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Villa-Lobos e a schottisch:

a interpretação musical por classificação genérica


Mário Sève1
UNIRIO
marioseve@gmail.com

Resumo: Este artigo tem o objetivo de refletir sobre o estilo de interpretação da Schottisch-Choro, segundo
movimento da Suíte Popular Brasileira, escrita por Villa-Lobos para violão solo. Procurou-se conhecer como as
danças europeias, em especial a schottisch, adaptaram-se a um estilo brasileiro de tocar. Procurou-se também
conhecer o uso da notação musical nas práticas dos chorões e a presença do violonista Villa-Lobos nesse universo.
No quadro teórico deste texto, recorreu-se a pesquisas de José Ramos Tinhorão, Jairo Severiano, Baptista Siqueira,
Nikolaus Harnoncourt e Pedro Aragão, além de ferramentas de análise musical para o choro de Carlos Almada.
Supostamente, o compositor omitiu em sua notação algumas informações por julgar estas contidas nas
classificações genéricas das peças de sua suíte.

Palavras-chave: Villa-Lobos. Choro. Schottisch. Gênero. Notação musical

Villa-Lobos and the schottisch:


the musical interpretation by a genre classification

Abstract: This article aims to think about the interpretation style of Schottisch-Choro, the second movement of
Suite Popular Brasileira, written by Villa-Lobos for guitar solo. I tried to find out how the European dances,
especially the schottisch, were adapted to a Brazilian style of playing. I also tried to investigate the musical notation
in the choro practices and the presence of Villa-Lobos, as guitar player, in this universe. In the theoretical
framework of this text, there are researchs by José Ramos Tinhorão, Jairo Severiano, Baptista Siqueira, Nikolaus
Harnoncourt and Pedro Aragão, and the choro musical analysis by Carlos Almada. Supposedly, Villa-Lobos has
omitted some details in his musical scores because these belonged to the genre classifications of the pieces of his
suite.

Keywords: Villa-Lobos. Choro. Schottisch. Genre. Musical notation

1
Saxofonista, flautista, compositor e arranjador, é integrante e fundador dos quintetos NÓ EM PINGO D´ÁGUA e AQUARELA
CARIOCA , com os quais gravou 12 discos e recebeu muitos prêmios. Integra o grupo de Paulinho da Viola desde 1996, com 5
CDs e 2 DVDs gravados. Mestre em Música pela UNIRIO (2015) com a dissertação FRASEADO DO CHORO: uma análise
de estilo por padrões de recorrência. Apresentou O FRASEADO DO CHORO: algumas considerações rítmicas e melódicas no
III SIMPOM (2014), CHORO E FRASEADO ? notação , regras e interpretação no IV SIMPOM (menção honrosa, 2016) e
CHORO: GÊNERO OU ESTILO? no XXVI Congresso da ANPPOM (2016), artigos já publicados. Em 2015, publicou
QUATRO ROSAS: mudanças interpretativas no fraseado de uma valsa brasileira na REVISTA DEBATES N. 14 e apresentou O
ENIGMA DE CHOROS Nº 1 DE VILLA-LOBOS no III SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS, artigo a ser publicado.
Foi Diretor Artístico do CENTRO DE REFERÊNCIA DA MÚSICA CARIOCA (2007 a 2009). Foi curador do mapeamento
RUMOS MÚSICA no Itaú Cultural/SP (1996). Escreveu o livro VOCABULÁRIO DO CHORO (1999) e coordenou o
SONGBOOK DO CHORO ? vol. 1, 2 e 3 (2007/2011) e o Livro/CD CHORO DUETOS ? ?Pixinguinha e Benedito Lacerda? -
vol. 1 e 2, com David Ganc. Gravou os CDs BACH & PIXINGUINHA (2001), com Marcelo Fagerlande, CHOROS, POR QUE
SAX? (2004), com Daniela Spielmann, PIXINGUINHA + BENEDITO (2005), com David Ganc, e CASA DE TODO MUNDO
(2007), com suas composições e várias participações, e os CD CANCIÓN NECESARIA (2011) e o DVD SAMBA ERRANTE
(2015), ambos autorais junto a cantaoutora Cecilia Stanzione, mesclando estilos brasileiros e argentinos. Em 2008, Carol Saboya
lançou CD CHÃO ABERTO, exclusivamente com suas canções. Produziu o festival anual RIOCHORO (2000 a 2004), reunindo
grandes nomes do gênero. Foi curador e idealizador, dos ciclos MP, A e B ? Argentina e Brasil (2011), ENCONTROS VIRTUAIS
(2015) e A PAIXÃO SEGUNDO CATULO ? um olhar sobre a modinha e a canção brasileira, nos CCBBs do Rio de Janeiro,
Brasília e Belo Horizonte. Participou, como compositor, do FESTIVAL DA MÚSICA BRASILEIRA (TV Globo - 2000), do
FESTIVAL DA CULTURA (TV Cultura - 2005) e do PREMIO VISA (2006). Foi premiado nos festivais de AVARÉ (FAMPOP)
e CHORANDO NO RIO.

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1- As danças europeias

A vinda da Família Real, em 1808, trouxe para o Brasil uma grande onda de
transformações. Na música, chegou da Europa uma série de danças, dentre as quais
prevaleceram primeiramente a quadrilha2 e a valsa. A quadrilha caiu em desuso nos grandes
centros urbanos durante o século XX, adaptando-se, com diferentes nomes, a danças rurais —
é muito conhecida no período de festas juninas em várias regiões do Brasil. Já a valsa, em
compasso ternário, uma das danças de salão mais apreciadas no mundo ocidental, a primeira
em par enlaçados e que ganhou diferentes estilos nos países que a importaram (SEVERIANO,
2009:23), obteve grande popularidade na música urbana brasileira.
Ao final dos 1820, começaram aqui a impressão de partituras e a venda de pianos
— instrumento que passou a ser presença obrigatória nas salas das famílias mais abastadas. O
piano manteve sua hegemonia durante cerca de oitenta anos, de 1850 a 1930, até o violão —
um instrumento barato e portátil — ganhar lugar na preferência popular. A valsa, criada no
ambiente dos salões burgueses da Europa, cultivada no repertório pianístico de Schumann,
Schubert, Liszt e Chopin, teve impulso no Brasil, nos anos 1840, com a chegada das valsas
vienenses dos dois Johann Strauss (pai e filho) e de outros compositores. Seu prestígio fez com
que chegasse a ser dançada nas festas da coroação do imperador Pedro II. Alguns compositores
brasileiros — como Chiquinha Gonzaga (1847–1935), Anacleto de Medeiros (1866–1919),
Patápio Silva (1881–1960), entre muitos outros — se dedicaram à composição de valsas,
destacando-se, especialmente, o pianista e autor de tangos Ernesto Nazareth (1863–1934), que
as considerava seu gênero nobre. Caracterizada por seu fluxo melódico com pouco ou nenhum
uso de figuras sincopadas, a valsa brasileira instrumental, ou valsa-choro, se estabilizou, salvo
exceções, na forma rondó com sessões (ou partes) de 32 compassos, divididas em períodos de
16 compassos (como Faceira, Eponina, Turbilhão de beijos e Coração que sente, entre as cerca
de 40 valsas que Nazareth compôs).
No mês de outubro de 18443, segundo Jairo Severiano, chegou ao Rio de Janeiro a
polca. A dança alegre de origem camponesa, também de par enlaçado, composta em compasso
binário, nasceu na região da Boêmia por volta de 1830. Sete anos depois, foi introduzida em
Praga, espalhando-se para Viena, São Petersburgo, Paris, Londres e Nova York. A polca

2
A quadrilha, de origem francesa, desfrutou de grande prestígio na maior parte do século XIX, declinando com o
fim da Monarquia. A dança abria bailes da corte — um costume da realeza européia que encantou brasileiros.
(SEVERIANO, 2009:24).
3
O cavaquinista e pesquisador Henrique Cazes, em seu livro Choro — do quintal ao Municipal, diz que a polca
foi dançada aqui pela primeira vez no mês de julho de 1845, no Teatro São Pedro.

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reforçava a intimidade proporcionada pela valsa, mas trazia a “substituição dos volteios alados
em 3/4 pelo puladinho na ponta dos pés” (TINHORÃO, 1991:59) em 2/4. A sociedade na época,
que demandava uma música a ser desfrutada fora da formalidade dos auditórios, recorreu
espontaneamente à “música diversiva”. As próprias óperas, para obterem sucesso aqui,
chegavam a apresentar polcas avulsas. O novo gênero era uma reação às antigas danças
palacianas (como o minueto da Corte), com a novidade no movimento coreográfico de levantar
a perna, despertando a “curiosidade” das pessoas. O músico Cacá Machado descreve o
panorama musical carioca na presença da polca:
A cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX tinha uma vida musical
intensa que abrangia tanto os teatros fechados, como o São Pedro, o Phoenix e mais
tarde o Municipal, na chamada belle époque, como o espaço público das ruas,
botequins e festas populares ou a intimidade dos salões das casas de família. De um
lado, existia uma cultura musical ligada à vida popular da camada média da
população, que se dava principalmente nos espaços públicos e, por outro, uma cultura
musical de elite, que circulava pelos grandes teatros e pelos salões da sociedade. O
que existia em comum entre esses dois universos? A Polca. (...) [Ela foi] o médium
cultural (na sua origem latina, o que está no centro, que concilia opostos, mediador)
da sociedade do Segundo Império. (MACHADO, 2007:20).

A polca entrou nos salões como “criação europeia e civilizada”, um consentimento


que o lundu jamais obtivera (TINHORÃO, 1991:56). Sua popularidade tornou-se
imediatamente tal que, ao final de 1840, os brasileiros já compunham polcas, não restando
dúvidas de que a dança se integrara definitivamente à nossa cultura musical. Na segunda metade
do século XIX, fundiu-se ao antigo lundu (ambos em compasso 2/4), este resgatado por
compositores brasileiros motivados pela campanha de libertação dos escravos. Outros gêneros
também binários, com fórmulas rítmicas semelhantes ao lundu — entre eles, o tango e a
habanera (nos anos 1860) — já haviam entrado no Brasil. O historiador José Ramos Tinhorão
comenta como se deu a mistura da polca com o lundu:
Quando, pois, a partir da segunda metade do século XIX, a polca vence as barreiras
da censura familiar e se transforma numa loucura coletiva no âmbito da classe média
urbana brasileira (chegou a ser criado o verbo polcar), a semelhança de ritmo com o
lundu permite a fusão que poderia às vezes ser apenas nominal, mas que garante ao
gênero de dança saído do batuque a possibilidade de ser, afinal admitido livremente
nos salões sob o nome mágico de polca-lundu. (TINHORÃO, 1991:56).

Na década que vai de 1870 a 1880, a polca-lundu4, com a colaboração do flautista


carioca Joaquim Antonio da Silva Callado (1848–1880), surgiu como principal gênero do
repertório popular. Sendo música instrumental e de caráter popular, já contribuíra para evitar a

4
A expansão mundial da polca talvez possa ser explicada por sua força musical estar em um ritmo de marcha
simples, binário, capaz de se adaptar facilmente às tradições locais. Na Alemanha, virou Schnellpolka (polca-
galope); na Polônia, polca-mazurca; e no Brasil, polca-lundu, polca-tango, polca-maxixe, polca. etc. (MACHADO,
2007:41-42).

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“tendência lamentosa” e as subordinações de “ordem prosódica” das modinhas (SIQUEIRA,
1969:111). Ela havia cativado o carioca não apenas pelas melodias, mas também por unir seus
dois instrumentos prediletos — o piano e a flauta5. Joaquim Callado, preferindo a atmosfera
violonística, acabou por formar “o mais original agrupamento musical reduzido de nosso país”
(SIQUEIRA, 1969:98) — o Choro do Callado —, cuja formação à base de um instrumento
solista (a flauta, no caso), dois violões e um cavaquinho estabeleceu o modelo para os conjuntos
de choro até os dias de hoje. Nesses grupos, normalmente, só o solista lia música, os demais
deveriam ser improvisadores do acompanhamento harmônico (como os violonistas de
modinha). O flautista tinha, provavelmente, o maior repertório nos cadernos manuscritos de
partituras que circulavam entre os chorões da época6 — entre obras de Candinho (1879–1960),
Viriato Figueira (1851–1883), Albertino Pimentel (1872–1929), Anacleto, Chiquinha e outros.
Tendo iniciado, aos oito anos de idade, seus estudos com o maestro Henrique Alves de Mesquita
(1830–1906), o flautista simboliza o nascimento do choro como um estilo musical de interpretar
e recompor danças europeias.
Assim como outros gêneros originados de estruturas clássicas, a polca estabeleceu-
se aqui na forma rondó em partes, com períodos quadrados e necessariamente regulares, de 16
compassos binários (dependendo da repetição) na maioria das vezes7. A polca brasileira no
padrão sincopado, por simples assimilação, passou a ser conhecida como choro e interpretada
por agrupamentos musicais como bandas e fanfarras, além dos conjuntos de choro.

2- A schottisch

A schottisch chegou ao Brasil pouco depois da polca e, como o gênero originário


da Boêmia, foi dançada por bailarinos nos teatros populares. A dança polonesa, chamada pelos
ingleses de polca alemã, logo caiu no gosto das elites brasileiras. A nossa versão da dança, a
schottisch brasileira, composta na forma adaptada de rondó em três partes, estas por vezes com
apenas oito compassos, estabilizou-se como música instrumental principalmente através do
mestre de bandas Anacleto de Medeiros, nascido na Ilha de Paquetá no Rio de Janeiro. É ele

5
Henrique Cazes (lembra que, no Brasil, o interesse pela flauta se intensificou primeiro, com vinda da Família
Real e, posteriormente, em 1859, com a chegada, a convite de D. Pedro II, do exímio flautista belga Mathieu-
André Reichert, que aqui ajudou a introduzir o sistema boehm da flauta transversa moderna. Reichert, se
contaminando com música dos chorões, compôs no estilo — como mostra a polca La coquette, incluída no
repertório desses músicos com o título As faceiras.
6
Segundo Pedro Aragão, tais cadernos funcionavam como uma espécie de “ambiente paralelo” à indústria
editorial, suprindo suas carências e propagando um repertório tocado nas rodas de choro — boa parte deste, aliás,
jamais editado.
7
Para Cacá Machado, a polca forneceu a métrica musical (andamento binário e seções de oito e 16 compassos,
por exemplo) sob a qual a música popular de sucesso (ou pop) se estruturou, especialmente na forma de canção
— ele vê na polca o “protótipo do pop”. (MACHADO, 2007:21).

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considerado o “sistematizador do gênero” no Brasil. Em 1896, na função de organizar a Banda
do Corpo de Bombeiros, arregimentou alguns dos melhores músicos de choro, fazendo com
que seu grupo passasse a se destacar pela qualidade de afinação, interpretação e arranjos. Era
tradição as bandas se responsabilizarem pela educação musical de seus componentes. Por serem
seus mestres chorões, houve um “efeito multiplicador da cultura chorística”, fazendo com que
mais músicos dominassem a linguagem (CAZES, 2010:29). Além disso, a presença das bandas
em eventos de porte foi importante, em fins do século XX, para a divulgação de polcas,
mazurcas e schottisches, além de marchas, dobrados, gavotas e adaptações de trechos de ópera.
Esse ecletismo de repertório contribuiu para estruturar, mais tarde, a linguagem orquestral da
nossa música popular — Pixinguinha, por exemplo, mostrou forte influência do estilo das
bandas em seus arranjos musicais.
A schottisch brasileira não alcançou o mesmo sucesso da polca pois, enquanto esta
era “coletivizante e em tom maior”, ela, normalmente em tom menor, “afeiçoava o ritmo obtido
com o compasso quaternário”, justifica o maestro Baptista Siqueira (1969:168). Embora
originalmente fosse escrita em compasso binário, ao adaptar-se a andamentos mais lentos
passou gradativamente a ser escrita em compasso quaternário (CAZES, 2010:27). O músico
Henrique Cazes sugere a célula rítmica da figura 1 para o acompanhamento da schottisch no
cavaquinho. E o violonista Luiz Otávio Braga, escrevendo em 2/2, ilustra sobre os compassos
iniciais de Yara, de Anacleto de Medeiros (figura 2), o acompanhamento da dança no seu
instrumento. Curiosamente, um padrão rítmico similar é usado pelos chorões no
acompanhamento de modinhas e canções seresteiras.

Figura 1 — acompanhamento da schottisch no cavaquinho


— fonte: Escola moderna de cavaquinho (CAZES, s/d)

Figura 2 — acompanhamento da schottisch no violão


— fonte: O violão de 7 cordas (BRAGA, 2002:15)

Embora o motivo rítmico «colcheia–colcheia» (figura 3.a) esteja presente nas


melodias de muitas partituras da schottisch brasileira, sua execução neste gênero musical
costuma aproximar-se da célula «colcheia pontuada–semicolcheia» (figura 3.b), ou da célula

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«colcheia–semicolcheia» em quiálteras (figura 3.c) — um procedimento semelhante ao
encontrado na música barroca (notes inégales) e no jazz (swung quavers ou “colcheias
swingadas”).

Figura 3 — variações ‘b’ e ‘c’ para célula rítmica ‘a’ em melodias da schottisch brasileira

Braga afirma que na schottisch brasileira as colcheias devem ser tocadas, cada duas,
como colcheia pontuada seguida de semicolcheia. O bandolinista Pedro Aragão, ao analisar um
antigo manuscrito de uma composição intitulada Schottisch e Polka (da figura 2, que apresenta
motivos com semicolcheias pontuadas e fusas), comenta que “a primeira parte da música é um
schottisch, com característica marcante de melodia pontuada, e a segunda parte se transforma
em uma polca.” (ARAGÃO, 2013:192).

Figura 4 — melodia pontuada na schottisch


— fonte: O baú do Animal (ibid.:270)

No início do século XX, a introdução de versos por alguns poetas (como Catulo da
Paixão Cearense e Hermes Fontes), adaptando-a à forma de canção dramática, fez com que a
schottisch brasileira começasse a perder suas características de “música pura” (de caráter
estritamente instrumental). Como nas polcas, os contornos melódicos das schottisches
adaptaram-se à forma da canção, mas trazendo a vantagem de já possuírem andamento lento —
favorável à inclusão de letras — e pulsação quaternária — mais próxima da modinha. A
schottisch emprestou ao xote nordestino seu nome e “o uso das figuras pontuadas na melodia.”
(CAZES, 2010:27). Contudo, o caráter predominantemente modal, o andamento mais ligeiro e
uma marcação rítmica regional estabeleceram diferenças em relação à dança original europeia
ou à sua versão chorada.

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3-Sobre a notação musical

A notação musical representa uma tentativa de substituir fatos auditivos por sinais
visuais. É uma convenção bastante imprecisa que desenvolveu-se gradualmente por um longo
período — da Idade Média ao século XIX — utilizando duas dimensões: a horizontal, que
representa a ordem temporal dos eventos; e a vertical, que representa a altura, ou frequência
dos sons (agudas acima e graves abaixo). A notação musical, sendo um sistema prescritivo,
trabalha através de códigos no esforço de explicar como eventos sonoros devem ser
reproduzidos. Esse sistema, mesmo usando aproximadamente os mesmos símbolos, foi
modificando seu significado e função em razão de mudanças estilísticas na história da música.
A notação não deve ser considerada um método intemporal e internacional para transcrever a
música. De forma geral, até cerca de 1800 a música era notada segundo o princípio da obra,
possuindo raras indicações de execução. No período barroco, as partituras raramente indicavam
dinâmicas ou andamentos (estes, quando notados, em geral estavam associados ao caráter da
composição8), e praticamente não traziam indicações de articulação e fraseado. No período
clássico, as partituras passaram a trazer ornamentações, dinâmicas, articulações e acentuações
como parte integrante da composição. A improvisação (característica da música barroca), assim,
tornou-se desnecessária e não desejada na maioria das vezes, salvo em fermatas e cadenzas.
Diferentemente dos períodos clássico e posteriores, no período barroco as especializações de
compositor e de intérprete eram menos evidentes. Pressupunha-se um maior envolvimento do
executante com o pensamento do autor da obra e uma maior liberdade no ato de sua execução
— como costuma acontecer, curiosamente, em boa parte de música popular de hoje. Em uma
música de caráter popular, notação e conhecimentos estilísticos costumam estar intimamente
associados, como nos mostra o seguinte relato do regente austríaco Nikolaus Harnoncourt.
Tomemos um exemplo que deve ser claro para todo músico atual: a música de dança
vienense do século XIX, uma polca ou uma valsa de Johann Strauss. O compositor
tentava integrar a notação no que na sua opinião era indispensável aos músicos de
orquestra sentados diante dele, os quais sabiam exatamente o que era uma valsa ou
uma polca e como deveriam ser tocadas. Entregue a uma orquestra que não possua
este conhecimento, que não conheça estas danças, e cujos músicos toquem exatamente
o que está na partitura, a música que disto tudo resulta é outra, totalmente diferente.
Não se pode escrever esta música de dança exatamente como deve ser tocada.
Frequentemente é necessário atacar uma nota um pouco antes ou depois, ou tocá-la
mais longa ou mais curta do que está escrito, etc. Poder-se-ia certamente tocar esta
música de maneira exata, metronomicamente exata, mas o resultado não teria
absolutamente nada a ver com a obra imaginada pelo compositor. (HARNONCOURT,
1988:37).

8
Embora possam tais indicações possam ser entendidas como metáforas retóricas de andamento, o musicólogo
Ross W. Duffin diz que Allegro significa “com alegria”, Adagio “de uma maneira tranqüila”, Largo “amplamente”,
e Grave significa “com seriedade”. Raramente há indicações de andamentos nestes termos, com exceções para
Lento, por exemplo, ou Presto, que significa “rápido”. (DUFFIN, 1995:6).

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Na música popular, ao fazer parte do presente, encontram-se vários aspectos da
antiga compreensão musical: “a unidade poesia-canto, unidade ouvinte-artista e a unidade
música-tempo.” (ibid.:25). Na música popular é possível perceber mais facilmente a
representação do que significava a música antigamente na vida das pessoas. Mesmo em escritas
tão detalhadas, como as de certas músicas eruditas europeias do século XX, é inevitável que
ocorram imprecisões em relação às expectativas do compositor. Duração das notas, mudanças
graduais de andamento, indicações de dinâmica etc. são praticamente impossíveis de serem
notadas com precisão. Cabe ao intérprete não perder a perspectiva de que, atrás dos limites e
da inexatidão da notação musical, é possível revelar a intenção do autor, além de contextos e
dinâmicas socioculturais sobre os quais se insere a sua criação.
A escrita musical não pode, como tal, reviver uma obra musical, mas unicamente
fornecer alguns pontos de referência para que isto aconteça. Autêntico, no puro
sentido da palavra, é aquele que reconhece nas notas o pensamento do compositor e
assim as reproduz. (ibid.:63).

Assim como o estilo barroco, o jazz, o choro e outros gêneros populares têm suas
músicas notadas apenas com indicações essenciais — ritmos melódicos, formas, alturas,
tonalidades e sugestões de andamento (fornecidas, muitas vezes, por indicações de gênero nas
peças). Detalhes de articulação, de dinâmicas e agógicas raramente são prescritos. Muitos
procedimentos interpretativos dos choros encontram-se revelados em um sistema de códigos
compartilhados pela tradição oral ou por gravações.
Pedro Aragão, ao analisar o livro O choro, de Alexandre Gonçalves Pinto, de 1936,
e outros documentos da época, concluiu que nas práticas musicais dos chorões, através da
observação direta e da tradição oral, os músicos aprendiam e construíam um “vocabulário de
códigos” — estes relacionados à interpretação, a conduções rítmico-harmônicas, contracantos
melódicos etc. Certos instrumentistas, como violonistas e cavaquinistas, utilizavam quase que
exclusivamente esse processo. Contudo, a leitura e a escrita musical eram também importantes
para a transmissão do choro — muitos músicos escreviam álbuns de partituras, copiados uns
pelos outros, em uma verdadeira “rede de informação”. Usadas por músicos de escola (como
os flautistas9), tais partituras, com melodias e indicações de gênero somente, serviam como
“suporte para a memorização da estrutura básica da música, a ser ‘contemplado’ por outros
aspectos não escritos como ‘colorido’, ‘improvisação’ etc.” (ARAGÃO, 2013:164). Sem notar

9
O flautista Joaquim Callado, considerado um dos pioneiros do choro, foi antecessor de Duque Estrada Meyer na
cadeira de flauta do Conservatório Imperial (que se transformaria no Instituto Nacional de Música, na República),
como lembra Aragão. Sucederam Callado e Meyer, os flautistas Pedro de Assis e Patápio Silva, todos eles
relacionados, em maior ou menor intensidades, à prática dos choros.

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marcações de articulação, acentuação, ornamentação e aspectos rítmicos relacionados ao
fraseado musical (normalmente aprendidos na oralidade), elas serviam como uma espécie de
esboço, uma orientação para o instrumentista.
A transmissão de choros através de partituras era (e continua sendo) algo que
contemplava apenas alguns aspectos do fazer musical — a melodia, o gênero a que a
música pertencia etc.; outros aspectos, como a condução rítmico-harmônica e os
eventuais contracantos melódicos (quando não escritos) eram transmitidos através da
oralidade. Podemos aqui aplicar o conceito de Nettl de que ao lado de “peças”
musicais fechadas — no nosso caso “polcas”, “valsas”, “schottischs” etc. —, existe
um vocabulário de unidades menores que são transmitidas e recorrentemente
recombinadas. (ibid.:166).

4-Villa-Lobos, o choro e a Suíte Popular Brasileira


A música dos chorões foi grande inspiração na obra do compositor erudito Heitor
Villa-Lobos (1887–1959), que chegou a batizar de Choros uma série de 16 obras para as mais
diferentes formações — considerada por muitos sua obra-prima. Villa-Lobos, que aos 6 anos
iniciara-se no violoncelo sob orientação de seu pai, passou antes de sua juventude a incorporar
o violão como seu instrumento. O violão abriu as portas para o ambiente das práticas musicais
do choro, permitindo-lhe inicialmente tocar e compor, segundo seu biógrafo Vasco Mariz
(1982:34), “valsinhas, schottishes, dobrados, polcas, enfim, música popular sem quaisquer
pretensões.” O musicólogo José Maria Neves comenta que quando
declarou uma vez a um jornalista francês que tinha se formado no Conservatório de
Cascadura — subúrbio da zona norte carioca, onde o choro sempre predominou —
talvez ele tivesse querido dizer que seu aprendizado musical se deu no meio de
compositores e instrumentistas da música popular do choro. (NEVES, 1981:51).

Nosso maestro, em sua vasta obra, não só se inspirou nos choros populares, mas
nela homenageou chorões e modinheiros, ao dedicar Choros nº 1 a Ernesto Nazareth, Conversa
(ou Fuga, terceiro movimento das Bachianas nº1) a Sátiro Bilhar, e Modinha (Serestas nº 5) a
Catulo da Paixão Cearense; ao arranjar Luar do Sertão e Caboca di Caxangá, do violonista
João Pernambuco e Catulo, e Tu passaste por este jardim, de Alfredo Dutra e Catulo (as duas
últimas para a série Canções típicas brasileiras); ao citar subliminarmente os temas das valsas
Sonho de magia, de João Pernambuco, no Prelúdio nº 5, e Dores d’Alma, de Quincas
Laranjeiras, em Valse-Choro, ambas para violão; e ao citar explicitamente o cantor e seresteiro
Catulo da Paixão Cearense de Rasga o Coração (uma canção sobre a melodia da schottisch
Yara, de Anacleto de Medeiros), na segunda metade de Choros nº 10.
Sua Suíte Popular Brasileira, para violão solo, reúne cinco peças10 compostas em
diferentes períodos (supostamente, de 1906 a 1923) e lugares (Rio de Janeiro e Paris) sem o

10
Com a recém descoberta de Valse-Choro nos arquivos da editora francesa Max-Eschig, a Suíte pode ter a
inclusão de mais uma peça.

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objetivo, supostamente, de pertencer a uma única obra — os dois movimentos iniciais estão
entre as primeiras músicas registradas em catálogos de obras de Villa-Lobos. A suíte apresenta
padrões rítmicos, melódicos, harmônicos, formais e fraseológicos das músicas dos chorões.
Cada uma das peças descreve em seus próprios títulos um gênero específico das práticas
musicais desses instrumentistas e compositores — Mazurka-Choro, Scottiisch-Choro, Valsa-
Choro, Gavota-Choro e Chorinho —, em uma clara alusão às partituras que circulavam nesses
meios, que traziam obrigatoriamente, junto aos nomes das peças, suas classificações genéricas11
— estas contribuíam na orientação do estilo interpretativo a ser utilizado a partir da notação
musical. Para o violonista colombiano Octavio Augusto Grajales Hernández
a melhor maneira de entender-se o significado dos movimentos da Suíte é descobrir
como elas refletem as características das práticas do choro tradicional. Deve-se
começar por uma análise harmônica, melódica, rítmica e formal das peças, para saber
como elas se relacionam com as características gerais do choro (...). O caráter do
conteúdo das peças pode ser entendido através de uma comparação com as
características e funções dos vários instrumentos do conjunto de choro: a melodia no
registro superior pode se equiparar à flauta, ao bandolim ou qualquer outro
instrumento melódico que possa ser usado no choro; o registro médio à sonoridade do
cavaquinho e o registro grave aos baixos do violão. Finalmente, a busca do significado
final de todos esses recursos deveria ser orientado sob a luz do que Villa-Lobos
expressou sobre choro12. (GRAJALES HERNÁNDEZ, 2010:10).

5-A Schottisch-Choro
Schottisch-Choro (manuscrita por Villa-Lobos em 1908) é o nome do segundo
movimento da Suíte Popular Brasileira. Como os demais movimentos, está na forma rondó e
tem o caráter de melodia acompanhada. Uma análise superficial da peça mostra diversas
referências ao estilo dos chorões, visto que:
a) Schottisch-Choro tem três seções de 16 compassos cada uma, dispostas na forma
A–B–B–A–C–C–A, desenvolvidas em frases de quatro compassos e períodos
regulares de oito compassos;
b) A está em Mi maior, B em Dó# menor (relativo de Mi maior) e C em Lá maior

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Para Grajales Hernández (2010), poder-se-ia interpretar as peças da Suíte popular brasileira como melodias
acompanhadas, sobre uma estrutura de padrões rítmicos das danças europeias correspondentes. Contudo, ao meu
ver, tais danças devem ser entendidas nos padrões rítmicos e melódicos estabelecidos pelos chorões, um pouco
diferente de como aqui chegaram da Europa — é inegável a influencia que sofreram das músicas de origem
africana, espanhola e portuguesa.
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“la manera más adecuada para entender el significado de los movimientos de la Suite, es descubrir cómo reflejan
las características de la práctica tradicional del choro. Ello debe partir desde un análisis armónico, melódico,
rítmico y formal de las piezas, para encontrar la relación que guardan con las características generales del choro
descritas por Garcia y Santos. El carácter de los materiales se puede entender a través de una comparación con las
características y las funciones de los diversos instrumentos del ensamble de choro: la melodía en el registro
superior se puede equiparar a la flauta, el bandolim o cualquier otro instrumento melódico posiblemente usado en
el choro; el registro medio al aporte sonoro del cavaquinho y el registro grave al bajo del violão. Por último, la
búsqueda del significado final de todas esas características debería estar orientada bajo la luz de lo que Villa‐Lobos
expresó acerca del choro.”

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(subdominante de Mi maior);
c) A e B têm, basicamente, melodia na região aguda (numa alusão a solos de flauta,
clarinete ou bandolim, por exemplo), e fraseologia e harmonia muito próximas dos
padrões dos compositores de choro contemporâneos a Villa-Lobos (ver ALMADA,
2006)13. A parte C, que tem melodia na região média (o que poderia ser uma
sugestão de solo em oficleide), transgride harmonicamente o modelo popular, sendo
a seção mais contrastante da peça (uma espécie de digressão); e
d) A e B têm acompanhamentos que sugerem o desenho da figura 1 — célula rítmica
do cavaquinho na schottisch brasileira14, segundo Cazes —, enquanto C tem
acompanhamento, na região aguda e em semicolcheias (sugerindo sonoridade de
cavaquinho), mais próximo do padrão da polca (ou do gênero choro).

Grande parte das características acima mencionadas situam a peça de Villa-Lobos


no âmbito do universo composicional dos chorões, evidenciando, assim, o seu caráter de música
popular. Com o intuito de ser fiel a esse significado, me parece importante que compreendamos
alguns aspectos interpretativos relacionados ao fraseado musical das schottisches brasileiras. A
elas, por exemplo, mesmo quando escritas em sucessões de motivos melódicos ritmicamente
regulares — em semicolcheias ou colcheias (como é o caso da edição para piano da composição
Implorando, de Anacleto de Medeiros, a figura 5) —, pode-se (ou deve-se) atribuir a execução
de notas pontuadas ou inégales. A figura 6 — que apresenta no primeiro sistema acordes
cifrados e o padrão de acompanhamento do cavaquinho na schottisch (ilustrado anteriormente
na figura 1) — sugere duas possíveis variações para o ritmo da melodia de Implorando (no
segundo sistema, usando-se colcheias pontuadas, e no terceiro sistema, usando-se “colcheias
swingadas”).

Figura 5 — escrita original, para piano, com figuras melódicas regulares, da parte A de Implorando,
schottisch de Anacleto de Medeiros — fonte: acervo da Casa do Choro15

13
O músico Carlos Almada (2006), em A estrutura do choro, apresenta análises fraseológicas sobre o estilo de
choros compostos até inícios do século XX.
14
Na Schottisch-choro, por ser uma peça para violão solo, esse acompanhamento confunde-se, por vezes, com a
melodia. Cabe ao intérprete, com o uso de articulações e acentuações, ao meu ver, deixar clara as duas funções.
15
O acervo de partituras da Casa do Choro pode ser acessado por http://casadochoro.com.br/acervo/Works .

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Figura 6 — possíveis variações rítmicas na melodia de um fragmento da parte A de Implorando, com
cifragem de acordes e ritmo de acompanhamento do cavaquinho — fonte: acervo da Casa do Choro

No caso da Schottisch-Choro, analogamente, em que Villa-Lobos optou por


escrever o gênero musical em 2/4 (como mostra a figura 7), um grupo de quatro semicolcheias
poderia, ser tocado como «semicolcheia pontuada–fusa, semicolcheia pontuada–fusa» (como
aparece na peça Schottisch e Polka, do exemplo 2), ou como «colcheia–semicolcheia, colcheia–
semicolcheia» em quiálteras. A figura 8 — que apresenta no primeiro sistema acordes cifrados
e o padrão rítmico de acompanhamento do cavaquinho — sugere duas variações para o ritmo
da melodia (no segundo sistema, usando-se semicolcheias pontuadas, e no terceiro sistema,
usando-se, por assim dizer, “semicolcheias swingadas”). Para o compositor, essa informação,
supostamente, já estaria na classificação genérica de sua peça.

Figura 7 — escrita original em 2/4 de fragmento da parte A da Schottisch-Choro, para violão solo,
com figuras melódicas regulares — fonte: acervo do Museu Villa-Lobos

Figura 8 — possíveis variações rítmicas na melodia de um fragmento da parte A da Schottisch-Choro,


com cifragem de acordes e ritmo de acompanhamento do cavaquinho

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Nas práticas musicais do choro, uma vez definido o gênero schottisch, o solista tem
por hábito tocar as notas ritmicamente irregulares da maneira acima descrita, mesclando-as
ainda com outras variações rítmico-melódicas. Há inúmeros exemplos de gravações nas quais
ouve-se tal fraseado. Notar no pentagrama todos os motivos como inégalité (ou com “notas
pontuadas”), embora por vezes assim se fizesse (como é ilustrado na edição original, para piano,
de Santinha, de Anacleto do Medeiros, na figura 9), pode também não traduzir integralmente o
procedimento interpretativo usual dos chorões.

Figura 9 — escrita original, para piano, com figuras melódicas irregulares, da parte A de Santinha,
schottisch de Anacleto de Medeiros — fonte: acervo da Casa do Choro

São notáveis as semelhanças fraseológicas que guardam as partes A de Implorando,


de Anacleto de Medeiros (figura 5), e da Schottisch-Choro, de Villa-Lobos (figura 7). Muitas
das schottisches de Anacleto — como Implorando, Santinha e Yara — tem suas primeiras
partes, ao menos, em oito compassos e formadas por semifrases de dois compassos, estas
reproduzidas em sequências (ou reproduções) harmônicas separadas por cortes ou cisuras —
uma espécie de padrão de recorrência de estilo do autor. As partes A são obrigatoriamente
repetidas no rondó das schottisches brasileiras, resultando em seções de 16 compassos.
A Schottisch-Choro apresenta sua parte A (não repetida) já em 16 compassos, mas
com cadencias conclusivas a cada oito compassos — preservando, de certa maneira, o mesmo
sentido formal. O segundo movimento da Suíte Popular Brasileira mantém a organização de
semifrases das schottisches de Anacleto nos seus primeiros oito compassos. Curiosamente
ainda, a schottisch de Villa-Lobos, mesmo em modo maior, tem motivos anacrústicos e
contornos melódicos que lembram a schottisch Implorando, esta em Ré menor. Implorando —
que ficou conhecida como a canção Palma de Martírio ao receber letra de Catulo da Paixão
Cearense, este amigo de Villa-Lobos — poderia, hipoteticamente, ter sido uma das referencias
usadas pelo nosso compositor erudito, que manipulou com seu estilo único os padrões
fraseológicos recorrentes das conhecidas schottisches de Anacleto de Medeiros.

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6-Considerações finais

Um jovem violoncelista, em fins dos século XIX, para integrar-se a chorões,


abraçou o violão — na época, um instrumento majoritariamente aprendido na oralidade. Heitor
Villa-Lobos não só frequentou esse ambiente, como também deu aí alguns dos mais importantes
passos para construir uma obra exuberante. Ele chamou de Choros sua mais grandiosa série,
iniciando-a justamente com um solo violonístico — que descreve de forma simples e direta
procedimentos composicionais de seu homenageado, o pianista e compositor de polcas, valsas
e tangos brasileiros Ernesto Nazareth. Tanto o Choros nº1 quanto a Suíte Popular Brasileira,
ambas para violão solo, exibem um Villa-Lobos na “roda de choro”16 — não como um
observador, mas como um chorão entre seus pares. Nas rodas de choro que frequentou não era
raro o uso de partituras manuscritas pelos próprios instrumentistas participantes. Tais escritos,
normalmente, traziam necessárias denominações genéricas de danças europeias, mesmo estas
já apresentando indiscutíveis peculiaridades nativas. Tais indicações estabeleciam padrões de
acompanhamento e estilos de fraseado — sem o conhecimento dos gêneros musicais dos
chorões, e seus significados, a execução musical poderia soar inadequada.
Algo sempre me intrigou em relação às interpretações mais conhecidas da Suíte
Popular Brasileira. Sabemos que os pentagramas, mesmo nas mais detalhadas notações, não
contêm, via de regra, todas as instruções necessárias para uma execução musical. Seja no
âmbito da música erudita ou popular, devemos ter consciência que leitura musical e
interpretação são coisas distintas — e que esta última deve se completar no conhecimento de
peculiaridades históricas e estilísticas. A Suíte Popular Brasileira é composta de cinco
movimentos, todos com indicações de gêneros, ou de subgêneros do choro. Villa-Lobos, mesmo
tendo editado-a com uma notação musical detalhada, parece ter usado tais informações para
orientar sua interpretação.
Comparemos duas distintas interpretações do segundo movimento da obra. Será
que na refinada e bela execução da Schottisch-Choro do violonista Julian Bream (álbum Julian
Bream plays Villa-Lobos — RCA, 1971), só para citar uma entre tantas, poderíamos identificar
os códigos da schottisch compartilhados entre nossos músicos populares? No vocabulário
musical dos chorões era sabido que tal dança — muitas vezes escrita em ritmo melódico regular
— deveria, como vimos, ter seu fraseado conduzido por figuras melódicas aproximadamente
pontuadas, irregulares. Villa-Lobos não pode ter achado desnecessário notar essas figuras por

16
Supõe-se que a Suíte Popular Brasileira teria sua gênese, ou seus “primeiros rabiscos”, em peças populares
compostas por Villa-Lobos para serem tocadas nas rodas de choro.

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julgar que a denominação schottisch já traria esse conceito? Ao ouvir a gravação do violonista
Yamandú Costa, acompanhado pelo baixolão de Guto Wirtti (álbum Bailongo: Yamandú Costa
& Guto Wirtti — FUNARTE, 2014), percebemos logo na anacruse inicial alguns significados
contidos no título da peça, nos termos da schottisch ou do choro. Yamandú parece desenvolver
um fraseado mais próximo à idealização do compositor.
Villa-Lobos, ao denominar de Mazurka-Choro, Schottisch-Choro, Valsa-choro,
Gavota-Choro, Chorinho as peças de sua “suíte popular”, não estaria informando-nos sobre os
procedimentos interpretativos adequados a cada uma delas? Sabe-se, nas práticas do chorões,
que as mazurcas apresentam figuras melódicas pontuadas, similares às schottisches, e certos
cortes rítmicos no acompanhamento em 3/4; que as valsas flutuam entre rubatos agógicos e
melódicos; que os “chorinhos” (ou choros ou polcas-lundus) dos tempos de Villa-Lobos tem na
figura do tresillo «colcheia pontuada–colcheia pontuada–colcheia» a marca da acentuação na
quarta semicolcheia do compasso 2/4 — essa característica costuma moldar o acompanhamento
e o fraseado melódico do gênero. No momento em que o violão, no âmbito do choro, deixou de
depender exclusivamente dos processos da oralidade, não seria o caso de uma releitura
“histórica e estilisticamente informada” da Suíte Popular Brasileira?

Referências

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de Janeiro: Da Fonseca, 2006.

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Livraria e Edições Folha Seca, 2013.

BRAGA, Luiz Otávio. Violão de 7 cordas – teoria e prática. Rio de Janeiro: Lumiar, 2003.

CAZES, Henrique. Choro – do quintal ao Municipal. São Paulo: Editora 34, 2010.

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DUFFIN, Ross W. Performance practice – Que me veux-tu? What do you want from me?
Early Music America v.1, n.1 (Fall 1995), p.27-36. Tradução não publicada de Paulo César
Martins Rabelo.

GRAJALES HERNÁNDEZ, Octavio Augusto . El choro y la Suíte Popular Brasileira: reflejo


de la tradición popular en Heitor Villa-Lobos. Bogotá, Colombia: 2010. Pontificia
Universidad Javeriana. Facultad de Artes. Departamento de Música. Guitarra Clásica.

HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons – caminhos para uma nova compreensão
musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor LTDA, 1998.

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MACHADO, Cacá. O enigma do homem célebre – ambição e vocação de Ernesto Nazareth.
São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007.

MARIZ, Vasco. Heitor Villa-Lobos – compositor brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1981.

PINTO, Alexandre Gonçalves. O choro – reminiscências do chorões antigos. Rio de Janeiro:


Typ. Glória, 1936.

SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira – das origens à modernidade.
São Paulo: Editora 34, 2009.

SCLIAR, Esther. Fraseologia musical. Porto Alegre: Movimento, 2008.

SIQUEIRA, Baptista. Três vultos históricos da música brasileira. Rio de Janeiro: Biblioteca
Nacional, 1969.

TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular – da modinha a lambada. São
Paulo: Art Editora, 1991.

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