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Nº 507 | Ano XVII | 19/6/2017

Gênero e
violência
As vulnerabilidades
de mulheres e LGBTs

Entrevistados
Gabriel Galli
Ramiro Figueiredo Catelan
Lola Aronovich
Guilherme Gomes Ferreira
Leia também Jane Felipe de Souza
■ Alain Naze
Juliana Borges
■ Tiaraju D’Andrea Adolfo Pizzinato
■ Antônio Carlos Rafael Barbosa Ângelo Brandelli Costa
■ Josme Fortes - Konhko Fernando Del Corona
EDITORIAL

Gênero e violência – Um debate sobre a


vulnerabilidade de mulheres e LGBTs

A
discussão sobre gênero, sexualidade e iden- lher, agressor-ofendida.”
tidade se intensificou no final do século 20. O professor e psicólogo Ângelo Brandelli Costa
Em conexão a esses temas cada vez mais em destaca que “é fundamental reconhecer discrimina-
voga, há uma questão que merece destaque por evi- ção contra diversidade como violação de direitos” e
denciar a vulnerabilidade das pessoas envolvidas: que a representação social negativa e a demarcação
a violência que decorre do gênero. A esse assunto a das sexualidades não heterossexuais como diferen-
revista IHU On-Line dedica esta edição. tes, anormais e negativas são matriz do preconceito.
Quando se fala em gênero e violência, a associa-
Alinhado ao tema desta edição, o crítico de cine-
ção imediata é a mulher como vítima e o homem
ma Fernando Del Corona analisa o documentá-
como agressor, em razão da histórica opressão
rio Laerte-se, de Eliane Brum e Lygia Barbosa da
que elas sofrem. Há também outros segmentos
Silva, que expõe o lado vulnerável da cartunista La-
que se apresentam sob risco a diversas formas de
erte, que vive fortemente sob os holofotes nacionais
preconceito e de desrespeito à diversidade, por
desde que assumiu sua identidade de mulher trans
exemplo, pessoas LGBTs.
no final dos anos 2000.
O debate ora proposto inicia-se com um artigo
Completam a edição as entrevistas com o kain-
do jornalista Gabriel Galli e do psicólogo Ra-
gang Josme Fortes, estudante de Pedagogia, que
miro Figueiredo Catelan acerca dos equívocos
aposta na garantia e no acesso à educação como
e das disputas que incidem sobre conceitos em
fortalecimento dos integrantes de sua aldeia e de
constante transformação. O texto é complementa-
seus modos de vida; com o professor Alain Naze,
do por um oportuno glossário.
que analisa perspectivas em comum nos pensa-
2 A primeira entrevista é com a professora e blo- mentos de Pier Paolo Pasolini e Walter Benjamin;
gueira Lola Aronovich, que se tornou uma re- com o doutor em Sociologia Tiaraju D’Andrea,
ferência na internet para milhares de mulheres que analisa as principais transformações ocorridas
em temas relacionados a feminismo. A populari- na periferia paulistana em duas décadas e meia; e
dade, a contundência e a natureza de seus textos com o professor Antônio Carlos Rafael Barbo-
despertaram muito ódio, tanto que ela foi alvo de sa, que analisa a estrutura dos coletivos de crime
mentiras e ofensas, além de ameaçada de estupro que se instalam nas periferias. Também pode ser
e morte. Mas não se calou. lido o artigo de Bruno Lima Rocha, que revisi-
O assistente social Guilherme Gomes Fer- ta o clássico de Aníbal Quijano A Colonialidade do
reira trata do sistema prisional, ambiente onde Poder, Eurocentrismo e América Latina.
as violências motivadas por gênero são potenciali- A revista IHU On-Line estará disponível na
zadas, o que resulta em agressões para mulheres, segunda-feira, a partir das 17h, nesta página, nas
travestis, pessoas trans e gays. versões html, pdf e ‘versão para folhear’. A edição
A professora Jane Felipe de Souza defende impressa circulará na terça-feira, no campus da
que qualquer tema seja discutido em aula, incluin- Unisinos São Leopoldo, a partir das 8h.
do gênero, sexualidade e respeito à diversidade, A todas e a todos, uma boa leitura e uma exce-
pois nem sempre as famílias conseguem lidar com lente semana.
todos os assuntos, mas essa perspectiva gera rea-
ções contrárias.
Para a feminista negra Juliana Borges, não se
pode pensar em políticas públicas sem o devido
recorte racial. Ela afirma que violência é fruto do
sexismo e não se pode indissociá-la do racismo,
quando a maioria das mulheres que sofrem agres-
sões são negras.
Para o professor e psicólogo Adolfo Pizzina-
to, não há dúvida de que a violência de gênero
deveria ser eliminada ou radicalmente transfor-
mada. “Porém, a forma que propomos de con-
tribuir para o debate é ir além de atrelamentos Foto: Marcos Gonzalez
dicotômicos, tais como: bom-mau, homem-mu- Valdes/Flickr CC

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Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Josme Fortes – Konhko: A força política da Indigineidade
9 ■ Alain Naze: Ecos da crítica de Pasolini à modernidade no pensamento de Benjamin
16 ■ Tema de Capa | Gabriel Galli; Ramiro Figueiredo Catelan: Entre equívocos e disputas:
conceitos sobre gênero e sexualidade em constante transformação
22 ■ Tema de Capa | Lola Aronovich: Feminismo é necessário e urgente
27 ■ Tema de Capa | Guilherme Gomes Ferreira: Mulheres, travestis, pessoas trans e gays
encarcerados enfrentam mais violências que os demais detentos
33 ■ Tema de Capa | Jane Felipe de Souza: Escolas precisam debater equidade de gêneros
36 ■ Tema de Capa | Juliana Borges: Não se pode pensar em políticas públicas sem o devido
recorte racial
40 ■ Tema de Capa | Adolfo Pizzinato: Os gêneros são apenas efeitos de verdade
45 ■ Tema de Capa | Ângelo Brandelli Costa: É fundamental reconhecer discriminação contra
diversidade como violação de direitos
50 ■ Tema de Capa | Fernando Del Corona: Eu Laerto, tu Laertas...
54 ■ Tiaraju D’Andrea: Violência, pobreza, cultura e potência. A periferia e as tentativas de trans
formação da realidade
58 ■ Antônio Carlos Rafael Barbosa: Criminalidade nas periferias segue lógica de 3
empreendimentos liberais
62 ■ Crítica Internacional | Bruno Lima Rocha: Revisitando Aníbal Quijano e a colonialidade
do poder na América Latina
64 ■ Publicações | Moysés Pinto Neto: Identidade de Esquerda ou pragmatismo Radical?
67 ■ Outras edições

Diretor de Redação Atualização diária do sítio


Inácio Neutzling Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia
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Gustavo Guedes Weber (jacintos@unisinos.br)

EDIÇÃO 507
TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias

Legislação ambiental é moeda de troca na


crise política
“O que travava a ampliação deles para a Amazônia? A legislação am-
biental. Então, o que faz o governo? Encomenda MPs. Nesse negócio estão
envolvidos prefeitos, grandes grupos, fazendeiros, os quais são todos liga-
dos ao agronegócio”.
Mario Mantovani, geógrafo e diretor de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica.

Trump, a deserção política, a bravata retórica


e um tremendo ‘erro’ no sentido jurídico
“Não faz o mínimo sentido discutir o que poderia ser algum ‘tipo de meta
condizente para os EUA’. O mais irônico é que o Acordo de Paris foi o pri-
meiro, após 21 Conferências das Partes - COPs, que não resultou em qual-
quer ‘imposição’”.
José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São
Paulo – IEE-USP.

4
O judiciário partidário e a esquerda sem
narrativa
“Está claro que houve dinheiro da Odebrecht, da JBS, e que tanto a cam-
panha da Dilma quanto a do Aécio foram campanhas de centenas de mi-
lhões de reais que só podem ser bancadas pelo poder econômico, e esse
poder exige contrapartidas”.
Antonio Martins, jornalista e editor do sítio Outras Palavras.

EUA causam um baque nas negociações


climáticas e serão um ‘elefante’ na COP 23
“O Acordo de Paris não é desigual para os EUA exatamente porque
é universal e, ao mesmo tempo, quem ditou o que vai cortar, em que e
quando foram os próprios Estados Unidos quando entregaram suas me-
tas voluntárias”.
Maureen Santos, coordenadora do Programa de Justiça Ambiental da Fundação Heinrich Böll Brasil

Biopolítica e a nova cultura de respeito aos


direitos humanos dos pacientes
“No Estado racista, alguns grupos, por critérios biológicos, como mistura de
raças, são tratados de forma distintamente inferior. Sendo essa uma das fun-
ções do racismo do poder político, a de fragmentar a população, outra função
é a de estabelecer uma relação entre a morte de alguns e a vida de outros”.
Aline Albuquerque de Oliveira, professora da Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasí-
lia e do Curso de Especialização em Bioética da Cátedra UNESCO de Bioética

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REVISTA IHU ON-LINE

Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias

Número de mulheres 1º Dia Mundial dos Me desculpe, Haddad,


vítimas de agressão Pobres –Mensagem do mas o senhor não
doméstica cresceu 61% Papa Francisco entendeu nada de Junho
em dois anos de 2013

O percentual de mulheres “Convido a Igreja inteira “Me desculpe, Haddad,


que se identificaram como e os homens e mulheres de mas o senhor não entendeu
vítima de violência do- boa vontade a fixar o olhar, nada de Junho de 2013. A
méstica subiu 61% de 2015 neste dia, em todos aqueles lista de razões para Junho
a 2017, segundo a sétima que estendem as suas mãos eclodir é imensa, assim
edição do Relatório Violên- invocando ajuda e pedin- como a lista de erros do PT.
cia Doméstica e Familiar do a nossa solidariedade. Haddad não consegue en-
contra a Mulher, realizado São nossos irmãos e irmãs, tender Junho porque Junho
pelo instituto de pesquisa criados e amados pelo único se enfrentou contra todo o
DataSenado, em parceria Pai celeste”, afirma o Papa establishment, o que incluía
com o Observatório da Mu- Francisco, no dia 13-6-2017, o seu partido”, escreve Gui-
lher contra a Violência. festa de Santo Antônio. lherme Kranz, militante do
A reportagem é de Marianna Rosalles, A mensagem foi divulgada pela Sala Coletivo às Ruas.
publicada por Brasil de Fato, repro- de Imprensa do Vaticano e reprodu- O artigo foi publicado no site Esquerda
duzida no sítio do IHU, disponível em zida no sítio do IHU, disponível em Diário e reproduzido no sítio do IHU,
http://bit.ly/2rz2tIi http://bit.ly/2s8YZel disponível em http://bit.ly/2sAy904
5

Os robôs acabarão com Como os novos A esquerda atual.


os empregos? movimentos eclesiais Entrevista com o
estão mudando pensador belga
a Igreja? Bruno Bosteels

“É certo que a automação e “Os novos movimentos ecle- “O que a esquerda, muitas
os robôs eliminarão muitas siais não são, aos olhos de vezes, fez frente à derrota, por
tarefas e postos de trabalhos. Francisco, as ‘elites’ especiais se tratar de uma experiên-
Mas só causarão quedas no da nova evangelização, como cia traumática, implica certo
número total de postos de eram nos papados de João bloqueio, certo desvio, certa
trabalho se – e apenas se – Paulo II e Bento XVI. Ao per- estratégia de evitar. Não se
não diminuir a jornada de cebê-las, Francisco critica trata de julgar negativamente
trabalho, e também se forem explicitamente qualquer ten- essas respostas; cada pessoa
mantidas as políticas econô- dência sectária. Mas o pró- lida com esse passado da for-
micas atuais”, afirma Juan prio papa entende que esses ma como pode”, afirma Bruno
Torres López, economista es- movimentos estão produzin- Bosteels, conhecido por suas
panhol. do sacerdotes novos e muito traduções da obra de Alain
O artigo foi publicado na página El necessários”, constata Massi- Badiou e seus estudos no cam-
Diario reproduzida no sítio do IHU, mo Faggioli, professor de te- po da filosofia.
disponível em http://bit.ly/2siYTPB ologia e estudos religiosos na A entrevista é de Lucía Naser e Gabriel
Universidade Villanova. Delacoste, publicada por La Diaria,
O artigo foi publicado por Commonweal reproduzida no sítio do IHU, disponível
e reproduzido no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/2sj7DFq
em http://bit.ly/2s9c2wv

EDIÇÃO 507
ENTREVISTA

A força política da Indigineidade


O kaingang Josme Fortes, Konhko, aluno do curso de Pedagogia
da Unisinos, aposta na garantia e acesso à educação como
fortalecimento dos integrantes de sua aldeia e de seus modos de vida
Ricardo Machado

Q
uando Josme Fortes anda pelos grande não tinha mais como nos susten-
corredores da universidade de tarmos. Depois que meu pai e minha mãe
calças jeans, tênis e jaqueta é tão faleceram eu vim para cá”, complementa.
notado quanto qualquer outro aluno do Ainda que a vida próxima aos centros
campus. Quem o vê sentado à classe de urbanos reconfigure os modos de subsis-
uma das disciplinas do curso de Pedago- tência das comunidades indígenas, diante
gia nem mesmo imagina que há apenas do cenário de devastação de seus locais
seis anos ele vivia em uma aldeia indígena tradicionais acaba se tornando uma opção
Kaingang no interior do Rio Grande do
digna de sobrevivência material e cultural.
Sul, em Nonoai, e sequer falava português.
“Na nossa aldeia são mais de 50 famílias,
Em pouquíssimo tempo, Josme ou Ko-
sem contar os novos casamentos, o que vai
nhko, como é chamado no idioma de sua
deixando o espaço menor. Todo o caso,
etnia, aprendeu a falar português, entrou
6 estamos vivendo bem lá porque podemos
para a universidade e planeja se formar
cultivar nossa cultura”, comemora. Ao
em 2019. “Quando eu saí da minha aldeia
contrário do que o senso comum acredita,
eu não sabia falar português e mesmo uma
Josme não entrou para a faculdade para
de minhas professoras aqui na universida-
se tornar “branco”, mas para garantir que
de me perguntou como eu aprendi a falar
sua indigineidade permaneça e que seus
português. Essa é uma dificuldade que eu
descendentes possam ter mais força polí-
ainda tenho porque na minha aldeia eu fui
tica de viver e manter suas tradições. “Eu
alfabetizado em kaingang, mas eu preten-
não quero que os integrantes mais novos
do ir aprimorando o português para poder
da minha aldeia passem pelas mesmas
levar o conhecimento que eu adquiro aqui
dificuldades que eu, porque tenho muitas
para a minha comunidade”, conta Josme.
dificuldades, mas vou levando com a aju-
O intenso e radical avanço dos fazendei- da dos meus colegas”, pontua. “Eu penso
ros nas terras indígenas onde os Kaingang que para o futuro o que precisamos é de
viviam e vivem levou à escassez, conside- pessoas qualificadas para entender e aten-
rando seus modos de subsistência tradi- der as culturas diferenciadas. Nós como
cionais. “Quando eles [os fazendeiros] vão professores, educadores, precisamos co-
para lá, derrubam o mato para colocar boi nhecer as culturas para saber trabalhar
e jogam veneno no rio, que é de onde tirá- com elas”, sustenta.
vamos os peixes para nossa alimentação.
Quando eu era bem pequeno era só mato Josme Fortes – Konhko – é kain-
por tudo que era lado, mas quando saí era gang, estudante do curso de Pedagogia da
só fazenda”, explica. Josme foi o último fi- Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
lho de sua família a sair da aldeia, ficou lá Unisinos e morador da aldeia Kaingang
até a morte de sua mãe. “Nós viemos para Por Fi Ga.
esta aldeia urbana porque em nossa aldeia Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que caminhos tropolitana de Porto Alegre? mata, pois os fazendeiros derruba-
levaram sua vida de indígena ram todos os matos e poluíram tudo.
aldeado em Nonoai, no interior Josme Fortes - Konhko – Sou Quando eu era menor, morava no
do RS, a encontrar a vida de in- natural de Nonoai e quando tinha 36 meio da floresta e ali nós pegávamos
dígena aldeado na região me- anos saí de lá porque não tem mais frutas, caçávamos e pescávamos, de

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“Nós como professores,


educadores, precisamos
conhecer as culturas para
saber trabalhar com elas”

modo que quando eu cheguei por mesmo uma de minhas professoras IHU On-Line – Como é a esco-
volta dos 30 anos não existia mais aqui na universidade me perguntou la das crianças na aldeia?
essa natureza viva. Então nós viemos como eu aprendi a falar português.
Josme Fortes - Konhko – Lá na
para esta aldeia urbana porque em Essa é uma dificuldade que eu ainda
escola, que fica dentro da aldeia, eles
nossa aldeia grande não tinha mais tenho porque na minha aldeia eu fui
aprendem kaingang e português. A
como nos sustentarmos. Depois que alfabetizado em kaingang, mas eu
aula dentro da aldeia funciona do
meu pai e minha mãe faleceram eu pretendo ir aprimorando o portu-
primeiro ao quinto ano, todos jun-
vim para cá. guês para poder levar o conhecimen-
tos, mas com certeza conseguiremos
to que eu adquiro aqui para a minha
Antigamente, em São Leopoldo, ampliar para outras séries. Eu tra-
comunidade. Eu não quero que os
havia às margens da Rodovia BR-116 balho com o quarto e quinto ano e
integrantes mais novos da minha
um terreno destinado pela prefeitura tem o professor Dorvalino, da Uni-
aldeia passem pelas mesmas dificul-
às famílias indígenas, mas era muito versidade Federal do Rio grande do
dades que eu, porque tenho muitas
arriscado porque tem as crianças e Sul – UFRGS, que trabalha com o 7
dificuldades, mas vou levando com a
era perigoso. Agora tem outra área no primeiro, o segundo e o terceiro ano.
ajuda dos meus colegas, porque as-
bairro Feitoria, retirado do centro da Lá, as crianças são alfabetizadas em
sim como tem professores que nos
cidade, que para nós é mais confortá- duas línguas desde o primeiro ano,
ajudam, tem professores que não são
vel, sobretudo por conta das crianças. em kaingang e português. Na verda-
assim. Eu comecei o curso no ano
de eles já saem alfabetizados da fa-
passado e minha previsão de forma-
mília, o que eles aprendem na escola
IHU On-Line – Essa área que tura é para 2019.
é a escrever.
a prefeitura destinou para as
famílias indígenas era da pre-
IHU On-Line – Como se chama
feitura? Como está a situação? IHU On-Line – Como é a orga-
e como é a vida na comunidade
nização da aldeia de vocês?
Josme Fortes - Konhko – A ter- indígena de que tu faz parte?
ra em que estamos era da prefeitu- Josme Fortes - Konhko – Todos
Josme Fortes - Konhko – A co-
ra, mas foi passada à União e é re- os anos, na semana do índio, nós pre-
munidade se chama Por fi Ga, que
conhecida como território indígena. paramos um evento em que fazemos
significa “Tovaca”, que diz respeito a
Eu não sei exatamente o número de rituais. As escolas do município vão
um tipo de madeira que tem na re-
crianças que moram na aldeia, mas participar, as universidades como a
gião da aldeia, uma espécie de pal-
são mais de 50 famílias, sem contar UFRGS e a Feevale sempre partici-
meira. Nós não temos muitas difi-
os novos casamentos, o que vai dei- pam, exceto a Unisinos, o que não dei-
culdades na aldeia porque seguimos
xando o espaço menor. Todo o caso, xa de ser estranho porque é a univer-
nossas tradições, e à medida que
estamos vivendo bem lá porque po- sidade onde estou estudando que não
vamos aprendendo com os brancos
demos cultivar nossa cultura. foi. Integrantes da minha aldeia sem-
eles também aprendem conosco.
pre vêm fazer palestra aqui [na Unisi-
Aqui na universidade eu sempre nos] e pedi para a minha professora
IHU On-Line – Como foi
comento com as professoras que eu para ela liberar a turma para assisti-la
aprender português e como
estou aqui para aprender com elas, e ela não liberou, mas isso é importan-
está sendo a experiência como
mas elas também têm que aprender te porque os meus colegas que não são
estudante na Unisinos?
comigo. Digo isso porque tem umas índios têm que saber sobre a minha
Josme Fortes - Konhko – Eu que não querem aprender comigo cultura. Eu conheço minha cultura
estou fazendo Pedagogia aqui na porque acham que são doutoras e porque vivo na minha comunidade,
Unisinos. Quando eu saí da minha que não têm nada a aprender. Mas mas quem tem que aprender sobre ela
aldeia eu não sabia falar português e eu vou vencer e vou ir até o fim. são os outros que não são índios.

EDIÇÃO 507
ENTREVISTA

IHU On-Line – De onde vem conseguimos não só vender nossos IHU On-Line – Como tu olhas
o sustento dos integrantes da artesanatos, como comprar alimen- para o futuro?
aldeia? tos e roupas quando chega o inverno.
Josme Fortes - Konhko – Es-
Josme Fortes - Konhko – O sas coisas que estão acontecendo, de
principal recurso vem da venda de IHU On-Line – Como se carac- enchentes e coisas assim, somos nós
nossos artesanatos e cada família teriza o avanço dos fazendeiros quem provocamos. Nós provocamos
recebe uma cesta básica de alimento na região que tu morava? a natureza e agora ela cobra de nós.
todo o mês, mas parece que essa do- Eu penso que para o futuro o que
Josme Fortes - Konhko – Prin-
ação continuará somente até o final precisamos é de pessoas qualificadas
cipalmente devido à pecuária e às
do ano, depois vão tirar. para entender e atender as culturas
granjas. Quando eles vão para lá,
diferenciadas. Como sempre falo,
derrubam o mato para colocar boi e
nós somos discriminados até com
jogam veneno no rio, que é de onde
“Estamos vi- tirávamos os peixes para nossa ali-
mentação. Quando eu era bem pe-
um olhar, até mesmo uma palavra
é capaz de machucar uma pessoa.
vendo bem lá queno era só mato por tudo que era Por isso sempre digo que nós como
professores, educadores, precisamos
lado, mas quando saí era só fazenda.
porque pode- conhecer as culturas para saber tra-
balhar com elas. Quando eu conver-
mos cultivar IHU On-Line – Os teus pais so com meu colega que estudou na
UFRGS ele comenta que também
nossa cultura” ainda estão vivos?
Josme Fortes - Konhko – Não.
passou por isso lá e eu não acredita-
va nele, mas quando entrei aqui sen-
Ambos faleceram. Eu fiquei lá por- ti o que ele sentia.
que estava cuidando da minha mãe,
IHU On-Line – E a vida próxi- A gente precisa não olhar para a
era o único filho dela que continuava
mo à cidade é melhor do que a diferença e discriminar, precisamos
na aldeia. As raízes desta aldeia em
vida na aldeia em Nonoai? saber trabalhar com culturas dife-
8 São Leopoldo (na região metropo-
Josme Fortes - Konhko – Aqui litana de Porto Alegre, RS) foram rentes e entender que não é fácil,
é melhor porque conseguimos ven- plantadas pela minha família, foram porque se eu levar um branco para
der nossos artesanatos e isso é im- eles que vieram para cá vender arte- a minha aldeia e querer que ele fale
portante para nossa sobrevivência. sanato e acamparam às margens da como índio ele também não vai con-
Lá na aldeia, em Nonoai, a cidade BR-116. A prefeitura percebeu que seguir, também terá dificuldade. Um
fica muito longe, então se não temos eles estavam em situação de risco e dos problemas é que quando eu che-
dinheiro para pegar o ônibus para o conseguiram essa terra onde mora- go aqui [na universidade] querem
centro da cidade não tem como ven- mos. Depois que minha mãe faleceu que eu aprenda na marra as coisas.
der, por isso aqui é melhor. Vivendo e eu fiquei sozinho, o meu irmão me O educador tem que se colocar nos
mais próximo das zonas urbanas trouxe para cá. dois lados. ■

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Ecos da crítica de Pasolini à modernidade


no pensamento de Benjamin
Alain Naze analisa perspectivas em comum nos dois pensadores,
que veem o passado revestido de uma força revolucionária
capaz de irromper a homogeneidade do presente
Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos | Tradução: Vanise Dresch

A
ssim como Pier Paolo Pasolini, seria sinônimo de obscurantismo”. “A
Walter Benjamin era um pensa- concepção do tempo em que se assenta
dor que não renegava o passado essa modernidade é, de fato, uma con-
em benefício do presente. Como se o cepção linear e vazia, segundo a qual o
presente, por ser mais novo, represen- tempo é apenas o receptáculo onde se
tasse a vanguarda, o moderno por es- inserem os acontecimentos”, completa.
sencial. É com essa perspectiva que o O filósofo lembra que os riscos, muitas
filósofo Alain Naze aproxima a produ- vezes, em uma perspectiva historio-
ção cinematográfica de Pasolini aos es- gráfica, é que se conte apenas a histó-
critos benjaminianos. Para ele, embora ria dos vencedores. “Em consonância
em abordagens distintas, “para os dois com uma concepção benjaminiana da
autores, o passado reveste-se de uma história, Pasolini recusa que as lutas de
força revolucionária”. O que é diferente emancipação tomem as formas de uma
de um pensamento saudosista ou con- 9
história dos vencedores”, compara.
servador, pois compreende que ambos
não resgatam “um passado idêntico, já Alain Naze é professor de Filoso-
vivido”, e sim fazem “ressurgir no pre- fia na North High School, em M’tsan-
sente o que vem justamente do passado gadoua, em Mayotte (departamento
sem nunca ter sido vivido”. “Para Ben- ultramarino francês, situado entre o
jamin e Pasolini, é por causa de uma Oceano Índico e o Canal de Moçambi-
marcha impiedosa do ‘progresso’ na que, na porção mais oriental do Arqui-
história que são rejeitados como restos pélago das Comores). Entre seus livros
os elementos do passado tidos como publicados, destacamos Temps, récit et
ultrapassados, os quais os autores con- transmission chez W. Benjamin et P.P.
sideram ser capazes de interromper a Pasolini (L’Harmattan, 2011), Jacques
catástrofe”, completa. Demy. L’enfance retrouvée (L’Harmat-
tan, 2014). Il a aussi dirigé un ouvrage
Na entrevista, concedida por e-mail à
collectif: Walter Benjamin. Politiques
IHU On-Line, Naze ainda destaca que
de l’image (L’Harmattan, 2015). Agora
os pensadores não fazem uma espécie
de crítica reacionária à modernidade. em 2017 lança seu novo livro: Mani-
Emitem, segundo ele, uma “crítica à feste contre la normalisation gay, Edi-
concepção progressista da história que tions La Fabrique.
a caracteriza, segundo a qual o passado Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a impor- nema italiano e europeu? Alain Naze – É difícil julgar a
tância da obra cinematográfica influência efetiva de Pasolini no ci-
de Pasolini1 no contexto do ci- nema de sua época, seja no cinema
simplicidade dos valores tradicionais do povo italiano ou, de modo mais geral, no
simples. Dirigiu os filmes da Trilogia da Vida: Il
1 Pier Paolo Pasolini (1922-1975): cineasta italia- Decameron, I Raconti di Canterbury e Il fiore del- cinema europeu. De fato, a grande
no, poeta e escritor. Autor de uma crítica profunda le mille e una notte. Para ler mais sobre Pasolini,
e fina, apontava a homologação geral em nome acesse a edição 508 da IHU On-Line, intitulada diversidade de seus filmes nos im-
do consumo, a perda dos valores tradicionais e a Pier Paolo Pasolini Um trágico moderno e sua nos- pede de ter uma visão unificadora de
morte da civilização do interior. Seus filmes são talgia do sagrado, disponível em ihuonline.unisi-
uma crítica à sociedade burguesa que matou a nos.br/edicao/504. (Nota da IHU On-Line) sua obra. A sucessão de “períodos”

EDIÇÃO 507
ENTREVISTA

está ligada ao fato de que Pasolini assinatura. É evidente, por exem- intermédio de um cinema capaz de
não parava de questionar suas pró- plo, que a ruptura que ele intro- produzir efeitos políticos por meios
prias posições teóricas e, indisso- duz em relação ao neorrealismo é estritamente cinematográficos (e es-
ciavelmente, suas posições técnicas. crucial e impregna toda a sua fil- tritamente adaptados à época consi-
Isso não significa que ele renegas- mografia – principalmente depois derada). Nesse sentido, parece-me
se suas realizações anteriores, mas de seus dois primeiros filmes, que que ele inaugurou um cinema em
apenas considerava que o momento ainda devem muito a uma estética que as forças políticas são intrin-
de realização de um filme era capi- neorrealista. Desse ponto de vista, secamente cinematográficas. No
tal: do ponto de vista de sua própria Pasolini desenvolve um cinema da contexto francês, um cineasta como
pesquisa (ele confessa, assim, la- montagem, em oposição a um cine- Lionel Soukaz3, por exemplo, pare-
mentar ter filmado Mamma Roma ma do plano-sequência. Essa esco- ce ter sido capaz de retomar esse
(1962), porque, segundo ele, esse lha se origina em sua rejeição ab- gesto pasoliniano, inclusive em sua
filme seria apenas uma repetição soluta do naturalismo: ele rejeita a dimensão provocativa.
de Accatone (1961)), mas também, ideia de uma reprodução fluida da
e sobretudo, em função da época de realidade, substituindo-a pelo cor-
sua realização. te operado pela montagem.
Sabemos o quanto foi importante
sua “abjuração” dos filmes que for-
Como sempre, em Pasolini, essa
escolha técnica está ligada à sua “A grande di-
mavam a Trilogia da Vida2: o gesto
de abjurar esses três filmes foi to-
concepção global da realidade. Con-
tra o recurso ao plano-sequência, versidade de
talmente comandado pela evolução
da sociedade italiana. Naquele mo-
Pasolini privilegia o close up, os
ângulos frontais, que constituem, seus filmes
mento, ele considerava que a “falsa
tolerância” concedida pelo poder
para ele, uma maneira de reforçar
a dimensão sagrada da realidade. nos impede
havia tornado inútil a luta pela libe-
ração sexual que ele pretendia travar
Os corpos são, assim, sacraliza-
dos, como no caso de Accatone.
de ter uma vi-
10 com esses três filmes. Portanto, não
é uma recriminação cinematográfica
Porém, a preocupação de Pasolini
era mesmo com a realidade em si,
são unificadora
que ele faz à Trilogia da Vida, mas
uma recriminação política.
e não com uma ortodoxia em suas
escolhas técnicas, como transparece
de sua obra”
claramente no seu modo de filmar
Não há, então, uma forma cine-
O Evangelho segundo São Mateus
matográfica ideal (e como se fosse
(1964). Nesse caso, na verdade, a IHU On-Line – Em suas pes-
atemporal) que, em Pasolini, bus-
matéria a ser filmada não eram os quisas, o senhor faz uma apro-
caria progressivamente abrir um
subúrbios de Roma, mas uma espé- ximação da cinematografia e
caminho conforme evoluções que às
cie de realidade em si sagrada. As- da poesia de Pasolini com a
vezes beirariam inversões, mas sim a
sim, Pasolini afastou-se de sua ma- obra de Benjamin4. Que diá-
busca de um cinema capaz de produ-
neira – poder-se-ia dizer – religiosa logo se estabelece entre essas
zir efeitos no presente. Para resumir,
de filmar, no caso de Accatone, para duas figuras tão marcantes do
o cinema de Pasolini visa a provocar
adotar um estilo mais épico, menos século XX?
uma irrupção possivelmente messiâ-
hierático, e evitar uma espécie de
nica do passado em nosso presente.
pleonasmo cinematográfico.
E todo o problema da época para ele 3 Lionel Soukaz (1953): é um diretor de cinema
se deve ao fato de que os meios des- A dificuldade de avaliar a impor- francês. (Nota da IHU On-Line)
4 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão.
sa intrusão do passado são sempre tância de Pasolini quanto à sua Foi refugiado judeu e, diante da perspectiva de
ser capturado pelos nazistas, preferiu o suicí-
ameaçados de serem digeridos pelo influência sobre este ou aquele ci- dio. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria
tempo presente e, assim, anulados nema, como se vê, deve-se, primei- Crítica, foi fortemente inspirado tanto por auto-
res marxistas, como Bertolt Brecht, como pelo
por homogeneização. ramente, ao fato de que ele não faz místico judaico Gershom Scholem. Conhecedor
profundo da língua e cultura francesas, traduziu
escolhas técnicas definitivas, estas para o alemão importantes obras como Quadros
A assinatura de Pasolini sendo sempre subordinadas à rea- parisienses, de Charles Baudelaire, e Em busca do
tempo perdido, de Marcel Proust. O seu trabalho,
lidade a ser filmada, à época consi- combinando ideias aparentemente antagônicas
Isso não significa que não possa- derada (tanto a da trama quanto a do idealismo alemão, do materialismo dialético
e do misticismo judaico, constitui um contributo
mos dizer nada a respeito das esco- da recepção do filme) etc. Resta, en- original para a teoria estética. Entre as suas obras
lhas cinematográficas que permeiam mais conhecidas, estão A obra de arte na era da
tão, o gesto pelo qual o cineasta se sua reprodutibilidade técnica (1936), Teses sobre o
o conjunto do cinema de Pasolini e lançou na luta, demonstrando um conceito de história (1940) e a monumental e ina-
cabada Paris, capital do século XIX, enquanto A ta-
que constituem, por assim dizer, sua cinema capaz de agir sobre a reali- refa do tradutor constitui referência incontornável
dos estudos literários. Sobre Benjamin, confira a
dade, mas não pelo desvio de uma entrevista Walter Benjamin e o império do instan-
2 A Triologia da Vida se refere aos filmes Decame- ideologia laboriosamente posta em te, concedida pelo filósofo espanhol José Anto-
ron (1971), Mil e Uma Noites (1974) e Contos de nio Zamora à IHU On-Line nº 313, disponível em
Canterbury (1972). (Nota da IHU On-Line) imagens – bem pelo contrário, por http://bit.ly/zamora313. (Nota da IHU On-Line)

19 DE JUNHO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Alain Naze – Na verdade, no âm- forma limítrofe da língua (limítrofe trata-se de reavivar as potencialida-
bito de uma tese realizada na Uni- por ser estritamente oral, “hipótese des de um passado perdido, para tra-
versidade Paris VIII sob a orientação de laboratório”, dirá Pasolini) que zê-las para a nossa atualidade. Em
de Alain Brossat5, mas também nos seria o grito. Em seu interesse pe- outras palavras, para os dois auto-
dois volumes publicados que resul- las línguas locais (em oposição ao res, o passado reveste-se de uma for-
taram desse trabalho universitário italiano padrão), encontra-se o seu ça revolucionária, desde que não se
(Temps, récit et transmission chez interesse pelos corpos pobres, não queira resgatar um passado idêntico,
W. Benjamin et P.P. Pasolini, Paris, “homologados”, ainda não tornados já vivido (na forma da lembrança vo-
L’Harmattan, 2011), tentei estabe- horrendos pelo avanço do consumis- luntária em Proust6), mas, sim, fazer
lecer verdadeiras “passagens” entre mo. Assim, o “genocídio cultural”, ressurgir no presente o que vem jus-
Benjamin e Pasolini – “passagens” que leva as línguas locais e os corpos tamente do passado sem nunca ter
no sentido que Benjamin confere a de camponeses e subproletários a sido vivido (a lembrança involuntá-
esse termo em seu texto Paris, capi- uma destruição comum, encontraria ria em Proust).
tale du XIXe siècle. Não se tratava de um limite na sobrevivência dos sota-
Seria então na forma de promessa
uma abordagem comparatista, que ques, nas pronúncias – haveria nes-
messiânica que as duas vertentes do
teria tentado estabelecer semelhan- tes um passado persistente que ain-
dispositivo encontrariam a maior
ças e diferenças entre esses autores, da conseguiria se manifestar e que
consonância, sendo isso que as situa
proximidades e distâncias. Tratava- seria como o vestígio subterrâneo de
na lógica de uma história dos venci-
se bem mais de conceber de ma- uma história dos vencidos. Por de-
dos. Para Benjamin e Pasolini, é por
neira antidisciplinar o que podia se baixo da língua oficial, normatizada,
causa de uma marcha impiedosa do
constituir como um dispositivo ao ainda brilhariam faíscas do passado,
“progresso” na história que são re-
longo desse trabalho, um disposi- trazendo com elas fragmentos deste.
jeitados como restos os elementos
tivo Benjamin/Pasolini. Em outras
Podemos encontrar essa mesma do passado tidos como ultrapassa-
palavras, foram justamente “passa-
dimensão messiânica da língua, mas dos, os quais os autores conside-
gens” que tentei estabelecer entre
de uma forma muito diferente, em ram ser capazes de interromper a
eles, com o objetivo, antes de mais
Benjamin, mais especificamente na catástrofe, pelo menos se fizermos
nada, de fazer com que cada um
dos dois entrasse em um processo questão da tradução. Para Benja- com que desempenhem um papel 11
min, de fato, a linguagem adâmica anacrônico em nosso presente (toda
de alteração, de tornar-se outro. A
se perdeu, fragmentou-se; e, assim a obra de Pasolini é permeada por
intenção dessa pesquisa era mesmo
como Pasolini, que não postula um anacronismos). É nesse sentido que
que Pasolini e Benjamin pudessem
retorno ao mesmo desaparecido podemos dizer que ambos são “ca-
afetar-se reciprocamente.
(para este, as sobrevivências têm tadores da história”.
Foi então nesse contexto geral que uma dimensão espectral), Benja-
logo percebi que a ligação mais pro- min também não visa à reconstitui-
funda entre Benjamin e Pasolini di-
zia respeito à linguagem. Ambos le-
ção da língua original. A “tarefa do
tradutor”, segundo ele, consistiria
“A ligação mais
vantavam a questão de uma origem
da linguagem, o que geralmente os
em “fazer germinar, na tradução, a profunda en-
tre Benjamin
semente da linguagem pura” (WB,
fazia fugir da disciplina “linguística”, “La tâche du traducteur “, in Œuvres
tomando a forma, em Benjamin, da
questão da linguagem adâmica e,
1, Paris, Gallimard, 2000, p.255),
o que significa, na verdade, traçar e Pasolini di-
em Pasolini, aquela do “grito”. Suas
abordagens certamente não eram
um horizonte messiânico no qual a
tradução, sem reconstituir qualquer zia respeito à
idênticas, mas me pareciam conso-
nantes no sentido de que ambas de-
língua original, seria capaz de fazer
ressoar, precisamente em seu eco,
linguagem”
sembocavam numa forma de pensa- uma complementaridade não totali-
mento da história. Para simplificar, zável das diferentes línguas.
eu diria que Benjamin e Pasolini se IHU On-Line – De que forma
opunham a uma linguagem cuja fun- Passado e presente ambos os autores, Pasolini e
ção essencial fosse a comunicação. Benjamin, colocam em causa
Não é possível reproduzir aqui to- certa apologia à modernidade
Para Pasolini, a linguagem é antes das as mediações pelas quais esse como um processo absoluta-
de mais nada expressividade, e é nes- trabalho teve de passar, mas essa in- mente positivo?
se aspecto que não haveria diferença
trodução sobre a linguagem já pode
de natureza entre a língua (oral) e a
dar uma ideia da forma como um 6 Marcel Proust [Valentin Louis Georges Eugè-
corporeidade, o que explicaria essa ne Marcel Proust] (1871-1922): escritor francês
pensamento da história pode emer- célebre por sua obra À la recherche du temps per-
gir do dispositivo Pasolini/Benja- du (Em Busca do Tempo Perdido), publicada em
5 Alain Brossat (1946): professor de filosofia na sete volumes entre 1913 e 1927. (Nota da IHU
Universidade de Paris VIII. (Nota da IHU On-Line) min. Dos dois lados do dispositivo, On-Line)

EDIÇÃO 507
ENTREVISTA

Alain Naze – A resposta anterior ria que um salvamento do passado especificamente moderna que o ci-
já aborda um pouco essa questão, (uma recondução ao seu status de nema torna possível (ele vê diante
identificando o “progresso” (histó- sobrevivência) pode ser pensado. dele o exemplo do uso que o nazismo
rico) como “catástrofe”. Na verdade, Isso se encontra na concepção da faz do cinema), Benjamin compre-
nem Pasolini nem Benjamin emitem história em Benjamin, com o papel ende também a possibilidade de agir
uma crítica reacionária à moderni- central da “imagem dialética”, que no sentido da emancipação. Encon-
dade, mas essencialmente uma críti- permite que o passado se constitua tramos aqui a ideia que mencionei
ca à concepção progressista da histó- nesse “outrora” que surge em nosso anteriormente (falando então do ci-
ria que a caracteriza, segundo a qual “agora”, ou seja, que ele se atualize nema de Pasolini) das forças políti-
o passado seria sinônimo de obscu- em nosso presente; isso se encontra cas próprias do cinema como sendo
rantismo. A concepção do tempo em também, mutatis mutandis, em Pa- intrinsecamente corporais.
que se assenta essa modernidade é, solini, em seu uso do anacronismo.
de fato, uma concepção linear e va- O passado é assim reconduzido à sua
zia, segundo a qual o tempo é ape-
nas o receptáculo onde se inserem os
vitalidade, tornando-se capaz de in-
quietar nosso presente. “Benjamin e
Pasolini se opu-
acontecimentos. Nessas condições, o
passado é imediatamente ultrapas- Ora, é por intermédio do cinema
que Pasolini vai realizar essas expe-
sado, ou seja, findo. O passado, de
certa forma, constituiria a pele mor- riências de anacronismos, sobretu- nham a uma
linguagem cuja
ta do presente, e seu único mérito se- do, fazendo surgir, em filmes como
ria tornar possível o nosso presente As Mil e Uma Noites (1974), fisiono-
– o passado, portanto, só teria valor
pelo que constitui sua superação,
mias que não existiam mais em nos-
so mundo moderno, ou seja, usando função essen-
sendo esta sistematicamente conce-
bida como progresso.
um meio de comunicação especifica-
mente moderno. Do mesmo modo, cial fosse a co-
É esse desprezo pelo passado que
Benjamin reconhecerá que o cinema
e a técnica de modo geral podem se
municação”
12 Pasolini e Benjamin rejeitam, mas
tornar meios de emancipação. Nesse
nenhum dos dois defende a posição
aspecto, considerando, por exemplo,
de que “antes era melhor”. Trata-
que o cinema constitui a forma de
se, antes, de considerar a heteroge- IHU On-Line – De que manei-
uma estética do choque em adequa-
neidade das temporalidades que a ra as formas de vida apresen-
ção com a nossa época, Benjamin se
concepção progressista da história tadas na ficção, especialmente
situa no antípoda do antimodernis-
ignora. Em nome do quê, por exem- na obra de Pasolini, tensionam
mo tecnofóbico de Heidegger7. No
plo, poder-se-ia sustentar que uma as formas de vida positivistas
entanto, essa adequação não leva o
sociedade laica é preferível a uma hegemônicas que se estabelece-
meio cinematográfico a ser absor-
sociedade estruturada pelo religio- ram no século passado?
vido pela modernidade adotando
so? Em nome do quê, a não ser em
os valores desta, uma vez que, pelo Alain Naze – De modo geral, as
nome de uma modernidade centra-
contrário, é a compreensão dos me- formas de existência dominantes
da no ocidente? Foi esse desprezo
canismos modernos da subjetivação em nossa modernidade são incomo-
pelo passado que Pasolini viven-
que nos permite agir sobre eles. As- dadas, no cinema de Pasolini, pela
ciou, na Itália, no momento em que
sim, ao mesmo tempo em que per- simples ruptura com sua hegemonia
o neocapitalismo se instalava, vindo
cebe bem os efeitos da propaganda sem reserva. Em outras palavras, é
suplantar os modos de existência e
na maioria das vezes com a simples
os costumes culturais tradicionais –
7 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo ale- presentificação de formas anacrô-
esse desprezo se estendia até os pri- mão. Sua obra máxima é O ser e o tempo (1927). A
problemática heideggeriana é ampliada em Que nicas de existência que o cineasta
meiros envolvidos, e Pasolini falava é Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo consegue romper a uniformização
daqueles operários que preferiam se (1947) e Introdução à metafísica (1953). Sobre
Heidegger, confira as edições 185, de 19-6-2006, consumista. Pensem no elogio da
apresentar como estudantes. No ad- intitulada O século de Heidegger, disponível em
http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, inti- preguiça feito por Accatone, numa
vento dessa modernidade econômi- tulada Ser e tempo. A desconstrução da metafí- época em que o trabalho – repete-se
ca e cultural, o que se impõe é uma sica, disponível em http://bit.ly/ihuon187. Con-
fira, ainda, Cadernos IHU em formação nº 12, isso sem parar – se tornou um “va-
história dos vencedores, provocando Martin Heidegger. A desconstrução da metafísica,
que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem12,
lor”; pensem também nos sorrisos
o desaparecimento (“genocídio cul- e a entrevista concedida por Ernildo Stein à edi- desdentados que permeiam as aven-
tural”, dirá Pasolini) de tudo aquilo ção 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010,
disponível em https://goo.gl/dn3AX1, intitulada turas de Mil e Uma Noites, rompen-
que tem a forma do passado, tido O biologismo radical de Nietzsche não pode ser
minimizado, na qual discute ideias de sua confe-
do com os nossos hábitos ocidentais
como necessariamente obsoleto, fin-
rência A crítica de Heidegger ao biologismo de e modernos de percepção do corpo
do, por ser passado. Nietzsche e a questão da biopolítica, parte inte-
grante do ciclo de estudos Filosofias da diferença, asséptico do outro; pensem, por fim,
Nessas condições, é a partir de uma pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O na doméstica de Teorema, em con-
(des)governo biopolítico da vida humana. (Nota
concepção descontinuísta da histó- da IHU On-Line) tato com um mundo que ainda era

19 DE JUNHO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

rico em milagres (a cena da levita- marxista daria a entender a possi- reside justamente no fato de apre-
ção) etc. bilidade de uma superação (dialéti- sentar como formas de libertação
ca?) de tais contradições, ao passo aquilo que, na verdade, são ape-
Vemos, então, que Pasolini apos-
que Pasolini me parece manter irre- nas processos de normatização.
ta essencialmente na força do ana-
solutas, no mais das vezes, as oposi- Pasolini presenciou isso no que
cronismo para nos descolar das
ções, a fim de conservar a eventual diz respeito à suposta “liberação
formas de vida dominantes em
fecundidade destas. Parece-me que, sexual” dos anos 1960, mostran-
nossa época. Assim, em Pocilga
em relação ao século XX, o que ele do que muitas vezes ela tomou a
(1969), a personagem objetiva-
mais mostra é justamente certa forma de uma “injunção ao coito”.
mente mais escandalosa (a per-
homogeneidade que consiste em Hoje, pode-se presenciar uma con-
sonagem representada por Pierre
evacuar o diferente, o heterogêneo. tradição comparável em relação ao
Clémenti, que se entrega ao cani-
Compreende-se, assim, por que, casamento entre pessoas do mes-
balismo em um mundo sem tem-
num texto como Escritos Corsá- mo sexo, apresentado tantas ve-
po) causa talvez menos efeitos
rios, ele pode ter a visão anacrônica zes como o apogeu das lutas pela
no espectador do que o pequeno
de uma Europa sobre a qual paira a liberação homossexual, ao passo
burguês (representado por Je-
sombra de uma suástica – o que ele que corresponde bem mais a uma
an-Pierre Léaud) que se sacrifica
vê é um pouco uma Europa subme- normatização das formas de vida
à sua paixão devoradora pelos
tida ao paradigma do campo, não gay dentro das condições de um
porcos. Porque essa conduta, jus-
sem refletir certas posições contem- mundo ocidental centrado na hete-
tamente por escapar à normati-
porâneas de Giorgio Agamben8. rossexualidade. Encontramos aqui
zação burguesa, produz um efeito
exatamente aquela lógica de exclu-
de anacronismo, fazendo surgir o
Nessas condições, se existe uma são (tendo em pano de fundo uma
heterogêneo em nosso presente,
contradição na modernidade, ela lógica inclusiva, poderíamos dizer
enquanto a conduta do quebrador
no caso do casamento gay) que Pa-
de tabus, nas encostas do Etna, 8 Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. É solini havia evidenciado. No pre-
aparece mais como uma forma de professor da Facolta di Design e arti della IUAV
(Veneza), onde ensina Estética, e do College In- sente caso, as sociedades que não
vida pertencente a uma época fin- ternational de Philosophie de Paris. Formado em
Direito, foi professor da Universitá di Macerata, adotarem o casamento entre pesso-
da – e, neste caso, o passado não Universitá di Verona e da New York University, as do mesmo sexo é que serão con- 13
tem efeito, está desvitalizado, per- cargo ao qual renunciou em protesto à política do
governo estadunidense. Sua produção centra-se sideradas em breve como homofó-
deu sua força revolucionária. nas relações entre filosofia, literatura, poesia e,
fundamentalmente, política. Entre suas principais bicas, ou então aquelas e aqueles
obras estão Homo Sacer: o poder soberano e que se recusarem a praticar o co-
a vida nua (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A
linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, ming out é que serão acusados de
“No advento 2005), Infância e história: destruição da experi-
ência e origem da história (Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2006); Estado de exceção (São Paulo: Boi-
covardia. Ora, não estamos vendo,
novamente, que as sociedades mo-
dessa moder-
tempo Editorial, 2007), Estâncias – A palavra e o
fantasma na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. dernas ocidentais querem o triunfo
UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: Boitempo
de suas normas no mundo inteiro?
nidade eco-
Editorial, 2007). Em 4-9-2007, o sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU publicou a entrevista Pasolini falava de uma “homologa-
Estado de exceção e biopolítica segundo Giorgio
ção consumista” para designar esse
nômica e cul-
Agamben, com o filósofo Jasson da Silva Martins,
disponível em http://bit.ly/jasson040907. A edi-
ção 236 da IHU On-Line, de 17-9-2007, publicou devir uniforme do mundo.
a entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito ori-
tural, o que se ginário de uma nova experiência, ética, política e
direito, com o filósofo Fabrício Carlos Zanin, dis-
ponível em https://goo.gl/zZRChp. A edição 81 da IHU On-Line – Como a obra
impõe é uma publicação, de 27-10-2003, teve como tema de
capa O Estado de exceção e a vida nua: a lei po-
lítica moderna, disponível para acesso em http://
de Pasolini manifesta um femi-
nismo crítico? De que ordem é
história dos bit.ly/ihuon81. Em 30-6-16, o professor Castor
Bartolomé Ruiz proferiu a conferência Foucault
e Agamben. Implicações Ético Políticas do Cris-
esse feminismo?

vencedores” tianismo, que pode ser assistida em http://bit.


ly/29j12pl. De 16-3-2016 a 22-6-2016, Ruiz minis-
trou a disciplina de Pós-Graduação em Filosofia e
Alain Naze – A pergunta me re-
mete imediatamente a uma cena
também validada como curso de extensão atra-
vés do IHU intitulada Implicações ético-políticas de Accatone, em que a personagem
do cristianismo na filosofia de M. Foucault e G. Madalena é espancada por rapazes.
Agamben. Governamentalidade, economia polí-
tica, messianismo e democracia de massas, que Pasolini volta a falar dessa cena nas
resultou na publicação da edição 241ª dos Cader-
IHU On-Line – De que modo nos IHU Ideias, intitulado O poder pastoral, as ar- Cartas Luteranas, qualificando essa
as contradições do século XX tes de governo e o estado moderno, que pode ser violência como “idílica”. O que ele
acessada em http://bit.ly/1Yy07S7. Em 23 e 24-5-
aparecem na cinematografia de 2017, o IHU realizou o VI Colóquio Internacional quer dizer com isso?
IHU – Política, Economia, Teologia. Contribuições
Pasolini? da obra de Giorgio Agamben, com base sobre-
tudo na obra O reino e a glória. Uma genealogia
Não violento, Pasolini não está
Alain Naze – Não sei se podemos teológica da economia e do governo (São Paulo: fazendo obviamente a apologia
Boitempo, 2011. Tradução de: Il regno e la gloria.
falar de “contradições do século XX” Per una genealogia teológica dell’ecconomia e del da violência exercida contra as
no traçado do cinema de Pasolini, governo. Publicado originalmente por Neri Pozza, mulheres. O que ele quer dizer,
2007). Saiba mais em http://bit.ly/2hCAore (Nota
porque essa expressão com cheiro da IHU On-Line) na verdade, é muito simples: essa

EDIÇÃO 507
ENTREVISTA

violência faz parte da estrutura de mentos por parte dos indivíduos de desejáveis, talvez até mesmo idíli-
uma cultura determinada, e é isso cultura pequeno-burguesa. cas. Mais uma vez, vemos a mes-
que lhe dá um significado. Numa ma recusa de julgar a tradição e o
sociedade rural tradicional, esse passado a partir de uma posição
tipo de cena podia acontecer; e, en- especificamente moderna – pelo
tão, se a violência ali adquiria um “É esse des- fato de que, com a possibilidade
sentido, era por estar estrutural- de emitir tal juízo, nega-se o cará-
mente ligada a todo um complexo prezo pelo ter incomensurável dos dois uni-

passado que
cultural, regulando principalmen- versos considerados.
te as relações entre os sexos. Essas
Em consonância com uma con-
formas de violência tornaram-se
inaceitáveis para quem não per- Pasolini e Ben- cepção benjaminiana da história,
Pasolini recusa que as lutas de
tence a essa cultura e logo foram
consideradas “bárbaras”, no sen- jamin rejeitam” emancipação tomem as formas de
uma história dos vencedores. Po-
tido de que precediam o advento
rém, para ele, muitas posições ado-
de uma humanidade mais educa-
Feminismo “crítico” de Pa- tadas pelas feministas com as quais
da, mais civilizada. Pasolini evita
solini entra em discussão (em polêmica)
reagir assim, e o adjetivo “idílico”
provêm precisamente de uma ló-
contém todo o teor expressivo da
Portanto, é por não poder fazer gica progressista, segundo a qual
distância que ele mantém em rela-
seu um feminismo especificamen- é incontestável que determinada
ção a qualquer juízo superior que
te moderno – que leva logicamen- condição feminina passada seja
poderia emitir dessa cultura popu-
te a fazer dos séculos passados uma forma de opressão – quando
lar em vias de extinção.
épocas de sujeição e de infelicida- é a distância cultural em relação a
Pasolini percebe que essas cultu- de das mulheres e que equivaleria esse período que torna incompre-
ras tradicionais eram rudes, vio- a uma condenação do passado en- ensível para os modernos o signi-
lentas, mas, apesar de tudo, suas quanto tal – que chamei de “crí- ficado que pode ter tido então essa
14 formas de violência se mantinham tico” o feminismo de Pasolini. De condição feminina. No fundo, é
enquadradas num conjunto que fato, é a partir de uma concepção uma recusa da violência contra os
lhes dava um sentido. O desapa- moderna da liberdade, da felicida- tempos passados, portanto, tam-
recimento dessas culturas em pro- de, da existência, que o feminismo bém contra os seres que viviam
veito de uma civilização mais poli- vai lançar suas reinvindicações, nesses tempos, que leva Pasolini
ciada torna esses comportamentos notadamente nos anos 1970. No a reconhecer a existência de um
inaceitáveis, com certeza, mas isso entanto, se, por um lado, Pasoli- conflito cultural, que impossibilita
não significa que a violência con- ni compreende bem o desejo de emitir um juízo de valores acerca
tra as mulheres vá desaparecer. emancipação das mulheres, por de um mundo que nos é profun-
Ao contrário, não mais enquadra- outro lado, ele quer evitar que tais damente estranho. Essa também é
dos culturalmente, essas práticas reivindicações se façam em detri- uma forma de justiça, que consis-
de violência correm o risco de cair mento da tradição, ou seja, conde- te em não fechar os ouvidos para
na desmedida e de se tornarem hi- nando como detestáveis condições a pretensão de que o passado pesa
perviolência. As Cartas Luteranas de existência que, no tempo des- sobre a “fraca força messiânica” de
testemunham esses transborda- tas, podem ter sido consideradas que disporíamos.■

Leia mais
- Pier Paolo Pasolini. Um trágico moderno e sua nostalgia do sagrado. Revista IHU On-Li-
ne, número 504, de 8-5-2017, disponível em http://bit.ly/2rSrywU.

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REVISTA IHU ON-LINE

15

EDIÇÃO 507
TEMA DE CAPA

Entre equívocos e disputas: conceitos


sobre gênero e sexualidade em
constante transformação
Gabriel Galli1; Ramiro Figueiredo Catelan2

U
ma pessoa começa a contar os fenômenos da natureza. Quando
uma história e baixa o tom falamos em questões sociais, mais
da voz para falar que alguém especificamente gênero e sexuali-
é homossexual. O jornal noticia a dade, essa maneira de pensar pode
morte de uma mulher trans, mas usa não se encaixar de forma adequada
um nome masculino para identificar ou generalizada. A formação semân-
a vítima. O evento é sobre abertura tica dos termos é fruto de disputa
de espaços na empresa para contra- entre diferentes correntes teóricas
tação de travestis, mas as principais e de movimentos sociais que ten-
palestras são sobre a arte das drag tam transformar suas vivências e
queens e como programas de tele- reflexões em verbetes ou até mesmo
16 visão as tornaram mais visíveis ao desconstruí-los e questionar a neces-
público de classe média. Essas si- sidade de designações. Afinal, será
tuações, que aos olhos de ativistas, que é possível encaixar as inúmeras
com razão, causam indignação, tam- possibilidades de sentir e se posicio-
bém geram medo de cometer erros nar perante o mundo em caixas com
ao falar sobre a questão em pessoas formato preestabelecido e com limi-
que estão começando a se familiari- tes tão rígidos?
zar com o tema. Se, por um lado, é
O acrônimo que designa pessoas
obrigação de quem pretende se po-
lésbicas, gays, bissexuais, travestis
sicionar sobre um assunto buscar
e transexuais (LGBT) é um exemplo
informações sobre ele, por outro, é
dessas disputas. Durante um tem-
bastante difícil se manter atualizado
po considerável, se utilizou o termo
acerca das constantes mudanças em
GLS para se referir a esse público
torno do tema. 1 2
de forma a agrupar, talvez com ob-
Viemos de uma tradição de produ- jetivos comerciais, aquelas pessoas
ção do conhecimento que valoriza as que se identificavam como gays e
definições duras e imutáveis. A cre- lésbicas e os simpatizantes, para di-
dibilidade da ciência, para muitas zer que espaços eram abertos ou ti-
pessoas, ainda é relacionada com a nham programações voltadas a esse
capacidade de calcular e de trans- público. Com o passar dos anos, pas-
formar em números, causas e efeitos sou-se a utilizar o termo GLBT, para
identificar, além desse estrato da
1 Gabriel Galli é jornalista e mestrando em Comu-
nicação Social pela PUCRS, coordenador geral do população, um movimento político
grupo SOMOS – Comunicação, Saúde e Sexuali- que englobasse as pessoas bissexu-
dade e cofundador do grupo Freeda – Espaços de
Diversidade, além de editor da Roxa Newsletter ais e transgênero, excluindo os sim-
(http://roxa.jor.br), que discute gênero e sexuali-
dade. patizantes por entender que não se
2 Ramiro Figueiredo Catelan é psicólogo, psicote- luta pelos direitos deles. Posterior-
rapeuta, mestrando em Psicologia Social e Insti-
tucional pela UFRGS e pós-graduando em Terapia mente, os movimentos de mulheres
Cognitivo-Comportamental pelo CEFI. É pesquisa-
dor do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Re- lésbicas reivindicaram que a letra L
lações de Gênero (NUPSEX/UFRGS) e do Grupo de fosse posta na frente para sinalizar
Pesquisa Preconceito, Vulnerabilidade e Processos
Psicossociais (PVPP/PUCRS). o quanto o movimento era capita-

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“Para ativistas, colocar-se em


uma posição de patrulha em
relação ao desconhecimento
alheio geral é mais um
equívoco do que uma virtude”

neado por homens gays que, mesmo com frequência, sem se apegar ao
tendo uma parcela da sua identidade que dicionários estabelecem como o
desviante da norma heterossexista, mais correto. Se fosse por eles, conti-
ainda se beneficiavam do machismo nuaríamos entendendo que travestis
estabelecido, então se passou a utili- são pessoas que optaram por não re-
zar a sigla LGBT. alizar uma cirurgia de transgenitali-
zação e que devem ser tratadas por
No Brasil, o uso da sigla foi refe-
pronomes masculinos. As pessoas
rendado pela 1ª Conferência Nacio- que vivem o termo devem ser mais
nal de Gays, Lésbicas, Bissexuais, ouvidas sobre como devem ser cha-
Travestis e Transexuais, realizada madas e tratadas do que as normas
em 2008, em Brasília. No entanto, que nos acostumamos a obedecer.
17
ainda existem variantes: em países
da América Latina, da América do Isso não significa que devemos nos
despreocupar com os termos e ser-
Norte e da Europa, é comum utili-
mos desleixados em relação a como
zar o termo LGBTI para englobar
falar sobre o assunto. Pelo contrá-
também pessoas intersexo. O termo
rio: é obrigação de quem pretende
LGBTQ tenta abarcar quem se iden-
compreender um novo campo ou
tifica como queer3. LGBTTT engloba
contexto se colocar numa posição de
as identidades de travestis, transe-
constante curiosidade e investigar
xuais e transgêneros. as melhores formas de evitar confu-
Qual é o mais correto? Depende de sões, desrespeitos e generalizações
contexto e consenso. E para saber errôneas. Tratamentos preconcei-
disso, apenas observando as discus- tuosos e estigmatizantes reforçam
sões sobre os temas que se atualizam a violência sofrida por LGBTs dia-
riamente. Como no exemplo cita-
3 Teoria Queer: gíria inglesa usada em referên- do anteriormente, um jornal que
cia a homossexuais. Está associada à teoria queer,
desenvolvida nos anos 1980, nos Estados Unidos, nega o direito à identidade de uma
a partir da publicação do livro Gender Trouble, de pessoa transexual ao noticiar uma
Judith Butler. Possui um alto grau de influência
do filósofo francês Michael Foucault e suas ideias violência sujeita essa pessoa a uma
sobre a sexualidade. Sobre a teoria queer, confira
a edição nº 32 dos Cadernos IHU Ideias, intitula- segunda morte: a causada pela in-
da À meia luz: a emergência de uma teologia gay. visibilidade e pela negação de um
Seus dilemas e possibilidades, escrita por André
Sidnei Musskopf, disponível em http://bit.ly/1e- direito humano. É preciso ressaltar
tDPIk. Musskofp também apresentou o evento
IHU Ideias em 11-09-2008, debatido na entrevista que o preconceito e o estigma são
Via(da)gens teológicas. Itinerários de uma teologia determinantes estruturais na vida
queer no Brasil – a entrevista foi publicada no sí-
tio do IHU em 07-09-2008 e está disponível em da população LGBT e criam um
http://bit.ly/R24T9H. Ainda sobre o assunto, con-
fira a entrevista Transgressão, implosão, mistura, cenário de vulnerabilidade social
descontrução e reconstrução, com Musskofp, pu- bastante grave, podendo colaborar
blicada na edição 227 da IHU On-Line, de 09-07-
2007, intitulada Frida Kahlo – 1907-2007, disponí- para uma série de agravos e entra-
vel em http://bit.ly/1glo8Et. E a entrevista Torcidas
Queer e a homofobia nos estádios de futebol, com ves, que vão desde complicações de
Gustavo Andrada Bandeira, publicada no dia 02- saúde mental, barreiras no acesso à
05-2013 no sítio do IHU, disponível em http://bit.
ly/10ufBEy. (Nota da IHU On-Line) saúde, maiores taxas de rejeição fa-

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TEMA DE CAPA

miliar e comunitária, maior susceti- erro e manter-se em uma postura de


bilidade ao desemprego e à evasão diálogo, do que aceitar que o tema
escolar, até a exposição à violência não seja debatido, e a discriminação,
física e assassinato. mais disseminada. É preciso criar es-
Por outro lado, para ativistas, co- paços de diálogo e convergência para
locar-se em uma posição de patru- que possa haver produção de carac-
lha em relação ao desconhecimento terísticas comuns que coloquem as
alheio geral é mais um equívoco do pessoas em sintonia, entendendo
que uma virtude. Devemos reconhe- e validando suas diferenças, seme-
cer que chega um momento, depois lhanças e criando interfaces para
que se é tão discriminado, que nem um mundo com menos iniquidade e
sempre é fácil se colocar em uma mais diversidade.
postura de educador e ser tolerante Por isso, tentamos estabelecer
à indiferença das pessoas a situações aqui um glossário de termos que são
que nos são caras. Não podemos exi- mais corriqueiros ao se falar sobre
gir que todas as pessoas ajam de for- gênero e sexualidade. Ele não é a
ma acolhedora e aberta. É legítimo palavra final sobre todos esses ver-
não ser assim. Porém, é necessário betes, e sim uma tentativa de “fo-
reconhecer que o escracho daqueles tografar” o que se fala no momento
que cometem erros gera uma sen- a respeito dessas questões. Talvez
sação constante de medo ao se falar algumas das compreensões possam
do tema, que pode resultar em mais ser contestadas, de acordo com as
invisibilidade sobre ele. Talvez seja afiliações teóricas de cada pessoa.
mais interessante ver pessoas falan- Faz parte desse esforço de compre-
do sobre o preconceito contra o ho- ender vivências em construção estar
mossexualismo (sic), alertar sobre o aberto às reinterpretações.
18

GLOSSÁRIO Travesti – o senso comum enten-


de a travesti como uma mulher que
Homossexual – pessoa que se foi designada com o gênero mascu-
relaciona afetiva/sexualmente com lino quando nasceu, que passa a se
pessoas do mesmo gênero. identificar com o gênero feminino
Heterossexual – pessoa que se posteriormente e opta por não rea-
relaciona afetiva/sexualmente com lizar a cirurgia de transgenitalização.
pessoas de gênero diferente. Entretanto, hoje se compreende que
travesti é uma identidade de gêne-
Gay – homem que se relaciona
ro característica dos contextos bra-
afetiva/sexualmente com outros
sileiro e latino-americano que não
homens. Ser gay não é apenas uma
está relacionada com o desejo ou
classificação, mas uma identidade
política. Existem homens que se re- necessidade de passar por uma ci-
lacionam com outros homens e que rurgia. Muitas travestis, apesar de
necessariamente não se identificam se identificarem com o feminino (o
como gays. que faz com que devam ser tratadas
com o pronome “a”, já que não existe
Lésbica – mulher que se relacio- “o” travesti), não se adequam com-
na afetiva/sexualmente com outras pletamente às convenções do que é
mulheres. Assim como ser gay, ser ser homem ou mulher na sociedade
lésbica caracteriza uma vivência e e reivindicam a identidade travesti
um movimento político, não apenas como um gênero próprio. Por conta
uma classificação. do contexto de vulnerabilidade so-
Bissexual – pessoa que se relacio- cial e intenso estigma a que estão ex-
na afetiva/sexualmente com pessoas postas, a maioria das travestis preci-
dos gêneros masculino e feminino. sa recorrer ao trabalho sexual como

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única forma possível de sustento. vínculo com a realidade. É comum


Pansexual – pessoas que se re- que as pessoas que são contra a
lacionam com outras pessoas in- “ideologia de gênero” afirmem que
dependentemente do gênero que ativistas querem doutrinar crianças
se identifiquem. para negarem que homens e mulhe-
res foram feitos por deus com pa-
Sexo – a tradição médica designa peis definidos e imutáveis. O mais
o sexo como um conjunto que en- curioso do termo é que ele não é
volve genitais, cromossomos, hor- incorreto, se for analisado de forma
mônios e gônadas de uma pessoa. mais objetiva, já que todas as vi-
A partir da análise visual desses ele- sões sobre gênero, inclusive aquelas
mentos, costuma-se definir se uma propagadas pela moralidade mais
pessoa é homem ou mulher antes difundida, são visões ideológicas
mesmo do nascimento, por meio de acerca do tema. Por exemplo, en-
exames de ultrassonografia. Porém, tender que uma mulher deve ter a
algumas abordagens das ciências so- vida dedicada ao cuidado da família
ciais questionam as diferenças entre e à procriação, como se prega nos
sexo e gênero, tomando ambos como discursos conservadores e machis-
produções discursivas da ciência e tas, é uma ideologia de gênero.
das relações de poder estabelecidas
em cada contexto. Nome social – designação pela
qual pessoas trans e travestis se
Gênero – as definições mais po- identificam e são reconhecidas
pularizadas sobre o termo delimitam socialmente. O nome social é um
gênero como a leitura social sobre os direito garantido por uma série de
papéis que as pessoas ocupam na so- portarias e normativas em âmbi-
ciedade e as formas com que as ca- tos nacional e estaduais. O direito
racterísticas identitárias são perfor- à identidade e à autoidentificação
madas. O gênero, nessa concepção,
19
é básico e central na vida das pes-
não depende do sexo e é marcado soas e deve ser fomentado, esti-
por relações de poder muitas vezes mulado e garantido.
desiguais, criando hierarquias que
colocam os homens como superiores Patriarcado – forma como os
e as mulheres como inferiores. sistemas sociais são organizados
dando a centralidade à figura mas-
Orientação sexual – termo que culina, predispondo à dominação
se refere às diferentes possibilidades masculina sobre crianças, mulheres
de atração sexual e afetiva por outras e a propriedade.
pessoas, como homossexualidade,
bissexualidade, pansexualidade etc. Cisgênero – termo que designa
as pessoas que se identificam com o
Diversidade sexual e de gê- gênero que lhes foi atribuído quando
nero – termo guarda-chuva que nasceram. Uma das funções do ter-
se refere às diferentes identidades, mo é afirmar que se é necessário ter
expressões de gênero e orientações uma palavra para designar as pesso-
sexuais existentes. É uma forma de as transgênero, as pessoas que não
afirmar que não existe apenas uma são transgênero também devem ga-
maneira de viver a sexualidade e que nhar uma terminologia própria.
deixa aberto um espectro possível
de identificações que fogem dos pa- Transgênero – termo guarda-
drões tradicionais. chuva para se referir às vivências das
pessoas que têm um gênero oposto
Identidade de gênero – forma ao que lhes foi designado no mo-
com que uma pessoa se identifica a mento do nascimento. Abarca tran-
partir das referências de gênero pre- sexualidade, travestilidade e outras
sentes em cada contexto. identidades, como as hijras na Índia
Ideologia de gênero – termo e as fa’afafine em Samoa. Apesar de
pejorativo usado para afirmar que ser um termo prevalente no contexto
a diversidade sexual e de gênero é anglo-saxão, no Brasil os movimen-
apenas uma questão baseada em tos sociais têm dado preferência à
ideias imorais que não encontram terminologia “pessoas trans”.

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Transexual – pessoa que foi de- a respeito, numa ideia de valoriza-


signada com um gênero no nasci- ção do protagonismo.
mento, mas que passa a reivindicar Machismo – conjunto sistemáti-
outro gênero ao longo da vida. Uma co de práticas e ideias que inferiori-
pessoa que foi designada com o gê- zam as mulheres e supervalorizam os
nero feminino ao nascer, mas que homens, criando uma relação de hie-
reivindica o gênero masculino, é um rarquia e desigualdade. Costuma ser
homem trans, por exemplo. Uma expresso por meio de atitudes nega-
pessoa que foi designada com o gê- tivas, ofensas, depreciações e piadas
nero masculino ao nascer, mas que direcionadas a mulheres, e pode ter
se identifica com o gênero feminino, tanto formas explícitas quanto sutis.
é uma mulher trans.
Homolesbotransfobia – termo
Gênero não-binário – termo genérico para se referir ao precon-
usado para se referir às identidades ceito direcionado a gays, lésbicas
de gênero que rompem a dicotomia e pessoas trans. A categoria “ho-
homem/mulher, podendo abarcar mofobia” foi criada pelo psicólogo
pessoas que não se identificam nem estadunidense George Weinberg
como homens nem como mulheres, para patologizar as pessoas precon-
pessoas que se consideram sem gê- ceituosas, invertendo a lógica que
nero ou de outros gêneros presentes considerava pessoas não heterosse-
em cada contexto cultural. xuais doentes e perversas. Porém,
Feminismos – conjunto de mo- visões contemporâneas entendem
vimentos políticos e sociais que o preconceito como uma atitude,
lutam pela igualdade entre os gê- processo psicológico de categoriza-
neros, empoderamento das mulhe- ção e rotulação que envolve aspec-
res e libertação do patriarcado. É tos cognitivos, comportamentais e
20 comum utilizar a palavra no plural emocionais direcionados a grupos
para reconhecer que não existe ape- específicos, atingindo pessoas por
nas uma forma de feminismo, mas terem características negativas atri-
diversas vertentes com visões e his- buídas aos grupos às quais perten-
tóricos diferentes da luta, como o cem. Dessa forma, o preconceito
feminismo negro, transfeminismo, é entendido como um processo de
feminismo classista, feminismo ra- aprendizagem passível de ser iden-
dical e feminismo interseccional. tificado, monitorado e modificado,
e não como uma doença. É impor-
Drag Queen ou transformis- tante frisar que “heterofobia” não
mo – manifestação artística em que existe enquanto um preconceito
se tenta exagerar características do estrutural, pois preconceito sempre
gênero feminino. envolve relações de hierarquia, de-
Lugar de fala – é a ideia de que sigualdade e inferiorização. Pessoas
pessoas que sofrem determinadas heterossexuais podem ser individu-
vivências, opressões e iniquidades almente discriminadas em alguns
têm uma posição de conhecimento contextos, mas esse fenômeno não
diferenciada e preferencial a res- acontece de forma sistemática, rei-
peito daquilo que experienciam, terada e generalizada como o que
tendo maior propriedade para falar acontece com a população LGBT.

Termos e situações que me- parte da linguagem corrente, mas


recem atenção há pouco tempo era usado, inclusive
na imprensa, para designar pessoas
Aidético – termo considerado que vivem com HIV/aids. Hoje, en-
pejorativo. Atualmente faz menos tende-se que fomenta estigma e dis-

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criminação. O termo mais adequado Tirar do armário à força – a


é pessoa que vive com HIV/aids ou orientação sexual ou identidade de
pessoa soropositiva. gênero de uma pessoa não deve ser
Homossexualismo – o sufixo divulgada sem a anuência explícita
“ismo” está historicamente asso- da pessoa. Em alguns casos, fazer
ciado a doenças. As sexualidades isso pode colocá-la em sérios riscos.
não-heterossexuais deixaram de ser Recentemente ficou famosa a situa-
consideradas patológicas pela ciên- ção de um jornalista que, ao cobrir
cia. Em vez de homossexualismo, as Olimpíadas do Rio de Janeiro,
pode-se dar preferência a termos procurou atletas em aplicativos de
como homossexualidade, homosse- encontro gays e divulgou aqueles
xual, gay, lésbica etc. que estavam presentes nas platafor-
mas. O profissional foi duramente
Homoafetivo – o termo homo- criticado, já que diversos atletas vi-
afetivo é bastante comum no Direi- viam em países em que a homosse-
to para designar casais de pessoas xualidade é punida com prisão e até
do mesmo gênero. O problema da mesmo pena de morte.
palavra é a característica de eufe-
mização ou suavização da sexua- Hermafrodita – termo que deve
lidade das pessoas. Ela é utilizada ser evitado para se referir às pessoas
principalmente como uma tentativa intersexuais por estar carregado de
de tornar mais palatável a vivência estigma. Atualmente é mais utiliza-
de LGBTs em ambientes conser- do para descrever seres não huma-
vadores, mas movimentos sociais nos nas ciências biológicas.
questionam o quanto é estratégico Ser normal – é comum e errado
politicamente ceder a essa condi- que se faça uma oposição entre pes-
ção. Uma pesquisa recente realiza- soas LGBT, vivendo com HIV/aids
da pelo Grupo de Pesquisa Precon- ou indivíduos que vivem com algum 21
ceito, Vulnerabilidade e Processos transtorno psicológico e pessoas
Psicossociais do Programa de Pós- normais. A questão é que o concei-
Graduação em Psicologia da PUCRS to de “normalidade” é questionável.
demonstrou que o uso da categoria Entender pessoas com essas vivên-
“homoafetivo” não mudou a opinião cias como anormais parte do princí-
das pessoas em relação ao apoio ao pio de que existe apenas um padrão
casamento entre pessoas do mesmo correto e aceitável de como viver.
sexo quando comparada aos ter- Cura da homossexualidade
mos “homossexual” e “pessoas do e da transexualidade – ga-
mesmo sexo”. A justificativa para nham força no Brasil movimen-
a sustentação do casamento entre tos que pregam a possibilidade de
pessoas do mesmo sexo deve pas- “cura” de pessoas LGBT por meio
sar pela esfera pública, laica, for- de “reversão sexual”. O Conse-
mal, universal e abstrata, na forma lho Federal de Psicologia proíbe
de garantia de direitos, atendendo enfaticamente que profissionais
aos interesses das pessoas sem que da psicologia realizem tentativas
se precise recorrer à noção vaga, de reparar ou curar a homosse-
imprecisa e higienista de amor ro- xualidade. Essas tentativas, além
mântico implicada no uso do termo de ineficazes, causam grande so-
“homoafetivo”. frimento às pessoas. Os estudos
Divulgação da condição soro- científicos contemporâneos são
lógica de uma pessoa – profis- taxativos ao afirmarem que as
sionais de comunicação, educação orientações não heterossexuais
e saúde devem prestar atenção na não são doenças, mas sim espec-
necessidade de não divulgar se uma tros da normalidade em termos da
pessoa vive com HIV/aids contra a sexualidade, devendo ser apoiadas
vontade dela. Apenas ela tem condi- e validadas. Qualquer tentativa de
ções plenas de analisar o efeito que cura ou reversão deve ser denun-
isso causaria nas suas relações so- ciada, sendo passível de penalida-
ciais, profissionais e afetivas. des administrativas. ■

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Feminismo é necessário e urgente


Para Lola Aronovich, se vive um processo
constante de tentar educar a população
Vitor Necchi

A
professora e blogueira Lola Aro- grande dose de ódio. “E não é incomum
novich se tornou uma referên- que, em vários casos, a mulher seja es-
cia na internet para milhares de tuprada antes ou depois de assassina-
mulheres em temas relacionados a fe- da”, observa Lola. “Quando o agressor
minismo. No auge do seu blog, o Escre- causa mutilações, ele geralmente es-
va Lola Escreva manteve uma média de colhe órgãos que identificam a vítima
300 mil visitas por mês. A popularida- como mulher, como seios e vagina.”
de, a contundência e a natureza de seus O horror não tem limite. A professora
textos despertaram muito ódio, tanto conta que “homens que batem em mu-
que foi alvo de mentiras e ofensas, além lheres também alvejam partes sexuais
de ameaçada de estupro e morte. Mas ou que geram filhos”. Conforme sua
não se calou, mesmo que várias vezes análise, “talvez a mulher, naquele mo-
tenha pensado em parar. “Não consigo mento, não esteja individualizada, mas
22 ficar sem escrever”, reconhece. “Acabar represente todo o ódio que o agressor
o blog passaria a mensagem de que eles sente pelas mulheres”. Há uma consta-
venceram. E eles não podem vencer. tação grave: “O homem crê que pode fa-
Nem sabem o que é isso.” zer com sua parceira ou ex o que quiser,
Em entrevista concedida por e-mail à inclusive matá-la”.
IHU On-Line, Lola afirma que se vive Lola Aronovich é uma blogueira
um processo constante de tentar edu- feminista e pedagoga argentina natu-
car a população. “A lei do feminicídio é ralizada brasileira. Doutora e mestra
recente e muitos não a entendem, não em Literatura em Língua Inglesa pela
veem que várias mulheres (entre 10 a Universidade Federal de Santa Catari-
15 por dia) são mortas por serem mu- na - UFSC, desde 2010 é professora da
lheres”, critica. Há agressões mais su- Universidade Federal do Ceará - UFC, no
tis também. Ela lembra que, quando se Departamento de Estudos da Língua In-
pretende xingar mulheres, são usadas glesa, suas Literaturas e Tradução. Suas
palavras que se referem à sua sexuali- pesquisas tratam de gênero, literatura e
dade (vagaba, piranha, vaca, galinha, cinema. Todo semestre oferece o curso de
vadia, malcomida) ou à sua aparência extensão Discutindo gênero através de
(mocreia, dragão, baranga). “Esses ter- literatura e cinema. Em 2008, começou
mos não são unissex. Não existe pira- o Escreva Lola Escreva, um dos maiores
nho ou barango”, compara. blogs feministas do Brasil, com média de
A violência contra as mulheres, em 400 mil visualizações por mês.
particular os feminicídios, contém uma Confira a entrevista.

IHU On-Line – Além da agres- Lola Aronovich – Estamos em serem mulheres. Ainda há muitos
são física, a violência de gênero um processo constante de tentar homens que não acreditam em uma
se processa de outras formas, educar a população. A lei do femini- mulher quando ela diz ter sido es-
mas nem sempre elas são enca- cídio é recente e muitos não a enten- tuprada, e, no caso da violência do-
radas como tal. Quais são essas dem, não veem que várias mulheres méstica, ainda impera a máxima da
outras maneiras? (entre 10 a 15 por dia) são mortas por “em briga de marido e mulher, não

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“O Brasil tem a quinta maior


taxa de feminicídios no
planeta, mas este é um
massacre universal, que ocorre
também em países ricos”

se mete a colher”. Ou seja, se mesmo tos do transporte público, com as termos ofensivos para atacar a sexu-
em casos óbvios de agressão física pernas bem abertas, ocupando um alidade e a aparência das mulheres,
há pessoas que não encaram essas espaço que não é seu. Ou o que cha- e a falta de termos masculinos indica
agressões como violência de gênero, mamos de mansplaining, ou home- que não julgamos ou condenamos
imagine outras que são mais sutis. xplicanismo, que é o hábito muito homens por serem sexualmente pro-
Há atitudes que sequer são conside- masculino de ter a autoestima tão míscuos ou fora do padrão de beleza.
radas violências por grande parte da elevada que pensa que é especialis- É para se pensar também que, mui-
sociedade, mas que fazem parte do ta em tudo quanto é assunto, e sen- tas vezes, quando queremos ofender
cotidiano e funcionam como agres- te-se especialmente à vontade para um homem, xingamos a sua mãe
sões. Um termo que agora está ga- “ensinar” mulheres sobre vários (filho da puta, também relacionado
nhando espaço é o gaslighting, ou temas. Estou acostumada com ho- à sexualidade dela). A maioria das
seja, desqualificar os sentimentos de mens que vêm ao meu blog e Twitter pessoas mal pensa nisso. É só quan-
uma mulher, chamando-a de louca, para me explicar o que é feminismo do analisamos um discurso ou uma
e fazer com que ela se sinta insana. e até para cassar minha carteirinha. situação que podemos identificar a 23
Isso entra como violência psicológi- violência contida nesse discurso ou
ca. Outra expressão é a pornografia situação. Tenho um aluno na facul-
da vingança, ou revenge porn, que IHU On-Line – Que estratégia dade que disse que começou a iden-
consiste em espalhar fotos e vídeos uma pessoa pode adotar para tificar atitudes machistas nele de-
íntimos de uma mulher. identificar e não reproduzir a pois que passei a ser sua professora.
violência de gênero? Inverter os Ele não é machista, mas notou que
É a típica violência de gênero, por- papéis para analisar a situação? costumava interromper mulheres e
que as mulheres ainda são julgadas
Lola Aronovich – Não é fácil, falar mais do que elas em rodas de
de uma forma totalmente diferente
realmente exige todo um esforço de conversa com amigos, por exemplo.
quando fazem o mesmo que os ho-
desconstrução. Às vezes inverter os Fiquei feliz quando a namorada dele,
mens fazem – no caso, sexo. Pode
papéis pode ser uma saída, mas há que não é minha aluna, disse que ele
ser enquadrada como um tipo de
que se tomar cuidado para não cair havia alterado pequenas atitudes,
violência sexual. Dizer ou sugerir
nas falsas simetrias. Por exemplo, o mas que fazem diferença.
que uma mulher não tem compe-
tência para fazer determinada coisa, caos que a pornografia da vingança
ou para ingressar em algum curso, pode causar na vida de uma mu-
IHU On-Line – Nos homicí-
também não deixa de ser violência lher não é comparável à divulgação
dios masculinos, o uso de arma
de gênero. Podemos chamar isso de um vídeo de um homem fazendo
de fogo ocorre em 73,2% dos ca-
de violência moral. Há ainda a vio- sexo. Porém, no caso das ofensas,
sos; nos femininos, em 48,8%.
lência patrimonial, como controlar tentar inverter os papéis pode fun-
A morte decorrente de estran-
o dinheiro ou propriedade de uma cionar. Por exemplo, acho que usa-
gulamento/sufocação é a causa
mulher. E, num país que condena mos e repetimos insultos sem pen-
de 6,1% da morte de mulheres e
mulheres, em especial as pobres e sar em como eles são genderizados.
1,1% de homens (Mapa da Vio-
negras, à morte em decorrência de Quando queremos xingar mulheres,
lência 2015). Esses dados evi-
abortos clandestinos inseguros, o usamos termos que se referem à sua
denciam o quanto o ódio é fator
controle dos direitos reprodutivos sexualidade (vagaba, piranha, vaca,
presente na mortalidade femi-
vale como violência. Além disso, há galinha, vadia, malcomida) ou à sua
nina? Por que a mulher é tão
atitudes que não são vistas como aparência (mocreia, dragão, baran-
odiada pelo agressor machista?
violências, mas não deixam de ser. ga). Esses termos não são unissex.
Um exemplo é o jeito como a maio- Não existe piranho ou barango. Isso Lola Aronovich – Sim, a maior
ria dos homens se senta nos assen- quer dizer que temos centenas de parte dos feminicídios contém uma

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TEMA DE CAPA

grande dose de ódio. E não é inco- Brasil tem a quinta maior taxa de sobre o mito do amor materno. Be-
mum que, em vários casos, a mu- feminicídios no planeta, mas este é atriz Preciado5, por fazer provoca-
lher seja estuprada antes ou depois um massacre universal, que ocorre ções interessantes, Julia Serano6, e
de assassinada. Quando o agressor também em países ricos. Não sei se também Berenice Bento7, por serem
causa mutilações, ele geralmen- a impunidade do homem agressor é referências no transfeminismo. Joan
te escolhe órgãos que identificam um dos principais fatores para expli- Scott8 e Donna Haraway9, que per-
a vítima como mulher, como seios car esses dados. Penso que, mais do gunta como seria viver num mundo
e vagina. Homens que batem em que isso, é a visão que o homem tem pós-gênero. Guacira Lopes Louro10,
mulheres também alvejam partes da mulher como sua propriedade. O por tratar de gênero na educação.
sexuais ou que geram filhos. Talvez homem crê que pode fazer com sua Heleieth Saffioti11 e seu feminis-
a mulher, naquele momento, não parceira ou ex o que quiser, inclusive
esteja individualizada, mas repre- matá-la. de o casamento homossexual e a homoparentali-
dade. (Nota da IHU On-Line)
sente todo o ódio que o agressor 5 Paul B. Preciado [Beatriz Preciado] (1970):
sente pelas mulheres. Assim como Filósofo feminista espanhol, homem trans e dis-
IHU On-Line – Que autoras cípulo de Jacques Derrida, Preciado é grande re-
uma mulher que finalmente arran- ferência de Teoria Queer e na filosofia de gênero.
são determinantes para se Um bem precioso. Entrevista com Beatriz Pre-
ja forças para se separar do mari- ciado publicada nas Notícias do Dia, de 24-02-
avançar na discussão de gênero 2011, publicada nas Notícias do Dia do Instituto
do em um relacionamento abusivo
e por quê? Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://
não está apenas rompendo com ele, bit.ly/1OrKZPO; O gênero multiplicado. Artigo de
Beatriz Precisado publicado nas Notícias do Dia
mas com todo um modelo de vida Lola Aronovich – São tantas... do Instituto Humanitas Unisinos – IHU de, 2-9-
que lhe foi ensinado (de que o mais Adoro autoras mais antigas que 2011, disponível em http://bit.ly/1IXm6rx. (Nota
da IHU On-Line)
importante na vida de uma mulher continuam relevantes, como Susan 6 Julia Serano (1967): escritora, performer, ativis-
Faludi1 e Naomi Wolf2. bell hooks ta, musicista e bióloga nascida nos Estados Uni-
é ter um homem), o homem expõe dos. É uma mulher trans, autora de Whipping Girl:
toda a misoginia que aprendeu com [pseudônimo de Gloria Jean Wa- A Transsexual Woman on Sexism and the Scape-
goating of Femininity, Excluded: Making Feminist
a religião, com a mídia, com os pais, tkins3, escrito em letras minúsculas], and Queer Movements More Inclusive e Outspoken:
que prega um feminismo para todos A Decade of Transgender Activism and Trans Fe-
com a escola (que não aceita falar minism. Seus artigos e ensaios tratam de temas
em questões de gênero), ao matar a e define o movimento como uma luta como ativismos feminismo, queer/LGBT e trans,
sexismo, sexualização, estereótipos da mídia, re-
esposa, namorada ou ex. Ele deixa contra todas as opressões, incluindo presentações psiquiátricas de gênero e minorias
24 as raciais e econômicas. Elisabeth sexuais, bissexualidade e feminilidade. (Nota da
claro que prefere a parceira morta a IHU On-Line)
vê-la com outro homem. Badinter4 ainda faz um bom debate 7 Berenice Bento (1966): socióloga, mestre e
doutora em Sociologia brasileira. Pesquisa temas
como gênero, sexualidade e direitos humanos.
1 Susan Faludi (1959): jornalista nascida nos Esta- Leciona na Universidade Federal do Rio Grande
dos Unidos, trabalhou em publicações como Wall do Norte – UFRN, onde coordena o Núcleo de
IHU On-Line – Entre as mor- Street Journal, San Jose Mercury News, West, Ms. Estudos Interdisciplinares em Diversidade Sexual,
tes ocorridas em ambientes & Mother Jones. Autora do livro de Backlash – O Gêneros e Direitos Humanos. Colunista da Revista
contra-ataque na guerra não declarada contra as CULT desde 2015. Em 2011, recebeu do governo
domiciliares, verifica-se uma mulheres, lançado no Brasil pela editora Rocco. federal o Prêmio Direitos Humanos, na categoria
Recebeu o Prémio Pulitzer de Reportagem Expli- Igualdade de Gênero. (Nota da IHU On-Line)
maior incidência entre mulhe- cativa em 1991. (Nota da IHU On-Line) 8 Joan Wallach Scott (1941): historiadora nasci-
2 Naomi Wolf (1962): escritora feminista estadu- da nos Estados Unidos. Seu trabalho, inicialmente
res (71,9% dos casos) do que nidense. Seu livro O mito da beleza: como as ima- dedicado à história francesa (movimento operário
homens (50,4%). Esses dados gens da beleza são usadas contra as mulheres (Rio e história intelectual), foi direcionado na década
de Janeiro: Rocco, 1992), publicado em 1991, se de 1980 para a história das mulheres a partir da
se relacionam à autoria dos tornou uma referência da terceira onda do femi- perspectiva de gênero. Em 1986, contestou a du-
crimes: mulheres são mais nismo ao analisar como a exigência de as mulhe- alidade entre sexo e gênero, estabelecendo novas
res se adequarem a um ideal de beleza feminina perspectivas para os estudos de gênero, quando
agredidas por pessoas conhe- dificulta sua ascensão ao poder político e social. publicou o artigo Gênero: uma categoria útil de
(Nota da IHU On-Line) análise histórica. (Nota da IHU On-Line)
cidas, enquanto os homens, 3 Gloria Jean Watkins (1952): mais conhecida 9 Donna Haraway (1944): bióloga, filósofa, es-
por estranhos. Ou seja, mu- pelo pseudônimo bell hooks (escrito em minús- critora e professora nascida nos Estados Unidos.
culas), é uma autora feminista e ativista social Escreveu diversos livros e artigos sobre ciência e
lheres são as maiores vítimas nascida nos Estados Unidos. O nome bell hooks feminismo. Entre seus textos mais destacados está
foi inspirado em sua bisavó materna, Bell Blair o ensaio Manifesto ciborgue. Ciência, tecnologia e
da violência doméstica e fami- Hooks. Sua produção trata da interconectivida- feminismo-socialista no final do século XX, publi-
de de raça, capitalismo e sexo, que ela descreve cado originalmente no periódico Socialist Review,
liar. A impunidade do homem por sua capacidade de produzir e perpetuar os em 1985. (Nota da IHU On-Line)
agressor é um dos principais sistemas de opressão e dominação de classe. Pu- 10 Guacira Lopes Louro: professora aposentada
blicou mais de 30 livros e muitos artigos. Aborda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
fatores que alimentam essas raça, classe e gênero na educação, arte, história, UFRGS. Foi fundadora do Grupo de Estudos de
sexualidade, mídia de massa e feminismo. (Nota Educação e Relações de Gênero. Tem como inte-
trágicas estatísticas? da IHU On-Line) resse de pesquisa questões de gênero, sexualida-
4 Élisabeth Badinter (1944): filósofa, historiado- de e teoria queer em articulação com o campo da
Lola Aronovich – O dado mais ra e ativista francesa. É autora da teoria de que o Educação. (Nota da IHU On-Line)
instinto materno não é algo desenvolvido natu- 11 Heleieth Iara Bongiovani Saffioti (1934-
alarmante que conheço, que apon- ralmente, e sim uma construção nascida do conví- 2010): socióloga marxista, professora, estudiosa
ta para uma pandemia, é o da ONU vio, perspectiva que despertou polêmica nos anos da violência de gênero e militante feminista bra-
1980. No livro Um Amor Conquistado – O Mito do sileira. Graduada em Ciências Sociais pela Uni-
[Organização das Nações Unidas]: Amor Materno (lançado no Brasil pela Nova Fron- versidade de São Paulo – USP em 1960, quando
teira), discute sobre o papel da mulher, afirmando começou suas pesquisas sobre a condição femi-
de todas as mulheres mortas no que o instinto maternal é um constructo social e nina no Brasil, tema de sua tese de livre-docência
mundo, 38% são assassinadas pelo que o amor nasce do convívio com a criança. Em para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
O Conflito – A Mulher e a Mãe (Editora Record), de Araraquara, da Universidade Estadual de São
parceiro, atual ou ex. O parceiro denuncia a pressão que recai sobre as mulheres Paulo (Unesp), intitulada A mulher na sociedade de
para que amamentem e durmam com seus bebês. classe: mito e realidade, trabalhou realizado sob
que deveria amá-la e, sob a própria Badinter defende que as mulheres tenha o direito orientação de Florestan Fernandes. O texto foi
ótica do patriarcado, protegê-la (de de usar o próprio corpo da maneira que quiserem, publicado pela editora Vozes em 1976 e se tornou
incluindo o exercício livre de sua sexualidade, o um best-seller na época. Até hoje trata-se de uma
outros homens), é o que a mata. O direito ao aborto e à prostituição. Também defen- referência nos estudos de gênero. Lecionou na

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mo marxista. Sueli Carneiro12, que vada, ela abre brechas para proibir Lola Aronovich – Sim, despertou
foca no feminismo negro. Kimberlé o aborto em todos os casos, até na muito ódio e continua despertando.
Crenshaw13 e seu pioneirismo em re- gravidez decorrente de estupro e É inacreditável o tempo e esforço
lação à interseccionalidade. Jovens quando a gestante corre risco de vida que alguns grupos empenham para
autoras negras, como Djamila Ri- (o projeto é tão retrógrado que pode me silenciar. Trolls apareceram des-
beiro14, Roxane Gay15, Chimamanda acabar, por tabela, com inseminação de o início do blog, e o perfil deles é
Ngozi Adichie16, e tenho certeza que artificial e pesquisas com células- sempre o mesmo: homens cis, bran-
esqueci de um monte de gente. tronco embrionárias). Em alguns cos, hétero, de direita, conservado-
sentidos, estamos regredindo. Hoje res e preconceituosos. Mas o núme-
temos uma maior divisão de brin- ro de trolls e haters foi crescendo à
IHU On-Line – Qual a impor- medida que o blog foi crescendo. Eu
quedos por gênero, por exemplo, do
tância do feminismo? diria que há talvez três grupos que
que tínhamos meio século atrás. Os
Lola Aronovich – Sem dúvida números de estupro e feminicídios me atacam, bastante parecidos entre
o feminismo é necessário e urgen- não vêm diminuindo. Certamente si. Um é o que chamo de “reaças zue-
ros”, homens de extrema direita que
te. Uma das faces mais perversas estamos mais próximas hoje da rea-
fingem estar brincando e fazendo
do machismo é desqualificar a luta ção conservadora dos anos 1980 do
piada ao me xingar, inventar discur-
das mulheres. A quem interessa que que das conquistas e revoluções das
sos que nunca fiz, criar montagens.
as mulheres tenham vergonha em décadas de 1960 e 1970. Uma mulher
Eu os chamo também de 4ª Série B,
se declarar feministas e a lutar por ainda é estuprada a cada 11 minutos
porque os insultos que eles proferem
direitos iguais? Vemos propostas no Brasil, e isso se contarmos apenas
(gorda, feia, chata etc.) costumam
no Senado que visam transformar os casos que são denunciados. Ainda passar quando a pessoa chega na 5ª
acusações falsas de estupro em um temos uma representatividade polí- série, e “B” porque a 4ª Série A de-
crime tão hediondo quanto estupro. tica baixíssima no Congresso. Ainda monstra mais maturidade.
Vemos avançar um projeto que de- ganhamos menos ao exercer a mes-
termina que a vida deve ser inviolá- ma função dos homens, mesmo que O outro grupo também é de extre-
vel desde a concepção. Caso apro- agora tenhamos maior escolaridade ma direita e também usa “humor”,
que eles. E, mesmo que tenhamos mas eles são mais organizados, pa- 25
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e na ocupado vários espaços, os homens recem ser pagos (porque têm todo
Faculdade Serviço Social da UFRJ. Criou um Nú-
cleo de Estudos de Gênero, Classe e Etnia na UFRJ. ainda se recusam a fazer a sua parte o tempo do mundo para ficar na in-
Aposentou-se pela Unesp. (Nota da IHU On-Line)
nas tarefas domésticas e na criação ternet atacando ativistas e pessoas
12 Sueli Carneiro (1950): filósofa, escritora e ati-
vista antirracismo do movimento social negro de esquerda em geral) e capricham
brasileiro, doutora em Filosofia pela Universidade dos filhos. Um dos meus sonhos é
nos ataques sempre que eu mencio-
de São Paulo – USP. Fundadora e diretora do Ge- que o feminismo realmente se tor-
ledés – Instituto da Mulher Negra e considerada no Jair Bolsonaro. Este grupo cria
uma das principais autoras do feminismo negro ne obsoleto um dia, mas sei que isso
no Brasil. (Nota da IHU On-Line) perfis fakes no Twitter diariamen-
13 Kimberlé Crenshaw (1959): advogada nasci- não acontecerá na minha vida.
da nos Estados Unidos, professora de Direito da
te só para me xingar e cria também
Universidade da Califórnia e da Universidade de perfis imitando o meu, para confun-
Columbia, nos Estados Unidos. É uma importante
pesquisadora e ativista nas áreas dos direitos civis, dir. Além disso, cria contas em meu
da teoria legal afro-americana e do feminismo.
Responsável pelo desenvolvimento teórico do
conceito da interseção das desigualdades de raça
“A maior parte nome, com minhas fotos, em outras
redes sociais, como o Curious Cat, e
e de gênero. Seu trabalho influenciou fortemente
a elaboração da cláusula de igualdade da Cons-
tituição da África do Sul. (Nota da IHU On-Line)
dos feminicí- manda mensagens de cunho sexual
no meu nome para crianças e adoles-
14 Djamila Ribeiro (1980): feminista, pesquisado-
ra na área de Filosofia Política e feminista. Foi se-
cretária-adjunta da Secretaria de Direitos Huma-
dios contém centes daquela rede. Faz isso inces-
santemente, por meses a fio, todos
nos e Cidadania de São Paulo, durante a gestão
do prefeito Fernando Haddad (PT). Graduada em
Filosofia e mestre em Filosofia Política pela Uni-
uma grande os dias.

dose de ódio”
versidade Federal de São Paulo (Unifesp). Colu-
nista online da CartaCapital, Blogueiras Negras e O terceiro grupo é o de masculinis-
Revista Azmina. Mantém presença expressiva no tas, ou “mascus” (uma abreviação
ambiente digital. Escreveu o prefácio da edição
brasileira do livro Mulheres, raça e classe, da fi- que criei), ou “ativistas pelos direi-
lósofa negra e feminista Angela Davis. (Nota da
IHU On-Line) tos dos homens” (Men’s Rights Ac-
15 Roxane Gay (1974): escritora, professor e edi- IHU On-Line – A senhora tivists, em inglês), ou simplesmente
tor nascida nos Estados Unidos. (Nota da IHU mantém o Escreva Lola Escreva
On-Line) grupos organizados com ligações
16 Chimamanda Ngozi Adichie (1977): escrito- desde janeiro de 2008, consi- neonazistas que odeiam mulheres
ra nigeriana. Uma das mais importantes jovens
autoras anglófonas, está atraindo uma nova ge- derado o maior blog feminista em geral e feministas em particular.
ração de leitores de literatura africana. Aos 19
anos, deixou a Nigéria e se mudou para os Es- do Brasil. Como é quase impos- Este é o grupo que me dá mais tra-
tados Unidos. Estudar na Universidade Drexel, na sível conter ofensas e mentiras balho, já que, além de me ameaçar
Filadélfia, depois se transferiu para a Universidade
de Connecticut. Fez estudos de escrita criativa na na internet, e como seus textos diariamente de morte e de estupro,
Universidade Johns Hopkins, de Baltimore, e mes-
trado de estudos africanos na Universidade Yale. denunciam o patriarcado e o de ligar para minha casa e oferecer
Seu primeiro romance, Hibisco roxo, lançado no machismo cotidiano, ele des- recompensas para quem me matar,
Brasil pela Cia. das Letras, foi publicado em 2003.
(Nota da IHU On-Line) pertou muito ódio? de atacar também meus familiares

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TEMA DE CAPA

e leitoras, de tentar invadir minhas cada depois, e tendo recebido expressão “esquerdomacho” é
contas e derrubar meu blog inú- todo tipo de ofensa e até mes- sintoma de que os militantes
meras vezes, de criar um blog falso mo ameaças de morte, por que de esquerda ainda têm muito a
no meu nome dizendo, entre ou- não silenciar? Por que manter se desconstruir?
tras barbaridades, que eu realizei o blog?
Lola Aronovich – A esquerda
um aborto em uma aluna em sala
Lola Aronovich – Uma década é brasileira tem melhorado, procu-
de aula na minha universidade, de
uma eternidade na internet, e claro rado entender mais os movimentos
gravar vídeos dizendo que eu abu- que já pensei em parar várias vezes. sociais, deixando de vê-los como
sei sexualmente de um de seus in- A era dos blogs passou, muita gen- uma causa secundária que divide
tegrantes e que eu sou mãe de outro te migrou para o Facebook e para a esquerda. Mas, em geral, os blo-
e o abandonei para ser feminista, e os vlogs, os comentários e o público gs políticos de esquerda ainda são
por isso ele é tão revoltado – enfim, certamente caíram. O auge do meu um Clube do Bolinha e, muitas ve-
além de tudo isso (e este é só um blog em termos de audiência foi em zes, não se interessam por pautas
ínfimo resumo do que eles vêm fa- 2013, quando manteve uma média feministas. Mantêm-se bastante si-
zendo há quase sete anos), dois de de 300 mil visitas por mês. Creio que lenciosos na questão da legalização
seus membros estão me processan- com a maioria dos outros blogs não do aborto, por exemplo. Mas acho
do e pedindo indenização por da- é diferente. Mas eu não consigo fi- que houve uma evolução nos últi-
nos morais, pois eu os denunciei. car sem escrever. Apesar de todos os mos anos e eles tentam se antenar
Esses dois foram presos em 2012 ataques e ameaças, há muitas coisas um pouco com as reivindicações
por criarem um site de ódio em que boas: eu conheço pessoas (e, num dos movimentos sociais. Ainda há
pregavam a legalização do estupro blog tão antigo, algumas eu conheci mesas só compostas por homens
e da pedofilia, o estupro corretivo quando tinham 13, 15 anos, e hoje brancos nos eventos que eles pro-
para lésbicas, ameaçavam pessoas estão na faculdade, várias estudando movem, mas muito menos do que
(principalmente eu e o deputado gênero), recebo carinho e apoio de antes. O problema é que, quando
federal Jean Wyllys17), e prome- quem conseguiu deixar o preconcei- algum deles é pego fazendo algo
tiam um atentado terrorista na to para trás e agradece meu blog por machista, como enviando “selfie de
Universidade de Brasília – UnB isso. Tento fazer um bom trabalho e
26 (onde um deles havia estudado)
pau” não requisitado para inúmeras
ajudar as pessoas. Penso que poderia mulheres, uma ou outra até menor
para matar “o máximo de vadias ter uma vida tranquila e mais tempo de idade, a “brodagem” muitas ve-
e esquerdistas”. Foram julgados e para lazer (e para a universidade) se zes fala mais alto e eles passam a
condenados a 6,5 anos de prisão. eu parasse com o blog, mas, ao mes-
atacar as feministas que os denun-
Ao saírem da cadeia, em maio de mo tempo, duvido que meus inimi-
ciaram. Nessas horas difíceis, eles
2013, pelo menos um deles voltou gos parariam de me atacar. E, sem o
se assemelham bastante aos reaças.
a fazer tudo de novo. Infelizmente, blog, sem voz, eu ficaria sem defesa.
Porém, o que eu vejo é que a di-
acabo gastando tempo demais com Além disso, acabar o blog passaria a
reita tem orgulho de ser machista,
esses misóginos, tempo que pode- mensagem de que eles venceram. E
racista e homofóbica, enquanto a
ria ser melhor empregado. eles não podem vencer. Nem sabem
esquerda, quando é preconceituosa,
o que é isso.
o faz meio sem querer e fica enver-
IHU On-Line – Quase uma dé- gonhada. Particularmente não uso
IHU On-Line – Na apresen- expressões como “esquerdomacho”
17 Jean Wyllys de Matos Santos (1974): jornalis- tação do seu perfil no Twitter, ou “feministo” porque acredito que
ta e político brasileiro, eleito em 2010 para man- consta que a senhora é pro- todos podem e devem ser feminis-
dato de deputado federal pelo Partido Socialismo
e Liberdade (PSOL) do Rio de Janeiro. É também fessora, feminista e “logica- tas, homens também. Vejo os ho-
conhecido por ter participado e ganhado a quinta
edição do programa Big Brother Brasil, da Rede mente de esquerda”. Como mens de esquerda como aliados de
Globo. Em sua vida parlamentar, atua na defesa a esquerda brasileira trata o nós feministas. Seria bom se fossem
dos diretos LGBT, cidadania e direitos humanos.
(Nota da IHU On-Line) feminismo? O surgimento da mais aliados ainda. ■

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REVISTA IHU ON-LINE

Mulheres, travestis, pessoas trans e gays


encarcerados enfrentam mais violências
que os demais detentos
Guilherme Gomes Ferreira afirma que, no interior dos presídios,
se processam de maneira ampliada os mesmos mecanismos
de exclusão e de preconceito que há fora
Vitor Necchi

A
s prisões não foram concebidas talidade das suas existências enquanto
para as mulheres. Ao mesmo seres sociais”.
tempo, no interior delas se pro-
Se fosse resumir a situação, Ferreira
cessam de maneira ampliada os mes-
diz que “a narrativa da violência é geral,
mos mecanismos de exclusão e de pre-
não apenas no Brasil como no restante
conceito que há fora do cárcere. Essa
do mundo”. Ele encontrou muitas no-
combinação de fatores ajuda a enten-
tícias de tortura (cães destroçando tra-
der por que mulheres, travestis, gays e
vestis nas galerias, ferros introduzidos
pessoas trans enfrentam mais violên-
pelo ânus), de suicídio por impossibili-
cias que os demais detentos durante o
dade de viver em condições de tamanha
cumprimento de pena. Uma detalhada 27
perversidade, de estupro e assédio se-
descrição dessa realidade pode ser con-
xual e negação da identidade de gênero
ferida na entrevista a seguir, concedida
por e-mail à IHU On-Line pelo assis- dessa população. Calcado em sua pes-
tente social Guilherme Gomes Ferreira. quisa, ele afirma “que as sexualidades
e gêneros dissidentes são postos ora à
A situação das mulheres nas prisões
exclusão, ora à inclusão perversa”.
reflete as desvantagens que elas já ex-
perimentam no social “extra-muros”, Guilherme Gomes Ferreira é as-
mas a prisão também particulariza e sistente social, mestre e doutorando
especializa essas vantagens. em Serviço Social pela Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do
No que se refere às mulheres, Ferreira
Sul – PUCRS. Também é doutorando
ressalta que questões de saúde sexual e
em Serviço Social pelo Instituto Uni-
reprodutiva “quase nunca são atendi-
versitário de Lisboa – ISCTE-IUL. In-
das como se deve, uma vez que as es-
tegra as organizações Freeda – espaços
truturas prisionais não as comportam”.
de diversidade; Somos: Comunicação,
As travestis e transexuais passam por
“uma série de inúmeras violações aos Saúde e Sexualidade; e o curso popular
seus direitos, produzindo a privação TransEnem Porto Alegre.
não somente da liberdade, mas da to- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em diversos Guilherme Gomes Ferreira cernente. Por isso a situação das mu-
espaços e processos da socie- – O sistema de justiça criminal e lheres nas prisões reflete as desvan-
dade brasileira, mulheres têm as instituições de privação de liber- tagens que elas já experimentam no
desvantagens em relação a dade refletem a “ordem de gênero” social “extra-muros”, mas a prisão
homens e são vítimas de vio- (para usar um termo da socióloga também particulariza e especializa
lência de gênero. No sistema transexual Raewyn Connell) de cada essas vantagens. A privação da liber-
prisional, qual é a situação das sociedade, estabelecendo nos seus dade é erguida tendo por referência
mulheres? interiores um regime de gênero con- a dominação masculina como estru-

EDIÇÃO 507
TEMA DE CAPA

tura, isto é, todas as pessoas consi- Nº 7.210/84), existem outros dis- truídos nas unidades prisionais até,
deradas femininas por esse sistema positivos legais que entraram em pelo menos, os seis meses de idade;
vão encontrar mais dificuldades para vigência depois (como resoluções a Resolução Nº 3, de junho de 2012,
cumprir a pena. E é interessante e decretos) e que não estou muito do CNPCP [Conselho Nacional de
que, nesse sentido, não apenas as por dentro. Mas é importante enten- Política Criminal e Penitenciária],
mulheres cisgênero (aquelas que der que são diversas as violações de que estabelece a não recomendação
se identificaram com o gênero de- direitos a que estão submetidas as para uso de algemas durante o par-
signado a elas desde o nascimento, pessoas presas, mesmo que previs- to e durante o pós-parto; a Resolu-
ou seja, que não são transgênero) tas em lei. Por exemplo, a LEP as- ção Nº 4, de junho de 2011, também
vão experimentar processos maio- segura acompanhamento médico à do CNPCP, que assegura o direito à
res e mais refinados de controle, mulher, principalmente no pré-natal visita íntima (e explicitamente es-
violência e punição, como também e no pós-parto, extensivo ao recém- tabelece esse direito para heteros-
as travestis e transexuais e os ho- nascido, mas muitos presídios não sexuais e homossexuais); e a mais
mens homossexuais. contam com equipe de saúde sufi- recente, Resolução Nº 1, de abril de
É claro que existem especialida- ciente para atender a todas as presas 2014, do CNPCP e do CNCD/LGBT
des do cumprimento da privação de como deveria, o que contribui para a [Conselho Nacional de Combate à
liberdade em relação às mulheres produção de agravos à saúde. Além Discriminação e Promoção dos Di-
cis: frequentemente elas são aban- disso, se a situação dos presídios das reitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
donadas pela família (informação capitais já é precária, em prisões do Travestis e Transexuais], que discu-
presente em diversos estudos e mes- interior dos Estados a realidade é te aspectos do encarceramento da
mo na observação da fila minguada ainda mais agravada. Encontramos população LGBT.
de visitantes que elas recebem em casos de prisões masculinas com
Mas também existe a realidade
presídios femininos), fenômeno que “puxadinhos” para as mulheres,
de cada estabelecimento prisional
não acontece nas prisões masculi- quer dizer, uma ala ou pavilhão para
regular as questões de gênero e se-
nas, que recebem diariamente vários prender mulheres em instituições
xualidade do seu modo porque não
familiares (e na maioria figuras fe- historicamente sem atendimento à
existe previsão legal, ou porque não
mininas como mães, esposas, filhas demanda dessas pessoas (várias das
28 chamadas “prisões mistas” no Brasil
tomou conhecimento do que existe
etc.). Além disso, as questões de saú- em forma de lei, ou ainda por uma
de sexual e reprodutiva das mulhe- foram construídas nessa perspectiva
insurgência moral conservadora de
res quase nunca são atendidas como de primeiro serem “puxadinhos”).
quem é gestor da casa prisional. Essa
se deve, uma vez que as estruturas Por tudo isso, é bem factível dizer
última possibilidade é a mais certa
prisionais não as comportam – já que as prisões no Brasil frequente-
quando se trata da população LGBT
que, na sua origem, não nasceram mente não atendem adequadamente
presa. Veja, por exemplo, que não
para prender mulheres. É importan- às demandas das mulheres grávidas
existe consenso sobre o argumen-
te salientar que não apenas as mu- ou que pariram durante o cumpri-
to utilizado para prender travestis
lheres presas são sujeitas à violência mento da pena.
e mulheres transexuais em prisões
de gênero das prisões, uma vez que destinadas a homens: ora é utilizado
essas visitantes podem passar por o argumento de que elas não pos-
uma série de violências e constran- IHU On-Line – Na legislação
suem vagina (recorrendo por isso
gimentos ao tentarem ingressar na que regula o sistema prisional,
a uma noção biológica de gênero) e
prisão masculina, desde serem sub- há algo específico no que tange
que elas poderiam estuprar ou en-
metidas a revistas íntimas vexatórias ao gênero e à sexualidade da
gravidar outras mulheres (recorren-
na entrada da casa prisional até a vi- população carcerária? Ou cada
do a um discurso de segurança e pro-
sita ao preso (por exemplo, através instituição estabelece seus
teção), ora é utilizado o argumento
de assédio moral e sexual). próprios protocolos em rela-
de que elas não possuem retificado
ção ao tema?
o registro civil (recorrendo a uma
Guilherme Gomes Ferreira – noção jurídica do gênero). Isso não
IHU On-Line – Quais as re-
Existem as duas coisas. Há legisla- é uma realidade apenas do Brasil,
gras vigentes para presidiá-
ções que tratam particularmente do mas do mundo todo, de acordo com
rias grávidas ou que pariram
gênero e da sexualidade na prisão, pesquisa que venho realizando no
durante o cumprimento da
entre elas: a Lei Nº 11.942/2009, que doutorado a respeito do tratamento
pena? Elas são adequadas?
aborda a questão do acompanha- penal destinado às pessoas trans em
São respeitadas?
mento médico de gestantes no pré- diversos países do globo (atualmen-
Guilherme Gomes Ferreira natal e pós-operatório – essa lei dá te 12 países já sistematizados). So-
– Eu não saberia responder muito nova redação à LEP, que tratei acima bre esse caso, também pode ocorrer
bem no que se refere às leis vigentes, –, garantindo, entre outras coisas, a ainda de o estabelecimento prisional
pois, embora haja algumas previsões amamentação dos recém-nascidos usar esses argumentos atrelados um
na Lei de Execução Penal - LEP (Lei por suas mães em berçários cons- ao outro; a travesti não é aceita em

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prisão de mulheres porque não tem de, mas da totalidade das suas exis- mente o exercício da identidade de
o nome retificado, mas, para retificá tências enquanto seres sociais. gênero dos homens cis, mas também
-lo, o sistema de Justiça desse país se materializa, em certos aspectos,
A narrativa da violência é geral, e
requer que ela esteja na fila para a em vantagens aos homens trans.
de novo, não apenas no Brasil como
cirurgia de transgenitalização.
no restante do mundo. Encontrei
muitas notícias de pura tortura
IHU On-Line – Para além do
(como em Cuba, onde foram man-
IHU On-Line – Travestis e registro legal, existem regras
dados cães destroçarem travestis
transexuais sofrem muitas vio- criadas e implementadas me-
nas galerias e introduziram ferros
lações e desrespeito de seus diante o uso de violência física
no corpo delas pelo ânus), de sui-
direitos na sociedade. O que e psicológica pelos próprios
cídio por não aguentarem viver em
ocorre com essa população presos e também pelos agen-
condições de tamanha perversidade
dentro do sistema prisional? tes públicos. O que dizem es-
(na Itália e nos Estados Unidos), de
sas regras acerca de sexuali-
Guilherme Gomes Ferreira – estupro e assédio sexual (em todos
dades e gêneros considerados
Assim como as mulheres cis, as tra- os 12 países pesquisados) e, é claro,
dissidentes?
vestis e mulheres transexuais expe- de negação da identidade de gênero
rimentam mecanismos particulares dessa população. Guilherme Gomes Ferreira –
de encarceramento, o que inclusive Assim como as leis, essas regras não
tratei com centralidade no meu livro são homogêneas e é possível encon-
publicado pela editora Multideia em IHU On-Line – No Brasil, trar diferentes usos delas em dife-
2015, intitulado Travestis e prisões: homens trans condenados à rentes cadeias. O que eu posso dizer
experiência social e mecanismos prisão são encarcerados em da pesquisa realizada na Cadeia Pú-
particulares de encarceramento no instituições destinadas a mu- blica de Porto Alegre (anteriormente
Brasil. Em muitos lugares do Bra- lheres. Como se dá a convi- chamada Presídio Central de Porto
sil, elas ainda são proibidas de usar vência deles com as detentas? Alegre, indicando agora se destinar
roupas identificadas como femini- apenas a presos provisórios e não
nas; têm seus cabelos raspados; são Guilherme Gomes Ferreira mais também aos presos já condena- 29
usadas pelo tráfico de drogas como – Há poucas informações públicas dos) é que as sexualidades e gêneros
mulas (ou seja, tendo de portar en- sobre a situação de encarceramento dissidentes são postos ora à exclu-
torpecentes pelo ânus quando ocor- dos homens trans, e eu tenho a im- são, ora à inclusão perversa. Explico:
rem as vistorias das celas); são trata- pressão que isso tem a ver principal- além dos relatos de violência de que
das como mercadoria e usadas como mente com a invisibilidade das suas já tratei (cujos autores eram presos
moeda de troca por bens materiais identidades (geralmente tratados e policiais), os presos tratam a sexu-
entre presos; são forçadas a casa- pela administração prisional como alidade não heterossexual como um
mentos dentro das prisões e/ou são mulheres lésbicas masculinizadas). desvio, quase como tratam o crime
estupradas por todos os homens da A experiência que eu tive no Presídio de teor sexual. Não é por acaso que a
galeria onde cumprem pena; são ex- Madre Pelletier, em Porto Alegre, tradição brasileira seja a de prender
cluídas da possibilidade de estudar por ocasião de uma pesquisa junto travestis e mulheres trans em alas
e trabalhar na prisão por não pode- destinadas aos criminosos sexuais,
à equipe de saúde dessa instituição,
rem conviver com outros presos (e, pois geralmente são as únicas alas
foi que a privação da liberdade para
portanto, também da possibilidade que acolhem a população transgêne-
eles era bem menos violenta em
de remição de pena); ficam impe- ro (mesmo que as próprias travestis
comparação à experiência das tra-
didas do exercício religioso quando também considerem os criminosos
vestis e mulheres transexuais. É cla-
não são católicas/evangélicas, já que sexuais como a escória dentro da pri-
ro que eles também sofrem violência
a esmagadora maioria dos presídios são). Os maridos das travestis, do
– muitas vezes não eram atendidos
contam apenas com capelas católi- mesmo jeito, são excluídos de ati-
pelo nome social e eram tratados
cas e ingresso de instituições evan- vidades de recreação e convivência
como mulheres –, mas a performan-
gélicas; têm agravos particulares à quando assumem relacionamento
ce masculina também lhes garantia
com pessoas trans: deixam de be-
saúde por muitas possuírem silicone vantagens; não foi difícil encontrar
ber do mesmo copo que os outros
industrial e outras modificações cor- relatos de homens trans líderes de
homens, já não jogam mais futebol
porais pela ingestão de hormônios galerias ou que exerciam poder em
juntos e são tratados também pela
– que é sumariamente interrompida relação a grupos de detentas, ou ain-
categoria “bicha”, que serve como
quando a pessoa é presa –; são mais da que eram desejados sexual-afeti-
homogeneizadora de todas essas
fortemente controladas pelo sistema vamente por elas por trazerem segu-
populações de gênero e sexualida-
prisional nas suas relações afetivas… rança e poder às suas companheiras.
de dissidentes.
É mesmo uma série de inúmeras vio- Aqui temos novamente a análise do
lações aos seus direitos, produzindo regime de gênero presente no siste- Também é possível verificar – e
a privação não somente da liberda- ma prisional, que não privilegia so- acredito que essa é uma cultura mais

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TEMA DE CAPA

fortalecida em países do norte global, – Nas prisões em que há alas desti- pulação, de modo que Porto Alegre
por suas estruturas de gênero serem nadas a essa população – nomeadas foi a terceira cidade no país que criou
mais rígidas no estabelecimento do de Alas LGBT, Alas GBT, Ala das Bi- uma ala para essas pessoas, em 2012.
binômio masculino/feminino – que chas, Ala Rosa etc. –, a situação de
os homens gays são levados a não violência extrema tende a ser mais
IHU On-Line – Há levanta-
assumirem suas identidades sexuais, controlada. As travestis e mulheres
mentos estatísticos acerca da
pois mesmo aqueles que não se iden- trans presas na Cadeia Pública de
população de travestis, gays e
tificam como homossexuais, mas Porto Alegre, por exemplo, relatam
trans encarcerados?
sentem atração por outros homens, que estar presa já foi muito pior
são tratados diferentemente pelo quando não havia esse espaço, por Guilherme Gomes Ferreira –
restante da massa carcerária. O sexo serem recorrentemente espancadas O único levantamento estatístico de
entre homens deve, por isso, não ter pela polícia e por outros presos. Com que tenho conhecimento no Brasil
motivação erótica, mas de imposi- a emergência desse espaço e dos ho- está sistematizado no estudo do pes-
ção da violência; aqueles que domi- lofotes midiáticos, suas experiências quisador Marcio Zamboni, que afir-
nam sexualmente outros homens e com a prisão melhoraram. Por outro ma que “a distribuição de travestis e
o fazem com recurso à violência são lado, a prisão encontrou nessas ga- transexuais entre regiões do estado
tratados com distinção, enquanto lerias um dispositivo de maior con- [de São Paulo][…] é proporcional
quem é penetrado na relação sexual trole e repressão, já que, se não são ao número total de presos. A rela-
é tratado novamente como “bicha” e mais espancadas, tampouco podem ção de aproximadamente 1 travesti
algumas vezes serve sexualmente vá- conviver com os outros homens em ou transexual para cada 500 presos
rios homens. espaços de trabalho e educação, e se mantém sem grandes variações
sob o discurso da proteção são impe- nas cinco regiões (na totalidade do
didas de exercer esses direitos. estado, são 450 travestis e transexu-
“A situação das Outra manifestação desse controle ais para aproximadamente 230.000
presos)”1.
mulheres nas
esteve presente na forma como al-
guém novo poderia entrar na galeria IHU On-Line – Em presídios
30 prisões reflete dessa população. Tendo o espaço
ganhado visibilidade e as pessoas sa-
masculinos, ambiente de muita
violência e de fortes protoco-
as desvanta- bendo que se tratava de lugar menos
violento, durante alguns anos – e eu
los de masculinidade, há casais
que acabam legitimados. De
gens que elas não sei dizer se isso se mantém em
Porto Alegre – a “prefeita” da galeria
que maneira isso ocorre?

já experimen- (assim chamada a representante) se-


lecionava livremente quem poderia
Guilherme Gomes Ferreira –
Eu não diria que esses casais são le-
tam no social ou não ingressar e informava essa
decisão à administração prisional.
gitimados, não pelo menos por com-
pleto. O que ocorre, do meu ponto de
‘extra-muros’, Algumas vezes essa decisão era feita
para o “bem geral”, como o fato de
vista, é um esforço de legitimação
através de políticas penitenciárias
mas a prisão não entrar travestis envolvidas com
o tráfico e que desejassem tornar a
que buscam avançar o nosso pro-
cesso civilizatório e que procuram,
também parti- galeria uma das que recebem drogas.
Entretanto, em outras vezes essa
por isso, um tratamento penal mais
próximo do ideal, entre elas aquelas
culariza e es- decisão era tomada pela simpatia que tematizam o gênero e sexuali-
nutrida entre elas lá fora: “aqui ela dade. Essas políticas são idealizadas
pecializa essas não entra”, “já ouvi falar muito mal sobretudo por movimentos sociais

vantagens”
dela” e coisas assim eram ditas sem e intelectuais orgânicos, que aca-
rodeios no período em que pesquisei bam por tensionar a possibilidade
esse fenômeno na Cadeia Pública de de existência com menor violência
Porto Alegre. O movimento social desses “casamentos” ou desses rela-
IHU On-Line – Travestis, gays organizado que lutou pela criação cionamentos afetivo-sexuais. É cla-
e mulheres trans são encarce- desse espaço também tinha poder ro que esses casamentos respeitam
rados em estabelecimentos pri- de veto e de “viajar” as travestis para também esses protocolos de mascu-
sionais próprios para homens. outros presídios – termo usado para linidade e, por consequência, a or-
Em alguns presídios, como a designar a transferência de pessoas dem de gênero vigente na sociedade:
Cadeia Pública de Porto Alegre, entre estabelecimentos.
há alas específicas. Qual a situ- 1 Zamboni, Marcio (2016). Travestis e transexuais
Apesar de tudo isso, vale destacar privadas de liberdade: a (des)construção de um
ação dessa população? sujeito de direitos. Revista Euroamericana de An-
que ainda são poucas as prisões que tropología, Salamanca, n. 2, pp. 15-23, jun. 2016.
Guilherme Gomes Ferreira têm espaços específicos para essa po- ISSN: 2387-1555. (Nota do autor)

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entre travestis e seus companheiros, contraditório, mas o fato é que dife- culam, produzindo uma experiência
por exemplo, há uma intensa divisão rentes travestis presas me relataram nova. Muitas das coisas ditas sobre as
sexual do trabalho entre quem cuida que, no caso da Cadeia Pública de travestis (de que são criminosas por
e quem é cuidado, quem exerce o tra- Porto Alegre, preferiam poder ficar natureza, barraqueiras, ladras, perigo-
balho doméstico e o trabalho “de re- em galeria separada junto dos seus sas) têm a ver com as ideias sobre uma
sistência física”, quem lava a roupa e companheiros do que em presídios classe social e uma raça/etnia especí-
quem distribui a comida, etc. – e até de mulheres, mas isso por conta ficas também, conjugando um sentido
entre quem lembra de usar preserva- dessa configuração particularizada. único às pessoas.
tivo e quem dispensa mais facilmen- Então, quando a prisão dá possibili-

“As sexualida-
te o seu uso. Todas essas atividades dade de as travestis e mulheres trans
respeitam a ordem de gênero e se cumprirem pena em espaço só delas,
expressam também algumas vezes
entre casais gays, como, por exem-
e ainda por cima possibilita que elas
estejam com seus maridos, isto é des e gêneros
plo, em relação a quem cumpre o
papel sexual de ativo/passivo, quem
melhor para algumas delas.
dissidentes
é mais masculinizado e quem é mais
afeminado etc. IHU On-Line – Classe social e são postos ora
à exclusão,
raça agravam a violência con-
tra travestis e mulheres trans
IHU On-Line – Por conta da
identidade de gênero, da sexu-
presas?
Guilherme Gomes Ferreira –
ora à inclu-
alidade e da estética, travestis
e mulheres trans encarceradas
Sim e não. Eu diria que agravam a
violência contra travestis e mulheres
são perversa”
são mais vulneráveis à violên- trans na sociedade, pois, obviamente,
cia do que o restante dos deten- essas categorias se articulam com as IHU On-Line – Sua pesquisa de
tos? de gênero e sexualidade e produzem mestrado investigou como se
Guilherme Gomes Ferreira uma nova experiência no social (expe- processam as experiências so-
riência de privilégio ou de subalterni- 31
– Sem dúvida, pois não podem “es- ciais de travestis encarceradas
conder” suas identidades de gênero dade). Mas a prisão é, por excelência, em regime fechado. Qual foi a
do mesmo modo que alguns homens a instituição que mais seleciona por conclusão?
gays podem não revelar, pelo me- questões raciais e de classe social –
exercendo aquilo que o sociólogo Loïc Guilherme Gomes Ferreira – A
nos por um tempo, suas identidades
Wacquant2 chama de criminalização conclusão que cheguei é que embora
sexuais. No entanto, não é simples-
da pobreza, de modo que a imensa a criação de uma ala específica para
mente as suas identidades de gêne-
maioria dos presos brasileiros hoje é travestis e mulheres trans, no caso da
ro que as tornam vulneráveis, mas,
caracterizada por negros das classes Cadeia Pública de Porto Alegre, tenha
principalmente, o fato de serem
economicamente dominadas. trazido a elas proteção de inúmeras
presas em presídios de homens – é
violências cotidianas, também aca-
preciso dizer isso ou estaremos de Ocorre que quando uma travesti é bou representando uma mão invisível
algum modo colocando na identida- negra e pobre, sua identidade é des- que, de cima, remexeu o interior da
de a responsabilidade pela violência. qualificada por completo, na totalida- prisão e separou todos os corpos não
Frequentemente eu ouvi de técni- de, e não somente a parte que se refere desviantes, deixando restar ali as tra-
cos penitenciários que as travestis ao gênero. É isso que as teóricas dos vestis, os homossexuais e os homens
e mulheres trans “não se davam o estudos interseccionais vão chamar que assumidamente praticam sexo
respeito” e que suas roupas curtas a atenção, para o fato de que essas com elas. Esses corpos, da mesma
“provocavam” os outros homens, no articulações de gênero, raça e classe forma que são protegidos da violên-
mesmo sentido do que é dito quando social não se sobrepõem, mas se arti- cia cotidiana que sofriam dos outros
se quer culpar a mulher cis vítima de
presos e dos próprios policiais, so-
violência, e não o agressor. Então, 2 Loïc Wacquant (1960): professor de sociologia
e pesquisador associado do Institute for Legal frem agora uma potencialização dos
evidentemente suas identidades e Research na Boalt Law School da Universidade mecanismos de repressão e controle
estéticas as tornam mais vulneráveis da Califórnia, onde é filiado ao Global Metropo-
litan Studies Program, ao Program in Medical An- do Estado. Ao mesmo tempo que a
à violência, mas isso não ocorreria thropology, ao Center for the Study of Race and
Gender, ao Designated Emphasis in Critical The-
prisão representa o lugar da violência
com tanta intensidade se estivessem ory e ao Center for Urban Ethnography. Wacquant e da repressão como próprias de um
em presídios de mulheres. também é pesquisador do Centre Européen de
Sociologie et de Science Politique, em Paris. Seus funcionamento geral, existem formas
Apesar de eu dizer isso, advogo interesses perpassam estudos comparativos sobre mais perversas de opressão no caso
marginalidade urbana, dominação étnico-racial,
pela ideia de que as pessoas devem pugilismo, o Estado penal, teoria social e a política dessa população que se materializam
da razão. É cofundador da publicação interdisci-
ser ouvidas e não ser mandadas a plinar Ethnography, da qual foi coeditor de 2000 no não acesso à educação e ao traba-
presídios de acordo com suas iden- a 2008, e apresentou regulares contribuições para lho dentro do cárcere; na relação com
o Le Monde Diplomatique de 1996 a 2004. (Nota
tidades automaticamente. Parece da IHU On-Line) os outros presos e na transfobia ins-

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TEMA DE CAPA

titucional; nos modelos de compor- IHU On-Line – Atributos pró- que dialogue com a dignidade dessas
tamento ditados pela administração prios da feminilidade e que cos- pessoas: i) que haja respeito ao nome
prisional; no abandono familiar; e no tumam ser adotados por traves- social de pessoas travestis e transexu-
aumento de controle penal. tis e mulheres trans, como cabelo ais e ao uso de vestimentas de acordo
comprido, unhas pintadas, rou- com o gênero com o qual a pessoa
A captura das travestis e mulheres
pas e maquiagens, são admitidos se identifica; ii) que se criem alas ou
trans pela prisão lhes confere padrões
em presídios masculinos? galerias específicas para a população
distintos de controle sobre os corpos,
LGBT privada de liberdade que dese-
até então não experimentados. Para Guilherme Gomes Ferreira – jar fazer uso deste espaço específico,
elas, a experiência prisional é um ins- Isso depende de cada presídio. Os ficando à escolha da pessoa LGBT de-
trumento de corroboração da violên- casos de penitenciárias brasileiras cidir a este respeito; iii) que travestis,
cia sofrida no cotidiano, pois legitima que têm alas ou galerias específicas homens e mulheres transexuais sejam
o status que lhes confere o lugar da para o cumprimento da pena dessa encaminhados a casas prisionais de
pervertida, da marginal, da obscena, população tendem a respeitar mais o acordo com o desejo de cada pessoa,
da ladra. A própria ala específica é um desejo de travestis e mulheres trans e não desde uma perspectiva biomédi-
modo de enfrentamento organizado usarem vestimentas, cortes de cabelo ca; iv) que se garanta verdadeiramen-
coletivamente por elas de acordo com e adereços de acordo com os seus gê- te a visita íntima sem necessidade de
os seus interesses de maior proteção neros. No entanto, as realidades são tempo de relacionamento específico
institucional. Assim, lidam melhor diversas, de modo que ainda existem ou outros condicionantes para a po-
com o modo de funcionamento da pri- presídios masculinos que não admi- pulação LGBT, bem como que se efe-
são; por outro lado, são apartadas de tem essa possibilidade, e são muitos. tivem os direitos de seguridade social
oportunidades de estudo/trabalho por
decorrentes do relacionamento entre
esse mesmo modo de funcionamento.
IHU On-Line – A partir da sua pessoas homossexuais quando do
Suas identidades de gênero, de modo
vivência em lidar com traves- aprisionamento de um membro da
geral, não são reconhecidas, seja no
tis e gays no sistema prisional, unidade familiar; v) que haja continui-
uso do nome social, seja nas práticas
que observações gerais podem dade da hormonoterapia de travestis e
de violência que atentam sobre suas
ser feitas no que se refere à transexuais e que esse tratamento seja
32 experiências com o corpo e a sexua-
administrado por profissionais das
lidade. Suas demandas e requisições violência motivada por gênero
nesses ambientes? equipes de saúde das casas prisionais;
por acesso a direitos entram “na fila”
vi) isonomia de acesso à educação e ao
das requisições de toda a população Guilherme Gomes Ferreira trabalho, possibilitando à população
prisional, negligenciadas também pela
– Acredito que já fiz observações di- LGBT, mesmo aquelas de celas/alas
defasagem de corpo técnico.
versas, por isso gostaria, no lugar, de específicas, o direito a estudar, traba-
Essas conclusões vêm não somente fazer recomendações gerais para a efe- lhar e remir pena; vii) e possibilidade
da pesquisa de mestrado já conclu- tivação de um tratamento penal desti- de expressão religiosa ou não religiosa
ída como também da pesquisa de nado à população LGBT privada de li- e de culto às divindades, sem imposi-
doutoramento atualmente em curso. berdade mais próximo do ideal, isto é, ção de matriz específica.■

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Escolas precisam debater


equidade de gêneros
Jane Felipe de Souza defende que qualquer tema
seja discutido em aula, pois nem sempre as famílias
conseguem lidar com todos os assuntos
Vitor Necchi

A
ação de segmentos conservadores respeito às diferenças e pelo combate
e religiosos para que temáticas a toda e qualquer forma de preconcei-
relacionadas a gênero, sexualida- to e discriminação.”
de e respeito à diversidade não sejam in- Ao contrário do que versa o senso co-
cluídas nos planos de educação é um fe- mum, sexualidade e gênero não são
nômeno que preocupa a professora Jane
prerrogativas exclusivas das famílias.
Felipe de Souza. Para ela, isso mostra o
“Todo e qualquer tema pode ser discu-
quanto esses grupos estão organizados
tido em aula”, destaca a professora, pois
e conquistando postos importantes de
nem sempre as famílias conseguem lidar
decisão. Em entrevista concedida por
com todos os assuntos, por isso existe a
e-mail à IHU On-Line, ela ressalta que
escola: “para ampliar esses conhecimen-
esses grupos têm por lastro “concepções
tos e criar cidadãos éticos, que respeitem
muito estreitas, baseadas apenas no sen-
os direitos humanos fundamentais”.
so comum”, o que indica falta de conhe-
Jane Felipe de Souza é professora 33
cimento técnico e teórico a respeito da
homossexualidade e da transexualida- da Faculdade de Educação da Univer-
de, além de um profundo e preocupante sidade Federal do Rio Grande do Sul –
desrespeito às identidades que fogem ao UFRGS. Tem graduação e licenciatura
padrão heteronormativo. “Tal quadro plena em Psicologia pela Universidade
demonstra o quanto é necessário discu- Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mes-
tirmos esses temas nas escolas.” trado em Educação pela Universidade
As perspectivas, no entanto, não são Federal Fluminense – UFF e doutorado
animadoras. A começar pela formação em Educação pela UFRGS. Atualmente
docente, processo no qual a discussão coordena a pesquisa internacional inti-
sobre gênero e sexualidade é precária. tulada Violências de gênero, amor ro-
Souza defende que, desde cedo, a es- mântico e famílias: entre idealizações
cola debata esses temas na formação e invisibilidades, os maus-tratos emo-
continuada. “A educação, em todos os cionais e a morte.
níveis de ensino, deve se pautar pelo Confira a entrevista.

IHU On-Line – No ambiente saúde, segurança (justiça) e educação. infraestrutura adequada. O Estado de-
familiar, é comum que o pa- Os postos de saúde e hospitais preci- veria garantir casas de abrigo àquelas
triarcado e a violência de gêne- sam estar preparados para notificar mulheres e crianças que saem de suas
ro se reproduzam de geração corretamente os casos de violência e casas por conta da violência sofrida. O
a geração, e muitas mulheres oferecer tratamento psicológico e assis- pessoal que atua nas delegacias precisa
acabam introjetando o papel tencial às vítimas. Em especial, promo- ser bem preparado para essa acolhida,
submisso que lhes é atribuído. ver programas de combate à violência em um momento tão delicado, de ex-
Nesse sentido, qual a impor- pensando nas crianças que vivem em trema fragilidade.
tância das políticas públicas lares violentos e presenciam esse tipo No que se refere à educação, desde
para se combater a violência de comportamento entre os adultos. cedo é preciso que a escola, através
de gênero? Em relação à segurança, os postos de de sua equipe técnica (professoras/
Jane Felipe de Souza – As políti- atendimento, incluindo aqui as dele- es, direção, coordenação pedagógica
cas públicas devem investir na área de gacias da mulher, precisam ter uma e demais funcionários), possa debater

EDIÇÃO 507
TEMA DE CAPA

esses temas na formação continuada, IHU On-Line – Temas como educacional o ensino de princí-
de modo que possam atuar de forma sexualidade e gênero são prer- pios consagrados pelos direitos
competente nas salas de aula. A litera- rogativas exclusivas das famí- humanos e fundamentais?
tura infantil, os livros didáticos e para- lias ou as escolas devem discu-
Jane Felipe de Souza – A esco-
didáticos, os brinquedos e brincadei- ti-los?
la não está à parte da sociedade, ela
ras, as músicas, os filmes, as atividades
Jane Felipe de Souza – Todo (re)produz, por exemplo, os precon-
propostas etc. devem primar pela equi-
e qualquer tema pode ser discutido ceitos nela existentes. Portanto, edu-
dade de gênero. A educação, em todos
em aula. O que vemos atualmente car cidadãos éticos e voltados para a
os níveis de ensino, deve se pautar pelo
é uma confusão conceitual, em que empatia, a solidariedade, dentro dos
respeito às diferenças e pelo combate a
se confunde scripts de gênero com princípios dos direitos humanos fun-
toda e qualquer forma de preconceito e
sexualidade. O conceito de gêne- damentais, nem sempre é tarefa fácil.
discriminação.
ro discute as expectativas sociais, Para tanto, é preciso ter uma equipe
culturais e históricas em torno das muito bem preparada e conectada
masculinidades e feminilidades. Já com esses temas, de modo a poder
IHU On-Line – Em um esta- as identidades sexuais dizem respei- atuar de forma eficiente e aprofunda-
do laico como o Brasil, qual to aos nossos desejos afetivo-sexu- da. Fazer também um trabalho com
a influência das religiões nas ais, o modo como os direcionamos. as famílias torna-se fundamental.
escolas, fundamentalmente as Nem sempre as famílias conseguem
públicas? dar conta de todos os temas, por isso
Jane Felipe de Souza – Nas es- existe a escola: para ampliar esses IHU On-Line – Segmentos
colas, mesmo nas públicas, é possível conhecimentos e criar cidadãos éti- conservadores e religiosos vêm
observar alguns sinais de que o ensino cos, que respeitem os direitos huma- conseguindo influenciar dife-
não é tão laico quanto deveria: o uso de nos fundamentais. rentes instâncias legislativas
crucifixo nas salas, a imagem de san- para que não incluam nos pla-
tos, o hábito de rezar ou ainda quando nos de educação orientações de
a professora impõe sua confissão reli- IHU On-Line – E na formação valorização e respeito à diver-
34 giosa aos demais alunos. Tal situação docente, como esses temas são sidade sexual, assim como de
é desrespeitosa para aqueles que não discutidos? superação das desigualdades
professam religião. É preciso repensar de gênero. Qual sua avaliação
Jane Felipe de Souza – Em geral,
tais práticas no âmbito escolar. desse processo?
não são discutidos em profundidade.
Há uma pesquisa da Unesco [Orga- Jane Felipe de Souza – Tal mo-
nização das Nações Unidas para a vimento mostra o quanto os grupos
IHU On-Line – Como respei- Educação, a Ciência e a Cultura] que conservadores estão organizados,
tar a religiosidade das famílias aponta tal problema na formação. galgando postos importantes de de-
e, ao mesmo tempo, preservar Em mais de 2 mil cursos de Pedago- cisão. A confusão conceitual que
o caráter laico da educação pú- gia existentes no país, apenas pouco demonstram revela um profundo
blica? mais de 30 têm em seus currículos al- desconhecimento, aliada a inúmeras
Jane Felipe de Souza – No PPP guma menção a gênero e sexualidade. estratégias de disseminação de ódio
[projeto político pedagógico] da esco- E, mesmo assim, aqueles cursos que e preconceito. O fato de cooptarem
la deveria haver um item reafirmando tratam desses temas em sua grade muitos outros grupos e a sociedade
que uma das principais atribuições da curricular muitas vezes são em dis- em geral, a partir de concepções mui-
escola é ampliar o conhecimento dos/ ciplinas eletivas, o que significa dizer to estreitas, baseadas apenas no sen-
as alunos/as, portanto, não deve haver que o/a aluno/a pode passar todo o so comum, sinalizam, por sua vez, a
tema proibido na escola, e as famílias tempo da sua formação sem ter visto falta de conhecimento técnico/teóri-
precisam saber disso. Cabe também ao nada sobre esses temas, o que pode co a respeito da homossexualidade e
corpo docente respeitar a religião das comprometer a qualidade do seu da transexualidade, além de um pro-
famílias, jamais desconstituir qualquer trabalho diante da turma, quando fundo e preocupante desrespeito às
credo religioso. Uma estratégia muito ocorrer alguma situação que exija, identidades que fogem ao padrão he-
interessante é propor uma pesquisa por parte do/a professor/a, conheci- teronormativo. Tal quadro demons-
para a turma, sobre história das religi- mento para abordar de forma correta tra o quanto é necessário discutirmos
ões, quais as concepções de masculino e e sem discriminações as questões que esses temas nas escolas.
feminino que apresentam, como enca- envolvem gênero e sexualidade.
ram a sexualidade, os relacionamentos
afetivo-sexuais, a visão que possuem IHU On-Line – Como a edu-
de família etc. Estabelecer um debate IHU On-Line – A escola é re- cação infantil deve ser pensa-
sobre as diferenças entre religião e re- flexo da sociedade, de um tem- da e praticada em tempos de
ligiosidade, por exemplo. po? Como garantir no processo retrocesso?

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Jane Felipe de Souza – Em pri- to, resolvi desdobrá-lo em dois aspec- raliza o assédio, banalizando assim a
meiro lugar, investir na formação tos que me pareciam fundamentais. cultura do estupro. Portanto, podemos
docente, tanto inicial quanto conti- O primeiro deles chamava atenção dizer que a pedofilização é uma forma
nuada. As escolas, os municípios e para o fato de termos leis de proteção de violência contra as meninas (e tam-
os Estados deveriam ter essa von- à infância e à adolescência (Estatudo bém contra os meninos, porque os edu-
tade política de incentivar seu cor- da Criança e do Adolescente, 1990) e, ca a ter um determinado tipo de olhar
po docente a se qualificar cada vez por outro lado, convivermos ao mes- e de prática que promove o desrespeito
mais, além de fornecer materiais mo tempo com o incentivo constante às meninas e às mulheres).
adequados nas salas referência. Em à erotização dos corpos infantis e ju-
As estatísticas trazem dados alar-
segundo lugar, ter um ótimo acervo venis, como se disséssemos: desejem
mantes, mostrando que em 2011,
literário, além de filmes, livros di- esses corpos, vejam como eles podem
por exemplo, 10.425 crianças e ado-
dáticos e paradidáticos que contem- ser tão desejáveis. Dentro de uma so-
lescentes foram vítimas de violência
plem as temáticas de gênero, sexu- ciedade de espetacularização do corpo
sexual e que, de todas elas, cerca de
alidade, questões étnico-raciais, e da sexualidade, em que a lógica do
83,2% era do sexo feminino. A maior
inclusão, diversidade. Por último, consumo se faz presente em todas as
esferas, nada como visibilizar também incidência ocorreu na faixa etária
promover o debate sobre esses te-
os corpos infanto-juvenis. Vários tra- dos 10 aos 14 anos (23,8 notifica-
mas com alunos/as, família e toda a
balhos demonstraram esse fenômeno, ções/100 mil crianças e adolescen-
comunidade escolar.
inclusive na nossa linha de pesquisa tes). Entre 15-19 anos, 93,8%. Foram
Educação, sexualidade e relações de 16,4 atendimentos para cada cem
gênero, destacando o trabalho de Di- mil (Fonte: Sistema de Informações
IHU On-Line – Nos lares,
nah Beck, sobre a erotização dos uni- de Agravos de Notificação – SINAN/
crianças são vítimas indiretas,
formes escolares, a pesquisa de Bianca MS). Esses dados mostram o quanto
e até mesmo diretas, de maus-
Guizzo, sobre a erotização das crianças, precisamos discutir essas questões e
tratos emocionais e violência
em especial das meninas, a constru- o quanto as escolas precisam abor-
psicológica infringidos a mu-
ção das masculinidades, de Alexandre dar esses temas.
lheres. Qual o papel da escola e
dos professores em relação ao Bello, dentro outros (ver os trabalhos
completos em www.lume.ufrgs.br). 35
amparo, à acolhida e à educação
IHU On-Line – Uma pergunta
dessas crianças fragilizadas? Desse modo, o primeiro aspecto do de natureza pessoal: quão frus-
Jane Felipe de Souza – É pre- conceito de pedofilização refere-se à trante é para a senhora, que
ciso entender que o papel da escola exposição dos corpos infantis, colo- pesquisa gênero, educação e in-
é limitado, pois quase sempre não cados como objetos de desejo e con- fância, acompanhar a crescen-
é possível resolver o problema da sumo, interferindo nas formas de se te intromissão de pensamentos
violência. Mas a escola tem um vestir, de se maquiar, de andar, de se conservadores, fundamentalis-
papel importante nessa acolhida, comportar (FELIPE, 2008). tas e moralistas nas escolas?
acompanhamento e também na ta- O segundo aspecto refere-se à ex- Jane Felipe de Souza – É triste
refa de detectar o problema. É mui- ploração do universo “infantil” como constatar que vivemos em uma so-
to importante ter um olhar atento potencialmente erótico, em que a ciedade conservadora, hipócrita e ig-
para a criança, ouvir o que ela quer infância é usada como como fetiche
dizer, pois muitas vezes ela não norante, em que as pessoas têm uma
para temática de sedução (infância compreensão muito rasa do que vem
tem quem a escute. Mas, na escola, = ingenuidade). Desse modo, objetos
ela poderá expressar seu sofrimen- a ser gênero e sexualidade, ainda
característicos do mundo infantil são que sejam pessoas com grau de ins-
to, angústia, caso ela perceba tal acionados como cenários erotizados
acolhimento e solidariedade. trução elevado. Ainda assim, muitas
(ensaios fotográficos sensuais de mo-
dessas pessoas demonstram grande
delos usando bichinhos de pelúcia,
desconhecimento a respeito desses
uniformes colegiais, brinquedos etc.).
conceitos, que são diferentes e com-
IHU On-Line – Em suas pes- Também na publicidade, na moda,
plexos. Lamentavelmente muitos/as
quisas, a senhora opera com o nos sites de jogos para crianças é pos-
professores/as não conseguem com-
conceito de pedofilização com sível perceber esse processo.
preender a importância de tratarem
prática social contemporânea.
O terceiro aspecto do conceito de pe- desses temas nas escolas. Tal onda
Pode explicá-lo? Que proces-
dofilização refere-se à ideia de que ele conservadora começa agora a poli-
sos contribuem para a erotiza-
funciona como preparação, uma espé- ciar livros de literatura infantil, por
ção de corpos infantis e quais
cie de preâmbulo para o assédio sexual, exemplo, vendo problemas em tudo.
os malefícios da sexualização
a violência/abuso e exploração sexual. Parece que estamos numa onda per-
precoce?
Ou seja, uma vez que a pedofilização secutória, em que páginas de livros
Jane Felipe de Souza – Em 2002, está calcada na erotização dos corpos são arrancadas, autores são pratica-
quando comecei a utilizar este concei- infantis, ela alicerça, alimenta e natu- mente colocados na “fogueira”. ■

EDIÇÃO 507
TEMA DE CAPA

Não se pode pensar em políticas


públicas sem o devido recorte racial
Para Juliana Borges, violência é fruto do sexismo e não
se pode indissociá-la do racismo, quando a maioria
das mulheres que sofrem agressões são negras
Vitor Necchi

A
s estatísticas sobre violências co- poder”. Borges é categórica ao dizer “que
metidas contra mulheres revelam não haverá conquista possível de liber-
que as negras são mais vulnerá- dade e justiça enquanto mulheres negras
veis. É por isso que a feminista negra Ju- seguirem sem liberdade e justiça”.
liana Borges afirma que “não se pode, ja- Ao refletir sobre o combate às violên-
mais, em nosso país pensar em políticas cias a que são submetidas mulheres ne-
públicas sem o devido recorte racial”. gras, manifesta que não acredita em uma
Ela salienta que “a violência é fruto do “visão punitivista para entender e olhar o
sexismo, e não se pode indissociá-la do mundo”, pois “o Brasil já é um país extre-
racismo quando a maioria das mulhe-
mamente violento, repressor e punitivo”
res que relatam variadas experiências
onde “a Justiça pune com o olhar raciali-
de violência são negras em nosso país”.
zado e classista, ou seja: negros e pobres”.
Analisando o contexto, resume: “Racis-
36 mo, machismo e classismo são estrutu- A ativista defende a importância de se
rais e indissociados de nossa sociedade”. focar na prevenção e em direitos à cida-
dania plena, ao exercício democrático e
Ela reconhece que houve “avanços
à participação com decisão real. “Ques-
importantíssimos para evidenciar e
tões estruturais demandam respostas
combater a violência contra as mulhe-
estruturais e integradas”, defende.
res nos últimos anos, mas é preciso
pensar aonde estas políticas chegam e Juliana Borges é feminista negra.
a quem alcançam”. Em entrevista con- Pesquisa na área de Antropologia o
cedida por e-mail à IHU On-Line, diz que se tem chamado geração tomba-
que precisamos “de um olhar integral, mento. Estuda Sociologia e Política na
interseccional e complexo diante de um Fundação Escola de Sociologia e Políti-
país com a interseção de opressões tão ca de São Paulo – FESPSP. É colunista
complexas e articuladas entre si”. do Blog da Boitempo Editorial e do site
Ao falar sobre o feminismo negro, des- Justificando. Foi secretaria adjunta de
taca que ele “tem sua própria epistemo- Políticas para as Mulheres da Prefeitu-
logia, modo de ver e defender um projeto ra de São Paulo na gestão Haddad, no
de emancipação”. Tal vertente “não se ano de 2013. É articuladora política da
trata de uma reivindicação identitária, Iniciativa Negra por uma Nova Política
mas de uma disputa de projeto e visão de sobre Drogas.
mundo e, portanto, trata de relações de Confira a entrevista.

IHU On-Line – No ambiente tância das políticas públicas perpassa todas as relações e institui-
familiar, é comum que o pa- para se combater a violência ções sociais. A família é uma destas
triarcado e a violência de gêne- de gênero? instituições sociais constituída sob
ro se reproduzam de geração esta lógica do controle. Seja do con-
a geração, e muitas mulheres Juliana Borges – O patriarcado trole da prole e, portanto, da heran-
acabam introjetando o papel como sistema de poder é uma estru- ça, seja do controle de quem “gera” a
submisso que lhes é atribuído. tura que articula e organiza toda a so- prole, as mulheres. O que quero dizer
Nesse sentido, qual a impor- ciedade. Neste sentido, está presente e é que a família, que hoje chamamos de

19 DE JUNHO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“As violências simbólicas


e psicológicas são mais
complexas de se combater,
justamente, pela sutileza em
que são colocadas e vividas”

“família tradicional”, é uma instituição do, pela dimensão sistêmica e com- trabalhar este lado psico-emocional
com uma função central no patriar- plexa, demanda políticas públicas à é um ponto de partida muito im-
cado. Hoje, já há certos avanços, em mesma altura. portante. O machismo faz com que
determinadas áreas, sobre o entendi- nos vejamos incapazes. Uma estu-
mento do que constitui uma família. diosa afro-americana chamada bell
No direito da família, por exemplo, o IHU On-Line – O ciclo da vio- hooks2, com minúscula mesmo, ao
conceito ampliou-se, compreendendo lência contra a mulher é tão falar de racismo, escreveu um be-
a família pelos laços de afetividade, perverso a ponto de ela ser líssimo texto chamado “Vivendo
mais do que uma estrutura fixa e rígi- agredida, não se insurgir e ain- de amor” sobre a importância da
da de pai/mãe- filhos. da tentar se reconciliar com o reconstrução da autoestima para
homem agressor porque não que seja possível resistir e recons-
tem condições emocionais e fi- truir-se. Acho que vale muito para
Por ser estrutural e estruturante e
nanceiras de buscar uma vida este caso e pergunta também.
perpassar todas as relações sociais,
longe dele. Como lidar com 37
marcas do machismo também per-
essa situação? IHU On-Line – O debate em
passam a constituição sócio-psicoló-
gica dos sujeitos que sujeita. Simo- Juliana Borges – Eu não sei, torno das questões de gênero
ne de Beauvoir1 já disse, certa vez, exatamente, como interpretar esta vem contemplando as questões
que “o opressor não seria tão forte questão. Porque parto de outras próprias das mulheres negras
se não tivesse cúmplices entre os premissas. Há variados tipos de com o grau de importância que
próprios oprimidos”. Claro que violência. As violências simbólicas e essa especificidade requer?
ela não estava falando da dimen- psicológicas são mais complexas de Juliana Borges – Outra ques-
são puramente individual, mas de se combater, justamente, pela suti- tão intrigante. Na verdade, como
como as opressões são uma forte leza em que são colocadas e vividas. feminista negra interseccional, não
teia estrutural e que, portanto, vá- Talvez não seja o caso de insurgir- consigo enxergar de modo apartado
rias são as dimensões necessárias se, ou de demandarmos da mulher as questões de gênero das questões
para desconstruí-la: no campo po- uma postura única frente a estas si- das mulheres negras. E entendo me-
lítico, social, psicológico etc. tuações. Vejo muitas mulheres que nos como uma especificidade e mais
criam modos outros de viver. Não como uma parte, dentre várias, que
Por isso que políticas públicas são
estou, absolutamente, defendendo constitui o que chamamos, hoje, “fe-
importantes. No entanto, não qual-
uma vida de violência, mas pontu- minismos”. A socióloga Patricia Hill
quer tipo de política pública. As po-
ando quão complexas são as teias Collins3, ao teorizar sobre o que se-
líticas públicas precisam ser mais
da violência em que vivem estas
embasadas no acúmulo político e
mulheres. E, talvez, pensarmos me- 2 Gloria Jean Watkins (1952): mais conhecida
epistêmico sobre estas temáticas e pelo pseudônimo bell hooks (escrito em minús-
nos em vítimas e mais em mulheres culas), é uma autora feminista e ativista social
garantir uma perspectiva intersec-
em situação de violência. O estigma nascida nos Estados Unidos. O nome bell hooks
cional e intersetorial. O patriarca- foi inspirado em sua bisavó materna, Bell Blair
da vítima também é muito intenso. Hooks. Sua produção trata da interconectividade
E o que estas mulheres vivem é uma de raça, capitalismo e sexo, que ela descreve por
1 Simone de Beauvoir (1908-1986): escritora, fi- sua capacidade de produzir e perpetuar os siste-
lósofa existencialista e feminista francesa. Ligou- situação que lutamos para que seja mas de opressão e dominação de classe. Publicou
se pessoal e intelectualmente ao filósofo francês mais de 30 livros e muitos artigos. Aborda raça,
Jean-Paul Sartre. Entre seus ensaios críticos, des- transitória e para que elas sejam su- classe e gênero na educação, arte, história, sexua-
taca-se O segundo sexo (1949), uma profunda jeitas de si. Uma das dimensões da lidade, mídia de massa e feminismo. (Nota da IHU
análise sobre o papel das mulheres na sociedade; On-Line)
A velhice (1970), sobre o processo de envelheci- violência de gênero, e psicológica 3 Patricia Hill Collins (1948): professora universi-
mento, no qual teceu críticas apaixonadas sobre a tária de Sociologia da Universidade de Maryland,
atitude da sociedade para com os anciãos; e A ce- sobretudo, é fazer a pessoa agredida College Park. Também é a ex-chefe do Departa-
rimônia do adeus (1981), uma evocação da figura desacreditar de suas potencialida- mento de Estudos afro-Americanos na Universi-
de seu companheiro de tantos anos, Sartre. (Nota dade de Cincinnati, e ex-presidenta do Conselho
da IHU On-Line) des, de suas capacidades. Penso que da Associação Americana de Sociologia. Collins

EDIÇÃO 507
TEMA DE CAPA

ria o feminismo negro, vai falar de Juliana Borges – Os contornos di- vítimas (aumento de 54,2%). O
modo taxativo que não somos um ferenciados podem ser apontados com que esses dados revelam?
complemento ao “feminismo”. O a intersecção necessária ao analisarmos
Juliana Borges – Estes dados
“feminismo negro” tem sua própria os dados sobre estas violências. Pela
revelam que não se pode, jamais,
epistemologia, modo de ver e de- falta de acesso à cidadania para uma
em nosso país pensar em políticas
fender um projeto de emancipação. grande parcela da população negra, e
públicas sem o devido recorte racial.
O feminismo negro não se trata de quando digo isso, estou afirmando que
Tivemos avanços importantíssimos
uma reivindicação identitária, mas o fato de a população negra estar mais
para evidenciar e combater a violên-
de uma disputa de projeto e visão de presente, pelo histórico escravocrata
cia contra as mulheres nos últimos
mundo e, portanto, trata de relações do país, em territórios sem quaisquer
anos, mas é preciso pensar aonde es-
de poder. O que dizemos é que não serviços públicos de qualidade – seja
tas políticas chegam e a quem alcan-
haverá conquista possível de liber- saneamento, educação de qualidade,
çam. Penso que este é um ponto cen-
dade e justiça enquanto mulheres acesso à justiça, saúde etc. –, as vul-
tral. Não estamos falando da criação
negras seguirem sem liberdade e nerabilidades, portanto, são maiores.
de vários programas específicos, mas
justiça. Isto é muito maior e global O Estado só se faz presente, na maio-
de um olhar integral, interseccional
do que específico. ria das periferias brasileiras, pelo seu
e complexo diante de um país com a
braço repressor, que é a polícia. Não
interseção de opressões tão comple-
estou dizendo que são vulnerabilidades
xas e articuladas entre si.
IHU On-Line – É possível que criam a violência, porque isso seria
tratar de violência contra mu- romantizar as classes mais abastadas, IHU On-Line – A vulnerabilida-
lheres sem discutir racismo e mas estou afirmando, pelos dados, que de da mulher negra se processa
sexismo no Brasil? a situação de vulnerabilidade social até mesmo nas gestações, o que
se torna um obstáculo para que essas também caracteriza violência
Juliana Borges – Não. A violência
mulheres, que vivem nas periferias, de gênero. Conforme dados de
é fruto do sexismo, e não se pode indis-
possam superar o ciclo de violência. 2012 do Sistema de Informações
sociá-la do racismo quando a maioria
A socióloga Heleieth Saffioti4, no livro sobre Mortalidade do Ministério
das mulheres que relatam variadas ex-
Gênero, patriarcado e violência, faz da Saúde (SIM/MS), negras são
38 periências de violência são negras em
muito bem este recorte focado em clas- 62,8% das vítimas de morte ma-
nosso país. Racismo, machismo e clas-
se. Se somarmos aos dados do Mapa da terna, situação que, conforme es-
sismo são estruturais e indissociados
Violência, garantindo o recorte racial, pecialistas, poderia ser evitada se
de nossa sociedade. Segundo o Mapa
estas distinções e maiores vulnerabi- houvesse acesso a informações e
da Violência de 2015, temos cerca de 13
lidades das mulheres negras ficam ex- acompanhamento adequado no
homicídios femininos diários no país,
plícitos. Principalmente se pensarmos pré-natal. Isso é reflexo da com-
e 50,3% destes assassinatos foram co-
que violência contra mulheres tem for- binação de racismo institucional
metidos por familiares e pouco mais
mato variado, passando desde abusos e desigualdade de gênero?
de 33% praticados pelo parceiro ou ex
psicológicos, sociais, físicos e médicos
parceiro dessas mulheres. Além disso, Juliana Borges – Sem dúvida. As
também, ao analisarmos os dados de
nos últimos 10 anos houve aumento opressões são estruturais e estrutu-
violência obstétrica no país.
de 54% de assassinatos de mulheres rantes e perpassam todas as relações
negras, enquanto que, no mesmo pe- sociais e institucionais de nossas vi-
ríodo, registrou-se a diminuição do as- IHU On-Line – Conforme o das. Há variados mitos em torno da
sassinato de mulheres brancas. Vemos Mapa da Violência 2015, no Bra- mulher negra como reflexo e con-
aí explicitamente uma disparidade e sil, a população negra é a mais sequência dos mais de 300 anos de
que comprova que estes debates, de atingida pelos homicídios; as escravização no nosso país. Angela
raça, gênero e classe devem ser feito de taxas de homicídio de brancos Davis5, em seu livro recentemente
modo interseccionado. tendem, historicamente, a cair, traduzido para o Brasil, Mulheres,
enquanto aumentam entre os raça e classe, ao falar de como as mu-
negros. No que se refere espe-
IHU On-Line – No que se refe-
cificamente à população femini-
re às mulheres negras, a violên-
na, o número de homicídios de 5 Angela Davis (1944): é uma professora e filósofa
cia de gênero adquire contor- socialista estado-unidense que alcançou notorie-
brancas caiu de 1.747 vítimas, dade mundial na década de 1970 como integran-
nos distintos? De que maneira? te do Partido Comunista dos Estados Unidos, dos
em 2003, para 1.576, em 2013 Panteras Negras, por sua militância pelos direitos
(queda de 9,8%); no mesmo pe- das mulheres e contra a discriminação social e ra-
cial nos Estados Unidos e por ser personagem de
ríodo, os homicídios de negras um dos mais polêmicos e famosos julgamentos
foi a 100º presidenta da ASA, e a primeira mulher cresceram de 1.864 para 2.875 criminais da recente história dos Estados Unidos.
afro-americana a ocupar o cargo. Collins trabalha, Na década de 1960, Angela tornou-se militante
principalmente, sobre feminismo e gênero dentro do partido e participante ativa dos movimentos
da comunidade afro-americana. Ela ganhou noto- negros e feministas que sacudiam a sociedade
riedade por seu livro para a atenção nacional para norte-americana da época, primeiro como filia-
o seu livro “Black Feminist Thought: Knowledge, 4 Heleieth Iara Bongiovani Saffioti (1934 - da da SNCC de Stokely Carmichael e depois de
Consciousness and the Politics of Empowerment”, 2010): foi uma socióloga marxista, professora, movimentos e organizações políticas como o
publicado originalmente em 1990. (Nota da IHU estudiosa da violência de gênero e militante femi- Black Power e os Panteras Negras. (Nota da IHU
On-Line) nista brasileira. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

lheres negras eram tratadas no perí- lheres negras são mais fortes e re- há uma série de questões que devem
odo escravocrata, aponta que nunca sistentes a dor, de que são lascivas e ser pensadas antes. Geralmente, nós
houve para elas o estereótipo da do- fáceis e, portanto, hipersexualizadas pensamos no que fazer depois que es-
cilidade, da sensibilidade e da fraque- etc. Estes estereótipos, carregados no tas mulheres já estão em uma situação
za. Pelo contrário, as mulheres negras imaginário social, trazem consequên- de violência, e é importante focarmos
tinham que trabalhar tanto quanto os cias indeléveis na vida das mulheres na prevenção e em direitos. Educação
homens negros escravizados. A ques- negras, e os dados em torno da vio- de qualidade, acesso à Saúde Integral
tão de gênero se evidenciava porque, lência obstétrica evidenciam isso. da População Negra, moradia, sanea-
além de ter que trabalhar do mesmo mento básico, trabalho digno, acesso
modo, as mulheres negras também à Justiça e ao entendimento das leis
IHU On-Line – Como comba-
eram vítimas da lascívia dos donos e de seus direitos são questões chaves
de escravizados e do ódio e ciúme ter as diversas formas de vio-
tanto para mulheres quanto para ho-
das esposas daqueles homens. Em lência a que são submetidas
mens para quebrarmos estereótipos
Dicionário da escravidão no Brasil, mulheres negras? Educação,
e a reprodução da violência. Direito à
de Clóvis Moura6, o verbete sobre políticas públicas, cotas, puni-
cidadania plena, ao exercício democrá-
“mucama” explicita bem como era a ção aos agressores?
tico, à participação com decisão real.
situação da mulher negra escravizada Juliana Borges – Não acredito em Estas são, para mim, as maneiras mais
no Brasil. Com isso, vários foram os uma visão punitivista para entender e efetivas para combatermos a violên-
estereótipos e estigmas de que mu- olhar o mundo. O Brasil já é um país cia, a desigualdade política e social de
extremamente violento, repressor e gênero, bem como quaisquer outras
6 Clóvis Moura [Clóvis Steiger de Assis Moura]
(1925-2003): Sociólogo, jornalista e historiador punitivo. A questão é que a Justiça desigualdades. Questões estruturais
brasileiro. Foi militante do Partido Comunista Bra- pune com o olhar racializado e classis- demandam respostas estruturais e in-
sileiro e um dos pioneiros da defesa do movimen-
to negro brasileiro. (Nota da IHU On-Line) ta, ou seja: negros e pobres. Penso que tegradas.■

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EDIÇÃO 507
TEMA DE CAPA

Os gêneros são apenas


efeitos de verdade
Adolfo Pizzinato destaca a emergência de várias
possibilidades identitárias que devem ser historicizadas
Vitor Necchi

D
esde o final do século 20, inten- leitura interseccional permite identificar
sificou-se a discussão acerca do as particularidades e tensões a que são
campo sexo/gênero e “houve submetidos determinados grupos, assim
uma renovação de vários debates de como compreender uma pluralidade de
cunho político identitário sobre quem agenciamentos possíveis, relacionados à
somos e as razões e contrarrazões des- experiência de pessoas em situações de
sas configurações existenciais”, afirma subordinação/insubordinação”.
o psicólogo e professor Adolfo Pizzina- Não há dúvida de que a violência de
to. “A fragmentação do ‘sujeito moder- gênero deveria ser eliminada ou radi-
no’ e a emergência dos estudos sobre o calmente transformada, afirma o psi-
campo das identidades e das identifica- cólogo. “Porém, a forma que propomos
ções na atualidade não são fenômenos de contribuir para o debate é ir além de
deslocados ou isolados em alguma área atrelamentos dicotômicos, tais como:
40 do conhecimento.” Ao mesmo tempo bom-mau, homem-mulher, agressor-o-
em que ocorre um declínio da noção fendida”. Isso decorre do fato de que “os
de indivíduo como construto unifica- homens estão colocados no contexto da
do, percebe-se “a emergência de várias violência em diferentes lugares, inclusi-
possibilidades identitárias que devem ve muitas vezes como produto-alvo de
ser historicizadas”. padrões de subjetividade orientados por
Em entrevista concedida por e-mail modelos de gênero e de relações hierár-
à IHU On-Line, Pizzinato diz que “é quicas de poder que definem a domina-
muito limitado, nas formas de vida atu- ção masculina sobre as mulheres”.
ais, conceber uma pessoa nuclear (de Adolfo Pizzinato é psicólogo e mes-
características essencializadas e não con- tre em Psicologia Social e da Personali-
flitivas)”. Ele considera que “qualquer dade pela Pontifícia Universidade Ca-
analista social minimamente implicado tólica do Rio Grande do Sul – PUCRS
identifica diversas possibilidades de con- e doutor em Psicologia pela Universitat
tradições, e multiplicidades de identifica- Autònoma de Barcelona. É professor dos
ção atuais, em todos os coletivos sociais”. programas de Pós-Graduação em Psico-
Em relação às pesquisas sobre o tema, logia e em Serviço Social da PUCRS.
Pizzinato observa que “a perspectiva de Confira a entrevista.

IHU On-Line – Existe um con- outras categorias como raça, nal como forma de complexificar tais
ceito que vem crescendo em sexualidade e classe? análises tradicionais e resgatar certa
importância, que é o de inter- materialidade, ao mesmo tempo em
seccionalidade, ou seja, a análi- Adolfo Pizzinato – Possível é e é que as práticas de campo discursivo
se de uma situação a partir da constantemente feito por boa parte são integradas. Utiliza-se a noção
articulação das diferenças e das das análises sociais de campo majori- de interseccionalidade como forma
desigualdades. É possível tra- tário. Entretanto, teóricos e teóricas de localizar sócio-historicamente as
tar gênero sem articulá-lo com defendem a perspectiva interseccio- manifestações que produzem e rei-

19 DE JUNHO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“O declínio da noção de indivíduo


como construto unificado, típico da
Modernidade, acompanha a emergência
de várias possibilidades identitárias
que devem ser historicizadas”

teram sistemas de dominação, seja em situações de subordinação/insu- do “sujeito moderno” e a emergência


por meio da reflexão sobre os mar- bordinação. Estes processos não se dos estudos sobre o campo das iden-
cadores sociais de diferença como dão deslocados de relações estrutu- tidades e das identificações na atua-
categorias em articulação, bem rantes, como é o caso de fenômenos lidade não são fenômenos desloca-
como dos posicionamentos sociais como racismo e sexismo. Nesta con- dos ou isolados em alguma área do
envolvidos nos meandros do coti- cepção, diferentes homens em con- conhecimento. O declínio da noção
diano. Dentro dos Estudos de Gê- textos específicos podem se situar de indivíduo como construto unifi-
nero, esta perspectiva permite que em espaços de exclusão e possibili- cado, típico da Modernidade, acom-
diversos marcadores sociais sejam dades de articulação e identificação, panha a emergência de várias possi-
interpretados de forma articulada, contestando um suposto modelo he- bilidades identitárias que devem ser
fomentando que se reflita acerca gemônico de homem universal, por historicizadas. É muito limitado, nas
dos espaços de agenciamento, de exemplo, por meio do entendimento formas de vida atuais, conceber uma
diferenças e desigualdades que si- de que as identidades sexuais e de pessoa nuclear (de características
tuam as pessoas no tecido social. O gênero são fragmentadas, históricas, 41
essencializadas e não conflitivas).
campo de análise interseccional, de- instáveis e nutridas por um investi- Qualquer analista social minima-
rivado das tensões provocadas pelo mento produtivo dos sujeitos calca- mente implicado identifica diversas
feminismo negro estadunidense, do em relações de poder. possibilidades de contradições, e
põe em pauta uma multiplicidade multiplicidades de identificação atu-
de questões sociais vistas sob uma ais, em todos os coletivos sociais. As
IHU On-Line – Por que, nos
perspectiva integrada, na qual não formas de organização do capitalis-
últimos anos, a discussão em
se procuram generalizações, ainda mo, o impacto das TICs [Tecnologias
torno das questões de gênero
que se trate de um mesmo grupo da Informação e Comunicação] e os
se tornou mais presente na so-
ou setor em análise. Este vetor de demais processos de globalização
ciedade?
análise não compreende, portanto, incrementam o contato com a diver-
um somatório de operadores de do- Adolfo Pizzinato – Não apenas sidade que acaba por questionar os
minação – ou simplesmente o reco- o campo sexo/gênero, mas desde o
padrões normativos de outrora, par-
nhecimento de sistemas opressivos final do século 20 houve uma reno-
ticularmente nos domínios de maior
que operam a partir das noções de vação de vários debates de cunho po-
possibilidade, como os de sexo/gê-
gênero, etnia/raça, escolaridade, lítico identitário sobre quem somos
nero. O possível e o impossível nesse
idade, classe, sexualidade etc. –, e as razões e contrarrazões dessas
campo se cruzam afetiva e simboli-
mas sim questiona a hierarquização configurações existenciais. Ainda
camente nos modos de cada pessoa
destes eixos relacionados a sistemas que a gama de teorias a respeito seja
ser e (se) reconhecer.
assimétricos de poder, dando ense- imensa, os consensos são virtuais.
jo para diversas abordagens e suas O que sim me parece evidente é que
respectivas articulações inclusive a necessidade de aproximação às IHU On-Line – Gênero é uma
com movimentos sociais. discussões relativas aos processos construção social?
identitários é sintomática, como já
definia Stuart Hall1. A fragmentação Adolfo Pizzinato – Mais uma
A perspectiva de leitura intersec- vez, o panorama é complexo e con-
cional permite identificar as particu- 1 Stuart Hall (1932-2014): teórico cultural e soci- traditório em termos teóricos, mas,
laridades e tensões a que são subme- ólogo jamaicano, viveu e desenvolveu sua carreira
acadêmica no Reino Unido a partir de 1951. Hall, neste ponto, há pouca argumentação
tidos determinados grupos, assim juntamente com Richard Hoggart e Raymond realmente crítica que defenda algum
Williams, fundou a escola de pensamento co-
como compreender uma pluralidade nhecida como Estudos Culturais britânicos. Stuart essencialismo biologizante nesse
de agenciamentos possíveis, rela- Hall expandiu o escopo dos estudos culturais para
lidar com raça e gênero, além de ajudar a incorpo-
cionados à experiência de pessoas rar novas ideias derivadas do trabalho de teóricos franceses. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 507
TEMA DE CAPA

campo. Entretanto, há questões de se na e pela linguagem. Aproprian- distinção entre o imitado e o imita-
ordem epistemológica e analítica, do-se do modelo foucaultiano3 de dor, entre a verdade e a representa-
com variação nos modos de inscrever inscrição, Butler estabelece toda ção da verdade, entre a referência e
gênero na cultura. Por exemplo: a tra- identidade de gênero como uma o referente, entre a natureza e o ar-
dição ocidental dos sistemas binários forma de paródia produzida nas re- tifício, entre os órgãos sexuais e as
e de sexo/gênero opera uma tentati- lações de poder. Essa norma seria práticas de sexo. O gênero poderia
va de hegemonia heterossexual para incorporada e, como consequência, ser uma tecnologia sofisticada que
modelar questões sexuais e políticas, são produzidos corpos que signifi- fabrica corpos sexuais.
fazendo com que o gênero se “natu- cam essa lei sobre o corpo e através
ralize”, ancorando-se na legitimidade do corpo. Logo, os gêneros são ape-
dos saberes biológicos diferenciado-
res de homens e mulheres. Porém, se,
nas efeitos de verdade. O conceito
de performatividade torna possíveis “Os conceitos
conforme Judith Butler2, os atributos
de gênero são performativos, produ-
encenações de gênero que chamem
atenção para o caráter construído
de gênero e
zindo inclusive a ilusão de uma iden-
tidade preexistente, a postulação de
de todas as identidades, sobretudo
aquelas mais estáveis. Algumas des-
sexo conso-
um verdadeiro sexo ou de uma ver-
dade sobre o gênero revela-se antes
sas encenações são mais paródicas
que outras, como o drag, que reve-
lidam certa
uma ficção reguladora. la a natureza mimética de todas as
identidades de gênero.
desconstrução
Os conceitos de gênero e sexo con-
solidam certa desconstrução do su- Outras pensadoras e pensadores
do sujeito da
jeito da Modernidade e apresentam
novas possibilidades de subversão.
vão além, como Paul B. Preciado4,
que defende que gênero não é sim-
Modernidade
Retomando a questão dos modos pe-
los quais a identidade, sobretudo a
plesmente performativo (ou seja, um
efeito das práticas culturais linguís-
e apresentam
42
de gênero/sexual, é construída no e
pelo discurso, Butler postula um su-
tico-discursivas) como queria Judith
Butler. O gênero seria antes de tudo
novas possi-
jeito como sempre em processo, que
se constrói no discurso pelos atos
protético, ou seja, não se daria senão bilidades de
na materialidade dos corpos, pura-
que executa. Assim, a identidade
de gênero é conceituada como uma
mente construído e ao mesmo tempo subversão”
inteiramente orgânico. Escapa das
sequência de atos sem ator ou au- falsas dicotomias entre o corpo e a
tor preexistentes. A identidade, por alma, a forma e a matéria. O gênero IHU On-Line – Em que con-
exemplo, de mulher, é um devir, um se assemelharia ao vibrador. Porque textos o controle dos homens
construir sem origem ou fim. A iden- os dois ultrapassam a imitação. Sua sobre as situações fica mais evi-
tidade, portanto, está aberta a certas plasticidade carnal desestabiliza a dente? Ambientes familiares,
formas de intervenção e de ressig-
profissionais, sociais ou em
nificação contínuas, porquanto seja 3 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês.
Suas obras, desde a História da Loucura até a His- qualquer espaço?
uma prática discursiva. tória da sexualidade (a qual não pôde completar
devido a sua morte), situam-se dentro de uma Adolfo Pizzinato – A assimetria
Quando sacada de uma análise filosofia do conhecimento. Foucault trata princi-
palmente do tema do poder, rompendo com as entre as condições de possibilidades
biologista e trazida uma discussão concepções clássicas do termo. Em várias edições,
a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Fou-
existenciais entre homens e mulhe-
ontológica humanística (e linguís- cault: edição 119, de 18-10-2004, disponível em res é um importante indicador da
tica), passa-se a poder encarar o http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 6-11-2006,
disponível em https://goo.gl/C2rx2k; edição 364, normalização do controle dos ho-
gênero como um conjunto de atos de 6-6-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o
discurso racional em debate, disponível em ht-
mens sobre as mulheres. Tal discus-
repetidos no interior de um quadro tps://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo são torna-se mais intensa quando se
regulatório, onde a identidade de biopolítico da vida humana, de 13-9-2010, dis-
ponível em https://goo.gl/M95yPv, e edição 344, apresentam dados sobre as violên-
gênero seria constituída pelas pró- Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um de-
bate, disponível em https://goo.gl/RX62qN. Con-
cias sob o prisma de gênero. Ao nos
prias expressões que supostamente fira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em dedicarmos ao estudo de situações
são seus resultados. A performativi- formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13,
Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educa- em que homens cometem violência
dade – outro conceito chave na obra ção, a Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line)
4 Paul B. Preciado [Beatriz Preciado] (1970): filó-
contra mulheres, nos deparamos
de Judith Butler – seria um ato que sofo feminista espanhol, homem trans e discípulo com dados e práticas discursivas que
faz surgir o que nomeia e constitui- de Jacques Derrida, Preciado é grande referência
de Teoria Queer e na filosofia de gênero. Um bem fomentam e sustentam as posições
precioso. Entrevista com Beatriz Preciado publica- antagônicas de “agressor” e “agre-
2 Judith Butler (1956): Filósofa pós-estruturalis- da nas Notícias do Dia, de 24-2-2011, publicada
ta estadunidense, uma das principais teóricas da nas Notícias do Dia do Instituto Humanitas Unisi- dida”, mesmo que muitas vezes sem
questão contemporânea do feminismo, teoria nos – IHU, disponível em http://bit.ly/1OrKZPO; O
queer, filosofia política e ética. Ela é professora do gênero multiplicado. Artigo de Beatriz Precisado problematizarmos os jogos discursi-
departamento de retórica e literatura comparada publicado nas Notícias do Dia do Instituto Huma- vos que constituem essa relação no
da University of California em Berkeley. (Nota da nitas Unisinos – IHU de, 2-9-2011, disponível em
IHU On-Line) http://bit.ly/1IXm6rx. (Nota da IHU On-Line) campo contextual.

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REVISTA IHU ON-LINE

Obviamente nem todas as práticas sadoras como Lia Zanotta Machado5 ridos (ou parceiros) costumam di-
são exclusivamente discursivas. O denominam como valores da atuali- zer que primeiro buscam “avisar”,
assassinato, a violência física, psico- dade, correspondendo às mudanças “conversar” e depois, se não são
lógica e moral são acontecimentos da conjuntura atual, sem necessaria- obedecidos, “batem”. Consideram,
passíveis de investigação criminal mente apresentarem uma ruptura portanto, que as atitudes e ações de
que vai em busca de uma verdade, estrutural. A concepção do masculi- suas mulheres (e, por extensão, de
por meio de provas materiais e tes- no como sujeito da sexualidade e o suas filhas) estão sempre distantes
temunhais. Porém, não cabe à Psico- feminino como seu objeto é um valor do comportamento ideal do qual
logia uma análise que defina “a ver- de longa duração da cultura ociden- se julgam guardiões e precisam ga-
dade dos fatos”, deixemos isso para tal. Na visão arraigada no patriar- rantir e controlar. A associação da
a polícia e as instituições jurídicas. calismo, o masculino é ritualizado mentalidade patriarcal que realiza
O foco da psicologia social poderia como o lugar da ação, da decisão, da e reatualiza o controle das mulhe-
estar na linguagem como prática chefia da rede de relações familiares res e a rivalidade presumida entre
social, historicamente datada e con- e da paternidade como sinônimo de homens estão sempre presentes
textualizada, que possibilita a circu- provimento material: é o “impensa- nas agressões por ciúme (medo da
lação de conteúdos, produz efeitos do” e o “naturalizado” dos valores perda do objeto sexual e social) cujo
e gera posicionamentos. Nosso foco tradicionais de gênero. Da mesma ponto culminante são os homicídios
então poderia ser na linguagem em forma e em consequência, o mascu- pelas chamadas “razões de honra”.
uso, ou seja, nas práticas discursivas. lino é investido significativamente
com a posição social (naturalizada) IHU On-Line – O homosse-
Não temos dúvida de que a violên- de agente do poder da violência, ha- xual considerado afeminado é
cia de gênero se trata de uma situ- vendo, historicamente, uma relação mais vulnerável à violência, em
ação que deveria ser eliminada ou direta entre as concepções vigentes comparação aos não afemina-
radicalmente transformada. Porém, de masculinidade e o exercício do dos? Por quê?
a forma que propomos de contri- domínio de pessoas, das guerras e Adolfo Pizzinato – Poder e sub-
buir para o debate é ir além de atre- das conquistas. O vocabulário mili- jugação do associado ao feminino.
lamentos dicotômicos, tais como: tarista erudito e popular está reche- Os estudos sobre homossexualidade
bom-mau, homem-mulher, agres- ado de expressões machistas, não masculina no Brasil têm mostrado 43
sor-ofendida. Os homens estão co- havendo como separar um de outro. que sua apreensão, dentro e fora
locados no contexto da violência em Levando em conta o caso brasileiro, dos circuitos de homossociabilidade,
diferentes lugares, inclusive muitas típico da cultura ocidental e ao mes- encontra-se fortemente estruturada
vezes como produto-alvo de padrões mo tempo específico em sua histori- nas personagens homem/macho e
de subjetividade orientados por mo- cidade, comentarei três situações: a bicha, as quais sinalizariam, respec-
delos de gênero e de relações hierár- do estupro, a da violência contra a
quicas de poder que definem a domi- tivamente, masculinidade e femini-
mulher na condição de cônjuge e a lidade, bem como atividade e passi-
nação masculina sobre as mulheres. do homicídio cometido por homens
Ou seja, o mesmo sistema de poder vidade sexual, balizadas pelo fato de
contra homens. o primeiro penetrar o segundo. Tal
que autoriza os homens a agirem
de modo agressivo e fazer valer os No caso das relações conjugais, a apreensão reedita o sistema de sexo-
seus direitos sobre as mulheres em prática cultural do “normal mas- gênero mais amplo e inscreve a que-
nome da honra é o mesmo sistema culino” como a posição do “macho bra do tabu da homossexualidade na
de poder que os coloca em situação social” apresenta suas atitudes e inteligibilidade heteronormativa, em
de vulnerabilidade, tanto no campo relações violentas como “atos cor- termos foucaultianos. Esse sistema
privado, como no público. retivos”. Por isso, em geral, quando ou matriz opera na confluência de
acusados, os agressores reconhe- três dimensões corpóreas, pautadas
cem apenas “seus excessos” e não pelos valores conferidos a atributos
IHU On-Line – Por que há sua função disciplinar da qual se humanos, apreendidos em classifi-
homens que se sentem legiti- investem em nome de um poder e cações hierárquicas sociossexuais,
mados a adotarem condutas de uma lei que julgam encarnar. nos termos propostos por Gayle Ru-
violentas contra mulheres? A Geralmente quando narram seus bin6: (a) o agenciamento de entona-
violência é uma expressão de comportamentos violentos, os ma- ção vocal e lexical, gestuais e adereços
poder?
5 Lia Zanotta Machado: graduada em Ciências 6 Gayle Rubin (1949): antropóloga norte-ameri-
Adolfo Pizzinato – As relações Sociais, mestra e doutora em Sociologia pela Uni- cana. Escreveu grande número de artigos muito
versidade de São Paulo – USP. É professora de An- influentes, entre os quais The Traffic in Women:
entre as formas de viver a masculini- tropologia da Universidade de Brasília – UnB. Foi Notes on the ‘Political Economy’ of Sex, Thinking
dade e a cultura da violência podem coordenadora da área de antropologia e arque- Sex, The Leather Menace e Misguided, Dangerous
ologia da Capes de 2011 a 2014. Ex-Conselheira and Wrong: An Analysis of Anti-Pornography Po-
ter como parâmetro a ressignificação do Conselho Nacional dos Diretos das Mulher e litics. Militante do movimento feminista desde o
ex-membro de comitê de monitoramento da Se- final da década de 1960. Durante mais de duas
de valores de longa duração que es- cretaria de Políticas Públicas para as Mulheres. Foi décadas, teve atuação expressiva na política gay e
truturam a cultura ocidental patriar- professora visitante da Universidade de Columbia, lésbica. Sua obra apresenta sugestões metodoló-
na Cátedra Ruth Cardoso (2009-2010). (Nota da gicas para os estudos do feminismo e da homos-
cal, no que pesquisadores e pesqui- IHU On-Line) sexualidade masculina. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

nas performances públicas; (b) fon- ção com e para as mulheres e para inclusive. Entretanto, apesar des-
tes privilegiadas de prazer corporal os outros homens. São corpos que sas situações pontuais, que podem
(pênis/anus/boca); e (c) posições importam à exibição e que, dentro ter características mais ou menos
sexuais (insertivo/receptivo). Essas deste movimento, tornam-se inte- essencialistas, inclusive (por exem-
três dimensões são articuladas caso ligíveis, desejáveis, idealizados ou plo, a despeito dos argumentos ou
a caso pelos homens e servem de invejados, marcados pelo exercício termos usados, um discurso pode
elementos diacríticos para a reali- da masculinidade nos moldes ma- ser automaticamente descredibi-
zação de leituras de gênero: mascu- joritários cujo uso hiperbólico refe- lizado apenas pelo sexo ou cor do
lino e feminino. A posição passiva rencia a heterossexualidade. emissor ou da emissora do mes-
anal joga o homem para a esfera do mo), tais posições não são genera-
feminino, inferiorizando-o, ataca lizáveis. Ao contrário, os efeitos de
IHU On-Line – Como o debate
e destrói o ideal da masculinidade tais embates discursivos tendem a
acerca das questões de gênero
viril tradicional. Ainda que as prá- ser positivos a médio prazo, uma
está muito em voga, há contro-
ticas homossexuais sejam condena- vez que questionam regimes de
le e disputa sobre o vocabulário
das pela moral sexual do senso co- verdades sobre ‘os outros’, ou seja,
empregado. A discussão se-
mum, em muitos contextos há certa sobre os coletivos mais estigmati-
mântica é necessária, mas não
licença para o homem que se coloca zados ou excluídos das condições
está ocorrendo cerceamento e
na posição de ativo. Como macho, de existência. Esses embates tam-
estigmatização de pessoas pou-
ele pode penetrar todos, mulheres bém ilustram que esse processo de
co habituadas ao linguajar pró-
e bichas. As performances de mas- questionamento dos cerceamentos
prio desse tema?
culinidade que figuram em vários de poder entre coletivos está ativo
circuitos sociais (como bares, fes- Adolfo Pizzinato – Certamente e, portanto, promovendo mudan-
tas, esportes…) são manifestadas os embates sociais muitas vezes ge- ças nas práticas discursivas tradi-
como reiteração constante de cor- ram exageros ou conflitos pelo em- cionais de reprodução das relações
pos masculinos e viris, dotados de prego ou não de uma determinada de poder marcadas pela heteronor-
certa estética que figura na intera- palavra, algumas vezes fetichizada, matividade e pelo machismo.■

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REVISTA IHU ON-LINE

É fundamental reconhecer
discriminação contra diversidade
como violação de direitos
Para Ângelo Brandelli Costa, a representação social negativa
e a demarcação das sexualidades não heterossexuais como
diferentes, anormais e negativas são matriz do preconceito
Vitor Necchi

H
á um grande esforço para con- processos, a população LGBT não será
frontar a discriminação, mas “a considerada merecedora de proteção.
representação social negativa e
Nesse contexto, os campos jurídico e
a demarcação das sexualidades não he-
político costumam adotar expressões
terossexuais como diferentes, anormais
que atenuam a sexualidade, entre elas
e negativas ainda é muito presente e é
casamento homoafetivo e homoafetivi-
a matriz desse preconceito”, avalia o
dade. Para Costa, “ocorre uma tentativa
psicólogo Ângelo Brandelli Costa. Em
de polimento moral da própria sexua-
entrevista concedida por e-mail à IHU
lidade de pessoas gays e lésbicas”. Ele
On-Line, ele afirmou que “somos so-
sugere uma comparação: o “reconheci-
cializados nessa cultura que hierarqui-
za as expressões do comportamento
mento de uniões entre pessoas de sexos 45
diferentes não se dá pela necessidade
sexual, e é daí que internalizamos uma
visão preconceituosa”. da positivação do afeto”, tanto que não
existe a expressão heteroafetividade. “O
Conforme o pesquisador, pessoas que deveria estar em jogo é um direito
trans são mais vulneráveis à violência democrático à sexualidade, o reconhe-
porque “ultrapassam duplamente as
cimento da homossexualidade como
fronteiras das normas sociais a respeito
uma variação da normalidade”.
de gênero e sexualidade”. No entanto,
há outros fatores de vulnerabilidade: Ângelo Brandelli Costa é gra-
falta de políticas para permanência na duado em Psicologia, especialista em
escola, ingresso no mercado de traba- Psicologia Social, mestre em Psicolo-
lho, acesso a serviços de saúde, dificul- gia Social e Institucional e doutor em
dade de correção dos registros civis etc. Psicologia pela Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul – UFRGS. É
Costa avalia que é fundamental re-
professor e coordenador do Grupo de
conhecer que injúria e discriminação
Pesquisa Preconceito, Vulnerabilidade
contra diversidade sexual e de gênero
são violações de direitos a serem com- e Processos Psicossociais da Pontifícia
batidas. Se esses marcadores sociais Universidade Católica do Rio Grande
de diferenças não forem reconhecidos do Sul – PUCRS.
como vulnerabilizadores para diversos Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quando se fala violência em que o gênero é de- de maneira mais diversa. Por exem-
em violência de gênero, a as- terminante? plo, o Brasil também é líder em ho-
sociação imediata é a mulher Ângelo Brandelli Costa – Não micídios de pessoas trans. Esse dado
como vítima e o homem como podemos negligenciar a violência denota a forma como as expressões
agressor, em razão da históri- que sofrem as mulheres no contexto de gênero que são diferentes das he-
ca opressão que elas sofrem. latino, especialmente no Brasil. No gemônicas, binárias (homem-mu-
Quais são as outras formas de entanto, a violência de gênero opera lher), disparam processos de exclu-

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TEMA DE CAPA

são e até extermínio. Além disso, interfaces como forma de entender, al, inclusive da psicologia, seja o de
podemos pensar em formas de cons- por exemplo, algumas matrizes de combater o preconceito, a represen-
trução das masculinidades pautadas violência contra população LGBT. tação social negativa e a demarcação
na violência (trânsito, por exemplo). Ao mesmo tempo, também me pa- das sexualidades não heterossexuais
Devemos considerar ainda a inter- rece importante os programas que como diferentes, anormais e negati-
face entre sexualidade e gênero no visam a dar saliência para necessi- vas ainda é muito presente e é a ma-
caso do preconceito contra diversi- dades específicas do ponto de vista triz desse preconceito. Somos socia-
dade sexual. político e também de saúde, de pro- lizados nessa cultura que hierarquiza
teção social e de garantia de direitos as expressões do comportamento se-
de cada um dos grupos que mencio- xual, e é daí que internalizamos uma
IHU On-Line – Costuma-se nei. São programas de pesquisa e de visão preconceituosa.
evocar o patriarcado para ex- ativismo político complementares e
plicar a violência contra mu- não excludentes.
lheres. Ele também está na IHU On-Line – No Brasil, ao
base da violência contra ex- se analisarem as manifestações
pressões de gênero discordan- de preconceito contra orien-
tes das hegemônicas? “Somos socia- tações não heterossexuais, há
mais agressividade contra ex-
Ângelo Brandelli Costa – Eu
situaria os processos que originam
lizados nessa pressões de gênero dissonan-
tes das hegemônicas? A perfor-
as violências contra as expressões de
gênero não hegemônicas em outras
cultura que mance considerada afeminada

hierarquiza as
é mais vulnerável? Por quê?
bases. Até hoje, a transexualidade
e outras expressões de gênero são Ângelo Brandelli Costa – Essa
consideradas doenças mentais. Du-
rante boa parte do século 20, foram
expressões do é uma discussão interessante bas-
tante presente nos estudos antro-
prescritas terapias conversivas na comportamento pológicos sobre sexualidade no
Brasil. Ao contrário de diversos
sexual, e é daí
46 tentativa de corrigir aquilo que era
percebido como uma falha no de- contextos, no Brasil, um homem
que faz sexo com outros homens
senvolvimento normal. Essa história
médica que construiu as expressões que internaliza- e tem uma performance de gêne-

mos uma visão


de gênero diferentes das hegemôni- ro pública mais masculina para os
cas como anormais contribuiu para padrões sociais hegemônicos, pode
a manutenção de uma representação
social negativa, que coloca numa po-
preconceituosa” “passar” por heterossexual e ser
menos vítima de sanções do ponto
sição hierarquicamente inferior esse de vista do preconceito. O mesmo
grupo e que pode ajudar a pautar para uma mulher que faz sexo com
esse tipo de violência. IHU On-Line – O que sustenta outras mulheres e tem uma per-
o preconceito contra orienta- formance mais associada ao que é
ções não heterossexuais? considerado feminino. Veja que o
IHU On-Line – A discussão so- contrário também acontece. Não
bre gênero fica reduzida se não Ângelo Brandelli Costa – A psi- são poucos os relatos de pessoas
contemplar outras categorias, cologia foi uma das instituições que que se consideram heterossexu-
como identidade de gênero e historicamente marcaram de forma ais, mas estavam abraçadas na rua
orientação sexual? negativa a população LGBT, taxando (pais e filhos, inclusive) e sofreram
as sexualidades que não visavam a agressões por serem confundidos
Ângelo Brandelli Costa – Do
fins reprodutivos como patológicas, com casais. Uma das explicações
ponto de vista acadêmico, são gran-
prescrevendo terapias conversivas. é a confluência entre papéis de gê-
des universos de pesquisa. O grupo
Esses discursos reforçavam a lógica nero relacionados aos comporta-
de estudos sobre o gênero per se, so-
punitiva pela via legal e policial e mentos sexuais. Atividade e passi-
bre as mulheres, sobre as masculini-
contribuíram profundamente para a vidade. Quem é ativo e passivo na
dades, sobre sexualidade (e também
manutenção de uma representação relação, e papéis associados ao que
homossexualidade), sobre as transe-
social negativa associada a esses gru- seria mais esperado de homens e
xualidades, sobre outras expressões
pos. A partir de 1969, o movimento mulheres. Aí vemos a violência de
de gênero e, inclusive, programas de
LGBT retorna aos sujeitos o controle gênero, clássica, ressignificada.
estudo sobre a construção e descons-
das classificações imposta sobre elas
trução da necessidade de operarmos Além disso, precisamos colocar
e eles, ressignificando essas classifi-
através da categoria gênero. Do pon- essa questão em perspectiva com a
cações de maneira positiva.
to de vista interseccional, hoje, me maneira como se constrói o espaço
parece importante contemplar essas No entanto, embora o esforço atu- público no Brasil. Sempre vigiado,

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sempre permeado com questões da grupos partidários que poderiam


vida privada, pensando com Sérgio “No momento facilmente se tornar pró-diversi-
Buarque de Holanda1. Com essa dade, caso percebessem que assim
preponderância sobre a vigilância em que sur- lograriam algum tipo de benefício.

ge algo como
da esfera pública, importa muito Infelizmente o custo disso é a inte-
como se comportam homens e mu- gridade física e emocional da popu-
lheres e a atribuição da sexualidade
que fazemos a respeito desses com- a parada do lação LGBT e das mulheres.

portamentos públicos. No contexto


norte-americano, por exemplo, as orgulho héte- IHU On-Line – Devido à au-

ro, é porque a
expressões públicas, performances sência de ferramentas para
de gênero, não disparam esse pre- avaliar o preconceito contra a
conceito como aqui. Por lá, a sexu-
alidade, o que acontece entre qua-
afirmação da diversidade sexual e de gênero
no Brasil, o senhor desenvol-
tro paredes, muitas vezes é o mais
problemático. Aqui, há um maior
diversidade se- veu um instrumento próprio
para isso, adaptado para o con-
policiamento destes papéis (inclu-
sive autopoliciamento).
xual como uma texto brasileiro. O que caracte-
riza esse contexto e que dados

IHU On-Line – Pessoas trans, possibilidade já foram obtidos por meio des-
se instrumento?
em particular, são mais vulne-
ráveis às diversas formas de
se tornou forte Ângelo Brandelli Costa – Nós
violência? Por quê?
o suficiente” desenvolvemos um instrumento que
fosse sensível a essa confluência en-
Ângelo Brandelli Costa – No tre sexualidade e gênero na forma
contexto brasileiro, as pessoas como o preconceito contra popula-
IHU On-Line – O fundamen-
trans são aquelas que ultrapas- ção LGBT opera no Brasil. Por isso,
talismo religioso vem crescen-
sam duplamente as fronteiras das preferimos chamar não de homo/
normas sociais a respeito de gêne-
do, produzindo uma onda con- 47
servadora que afeta e cerceia transfobia, mas de preconceito con-
ro e sexualidade. É nesse sentido tra diversidade sexual e de gênero,
questões da ordem do privado,
que se tornam mais vulneráveis à dando a entender que inclusive pes-
entre elas a sexualidade. Como
violência. Podemos elencar outros soas que se identificam como he-
o senhor avalia este fenômeno?
fatores de vulnerabilidade, como a terossexuais, mas que de alguma
falta de políticas que garantam a Ângelo Brandelli Costa – Pare- forma ultrapassam aquilo que é es-
permanência na escola, o ingresso ce-me que esses grupos de interesse perado em termos do regramento
no mercado de trabalho, o acesso elegeram essa pauta na medida em social, podem ser vítimas desse tipo
a serviços de saúde, a dificuldade que perceberam a estruturação dos de preconceito.
de correção dos registros civis etc. movimentos a favor da diversidade
Todos esses fatores contribuem sexual e de gênero e o surgimento Quando avaliamos o preconceito
para a marginalização social e a das primeiras políticas relaciona- do ponto de vista dos indivíduos, não
prevalência não apenas da violên- das à população LGBT no Brasil. No estamos negando que o preconceito
cia de gênero, mas de outros tipos momento em que surge algo como a seja um fenômeno social. São essas
de violências associadas à exclu- parada do orgulho hétero, é porque grandes narrativas que colocam di-
são social. a afirmação da diversidade sexual ferentes valorações para homens em
como uma possibilidade se tornou relação a mulheres, pessoas cis em
forte o suficiente. relação a pessoas trans, hétero em
relação a homossexuais que são as
1 Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982): No entanto, é visto que diversos
historiador brasileiro, também crítico literário e matrizes para a construção de men-
jornalista. Entre outros, escreveu Raízes do Brasil movimentos conservadores pelo
(1936). Obteve notoriedade por meio do concei-
talidades preconceituosas por parte
mundo, especialmente nos Estados
to de “homem cordial”, examinado nessa obra. A dos indivíduos.
professora Eliane Fleck, do PPG em História da Unidos, também abraçam as pautas
Unisinos, apresentou, no evento IHU Ideias, de
22-8-2002, o tema O homem cordial: Raízes do de gênero e de sexualidade de ma- E é importante estudar e combater
Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e no dia neira positiva. Não estou dizendo esse tipo de preconceito do ponto de
8-5-2003, a professora apresentou essa mesma
obra no Ciclo de Estudos sobre o Brasil, conce- que não exista uma associação en- vista individual, pois há inúmeras
dendo, nessa oportunidade, uma entrevista à IHU
On-Line, publicada na edição nº 58, de 5-5-2003, tre conservadorismo político/reli- evidências que apontam que crenças
disponível em http://bit.ly/152MP1v. Sobre Sérgio gioso e uma agenda antidiversidade preconceituosas, que colocam em
Buarque de Holanda, confira, ainda, a edição 205
da IHU On-Line, de 20-11-2006, intitulada Raízes sexual e de gênero. De fato, existe. um status hierarquicamente inferior
do Brasil, disponível em https://goo.gl/RN3W57,
e a edição 498, de 28-11-2016, Raízes do Brasil – Mas, no Brasil, me parece que essa a diversidade sexual e de gênero,
80 anos. Perguntas sobre a nossa sanidade e saúde é uma pauta que garante certa vi- estão associadas a tendências a agir
democráticas, disponível em http://bit.ly/2nDmd-
FE. (Nota da IHU On-Line) sibilidade midiática para alguns de maneira discriminatória que re-

EDIÇÃO 507
TEMA DE CAPA

forçam ainda mais as desigualdades nessa direção no contexto em que tema da sexualidade, da garantia
sociais desses grupos. se tenta criminalizar o próprio de- de direitos e também da não discri-
bate de gênero em sala de aula? minação aspectos do privado como
Já temos dados desse tipo de pre-
Estamos vivendo um momento de o afeto, isso não acontece sem al-
conceito utilizando o instrumento
instituição de políticas regressivas guns problemas. O principal é que
no contexto dos profissionais de
em relação a essa pauta, quando ocorre uma tentativa de polimento
saúde do Rio Grande do Sul2 e no
deveríamos estar montando re- moral da própria sexualidade de
Ensino Superior3. Estamos agora
des de proteção e amparo. Não pessoas gays e lésbicas. Perceba
em processo de publicação de um
nos faltam exemplos pelo mundo que o reconhecimento de uniões
estudo com professores, estudantes
de experiências interessantes e de entre pessoas de sexos diferentes
e funcionários de escolas de Ensino
evidências da sua necessidade na não se dá pela necessidade da po-
Médio de quatro estados brasileiros.
literatura científica. sitivação do afeto. Não existe a he-
teroafetividade. É quase como se
IHU On-Line – Como comba- para ser dignos de reconhecimento
ter o preconceito relacionado a legal casais de pessoas do mesmo
gênero e sexualidade? Políticas “O Brasil tam- sexo precisassem de uma espécie
de upgrade de afetivo, abrindo mão
bém é líder em
públicas são fundamentais a
esse intento? daquilo que a sociedade vê como
problemático, que é a sexualida-
Ângelo Brandelli Costa – Pre-
cisamos do reconhecimento de que
homicídios de de não hegemônica. Isso cria uma

pessoas trans”
nova hierarquização entre casais
a injúria e a discriminação contra homoafetivos e não homoafetivos
diversidade sexual e de gênero são que pode ser matriz de novas for-
violações de direitos e que mere- mas de exclusão e discriminação.
cem ser combatidas. Do meu ponto
de vista, isso é fundamental. Não O que deveria estar em jogo é um
IHU On-Line – Na justifica-
sou defensor do estado penal. Não direito democrático à sexualidade,
tiva para aprovação legal da
48 se trata disso. O que precisa ser o reconhecimento da homossexua-
união civil entre duas pessoas,
feito é o reconhecimento desses lidade como uma variação da nor-
os campos jurídico e político
marcadores sociais das diferenças malidade, que tem especificidades
adotaram expressões específi-
como vulnerabilizadores para di- (muitas vezes independentes da
cas, entre elas casamento ho-
versos processos e que, portanto, a afetividade colada no amor român-
moafetivo e homoafetividade,
população LGBT é merecedora de tico) e que deveria ser reconheci-
que enfatizam a natureza afe-
proteção. Sem esse marco jurídico da enquanto tal. Para isso, seria
tiva das relações. Isso não traz,
programático, é muito complexa preciso uma discussão de uma es-
na origem, um preconceito, na
a instituição de políticas públicas fera propriamente pública, laica,
medida em que tenta sublimar
em níveis centrais (seja saúde, universal e abstrata que atenda
a natureza sexual da relação
garantia de direitos, educação ou aos interesses individuais sem, no
entre pessoas do mesmo sexo?
segurança pública) e sua capilari- entanto, estar reduzida a eles. Ou
zação até a população. Como um Ângelo Brandelli Costa – Re- seja, que dê espaço para a criação e
professor de uma escola no inte- centemente publicamos um artigo liberdade em relação à diversidade
rior do Rio Grande do Sul vai se discutindo essa questão no con- sexual e de gênero. Será que esta-
autorizar a instituir uma política texto da complicada relação entre mos fazendo isso no Brasil de hoje?
espaço público e privado no Brasil. A “homoafetividade” me parece ser
2 https://goo.gl/94ZtUD e https://goo.gl/4TWiu7 A cordialidade da cultura brasilei- sintoma desse descaso com o deba-
(Nota do entrevistado) ra. No momento em que levamos te do que é uma esfera pública no
3 https://goo.gl/1mJAiu e https://goo.gl/XdPES6
(Nota do entrevistado) para a esfera pública que debate o Brasil. ■

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TEMA DE CAPA

No documentário sobre sua vida, a cartunista Laerte abre as portas de seu lar assumidamente bagunçado

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Eu Laerto, tu Laertas...
Documentário da Netflix expõe lado vulnerável da cartunista que
vive fortemente sob os holofotes nacionais desde que assumiu
sua identidade de mulher trans no final dos anos 2000

Fernando Del Corona1

Em um quadro branco da casa da cartunista Laerte Coutinho, onde se passa a maior parte de
Laerte-se, o primeiro documentário nacional produzido pela Netflix, em parceria com a produ-
tora Tru3lab, ela separou sua lista de coisas para fazer em três colunas: corpo, trabalho e casa.
Em muitos aspectos, parece que o próprio filme revolve em torno dessas palavras.
A casa já se expõe como personagem no começo do filme, quando, em uma série de e-mails
trocados com a diretora Eliane Brum, Laerte revela seu receio de começar as gravações ali, em
sua casa, no dia seguinte e pede para adiar, esperando por um momento melhor. Sempre que
recebe visitas para entrevistas rápidas, diz ela, fica nervosa e ansiosa – e dessa vez não vai ser
rápida. Pelo que conversam, entende-se que não foi a primeira vez que ela pedira isso, mas Brum
insiste com carinhosa firmeza: esses encontros devem ter sua dose de desconforto. Laerte aceita,
e abre para Brum e sua codiretora Lygia Barbosa da Silva as portas de seu lar assumidamente
bagunçado, repleto de pilhas de livros e de seus gatos, com quem senta no chão na frente de casa
para que eles possam passear um pouco.

1 Fernando Del Corona é mestrando em Comunicação e especialista em Televisão e Convergência Digital pela Universidade do
Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, graduado em Produção Audiovisual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul – PUCRS. Em seu artigo de conclusão da especialização, pesquisou a relação de fãs da série Game of Thrones com spoilers
no ambiente do site reddit. Em sua dissertação, em fase de desenvolvimento, investiga a presença da imagem-tempo na obra da
diretora norte-americana Sofia Coppola.

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Laerte, uma das cartunistas mais famosas do Brasil, viu-se fortemente sob os holofotes nacio-
nais ao assumir sua identidade de mulher trans no final dos anos 2000. Ela diz ter começado a
fazer a descoberta da sua identidade em 2004, aos 53 anos, após publicar uma tirinha em que
seu personagem Hugo se travestia na personagem que ficaria conhecida como Muriel. Em 2005,
seu filho Diogo, de 22 anos, morreu em acidente de carro. Receosa de citar a morte como “faísca”
para sua mudança, ela deixa claro o impacto que o evento teve em sua vida, e como isso influen-
ciou sua decisão de vir a público em 2009, em uma entrevista para a revista Bravo!, quando
ainda se identificava como crossdresser – efetivamente, um homem ainda. Com o tempo, con-
forme se aproximava dos 60 anos, assumiu-se como mulher trans, ainda que siga questionando
e elaborando sua própria identidade.
A enorme fama e visibilidade de Laerte como cartunista colocou-a logo como figura importante
na discussão sobre a transexualidade no Brasil – país que mais mata travestis e transexuais no
mundo, de acordo com dados do Grupo Gay da Bahia. O que Laerte-se revela, porém, é a relu-
tância com que ela lida com essa posição. A personagem que o filme encontra em sua intimidade
demonstra inseguranças, dúvidas, medos. Ela é tímida, e parece muitas vezes inquieta por ser
colocada diante da câmera. Tem medo que as pessoas descubram que ela é uma fraude, como
diz. Fica claro sua relutância de ser vista como uma porta-voz da comunidade transgênero, ao
mesmo tempo que parece entender a importância de seu papel como figura pública e procura se
pronunciar, revelando suas dúvidas e aprendizados, sem nunca se propor a ser uma especialista
no assunto.
Conhecida pelo humor ácido que revela no seu trabalho e por sua postura pública vocal e de-
sinibida, conhecer Laerte pelo modo como o filme a apresenta é um choque muito bem-vindo.
É preciso entender essa fragilidade que se esconde por trás da coragem que exibe ao viver da
maneira pública que vive.
Em seus questionamentos – que, muitas vezes, parecem ser feitos na hora, conforme fala com a
câmera –, Laerte parece em constante trabalho de elaboração sobre sua própria identidade. Per-
guntas importantes são lançadas: o que é ser mulher? Ela reformula: o que é se sentir mulher? 51
Ela não tem a resposta. Explica sua escolha de, até o momento, não fazer uma operação de mu-
dança de sexo. Mais do que isso, expõe seu corpo nu tanto na intimidade de um banho, conforme
se depila, quanto na sua vida artística, ao posar para uma sessão de fotos, ou ao se desnudar ao
lado de sua modelo após desenhá-la. Ao longo das filmagens, debatia-se com a ideia de colocar
ou não seios, uma questão que permeia todo o filme. Para ela, a questão pode ser dividida em
quatro verbos: querer, dever, precisar, poder. Precisar é o pior desses, diz ela, que parece teme-
rosa ao reforçar papéis de gênero, pouco convencida de que precisa de um peito para ser mulher.
Rita Lee a adverte: peito é um saco. Ela rebate: saco é um saco.
A câmera entra no quarto de Laerte, onde a vemos experimentar roupas e colocar maquiagem.
Em uma entrevista durante uma exibição de seus trabalhos, lhe perguntam sua marca de batom
favorita, e sua reação simpática é indecifrável – o quanto é alegria, o quanto é aquele desconfor-
to que vemos em suas cenas íntimas? Provavelmente um pouco dos dois. A primeira vez que se
vestiu de mulher foi quando tirou seus pelos pela primeira vez e viu seu corpo de outra maneira.
Visivelmente mais à vontade com sua posição de mulher trans, ela ainda afirma que não está
buscando construir uma identidade feminina, apenas sua própria identidade. Outra questão
surge: virar mulher ou nascer de novo? Decidiu não trocar seu nome, fortuitamente agênero, e
ficou feliz ao saber de outra mulher chamada Laerte.
Como ela coloca, o corpo é central, mas não é tudo – não gosta de usar a biologia como um
norte definitivo. Isso também se expande para o filme. Ainda que a identidade de Laerte, e sua
relação com seu corpo, seja o fio condutor do filme, Brum e Barbosa se voltam também para seu
trabalho como desenhista, e, enquanto em suas entrevistas ela aparece insegura, em seus dese-
nhos demonstra toda a eloquência que pode lhe faltar no discurso verbal. Muitas vezes os ques-
tionamentos sobre os quais ela se debruça longamente são melhor explicitados pelas tirinhas
que aparecem animadas na tela ao longo do filme. Sua relação com o desenho fica ainda mais
clara nas suas tirinhas de Hugo e Muriel. Nas histórias dos dois, Laerte explicitava cada vez mais
seus desejos, que inicialmente supria com saídas noturnas vestida de mulher, mas que cada vez
mais começou a tomar espaço na sua vida – assim como na vida de Hugo. Suas próprias angús-
tias são representadas visualmente conforme Hugo começa com experiências cômicas e casuais
com o crossdressing apenas para se ver cada vez mais se transformando em Muriel – ainda que,
ao contrário de Laerte, tenha permanecido assim e nunca assumido uma identidade trans.

EDIÇÃO 507
TEMA DE CAPA

Ao longo de Larte-se, acompanha-se a cartunista em projetos variados, resolvendo problemas


banais, em consultas ao médico ou com sua família e amigos. Ainda que brevemente, se conhece
um pouco sobre seus pais, sua juventude e seu processo de aceitação. Ela também elabora um
pouco sobre seu processo de criação – “é uma coisa que dá uma ereção mental” – e sobre sua
posição política. Declara-se de esquerda, mas questiona a validade dessa definição. As diretoras
apresentam cenas dos protestos políticos que dominaram o país durante a produção do docu-
mentário – que começou em 2013, sendo lançado apenas em 2017 – e, em certo momento, se vê
uma gravação de Laerte inserida em um deles. Através da mescla dessas cenas com as outras
discussões levantadas ao longo do filme, a mensagem fica clara: a maneira de Laerte se expor
como está fazendo é, em si mesmo, um ato político.
Ela questiona a própria coragem: ao se assumir como trans, já era separada – três filhos de três
casamentos –, tinha uma posição profissional estabelecida, já se aproximava dos 60 anos, não
tinha muito a perder. “Eu não sou uma pessoa conhecida pela audácia”, diz, para surpresa de
todos. Laerte é uma figura forte e importante no Brasil, e, sim, conhecida pela audácia. Em 2016,
processou – e ganhou – grandes veículos de comunicação e não mede as críticas afiadas sempre
que compartilha em abundância, seja através de sua arte ou não. Sim, em Laerte-se pode-se
ver, talvez pela primeira vez com tamanha clareza, a fragilidade e a insegurança por trás desse
personagem necessário no país, mas se isso produz algum efeito, é apenas reforçar sua audácia.
É preciso muita coragem para revelar o que Laerte revela, para mudar como ela mudou. Enfim,
para Laertear-se. ■

Confira outras publicações do Instituto Humanitas Unisinos –


IHU sobre gênero
52
- Pensando e Fazendo Gênero. Revista IHU On-Line, 76, de 22-7-2003, disponível em http://
bit.ly/2sxtdbp.
- Políticas públicas para as mulheres: uma conquista brasileira em debate. Revista IHU
On-Line, número 387, de 26-3-2012, disponível em http://bit.ly/2tvaFWM.
- Mulheres e a sociedade contemporânea. Conquistas e desafios. Revista IHU On-Line,
número 249, de 3-3-2008, disponível em http://bit.ly/2sHbBua.
- Uma sociedade de mulheres? Revista IHU On-Line, número 210, de 5-3-2007, disponível
em http://bit.ly/2sAEWqL.
- Mulheres na defesa do tempo,da vidae da felicidade. Revista IHU On-Line, número 91,
de 8-3-2004, disponível em http://bit.ly/2rywmZk.
- Produções tecnológicas e biomédicas e seus efeitos produtivos e prescritivos nas prá-
ticas sociais e de gênero. Caderno IHU, número 189, disponível em http://bit.ly/2sj8cz7.
- Prevalência de violência de gênero perpetrada por companheiro: Estudo em um ser-
viço de atenção primária à saúde – Porto Alegre, RS. Cadernos IHU Ideias, número 29,
disponível em http://bit.ly/2rDOufF.
- O Deus vivo nas vozes das mulheres. Cadernos Teologia Pública, número 34, disponível
em http://bit.ly/2a4odnF.
- Futebol e identidade feminina: um estudo etnográfico sobre o núcleo de mulheres
gremistas. Cadernos IHU Ideias, número 105, disponível em http://bit.ly/2sj9QRj .
- As Sete Mulheres e as Negras sem Rosto: Ficção, História e Trivialidade. Cadernos IHU
Ideias, número 17, disponível em http://bit.ly/2cKQNZ0.
- Mulheres em movimento na contemporaneidade. Cadernos IHU em Formação, número
37, disponível em http://bit.ly/2sjfS4u.
- Aborto Interfaces históricas, sociológicas, jurídicas, éticas e as conseqüências físicas
e psicológicas para a mulher. Cadernos IHU em Formação, número 25, disponível em
http://bit.ly/2sAzEeR.

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- Hannah Arendt e Simone Weil. Duas mulheres que marcaram a Filosofia e a Política
do século XX. Cadernos IHU em Formação, número 17, disponível em http://bit.ly/2sGPZhP.
- O lugar da mulher nos escritos de Paulo. Cadernos Teologia Pública, número 82, dispo-
nível em http://bit.ly/2sAGQYg.
- São Paulo contra as mulheres? Afirmação de declínio da mulher cristão no século I.
Cadernos de Teologia Pública, número 55, disponível em http://bit.ly/2s945XW.
- À meia luz: a emergência de uma teologia gay. Seus dilemas e possibilidades. Cader-
nos IHU Ideias, número 32, disponível em http://bit.ly/2s95EoS.
- O ideal de corpo sexuado e a normatização da vida: binarismo de gênero X despatolo-
gização das identidades trans e travestis. Entrevista especial com Tatiana Lionço, publi-
cada nas Notícias do Dia de 21-7-2016, disponível em http://bit.ly/2ryQDhx.
- Gênero, sexualidade e biopolíticas. Um olhar teológico. Entrevista especial com Gian-
nino Piana, publicada nas Notícias do Dia de 31-1-2016, disponível em http://bit.ly/2t9YxuX.
- Gênero e espaço urbano: uma relação de poder e resistência. Entrevista especial com
Ana Carolina Brandão, publicada nas Notícias do Dia de 24-6-2015, disponível em http://bit.
ly/2s99w9n.
- Geração ‘nem-nem’. As desigualdades sociais e de gênero. Entrevista especial
com Adalberto Cardoso, publicada nas Notícias do Dia de 4-2-2015, disponível em
http://bit.ly/2s99tKO.

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EDIÇÃO 507
ENTREVISTA

Violência, pobreza, cultura e potência.


A periferia e as tentativas de
transformação da realidade
Tiaraju D’Andrea analisa principais transformações ocorridas
na periferia paulistana em duas décadas e meia
Patrícia Fachin


A periferia paulistana passa por um Além disso, pontua, três outros fenô-
período de transição”. Esse é um dos menos que não estavam presentes na
diagnósticos do sociólogo Tiaraju década de 1990 ajudam a compreender
D’Andrea, que acompanha as transfor- as transformações nas periferias. “Uma
mações nas periferias nos últimos 25 narrativa, ou a tentativa da periferia
anos. Segundo ele, embora o lulismo de contar a sua própria história e sem
tenha representado “uma melhoria nas depender de mediadores, uma subje-
condições de vida” na periferia, “o de- tividade, ou o fato de os moradores da
semprego ronda esta população, sendo periferia passarem a ter orgulho dessa
as condições de trabalho uma preocu- condição, e o lulismo, como forma de
pação concreta”, e “há uma descrença governo, baseado no aumento dos direi-
generalizada nos partidos políticos e no tos sociais e do consumo”. Na atualida-
54 sistema representativo como um todo”. de, frisa, “pode-se observar o crescimen-
to de tendências conservadoras, assim
Na entrevista a seguir, concedida por como na sociedade em sua totalidade”.
e-mail à IHU On-Line, D’Andrea
explica as principais transformações Tiaraju D’Andrea é doutor em So-
ocorridas na periferia paulistana em ciologia da Cultura, mestre em Socio-
duas décadas e meia, como o surgimen- logia Urbana e graduado em Ciências
Sociais pela Universidade de São Paulo.
to do Primeiro Comando da Capital -
Atualmente é pesquisador convidado
PCC, o crescimento dos evangélicos e a
da École des Hautes Études en Sciences
explosão de coletivos artísticos. “Esses
Sociales (EHESS), em Paris.
três fenômenos foram saídas encontra-
das pela própria população da periferia A entrevista foi originalmente pu-
para superar o contexto de violência e blicada nas Notícias do Dia de 07-06-
pobreza da década de 1990. Foram for- 2017, no sítio do Instituto Humanitas
mas de superar o esgarçamento do te- Unisinos – IHU, disponível em http://
cido social e criar uma ética regulatória bit.ly/2rzo9Ec .
em um contexto de crise”, avalia. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Um dos temas o que era ou o que é um fenômeno possuía a preponderância da expli-
problematizados na sua tese é social de nome periferia. Denomina- cação do fenômeno periferia. Eram
o sentido e o significado do ter- mos aqui “discurso preponderante” intelectuais de distintas áreas como
mo ‘periferia’. O que entende aquele que possui maior abrangência sociologia, antropologia, geografia,
por ‘periferia’ a partir das suas e aceitação social para a explicação economia, história e urbanismo que
pesquisas? de um determinado fenômeno, mas conflitavam entre si para obter a
isso não quer dizer que não existam explicação mais aceita, mas tudo se
Tiaraju D’Andrea – Historica- passava dentro das formulações da
outras explicações concorrentes.
mente, sempre houve uma disputa academia. A partir de 1993, com o
entre distintos agentes sociais para De acordo com a tese, de mais ou lançamento de um CD do grupo de
obter a preponderância para definir menos 1960 até 1993, a academia rap Racionais MC’s de nome “Raio-X

19 DE JUNHO | 2017
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“O sujeito periférico é aquele indivíduo


que, por meio da percepção de
sua condição e da superação do
estigma, age politicamente para
transformar a sua realidade”

Brasil”, a preponderância passa para 2) o crescimento dos evangélicos e e aqui me aterei à música, é inte-
moradores de bairros periféricos, cuja ressante notar como nos anos 1980
3) uma explosão de coletivos artís-
eficácia da expressão ocorreu pela via houve uma preponderância do sam-
ticos.
artística, e não pela via científica. Esse ba e do rock nacional. Nos anos 1990
CD apresentou ao mundo raps como: Estes três fenômenos foram saídas o gênero hegemônico foi o rap. A
“Fim de Semana no Parque” e “Um encontradas pela própria população partir dos anos 2000 o funk passou a
Homem na Estrada”, dentre outros. da periferia para superar o contexto tomar a cena. Também não podemos
Esses raps foram tão impactantes que de violência e pobreza da década de esquecer o sertanejo e suas distintas
mudaram a forma de se pensar e en- 1990. Foram formas de superar o es- variações, dado que é o gênero mais
xergar a periferia. A preponderância garçamento do tecido social e criar escutado no Brasil como um todo,
periférica sobre o fenômeno periferia uma ética regulatória em um contex- inclusive nas periferias paulistanas.
durou mais ou menos até o ano de to de crise.
2002, quando o lançamento do filme
“Cidade de Deus” fez com que a In-
Outras duas tentativas de supera- IHU On-Line – Na sua tese 55
ção da violência foram provenientes você analisa a “explosão de ati-
dústria do entretenimento passasse a
de agentes externos à periferia. Fo- vidades culturais na periferia
possuir a preponderância das repre-
ram elas: nos últimos 20 anos”. Quais
sentações sobre o que seja a periferia.
4) O crescimento da presença de atividades são essas e a que
Esse filme abriu as portas para uma
ONGs (Organização Não Governa- atribui esse cenário?
série de produções cinematográficas
e televisivas sobre o assunto. A partir mental) nessas regiões e Tiaraju D’Andrea – Trata-se de
de 2002 a produção da periferia so- uma série de atividades artísticas e
5) o aumento da presença estatal.
bre o fenômeno periferia passa a ter culturais que ganharam impulso a
Por fim, outros três fenômenos que
um concorrente de maior peso social: partir dos anos 1990 e foram agra-
não existiam até a década de 1990,
a indústria do entretenimento. ciadas com uma série de financia-
passaram a ocorrer nessas regiões.
mentos públicos a partir dos anos
São eles:
2000. Nessas podem-se incluir os
IHU On-Line – Quais são as 6) uma narrativa, ou a tentativa da saraus, as comunidades de samba,
principais mudanças sociais, periferia de contar a sua própria his- as posses de hip-hop, os cineclubes
culturais e econômicas ocorri- tória e sem depender de mediadores; audiovisuais, os grupos de teatro, os
das nas periferias paulistanas
7) uma subjetividade, ou o fato de grupos de dança, a literatura mar-
desde os anos 1990 até os dias
os moradores da periferia passarem ginal, dentre outras. Todas essas
de hoje?
a ter orgulho dessa condição; e atividades são organizadas por co-
Tiaraju D’Andrea – Certamen- letivos artísticos.
te, um território amplo como o que 8) o Lulismo, como forma de go-
verno, baseado no aumento dos di- A explosão do número desses co-
denominamos periferia é múltiplo
reitos sociais e do consumo. letivos artísticos na periferia de
sincronicamente, assim como dia-
São Paulo nos últimos vinte anos
cronicamente foi passando por mu- Na atualidade, pode-se observar o ocorreu por pelo menos cinco gran-
tações. Creio que nos últimos 25 crescimento de tendências conserva- des fatores:
anos é possível enumerar alguns fe- doras, assim como na sociedade em
nômenos que não existiam antes dos sua totalidade. Ainda é cedo para sa- a) Produção artística como pacifi-
anos 1990. ber se esse fenômeno é conjuntural cação: neste caso, a produção artís-
tica foi uma saída para a espiral de
São eles: ou estrutural.
violência que se abateu sobre as pe-
1) o surgimento do PCC, No que tange à produção artística, riferias na década de 1990.

EDIÇÃO 507
b) Produção artística como sobre- ponder essa questão é necessário letivos de várias periferias se orga-
vivência material: neste ponto, a recuar no tempo. Em meados de nizaram para atuar conjuntamente,
produção artística foi uma forma de 1990, o termo periferia passou a ser fundando assim o Movimento Cul-
auferir renda em um contexto de po- utilizado de maneira política pelos tural das Periferias - MCP. Esse
breza. Isto ocorre pelo crescimento próprios moradores de periferia. movimento formulou uma lei de
de financiamentos e de mercado para Essa utilização fez com que o termo iniciativa popular que após muita
esta produção. Obter renda por meio se popularizasse. Em um primeiro luta foi aprovada, intitulada Lei de
de produção artística era uma forma momento, essa utilização do termo Fomento às Periferias.
de escapar de duas soluções pouco periferia ocorreu pela ação do mo-
interessantes: de um lado o mundo vimento hip-hop, depois passou a Não foi à toa que João Doria
do trabalho capitalista stricto sensu, ser utilizado e disseminado por uma (PSDB), ao assumir a prefeitura de
que sempre representou exploração, série de outras expressões culturais São Paulo, reduziu em 43% a verba
baixos salários e humilhação para presentes nas periferias. Nesse pri- da cultura do município, atingindo a
a população mais pobre; por outro meiro momento de utilização do ter- Lei de Fomento, dentre outras linhas
lado, a possibilidade dada a jovens mo periferia, fundamentalmente nos de financiamentos de atividades ar-
de baixa renda de auferir recursos primeiros anos da década de 1990, o tísticas nas periferias. Mais do que
por meio de atividades ilícitas. termo tinha um caráter de denúncia, econômica, essa atitude foi política.
pois mostrava à sociedade a realida- Sabendo a importância desses co-
Entre o mundo do trabalho e o
de ou a verdade, criticando com isso letivos, o sufocamento econômico é
mundo do crime, construiu-se uma
o pensamento hegemônico neolibe- uma forma de desorganizar politica-
terceira opção: a produção artística
ral de princípios dos 1990 que pre- mente as periferias.
como forma de sobrevivência mate-
gava o “fim da história” ou o “fim das
rial. Cabe destacar que a partir do
classes”.
ano 2000 aumentou exponencial-
mente o número de financiamentos Aquele mostrar a realidade em “Em meados de
1990, o termo
para esse tipo de atividade. caráter de denúncia se apoiava na
apresentação de duas características
c) Produção artística como parti-
56 cipação política: na década de 1990,
em um contexto de crise das formas
da periferia: a violência e a pobreza,
como forma de criticar a sociedade, periferia passou
clássicas de participação política ex-
pressa em partidos políticos, sindi-
mostrando características presentes
na realidade social que o pensamento a ser utilizado
catos e movimentos sociais, os cole-
hegemônico queria esconder. No en-
tanto, afirmar-se enquanto periferia de maneira po-
tivos de produção artística passaram
a reaglutinar os indivíduos que bus-
por meio dos elementos violência e
pobreza era pautar um processo his-
lítica pelos pró-
cavam intervir politicamente.
d) Produção artística como eman-
tórico de superação desses elemen-
tos. Logo, periferia continha e negava
prios morado-
cipação humana: neste caso, a pro-
dução artística foi uma forma de
violência e pobreza. Assim sendo, a
partir de meados da década de 1990
res de periferia”
moradores de bairros periféricos começa-se um processo histórico de
sentirem-se vivos e se humanizarem superação desses dois elementos, do IHU On-Line – De outro lado,
em um contexto de múltiplas violên- qual a produção artística dos bairros a que você atribui o crescimen-
cias, humilhações e estigmas. periféricos foi um dos principais arti- to evangélico nas periferias
culadores. Hoje o significado do ter-
e) Produção no local como respos- paulistanas?
mo periferia foi alargado, sendo que
ta à segregação socioespacial: nes-
o mesmo se entende contendo em seu Tiaraju D’Andrea – Creio que
te ponto, avalia-se a multiplicação
âmago quatro significados: violência, múltiplos fatores se somam para
de atividades artísticas na periferia
pobreza, cultura e potência. este fenômeno. Por um lado, há
como forma de dotar o local, levan-
do-se em conta que na cidade de São Devido à fragilidade de expressões um conservadorismo crescente na
Paulo os equipamentos culturais políticas tradicionais como partidos sociedade, do qual os evangélicos
concentram-se mormente na região políticos, sindicatos e movimentos são causa e consequência. Por ou-
central e no quadrante sudoeste. sociais, fundamentalmente a partir tro lado, esse crescimento é tam-
dos anos 1990, uma parte migrou bém fruto da dinâmica violenta dos
para a produção cultural como for- anos 1990. Cabe também ressaltar,
IHU On-Line – Como os cole- a crise econômica faz a população
ma de fazer protesto e se posicio-
tivos artísticos se manifestam buscar em comunidades religiosas
nar politicamente. Essa espécie de
na periferia e ressignificam o
orfandade política das periferias algumas saídas. Tampouco se deve
entendimento de periferia?
fortaleceu o crescimento desses co- esquecer o eficiente trabalho pro-
Tiaraju D’Andrea – Para res- letivos. Com o passar do tempo, co- selitista dessas igrejas.

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REVISTA IHU ON-LINE

IHU On-Line – Como a pre- sociais que redundaram naquilo um certo orgulho de se morar na pe-
sença do PCC se manifesta nas que denomino o ser periférico, que riferia.
periferias paulistanas? Hoje é uma espécie de orgulho de ser mo-
muitos especialistas em segu- rador da periferia em resposta ao
IHU On-Line – Qual seu diag-
rança falam que a atuação do estigma que muitas vezes acompa-
tráfico se dá dentro e fora das nóstico acerca da atual situação
nha essa condição. No entanto, essa
prisões, inclusive em disputas da periferia paulistana, dada a
passagem do estigma ao orgulho só
entre facções fora das prisões. atual crise brasileira?
foi possível de acontecer historica-
Como isso tem ocorrido nessas mente com a percepção de que a Tiaraju D’Andrea – A periferia
periferias? situação urbana e social de um mo- paulistana passa por um período de
Tiaraju D’Andrea – O PCC segue rador da periferia é uma situação transição. Se por um lado o lulismo
presente nas periferias de São Paulo, distinta de outras situações urbanas representou uma melhoria nas condi-
mas tem menos impacto no que tange e sociais. No entanto, o processo ções de vida, se comparada à década de
à regulação da violência se comparado de identificação com essa condição 1990, a crise econômica posterior foi
a dez anos atrás. Este é um dos fatores e que redunda no ser periférico, um dos fatores que fez esta população
do aumento da violência nas periferias por si só não basta. O sujeito peri- retirar seu apoio ao PT. No entanto,
nos últimos três anos. férico é aquele indivíduo que, por ainda é cedo para se afirmar que a ade-
meio da percepção de sua condição são a pautas conservadoras seja um fe-
e da superação do estigma, age po- nômeno estrutural. Em todo esse qua-
IHU On-Line – Quais são as liticamente para transformar a sua dro de incertezas, pode-se, ao menos,
principais questões que você realidade, seja incidindo nas condi- fazer duas afirmações: o desemprego
tem abordado na sua pesquisa
ções de moradia, por melhores con- ronda esta população, sendo as con-
atual sobre “Periferia, Periféri-
dições de saúde, de educação, de dições de trabalho uma preocupação
co e Sujeito Periférico”?
transporte e de cultura. Cabe desta- concreta; e há uma descrença generali-
Tiaraju D’Andrea – Tento en- car, no entanto, que foi no campo da zada nos partidos políticos e no sistema
tender quais foram os processos produção artística que se fortaleceu representativo como um todo.■
57

EDIÇÃO 507
ENTREVISTA

Criminalidade nas periferias segue


lógica de empreendimentos liberais
Antônio Carlos Rafael Barbosa acredita que o crime se
incrustra nas periferias não somente por uma ideia de
vazio de estado. É também um negócio
João Vitor Santos

P
ara o antropólogo e professor dora. “A pergunta que se coloca é: por
da Universidade Federal Flu- que, historicamente, e de forma siste-
minense – UFF Antônio Carlos mática, as políticas estatais voltadas
Rafael Barbosa, é preciso encarar o para a população pobre brasileira têm
crime como um empreendimento. Se- se resumido majoritariamente à chave
gundo ele, a institucionalização do que da repressão e do controle social? Ou
podemos chamar de empreendimento ainda, em que medida a discursivida-
criminal segue as mesmas lógicas dos de que elege o tráfico de drogas como o
grandes negócios de inspiração neoli- principal problema e o traficante como
beral. “O crime se assemelha à maior o ‘inimigo público número um’ não
parte dos empreendimentos neolibe- funciona como justificação ao estado de
rais. Precisa que haja Estado, mas um coisas atual e é forte incentivo à manu-
certo tipo de funcionamento estatal tenção de tais políticas de exclusão so-
58 que permita o desenvolvimento de suas cial?”, tensiona.
atividades”, aponta. Por isso, consi-
dera falsa a ideia de que o ilícito só se Antônio Carlos Rafael Barbosa é
produz nas periferias por ausência do professor do Departamento de Antro-
Estado. “E também é falsa a percepção pologia e do Programa de Pós-gradua-
de que existe ‘adesão a toda estrutura ção em Antropologia da Universidade
do tráfico’ por parte dos moradores. O Federal Fluminense – UFF. Também
que está em jogo aqui, me parece, é o é doutor em Antropologia Social pela
tema da falta, principalmente a falta de Universidade Federal do Rio de Janei-
oportunidades educativas e laborativas ro/Museu Nacional, possui experiência
oferecidas aos jovens moradores das na área de Antropologia, com ênfase
comunidades pobres”, analisa. em Antropologia Política, Antropologia
Simétrica e Teoria Antropológica É au-
Na entrevista a seguir, concedida por
e-mail à IHU On-Line, Barbosa reco- tor do livro Um abraço para todos os
nhece que muitas pessoas são levadas amigos: algumas considerações sobre
para esse mundo do crime por imen- o tráfico de drogas no Rio de Janeiro
sa falta de oportunidades. Entretanto, (Rio de Janeiro: editora UFF, 1998).
sugere uma análise mais complexifica- Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consis- gas nas comunidades pobres das composição mais fluida, composto
te o tráfico de drogas, enquan- grandes cidades brasileiras segue por pequenos grupos que ocupam
to organização, no contexto uma conformação particular para um determinado território, ali dis-
das periferias de cidades bra- cada região considerada. Entretan- tribuindo seus pontos de venda, e
sileiras? to, grosso modo, podemos distri- um modelo com uma hierarquia de
buir seus modos de organização e comando e estruturação dos cargos
Antônio Carlos Rafael Barbo- dinâmicas de funcionamento entre e funções – bélicas e comerciais –
sa – O comércio varejista de dro- dois grandes modelos: um modo de mais pronunciadas. Os exemplos

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REVISTA IHU ON-LINE

“[facções] São coletivos de


presos que, em um primeiro
momento, se organizam
para lutar por direitos
específicos dos presos”

são, respectivamente, as “biqueiras” pelo domínio de territórios con- a “classe média” de usuários.
em São Paulo e as “bocas de fumo” tinua a gerar combates armados Imaginava-se que cessar o alas-
no Rio de Janeiro. em várias regiões da cidade. Mas tramento do tráfico consistia
No caso de São Paulo, com a con- é necessário um exame de cada em interromper o clico iniciado
solidação da hegemonia do Pri- caso – Belo Horizonte, Salvador, pelo usuário. Essa perspectiva
meiro Comando da Capital - PCC1, Fortaleza etc. – para a compre- está superada ou ainda dá con-
na maior parte das “quebradas” ensão das dinâmicas locais parti- ta de compreender a realidade?
da cidade, o recurso à violência culares. Um trabalho que alguns Por quê?
armada para a resolução de con- pesquisadores ora se encarregam
Antônio Carlos Rafael Barbo-
flitos entre esses grupos locais de efetuar.
sa – É um truísmo. Se não há quem
entrou em estado de latência. No compre, o mercado desaparece.
Rio de Janeiro, a oposição entre IHU On-Line – Como pode- Mas aqui devemos considerar duas
as facções do crime – Comando mos compreender a estrutura coisas. Em primeiro lugar, deverí-
Vermelho - CV2, Amigos dos Ami- 59
fluídica e movimentada do trá- amos nos perguntar se é somente
gos3, Terceiro Comando4 – e a luta fico de drogas para além das a chamada “classe média” (e seria
polarizações consumidor/tra- necessário saber o que esse termo
1 Primeiro Comando da Capital (PCC): orga- ficante, asfalto/favela, pobres/ nomeia) que compra drogas. Em
nização de criminosos existente no Brasil, criada ricos, policial/bandido, entre
para defender os direitos de cidadãos encarcera- segundo lugar, tal juízo – muito
dos no país. Surgiu no início da década de 1990 outras? presente como categoria acusatória
no Centro de Reabilitação Penitenciária de Tauba-
té, local que acolhia prisioneiros transferidos por nos discursos policiais e midiáticos
serem considerados de alta periculosidade pelas Antônio Carlos Rafael Barbo-
– desloca o foco do que é realmente
autoridades. Hoje a organização é comandada sa – De fato, tais oposições binárias
por presos e foragidos, principalmente no estado importante nessa discussão: os efei-
de São Paulo. (Nota da IHU On-Line) muito pouco servem para a análise
2 Comando Vermelho Rogério Lemgruber: mais tos do proibicionismo – sob o mode-
conhecido como Comando Vermelho e pelas si- das complexas relações presentes
lo de “guerra às drogas” – na produ-
glas CV e CVRL, é uma das maiores organizações nos mercados varejistas de drogas.
criminosas do Brasil. Foi criada em 1979 na pri- ção da criminalização das condutas
são Cândido Mendes, na Ilha Grande, Angra dos Tomo como exemplo a distribuição
Reis, Rio de Janeiro, como um conjunto de presos e no alargamento dos preconceitos
comuns e presos políticos, militantes de grupos
entre tráfico e consumo. A figura do
morais relativos ao assunto.
armados, sendo os presos comuns membros da consumidor que vai buscar a dro-
conhecida Falange Vermelha. Entre os integrantes
da facção, que se tornaram notórios depois de ga na favela para financiar o seu  
suas prisões, estão o líder Fernandinho Beira-Mar,
Marcinho VP, Mineiro da Cidade Alta, Elias Maluco
consumo – aqui no Rio de Janeiro IHU On-Line – De que forma
e Fabiano Atanazio (FB). O CV já possui ramifica- conhecido como “avião” – borra as o comércio de drogas em larga
ções em outros estados brasileiros como Ron-
dônia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso, Espírito fronteiras entre uma e outra ativi- escala vai se encrustar nas co-
Santo, Acre, Pará, Maranhão, Alagoas, Rio Grande dade. E lembremos que foi esta po- munidades mais pobres das ci-
do Norte, Ceará, Mato Grosso do Sul, Amazonas
e algumas partes de Minas Gerais, Piauí, Paraíba, pulação, em certo momento, que se dades do Grande Rio, entre as
Pernambuco e da Bahia. Nos estados do Rio de
Janeiro, Rondônia, Mato Grosso, Acre, Ceará e To- tornou o alvo privilegiado da captu- décadas de 1960 e 1980?
cantins, o CV é maioria no sistema penitenciário. ra policial.
(Nota da IHU On-Line) Antônio Carlos Rafael Barbo-
3 Amigos dos Amigos: conhecida pela sigla
A.D.A., é uma das três maiores organizações cri- sa – Foi certamente com a entrada
minosas da cidade do Rio de Janeiro. A facção IHU On-Line – No início dos da cocaína nos anos de 1980 que
surgiu em 1994. O nome original “Amigos dos
Amigos” foi dado pela união do TC (Terceiro co- anos 2000, falava-se que o trá- os mercados varejistas da droga no
mando) com o traficante conhecido como Pinto-
so. Foi durante o início da década de 2000 aliada fico de drogas em cidades como Rio de Janeiro começaram a adqui-
ao Terceiro Comando até a sua extinção. Desde o o Rio de Janeiro era sustentado rir sua conformação atual. Os tra-
início rivalizou com o Comando Vermelho e com o
Terceiro Comando Puro, a partir da criação deste pelos “moradores do asfalto”, balhos da professora Alba Zaluar5,
último. (Nota da IHU On-Line)
4 Terceiro Comando: conhecido pela sigla TC, foi
uma facção criminosa brasileira, com base no Rio melho após 1994. Extinguiu-se no início da déca- 5 Alba Zaluar (1942): socióloga brasileira, dou-
de Janeiro, surgida para se opor ao Comando Ver- da de 2000. (Nota da IHU On-Line) tora em Antropologia Social pela Universidade

EDIÇÃO 507
entre outras pesquisas desenvol- Como disse anteriormente, isso to social (dentro das comunidades).
vidas, apontam claramente nesta é bem distinto do que ocorre nos De fato, não há como discordar dis-
direção. grupos locais que implementam o so. Mas a pergunta que se coloca é:
comércio de drogas nas localidades por que, historicamente, e de forma
pobres da cidade. Neste caso, há sistemática, as políticas estatais vol-
IHU On-Line – Quando e como uma hierarquia bem marcada em tadas para a população pobre bra-
o sistema carcerário passa a ser cujo ápice se encontra o “dono do sileira têm se resumido majorita-
um ingrediente nessa organiza- morro”. A questão toda é saber até riamente à chave da repressão e do
ção do tráfico? Como compre- que ponto as hierarquias dos grupos controle social? Ou ainda, em que
ender a dinâmica da cadeia e locais pressionam ou modificam a medida a discursividade que elege
suas conexões com a rua, es- busca da “igualdade” nas relações o tráfico de drogas como o princi-
sencialmente as comunidades dentro das facções. pal problema e o traficante como o
mais carentes e periféricas? “inimigo público número um” não
IHU On-Line – A partir de sua funciona como justificação ao esta-
Antônio Carlos Rafael Barbo- do de coisas atual e é forte incentivo
experiência com relatos de ato-
sa – Para o caso do Rio de Janei- a manutenção de tais políticas de
res envolvidos em crimes na
ro, devemos considerar os modos exclusão social?
cidade de Niterói, como com-
de funcionamento das facções e a
preender a adesão das comu-
estruturação dos grupos locais. As nidades mais pobres a toda a
facções surgem dentro das cadeias. IHU On-Line - Quais os de-
estrutura do tráfico de drogas? safios para se compreender a
São coletivos de presos que, em um Aliás, em que medida podemos complexidade dos grupos orga-
primeiro momento, se organizam considerar uma adesão? nizados em torno de atividades
para lutar por direitos específi-
Antônio Carlos Rafael Barbo- ilícitas no Brasil de hoje?
cos dos presos: tais como fim das
torturas e espancamentos; direi- sa – Há uma falsa ideia a de que Antônio Carlos Rafael Bar-
to à visita íntima; melhorias nas o crime se produz na ausência de bosa – Necessitamos de mais pes-
precárias e, por vezes, desumanas Estado ou de algum de seus orga- quisas sobre o assunto, distribuídas
60 nismos. O crime se assemelha à
condições de vida nos cárceres. Só pelos vários estados da Federação,
maior parte dos empreendimentos e um exercício comparativo efetu-
num segundo momento, esse modo
neoliberais. Precisa que haja Esta- ado sobre e a partir deste material.
de “resistir na adversidade” é le-
do, mas um certo tipo de funcio- Isso para dar conta dos chamados
vado para as ruas. Sinteticamente,
namento estatal que permita o de- “ilegalismos populares”, entre eles
podemos dizer que as facções são
senvolvimento de suas atividades. o assalto e o tráfico de drogas. En-
espaços de aliança horizontal entre E também é falsa a percepção de
aqueles que correm sob a “mesma tretanto, para os chamados ilega-
que existe “adesão a toda estrutura lismos reservados às classes domi-
bandeira” no crime; ou, ao menos, do tráfico” por parte dos morado-
assim são pensadas ou projetadas. nantes – que hoje tomam conta do
res. O que está em jogo aqui, me
Não deve existir hierarquia, ca- noticiário nacional –, não temos
parece, é o tema da falta, princi-
deias de comando e obediência en- praticamente pesquisas sobre o as-
palmente a falta de oportunidades
tre seus membros. sunto. (Diga-se de passagem, a ex-
educativas e laborativas oferecidas
pressão “crime organizado” pode se
aos jovens moradores das comuni-
de São Paulo - USP. Atualmente é professora de mostrar adequada, em termos ana-
Antropologia do Instituto de Medicina Social da dades pobres.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ,
líticos e descritivos, para dar conta
onde coordena o Núcleo de Pesquisa em Violên- Tal ausência faria com que uma desses tipos de ilegalismos). É uma
cias - NUPEVI. Entre seus livros publicados, des-
tacamos De Olhos Bem Abertos. Rede de Tráfico pequena parte dentre eles entrasse frente de pesquisa que mereceria
em Copacabana (Rio de Janeiro: FGV, 2003), e Um para o “movimento” em busca de ser explorada futuramente por jo-
Século de Favela (Rio de Janeiro: FGV, 2006). (Nota
da IHU On-Line) ganhos financeiros e reconhecimen- vens pesquisadores.■

Leia mais publicações do IHU acerca do tema periferias

- Os coletivos criminais e o aparato policial. A vida na periferia sob cerco. Revista IHU On
-Line, número 506, de 5-6-2017, disponível em http://bit.ly/2ro5s2i .
- Transformações no mundo do trabalho e suas implicações nas periferias urbanas. En-
trevista especial com Gerardo Silva, publicada nas Notícias do Dia de 29-5-2017, no sitio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2qF4puf.

19 DE JUNHO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

- A pluralidade das periferias: da mobilização coletiva ao reconhecimento das individu-


alidades. Entrevista especial com Leandro Pinheiro, publicada nas Notícias do Dia de 26-5-
2017, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2ruxmfQ.
- Setores políticos ‘progressistas’ e a compreensão enviesada e utilitarista da periferia.
Entrevista especial com Henrique Costa, publicada nas Notícias do Dia de 17-5-2017, no sitio
do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2qF2C8C.
- Valores da periferia estão mais próximos do anarquismo do que do liberalismo. Entrevis-
ta especial com Marcio Pochmann, publicada nas Notícias do Dia de 17-4-2017, , no sitio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2o4IH5F.
- A potência criativa das periferias na construção de novas narrativas web. Entrevista es-
pecial com Eduardo Alves, publicada nas Notícias do Dia de 5-4-2017, no sitio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2rYzgG8.
- Grafite e pichação se alimentam da iconografia da periferia. Entrevista especial com Ma-
ria Amelia Bulhões, publicada nas Notícias do Dia de 10-2-2017, no sitio do Instituto Humani-
tas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2rp6ZpF.
- A periferia paulista substitui Lula por Doria e adere ao discurso do mérito sustentado
pelo lulismo. Entrevista especial com Henrique Costa, publicada nas Notícias do Dia de 7-10-
2016, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2qKuasC.
- As periferias de Porto Alegre: Suas pertenças, redes e astúcias. Bases para compreen-
der seus saberes e dinâmicas éticas. Entrevista especial com Leandro Pinheiro, publicada
nas Notícias do Dia de 17-8-2016, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/2rYAph4.
- A dessolidarização social e a ostentação pelo consumo: um novo retrato do Brasil à luz da
periferia urbana de São Paulo. Entrevista especial com Thais Pavez, publicada nas Notícias do
Dia de 6-7-2016, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2rJyo8Q. 61
- Periferia de São Paulo. “Polícia, crime, igreja e trabalho são esferas de vida que se in-
terpenetram’. Entrevista especial com Gabriel Feltran, publicada nas Notícias do Dia de 5-7-
2016, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2ruYOtK.
- “O regime militar não acabou nas periferias. Mudou apenas a cor do uniforme”. Entre-
vista especial com Adriano Pilatti, publicada nas Notícias do Dia de 21-11-2013, no sitio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2rg2MpX.
- A UPP não convence a juventude da periferia. Entrevista especial com Julio Ludemir,
publicada nas Notícias dia de 18-11-2011, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2rpmfD0.
- O rap e o funk na socialização do jovem da periferia. Entrevista especial com Juarez
Dayrell, publicada nas Notícias do Dia de 8-11-2007, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos
– IHU, disponível em http://bit.ly/2rph3Pa.
- A ascensão do pentecostalismo: da religião à política. Entrevista especial com Christina
Vital, publicada nas Notícias do Dia de 19-4-2017, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, disponível em http://bit.ly/2st3QUW.
- Desvinculação religiosa entre os jovens é maior do que a adesão ao pentecostalismo.
Entrevista especial com Silvia Fernandes, publicada nas Notícias do Dia de 25-4-2017, no sitio
do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2ruAMiD.
- Mercado e Estado, dois oligopólios em permanente negociação entre si. Entrevista espe-
cial com Hugo Albuquerque, publicada nas Notícias do Dia de 3-4-2017, no sitio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2prfFKl.
- A nova classe trabalhadora, seu imaginário e a reprodução de valores liberais. Entrevista
especial com Jordana Dias Pereira, publicada nas Notícias do Dia de 27-4-2017, , no sitio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2st0YHL.
- Porto Alegre. Com pequenas e grandes obras, a cidade é um lugar de disputa perma-
nente. Entrevista especial com Lucimar Siqueira, publicada nas Notícias do Dia de 20-8-2014,
no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2ruXaZr.

EDIÇÃO 507
CRÍTICA INTERNACIONAL

Revisitando Aníbal Quijano e a


colonialidade do poder na América Latina
Bruno Lima Rocha


Na realidade, cada categoria usada para caracterizar
o processo político latino-americano tem sido sempre
uma forma parcial e distorcida de observar esta reali-
dade. Essa é uma consequência inevitável da perspectiva
eurocêntrica, na qual um evolucionismo linear e unidire-
cional amalgamado contraditoriamente com uma visão du-
alista da história; um dualismo novo e radical que separa
natureza de sociedade, o corpo da razão” (Aníbal Quijano).
O parágrafo que abre o texto de Bruno Lima Rocha retoma
um aspecto central do pensamento de Quijano e que é de-
batido ao longo do artigo.
Bruno Lima Rocha é doutor e mestre em ciência políti-
ca pela UFRGS, jornalista graduado pela UFRJ e professor
de relações internacionais da Unisinos.
Eis o artigo.
62
Oferecemos aqui uma revisitação ao clássico de Aníbal Quijano: “A Colonialidade do Poder,
Eurocentrismo e América Latina” (ver na íntegra em castelhano: http://bit.ly/1KIaWYi). O inte-
lectual peruano escreveu em forma de artigo acadêmico um texto que deu base a uma proposta
epistemológica para interpretar corretamente nossas estruturas societárias e perspectivas his-
tóricas latino-americanas, buscando livrar-nos das armadilhas do eurocentrismo. Produzido no
auge do período neoliberal da década de ’90 do século XX e lançado no primeiro ano do novo
século, segue mais atual do que nunca, em especial após a nova-velha guinada à direita de nossos
países no Continente.
Quijano traz os problemas de fundo de nossas sociedades, tais como: maioria “branca” no Cone
Sul em função do genocídio indígena do século XIX; aparência de “democracia racial” no Brasil,
Venezuela e Colômbia e a consequente invisibilidade dos afro-descendentes; a impossibilida-
de de criar uma nação, um suposto Estado-nação homogêneo sem modificar profundamente a
interpretação histórica; o conflito permanente do Estado independente convivendo com uma
sociedade colonial (colonizada, portanto, pós-colonial). Em seu clássico, Quijano faz a crítica
– acertada – das correntes evolucionistas do pensamento à esquerda, herdeiras dos marxismos
dos países alinhados em algum momento com a extinta União Soviética e, ao mesmo tempo, a
urgente crítica ao mimetismo eurocêntrico.
Na saída dos regimes autoritários e ditaduras militares latino-americanas, com ênfase no Cone
Sul, houve um reforço no sistema de crenças das instituições de matriz europeias como uma for-
ma de modernizar as relações sociais. Como se a utopia do socialismo “real” fosse trocada pela
social-democracia possível, mas sem combinar com os herdeiros da Casa Grande, suas elites
auxiliares (como tecnocracias de carreira) e o imperialismo.
Os intentos de democratização política ampliando simultaneamente o caráter público e de con-
trole coletivo do aparelho de Estado foram a pique com o Consenso de Washington e a restauração
neoliberal dos anos ’90. Como tudo na América Latina é possível e nossas sociedades são abertas,
tivemos uma razoável virada à esquerda na primeira década e meia do século XXI, variando desde
tímidos pactos liberais-periféricos (como no caso de Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai)
até a ousadia de constituições pluriétnicas e bolivarianas dependentes de lideranças carismáticas e

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REVISTA IHU ON-LINE

“A independência na América Latina


sem a descolonização da sociedade foi
uma rearticulação da colonialidade do
poder sobre novas bases institucionais”

personalistas (como na Bolívia, Equador e Venezuela). De comum nestas experiências, dentre al-
gumas variáveis, destacamos a dependência das exportações primárias e a presença de uma direita
racista e colonizada como inimiga interna reprodutora de interesses externos.
A virada à direita se dá por diversos fatores, variando o embate em cada um dos países latino-a-
mericanos. Mas, de comum entre todos está o peso do Brasil na geopolítica do Continente e a conse-
quente reviravolta conservadora pelo uso da Lawfare como projeção de poder ampliada da superpo-
tência (EUA). Por consequência, a ousadia na política externa do ciclo lulista, não foi acompanhada
da coerência interna necessária para confrontar o intento restaurador. A aliança doméstica, frágil e
reprodutora de colonialismo (como ancorar a balança externa em commodities primárias), puxou o
tapete da ex-esquerda que “pacificara” o país politicamente e desarmou as instituições sociais para o
conflito que viria. Na base societária, o Brasil não modificou o emprego da violência estatal, extermí-
nio, ausência de direitos civis e genocídio de fato da maioria afro-brasileira. Deu no que deu; de novo.
Este padrão, em maior ou menor escala, se reproduz nos países sob os governos de centro-esquerda
e com ausência de protagonismo da sociedade organizada debaixo para cima. Parece lugar comum,
teoria evocativa ou simples palavra de ordem, mas não é.
Como viemos fazendo nesta revista e em particular na coluna, sigo no debate a respeito da geoes-
tratégia dos povos e da necessária descolonização de nossas sociedades latino-americanas. Logo, to-
63
mando o clássico de Quijano como base, observamos que é na ampliação de espaços públicos e com
democracia interna no aparelho de Estado, na reinterpretação de nós mesmos através da história
social da América Latina e na construção de espaços de poder através das entidades de base e movi-
mentos sociais enraizados. Foi e é justamente o oposto do que ocorreu – e ocorre – sob os governos
progressistas. Ou seja, o jogo formal, dentro dos parâmetros das instituições pós-coloniais, tem um
limite bem curto e estreito. É mais distante a utopia de um republicanismo cidadão de base social-de-
mocrata do que avançar no poder do povo como agente político ativo e altivo, e suas consequências.
A coesão da nacionalidade, típica dos Estados-nacionais europeus, não se realiza no Continente
em função do abismo social estruturante do racismo pós-colonial, estrutural e constitutivo do hor-
ror cotidiano das maiorias. O debate estratégico é de profundidade e enraizado em nós mesmos.

Buscando as linhas conclusivas


Podemos concluir este texto, esta chamada de atenção, com o final do artigo do próprio Quijano.
“Não é então, pois, um acidente, um acaso, que tenhamos sido, pelo momento, derrotados em
ambos os projetos revolucionários, nas Américas e em todo o mundo. O que pudemos avançar
e conquistar em termos de direitos políticos e civis, em uma necessária redistribuição de poder,
dentro da qual a descolonização da sociedade é premissa e ponto de partida, está agora sendo
arrasado com o processo de reconcentração de controle do poder do capitalismo mundializado,
sendo gerido e governado localmente pelos mesmos funcionários da colonialidade do poder. Por
consequência, é o tempo de aprender a libertar-nos do espelho eurocêntrico onde nossa imagem
é sempre, necessariamente, distorcida. É tem, enfim, de deixarmos de ser o que não somos.”

Expediente
Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto
Stumpf Paes Leme
Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

EDIÇÃO 507
PUBLICAÇÕES

Identidade de Esquerda ou
Pragmatismo Radical?

O
número 259 dos Cadernos IHU Ideias traz o artigo de Moysés Pinto
Neto, sob o título Identidade de Esquerda ou Pragmatismo Radi-
cal? No texto, ele investiga o processo de transformação do cam-
po político de esquerda no Brasil em uma identidade, pressupondo que a
identidade é uma espécie de ossificação das virtualidades da diferença, ou
seja, uma perda de plasticidade. Para
tanto, busca descrever o processo
político brasileiro de 2002 a 2017,
passando por lulismo, neodesenvol-
vimentismo e nascimento da esquer-
da cultural. Apresenta, a partir de
um experimento de perspectivismo
político, uma angulação diferente da
64 esquerda desde o centro – e quais
as respectivas incompatibilidades.
Ainda, especifica as três estratégias
possíveis diante desse afastamento: a
resistência, que é o aprofundamento
da identidade, o reformismo – que é
a ocupação do centro – e o pragma-
tismo radical, entendido como a tra-
dução de intensidade que não precise
passar pelo crivo identitário.
Acesse a versão completa do arquivo
em http://bit.ly/2s9yghU .
Esta e outras edições do Cadernos
IHU ideias também podem ser obti-
das diretamente no Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, no campus São
Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos,
950), ou solicitadas pelo endereço hu-
manitas@unisinos.br. Informações
pelo telefone (51) 3590-8213.

19 DE JUNHO | 2017
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Todas as possibilidades de gênero. Novas


identidades, contradições e desafios
Edição 463 | Ano XV | 20-4-2015

“O complexo debate em torno das questões de gênero traz os contornos


típicos das sociedades do século XXI, repleto de nuances, novas iden-
tidades e, também, contradições. A multiplicidade de gêneros e as bio-
políticas de administração da vida humana, trazendo à luz a pluralidade
de nossas sociedades é o tema em debate na edição desta semana da re-
vista IHU On-Line.”

Violência intrafamiliar e de gênero


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Edição 255 | Ano VIII | 22-4-2008

“O tema de capa desta edição foi inspirado pela realização, nesta sema-
na, do 2º Seminário Internacional Rotas críticas – Mulheres enfrentan-
do as violências, em Porto Alegre, nos dias 24 e 25 de abril, promovido
pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unisinos e com
o apoio do IHU. O seminário visa oportunizar espaço para identificar e
explorar estratégias construídas para enfrentar as violências.”

Gênero, família e religião

Edição 114 | Ano IV | 6-7-2004

“Nos dias 18, 19 e 20 de agosto de 2004, realizou-se, em São Leopoldo, o


1º Congresso Latino-Americano de Gênero e Religião, tendo como tema
Corporeidade, Etnia, Masculinidade. O evento foi uma promoção do Nú-
cleo de Pesquisa de Gênero do Instituto Ecumênico de Pós-Graduação da
Escola Superior de Teologia – EST. O tema inspirou a edição 114 da IHU
On-Line, que pautou esse debate como seu tema de capa.”

EDIÇÃO 507
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