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Wen1er Altt11a1111
Darlei Dall'Agnol
ÉTICA E LINGUAGEM
Uma introdução ao Tra.cta.tus de
Wittgenstein
Terceira edição
Direção editorial:
Paulo Robe,10 da Silva
Capa e diagramação:
Paulo Roberro da Silva
Supe1visào técnico-editorial:
Aldy Ve1gés Mai11gt1é
Revisão:
Ana lúda Pereira do Amaral
AmoB/ass
Júlio Cesar Ramos
Fid1a Catalogri-lfict1
(C.1t.1l<>g;u,;ão llil fo11ll' pl•la Hibliott>ril Univc-r!iil,iria cln
llniw1-sid;id(• Fl"<h•ral dP Santa C.itarin;:i)
[ ...[
Muitos muro s fo r a m , hoj e , derrubados . Continuaremos
amanhã .
rea lmente nào vê. E nada no campo visual permite co ncluir que
é vis to a partir de um o l h o . " Que relações existem entre o olho e
o campo de visão e o s ujeito e o mundo?
W - Na rea lidade a utilização de uma metáfora tomada de
Schopenhauer (XV) pretende apenas elucidar a posição cio sLúeito
em relação ao mundo. Quando afirmo que nada no campo visual
permite concl uir que é visto por um o l h o , isto s ignifica , ele um
modo análogo, que nada no mundo permite inferir que exista
um s ujeito . E quando afirmo que o olho não se vê a si própri o ,
i s t o significa que o s ujeito não pode ser dito , não p o d e ser
figurado. É neces sá rio , entretanto , vo ltarmos a discutir o s ujeito
voli tivo e não o sujeito afigurante , pois é aquele que é portador
cio bom e cio mau no sentido ético .
R - O que s ignifica s ujeito volitivo?!?
W - Apesar ele o s ujeito re presentante ser uma ilusão, sem
clúvi cla, "o s uj eito volitivo existe" (T, p. 1 74) . Desse modo , "o
s uj e ito é o s ujeito vol i tivo " (T, p . 1 8 2 ) . S o b re a necessária
existência cio sujeito volitivo fui convencido por Schopenhauer.
Eu cito : "Na rea liclacle, seria impossível encontrar a s ignificação
procurada deste mundo , que me aparece absol utamente como a
m i n h a representaçã o , o u então a p a s s a g e m deste m u n d o ,
enquanto s i mples representação ci o s ujeito q u e conhece, aquilo
que pode estar fora ela representaçã o , s e o próprio filósofo não
fosse nada mais do que o puro s ujeito que conhece (uma cabeça
ele anj o alado, sem corpo ) . Mas , com efeito , ele tem a s ua raiz no
m u n d o : e n q u a n t o i n cl i v ícl u o , fa z p a r t e d e l e ; só o s e u
conhecimento torna possível a representação ci o mundo inteiro;
mas este mesmo conhecimento tem como condição neces sá ria
a exis tência ele um corpo [ .. .J" (XVI) O autor ele O Mundo como
Vontade e Representação, após fa zer a distinção entre o s ujeito
que representa e o sujeito vo l itivo , procura mostrar que eles são
o mesmo vistos ele perspectivas di ferente s . Cito Schopenhauer:
" a identidade do sujeito do conhecimento e do Sl!J"eito da vontade
pode ser designada o nu/agre por excelência" ( XVI I ) . Deste macio ,
50 Ética e linguagem - U m a introduç ão a o Tracrarus d e Wingenstein
"Fala a alma e. . .
A h , a alma 11ào mais fá/a. " (Goethe)
B . a - O Factum do mundo
R - G o s t a r i a d e re 1 11 1 c 1 a r n o s s a d i s c u s s ã o s o b re o
misticis mo. O termo "místico" foi empregado no TLP em três
diferentes contextos:
a) Em 6 .44: "O Místico não é como o mundo é, mas que
ele é " .
b ) Em 6 . 4 5 : ''A i ntuição do mundo sub specie aetemié s u a
intuição c o m o totalidade - limitada. O sentimento do
mundo como totalidade limitada é o sentimento místico".
c) Em 6 . 5 2 2 : "Há por ce rto o i nefável . Isso se mostra, é o
Místico " .
É possível escl a recer esses diferentes usos que fazes d o
termo místico?
W - Ce rta mente. William James , e m seu magnífico l ivro
The Varieties of Religio us Experience, que li há muito tempo e
que me fez muito ben, , ca racteri zou as uexperiências" 1nísticas
por ele re l a t a d a s a p a r t i r de q u a tro traço s : i n e fa b i l i d a d e
( Ii1effabilit.Y') ; q u a l i d ade n o é t i ca ( noetic quality) ; brevidade
(transienc}1 ; e passividade (passivity) . (1)
não nos diz quais fatos podem existir, quais existem ou quais
poderão vir a existir. O mundo é o conj unto de possibil idades
que e fe t i v a m e n t e s ã o o c a s o . S a b e m o s , t a m b é m , p e l a
impossibilidade lógica d e inferir uma proposição elementar d e
outra propo sição elementar, q u e os fatos são i ndependentes uns
dos outros , isto é , a lgo pode ser o caso ou não e tudo o mais
perma necer igual ( 2 . 2 1 ) . Ora, s e n ã o pode existir qualquer
conexão necessária e ntre o s fatos, então o mundo é o reino da
contingei,cia: uns podem aco ntecer o utros deixar de a contecer.
A única necessidade é a necessidade lógica (6.37). Segue-se daí
que o místico não é que existam estes o u aqueles fatos; que
certos estados de coisas jamais se efetivem; que determinada
combinação de obj etos mude sua estruturação , formando um
novo estado de co isas; que haj a independência entre estes fatos
transformando o mundo num acontecer sem necessidade. Que
ele s eja finito ou infinito, que tenha 'x' ou 'y' fatos, tampouco
pode-se fa lar com sentido. Te mos, a s s i m , uma determinação
negativa do mís tico: sabemos o que não é indizível .
R - U m a d a s crenças que caracteriza o m ístico é a d e que
toda a plura lidade e divisão são ilusórias. Como escrevi no ensaio
so bre Misticismo e Lógica, esta crença conduz ao "panteísmo na
religião e ao monismo na filosofia. Uma lógica refinada , que
co meça em Parmênides e culmina com Hegel e seus discípul o s ,
d e s e nvolveu-se progre s s iv a m e nte p a r a d e m o n s t r a r q u e o
universo é um todo indivisível e que o que pa recem ser suas
partes é mera ilusão s e se consideram S L1bstâ ncias e existentes
po r si mes mas " . ( l l l ) Procurei refuta r esse monismo lógico em
meu traba lho so bre A temia monista da verdade. Essa doutrina
sustenta que a "verdade é única , completa e tota l " e que "as
verdades parciais, tais como 2 + 2 = 4 , na rea lidade s o mente
são verdadeiras no sentido de que formam parte do s istema da
verdade tota l " . ( IV) Se isso fo sse verdadeiro , então os idealistas
que sustentam esse monismo estariam certos em afirmar que
toda "análise é fals ificaçã o " . (V) Contudo , mostre i , auxil iado por
Moore , o erro do axioma das re lações internas e a conclusão a
Darlei Dall'Agnol
77
W - Uma res s a l v a : q u a n d o a fi r m o q u e o A x i o m a d a
lnfin iclade é um contra-senso, com isso não prete ndo s ustentar
q u e ele s ej a fa l s o . A negação deste a x i o m a ta m b é m é um
contra-senso. O que quero defender é que em lógica não podemos
s a ber a plioli o número de coisas que existe no mundo, sej a ele
finito 0 11 infinito. Não podemos afirmar qualquer enunciado sobre
a totalidade das co isas no mundo. Porta nto , quem está fa zendo
misticismo e não uma "filosofia científica" ao tenta r provar a
existência de infinitos o bjetos no mundo , não s o u eu. Estás mais
próximo das atitudes que condenas do que imaginas. Creio que
não estás sendo fiel à lógica .
R - Nova mente, essas objeções paralisam-me. Não sei o que
di zer. O sistema axiomático do Principia Mathematica é tal que
permite "a inferência de que pelo menos um indivíduo existe. Mas
hoje contemplo isso como u m defeito em pureza lógica". ( IX)
W - " Poder-se-ia dizer: se houvesse uma lógica a inda que
não houves se mundo, como poderia então haver uma lógica , já
que há mundo?" ( 5 . 5 5 2 1 ) .
R - To memos u m a pro posição so bre o número d e co isas
existentes no mundo. Po r exemplo: Existem pelo menos três
coisas no mundo . "Esta pro posição pode enunciar-se e m termos
puramente lógicos e pode ser provado l o g i c a m e nte que é
verdadeira para classes de classes ele classes: estas últimas devem
existir pelo menos, mes m o quando não exista univers o . Porque
neste caso existiria uma classe, a classe va zia; duas classes de
classes , a saber: a classe va zia de classes e a classe cujo único
membro é a classe va zia; e quatro classes d e classes , a s a ber:
aquela que é va zia, aquela cuj o único membro é a classe vazia de
classes , aquela cujo único me mbro é a classe cuj o único membro
é a classe cujo único mem bro é a classe vazia e a que é a soma
elas duas últi mas. Mas e m tipos mais ba ixos , cios i ndivíduos , das
classes e das classes de classes , não podemos prova r logicamente
que pelo menos existem três membro s . De aco rdo co m a natureza
mesma da lóg ica dever-s e-ia esperar uma s i tuação semelhante
Darlei Dall'Agnol
79
porque a lógica desenvolve-se independentemente dos fatos
empíricos, e a existência do universo é um fato empírico. É certo
que se o mundo não existisse, não existiriam livros de lógica,
mas a existência dos livros de lógica não é uma das premissas
para a existência da lógica, nem se pode inferir de proposição
alguma que tenha direito de ser parte de um livro de lógica". (X}
W - Discordo de duas afirmações que fizeste. A primeira
refere-se ao platonismo subjacente à crença na realidade de
entidades lógicas. Repito: não há objetos lógicos. O segundo
ponto em divergência diz respeito à tua concepção de lógica . O
que quero afirmar é que a lógica não pode dizer algo sobre o
mundo: nem que existem 'x' objetos e muito menos se é vazio
ou não . Mas há um fàctum irredutível para a lógica: que algo é.
Podemos esclarecer, agora , uma afirmação , feita anteriormente,
a de que a lógica é parte do místico. Isto não sigi1ifica outra
coisa senão que a "experiência" de que há rnundo é mística e, ao
mesmo tempo, é toda a "experiência" de que necessitamos para
compreender a lógica .
R - Não está suficientemente clara a questão a respeito da
existência das coisas. Em Os Princípios da Matemática há uma
exigência, principalmente em "termos matemáticos de estabelecer
o teorema da existência em cada caso - isto é, a demostração de
que existem entidades do tipo em questão -". (XI}
W - A tua filosofia da matemática está cheia de expressões
metafisicas. Por exemplo, podemos falar sobre o infinito sem
compromissos ontológicos. Parece-me que não tens isso
suficientemente claro. A fonte de todos os erros é uma má
compreensão da natureza da proposição existencial. Como tens
concebido esta questão?
R - ''A existência é essencialmente uma propriedade de
uma função proposicional. "(XII} Podemos esclarecer isto com o
seguinte exemplo: se alguém diz " Existem unicórnios", isto
quereria dizer que "há um 'x' tal que 'x' é um unicórnio". Com
80 É t i c a e linguagem - U m a i m rodução ao Tracrarus de Wingenstein
à exis tência o u não ele vicia após a mo rte . Cito: "Nossa vicia é
sem fi m , como nosso campo visual é sem limite".
W - "A imorta lidade temporal ela alma humana - ou s ej a ,
s u a sobrevivência eterna a pós a mo rte - n ã o a penas n ã o está ele
modo algum assegura d a , mas, acima ele tudo , essa suposição
absolutamente não se presta ao que com ela sempre s e pretendeu.
Po i s há enigma que s e reso lva po r obra ele minha sobrevivência
eterna? Poi s não é essa vicia eterna tão enigmática quanto a vicia
presente? A s o l ução cio enigma ela vida no espaço e no tempo
está fora do espaço e cio tempo . "(6.43 1 2) . Estamos , aqui , d i ante
do mesmo tipo ele dissolução ela legitimidade pela impossibilidade
de a presentar uma res po sta . " Para urna resposta que não s e pode
formular, tampouco s e pode formular a questão. O enigma não
existe. Se uma questão se pode em gera l leva ntar, a ela também
se pode r e s p o n d e r. " ( 6 . 5 ) . S e não p o d e m o s re s p o n d e r
fig urativamente, isto é , produzi ndo proposições com sentido,
sobre a imorta lidade temporal da alma humana , então a pergunta
também ca rece ele sentido . Não podemos dizer a lgo so bre esse
pro blema , j ustamente po rque não é um problema.
R - Nesse po nto , estamos , entã o , inteiramente de acord o .
D e s d e m i n h a s p r i m e i r a s refl e x õ e s fi l o s ó fi c a s t e n h o m e
co nve ncido cada vez m a i s , como livre-pe nsador, que Deus não
e x i s t e . P r i m e i r a m e nt e , n e g u e i o l ivre a r bítr i o , d e p o i s a
imortalidade ela a l m a e, fi n a lmente, a existência de Deus . (XXV)
W - Russell , esta mos , aqui, em completo desacordo .
R - Como assim?
W - Do fato ele que não se pode dizer não se segue que
n ã o p o s s a e x i s t i r a q u i l o q u e n ã o p o d e s e r fi g u r a d o
pro posicionalmente. Desse modo, apesar do fato d e que não
podemos res ponder à pergunta "por que há a lgo e não a ntes
nada?'" dizendo a lgo com sentido , daí não se segue que não
fá lemos sobre o porquê ela existência do mundo . É j ustamente
qua ndo /à/amos so bre a final idade cio mundo que lhe a tribuímos
Darlei Dall'Agnol 87
sentido ético. Creio que deveríamos discutir mais sobre esse tema
no nosso próximo enco ntro . Por exemplo, a aceitação da
facticidade do mundo, a sua não problematização parece ser
condição da felicidade, enquanto que a consciência infeliz é
justamente aquela que não aceita a existência.
R - Mas o modo como disso lveste a legitimidade das
questões metafísicas levou-me a crer que elas deviam ser
descartadas como roupas velhas.
W - 0 procedimento correto em filosofia é justamente o de
não tentar dizer senão aquilo que se pode dizer. Nada podemos
dizersobre o místico, sobre o factum que há mundo, mas podemos
falar sobre isso desde que não tenhamos pretensões de veracidade,
de sentido. Por conseguinte, há determinadas perguntas que devem
desaparecer do cenário filosófico . Para esclarecer esse ponto vou
citar Schopenhauer: "Existe apenas um método sadio de filosofar
acerca do universo; existe apenas um que é capaz de nos fazer
conhecer o ser íntimo das coisas, de nos fazer ultrapassar o
fenômeno: é aquele que deixa de lado a origem, a finalidade, o
porquê e que em todo o lado apenas procura o quid de que é feito
o universo". (XXVI) Para o autor de O Mundo como Vontade e
Representação, depois que Kant mostrou que o tempo não é um
atributo inerente às coisas em si mesmas, mas apenas uma forma
da nossa intuição, não faz sentido a filosofia continuar discutindo
se o mundo teve uma origem no tempo ou sempre existiu. Isto
produz inferências falaciosas: as antinomias. Tampouco, se existe
uma finalidade exterior à vida, ao mundo. Estas são questões que
ultrapassam os limites do princípio da razão suficiente. A filosofia
deve mostrar a essência do mundo . Foi isto que fiz no Tractatus
através da forma geral da proposição. Qual é o quid do mundo? A
facticidade. Qualquer tentativa de dizer que não respeite estes
limites da linguagem conduz a uma "dialetização" inevitável. Ou
melhor, produz contra-sensos. Entretanto, o homem tem,
naturalmente, uma tendência de colocar-se contra os limites da
linguagem e "esta corrida atesta algo" ( LE, p. 1 2) .
88 Étirn l' linguagem - U m a umoduçào ao 7i"Acr;uus de Wittgenste in
W - " Dostoievski tem , sem dúvi d a , ra zão qua ndo diz que
q uem é fel i z satisfa z a fi n a l i d a de da existê nci a . Ou c a ber i a
ex pressá-lo ass i n a l a ndo q ue satisfa z a fi n a l i da de da existência
quem não necessita de fi n a l idade alguma fo ra da vida mesma ,
isto é , quem está satisfeito . A so l u ção do pro b le ma da vida
percebe-se no desa parecimento desse pro blema . Mas, como viver
Darlei Dall'Agnol 101
de tal modo que a vida deixe de ser pro blemática? Que se viva
no eterno e não no tempo?" (T, p . 1 68 ) . Se é possível viver
atempo ra lmente, então esta será a Boa Vid a . I s to depende ,
entreta nto , de uma forma de vive r que leve o pro blemático ao
d e s a p a r e c i m e n t o . O p ro b l e m a da v i d a , d e s s e m o d o ,
dissolver-se-ia . Para esta forma de vida , a felicidade reso lveria o
pro blema do sentido da vida . Tem o s , a s s i m , um critério fo rmal
para a Boa Vida: a vida vivida sub specie aetem,: É místico que
possa existir vida -feliz, isto é , uma forma de vida que deixou de
ser proble mática . A questão que precisamos investigar é esta:
como viver sub specie aeterm?
R - No Thlctatus nada é dito s obre o modo de viver sub
specie aeterni. Talvez porque nada pudesse ser dito so bre i s s o .
Afinal, o q u e é a felicidade? A única afir mação feita e m 6.43,
realmente, nada diz: "O mundo do fe l i z é um mundo diferente
do mundo do infeliz".
W - Nesse aforismo é estabelecido apenas um cnteno
fo rmal da Boa Vida . Não é tarefa do filósofo d i zer sob quais
circunstâncias empíricas a Boa Vida se rea liza. Se perguntássemos:
"por que devo viver fe l i z? " perce bería mos que a questão é
tautológica: "parece que a vida fe l i z se j ustifica por si mes ma,
que é a única adequada" (T, p . 1 73 ) . Eu insisto: não é possível ,
a i n d a , s a b e r c o m o é a B o a V i d a . A t é a g o r a fa l á v a m o s
condicionalmente. Sabemos , a penas , q u e é mística a vida vivida
sub specie aetemi. A Boa Vida , a felicidade é indi zíve l .
R - N ã o s e r i a m a i s correto e n t ã o afir mar q u e a Ética é
transcendente, ao i nvés de transcendenta l?
W - Não. Este é um tema basta nte difícil e sugiro que o
deixemos para amanhã.
R- Vou tentar res umir nossa discussão de hoj e . A visão do
mundo sub specie aetemi é sua contemplação como limitado a
fatos, isto é, nele não há valor. Po r isso, não há proposições éticas .
Além d i s s o , a v i d a vivida sub specie aeterni é a que leva o
1 02 E c i c a e linguagem - U m a i n 1 rod ução ao Tracrarus de Wingennein
mora lidade que enco ntrei até agora, observei sempre que o autor
procede durante algum tempo segundo o modo o rdinário de
racioci nar e estabelece a existência de Deus o u faz observações
sobre ass untos humano s . Mas, de repente , surpreendo-me ao
encontrar, em lugar dos predicados usuais é e não é, proposições
relacionadas com um deve0t1 um não deve. Trata-se de uma mudança
imperceptível, mas cheia de conseqüências extremas . Pois, como
este deve ou não deve ex pressa uma nova relação ou afirmação, é
necessário que seja notado ou explicado, e que, ao mesmo tempo,
se dê uma razão para o que parece inconcebível, a saber, como
pode ser esta relação uma dedução a partir de o utras que são
completamente d i fe rentes . M a s , como o s a u tores não têm
comumente esta precaução pennito-me recomendá-la aos leitores
e estou convencido de que esta pequena a tenção subverterá todos
os sistemas vulgares de moralidade, pois permitirá ver que a distinção
entre vicio e virtude não se funda meramente nas relações dos
objetos, nem é percebida pela razão". (li)
W - Creio que é mos trada , aqui, a i mpossibilidade lógica
de derivar deve de é. Visto que as proposições somente expressam
como o mundo é , não pode haver propos ições de Ética. Nada há
para s e d i z e r. S o bre Ética podemos s o mente fa l a r. Há u m a
d i fe re n ç a lógica e n t r e fi g ur a ç õ e s e p s e u d o p r o p o s i ç õ e s
normativas o u va lora tiva s .
R - A questão n ã o é t ã o s i mples a s s i m . H u m e parece t e r
eliminado o a b i s m o entre deve e é identificando as proposições
cio dever co m as proposições do ser.
W- Não é possível inferir uma pseudoproposição contendo
deve r-ser de uma pro po s i ção contendo ser.
R - Escuta . Se aceitamos que a Ética toma como dados
fu ndamentais os sentimentos e as e moções, então as proposições
éticas ex pres sam fato s .
W - É o p r e s s u p o s t o d e tua a rg u m e ntação que e s tá
equivocado. A Ética não trata de senti mentos mora i s , pois isso é
Darlei Dall'Agnol 1 43
ex periência e, como tal, factual, mundo. A Ética não é
conheci 11;1 ento. Seu objetivo não é a verdade, mas aquilo que é
bom. A Etica não pode ser puramente teórica. Se não estou
equivocado, essa é a maior diferença entre nós . Temo que ela
acabe tornando-se um abismo intrans ponível.
R- Não concordo com a tua posição. Estou mais próximo,
aqui, de alguns membros do Círculo de Viena. Para Schlick , por
ex� mplo, a Ética '·'não busca outra coisa que conhecimento; [ . . . )
a Etica é um sistema de conhecimento e nada mais . Seu único
objetivo é a verdade. Toda a ciência enquanto tal é puramente
teórica, pois somente pretende entender. Por conseguinte, os
problemas da Ética são também puramente teóricos ". (lll) Creio
que há conhecimento ético. Certa�nte a frase "Não matarás " é
prescritiva, mas a frase "o homicídio'é mau" é descritiva e pode
ser verdadeira ou fa lsa. Portanto, a no;ma moral " Não mates" é
inferida de propos ições como "o homicídio é mau" e outras. Do
mesmo modo, a frase "a felicidade é boa" tem a mesma forma
gramatical de "Sócrates é mortal".
W - A Ética não trata da forma gramatical dos enunciados
prescritivos ou valorativos. Esta é uma investigação lógica. Esta
confusão perpassa toda a obra de Moore e alguns dos teus Ensaios
Filosóficos onde subscreves algumas teses do autor do Plincipia
Ethica em sua tentativa de tornar a Ética uma ciência. É claro que o
diagnóstico que David Hume e Moore fizeram é correto: não se
pode derivar nenhum dever-ser daquilo que é. Ficam, assim, coibidas
quaisquer éticas naturalistas, hedonistas , metafísicas, utilitaristas,
etc. Contudo, o prognóstico de Hume e de Moore é desastroso. O
primeiro concluiu que, da impossibilidade de derivar valores de fatos,
as proposições éticas expressam sentimentos psicológicos relativos
à natureza humana. Moore, ao contrário, concebeu platonicamente
o bom, que seria apreendido por uma intuição intelectual . Ambos
estão equivocados. As proposições científicas e as "proposições"
éticas são de categorias diferentes e qualquer tentativa de nivelá
l as produz contra-sensos. O Tradatus pretende ter estabelecido essa
1 44 É 1 1 c a e l i n guage m - U m a i n t roduçã.o ao Tracr.aws de Wittgenstem
sepa ração entre ciência e É tica de uma vez por todas . Depois dele,
nenhwn livro poderia aspirar a ser "'Prolegômenos a toda Ética futura
que queira apresentar-se como ciência ." Ele é dirigido j usta mente
contra esta o nda cientificista que tudo pretende abarcar, inclusive a
mora l i dade . O maior exemplo deste equívoco é Spinoza que
procurou demonstrar a sua É tica more geometrico.
R - Não é possíve l , entã o , construir uma metaética?
W - O que seria uma "metaética"?
R- Creio que é , j ustamente, isso que o Pni1cipia Ethica faz,
a saber, uma investigação da moralidade a partir de uma análise
lógica, conceituai e epistemológica do discur.s-o moral. Assim, numa
investigação metaética, não se diz o que se deve ou não fazer, mas
se analisa o que se fa z ao falar do que se eleve fa zer. Em filosofia
não elevemos m o ra l i za i; i s to é , pregar regras que devem s e r
seguidas. Ela não é um discurso ele primeira o rdem: é um d iscurso
so bre o d i s curso m o r a l . É , justamente, um empreendimento
científico que procura fundamentar o clisetirso moral.
W -A questão ela fundamentação na filosofia, seja da lógica,
seja ela É tica, é sem sentido . Pode-se dizer logicamente com sentido ,
mas nada é possível dizer sobre a lógica. Do mesmo modo, pode-se
falar 111ora!me11te, mas nada é possível dizer em Ética. A similaridade
da natureza da lógica e da É tica torna-se mais clara: ambas não
podem ser ciências e ambas não admitem fundamentação.
R - Essas declarações são bastante radica i s . Creio que é
necessário que a presentes argumentos para sustentá-las. Po r isso,
vo u i nsisti r neste ponto com uma pergunta. Em que consistiria
uma funda mentação da lógica e por que ela é sem sentido?
W - Já Frege demo nstrou que a lógica não necessita de
funda mentações extra l ógicas, nem psicológicas nem metafisicas.
Ele refutou as fundamentações empiricistas, como, por exemplo ,
o ps i c o l o g i s m o d e S t u a rt M i l l , q u e p r e t e n d i a re d u z i r o
conheci mento verdadeiro às condições do psiquismo , pelo qual
os pri ncípi os lógicos não passariam de leis de fato, estabelecidas
Darlei Dall'Agnol
1 45
A - · "Crítica da linguagem"
e x p l i ca ç ã o c i e n t í fi ca . A c i ê n c i a , a rg u m e n t a Hertz, é uma
anteci pação da natureza . " (Cf. HACKER, P.M.S. lnsight and lllusion.
Wittgens tein on Philoso phy and the Metaphys ics of Experience .
Oxford, C l a rendon Pres s , 1 9 72, p.2-3s) Numa segunda edição
revisada de lnsight and 11/usion, Hacker confessa que exagerou na
i nfluência de Kant so bre Wittgenstein apesar de reconhecer que
ela é i negável. O texto da pri meira edição , acima citado , aparece
na segunda , que teve seu subtítulo modificado , desta forma: " Os
Pni,cipios da Mecailica de Hertz empreendeu um exame filosófico
da natureza da explicação científica . A ciência, ele a rgumenta , é
uma antecipação da natureza ." (Cf. HACKER, P. M.S. lnsight and
lllusion. Themes in the Phi losophy ofWittgenstein. Revised edition.
Oxford, Clarendon Press , 1 986. p.2).
IV - Stenius s i ntetiza a filosofia transcendenta l , que tomaremos
como chave interpretativa do Trnctatus, em sete teses: a ) a tarefa
da filosofia teórica é fa zer a dedução transcendental acerca dos
l i m ites do d i s c ur s o t e ó r i c o e não e s p e c u l a r s o b re o q u e
t r a n s c e n d e e s s e s l i m i t e s e a s s i m não pode s e r conhecido
teoricamente; b) um mundo é u m mundo de experiências possível
se ele é 'possível' para a razão teórica; c) toda a nossa experiência
tem uma ' fo rm a ' que está fun d a d a na razão teórica e um
'conteúdo' que está baseado em nossas sensações; d) pro posições
s i ntéticas são verda deiras a piioii se elas s e referem s o mente à
fom,a da experiência e a posterioli se elas se referem também
ao conteúdo: e) assim há pro posições s i ntéticas a priori (p.ex.:
enunciados matemático s , a lei da causalidade): f) também há
proposições 'transcendentes' ( p . ex . : proposições so bre Deus , a
i mortalidade da a l m a , o universo como um todo , a vontade l ivre ,
mora l , etc . ) . Ta is proposições não podem ser conhecidas como
verdadeiras pelo conhecimento teó rico , mas somente postuladas
p e l a r a z ã o prática ( Ka n t ) 0 11 i n t u í d a s p e l a v o n t a d e
(Schopenhauer). O estabelecimento d e tais propos ições pertence
à tarefa da filosofia prática: g) a coisa em si é transcendente .
Stenius sustenta que as teses ' b' e ' c' são mantidas pelo TLP; as
teses ' a ' e 'd' são tra n s fo rmadas l i ngüísticam ente; e as teses 'e' ,
Darlei Dall'Agnol
1 77
'f " e 'g' são falsas. Todas essas teses serão utilizadas como núcleo
da chave interpretativa e cada uma delas deverá confirmar-se ou
negar-se no percurso da investigação. Salienta-se que não
procuraremos provar que Wittgenstein foi um filósofo kantiano.
Quanto às teses conferir: STENIUS, E. Wittgenstein's Tractatus.
A criticai exposition of its main lines of Thought. Oxford, Basil
Blackwell, 1 964. p. 2 1 4-226.
V - RUSSELL, B. - Sobre la denotación. ln: RUSSELL, B. Lógica y
conocimiento. Madrid, Taurus, 1 98 1 . p.63 .
VI - Esta é uma formulação não literal da concepção russelliana
de análise. Obedece, contudo, às regras da Teoria das Descrições
Definidas.
Vi l - " Uma ocorrência secundária de uma expressão denotativa
pode ser definida como uma ocorrência na qual a expressão
ocorre na proposição p que é um simples constituinte da
proposição que estamos considerando e a substituição da
expressão denotativa deve ser efetuada em p, não na totalidade
da proposição considerada. " RUSSELL, B. Sobre la denotación.
ln: Logica y conocimiento. Madrid, Taurus, 1 98 1 . p.69.
VI I I - Ibidem, p.70.
IX - Ibidem, Introdução. ln: WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico
philosophicus. São Paulo, EDUSP, 1 994. p. 1 1 4.
X - Ibidem, Idem. p. 1 1 4.
XI - Já é por demais conhecida a história da Introdução escrita
por Russell para que o Tractatus pudesse ser publicado. O que
não foi ainda suficientemente explorada é a influência dos erros
interpretativos de Russell na Introdução. Podemos apontar,
dentre outros, seis principais: a) que o TLP ocupa-se das condições
de uma linguagem ideal; b) que estava comprometido com o
programa Iogicista de reduzir a matemática à lógica; c) que a
terminol ogia pudesse ser identificada com a fi losofia do
atomismo lógico; d) que a distinção dizer/mostrar implicava
1 78 É 1 1ca e l i nguagem - U m a introdução a o Tracraws d e Wingenstein
A . e - Mostra-se o i n dizível
B - O místico
C . a - A boa vontade
al� o . L;m mudo não somente não tem provado que pode cal a r,
mas lhe falta toda a possibilidade ele prová-lo. Também o taciturno
por nattirezél não demonstrou mais do que o mudo que pouco
cala e pocle calar. Quem nunca diz, tampouco pode calar em um
m o m e nto dado. Somente no g e nuíno falar é poss ível um
verclacleiro calar." HEIDEGGER, M. El ser y el tiempo. México,
Fo11clo ele Cultura Económico. 1 986. p. 1 83/4
Ludwig Wittgenstein
Senhoras e senhores,
Antes de começar a falar sobre meu tema, permitam-me fazer
algumas observações introdutórias. Sinto que terei grandes
dificuldades para comunicar meus pensamentos para vocês e penso
que algumas delas diminuiriam se as mencionasse de antemão. A
primeira, que quase não necessito apontar, é que o inglês não é
minha língua materna. Por esta razão, meu modo de expressão
não possui aquela elegância e precisão que seria desejável para
quem fala sobre um tema difícil. Tudo o que posso fazer é pedir
que me facilitem a tarefa tentando entender o que quero dizer,
apesar das faltas que contra a gramática inglesa vou cometer
continuamente. A segunda dificuldade que mencionarei é que,
provavelmente, muitos de vocês vieram a esta minha conferência
com falsas expectativas. Para esclarecer este ponto, direi algumas
palavras sobre a razão pela qual escolhi este tema. Quando o
secretário anterior honrou-me pedindo que lesse uma comunicação
pa ra esta sociedade, minha primeira idéia foi a de que deveria
certamente aceitar e a segunda foi que, se tivesse a oportunidade
de falar a vocês, deveria falar sobre algo que me interessava
comunicar e que não deveria desperdiçá-la dando , por exemplo,
uma conferência sobre lógica . Considero que isto seria perder
tempo, visto que explicar um tema científico a vocês exigiria um
curso de conferências e não uma comunicação de uma hora. Outra
alternativa teria sido apresentar uma conferência que se denomina
de divulgação científica , isto é, uma conferência que pretendesse
fazer vocês acreditarem que entendem algo que realmente não
entendem e satisfazer assim o que considero um dos mais baixos
desejos do homem moderno, a saber, a curiosidade superficial
sobre as Liltimas descobertas da ciência . Rejeitei estas alternativas
e decidi falar sobre um tema, em minha opinião, de importância
2 16 E t i c a e l i n guagem - Uma mrroduçã.o ao Tracrarus de Wingensrein
gera l . com a es perança de que ele aj ude a esclarecer suas pró prias
idéias a respeito ( mesmo que vocês estej a m em total desacordo
com o que vou dizer) . Minha terceira e última dificuldade é, de
fa to . própria de quase todas as conferências filosóficas: o o uvinte
é inca pa z ele ver tanto o ca minho pelo qual o levam como também
o fi m a que este conduz. Isto é, ele pensa: " Entendo tudo o que
diz, mas ao nde quer chegar?" o u então "Vej o para onde se
encaminha, mas como vai chegar ali?" Mais uma vez: tudo o que
posso fa zer é pedir que sej a m pacientes e esperar que, no final,
vej a m não só o caminho como também aonde ele leva .
Vou iniciar ago ra. Meu tema, como s abem, é a Ética e adotarei
a explicação que deste termo deu o professor Moore em seu livro
Pni1cipia Ethica. Ele diz: ''A Ética é a investigação geral sobre o que
é bom". Agora, vou usar a palavra Ética num sentido um pouco mais
amplo, um sentido , na verdade, que inclui a parte mais genuína, em
meu entendei; do que geralmente se denomina Estética . E para que
vejam da forma mais clara possível o que considero o objeto da
Ética. vo u apresentar a ntes vá rias expressões mais o u menos
si nônimas , cada uma das quais poderia s ubstituir a definição ante,ior
e ao enumerá-las pretendo o bter o mesmo tipo de efeito que Galton
o bteve quando colocou na mesma placa várias fotografias de
diferentes rostos com o fi m de o bter a imagem dos traços típicos
que todos eles compa1tilhava m . Mostrando essa fotografia coletiva ,
pode rei fazer ver qual é o típico - digamos - rosto chinês . Deste
modo , se vocês olharem através da série de sinônimos que vou
apresentai; serão capazes de, es pero , ver os traços característicos
que todos têm em comum e que são característicos da Ética. Ao
invés de dizer que "a Ética é a investigação sobre o que é bom",
poderia ter dito que a Ética é a investigação sobre o valioso, o u
sobre o q u e rea lmente impo1ta, ou ainda , poderia t e r dito q u e a
Ética é a investigação so bre o s ignificado da vida , ou daquilo que
fa z com que a vida mereça ser vivida , ou sobre a maneira correta de
viver. Creio que se observarem todas essas frases, então terão uma
idéia aproximada do que se ocupa a Ética . A primeira coisa que nos
chama a atenção nessas expressões é que cada uma delas é usada,
Conferência sobre Ética. - Ludwig Wingenstein 217
similaridade . E quando dizemos "A vida deste homem era valiosa " ,
não o entendemos no mes mo sentido que se falássemos de alguma
jóia va liosa, mas parece haver algum tipo de analogia. Deste modo,
todos os termos religiosos parecem ser usados como s ímiles ou
alegorias. Quando falamos de Deus e de que ele tudo vê e quando
nos ajoelhamos e oramos. todos os nossos termos e ações parecem
ser pa rtes ele uma grande e completa alegoria que o representa
como um ser humano ele enorme poder cLtja graça tentamos cativai;
etc .. etc. Mas esta alegoria descreve também a experiência que acabo
ele aludir. Porque a primeira delas é, segundo creio, exatamente aquilo
a que as pessoas se referem quando dizem que Deus criou o mundo;
e a experiência ela segura nça absoluta tem sido descrita dizendo
que nos sentimos seguros nas mãos de Deus. Uma terceira vivência
dess e tipo é a ele sentir-se culpado e pode ser descrita também pela
fr ase: Deus condena nossa conduta. Dessa forma parece que, na
linguagem Ética e religiosa. consta ntemente usamos s ímiles. Mas
um símile eleve ser símile de algo. E se posso clesa·ever um fato
mediante um símile, elevo também ser capaz de abandoná-lo e
descrever os fatos sem sua aj uda. Em nosso caso , logo que tentamos
deixar de lado o símile e enunciar diretamente os fatos que estão
atrás dele. deparamo-nos com a ausência de tais fatos. Assim, aquilo
que, num primeiro momento , pareceu ser um s ímile, manifesta-se
agora como um mero sem sentido . Talvez para aquele que - como
cu. por exemplo - viveu as três experiências que mencionei (e podia
acrescentar outras) elas parecem ter, em algum sentido, va lor
intrínseco e absoluto . Mas. desde o mo mento em que digo que são
ex periências, certamente, são também fatos: aconteceram num lugar
e duraram certo tempo e, por conseguinte, são clescritiveis. Em
contin uação ao que disse há poucos mi nutos , devo admitir que
carece de sentido afirmar que têm valor absoluto. Precisarei minha
argumentação cli zenclo : "é um paradoxo que uma experiência, um
fato. pareça ter valor so brenatural." Há uma via pela qual sinto-me
t e ntado a solucionar este paradox o . Permitam-me considerar,
novamente. nossa primeira experiência de assombro diante da
ex istência cio mundo clescrevenclo-a ele forma ligeiramente diferente.
Conferência sobre Ética - Ludwig Winge rmein
223
Todos sabemos o que na vida cotidiana poderia denominar-se um
milagre. Obviamente é, simplesmente, um acontecimento de tal
natureza que nunca tínhamos visto nada parecido com ele.
Suponham que esse acontecimento ocorreu. Pensem no caso de
que em alguém de vocês cresça uma cabeça de leão e comece a
rugir. Certamente isto seria uma das coisas mais extraordinárias que
sou capaz de imaginar. T ão logo nos tivéssemos recomposto da
surpresa, o que eu sugeriria seria buscar um médico e investigar
cientificamente ·o caso e, se não pelo fato de que isto causa1ia
sofrimento, mandaria fazer uma dissecação. Onde estaria então o
milagre? Está claro que, no momento em que olhamos as coisas
assim, todo o milagroso haveria desaparecido; a menos cjue
entendamos por este termo simplesmente um fato que ainda não
tenha sido explicado pela ciência, coisa que significa por sua vez
que não temos conseguido agrupar este fato junto com outros num
sistema científico. Isto mostra que é absurdo dizer que "a ciência
provou que não há milagres" . A verdade é que o modo científico de
ver um fato não é vê-lo como um milagre. Vocês podem imaginar o
fato que puderem e isto não será em si milagroso no sentido absoluto
do termo. Agora nos damos conta de que temos utilizado a palavra
"milagre" tanto num sentido absoluto como num relativo. Agora,
vou descrever a experiência de assombro diante da existência do
mundo dizendo: é a experiência de ver o mundo como um milagre.
Sinto-me inclinado a dizer que a expressão lingiiistica correta do
milagre da existência do mundo - apesar de não ser uma proposição
na linguagem - é a existência da própria linguagem. Mas, então, o
que significa ter consciência deste milagre em certos momentos e
não em outros? Tudo o que disse ao mudar a expressão do milagroso
de uma expressão por meio da linguagem pela expressão da
existênciada linguagem é, mais uma vez, que não podemos expressar
o que queremos expressar e que tudo o que dizemos sobre o
absolutamente milagroso continua carecendo de sentido. Para
muitos de vocês a resposta parecerá clara: bem, se certas experiências
nos levam constantemente a atribuir-lhes uma qualidade que
chamamos valor absoluto ou ético e importante, isto somente
224 E 1 1c;\ e lmxuagen, - U rn a 1 11tro d uç à.o a o Tra.cr,11.rus de W1ngenstein
mostr;i que ao que nos referimos com tais palavr;is não é um sem
sentido. que depois de tudo , o que significamos ao dizer que uma
ex periência tem valor absoluto é simplesmente um tàto como
qualquer outro e tudo se reduz a isto e que ainda não encontramos
a análise lógica correta daquilo que queremos dizer com nossas
expressões éticas e religiosas. Sempre que me salta isto aos olhos,
de repente vejo com clareza, como se se tratasse de um lampejo,
não somente que nenhuma descrição que possa imaginar seria apta
para descrever o que entendo por valor absoluto, mas que rechaçaria
ab inicio qualquer descrição significativa que alguém pudesse
possivelmente sugerir em razão de sua significação. Em outras
palavras, vejo agora que essas expressões carentes de sentido não
careciam de sentido por não ter ainda encontrado as expressões
corretas, mas sua falta de sentido constituía sua própria essência.
I s to porque a ú n i ca co isa que eu pretendia com e las e ra,
precisamente, ir além do mundo, o que é o mesmo que ir além da
linguagem significativa. Toda minha tendência - e creio que a de
todos aqueles que tentaram alguma vez escrever ou falar de Ética
ou Religião - é correr contra os limites da linguagem. Esta corrida
contra as paredes de nossa gaiola é perfeita e absol utamente
desesperançada. A Ética, na medida em que brota do desejo de dizer
algo sobre o sentido último ela vida, so bre o bem absoluto , o
absolutamente valioso, não pode ser uma ciência. O que ela diz
nada acrescenta, em nenhum sentido, ao nosso conhecimento, mas
é um testemunho de uma tendência do espírito humano que eu
pessoalmente não posso senão respeitar profundamente e que por
nada neste mundo ridicularizaria.