. If the two clefs are identical (treble or bass), then all the notes of the chord are read
in that clef. If the clefs differ, then some of the notes are read in one clef, some in the other. For chords with
two notes (or clusters), one note is read in each clef. For chords with more than two notes, a pair of numbers
above the chord gives the proportion of notes to be read in the different clefs. The assignment of clefs to notes is
not given by Cage, but decided upon by the performers.” (PRITCHETT, 1993, p. 110)
36
proposta, há instruções para aqueles que “se perderem”, ou seja, que perderem a contagem de
notas, ou que não conseguirem acompanhar o resto do grupo: “fiquem perdidos!”. O erro é
integrado aqui como possibilidade de enriquecimento da textura sonora com vozes
contrastantes. Além do espaço aberto ao erro, há a integração das pessoas da platéia, que são
incentivadas a executar ritmos em quaisquer instrumentos de ou objetos que tenham à sua
disposição.
Por fim, a última categoria explorada por Nyman para a definição de uma música
experimental é a escuta. Na música experimental, os papéis de compositor, intérprete e
público são misturados, de tal forma que o objetivo de escutar torna-se tão próprio do público
quanto do intérprete e do compositor, para quem aquela música seria tão nova quanto para o
público. O conceito cageano de foco como uma atenção que pode voltar-se para a música,
seus diferentes aspectos, como para o próprio ambiente de performance, as ações do
intérprete, torna-se importante e a música, sem uma teleologia específica ou uma mensagem
unívoca a ser comunicada torna-se mais análoga à pintura: algo pelo qual se pode passear os
olhos (e ouvidos) ao seu bel prazer, sem a obrigatoriedade de seguir um discurso musical
totalmente formado e direcionado a um desfecho. Neste sentido, a música experimental faz
parte do movimento geral nas artes de vanguarda do século XX de uma aproximação com a
37
própria vida. Não mais as obras são artefatos fixos destinados a serem fruidos por um público,
mas sim acontecimentos aos quais se pode prestar atenção ou ignorar, dos quais se pode
participar ou permanecer passivamente à escuta. O tempo da obra não interromperia o tempo
das atividades normais da vida. O nosso exemplo final e máximo desta estética musical é o
famoso 4’33’’ mais uma vez, de Cage.
Nesta obra, o intérprete permanece sem executar som algum pelo tempo de
performance, de tal forma que os sons do ambiente tornam-se proeminentes à escuta. Nela
encontramos todas as características da escuta experimental tal como propostas por Cage e
retomadas por Nyman: o papel descentralizado do compositor, do intérprete e do público, a
possibilidade de mudança e ajustes de foco, e a não-separação de arte e vida no sentido de
uma não-interrupção da vida pelo tempo da obra musical. Ao menos é este quadro que nos é
sugerido pela leitura de Nyman e pelos escritos mais polemistas de Cage. Temos razões, no
entanto, para pensar que as coisas não se passam assim.
38
Nesta colocação, Cardew evoca novamente a diferença entre uma postura típica da
avant-garde européia, na qual o acaso compareceria como um dado de estrutura entre outros
da obra e seu perfil permaneceria ainda muito associado ao material melódico-harmônico e
sucessivo; e uma prática oriunda de John Cage, que colocaria em questão de maneira mais
radical a identidade da obra, ao abri-la estruturalmente ao acaso.23 Uma distinção, no entanto
deve ser colocada, entre acaso e indeterminação. Segundo James Pritchett, a terminologia de
Cage colocava que acaso se referiria ao uso de algum procedimento arbitrário de geração de
dados no ato de composição. A composição resultante não necessariamente exibiria
variabilidade de execução para execução, podendo inclusive se conformar perfeitamente aos
requisitos de Goodman, em uma partitura totalmente determinada. Um exemplo clássico de
uma obra com essas características é o famoso Music of changes do próprio Cage, que possui
uma partitura totalmente escrita, embora os eventos escritos tenham sido escolhidos a partir
de operações com o acaso, o uso de arremessos de moedas e hexagramas do I Ching. De tal
22 “Consequent on this comes the fundamental difference in thinking about the 'identity' of a piece of
music. For instance: constituting the identity of an European piece are, e.g., the tones that occur in it and their
characteristics (pitch, loudness, length, etc.. in Boulez for example), or the themes that occur in it, their
implications (harmonic and melodic) and modifications, etc etc. On the other hand, constituting the identity of
e.g. Winter Music is the fact that there should be more or less complex eruptions into silence, and that these
should come from one or more pianos.” (CARDEW, 2006, p. 7)
23 Deve-se, no entanto, ser cauteloso com relação ao contraste proposto entre a música experimental e a
música da avant-garde, uma vez que há também abundantes exemplos de formas abertas também nesta última
prática. Se pensarmos em seus inícios, efetivamente a avant-garde européia do pós-guerra surge com um ímpeto
de maior precisão notacional e obediência completa aos preceitos do serialismo. Neste sentido, efetivamente, a
avant-garde viria reforçar a notacionalidade proposta por Goodman, procurando determinar todos os parâmetros
dos sons: altura, intensidade, duração e timbre. No entanto, aos poucos ela foi integrando, em parte pela própria
influência de Cage, que não foi negligenciável também na Europa, elementos de abertura formal, porém na
maior parte das vezes procurando conciliá-los com os limites dados pela gramática serial. Não podemos aqui
fazer um comentário mais extenso sobre este fenômeno, que ultrapassa os objetivos da presente dissertação. Para
uma abordagem em primeira mão do tema da indeterminação por um expoente da avant-garde, referimo-nos ao
artigo “Alea”, de Pierre Boulez publicado em 1964 e reeditado no volume Relevés d´apprenti, editado em 1966.
Tradução brasileira: Apontamentos de aprendiz, Perspectiva, São Paulo, 1995.
39
forma que a ação da vontade do compositor não mais determina o resultado final, embora esse
resultado seja repetível e se conforme a uma identidade determinada. Indeterminação, na
acepção cageana, correponderia à abertura das próprias estruturas da obra fechada à ação do
acaso ou da escolha do intérprete durante a performance. Este último conceito, o de
indeterminação, permanece o mais problemático para uma ontologia da obra musical, pois ele
desafia precisamente o critério tradicionalmente aceito da obra musical como algo repetível.
Porém, para além da introdução do conceito de indeterminação, o que nos parece mais
interessante na citação proposta de Cardew é a possibilidade de se pensar, apesar da presença
da indeterminação, uma identidade para esse tipo de música. Ainda que não seja uma
identidade determinada momento-a-momento, haveria uma identidade localizável pelos tipos
de eventos sonoros presentes em uma composição e suas relações apreendidas de forma geral.
Assim, duas performances de Winter Music, ainda que não similares em seu perfil temporal,
guardariam sua identidade a partir de um conjunto de elementos que estariam presentes na
composição, ainda que de forma não pré-ordenada. Veremos a seguir brevemente um
exemplo que nos servirá de guia para procurar compreender como e até onde uma composição
indeterminada traça ainda assim uma classe de conformidade fora da qual uma performance
não contaria como performance da obra.
2.1.3 Madrigal
é dito. Assim, a mesma linha pode ser lida com tempos completamente diferentes. Alguma
regularidade do tipo: cada 10 centímetros = 1 segundo é recomendável, no entanto.
Vejamos o que está determinado: regra para a leitura das linhas, a disposição espacial
dos músicos, o fato de cada músico escolher previamente uma das linhas e não passar a uma
próxima durante a performance, a obediência às intensidades dispostas ao longo das linhas, o
fato de serem 3 músicos, e de seus instrumentos possibilitarem a emissão de sons deslizantes.
Fora estes componentes, o perfil momento-a-momento da obra é livre e é altamente
improvável que duas performances coincidam.
A esta partitura poderiam ser feitas as mesmas objeções que Goodman faz à partitura
de John Cage. Naquela, também composta por linhas e pontos, a proximidade de pontos das
linhas determinaria parâmetros como intensidade e altura. Segundo Goodman, a falta de
unidades mínimas de ângulo e distância para a determinação dos parâmetros correspondentes
violaria a diferenciação finita. E a falta de diferenciação finita acarretaria o colapso da
disjunção sintática, uma vez que falta um quadro de referência para os valores de pontos e
linhas, podendo eles serem interpretados de diversas maneiras. No entanto, apesar de
obviamente os trechos ouvidos não se assemelharem em seu perfil ao longo do tempo, algo de
reconhecível permanece. Trata-se de uma obra composta somente por sons deslizantes, o que
41
2.2 O conceito-obra
Em seu Imaginary Museum of Musical Works, Lydia Goehr examina várias teorias
ontológicas da obra musical. A teoria de Goodman possui um papel estratégico nesse livro,
assim como na presente dissertação, por seu caráter extremo e polêmico. Ela ilustra tanto a
dependência de uma teoria ontológica de um ponto de vista estético - a perfect compliance
funciona melhor se aplicada a um certo repertório historicamente localizado: o repertório
padrão da música de concerto advindo do classicismo-romantismo, e obras passíveis de serem
convertidas a esse padrão - e a independência que uma teoria ontológica pode tomar da pratica
efetiva, por exacerbação da sua exigência de pureza teórica. Por essa dupla relação que a
teoria de Goodman mantém com a tradição ela se torna interessante para nós. Ao mesmo
tempo em que ela exacerba elementos já presentes em uma compreensão pré-filosófica da
notação musical standard, ela ilustra os extremos a que um questionamento do tipo
ontológico é levado ao se apoiar nessa prática.
Em seu ensaio, Goehr examina várias posições alternativas ao nominalismo de
Goodman. Uma posição que nos chama a atenção é a proposta por Alan Tormey de uma
substituição do paradigma notacional, que Goodman propõe, pela obediência das
performances a regras para a realização de ações. Neste caso, uma performance poderia ser
considerada uma versão correta de uma obra na medida em que as regras propostas pela obra
tenham sido obedecidas. Esta posição possui a vantagem de incorporar em sua definição de
obra outras propostas que não se adaptem à exigência goodmaniana, como a música antiga e a
música indeterminada, incluindo também todo o repertório do século XIX, que funcionava
42
como o exemplo paradigmático na teoria de Goodman. Neste caso específico, não só as regras
para a leitura de uma partitura e sua conversão em sons seriam admitidas como constituindo a
obra, mas também outras indicações de caráter que influenciariam a performance e que, por
não atender aos cinco critérios de Goodman, não eram reconhecidos por este como
constituindo a partitura.
Lembrando as duas teses de Goodman – 1 - uma performance conta como
performance na medida em que é fiel a uma partitura. E 2 - A partitura é um sistema
notacional. A segunda condição parece ter sido derrubada com a substituição de um sistema
notacional por quaisquer regras determinadas ad hoc em uma obra específica, regras que não
se conformam ao critério de notacionalidade exigido por Goodman. A primeira condição
parece resistir, no sentido em que manter uma relação com um conjunto de regras ao menos
parece ser uma condição necessária para a realização de uma obra. Porém algo também se
perdeu da primeira condição. Se mantivermos a noção de condição de identidade como
reguladora da primeira tese na forma: é condição para a identificação da obra que as regras
tenham sido seguidas, caímos na mesma dificuldade teórica de Goodman, sem um meio
seguro de verificar se a identidade foi de fato mantida. A exigência ontológica está em perigo.
A proposta que Goehr propõe pretende oferecer uma saída para os problemas da
ontologia musical. No entanto, ela não o faz no interior de uma abordagem ontológica de tipo
analítica, argumentando em favor da consideração de outros critérios para a compreensão de
uma obra musical. Ao mesmo tempo, e aqui podemos adiantar uma crítica à sua abordagem,
ela não resolve os problemas de identificação de obras, em lugar disso concentrando sua
reflexão no momento histórico do advento do conceito de obra (work-concept) ao invés de
pensar a identidade de obras singulares. O livro de Goehr estrutura-se em duas partes, uma
primeira oferecendo uma crítica a abordagens analíticas das obras musicais em termos que
tocamos em nossa própria exposição: a pergunta por condições mínimas que devem ser
satisfeitas para que objetos sejam considerados obras (que é, finalmente, como é
frequentemente interpretada a tentativa de Goodman) passaria ao largo da prática, exigindo
um enrijescimento da noção de obra e uma purificação que está além da necessidade prática
existente na atividade dos músicos. A impermeabilidade da abordagem analítica a contra-
exemplos funciona como um sintoma dessa exigência, na medida em que quaisquer contra-
exemplos são considerados ou bem espécimes imperfeitos segundo a teoria ou bem são
desconsiderados enquanto obras musicais. A teoria de Goodman é apresentada como exemplo
paradigmático da abordagem analítica, e é constrastada com a teoria platonista de Jerrold
43
Levinson. Ao fim dessa parte, Goehr nos oferece a sua visão dos objetivos e resultados das
abordagens analíticas, e vale ser citada na íntegra:
24 “Analysts who have sought to describe musical works have employed methodological principles and
assumptions that impose unnecessarily severe limitations on their theories. The fact that analysis has been
designed not to treat different sorts of subject-matter, but rather only to capture the pure ontological character –
the so-called 'logic'- of any given phenomenon, turns out to be the source of all its trouble. For this design has
created an irresolvable conflict between theory and practice. While the analytic method has given theorists a way
to account for the logic of phenomena, this has not been true for their empirical, historical, and, where relevant,
their aesthetic character.” (GOEHR, 1992, pg. 86)
44
25 “The new strategy is to investigate how far the conception implicit in the production of early music,
and then of avant-garde music, matches that implicit in work-production. Of course we have to establish what
the production of musical works involves first, but we can and shall do that. But before doing any of this, I need
to make explicit the ontological picture to be pressuposed in the historical investigation.” (GOEHR, 1992, p. 89)
45
definição de obra musical, passando a abarcar a posteriori as obras anteriores a este momento
histórico (a chamada “música antiga”) e as obras de vanguarda contemporâneas. Goehr insiste
também que a distinção entre conceito aberto e conceito fechado é função do uso e que, para
determinados fins, pode-se traçar delimitações ad hoc para a aplicação de conceitos (cf.
Wittgenstein, parágrafo 69 das Investigações)
O conceito de obra musical se relaciona com a prática musical tal como ela se
constituiu em uma época. Esta proposição tem o aspecto de um truísmo e sua verdade nos
parece tão evidente quanto trivial. Porém, torna-se importante ressaltar este aspecto em
contraste com as concepções analíticas do conceito de obra. Ao se ajustar o grau de
generalidade e não mais se falar na prática musical e sim em um conceito que se constitui
enquanto tal pela função que ele exerce no interior de uma prática, a trivialidade da asserção
acima não nos parece tão evidente. E, no entanto, sua verdade depende de se considerar os
conceitos sob essa luz específica. Goehr fala em uma centralidade institucionalizada para
determinado conceito, e defende a existência de exemplos paradigmáticos que recaem sob o
conceito (aqui, no caso, exemplos paradigmáticos de obras musicais, tais quais as Sinfonias
de Beethoven), e exemplos derivados de uso (poderíamos nos perguntar se as extensões
mencionadas no parágrafo acima, a música antiga e a música de vanguarda, forneceriam
exemplos de usos derivados do conceito. Ainda não podemos no entanto afirmar isto, uma vez
que o conceito em seu uso próprio ainda não foi elucidado o suficiente.)
3 - É um conceito regulativo
26 “What we understand today to be perfect compliance has not always been an ideal and might not be in
the future.” (GOEHR, 1992, p. 99)
47
transformações ocorridas na prática musical na virada do século XVIII para o século XIX,
passando a então orientar a ação subsequente ao seu surgimento, projetando-se na produção
musical, que torna-se então produção de obras.
sendo executado, por exemplo, uma sonata de Beethoven, que aglutina a atenção do auditório.
No caso de 4’33’’ não há estímulo deliberado da parte do músico e a atenção do auditório é
garantida apenas pelos mecanismos de fruição vigentes nas salas de concerto. Por essa razão
vamos mais longe que Goehr em insistir que não apenas o conceito-obra é tolerado no
contexto da obra de Cage, mas ele é por vezes mesmo reforçado. Isto aponta no entanto para
diferentes funções que o conceito-obra passa a ter no século XX, sendo reforçado ou
enfraquecido, reformulado, reconfigurado de diferentes maneiras. A posição de Goehr abre
espaço para se pensar estas transformações, no entanto, permanece uma difícil ambiguidade.
Ao concentrar o conceito-obra historicamente, Goehr abre um espaço de indecidibilidade em
relação à adequação nas aplicações do conceito-obra. Se sua alçada, seu uso original se
encontra em uma ética musical presente no início do século XIX, torna-se difícil definir até
onde o conceito-obra poderia ser usado em suas formas derivativas e até onde ele mais
plausivelmente deixaria de ser usado. Goehr argumenta em favor de não pensar, por exemplo,
as performances de jazz como obras, na medida em que ideais de execução perfeita
característicos das obras do século XIX não se aplicam à prática musical do jazz. Isto parece
abrir novamente a porta a um essencialismo da obra ou a um nominalismo pautado por
critérios de identificação, na medida em que a ausência de um ou mais componentes
históricos do conceito-obra poderia acarretar a sua não-aplicabilidade. Se a reflexão histórica
nos termos de Goehr abre o conceito-obra a inúmeras instâncias que transformem as suas
características, ela também abre o espaço para que aquilo que se produza seja não mais obra, e
sim alguma coisa diferente. O limite parece então ser próprio de cada poética, na medida em
que cada uma aceite ou rejeite componentes determinados da prática musical pautada nos
ideais da obra musical.
pressupostos vigentes nos estudos destas obras: a cisão claramente observada entre as obras
da tradição, caracterizadas por um perfil morfológico claramente definido, e as obras de Cage,
que questionariam os papéis de compositor, intérprete e público, incluindo a obra em um
processo de conformação morfológica que dispensaria o papel proscritivo da partitura e a
necessidade de um resultado claramente definido. Assim, ao menos, normalmente se entende
o fenômeno.
Ao julgar que as obras de Cage seriam apenas oportunidades de liberar as
forças do caos, como o próprio compositor parece afirmar, não parece útil
buscar nestas um ímpeto criativo, um movimento em direção à ordem, uma
vontade de que determinados parâmetros se comportem de forma mais ou
menos invariável. 27
sobrevivem. No entanto, uma diferença notável se faz presente ao mesmo tempo: Fiel da
Costa nunca suspende a noção de obra ou abre a possibilidade para a sua suspensão. Se a
posição de Goehr abria a possibilidade para que práticas musicais se dissociassem do
paradigma expresso pelo conceito-obra, a posição de Fiel da Costa, ao contrário, aponta para
um alargamento do conceito de obra tal como compreendido pelo senso comum a tal ponto
que, de direito, não se possa ver nenhum limite específico para a sua aplicação adequada.
Abordaremos esta diferença em um momento posterior.
Os elementos invariantes tais como propostos por Fiel da Costa são estruturas, sons,
comportamentos sonoros, regras que permanecem estáveis a cada performance da obra. Este
conceito de invariância abre espaço para se pensar efetivamente a identificação de obras a
partir de algo que permaneça constante, mas que não seja determinado de uma vez por todas
para todas as obras. Assim, cada obra proporia as suas próprias estratégias de invariância,
elementos pelos quais ela permanece identificável de performance a performance. Neste
sentido, retornamos à crítica de Wollheim a Goodman, mal compreendida por este, que
estabelece que a teoria da notação tal como Goodman a concebe entraria na “teoria implícita”
dos artistas, justamente, as estratégias de invariância propostas por seus produtos, sendo eles
obras, performances, etc... As obras caracterizar-se-iam, portanto, por exibir muito mais
regiões de tolerância morfológica do que a ontologia gostaria de admitir, e a manutenção
dentro destes limites de tolerância poderia ou não ter sucesso.
A utilização dos conceitos de invariância e regiões de tolerância permitiriam unificar o
campo do estudo das obras musicais sob o mote do estudo morfológico. Mesmo no contexto
de obras tradicionais o estudo morfológico se aplicaria, como no parágrafo abaixo:
“(…) uma partitura de Mozart pode ser executada num ambiente reservado,
sem preocupação com um público ou com a afinação dos instrumentos, e
ainda assim remeter à música original. Pode-se tocar apenas um fragmento,
assobia-lo despreocupadamente, re-arranjá-lo, e ainda conseguiremos
28 COSTA, 2009, p. 48
51
29 COSTA, 2009, p. 64
52
nos momentos em que foram tocados e com os ritmos que ouvimos. Ouvimos então uma
segunda performance da peça. Percebemos que algo está diferente e tudo aquilo que
tomávamos como essencial para a peça não está lá. Ouvimos uma terceira. Algo difere e algo
permanece. Continuamos a ouvir pianos, acordes seguidos de silêncios. Talvez reconheçamos
um ou outro acorde que tenha sido tocado da mesma maneira nas três performances.
Assim se constitui o nexo morfológico de uma peça musical.
2.3.1 Modelagens
“Tal caso não pode ser aplicado à obra musical na prática quando discutimos
sua morfologia a não ser dentro de uma visão idealista de que a obra existiria
imutável, em algum lugar, enquanto aguarda iniciativas de re-leitura dos
intérpretes”. 31
É no mínimo curioso como grande parte dos filósofos da música consideraram a obra
musical precisamente nos termos ironizados pelo parágrafo citado. Para Fiel da Costa, nem
30 Embora deva-se mencionar o movimento pela execução em instrumentos originais, que tornou-se
proeminente nas últimas décadas, como uma tentativa de retorno às condições de performance vigente à época
de composição das obras. Alguns grandes nomes dessa tendência interpretativa são Nikolaus Harnoncourt,
Gustav Leonardt, John Eliot Gardiner, entre outros...
31 COSTA, 2009, p. 73
53
“Para que as relações entre elementos dentro de uma obra musical sejam
produzidas e evoluam no tempo é necessária a ação de sujeitos. Estes
sujeitos, intérpretes, autores, diretores musicais, curadores, encaminham a
obra para a sua execução segundo regras de conduta gerais baseadas na
tradição, no respeito à figura do autor e na imitação de referências diretas.
Esse bloco de contingências é posto em funcionamento diante das demandas
do projeto composicional que, por sua vez, se adapta em função de objetivos
actuais. Mesmo diante de prescrições claras, um projeto composicional pode
não seguir o curso definido pelo seu autor adquirindo novas características”.
32
32 COSTA, 2009, p. 84
54
Vimos neste capítulo alguns exemplos de obras oriundas da dita música experimental
anglo-saxônica, que problematizam a possibilidade de identificação de obras. Vimos também
duas tentativas de compreensão da obra musical que procuram dispensar a determinação de
condições de identidade para todas as obras, de uma vez por todas: a teoria de Lydia Goehr do
conceito-obra como conceito regulativo e a proposta morfológica de Valério Fiel da Costa.
Vale terminar propondo uma comparação entre estas iniciativas, buscando ver até onde elas
podem se comunicar e até onde elas se separam.
A princípio, como já dissemos, a proposta do conceito-obra de Goehr parece reforçar a
posição de Fiel da Costa com relação a uma morfologia da obra musical. A obra, constituindo
para este um corpo instável, apóia-se sobre um conjunto de estratégias de invariância para a
sua manutenção morfológica. Parece-nos que estas estratégias de invariância poderiam ser
compreendidas um pouco à maneira da influência do conceito regulativo de obra, tal como
Goehr o compreende. Por outro lado, o conceito-obra para Goehr caracterizar-se-ia por uma
influência “imperialista”, por assim dizer, sobre todos os outros conceitos possíveis de serem
adotados para a prática musical. Mencionamos a posição de Goehr com relação às
performances de jazz, de que elas não deveriam ser conceitualizadas a partir do conceito-obra,
uma vez que ideais de fidelidade a obras não presidiriam esta prática. No entanto, o jazz
poderia nos parecer como especialmente adequado à leitura da obra como veículo poético tal
como propõe Fiel da Costa, na medida em que a obra no jazz, aquilo que permanece
constante, por exemplo, em duas versões diversas de Round Midnight, é um tema do qual
espera-se oferecer uma interpretação original. E interpretação original no caso do jazz inclui
55
meios tecnológicos disponíveis. Assumimos aqui a autoria da indagação que dirigimos ao seu
trabalho: haveria então um limite para a aplicação do conceito de obra, como quer Goehr?
No presente capítulo procuraremos adotar em parte as proposições de Goehr e Fiel da
Costa no que tange a considerar a obra como resultado da ação de seres humanos, para tanto,
procurando examinar os limites da obra não os relacionando unicamente a sistemas
notacionais ou condições de identidade determinadas por estes, mas à própria relação com os
intérpretes, sua influência sobre eles e sobre o público e, sobretudo, a possibilidade do erro
como mote para a localização de uma identidade possível para corpus musicais
indeterminados. O pensamento de Wittgenstein nos parece fecundo para pensar este nexo
problemático e é por ele que começaremos a seguir.
“(...) como em toda representação, deve haver algo que distinga o diagrama e
o fato diagramado- sem o que eles seriam um só. O que há de diferente entre eles
são os termos da relação espacial que lhes é comum. A cada termo nessa relação do
diagrama – a cada elemento da figuração , no vocabulário de Wittgenstein –
corresponde um termo, diferente dele, da mesma relação no fato diagramado – um
elemento do fato; a relação articula entre si os elementos da figuração do mesmo
modo como articula os elementos do fato afigurado. O que o diagrama representa é
o que dele resulta por meio da substituição de seus elementos por outras coisas. Os
elementos do diagrama representam por substituição (Vertretung), o próprio
diagrama representa por semelhança – ele, por assim dizer, encena o fato
diagramado.”34
A citação acima apresenta uma analogia esclarecedora acerca do que seria a relação de
afiguração proposta pelo Tractatus como essencial para a proposição. Importante reter aqui os
dois termos substituição e semelhança como instâncias separadas do momento de
afiguração: nomes substituem objetos e proposições afiguram fatos por semelhança,
apresentando as relações entre nomes tal qual se apresentam as relações entre objetos na
realidade. No entanto, há que se ater para a tecnicidade desta obra no uso dos termos.
Proposição no Tractatus seria o próprio fato afigurado no pensamento, e sua estrutura não
corresponderia exatamente às sentenças de nossa linguagem corrente. Estas teriam que ser
analisadas para se chegar a proposições lógicas que seriam por sua vez compostas por outras
proposições em função das quais obteriam seus valores de verdade. Em algum momento das
análises sucessivas chegaríamos a uma proposição completamente analisada, ou seja, que não
incluiria outras proposições em sua composição, tendo seus valores de verdade independentes,
portanto, de qualquer outra proposição. Todas as proposições dotadas de sentido devem ser ou
para o próximo, sem que eles constituam uma classe de abstração. Isto significa que: elemento
A possui em comum com elemento B a característica x, elemento B possui em comum com
elemento C a característica y, elemento C possui com elemento D em comum a característica
z e assim sucessivamente. Não há um conjunto único de propriedades que sejam comuns a
todas as instâncias de utilização da palavra jogo. Assim se constituiriam novos lances no jogo
de linguagem de utilização de 'jogo': a partir de observações de semelhança de família
podemos de direito estender o seu conceito a novos casos. Jogos de linguagem seriam então
estes contextos nos quais realizamos atividades linguísticas. Eles abarcariam tanto os usos das
expressões quanto os contextos sociais nos quais são usadas. Eles implicam um uso contínuo
de determinadas expressões correlacionado a determinados contextos. E cada um teria a sua
maneira própria de ser ”jogado”, correspondendo aos contextos apropriados de uso de
determinadas expressões, de determinados comportamentos, etc... Os jogos de linguagem
distribuiriam-se pela linguagem inteira, por assim dizer, estando ligados ou não por
semelhanças de família locais e por eventuais implicações em normas (ou regras) de conduta
que os caracterizariam.
“Em um de seus manuscritos, Wittgenstein observa que 'tudo o que a filosofia pode
fazer é destruir ídolos. E isto quer dizer não fabricar novos de tipo algum, por
exemplo, a partir da ausência de ídolos'. A filosofia, tal como Wittgenstein a
concebe, destrói apenas ilusões, e, por conseguinte, não deveria nos privar de nada
de essencial, mesmo sendo particularmente penoso renunciar a uma ilusão.”35
35 « Dans un de ses manuscrits, Wittgenstein observe que 'tout ce que la philosophie peut faire est de
détruire des idoles. Et cela veut dire ne pas en fabriquer de nouvelles d’aucune sorte, par exemple à partir de
l’absence des idoles.' La philosophie, telle que Wittgenstein la conçoit, ne détruit que des illusions et, par
conséquent, ne devrait nous priver de rien d’essentiel, même s´il peut être particulièrement pénible de renoncer à
une illusion. » BOUVERESSE, 2003, P. 42.
61
De onde nossas considerações tiram a sua importância, desde que parecem destruir
tudo o que é interessante, isto é, grande e importante? (Como em todas as
construções, na medida em que deixam sobrando montes de pedras e escombros.)
Mas são apenas castelos de areia que destruímos, e liberamos o fundamento da
linguagem sobre o qual repousavam. . 36
Este parágrafo é importante sob alguns aspectos, mas sobretudo pelas duas vias de
acesso que ele dá à concepção wittgensteiniana da filosofia: a ideia de que nós possamos
levar adiante a atividade filosófica (uma vez que se trata bem de uma atividade) nos abstendo
da criação de novas teorias e resistindo à tentação de fornecer explicações em um certo
sentido, científicas, aos problemas filosóficos, mas também, a ideia de que não perdemos nada
em fazer isto, uma vez que ganhamos o solo nu da linguagem. “A verdadeira descoberta é
aquela que me torna capaz de parar de filosofar quando eu quero." (parágrafo 133)
Bouveresse aponta alguns caminhos a partir da formula proposta acima. Ao “expor o
solo de nossa linguagem”, não estaria Wittgenstein se rendendo a uma concepção
fundacionista de filosofia? O filósofo fundacionista seria alguém, segundo Bouveresse, que se
sentiria apressado a resolver os problemas filosóficos, na medida em que estes se
apresentariam como problemas de “fundamento”. É proposto o problema do conhecimento
“Em que consiste o conhecimento?” O filósofo fundacionista sente que deve resolver esse
problema, para que se possa enfim praticar a ciência e obter conhecimentos científicos. A
atitude de Wittgenstein, que nos ensina a possibilidade de cessar de filosofar quando se quer,
se mostra absolutamente distanciada da atitude fundacionista. A filosofia não é uma meta-
teoria para a ciência, ou para quaisquer outros conhecimentos, buscando fornecer-lhes
fundamentos. Mas, mais profundamente, o que se depreende da quantidade de exemplos
ativados por Wittgenstein é o que está muito bem colocado no parágrafo 18
36 « D´où notre examen tire-t-il son importance, puisqu’il donne bien l’impression de détruire tout ce qui
est intéressant, c’est-à-dire tout ce qui est grand et important (pour ainsi dire tous les édifices; en ne laissant
subsister que des morceaux de pierre et des gravats)? Mais ce ne sont que des châteaux de cartes (Luftgebaude)
que nous détruisons, et nous dégageons le sol du langage sur lequel ils reposaient. » Wittgenstein, apud
BOUVERESSE, 2003, p. 42.
62
cidade começa a ser cidade?). Nossa linguagem pode ser considerada como uma
velha cidade: uma rede de ruelas e praças, casas novas e velhas, e casas construídas
em diferentes épocas; e isto tudo cercado por uma quantidade de novos subúrbios
com ruas retas e regulares e com casas uniformes.
se à linguagem de sensações; por outro lado, esta linguagem pode na verdade estar apenas a
serviço, enquanto exemplo paradigmático, de uma problemática mais ampla sobre a
constituição de sentidos aos quais outrem não possuiria acesso. A interpretação de Kripke, que
veremos a seguir, é um exemplo extremo desta segunda compreensão.
(…) Suponhamos que cada um tivesse uma caixa na qual estivesse algo a que
chamamos “besouro”. Ninguém pode olhar para a caixa do outro; e cada um diz
saber o que é um besouro apenas a partir da visão do seu besouro. -Entretanto,
poderia ser que cada um tivesse uma coisa diferente em sua caixa. Sim, poder-se-ia
imaginar que tal coisa se modificasse continuamente. -Mas, e se a palavra
“besouro” dessas pessoas tivesse esse uso? - Então não seria usada como
designação de uma coisa. A coisa na caixa não pertence absolutamente ao jogo de
linguagem; nem mesmo como algo: pois a caixa poderia estar vazia. (…)
Isto quer dizer: se construímos a gramática das expressões de sensação segundo o
modelo de 'objeto e designação', então o objeto fica fora de consideração como
irrelevante.
37 “It seems that the entire idea of meaning vanishes into thin air.” KRIPKE, p. 22
65
desenvolverá o paradoxo acima nos seguintes termos: imaginemos que tenhamos computado
um número finito de operações de adição (como, certamente, é o caso). Com certeza absoluta,
dentro da totalidade dos números naturais, há um par que ainda não foi computado por nós.
Imaginemos que o par 68 e 57 satisfaça esta condição, de tal forma que nunca antes tenhamos
computado a soma 68 + 57. Daremos, como é esperado, o resultado 125. Digamos que se
aproxime de nós um “cético bizarro”. E que ele diga que a resposta correta que deveríamos ter
dado, de acordo com as nossas intenções passadas, seria 5. Neste caso, Kripke propõe uma
função, diferente da função de adição (“plus”) a que ele dá o nome de quus, ou “quadição”
(“quadition”). Digamos que a quadição seja simbolizada pelo caracter *, sua forma então
seria a seguinte:
O cético nos indaga então se não queríamos de fato dizer “quadição” em lugar de
“adição” em todas as nossas computações anteriores. Lembrando que, para os presentes
propósitos, nunca antes computamos uma adição com números maiores que 57. O problema
de Kripke é, justamente, o de não termos nenhum fato acerca de nossas intenções passadas
que justifique darmos a resposta 125 ao invés de 5. Todas as adições que computei até hoje
seriam tão condizentes com a função de adição quanto com a função de quadição. Kripke
chama a este problema o paradoxo de Wittgenstein.
Segundo Robert Brandom, o paradoxo de Wittgenstein, na verdade, se seguiria de uma
dupla compreensão das normas de uso de expressões: uma regra seria necessariamente
equivalente a uma forma verbal de asserção sobre como agir em determinada situação, ou –
no contexto linguístico – como utilizar determinada expressão. Esta compreensão do estatuto
das regras é o que Brandom chama regulismo e seria típica de uma concepção kantiana da
agência racional. Nós seríamos sempre guiados por princípios expressos na forma de regras
de conduta. A dificuldade que Wittgenstein encontra com esta formulação é a seguinte: se
somos guiados por regras na forma de asserções explícitas sobre como realizar determinadas
ações, temos que ainda decidir como e em que ocasiões aplicar a regra determinada. E esta
aplicação pode também ser correta ou incorreta. Assim, precisaríamos de uma regra
estipulando a correta aplicação da regra anterior. E é pensável que precisaríamos de uma nova
regra para explicitar a explicitação anterior e assim sucessivamente, num regresso ao infinito.
De outro lado, haveria a posição inversa, que Brandom denomina regularismo, que
substitui a noção de uma regra explícita por regularidades de comportamento. O problema de
66
38 “Although Wittgenstein often uses specifically linguistic examples, and some commentators have focused
exclusively on these cases, the normative phenomena he highlights are part and parcel of intentional
attribution generally, whether or not language is in the picture. Ceteris paribus, one who believes that it is
raining, and that moving under the tree is the only way to stay dry, and who desires to stay dry, ought to
move under the tree.” BRANDOM, p. 15
67
as intenções manifestas do compositor como uma camada que não se relacionaria com uma
regra explícita e sim com uma prática ou instituição. Estas práticas ou instituições podem
seguir ou não as normas implícitas no conceito-obra. Isso teria que ser examinado caso a caso.
É nossa intuição a de que o seguimento ou não das práticas correlacionadas com o conceito-
obra está ligado ao tratamento dado à noção de erro em cada caso particular. Veremos alguns
desses casos a seguir.
Mas o que nos parece importante aqui é que isto não acarreta o colapso da identidade
de Madrigal. É como se Madrigal se caracterizasse por um conceito magro de identidade, que
efetivamente, como quer Fiel da Costa em sua teoria da morfologia, possa acomodar
diferentes intervenções (até um certo limite, como defendemos aqui) sem prejuízo para a
identidade da obra. Isto se opõe a um conceito espesso de identidade da obra, caracterizado
pela observância de todos e cada um dos momentos constitutivos da mesma como critério
para a sua identificação (como no caso das obras de Beethoven, por exemplo). Ambas estas
noções (identidades magras e espessas) foram propostas por Stephen Davies, em Musical
works and performances: a philosophical exploration, no intuito de dar conta da variedades
de formações morfológicas encontráveis na prática musical.
Uma notação musical é uma linguagem que determina o que você pode dizer, o que
você quer dizer determina a sua linguagem.
Como compositor, você possui os dois aspectos em sua mão, mas quando você a
abre você apenas encontra uma coisa e ela é indivisível.39
Se estas notações são incompletas, as notações tradicionais também o são, pois tudo o que
estas notações fazem é exibir a necessidade de uma norma de comportamento, tal como
preconizada por Wittgenstein-Brandom, que não se deixa reduzir às informações explícitas
nos documentos-partitura. Tanto para sistemas notacionais no sentido de Goodman, quanto
para notações criadas ad hoc pelos compositores, ainda se precisa saber como ler, como
interpretar os traços notados. Existe um contexto no qual faz sentido aprender a ler música
39 “A music notation is a language which determines what you can say, what you want to say determines
your language.
As a composer you have both aspects in your hand, but when you come to open your hand you find only
one thing and it is not divisible” (CARDEW, 2006, p. 6)
70
que não se reduz a uma regra explícita sobre porque aprender a ler música, não se deixando
cair no regresso ao infinito proposto por Wittgenstein. Isto não significa que nossas práticas
não possam de direito serem tornadas explícitas. Este é todo o projeto filosófico de Brandom,
como já afirmamos. Isto significa que não precisamos conhecê-las sob a forma de regras nem
de regras para interpretar regras. Se este fosse o caso, o aprendizado nunca passaria à
aplicação. A regra se seguiria, portanto, das aplicações corretas e não inversamente.
A seguir veremos mais dois exemplos que fazem uso das duas dimensões: regulista e
regularista, e dos desacordos que podem surgir entre elas para a criação de um resultado
composicional específico.
Se acentuamos até aqui uma concepção de notação que requer que intérpretes
humanos realizem algo, ainda que suas condições de identidade sejam magras e não espessas,
não é apenas a esta concepção de obra que uma abordagem da notação enquanto meio para
realizar uma ação possa estar a serviço. A obra de Brian Ferneyhough oferece um exemplo
interessante de obra perfeitamente notada, de fato, hiper-notada, que, ainda assim, possui uma
identificação ao menos de direito, vaga. Vejamos um exemplo
oferece mais uma caracterização possível da notação musical, condizente com a sua
compreensão como um propositor de situações a serem realizadas mais do que como uma
fixação de um resultado a ser sempre repetido. A obra mantém em grande medida o
paradigma notacional de Goodman, elevando-o a uma densidade informacional inédita,
passando então a desafiar a sua própria manutenção como identidade estrita.
O caso de Ferneyhough nos parece apontar, ainda que não assuma completamente isto,
para um uso da notação como trampolim para as ações do intérprete. Estamos aqui em pleno
contexto da ação do compositor, despreocupado de condições de identidade, status
ontológicos, conceitos de obra e afins e agindo somente em proveito de resultados sonoros
morfologicamente interessantes. Nosso último exemplo não possui nada de fortuito: trata-se
de uma obra nossa, chamada Ícone.
partitura:
comentários à partitura
1. Entendemos por espaço sonoro qualquer intervalo delimitado por uma frequência x e uma
outra frequência mais alta ou mais baixa.
2. A ordem "saturar" deve ser entendida como uma tentativa de ocupar todas as frequências
encerradas entre os limites pré-estabelecidos (agudo e grave).
Para favorecer a execução desta ordem, os instrumentos utilizados na orquestra devem ser, em
sua maioria, passíveis de microtonalização.
73
2.1. Os músicos devem ouvir a textura que está soando, procurando preencher espaços vazios
nesta, ou seja, espaços que não estejam já ocupados por um som.
As frequências propostas pelos instrumentos devem ser sustentadas por períodos mais ou
menos longos, após os quais ele poderá trocar de nota, sempre obedecendo à lógica enunciada
acima.
O espaço musical compreendido dentro de um intervalo frequencial pode sempre ser dividido,
acarretando a existência de novos espaços vazios:
O espaço não pode ser saturado.
Do ponto de vista do músico executante, a obra deve ser uma experiência desta
impossibilidade. Do ponto de vista do ouvinte, um cluster de longa duração com trocas
timbrísticas internas.
J.-P. Caron
2006/2009
Rafael: e houve uma diferença no encaminhamento de ícone nos dois lugares né?
J.-P.: Sim, houve uma diferença de encaminhamento em função tanto da duração quanto dos
equipamentos quanto das dimensões da sala quanto daquilo que eu estimava que seria tolerável pelos
dois publicos, então foi uma decisão tanto técnica quanto estética. No caso da unirio usamos um
microfone aberto para a parte do paulo que tocava um saxofone tenor. O uso do microfone impôs que
não subíssemos muito acima de um certo nível pela facilidade de ocorrência de microfonias. Isto foi
assumido na unirio tanto por essa razão quanto por razões estéticas. houve um momento que batizei a
75
versão unirio de "versão educada" do ícone. Ficaríamos em uma amplitude média e duraria meia hora
enquanto que no plano b o Paulo usou um controlador midi de sopro dispensando o microfone que
seria INVIÁVEL naquele espaço por causa das reduzidas dimensões e da proximidade com as caixas.
Usar microfone ali, quando não se quer microfonia é suicídio, então Paulo tocou senóides controladas
via midi no plano b, o que liberou as amplitudes para crescerem e com a duração ilimitada também o
tempo para se chegar a essas amplitudes foi aberto. A duração de 1:15 hora foi resultado desse
processo.
Rafael: Sim, e houve um encaminhamento para esta subida de amplitude no plano B...
J.-P.: Exato
Rafael: ...enquanto na unirio a peça iniciou e terminou nas mesmas condições.
J.-P.: sim
(…)
Rafael: Quase como se vc tivesse excluído uma seção no concerto da unirio. Ou incluído uma no
plano B. Acho que a 2a. é mais o caso.
J.-P.: vc pode fazer uma versão mais suave ou pode fazer uma porradaria o tempo todo. Tanto faz
Rafael: Sim, nunca achei que houvesse possibilidade de transição.
J.-P. Durante os ensaios nós sentimos que a versão do plano b seria diferente e eu logo vi esse
crescimento como parte da versão. O que fiz foi adicionar uma seção na qual no momento de clímax
de saturação e amplitude eu inesperadamente desse um salto dentro da textura que tinha se formado
em degradé até ali. Esse salto era provocado pelo ligamento de uma distorção que afetaria o som de
todos os instrumentos. O efeito é que o som, que ao final do processo já estaria bastante alto, tornar-
se-ia subitamente ensurdecedor e entraríamos no terreno da música noise.
Rafael: Sim, depois de uma longa espera para tal.
J.-P.: Isso, uma ascese mesmo.40
40 Entrevista realizada pelo Gmail no dia 18 de Outubro de 2009, como material preliminar ao trabalho de
Rafael Sarpa “Salas de concerto e espaços undergrounds”, no qual o autor pretende examinar as diferenças
que ocorrem ao se habitar ambos estes meios musicais.
76
1- A obra prescritiva
77
2- A obra indeterminada
Aquela que deixa margem a liberdades em sua conformação momento-a-momento,
determinando no entanto, até certo ponto, sua identidade (escolha de materiais musicais
modos de tocar, regras que relacionem os intérpretes de uma maneira específica, etc)
3- A obra saturada
Aquela que leva ao extremo as possibilidades da notacionalidade, levando-a a um ponto de
impossibilidade de execução. Interpretamos este caso como uma contradição entre uma
dimensão das normas de execução manifesta na partitura e uma dimensão implícita na prática,
de respeito à obra. Esta contradição levaria o intérprete a fazer opções entre que regras
observar e que regras descartar.
5- A improvisação regrada
Diferente da obra indeterminada por se constituir não a partir das regras manifestas e sim a
partir das normas implícitas na prática. Se a obra indeterminada propõe uma forma de
conformação explícita em sua partitura, as improvisações regradas respondem mais a hábitos
ou tradições de execução e inter-relação entre os músicos. O jazz também poderia em parte se
encontrar nesta categoria, assim como certas tradições orais, como a da música indiana.
6- A improvisação “livre”
Na improvisação livre nenhuma tradição é tomada como referência, nem tampouco nenhum
texto-partitura. Há uma tentativa, ao contrário, de se submeter à espontaneidade do momento.
Se há sucesso nisto ou não, é uma outra questão. Acreditamos que a improvisação livre,
apesar de sua pretensão a constituir uma ação musical com o mínimo de regras, esteja se
constituindo como mais uma tradição de performance. A tentativa de não se submeter a regras
de improvisação tradicionais coloca todo um conjunto de novas práticas que vão sendo
78
Não pretendemos com isso substituir uma ontologia unitária da obra musical por uma
ontologia múltipla, embora não vamos impedir que façam isso por sua vez quem quiser se
aproximar da presente dissertação com este intuito. É possível, e, provavelmente mesmo
legítimo, que se faça isto, porém nosso objetivo foi ilustrar uma complexidade conceitual que
é possível a partir de um estudo morfológico das condições de constituição de obras e
performances. A lista acima não pretende, portanto, ser exaustiva, mas apenas ilustrativa dos
vários resultados a que podemos chegar aplicando as linhas de raciocínio apresentadas no
presente estudo. Mantemos ainda, no entanto, uma posição de distância cautelosa a tentativas
de ontologização destas práticas, na medida em que a própria ação dos sujeitos das mesmas
possa tornar rapidamente obsoleta qualquer nova classificação.
79
Conclusão
2-“No sistema correto em questão, nenhum ponto tem por correlato uma combinação
Em ambas as frases, abre-se mão de definir o que é um ponto, para se colocar os fatos
em termos de correlações. Não há aí mais contradição entre os dois mundos. Mas houve um
preço: abriu-se mão de determinar o que seria um ponto em si. Quando dois mundos em
aparente conflito são reconciliados, tem se uma distorção dos enunciados iniciais. Isto é
intrínseco à construção dos mundos. A dificuldade aqui se torna o fato de que, justamente, o
82
musical? Ao que se está referindo ao se dizer obra musical? A obra seriam as ocasiões de
fruição? As obras seriam as performances?
Em alguns casos, sim, mas não em todos. Como vimos no capítulo 3, a conceituação
de obra talvez não seja adequada para todas as práticas musicais (seguindo a posição de
Goehr), e, quando funciona, ela funciona de forma diferente em cada obra que, conforme
nossa posição enunciada acima, coloque suas próprias condições de identificação (nisto
seguindo a ampliação do conceito proposta por Fiel da Costa). Aqui, portanto, ensaiamos uma
resposta possível para a contradição colocada entre as duas teorias – se o conceito-obra é
adequado às obras do romantismo musical e não a outros repertórios, ou se o conceito-obra
pode ser ampliado para abarcar as produções da música indeterminada, do jazz, do rock e de
outros setores. Obra seria mais do que a teoria de Goehr quer admitir e, provavelmente,
menos do que a teoria morfológica de Fiel da Costa parece implicar. Se admitimos obra como
a manutenção de um nexo morfológico ao longo do tempo (não necessariamente determinado
pelas condições de identidade à la Goodman), isto ilumina alguns casos: os nossos exemplos
dados nesta dissertação são obras. Winter Music, Les Moutons de Panurge, Madrigal e Ícone
são obras, na medida em que há uma identificação de uma classe de ações que, se realizadas
conforme os ideais de uma prática musical de performance de obras, mantém um perfil até
certo ponto invariante ao longo do tempo. No caso problemático de Ícone, no qual o texto da
partitura se dobrou à ocasião de performance, temos um caso-limite de respeito à partitura.
Mas o que ocorreu aqui não foi uma não-determinação de classe de conformação da própria
obra (uma incapacidade das regras explícitas no documento-partitura de determinar o que
conta como a obra) e sim uma desobediência, ainda que sancionada pelo compositor, da letra
da obra. Houve uma ruptura na prática de obediência à obra (a dimensão normativa implícita)
e não na própria auto-colocação da obra – ela, se corretamente executada e respeitada, propõe
uma classe de conformação. Naquele momento nos comportamos não como músicos de
concerto e, sim, mais próximos de músicos de rock ou jazz, usamos a obra para a produção da
performance. Aqui, a performance torna-se prioritária em relação ao texto da partitura.
Esta colocação revela-se problemática por um certo ponto de vista. Não seria a música
experimental justamente uma tentativa de captar o “momento singular” de performance, ao
invés da manutenção de uma identidade ao longo do tempo? Já avançamos na resposta a esta
pergunta no contexto de nosso capítulo 2, mas podemos agora retornar a ela, que ganha
contornos mais definidos após todo o trajeto efetuado. A questão que aqui se coloca é a da
relação da prática de música indeterminada com o conceito-obra. E a da prática do rock e do
jazz com o mesmo conceito. Logo de imediato nos aparece a ligação destas duas últimas
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formas aos procedimentos de gravação. Adiaremos este problema por hora. O que nos parece
é que a música indeterminada parece ainda se conformar a uma ética baseada no conceito-
obra na medida em que sente a necessidade de fixar uma partitura, mesmo que esta se limite a
dar algumas poucas instruções de performance. Estamos aqui diante da mesma relação que
observamos que 4´33´´ de Cage entretém com o conceito-obra: ele necessita da ética implícita
no conceito para que ele possa então quebrar no documento-partitura as expectativas
associadas a esta ética. A música indeterminada seria, por este viés, tributária ainda do
conceito-obra, constituindo documentos-partituras que prescrevem comportamentos sonoros
que poderão ou não serem efetivados da forma correta. No contexto do rock e do jazz, ao
contrário, a relação que se estabelece é um pouco a que estabeleci com a performance do
Ícone citada como exemplo: as obras são como trampolins, existe um conjunto de
conformações que permitem sua reconhecibilidade, mas em performance estas conformações
poderão ser desobedecidas, ou melhor, serem usadas para a criação de uma performance: isto
significa que a performance possui prioridade em relação à obediência ao texto da partitura.
Ou seja, uma ética não tanto determinada pelo conceito-obra e sim pela própria performance
como obra.
No contexto das “obras-rock”, uma concepção alternativa foi avançada por Roger
Pouivet em Philosophie du rock. Segundo este autor, as obras-rock seriam artefatos-
gravações, produzidos em estúdio para a difusão em massa. Por que não seriam elas
performances gravadas? Pouivet menciona a utilização maçiça de overdubbings41 como
argumento contra a proposta da performance-obra. A utilização de procedimentos de gravação
e mixagem em tempo diferido no estúdio não seria consistente com a criação de uma
performance-obra. Neste viés, a obra-rock tocada em concerto seria uma versão não da obra-
rock inteira, do artefato-gravação que a constitui, e sim de uma parte daquela obra: a canção.
As bandas de rock não executam, portanto, as suas obras e sim oferecem versões para as
canções que são gravadas nos discos, que não são mais do que uma parte da obra-artefato-
gravação.
Ainda que a posição de Pouivet nos pareça instigante, o que nos parece mais
importante nela não é tanto a decisão entre o que conta como obra e como versão (que nos
parece até certo ponto arbitrária em sua formulação do problema, se a obra é a gravação ou a
“versão” proposta em concerto). E sim, a relação que uma prática musical não
necessariamente pautada na notação de documentos-partitura possa ter com a gravação. E
41 Procedimento de gravação que consiste em gravar diferentes linhas separadamente, por vezes até por um
mesmo músico, e justapô-las, gerando um resultado que aparenta ter sido tocado por mais pessoas.
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neste contexto, o estudo morfológico é tão válido quanto no contexto das obras notadas: a
gravação pode intervir em diferentes momentos de todo o processo de conformação
morfológica- ela pode ser o início e servir como referência para todas as performances
ulteriores, ela pode ser um registro ao meio do processo ou ela pode ser uma de muitas
versões da obra em questão. A relação proposta por Pouivet entre a gravação e as versões de
concerto das músicas-rock não é uma relação, portanto, de respeito a um documento. Ainda
que a gravação seja eventualmente o ponto de referência para uma performance, a versão ao
vivo não segue necessariamente passo a passo a versão de referência. Por isso Pouivet as
admite como versões de uma parte da gravação. Isto nos parece uma contorsão ontologizante
para se manter um dos pólos da prática como sendo a obra efetiva. Isto pode ser verdadeiro
em alguns casos. Se a prática rock seria pautada mais pela gravação do que pela performance,
imaginemos, inversamente, a prática do jazz, que é, para todos os fãs e amantes do gênero,
indubitavelmente uma prática baseada na performance, na qual os temas compostos servem
mais como pretexto para a criação de performances do que como elementos a serem
respeitados. Há sempre uma exceção. Pensemos no disco Bitches Brew, de Miles Davis, disco
notoriamente cheio de montagens de trechos de improvisações. Esta é também uma função da
gravação e aqui o jazz parece se aproximar da situação esboçada por Pouivet: a gravação não
é apenas um registro de uma performance, e Bitches Brew é composta com trechos pré-
gravados de improvisação montados em estúdio.
O que podemos retirar da reflexão logo acima é que a gravação pode estar se tornando,
em muitos casos, um análogo ao documento-partitura, de tal forma que a prática musical não
mediada pela notação possa ter encontrado um meio de se fixar mediante procedimentos de
gravação. Isto complica mais um pouco ainda a tipologia esboçada ao final do capítulo 3: será
então que a improvisação, regrada e livre, produzem obras, enquanto artefatos-gravações?
Parece-nos que isto depende do reconhecimento do público que consome e que participa da
produção e circulação destes setores da prática musical. E, mais uma vez, da conformação
morfológica dos casos particulares. O exemplo de Bitches Brew serve para mostrar como,
dentro de uma prática tradicionalmente associada à performance como obra, um caso pode
tomar a gravação como meio para a sua constituição. Gravação esta que servirá de referência
ou não a ações futuras.
Como sempre, porém, os limites permanecem vagos. O que é “servir de referência” a
ações futuras? Em nosso exemplo do Ícone o documento-partitura serviu de referência, mas
não foi obedecido em todas as regras que especifica. E se trata ainda de um exemplo
relativamente simples: as regras de execução de Ícone são explicitadas verbalmente. E no
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caso de gravações tomadas como referência: o que conta como os elementos a serem
mantidos e aqueles a serem descartados? O que conta como os essenciais e contingentes da
obra?
Estamos novamente na pergunta ontológica. Nossa resposta morfologizante a ela (em
contraposição à resposta ontologizante de Pouivet com relação às obras-rock) é: depende de
caso a caso. Assim a circularidade prossegue, a morfologia fazendo um apelo à pergunta sobre
que propriedades devem constituir um nexo morfológico do presente objeto, e a ontologia
fazendo um apelo a casos específicos para a constituição de uma identidade da obra para todas
as obras. Podemos assim, resumir nossas posições no presente trabalho:
a) As condições de identidade das obras são internas ao seu funcionamento e são auto-
colocadas pelas próprias obras.
b) A morfologia é um meio para se localizar os nexos identitários das obras colocadas por elas
mesmas. Em fazendo isso, a morfologia localiza especifidades estéticas e de pensamento
colocadas por versões-mundo não-verbais.
d) O conceito-obra pode estar presente ou não nas práticas abordadas. Há práticas que se
pautam na performance e não na obra como resultado de sua ação. E haveria práticas que
ficam um resultado em gravação. A ação do conceito-obra em cada um dos casos deve ser
tematizada independentemente.
REFERÊNCIAS
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BOUVERESSE, J. Essais III: Wittgenstein et les sortilèges du langage. Agone, Paris, 2003.
GOEHR. L. The imaginary museum of musical works: an essay in the philosophy of music.
Oxford University Press. New York, 2007 (Revised edition)
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PRITCHETT, J. The Music of John Cage. Cambridge University Press, Cambridge, 1999.
WOLLHEIM, R. Art and its objects: with six supplementary essays. Cambridge University
Press. Cambridge, 1980