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A DIVISÃO III
ENTRA EM AÇÃO
Autor
KURT MAHR
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Os cães-de-fila da Terra estão numa pista
quente — Quem destruiu a Carolina?
***
***
Richard Silligan ficou praguejando contra o monótono serviço que tinha de executar
no hangar de naves auxiliares. Não parava de procurar convencer a si mesmo de que Odie
Rhyan não possuía nenhuma antipatia especial por ele, embora tantas vezes o escolhesse
para montar guarda no hangar. Naturalmente, essa idéia não passava de tolice, pois não
havia ninguém que pudesse pôr em dúvida a imparcialidade de Odie Rhyan.
Subitamente soou o alarma e a nave começou a dar saltos que o antígravo não
conseguiu absorver. Richard Silligan abriu as comportas principais das naves auxiliares.
Os sargentos e cabos, subordinados a Silligan, enfiaram-se nos trajes espaciais e
ocuparam os assentos de piloto das pequenas naves. Os propulsores começaram a
funcionar. De repente, o hangar encheu-se de um zumbido que abafou os sons queixosos
emitidos pelo exterior da nave.
Richard Silligan esperou. As naves auxiliares destinavam-se aos passageiros.
Acontece que não apareceu nenhum passageiro. Richard Silligan começou a lembrar-se
de suas responsabilidades para com os subordinados. Se os passageiros não viessem,
mandaria decolar as naves auxiliares, a fim de salvar ao menos os soldados que estavam
de guarda. Richard Silligan não tinha a menor dúvida de que a nave estava no fim. Não
sabia qual era a causa, mas sabia o que uma nave pode suportar e o que não pode.
Richard estava prestes a saltar para o interior de uma nave auxiliar que ocupava o
último lugar da fila, quando duas escotilhas se abriram quase ao mesmo tempo. Por uma
delas entrou um casal, e pela outra, um homem.
Por um instante, Richard Silligan perdeu o autocontrole.
— Andem depressa, seus idiotas! — gritou para os passageiros, que haviam pago
vinte e dois mil solares para a viagem da Terra a Árcon.
***
——————————————
***
“Ora esta”, pensou Ron Landry. “Já conheci chefes mais simpáticos que este!”
O “este” era um homem baixo e gordo, de rosto vermelho, suarento e rechonchudo.
“Este” tinha cabelos louros muito lisos, penteados para trás, e um par de lábios grossos,
sempre úmidos. Dava a impressão de que seu desenvolvimento físico parará na idade de
vinte e cinco anos, embora devesse ter ao menos o dobro desta idade.
Ron Landry não gostava dele, desde o momento em que o vira pela primeira vez.
E, quando esse gorduchinho abria a boca, as coisas ficavam bem piores. Sua voz
parecia ser a de um guarda de harém egípcio: era alta e estridente.
Porém o que chocava Ron Landry quase tanto quanto a voz era o fato de que nos
ombros desse homem deveriam aparecer as insígnias de coronel. E Ron apenas atingira o
posto de capitão. Face à natureza de sua profissão, ambos estavam à paisana, mas nunca
se esqueciam da diferença de graduação.
Aquele homem antipático era Nike Quinto, chefe do Fundo Social Intercósmico de
Desenvolvimento.
— Não me maltrate, homem! — gritou para Ron Landry em voz estridente. —
Como é que o senhor conseguiu chegar a capitão se é tão idiota? O que acontecerá com
minha pressão sangüínea se todos os meus subordinados forem como o senhor?
“Não estou interessado nem um pouco na sua pressão sangüínea”, pensou Ron
muito zangado.
Era de opinião que nem mesmo um superior tinha o direito de chamá-lo de idiota.
— Eu lhe ficarei muito grato — disse, então, em tom enérgico — se o senhor quiser
especificar a missão. Acho que nem mesmo um gênio sabe o que fazer com as três ou
quatro palavras que o senhor me disse.
Nike Quinto fitou-o com uma expressão de perplexidade.
— O quê? — gritou. — Além de tudo o senhor ainda me vem com uma fala
insolente?
Ron Landry estava prestes a estourar, mas sem saber o porquê, não conseguia levar
a cena muito a sério. Continuou calado, esperando que Nike Quinto continuasse a falar.
— Que diabo! — vociferou Quinto. — Será que é tão difícil compreender que o
senhor deve pegar uma nave e ir a um ponto, perfeitamente definido, do espaço
interestelar?
— De forma alguma — respondeu Ron, esforçando-se para reprimir um sorriso. —
Apenas gostaria de saber por que devo ir para lá.
— Por quê? — Quinto estava fora de si. — Desde quando um soldado tem que
perguntar por que está recebendo uma ordem? Vá até lá, olhe o que há para olhar e
apresente um relatório detalhado. Mas não se esqueça de que a coisa é urgente. Se eu
tiver de esperar até sofrer um infarto, o relatório já não me valerá de nada.
Ron fez um gesto de assentimento.
— Sim senhor.
Nike Quinto fitou-o com os olhos de sapo.
— E só — disse em tom áspero. — Pode retirar-se.
Ron fez continência, embora achasse esquisito fazer continência à paisana, virou-se
e caminhou em direção à porta.
— Não é para lá — gritou Nike Quinto atrás dele. — Caramba! Para onde pensa que
vai?
Ron virou-se. Parecia perplexo.
— Vou procurar uma nave, sir — respondeu.
Nike Quinto parecia desolado. Colocou a mão sobre o peito, mais ou menos no
lugar em que devia ficar o coração.
— O senhor me dá um trabalho terrível, Landry — disse com um suspiro. — Aposto
que minha pressão já está em duzentos e vinte; e olhe que não deveria passar de cento e
sessenta.
De repente voltou a descontrolar-se.
— O senhor acredita mesmo que pode sair sem mais explicações? — gritou. — O
que faria se eu não o informasse sobre o que deve fazer e o que está acontecendo por lá?
Ron esteve a ponto de dizer que já lhe fizera a mesma pergunta, mas Nike Quinto não
permitiu que falasse.
— Entre ali! — disse, apontando para uma porta. — Sente na cadeira que está lá
dentro e relaxe. Quando tiver terminado saia e venha dizer-me o que acha daquilo.
Entendido?
— Entendido, sir — respondeu Ron, um tanto perplexo.
Dirigiu-se à porta e abriu-a. Percebeu imediatamente de que tipo era a sala na qual
Nike queria que entrasse. A poltrona ultraconfortável, a cor verde-amarelada das paredes
e a luz cinzenta, entremeada de violeta, a falta absoluta de outros móveis — tudo aquilo
só poderia significar uma coisa: o aprendizado hipnótico.
De repente, Ron Landry passou a ter uma idéia diferente da sua missão. Se eles se
davam a tamanho trabalho, devia haver atrás daquilo muito mais do que acreditara.
A porta fechou-se atrás dele. Acomodou-se na poltrona, conforme Nike Quinto lhe
ordenara, e estendeu as pernas. Fechou os olhos e esforçou-se para não pensar em nada.
Começou a sentir-se sonolento.
***
***
Era só o que sobrara da Carolina: uma nuvem de gases frios que se deslocava pelo
espaço à velocidade que a nave mantinha no momento da catástrofe e que se espalhava
continuamente em conformidade com as leis da Termodinâmica.
No momento em que a Royal Irish atingiu a nuvem, sua densidade devia ser de
alguns trilionésimos de grama por centímetro cúbico. Isso significava que a matéria
gaseificada da nave enchia uma esfera de mil quilômetros de diâmetro. Face à sua
rarefação, essa matéria era quase imperceptível à ótica normal, pois a mesma
praticamente não se destacava contra o fundo negro do espaço, com os inúmeros pontos
luminosos formados pelas estrelas.
Mas, para os analistas, a densidade da nuvem de gases ainda era mais que suficiente.
Mediram o espetro de absorção com base na luz das estrelas, e dessa forma certificaram-
se de que a nuvem realmente representava os restos da Carolina. O espetro mostrou as
linhas conhecidas dos metais de que são feitos os cascos das naves e as paredes internas
de sustentação. O espetro ainda apresentava as linhas dos hidrocarbonatos, das peças de
plástico de que era feita boa parte das instalações internas da nave e das substâncias de
corpos humanos, que já estiveram impregnadas de vida, quando a bordo da Carolina.
Não havia a menor dúvida de que o cargueiro Carolina fora destruído com tudo que
se encontrava a bordo.
E os analistas ainda descobriram outras coisas. Os grupos moleculares dos
remanescentes das diversas substâncias foram examinados. A forma de sua cisão revelou
a natureza da arma utilizada contra a Carolina. Os fragmentos moleculares foram
analiticamente classificados, e o volume da energia dissociativa necessária para
transformar as moléculas originárias nesses fragmentos foi apurado por via estatística.
Obtiveram um número representativo da energia por molécula.
Conhecido o número de moléculas, tornou-se fácil calcular o volume da energia
total derramada sobre a Carolina. E esse volume, por sua vez, permitia tirar conclusões
sobre o tipo da arma utilizada.
Cada arma tem um desempenho específico e, uma vez que a luta — se é que houve
luta — só poderia ter durado alguns minutos, já que de outra forma Odie Rhyan teria sido
capaz de transmitir outras mensagens, além do pedido de socorro codificado, seria
possível calcular o desempenho total dos armamentos com base no volume energético
total despejado sobre a nave.
Chegou-se, então, a este resultado: a Carolina foi destruída por disparos de armas
térmicas. O total da energia utilizada correspondia a quinze vezes o volume necessário
para neutralizar os campos defensivos da nave cargueira. Por ocasião do último impacto,
a Carolina se desfizera que nem uma bomba detonada.
Cabia a Ron Landry apurar, com base no armamento utilizado, a identidade do
inimigo desconhecido, que atacara o indefeso cargueiro nessa rota relativamente bastante
freqüentada.
Seria uma tarefa difícil, se Ron Landry dependesse exclusivamente dos resultados
das análises que acabavam de ser realizadas. Qualquer nave da Galáxia poderia estar
equipada com um canhão térmico. Era bem verdade que uma peça do tamanho da
utilizada no ataque custaria um bom dinheiro, mas existia na Via Láctea muita gente de
posses. Qualquer uma dessas pessoas poderia ter comprado um canhão desse tipo,
instalando-o numa espaçonave, e depois atacado a Carolina. Via-se que a arma, por si só,
não esclarecia nada.
Mas havia outro detalhe.
Há cento e vinte anos a Terra começara a fazer parte do concerto galáctico das
grandes potências. De início tocara seu instrumento bem baixinho, enquanto os outros,
como os tópsidas, os ferrônios e principalmente o Império Arcônida com seus associados
batiam fortemente o tambor e tocavam suas trombetas para que todos os ouvissem.
Naquele tempo, a raça dos saltadores, que era uma ramificação da raça arcônida,
detinha uma espécie de monopólio comercial. Segundo afirmavam os saltadores, todo o
comércio interestelar teria de passar por suas mãos. Qualquer mundo isoladamente não
poderia negociar sem a intervenção dos saltadores, a não ser com os mundos vizinhos,
situados no mesmo sistema. Para qualquer projeto mais extenso, tornava-se necessário o
consentimento dos saltadores. E não era só. Eram estes que cuidavam do projeto e
pagavam apenas uma parte insignificante do lucro aos povos que realmente faziam os
negócios.
As exigências dos saltadores costumavam ser aceitas. Já que eles tinham o poder.
Isso ao menos até que a Terra passasse a usar outro instrumento e começasse a tocar mais
alto. Os terranos obstinavam-se em não reconhecer, a priori, as exigências de ninguém,
por mais justas ou injustas que fossem. Negociavam por sua conta e logo se pegaram com
os saltadores. O resultado da luta representou um exemplo flagrante de como, muitas
vezes, a teimosia apresenta certas vantagens sobre os procedimentos convencionais. A
Terra ainda continuava a fazer negócios — e negócios de vulto — e, face à aliança muito
eficaz entre a Terra e Árcon, os saltadores não tiveram outra alternativa senão ranger os
dentes e ir abandonando seus domínios.
É bem verdade que a retirada não foi tão simples assim. Os saltadores começaram a
defender-se de uma maneira que correspondia às suas características e ao seu estilo de
vida. Ficavam à espreita e, sempre que topavam com uma nave terrana que lhes parecia
inferior às suas, eles a atacavam e destruíam. Dessa forma, suas ações prendiam-se
exclusivamente às naves cargueiras, ou seja, aos veículos espaciais empregados no
comércio terrano.
É bem verdade que algumas vezes os saltadores levaram a pior. Os terranos eram
cheios de idéias. Mais de um comandante dos saltadores, que esperava com sua nave nas
profundezas do espaço até que lhe aparecesse a primeira vítima, quebrara o costado num
cruzador que acreditara ser um cargueiro. Os saltadores não estavam em condições de
enfrentar os cruzadores terranos. Geralmente a batalha, que não conhecia perdão,
terminava com um vencedor que se afastava às pressas e uma nuvem de gases que ficava
para trás. E, se o veículo espacial terrano era uma nave de guerra, quase sempre a nave do
saltador assumia o papel da nuvem de gases.
Era uma impiedosa guerra de guerrilhas que se travava nas amplidões do espaço,
longe das estradas regulares da política interestelar. Tornava-se difícil pôr as mãos nos
saltadores. Pois os mesmos viviam em suas naves.
A Terra já se preparara para travar essa luta por mais alguns séculos. As naves de
guerra, que, como estações retransmissoras, permaneciam mais ou menos imóveis no
espaço, ali ficavam em boa parte por causa do perigo representado pelos saltadores.
Mas nem mesmo elas conseguiram evitar a destruição da Carolina.
O espírito de Ron Landry revoltava-se contra a idéia de dar por encerrada sua
missão e apresentar-se a Nike Quinto com as seguintes palavras: “Foi mais um ataque
dos saltadores. Não descobrimos qualquer pista.”
Era quase certo que Nike Quinto esperava que ele agisse de forma diferente. Ron
Landry viu nos instrumentos a nuvem em expansão, que já fora a Carolina. Em virtude do
ensinamento hipnótico de várias horas, que lhe fora ministrado na sala situada atrás do
gabinete de Nike Quinto, conhecia os dados relativos à nave. Era uma daquelas naves
esféricas de cem metros de diâmetro, trezentas mil toneladas de massa, mecanismo
propulsor de transição, que desempenhava as funções de cargueiro e de nave de
passageiros. Naquela viagem levava vinte e cinco passageiros, entre eles Lyn Trenton,
superintendente da delegação terrana em Árcon, que voltava ao seu posto depois de um
período de férias. Armamento, praticamente nenhum.
E uma nave daquele tipo fora atacada traiçoeiramente pelos saltadores, que a
destruíram sem que isso lhes pesasse na consciência!
“Não podemos permitir que escapem de mais esta”, pensou Ron Landry.
“Precisamos fazê-los pagar por isso.”
Acontece que o desejo não bastava. Ron Landry fez mais do que qualquer outro
comandante teria feito em seu lugar. Mandou examinar a área, à procura de
remanescentes de material propulsor. Se os saltadores tivessem deslocado sua nave por
meio do mecanismo propulsor de partículas, por um quilômetro que fosse, deveria ser
possível encontrar uma pista que indicasse ao menos a direção de que tinham vindo ou na
qual haviam desaparecido.
Acontece que não encontraram nada. Os saltadores haviam-se desmanchado no
nada.
***
Ron Landry só dispusera de algumas horas para escolher seus tripulantes. Não
conhecia o homem que se encontrava à sua frente. Só sabia que seu nome era Marty
Nolan, e que desempenhava as funções de analista.
— Acredito que o senhor terá suas dúvidas — disse Marty Nolan um tanto
embaraçado. — Quanto a mim, tenho uma certeza razoável.
Com um gesto, Ron convidou-o a sentar.
— Marty — começou — quero dizer-lhe duas coisas. Primeiro, chame-me de Ron;
tenho certeza de que isso em nada afetará o respeito que o senhor sente por mim. Em
segundo lugar, diga logo do que se trata. Do contrário não poderei confirmar nem
desmentir seus receios.
Marty parecia sentir-se grato pelos modos pouco convencionais de Ron Landry.
Ficou um tanto mais descontraído. Era um homem baixo, magro, olhos grandes e
inteligentes, e uma vasta cabeleira escura. Seu olhar levava à conclusão de que sofria
complexos de inferioridade.
— Medi a nuvem, sir... Ron — principiou. — Estou ensaiando um novo método. Se
conseguirmos determinar precisamente a densidade da nuvem e se conhecermos seu
volume, poderemos calcular sua massa, não é?
Um sorriso ligeiro surgiu nos lábios de Ron Landry.
— Compreendo — disse em resposta ao olhar indagador de Marty.
— Muito bem. Suponhamos que eu conheça a densidade, sem a menor margem de
erro, e o volume da massa gasosa, com uma precisão de mais ou menos cinco por cento.
Nesse caso, poderei calcular também a massa do artefato, com uma precisão de mais ou
menos cinco por cento.
Mais uma vez lançou um olhar indagador para Ron Landry.
— É verdade — confirmou Ron.
— Pois bem — prosseguiu Marty Nolan. — Já fiz estes cálculos. O resultado é o
seguinte: a massa da nuvem gasosa é de duzentas e setenta e oito mil toneladas.
Ron Landry aguçou o ouvido.
— A massa nominal da Carolina é de duzentas e noventa e oito mil toneladas —
disse.
Desta vez Marty confirmou com a cabeça.
— Perfeitamente. E, como já disse, meu cálculo tem uma precisão de mais ou
menos cinco por cento. Com isso, o limite superior seria de duzentas e noventa e duas mil
toneladas, não de duzentas e noventa e oito mil toneladas.
Ron levantou-se.
— Tem certeza de que o erro não pode ser superior a cinco por cento? — perguntou
em tom insistente.
— Certeza absoluta, sir... Perdão, Ron. Na verdade, a margem de erro é menor.
Chega a uns três vírgula oito por cento. Apenas quis ter certeza absoluta.
Ron virou-se nos calcanhares, com uma rapidez tamanha que Marty se sobressaltou,
e perguntou:
— O que é que o senhor conclui daí?
Marty levantou as mãos, como se quisesse oferecer alguma coisa a Ron.
— Concluo que uma das naves auxiliares conseguiu escapar, Ron. A diferença de
massa corresponde quase exatamente à mesma. Uma nave auxiliar pesa entre dezoito e
vinte e duas mil toneladas. A Carolina trazia três veículos desse tipo a bordo.
Ron Landry mordeu o lábio.
— O senhor tem certeza, Marty? — perguntou. — Quero que me compreenda
perfeitamente. Não duvido das suas boas intenções, nem da sua capacidade. Mas gostaria
que, antes de expedirmos uma mensagem a este respeito, consultasse mais uma vez a
consciência. Seus cálculos e medições são corretos?
Marty respondeu sem a menor hesitação:
— O risco que assumo ao acreditar na exatidão das minhas medições não é maior
que o que assumo ao acreditar que duas vezes dois são quatro.
— O senhor se exprimiu em palavras muito bonitas — falou Ron, em tom irônico.
Subitamente seu rosto assumiu uma expressão séria. Deu alguns passos, voltou a
ficar parado e disse em tom pensativo:
— Quer dizer que uma das naves auxiliares escapou à catástrofe!
3
Temos. Desligo.
***
Não se sabia como, mas o fato é que haviam escapado. Por algum motivo o fogo de
artifício chamejante, quente, crepitante, não os atingira, mas apenas à nave, que deixaram
para trás com uma velocidade tremenda. De alguma forma, precipitaram-se pela escotilha
da comporta no momento exato em que esta ameaçava desmanchar-se e ficar aprisionada
no inferno em que a Carolina se dissolveu.
Sua inteligência fora incapaz de, naqueles momentos de pavor, assimilar os
acontecimentos corretamente e na seqüência certa. Quando se perguntavam sobre o que
realmente acontecera, sua memória falhava.
O fato é que haviam escapado. A bola incandescente que já fora a Carolina ficara
bem para trás. Estavam em segurança, e era o que realmente importava, segundo achava
Lyn Trenton.
A maneira pela qual o barco escapara à catástrofe no último instante representara
uma pesada carga para os nervos de Richard Silligan. Por algum tempo, ele deixara o
veículo prosseguir em linha reta pelo espaço afora. Finalmente lembrou-se dos seus
deveres e certificou-se de que ao menos a bordo de seu barco tudo estava em ordem.
Aliás, nem tudo.
Os aparelhos necessários à sobrevivência imediata funcionavam perfeitamente,
como, por exemplo, o equipamento de renovação e de condicionamento de ar. E havia
provisões para uma viagem espacial de vários meses. No entanto, as gigantescas
descargas eletromagnéticas haviam afetado os dois transmissores de bordo a tal ponto que
estes não poderiam ser reparados com os recursos existentes a bordo.
O barco estava isolado do mundo exterior. Richard Silligan procurou localizar até
outras duas naves que, juntamente com a sua, se haviam preparado para decolar no
hangar da Carolina. Não descobriu o menor sinal das mesmas. Deviam ter voado em
outra direção, ou então não conseguiram sair em tempo da nave que explodira.
A próxima tarefa de Richard consistiria em determinar o destino do barco. Antes
disso, queria ouvir a opinião dos três passageiros e do cabo que pilotara o barco nos
primeiros momentos do vôo.
A sala de comando também servia de cabina de passageiros. Três fileiras, com seis
confortáveis poltronas, estavam dispostas em torno da poltrona do piloto. A maior das
quatro telas de imagem estava colocada à frente do lugar do piloto.
Richard Silligan virou-se. Naturalmente conhecia Lyn Trenton, o funcionário mais
graduado da representação terrana em Árcon. Também já vira Dynah Langmuir, que lhe
despertara a atenção. Mas não tinha a menor lembrança do terceiro passageiro. Era um
velhinho baixo, que parecia não se sentir muito à vontade no seu terno distinto, que,
segundo tudo indicava, era novo. Parecia que o homem não fora feito para aquela espécie
de roupa e ansiava por trajar logo um pulôver e uma calça de linho azul.
— Devemos fixar nosso destino, senhores — principiou Richard Silligan, sem
qualquer intróito. — Alguém tem uma sugestão? Também estou me referindo ao senhor,
cabo Laughlin.
A primeira reação às palavras de Silligan consistiu num sorriso irônico,
condescendente e arrogante de Lyn Trenton. Richard teve vontade de levantar-se e dar-lhe
uma bofetada. Mas forçou-se a ficar quieto, permanecendo com o rosto imóvel.
— Será que o senhor não está pedindo demais de nós, capitão? — perguntou Lyn
Trenton, com a voz tranqüila. — Afinal, não sabemos como é o setor do espaço em que
nos encontramos, não conhecemos as possibilidades e ignoramos o poder de vôo desta
nave.
Estava acostumado a agir assim. Conferia um título demasiadamente alto a outra
pessoa para deleitar-se ao ver que esta, contra a vontade, tinha de confessar que ainda não
chegara a tanto.
— Em primeiro lugar — respondeu Richard Silligan prontamente, num tom cuja
hostilidade não poderia deixar de ser notada — sou apenas um tenente. Em segundo
lugar, sempre é possível que alguém aqui presente conheça as coisas melhor que o
senhor, não acha?
Sentia-se satisfeito por ter dito isso. Fora um bom contra-ataque, e o fato de se ter
defendido dava-lhe certo prazer, embora Lyn Trenton não mostrasse a menor reação. O
olhar de Richard dirigiu-se para Dynah Langmuir, dando a entender que esperava ouvir
alguma coisa da jovem. Ela obrigou-se a exibir um sorriso, balançou a cabeça e disse:
— Sinto muito, tenente. Estou tão mal informada como Mr. Trenton.
Trenton virou a cabeça e cumprimentou-a com um gesto amável.
“Estão agindo de comum acordo”, pensou Richard e sentiu-se contrariado.
— Muito bem — resmungou. — Quem sabe...
O homenzinho do terno elegante e pouco confortável entendeu a indireta.
— Meu nome é Ezequiel Dunlop Rykher — disse numa ridícula voz berrante. —
Sou de Lapine, Oregon — acrescentou. — Ganhei este vôo num concurso. Se dependesse
de mim, nunca teria participado daquela maldita competição. Mas o senhor sabe como
são as coisas. Sempre há alguém que força a gente — fitou Richard. — Quanto à sua
pergunta, tenente... Acho que estamos nas proximidades do sistema de Toghma, não é?
Na minha opinião não deveríamos assumir maiores riscos. Agiríamos com prudência se
fôssemos para lá. Não acha?
Richard sentiu-se perplexo, e a mesma coisa acontecia com as demais pessoas no
recinto. Inclusive Trenton.
Quem teria esperado que Ezequiel Dunlop Rykher, um homem de Lapine, Oregon,
soubesse exatamente em que lugar se encontrava durante a viagem da Terra para Árcon?
— O senhor está muito bem informado, Mr. Rykher — respondeu Richard, depois
de se ter recuperado da surpresa. — Estamos...
Rykher interrompeu-o.
— Chame-me de Ez; é o que todo mundo faz — disse. — E o senhor é Dick, não é?
Dick Silligan.
Richard fez um gesto afirmativo.
— Muito bem, Ez. O senhor está muito bem informado. Daqui para Toghma são
cerca de mil e cem unidades astronômicas, o que corresponde aproximadamente a seis e
meio dias-luz. O sistema tem quatro planetas. O planeta número dois é habitado. Seu
nome é Ghama. Ghama é um mundo aquático, onde vivem inteligências nativas, mas
primitivas. No planeta há uma representação terrana do Fundo Social Intercósmico de
Desenvolvimento. Além disso, existe uma grande base comercial dos saltadores. É só o
que sabemos sobre Toghma e Ghama.
Ez Rykher ergueu as sobrancelhas.
— Saltadores? — repetiu em tom hesitante. — Neste caso, talvez seja preferível
procurarmos outro lugar. Pelo que sei da política terrana, concluí que nossa base é muito
pequena, e pouco poderá fazer para evitar que os saltadores nos agarrem.
De repente, Lyn Trenton soltou uma estrondosa gargalhada.
— Formidável! — exclamou. — Se os saltadores nos agarrarem... Por que haveriam
de fazer uma coisa dessas, que só lhes pode trazer dificuldades diplomáticas? Ora, meu
caro, não ponha miss Langmuir nervosa com essas suas histórias de raptos.
Passou a mão pelo braço de Dynah, num gesto tranqüilizador. Richard ficou irritado
ao notar que ela não se importou com tal atitude.
Ez Rykher continuava tranqüilo.
— Acho que o senhor não sabe mesmo de nada — disse num tom indiferente, como
quem tece comentários sobre o tempo. — Todos sabem que os saltadores costumam
atacar e destruir nossos cargueiros. E, se fazem uma coisa dessas, não vejo por que
deixariam de apoderar-se de cinco terranos indefesos.
Voltou-se para Richard Silligan, fazendo de conta que não valia a pena perder mais
tempo com Lyn Trenton.
— Qual é a distância até o lugar aproveitável mais próximo?
Richard não teve necessidade de refletir.
— Desgraça — respondeu. — São sete anos-luz daqui.
Ez Rykher refletiu intensamente.
— Este barco só dispõe de um propulsor que não nos permite atingir mais de
noventa e nove vírgula sei lá quantos por cento da velocidade da luz.
Parecia que falava para si mesmo.
— Katherine não agüentará tanto tempo. Sou de opinião que apesar de tudo
devemos ir para Ghama.
Richard fez um gesto de assentimento.
— Cabo Laughlin? — perguntou.
— De acordo, sir.
Richard girou a poltrona e inclinou-se sobre o painel de controle. Esperava que Lyn
Trenton protestasse contra a decisão a respeito da qual não fora consultado. Já tinha a
resposta na ponta da língua. Mas Lyn Trenton era mais inteligente do que ele supusera.
Não protestou, evitando assim a vergonha de uma recriminação.
— Laughlin, siga a rota de Ghama! — ordenou Richard.
***
A esfera azul formada por Ghama brilhava na grande tela. Reconheciam-se
perfeitamente as superfícies cintilantes dos gigantescos mares e os pontos escuros que
representavam as pequenas ilhas. Era uma visão bela e estranha, mas a única pessoa que
realmente se deleitou foi Ez Rykher.
— Desse jeito — disse — realmente me oferecem algo em troca desse concurso
idiota. Acho que Árcon seria bastante monótono. Aqui as coisas serão diferentes.
O barco percorrera a distância de mil e cem unidades astronômicas em pouco menos
de trinta horas, tempo de bordo. O propulsor funcionara perfeitamente, e a distorção
relativista do tempo, verificada durante o vôo a alta velocidade, fizera com que para os
ocupantes do barco o tempo não parecesse tão longo como para um observador estranho,
que se encontrasse em posição imóvel.
Assim que o sistema de Toghma surgiu na tela, Richard Silligan confiou a pilotagem
da nave exclusivamente ao cabo
Laughlin e passou a ocupar-se com os receptores de bordo, esforçando-se para fazer
com que ao menos um deles voltasse a funcionar. Conforme já fora ressaltado por Ez
Rykher, o pouso em Ghama envolvia riscos consideráveis. Os saltadores costumavam
ficar de olho em tudo, e os nativos dependiam deles, motivo por que teriam de submeter-
se às suas ordens. Richard não fazia a menor idéia de qual das inúmeras ilhas abrigava o
estabelecimento terrano. Esperava conseguir reparar o receptor, a fim de acompanhar o
tráfego de mensagens de rádio que se desenvolvia acima de Ghama.
Mas essa esperança revelou-se ilusória. Os aparelhos estavam tão avariados que não
havia como repará-los.
Lyn Trenton acompanhara os esforços de Richard com a maior atenção. Quando
Richard finalmente confessou seu fracasso, disse:
— O senhor não é culpado, tenente. Na Terra deveriam ensinar mais Eletrônica aos
oficiais.
— Não diga tolices! — retrucou Richard. — Nem mesmo um chefe de Eletrônica
seria capaz de reparar este receptor.
A voz entrecortada de Ez Rykher fez-se ouvir nos fundos:
— Deve haver gente que consegue repará-lo com a boca, Dick!
Lyn Trenton olhou para trás. Era a primeira vez, desde o momento em que Richard
começara a observá-lo, que parecia irritado. Richard sentiu-se satisfeito com isso, muito
embora, se quisesse ser objetivo, teria de confessar que, naquele ambiente estranho,
povoado de saltadores e cheio de perigo, a vida não seria nada agradável para os cinco
náufragos, se estes só procurassem ofender-se mutuamente.
Dynah Langmuir permanecera em silêncio durante todo o tempo de vôo. Lyn
procurara envolvê-la numa conversa, mas as respostas de Dynah eram tão lacônicas que
acabou desistindo. Reclinou a poltrona e dormiu um pouco. Dynah, Ez e, evidentemente,
os dois tripulantes, continuaram acordados.
Nas horas em que não havia nada para fazer, Ez Rykher conversava demoradamente
com Richard. Contava-lhe a respeito da fazenda que possuía em Lapine, de sua esposa
Katherine e de seus dois filhos, um dos quais freqüentava a Academia Espacial de
Terrânia. Richard ouvia-o atentamente. Ez contava as coisas com tamanho realismo que o
ouvinte esquecia o ambiente em que se encontrava. Richard chegou a sentir cheiro das
bétulas de Oregon, o perfume dos prados, ouvir o mugido das vacas e o zumbido das
abelhas. Depois de algum tempo já não sabia o que estava fazendo num lugar como
aquele, situado a dezoito mil anos-luz da Terra e no caminho de Toghma.
Ez Rykher era um homem estranho. Entendia bastante de madeira, capim, galinhas,
vacas, leite e outras coisas semelhantes — conforme se podia esperar — e não entendia
menos de Galatologia, Astronáutica e Matemática — isto, não se podia esperar. Discutiu
a respeito de uma série de problemas nos quais Richard deveria possuir certa
superioridade sobre ele, mas não possuía. Rykher não o deixou perceber. Tinha uma
maneira gentil e conciliadora de fazer com que alguém reconhecesse que se enganara
num ou noutro ponto, e que, na verdade, as coisas não eram tão fáceis como supunha. Ez
Rykher foi um dos contatos mais estranhos e agradáveis que Richard fizera em sua vida.
Naquele momento dirigiu-se para a frente, a fim de acompanhar a manobra de pouso
que estava sendo realizada por Tony Laughlin. O cabo fez com que o veículo penetrasse
em ângulo aberto nas camadas superiores da atmosfera, a fim de economizar
combustível. Sua intenção era obter redução da velocidade por atrito, em vez de realizar a
manobra de frenagem. O barco ainda dispunha de uma quantidade suficiente de energia,
mas segundo uma lei da Astronáutica jamais se devia desperdiçar combustível, caso
houvesse um meio de economizá-lo.
Tinham tempo. Dariam algumas voltas em torno de Ghama, até que o barco
desenvolvesse a velocidade que lhe permitisse pousar. Isso oferecia outra vantagem, pois
poderiam procurar o posto terrano. Era ao menos o que imaginavam. Acontece que,
quando o barco estava prestes a iniciar a segunda volta em torno do planeta, foi atingido
por um golpe violento. Girou algumas vezes em torno de seu eixo longitudinal e lateral e
desceu cambaleante.
Ninguém tinha a menor idéia do que acontecera. Parecia um impacto de meteoro,
mas não se descobriu o menor vestígio desse impacto. O propulsor direcional permitiu a
Tony Laughlin acertar a posição do barco e levantá-lo um pouco, fazendo com que
perdesse parte da velocidade perigosamente elevada.
Mas foi só. O barco precipitou-se para baixo que nem uma pedra. O propulsor
deixara de funcionar. O antígravo fora posto fora de ação, e os cinco terranos levitavam
na pequena sala de comando. Tony Laughlin e Richard Silligan desistiram dos seus
esforços e fitaram a grande tela, na qual a superfície verde-azulada do oceano se
aproximava com uma velocidade apavorante.
Sentiram um medo terrível. O impacto da queda os mataria.
***
Quando ouviu o uivo estridente, Larry Randall levantou os olhos. O ruído vinha do
céu azul e límpido, mas Larry não conseguiu ver sua causa.
Com um suspiro recolheu a vara de pescar e atirou-a no barco. Ao que parecia, não
pegaria nenhuma arraia lunar. Voltou a olhar para o alto e colocou a mão sobre o
acelerador do pequeno motor silencioso, a fim de estar preparado se acontecesse algo de
importante.
O uivo subira de tom. Parecia um vento rijo e constante que assobiasse pelas frestas
das janelas de um edifício. Larry nunca ouvira um ruído como aquele. Ficou admirado.
De repente viu alguma coisa. Era um pontinho cintilante vindo do céu, e se precipitava
em direção à água como se fosse uma pedra.
“É um veículo espacial dos saltadores”, pensou Larry. “Está caindo. Não se deve
ser odiento, mas seria bom que todos eles caíssem.”
Algumas centenas de metros acima da água o ponto cintilante parecia querer parar.
A queda vertical passou a desenvolver-se num ângulo mais aberto. O uivo mudou de tom.
O ponto descreveu uma curva fechada e voltou a subir. Sua velocidade diminuiu.
Atingido o ponto mais elevado de sua trajetória, voltou a cair, depois de descrever outra
curva. Projetou-se n’água a alguns quilômetros de distância, fazendo saltar um jato alto e
espumoso.
Larry Randall colocou seu barco em movimento. Eram saltadores que tiveram o azar
de cair n’água, e seria bom que o diabo carregasse tudo quanto fosse saltador. Mas não se
podia deixar que morressem afogados. Se alguém tivesse saído do veículo espacial, esse
alguém ficaria nadando, mas logo seria devorado por um lidioque. Era uma morte que
Larry não desejava nem mesmo a um saltador.
Quando Larry aumentou a velocidade do barco, este ergueu-se ligeiramente na água.
Por enquanto não se ouvia nenhum ruído além do borbulhar da água. Larry olhou
rapidamente para trás. A linha alongada do litoral foi mergulhando lentamente no mar.
Deu-se conta de que se afastava da costa a uma distância maior do que jamais se
arriscara. Comparou a posição do sol com a situação do litoral, a fim de poder orientar-se.
De repente foi de opinião que era verdadeiramente ridícula a busca que realizava, pois
nem sequer possuía uma bússola que lhe permitisse orientar-se.
Depois de algum tempo atingiu as ondas levantadas no local do impacto. O pequeno
barco começou a balançar. Larry reduziu a velocidade e olhou em torno. A fim de
aumentar seu campo de visão, levantou-se. Entretanto não conseguiu enxergar nada, além
da água. Não havia o menor sinal da cabeça de alguém que estivesse nadando, nenhuma
peça do veículo que ali afundara.
Durante uma hora, Larry ficou cruzando pela área, olhando em torno e chamando de
vez em quando. Finalmente chegou à conclusão de que ninguém sobrevivera à queda e
dispôs-se a voltar.
Naquele momento ouviu um ruído borbulhante e viu algumas bolhas que subiam ao
lado do barco. Atrás das bolhas vinha uma sombra cinzenta. De início pensou que fosse
um lidioque e esteve prestes a fugir, pois um lidioque era tão grande e forte que poderia
estraçalhar não só ele, como também seu barco. Mas quando a tal coisa subiu mais um
pouco, Larry pôde ver que tinha o formato de um trapézio. Um lidioque não tinha
formato de trapézio. Larry esperou.
Finalmente o objeto atingiu a superfície. Alguns segundos antes Larry já
reconhecera o que era: uma peça do mecanismo direcional!
A peça metálica, mais leve que a água, subiu à superfície. Larry admirou-se de que
tivesse levado tanto tempo.
E mais admirado ficou quando leu o que estava escrito na peça.
— Carolina II! — balbuciou.
De repente teve muita pressa. Não havia mais nada que pudesse fazer pela pessoa
que caíra na Carolina II, fosse ela quem fosse. Mas a Terra teria de ser informada sobre o
incidente, e isso o mais cedo possível.
Larry olhou para o sol, colocou o barco na direção certa e empurrou a alavanca do
acelerador para a posição máxima.
4
***
Ninguém era capaz de imaginar qual seria o motivo dessa ordem, e Ron Landry,
ainda menos que qualquer outra pessoa. A volta à Terra contrariava parte das instruções
que Ron recebera durante o aprendizado hipnótico. Mas não havia nenhuma dúvida:
quem expedira essa ordem fora Nike Quinto em pessoa, motivo por que o melhor que
Ron Landry tinha a fazer era obedecer à mesma.
Seis dias após a decolagem, a Royal Irish voltou a pousar no espaçoporto de
Terrânia. Ron Landry teve uma idéia da importância de sua missão ao perceber que Nike
Quinto em pessoa viera buscá-lo.
Geralmente Nike Quinto, que nominalmente era diretor do Fundo Social
Intercósmico de Desenvolvimento, uma organização não-militar, teria coisa melhor a
fazer, e não aparecer nas proximidades de um cruzador pesado. Devia evitar qualquer
indicação, por mais leve que fosse, de que a Divisão III, submetida a Nike Quinto, não
tinha nada a ver com o auxílio para o desenvolvimento. Coisas extraordinárias
aconteceram, pois, do contrário, Nike Quinto não teria deixado de lado as medidas usuais
de segurança.
Ron Landry não demorou a descobrir de que se tratava.
O Tenente Randall, que se encontrava em Ghama, retirara do mar, nas proximidades
do posto terrano, uma peça da nave auxiliar Carolina II. Do barco, observara a queda.
Escrevera um relatório bem elucidativo. Além disso, Randall examinara a peça do barco
espacial, formada por um pedaço do dispositivo direcional aerodinâmico, e constatara
que, pouco antes da queda, o veículo fora atingido por um tremendo choque energético. A
grade cristalográfica dos metais sofrerá uma deformação extrema, e a inversão do
processo permitiu a Randall que, com base no tempo de relaxação desse tipo de cristal,
calculasse o momento do impacto.
Concluiu que a nave fora derrubada.
Os nativos de Ghama não possuíam canhões energéticos. Portanto, a nave fora
derrubada pelos saltadores.
Porém estes não derrubariam sem mais nem menos um veículo espacial, quando no
momento do disparo nem poderiam saber, em condições normais, de onde vinha e nem a
quem pertencia. Dali se concluía que os saltadores estabelecidos em Ghama estavam
informados sobre o destino que atingira a Carolina e receavam que os ocupantes da nave
auxiliar pudessem ajudar a identificar o traiçoeiro atacante.
— Quer dizer que já temos uma pista — disse Nike Quinto, com sua voz aguda.
Estava bastante esbaforido.
— Acho que não é necessário ressaltar que devemos agir com muito cuidado —
prosseguiu. — Caso não acredite nas minhas palavras, poderá ver a ordem escrita do
Marechal Mercant. Ghama é muito importante para nós. Primeiro, por sua posição
galáctica; depois, em virtude de certas matérias-primas que nos são fornecidas pelos
nativos. Por enquanto esses nativos dependem dos saltadores e por isso lhes são bastante
dedicados. Os saltadores têm adotado uma política diplomática por demais hábil em
Ghama. Não podemos contar com a antipatia dos guameses para com os saltadores
“É claro que depois da destruição da Carolina os saltadores não podem jamais
escapar. Devem ser punidos. Isso significa que precisamos trazer os responsáveis para a
Terra, a fim de processá-los. Não virão espontaneamente; logo, teremos de obrigá-los. E é
nisso que consiste sua tarefa. Se a mesma provocar tumultos entre os nativos, não terá
sido cumprida segundo as intenções do Marechal Mercant e terá de ser considerada um
fracasso. Não se esqueça disso; acho que é o ponto mais importante.
“E agora sente-se novamente nessa poltrona e deixe que lhe ensinem o que ainda
terá de saber.”
***
Larry Randall não ficou surpreso, quando a nave de abastecimento, que costumava
pousar em Ghama uma vez por mês, chegou alguns dias mais cedo do que era aguardada.
Esperara que suas informações sobre a queda da nave auxiliar Carolina II provocassem
certas reações, e a antecipação da viagem da nave de abastecimento parecia ter algo a ver
com essas reações.
Sentado à escrivaninha, Larry olhava pela grande janela. Viu o tapete de relva
florida da ilha, a superfície cinzenta da estrada e o edifício achatado do espaçoporto, atrás
do qual a nave estava pousando nesse instante. Era a mesma de sempre, a Empress of
Arkon. Estava equipada com um propulsor do novo tipo; durante o pouso, não se ouviu
nenhum ruído, com exceção de um ligeiro zumbido. Larry sempre se sentia fascinado ao
ver um colosso metálico como aquele descer do céu suavemente e quase sem o menor
ruído.
Ficou refletindo sobre se deveria ir ao espaçoporto. Não costumava ir, pois sabia que
a chegada dos oficiais e tripulantes da nave deixaria o pequeno núcleo terrano de
Killanak movimentado por alguns dias. Resolveu que naquele dia também não iria.
Alguma coisa estava para acontecer, e seria preferível não modificar seus hábitos, a fim
de não chamar a atenção. Os nativos de pele lisa, que viviam em Killanak, andavam
sempre atentos, e Larry preferiu não arriscar-se a que um deles percorresse a nado os
duzentos e cinqüenta quilômetros que os separavam da grande base dos saltadores e
informasse: “Homem branco... ir nave... outras vezes não fazer... hoje fazer.”
Por isso Larry Randall ficou sentado, esperando.
***
De repente um dos nativos apareceu à porta. Era pequeno e tinha pele lisa e olhos
grandes, um pouco salientes. A pele era marrom-bronzeada, e a gordura, que os poros
eliminavam ininterruptamente, fazia a pele brilhar. As guelras, formando uma pequena
abertura atrás do maxilar, tremiam ligeiramente, como se aquele homem estivesse
nervoso.
Era Zatok. Nas primeiras semanas de sua estada em Ghama, Larry tivera
dificuldades em distinguir nominalmente os habitantes do planeta. A única diferença que
conseguia perceber de forma inequívoca era a seguinte: existiam homens e mulheres. Os
ghameses só traziam uma peça de roupa apertada nos quadris, e sua constituição física
era bastante semelhante à dos terranos.
Atualmente Larry já não tinha dificuldades em distinguir os habitantes do planeta
uns dos outros. O homem que se encontrava na porta era Zatok e, como suas guelras
tremessem, estava nervoso.
— Homem estranho chegou, meu amigo — disse em sua linguagem gutural.
Larry confirmou com a cabeça.
— Peça-lhe que entre — respondeu na mesma língua. — Decerto quer falar comigo.
Zatok também fez um gesto com a cabeça.
— Também acho — disse. Larry espantou-se.
— Mas... será que é ele mesmo? — perguntou, um tanto incerto.
Zatok fez uma careta e exibiu seus dentes brancos, numa espécie de sorriso amável.
— Acredito que sim. Larry levantou-se.
— Pois diga-lhe que entre, seu monstro marrom — ordenou com um sorriso.
Zatok virou-se e saiu andando. Aliás, andar não é a palavra adequada para designar
o que realmente fez. Arrastou-se graciosamente, numa forma de locomoção típica de
seres que estão acostumados a permanecer mais na água que na terra.
Dali a alguns segundos, outro homem apareceu na porta. Era grande. Sua largura
quase enchia todo o espaço da porta. A primeira impressão de Larry: não gostaria de
envolver-se numa briga com aquele homem, caso não dispusesse de outras armas além
dos punhos. O homem não parecia ter mais de trinta anos, mas seus olhos revelavam a
experiência de uma idade superior, e seus movimentos, apesar do tamanho descomunal,
pareciam elegantes e seguros.
Seu cabelo era castanho-escuro. Larry nunca o vira. Mas conhecia essa espécie de
gente.
Divisão III!
Larry levantou-se.
— Meu nome é Ron Landry — disse o desconhecido. — Se o senhor for Larry
Randall e tiver alguma coisa para beber, estou no lugar certo.
Larry sorriu.
— Ambas as suposições são corretas, Mr. Landry.
Apontou para uma poltrona. Ron sentou-se e esticou as pernas. Sentado, chegava a
parecer mais maciço que em pé. Larry pegou uma garrafa e dois copos e encheu-os.
— Mandaram-me para cá, Larry — principiou Ron sem esperar que seu interlocutor
falasse — porque são de opinião que o senhor precisa de auxílio. Face à influência cada
vez maior dos saltadores, devemos fazer um trabalho de ajuda ao desenvolvimento em
Ghama. Quero que me entenda bem. O fato de eu ter sido enviado para cá, de forma
alguma significa que na Terra não estejam satisfeitos com o senhor. Acontece apenas que
o trabalho a iniciar-se por aqui não poderá ser realizado exclusivamente pelo senhor.
Larry ouviu-o sem maior interesse e, quando Ron fez uma pausa, acenou-lhe com a
cabeça. Larry sabia que não havia necessidade de guardar na memória o que Ron lhe
dissesse, pois era tudo inventado. Saberia de outra forma o que realmente Ron desejava.
Isto é: uma maneira da qual pudessem ter certeza de que os saltadores não pudessem
escutá-los.
Ron pegou mais um copo de bebida e prosseguiu:
— Trouxe uma porção de diretivas enfeixadas num manual, que se encontra a bordo
da Empress of Arkon. Ainda não estudei o manual; na minha opinião será preferível que
façamos isso em conjunto. O chefe acredita que, se utilizarmos os meios adequados,
deverá ser possível ganhar terreno, face aos saltadores.
Larry aguçou o ouvido. Já eram falas mais precisas.
— O chefe acredita que podemos oferecer aos nativos a mesma coisa e até mais que
os saltadores. O problema é modificar seus hábitos antigos. Há séculos os saltadores lhes
trazem aquilo de que precisam. Basta convencer alguns deles de que conosco poderão ter
mais vantagem, para que a novidade circule por aí e os saltadores percam terreno.
“Isso não vem ao caso”, pensou Larry.
— Antes de mais nada, nunca devemos esquecer-nos de uma coisa: o que mais
importa é o bem-estar dos ghameses. Seja lá o que resolvermos fazer, não devemos
contrariar os nativos, pois se isso acontecer, tudo será em vão.
“Ah”, pensou Larry. “O caso é sério.”
Naquele instante, Zatok voltou a aparecer na porta. Ron estava de costas para a
mesma. Quando esteve a ponto de prosseguir, Larry fez-lhe um sinal. Ron virou-se.
— O que deseja, amigo? — perguntou, falando corretamente a língua dos ghameses.
Zatok espantou-se e, seguindo o costume de sua raça, deu mostras evidentes de seu
espanto. Ergueu os sobrecenhos sem cabelo, arregalou os olhos, que já eram grandes, e
deu três ou quatro saltos que, por pouco, não fizeram com que sua cabeça batesse no
batente da porta.
— Você fala minha língua, amigo — disse num estranho tom cantante, que exprimia
sua alegria profunda. — Com isso meu coração fica leve e minhas mãos começam a
nadar.
— Fico satisfeito em saber disso, amigo! — exclamou Ron e, para espanto de Larry,
dominou o tom cantante sem o menor sotaque. — Será que tem alguma objeção a que
permaneça algum tempo no belo mundo de Ghama?
Zatok bateu palmas energicamente, o que constituía sinal de uma negativa
inequívoca.
— Em absoluto, amigo. Isso também faz meu coração ficar leve.
Ron fez um gesto grave. Estendeu o braço direito para o lado e curvou-o, como se
quisesse abraçar uma pessoa invisível. Era um gesto de concordância e de afirmação, que
encerrava o tema sobre o qual se acabava de falar. Ron executou-o com uma elegância
inimitável.
“Deve ter feito um curso hipnótico”, refletiu Larry. “Se as coisas chegaram a este
ponto, algo de muito grave está acontecendo.”
— Quando você entrou aqui, pretendia dizer alguma coisa, amigo — lembrou-lhe
Ron. — O que foi? Não tive a intenção de interrompê-lo.
Zatok fez uma espécie de sinal-da-cruz com a mão direita, na altura da cabeça. Isso
significava: “Sim, é claro.”
— Acho que alguém quer ver um dos amigos — falou em seu tom cantante.
Um sorriso amável surgiu nos lábios de Ron.
— Se você diz isso, meu amigo, esse alguém já deve estar lá fora. Traga-o para
dentro. Quem é?
Neste momento ouviu-se alguém bater ruidosamente com os pés. Zatok foi
empurrado para o lado, e o vulto gigantesco de um homem barbudo, um pouco maior
ainda que Ron Landry, entrou pesadamente no pequeno recinto.
Larry esforçou-se para disfarçar o espanto.
O homem que acabara de entrar era Alboolal, chefe do clã dos saltadores, que
explorava o grande entreposto comercial de Ghama.
***
— Estava por perto — disse Alboolal em voz alta, falando o arcônida à maneira de
sua raça. — Pensei que seria bom dar uma chegada.
Olhou em torno. Larry convidou-o a sentar e fez as apresentações de Ron e
Alboolal.
— Quer dizer que pretende ficar aqui por algum tempo? — perguntou o saltador em
tom curioso.
Ron manteve atitude reservada. Não se esforçou para ser cortês e falou um arcônida
tão horrível que até mesmo Larry quase não conseguiu entendê-lo.
— Não sei. Depende de algumas coisas.
Depois veremos.
Alboolal soltou uma estrondosa gargalhada.
— Ah, sim. Compreendo. É segredo, não é? É preferível que a concorrência não
fique sabendo. Mas posso tranqüilizá-lo. O negócio de Ghama começa a ficar pouco
interessante para nós. Acho que não demoraremos em retirar-nos. Pode ficar com esse
deserto aquático.
— Ah, é? — perguntou Ron, desconfiado.
— Sem dúvida. Para o senhor, isto ainda poderá ser um grande negócio — fez um
gesto de desprezo. — Afinal, nossos padrões são diferentes.
Ninguém respondeu. Alboolal olhou em torno. De repente parecia sentir-se pouco à
vontade. Levantou-se.
— Prefiro não incomodá-los mais. Só quis dar uma chegada. Desejo uma boa
estada.
Fez um gesto para Ron. Este levantou-se, e, embora tivesse meio palmo menos que
Alboolal, ainda impressionava graças à sua elegância e agilidade. O rosto sorridente de
Alboolal enrijeceu-se. Ao que parecia, sentia a hostilidade que irradiava de Ron. Estava
prestes a retirar-se, mas ficou parado, como se o olhar de Ron o impedisse de
movimentar-se.
— Não se esqueça de fazer seu testamento e nomear o novo chefe do clã — disse
Ron em voz baixa, mas perfeitamente inteligível, falando um arcônida sem sotaque.
5
***
Mais tarde Richard Silligan não saberia reconstituir a natureza e a seqüência dos
fatos. Quando voltou a raciocinar claramente estava sentado num banco de madeira, e via
diante de seus olhos o rosto de uma criatura que poderia ter sido gerada num pesadelo.
Tony tentara erguer o veículo espacial mais uma vez, pouco antes de atingir a
superfície da água. Conseguiu em parte. A máquina gemera como se quisesse estourar. O
barco descrevera uma curva, subindo mais um pedacinho.
Isso reduziu a velocidade. Mas depois de uma queda de duzentos metros o impacto
na água ainda fora muito forte. Por alguns segundos Richard ficou inconsciente. Seu traje
espacial fora fechado, conforme mandava o regulamento, motivo por que, mesmo
embaixo d’água, nada lhe poderia acontecer. Vagara pela água, a grande profundidade,
conforme concluíra pela pouca claridade. Assim que voltou a raciocinar claramente,
começou a gritar. Seus companheiros também haviam fechado os trajes espaciais, e, a não
ser que por ocasião do impacto algo lhes tivesse acontecido, pelo menos um já deveria
estar em condições de ouvi-lo.
Mas antes que Richard recebesse qualquer resposta, subitamente houve um
movimento na água. Richard viu uma sombra aproximar-se. De início acreditara que um
grande peixe o tivesse localizado. Os monstros vorazes, que povoavam seus mares,
tornavam o planeta conhecido e temido. E a idéia de que poderia tratar-se de um lidioque
provocara uma reação nada simpática em sua mente.
Acontece que não era nenhum lidioque. Era um barco bem tosco, com uma série de
furos no casco, que pareciam ter sido revestidos de vidro grosso. O barco parará a seu
lado. Uma escotilha abriu-se no casco, e algumas mãos robustas o arrastaram para dentro.
A escotilha voltou a fechar-se e a água foi bombeada para fora do pequeno recinto. Até
então Richard não vira nenhum dos homens que o haviam salvo.
Depois de algum tempo, outra escotilha abriu-se atrás dele, e alguém arrastou-o para
o interior do barco. Ofegante, Richard se deixara cair sobre um banco de madeira. Havia
vários bancos no recinto mal iluminado em que se encontrava. Ficou sentado,
aguardando.
A criatura de pele marrom com os olhos salientes e o crânio calvo fitou-o
demoradamente, como se quisesse fixar os traços de seu rosto para nunca mais esquecê-
los.
“É um ghamês”, pensou Richard. “São criaturas amáveis e pacatas, dotadas de uma
curiosidade infantil e muito dedicadas aos saltadores. Este último traço é o único
antipático”, refletiu, concluindo suas elucubrações mentais.
Olhou em torno. Dois bancos atrás dele estava sentado Tony Laughlin, que já
baixara o capacete e arregalava os olhos. Na extremidade do mesmo banco, Lyn Trenton
e Dynah Langmuir apoiavam-se na parede. Por enquanto os dois não haviam aberto seus
capacetes. Dynah parecia inconsciente. Devia ser por causa do susto.
Subitamente houve um movimento. Os dois bancos começaram a balançar e uma
cabeleira branca e desgrenhada apareceu entre os mesmos. Sob a cabeleira surgiu um par
de olhos curiosos de camundongo. Finalmente o homem ergueu-se em toda sua altura,
pouco imponente, atirando o capacete sobre os ombros, num gesto desleixado.
— Maldito concurso! — exclamou Ezequiel Dunlop Rykher.
***
Com exceção daquele que já concluíra o estudo do rosto de Richard Silligan, não
havia mais nenhum ghamês no recinto. Quando seus olhos se acostumaram à penumbra,
Richard viu uma porta na parede que ficava à sua frente. Provavelmente dava para a
ponte de comando, onde devia haver outros homens-peixe.
A escassa iluminação do recinto passava pelas lâminas de vidro, e vinha diretamente
da água. O barco estava em movimento. Richard notou-o pelo borbulhar da água e sentiu-
o face ao forte zumbido, vindo das paredes.
Havia um cheiro de mar e peixe. O ghamês também exalava um cheiro de mar e
peixe.
“Isso não é de admirar”, pensou Richard. “Não poderia ter outro cheiro.”
Ainda se sentia perturbado; o raciocínio só voltava lentamente. Há alguns instantes
ainda estivera numa nave auxiliar que se precipitava em direção à superfície do planeta. E
agora estava sentado num banco no interior de um submarino de madeira, que estava
sendo pilotado por nativos de pele lisa.
O ghamês acabara de recuar até a parede em que havia a escotilha e, com um sorriso
no rosto, contemplava os cinco terranos. Richard virou a cabeça.
— Como vai, Tony? — perguntou.
Tony sobressaltou-se.
— Bem, obrigado — gaguejou. — Sinto-me um pouco confuso.
Richard fez um gesto animador. No banco situado atrás do de Tony, Ez Rykher batia
nos seus trajes, para remover uma poeira imaginária. Era um gesto ridículo. Depois
procurou verificar se Dynah estava passando bem.
— Deixe-a em paz! — gritou Trenton. — É bom que não tenha de assistir a tudo.
Ez não lhe deu atenção. Estendeu o braço e afastou Trenton. Este não estava
acostumado a tal tipo de tratamento e não reagiu, de tão surpreso que ficou. Ez abriu o
capacete de Dynah e atirou-o para trás. Levantou a moça e deitou-a sobre o banco.
Ajeitou habilmente o capacete, transformando-o num travesseiro.
Dynah abriu os olhos. Suas primeiras palavras davam uma impressão pouco
feminina.
— Arre! Que fedor!
Ez soltou uma risada de bode.
— Bem, isto não é um salão muito nobre. Mas o lugar é seco.
Dynah levantou-se. Ez ajudou.
— Onde estamos? — perguntou. Ez virou a cabeça.
— Olá, Dick! — gritou. — Dynah está perguntando onde estamos. Será que estes
nativos entendem o arcônida?
“Naturalmente que entendem”, pensou Richard. “Nem sei como ainda não me
lembrei disso.”
Dirigiu-se para o ghamês que continuava encostado à parede e disse em arcônida:
— Agradecemos por nos ter salvo. Vocês realmente nos tiraram de um aperto.
O ghamês sorriu.
— Eu Gherek — respondeu. — Não agradecer. Vamos cidade. Descansar. Depois
veremos resto.
— Não queremos ir à cidade — disse Lyn Trenton no mesmo instante, e isso em tom
um tanto áspero. — Levem-nos à base terrana.
Richard virou-se. Tinha algumas palavras zangadas na ponta da língua. Mas antes
que pudesse pronunciá-las, Gherek respondeu:
— Não ser possível. Precisamos ir cidade. Inimigos mandaram.
Logo depois, deslizou junto à parede, em direção à porta. Richard percebeu que a
situação assumia um feitio desagradável. Num gesto apressado voltou a virar a cabeça e
gritou para Trenton:
— Cale a boca, Trenton. Essa gente nos...
Trenton levantou-se de um salto. Ao que parecia, os acontecimentos dos últimos
minutos o haviam privado do juízo. De repente já não era o homem ponderado e tranqüilo
que aparentava ser.
— Eu lhes mostrarei — gritou em arcônida, interrompendo Richard em meio à
frase. — Vocês aprenderão a quem devem obedecer. Queremos ir à nossa base, não à
cidade suja de vocês. Vamos...
Pôs a mão no cinto. Todo traje espacial vinha acompanhado de uma pequena arma
de radiações. Evidentemente Trenton queria usar a arma para intimidar o ghamês e
obrigá-lo a cumprir suas ordens.
Lyn Trenton foi o primeiro a descobrir que já não possuíam armas.
***
***
***
O mar estava manso como sempre. O único sinal de perigo era o grupo de nativos
assustados, que se comprimiam junto a uma parede do depósito que ficava um tanto
afastada da água. Vez por outra a cabeça de algum dos ghameses aparecia atrás da parede,
a fim de dar uma olhada em direção ao mar. Geralmente voltava ao abrigo, depois de dois
ou três segundos.
Larry e Ron correram em direção ao barco.
— O senhor tem um anzol bem resistente? — gritou Ron, enquanto corriam.
Larry fitou-o com os olhos arregalados.
— Será que o senhor não está bem da bola? Quer pegar um lidioque com um anzol?
Ron sorriu. Era um sorriso juvenil e petulante.
“Ele nem imagina o que tem pela frente”, pensou Larry.
— Com um anzol, um pouco de habilidade e isto — disse Ron com uma risada, e
batendo ruidosamente na arma de radiações que trazia no cinto.
Atingiram o barco e com um forte empurrão colocaram-no na água. Larry saltou
habilmente para dentro do mesmo. Mas Ron, que não era tão versado nisso, perdeu a
oportunidade. O barco já balançava a uns dois metros da praia, e ele ainda se encontrava
em terra firme.
Mas não se importou com isso. Gritou para Larry:
— Abaixe-se!
Tomou distância e saltou. O impulso fê-lo passar pouco acima da água. Caiu no
barco com tamanha violência, que Larry por pouco não foi atirado à água. Conseguiu
segurar-se no costado e lançou um olhar recriminador para Ron.
— O senhor sempre costuma entrar assim num barco? — perguntou.
— Só quando o anfitrião não pode proporcionar-me o luxo de um passadiço —
respondeu Ron. — Onde está o anzol?
— Aqui — disse Larry e retirou uma caixa de plástico, debaixo do banco de popa.
Ron abriu-a com um gesto impaciente e contemplou por algum tempo a grossa linha
de plástico com o anzol de cerca de quinze centímetros.
— Não é nada mau — confessou. — O que costuma pescar com isto? Espaçonaves
caídas ao mar?
Larry não respondeu. Seus olhos vagaram pelo mar, mas ainda não havia o menor
sinal do lidioque. O tal animal agia como costumam agir as criaturas de sua espécie.
Aparecia uma vez; depois desaparecia por algum tempo. Quando voltava a aparecer, era
para atacar. Parecia saber que sua aparição metia tamanho susto nos ghameses que os
transformava em suas vítimas indefesas.
— Preciso de uma espécie de arpão — disse Ron.
— Olhe ali — respondeu Larry, apontando com a mão sem virar-se — que o senhor
achará. Acontece apenas que nunca encontrei ninguém que quisesse pegar um lidioque
com um anzol e um arpão.
— É verdade; sou um exemplar único — disse Ron, com uma risada travessa.
Pegou o arpão e começou a prendê-lo na linha, no lugar do anzol.
— Quando deverá aparecer esse “cara”?
— Dentro de três ou quatro minutos — respondeu Larry. — A não ser que tenha
bolado uma tática diferente.
— Por que é que os ghameses se escondem atrás da casa? Sempre pensei que um
lidioque fosse uma espécie de peixe. O que é que ele pode fazer-lhes em terra firme?
— É simples. Salta para a terra, agarra os que consegue agarrar e, no mesmo
instante, volta para a água.
— Ah! Então é tão simples? Sempre acreditei que o lidioque tivesse o tamanho de
uma casa.
— Realmente tem — esclareceu Larry.
— Como é que...
Larry o interrompeu em tom contrariado.
— Escute, seu terrano ingênuo! Faz três meses que o último lidioque apareceu por
aqui. Saltou para a terra firme e, sem que eu pudesse fazer nada para impedi-lo, devorou
quatro dos meus ghameses. Eu me encontrava do outro lado da ilha. Ali o senhor ainda vê
o estrago causado pelo monstro. E aqueles destroços foi tudo o que restou de um
depósito. Tal construção simplesmente ruiu com o impacto de seu peso. Será que o
senhor está com vontade de dizer mais alguma coisa?
Ficara de costas para a água, enquanto dizia umas verdades a Ron. Este olhava por
cima de seu ombro.
— Está bem, Larry, está bem — disse em tom apaziguador. — Não tive a intenção
de contrariá-lo. E agora, que vejo o bicho, já não duvido de mais nada.
Larry virou-se abruptamente. A cinqüenta metros do barco, aparecera a barbatana
principal do lidioque, que se levantava nada menos de cinco metros acima do nível da
água.
— Vá mais para a direita! — gritou Ron.
Estava de pé na proa do barco; sua mão esquerda segurava a pesada arma
automática, com o cano apontado para baixo.
“Quem dera que ele me dissesse o que pretende fazer”, pensou Larry.
Até então, Ron só emitira ordens, e não havia como adivinhar suas intenções. O
lidioque tivera sua atenção despertada para o barco. Parte do crânio, com seus olhos
semi-esféricos de vinte centímetros de diâmetro, surgiu acima da água. Ao que parecia,
decidira não atacar em terra firme, até descobrir o que pretendia aquele objeto pequeno,
que viera em sua direção e agora estava se desviando para o lado.
Larry não se sentia muito à vontade. Sabia que o lidioque e o barco desenvolviam a
mesma velocidade. Também sabia que uma pancada da cauda robusta do lidioque bastaria
para destroçar o barco e atirá-lo para longe. Além disso, acreditava que Ron Landry não
entendesse muito da caça de lidioques, o que era o pior.
O lidioque ficou um pouco para o lado. O barco encontrava-se na mesma altura que
ele. Se o monstro quisesse fitá-lo de frente, teria de girar o corpo. Larry viu a uma
distância de menos de trinta metros os olhos traiçoeiros e aguados, a parte superior do
crânio, larga e em forma de testa, e a barbatana triangular, atingindo a altura de uma casa.
— Mais rápido! — gritou Ron. — Senão acabará resolvendo outra coisa.
Larry comprimiu a alavanca do acelerador. O lidioque girou mais um pouco. Ao que
parecia, seu interesse não era tão grande que o levasse a acompanhar o barco. Larry sabia
que dali a pouco voltaria a dirigir sua atenção para a terra e desfecharia o ataque final.
— Faça uma curva fechada! — gritou para Larry. — E aproxime-se por trás, à
velocidade máxima, de tal forma que passemos a um ou dois metros da cabeça.
Larry fez o que o capitão lhe dissera. Enquanto o barco descrevia a curva, começou
a imaginar o que Ron pretendia fazer. Também se sentiu dominado pela febre do caçador.
As dúvidas, que ainda há poucos segundos atravessavam sua mente, já se haviam
desvanecido. Imprimiu a velocidade máxima ao barco. Este se ergueu na parte dianteira e
deu um solavanco, como se quisesse saltar sobre o monstro que se mantinha à espreita.
Ron dirigiu o cano da arma para cima. Os ghameses, que se encontravam em terra
firme, saíram de trás da casa. Compreenderam as intenções dos dois “homens brancos”. A
curiosidade superou o medo. Agachados em meio ao capim ralo que cobria a praia, não
tiravam os olhos da cena que se desenrolava diante deles.
O lidioque surpreendeu-se com a súbita curva que o barco descreveu. Ron escolhera
o momento exato. A distância entre o lugar onde o barco descrevera a curva e o crânio do
lidioque era suficientemente longa para um bom impulso e suficientemente curta para que
o monstro não pudesse fazer muita coisa, antes que Ron se tivesse aproximado.
Larry inclinou-se para a frente. Firmou os pés no chão do barco. Sabia que, quando
o lidioque começasse a enfurecer-se, precisaria de apoio firme. Olhou Ron com
admiração.
Ron estava bem na frente, quase sobre a ponta da proa. Bastaria um pequeno
solavanco para que caísse n’água. E se isso acontecesse não haveria ninguém que pudesse
salvá-lo. Também levantou o arpão. Fitava firmemente os olhos do lidioque, como se
quisesse hipnotizá-lo. Faltavam cinco metros! Ron soltou um grito, um grito bárbaro e
selvagem. No mesmo instante, ergueu um pouco a arma. E o raio incandescente de
energia indômita envolveu o crânio grande e feio do monstro. A água iluminou-se, e
vapores chiantes levantaram-se da mesma.
Ron inclinou-se para trás. Num gesto aparentemente descuidado deixou cair a arma,
indo esta parar exatamente na proa do barco. Colocou todo o peso do corpo no arremesso
do arpão. Em meio ao chiado dos vapores, Larry ouviu um ploc surdo. Ficou rijo de
pavor ao ver que Ron estava prestes a ser arrastado pelo impulso que ele mesmo dera ao
arpão. Era ao menos o que parecia. Mas Ron deixou-se cair tranqüilamente, até que suas
mãos fossem se aproximando do costado do barco. Apoiou-se fortemente e atirou-se para
trás. Recuperou o equilíbrio e ficou de pé.
Neste momento, o lidioque compreendeu o que estava acontecendo. Já não lhe
restava muito tempo de vida. O disparo de Ron devia ter cavado um profundo canal de
matéria liquefeita no centro de seu crânio. Mas o instinto, a reação inconsciente face ao
ataque inesperado, arrastou-o para a frente. Com uma última centelha de consciência,
percebera em que direção se deslocava o barco, que passara junto ao seu crânio, e
começou a segui-lo.
Larry procurou calcar o acelerador mais um pouco, mas o motor já não dispunha de
nenhuma reserva. Viu que a nuvem de vapores, atrás da qual se ocultava o crânio do
lidioque, os seguia a dez metros. A agonia da morte conferira tremendas energias à fera, e
o barco estaria perdido, a não ser que, dentro de alguns segundos, os efeitos do disparo
fizessem-se mortais.
Alguma coisa roçou pela cabeça de Larry e, por pouco, não o faz perder o
equilíbrio. Era a grossa linha à qual estava preso o arpão. Deslizando pelas mãos de Ron,
ia saindo do barco. O lidioque mantinha exatamente a mesma rota deste.
Larry ajoelhou-se à frente do motor. Nem se lembrava de que a praia já estava a
poucos metros, e de que a atracação seria extremamente violenta, a não ser que reduzisse
a velocidade em tempo. Procurou abrigar-se atrás do bloco do motor. O lidioque
aproximava-se numa velocidade inacreditável.
Ron gritou alguma coisa, mas Larry não o compreendeu. Estava de olhos presos na
nuvem de vapor, que quase conseguia agarrar com as mãos. Viu o corpo gigantesco da
fera mover-se em meio ao vapor, como se fosse uma sombra fantasmagórica.
De repente a nuvem ficou para trás. Larry não acreditou no que seus olhos viam.
Pensou que o lidioque apenas estivesse tomando impulso. Mas a nuvem imobilizou-se e
flutuou preguiçosamente sobre a água, enquanto o barco continuava a precipitar-se em
direção à costa.
Larry levantou-se de um salto. Pôs-se furiosamente a gritar e a gesticular. Gritava de
alegria e alívio. Mas o destino não lhe concederia a graça de um triunfo total. Um terrível
solavanco sacudiu o barco. Larry perdeu o apoio e voou em direção a terra, caindo quase
aos pés dos nativos paralisados de susto.
O capim reduziu a força do impacto. Larry levantou-se, meio tonto. Não muito
longe dele Ron também se levantou. Ainda segurava a linha.
O barco estava tombado, meio de lado, cinco metros terra adentro. Não sofrerá nada,
mas cavara um rego profundo, que se enchia lentamente de água.
Do lidioque não se via mais nada. A poucos metros da praia, a linha desaparecia na
água. Ron contemplou-a e disse em tom decepcionado:
— Achei que pudéssemos trazê-lo para mais perto.
Larry sacudiu a cabeça.
— Diga com toda sinceridade: o senhor realmente não entende nada de lidioques?
— perguntou.
Ron riu.
— Entendo pouco — respondeu. — O pessoal na Terra pensava que talvez pudesse
encontrar-me com um lidioque, motivo por que me ensinaram algo a seu respeito num
curso hipnótico.
Esforçou-se para puxar a linha. Saiu um pouco da água, mas logo se entesou. O
capitão não tinha forças para puxá-la.
— Está bem — disse Ron. — Amarraremos três ou quatro barcos. Acho que dessa
forma conseguiremos.
— Pretende trazê-lo para a terra? Ron fez um gesto afirmativo.
— Foi para isso que tive todo esse trabalho. Sabia que nós o perderíamos, se o
matássemos muito longe da costa. Teríamos de cortar a linha ou então seríamos
arrastados para o fundo por ele. Procurei segui-lo, e consegui. Aliás, o senhor é um ótimo
barqueiro.
— Obrigado — respondeu Larry em tom seco. — Gostaria de saber...
Foi interrompido pelos ghameses, que haviam despertado de seu torpor e
começavam a cantar e pular de alegria. Formaram um círculo em torno dos dois terranos
e executaram uma espécie de dança eufórica. Seus cantos não eram muito belos, mas
percebia-se que veneravam os homens brancos por seu ato de bravura.
Ron Landry, que parecia querer estourar de impaciência, suportou tranqüilamente o
cerimonial. Agachou-se no capim e, vez por outra, fazia um gesto amável para os
ghameses que dançavam em torno dele. Sabia que não havia nada pior para um desses
homens-peixe de pele lisa do que ser interrompido numa atividade dessas.
Antes que os ghameses chegassem à conclusão de que haviam dado suficiente vazão
ao seu entusiasmo, mais de uma hora se passou. O círculo dissolveu-se, homens e
mulheres de pele marrom voltaram ao trabalho, e Ron disse, enquanto se levantava:
— Acho que um gole de bebida me faria muito bem.
Foram ao gabinete de Larry. Este encheu o copo que Ron deixara no peitoril da
janela, quando do aparecimento do lidioque. Fizeram um brinde. Ron esteve a ponto de
dizer alguma coisa, mas nesse instante Zatok surgiu à porta.
— Olá, amigo! — disse Ron na língua dos nativos. — Fico muito satisfeito em vê-
lo. O que é que o traz à nossa presença?
Zatok assumiu um comportamento diferente daquele que Larry estava acostumado a
ver. Conhecia-o há mais de um ano. Fora um dos primeiros ghameses que se mostrara
disposto a viver com os terranos em Killanak e ajudá-los na construção do posto. Larry
acreditava que conhecia todos os traços da personalidade de Zatok. Sendo assim, teve
certeza de que jamais se comportara da forma que agora estava se comportando.
Parecia envergonhado. Estava de olhos baixos e, apesar das palavras amáveis de
Ron, não disse nada. Depois de algum tempo aproximou-se um passo. Dali a mais um
minuto levantou a cabeça e fitou primeiro Larry e depois Ron.
— Meus amigos — principiou em voz baixa. — Vocês nos prestaram um grande
serviço. Ficamos-lhes muito gratos por terem matado o lidioque malvado, e queremos
demonstrar nossa gratidão. Sabemos uma coisa que, segundo acreditamos, vocês também
gostariam de saber. Vou contar.
“Trata-se de cinco pessoas de sua raça...”
6
***
***
Já não havia tempo para fazer uma pausa. Richard afastou aqueles que se
mostravam ansiosos para pegar na corda. Já que se prendera em algum lugar, devia-se
procurar entesá-la cautelosamente.
Richard começou a puxar com uma das mãos, assegurando-se de que a corda
encontrava-se presa em seu suporte. Parecia estar firme, pois não cedeu, nem mesmo
quando Richard puxou-a com toda força, usando as duas mãos. Finalmente Richard
saltou, segurou a corda, dois metros e meio acima do solo, e balançou-se por algum
tempo. Não aconteceu nada.
A corda estava, de fato, bem firme.
Richard fez questão de ser o primeiro a subir. Resolveu que o próximo seria Tony
Laughlin. Havia um motivo para isso. Se lá em cima fossem surpreendidos pelos
ghameses, precisariam de punhos firmes e bem treinados para defender-se. E os punhos
mais bem treinados eram justamente os seus e os de Tony Laughlin.
Ele achava que os primeiros três metros seriam uma brincadeira, pois os nós feitos
por Dynah agüentavam muito bem. Depois de algum tempo, os braços começaram a doer
bastante. A fim de descansá-los por uns instantes, buscou apoiar-se com os pés num dos
nós. Depois, prosseguiu na escalada.
Finalmente viu-se a pouca distância da lâmpada. Notou que acima dela as paredes
do calabouço se fechavam de repente, deixando uma abertura de cerca de um metro. A
abertura estava escura. Richard não conseguiu ver o que havia atrás da mesma.
Não haveria maiores dificuldades em passar pela lâmpada. Esta consistia numa roda
metálica de um metro de diâmetro. Quatro travessas corriam da periferia para o centro,
onde ficava a chama. Richard viu um pavio que saía de uma massa gordurenta.
Conseguiu subir à borda da roda e agarrar a corrente que segurava a lâmpada.
Descansou um pouco, enquanto a lâmpada balançava violentamente sob o peso de seu
corpo. Finalmente segurou os grossos elos da corrente e foi-se puxando para cima.
Quando atingiu o lugar em que a corda, arrastada pela bota, prendera-se em torno da
corrente, quase se sentiu abandonado pelas forças. A bota só dera três quartos de volta na
corrente, e o que havia sustentado Richard fora apenas a pressão da corda, que sob o peso
de seu corpo se comprimira contra o bico do calçado. Richard sentiu tonturas ao pensar o
que poderia ter acontecido se a corda tivesse passado por cima do bico da bota. A queda
teria sido muito perigosa.
Soltou a corda, passou-a algumas vezes em torno do pescoço, juntamente com a
bota, e subiu o pedaço que o separava da abertura superior. Não teve a menor dificuldade
em atirar-se para cima da borda da abertura. Mas quando sentiu a pedra firme embaixo de
si, as forças abandonaram-no por algum tempo. Deitou e esperou que o corpo se
libertasse da rigidez provocada pela tensão dos músculos.
Depois voltou a prender a corda, de tal forma que Tony Laughlin poderia subir sem
receio. Tony galgou-a rapidamente, seguido por Ez. Finalmente Lyn e Dynah foram
içados sem dificuldades.
O recinto que ficava acima da abertura possuía o mesmo diâmetro do calabouço em
que até então tinham estado presos, mas era muito mais baixo.
Antes que Dynah desamarrasse a corda, Richard Silligan pôs-se a revistar as
paredes. Não precisou esforçar-se muito para descobrir uma porta. Não se haviam dado
ao trabalho de camuflá-la. Sem dúvida, os ghameses pensavam que o calabouço era
absolutamente seguro.
A porta estava presa a três gonzos de madeira de tamanho grotesco. Possuía um
trinco simples, que decerto funcionava por fora da mesma forma que por dentro. Richard
levantou cautelosamente o trinco e procurou movê-lo. A porta girou nos gonzos. Fechou-
a apressadamente e colocou o trinco. Resolveu esperar até que os outros estivessem
prontos para iniciar a marcha.
Por um instante Richard sentiu-se tomado de profundo desânimo. A cidade ficava
sob a água, muito abaixo do nível do mar. Havia comportas pelas quais se podia sair dali,
e para um ghamês não haveria a menor dificuldade em nadar até a superfície, sem
precisar de qualquer auxílio. Também poderia utilizar um barco, se o preferisse por uma
questão de comodidade. Acontece que os terranos só poderiam utilizar este último meio,
pois não estavam em condições de vencer a nado uma camada de algumas centenas de
metros de água. Isso significava que teriam de furtar um barco dos ghameses, e aprender
a manejá-lo, antes que estes iniciassem a perseguição. Teve a impressão de que nunca
seriam capazes disso.
Havia uma terceira possibilidade. Poderiam usar as galerias de ar, que ligavam a
cidade com a superfície. Os ghameses respiravam tanto pelos pulmões como pelas
guelras, mas preferiam viver num ambiente gasoso. Mas Richard teve suas dúvidas de
que esse caminho fosse utilizável. Provavelmente as galerias de ar subiam verticalmente
e não deviam ter qualquer dispositivo que permitisse galgá-las.
Quando todos estavam reunidos atrás dele, abriu cautelosamente a porta, que rangeu
terrivelmente. Richard aguardou um instante, pois receava que lá fora alguém tivesse
ouvido o ranger.
Mas logo viu o que havia do lado de fora, e o quadro que se lhe ofereceu fez com
que abandonasse todas as cautelas.
Viu uma rua inundada por uma penumbra esverdeada, que subia suavemente da
esquerda para a direita. A poucos metros do lugar em que se encontrava, bem à sua frente,
notou o crânio horrível de um gigantesco monstro marinho, que o fitava com uma
expressão curiosa e, como se a visão de um ser humano tivesse aguçado seu apetite, abriu
uma tremenda bocarra.
Richard passou pela porta, seguiu para a direita e num gesto instintivo atirou-se ao
chão. O monstro iniciou o ataque e aproximou-se velozmente.
***
***
***
Haviam dormido mais uma noite. Enquanto estavam tomando café, Ron deu uma
olhada para o relógio e disse:
— Acabe de comer o ovo; depois iremos embora.
A comida ficou atravessada na garganta de Larry.
— Embora? Para onde? — perguntou. Ron riu.
— Ora esta! Ele quer saber para onde... Será que o senhor ainda não sabe que cinco
terranos caíram sobre o planeta Ghama e são mantidos prisioneiros pelos ghameses, por
ordem dos saltadores e contra todas as normas do direito galáctico?
Larry engoliu o que tinha na boca.
— O senhor realmente se lembrava disso? — perguntou com uma ironia mordaz.
Ron não se importou. Ficou olhando Larry, enquanto este comia o ovo quente.
Depois de algum tempo, Larry não agüentou mais a incerteza.
— Afinal, aonde vamos? — perguntou.
— Vamos dar um passeio de barco — respondeu Ron.
— Iremos longe?
— Hum... Mais ou menos.
— Por quê?
— Ora essa! Não faça tantas perguntas. Coma!
Larry fez que sim, com o rosto zangado. Saíram logo depois do café. Ao que
parecia, Ron combinara a saída com Zatok, sem que Larry o percebesse. É que Zatok e
mais alguns ghameses se encontravam junto ao barco, e o nativo declarou com um
orgulho inconfundível que fizera exatamente o que lhe haviam mandado. Ron elogiou-o
e, mais uma vez, Larry percebeu que Ron Landry sabia lidar muito melhor com os
ghameses do que ele mesmo.
Sem dizer uma palavra, Ron empurrou o barco para dentro da água. Larry saltou e
sentou-se na proa.
“Se Ron não quer abrir a boca”, pensou, “ele mesmo é quem deve dirigir o barco.”
Foi o que Ron fez. Gritou mais algumas palavras animadas para os ghameses, pôs
em funcionamento o motor e fez o barco sair rapidamente para o mar aberto.
As horas foram passando. O sol subiu e espalhou um calor contra o qual não havia
defesa, já que o barquinho não oferecia a menor sombra.
Finalmente Ron fez uma pausa. Já fazia seis horas que haviam perdido Killanak de
vista. Ron desacelerou o motor e distribuiu mantimentos e bebidas tiradas de um pacote
que Zatok devia ter preparado e colocado no barco. Enquanto faziam a ligeira refeição,
não perderam uma palavra. Depois de algum tempo, Ron saltou do barco, a fim de
refrescar-se na água. Larry ficou de vigia, para ver se havia um lidioque nas
proximidades. Depois disso, a manobra foi invertida: Larry nadou um pouco e Ron ficou
de vigia.
Após um pequeno descanso, prosseguiram a viagem. Mais quatro horas se
passaram. Pelos cálculos de Larry, já deviam estar a mais de mil e trezentos quilômetros
de Killanak. E ainda não sabia quais eram as intenções de Ron.
Devido à conduta de Ron, percebeu finalmente que se aproximavam do lugar de
destino. Ron levantou-se e olhou em torno. Parecia estar muito seguro de si, pois fez cara
de espanto, quando não descobriu imediatamente aquilo que estava procurando. Voltou a
sentar-se e fez o barco percorrer mais um trecho.
Tornou a levantar-se. Porém Larry também já havia descoberto o ponto fosco que
pairava bem ao longe, pouco acima da água, e, às vezes, emitia uma forte luminosidade,
como se fosse de metal e refletisse a luz do sol.
Ron resmungou de satisfação, comprimiu a alavanca do acelerador até o fim e
dirigiu-se ao local. Durante cinco minutos, o barco desenvolveu a velocidade máxima.
De repente o ponto começou a crescer rapidamente. Transformou-se numa pequena
bola, e, logo depois, numa gigantesca esfera, que pairava pouco acima da água,
sustentada por forças invisíveis, e cintilava à luz do sol.
Era a Empress of Arkon, a nave de abastecimentos. Larry ficou perplexo ao
constatar que todas as conjeturas, feitas sobre a finalidade da excursão, ficavam muito
longe da realidade...
“O que estava fazendo a Empress of Arkon em pleno oceano, longe de qualquer ilha
habitada?”, indagou-se mentalmente.
Ron tocou em seu ombro.
— Chegamos — disse sem a menor necessidade. — Fique com os olhos abertos.
Está bem?
Segurava um pequeno aparelho de comunicação, cujo tamanho não ultrapassava o
das velhas caixas de fósforos. Larry ouviu-o dizer:
— Tudo preparado?
Também entendeu a resposta:
— Tudo preparado, sir.
— Como está o ambiente?
— Tudo “limpo”, sir. Fomos localizados durante a aproximação, mas no momento
tudo está “limpo” em torno da nave, até onde alcançam nossos instrumentos.
— E embaixo de vocês? — perguntou Ron com uma estranha entonação.
— Embaixo também.
Ron Landry sorriu.
— Muito bem. Podem começar! Tenho a meu lado uma pessoa que nem pode
esperar para ver o que vocês trouxeram.
***
Richard Silligan sentiu o raio quente da arma térmica passar próximo de sua cabeça.
Atirou-se para o lado, caiu, rolou por cima do ombro e voltou a pôr-se de pé.
A porta não ficava longe. O saltador perdera alguns preciosos segundos, pois não
acreditava que um dos terranos tentasse seriamente empreender a fuga. Seu primeiro tiro,
disparado sem pontaria, num momento de surpresa, passara longe de Richard. Mas o
segundo quase o atingiu.
O terrano sabia que estaria perdido se a porta fosse uma daquelas que giravam
pesadamente nos gonzos, pois, nesse caso, levaria mais tempo para abri-la do que o
saltador gastaria para fazer boa pontaria. Apesar disso continuou a correr. Precisava
conseguir.
No momento em que os ghameses e o saltador apareceram na praça, deu-se conta de
que nenhum terrano jamais saberia da queda da nave auxiliar sobre o planeta Ghama, a
não ser que ao menos um deles conseguisse abandonar a cidade submarina e alcançar o
posto terrano. Os saltadores eram inimigos da Terra, por maior que fosse o número dos
tratados celebrados entre as duas raças. Para os saltadores, qualquer terrano que caísse em
suas mãos era um objeto precioso, que conforme as condições poderia revelar certos
detalhes sobre coisas que a Terra procurava manter em segredo. Se caíssem nas mãos dos
saltadores, nunca mais conseguiriam recuperar a liberdade.
Esta idéia deu novas forças a Richard, que correu em direção à porta. Escutou uma
barulheira às suas costas. Os ghameses, que até então se haviam mantido em silêncio,
começaram a movimentar-se. Richard os ouviu correrem pelo pavimento liso da praça.
Estavam atrás dele!
Num instante reconheceu a chance que isso lhe representava. Enquanto os ghameses
procurassem pegá-lo, o saltador não poderia atirar. Não se atreveria a fazê-lo, pois as
pequenas criaturas de pele marrom se encontravam na linha de tiro.
Richard não reduziu a corrida quando alcançou a parede. Bateu fortemente contra a
pedra e, num movimento resoluto, pegou o fecho, puxando-o fortemente para cima.
Procurou forçá-lo, e viu que a porta se movia lentamente.
Chegou o momento em que podia ver o que havia naquele compartimento. Não era
propriamente uma sala. A janela, que Richard vira bem perto, na parede, não pertencia ao
recinto. Tratava-se de um corredor estreito e escuro, que levava à parte central da cidade;
só o diabo saberia dizer precisamente para onde.
Richard esgueirou-se pela porta semi-aberta e entrou no corredor. No mesmo
instante, alguma coisa bateu fortemente contra a parede, do lado oposto da porta. Richard
ouviu uma voz chorosa, quase histérica:
— Leve-me consigo, Dick, pelo amor de Deus...!
Richard ficou duro de susto. Não era difícil reconhecer aquela voz. Dynah Langmuir
encontrava-se do outro lado e procurava abrir o fecho.
Não podia deixá-la por lá. Voltou a abrir ligeiramente a porta, pôs a mão para fora,
sem olhar, e agarrou o braço de Dynah. Puxou-a e, com um ligeiro olhar, percebeu que a
primeira fila dos ghameses se encontrava a menos de dez metros.
Ainda bem que não sabiam mover-se com muita habilidade em chão firme! Sua
corrida ficava reduzida a uma série de arrastões apressados, que parecia forçá-los ao
extremo. Richard deu-se conta de que estaria em segurança, enquanto se limitassem a
correr atrás dele. Mas provavelmente os ghameses — ou o saltador — logo se
lembrariam de que a cidade dispunha de outros corredores, pelos quais poderiam cortar
caminho e cercá-los.
Richard saiu correndo. Uma vez fechada a porta, o corredor ficou completamente às
escuras. Richard vira que a galeria prosseguia pelo menos cem metros em linha reta.
Bastava estender a mão para sentir qualquer obstáculo que surgisse à sua frente. Com a
outra mão segurava o braço de Dynah, arrastando-a atrás de si. Esperava que a qualquer
momento a luz penetrasse no corredor. Os ghameses já deviam ter chegado à porta, e por
certo não hesitariam um instante em perseguir os dois fugitivos.
Mas, quando atingiram a primeira curva do corredor sem que os perseguidores
aparecessem atrás deles, Richard acreditou que avaliara erroneamente a mentalidade dos
ghameses ou que os nativos deviam ter encontrado outro caminho, pelo qual esperavam
apoderar-se mais depressa dos fugitivos.
Richard aliviou a pressão sobre o braço de Dynah. Notou que a moça cambaleou e
se encostou à parede, para apoiar-se melhor. Sua debilidade fez com que a raiva de
Richard se desvanecesse.
— O que foi que a senhora estava pensando? — perguntou em tom muito menos
áspero do que pretendia.
Dynah soluçava.
— Nada — respondeu. — Simplesmente não quis nada com esse barbudo nojento.
O senhor devia ter visto seus olhos quando me fitou...!
Richard os vira, e sabia que Dynah não estava exagerando.
— Está bem — disse um tanto desorientado. — Acho que juntos conseguiremos.
Mas a senhora terá que fazer das tripas coração. Como se sente?
— Miseravelmente mal — confessou Dynah. — Minhas pernas parecem de
chumbo, os ombros doem e nem tenho coragem de levantar os braços.
Richard não pôde deixar de rir.
— É uma situação formidável para se fugir de dez mil inimigos — disse em tom
irônico. — Mas pode deixar por minha conta. Nós nos arranjaremos.
Estava convencido do contrário, mas achava preferível deixar que Dynah ficasse
bem-humorada.
— Venha; precisamos seguir adiante — disse em tom suave.
Voltou a segurá-la pelo braço, e ela não se opôs. Passaram pela curva, que o
corredor descrevia nesse lugar, e descobriram que, mais à frente, a galeria descia
suavemente.
— Foi de lá que nós viemos — disse Richard e obrigou-se a soltar uma boa
gargalhada.
Não se esforçaram para evitar o barulho. No corredor reinava um silêncio absoluto.
Em nenhum lugar parecia haver perseguidores, nem à frente, nem atrás deles.
“Gostaria de saber que truque eles inventaram”, pensou Richard.
Resolveu dobrar na primeira bifurcação que encontrassem. Se os ghameses
procurassem adivinhar em que lugar os dois saíram do corredor, chegariam à conclusão
de que era mais provável que tivessem seguido em linha reta. Não pretendia tornar as
coisas tão fáceis para eles. Era provável que dispensassem menos atenção às saídas
laterais que à principal.
A idéia era boa — apenas não havia corredores laterais. Ao menos nos primeiros
trinta minutos, não encontraram nenhum. A confiança de Richard foi enfraquecendo.
Subitamente teve uma idéia que lhe deu novas esperanças. O corredor devia ter
alguma finalidade. Ninguém constrói um corredor apenas para ligar dois pontos que já
estão ligados por uma rua. Quando construíram a galeria, os ghameses talvez tivessem
agido com uma intenção definida. Devia haver alguma bifurcação que levasse a outra
saída.
Até então Richard se limitara a apalpar a parede que ficava à sua esquerda. Do outro
lado, Dynah fazia o mesmo com a mão estendida.
“Isso não basta”, concluiu mentalmente Richard. “É possível que por aqui haja
portas menos toscas que as que encontramos na beira da rua.”
Calculava que, se alguém passasse apenas ligeiramente a mão pela parede, talvez
deixasse de notar pequeníssimas fendas.
Richard parou.
— O que houve? — perguntou Dynah em tom assustado.
— Precisamos de luz — respondeu Richard. — Receio que só com as mãos não
descubramos nada.
— Tenho um isqueiro — disse Dynah. — Mas é pequeno.
— É melhor que nada. Poderia fazer o favor de emprestar-me?
Ouviu Dynah remexer os bolsos de sua roupa.
— Aqui está.
Richard colocou o isqueiro perto da parede e iluminou-a. A claridade produzida não
era maior que a unha do dedo polegar. Para iluminar uma área de um metro quadrado, de
tal forma que nada lhe escapasse, Richard calculou que levaria mais de uma hora.
Finalmente descobriu que poderia aumentar a eficiência do isqueiro se colocasse a
mão perto dos raios térmicos, fazendo com que a mesma refletisse parte da luz verde
irradiada para o lado. Com isso, ampliava a área a ser iluminada.
Na parede não havia nada de extraordinário. O corredor fora aberto, com os meios
mais primitivos, em meio à rocha natural. O chão era razoavelmente plano. O teto era tão
baixo que Richard se admirou de não ter esbarrado várias vezes no mesmo. Mas não
descobriu o menor sinal de uma porta ou de algum mecanismo misterioso que pudesse
levar a um corredor lateral.
— O senhor acredita que jamais conseguiremos sair daqui? — perguntou Dynah, de
repente.
Richard deu uma risada.
— Não pretendo concluir meus dias de vida neste corredor — respondeu.
— O senhor ri demais — disse a moça, em tom sério. — Não precisa infundir-me
coragem. Ao menos não precisa infundir-me mais coragem do que o senhor tem. Sempre
me sinto melhor se sei exatamente a quantas ando.
Richard engoliu em seco.
— Sinto-me desolado porque a senhora descortina com tamanha facilidade os meus
pensamentos — asseverou. — De qualquer maneira, tenho certeza de que não
morreremos neste corredor. Se não descobrirmos nada, voltaremos e faremos o que o
saltador mandar. Isso ainda será melhor que morrer de fome.
Voltou a examinar a parede. E, por estranho que possa parecer, justamente naquele
instante descobriu aquilo que procurara durante todo o tempo: uma fenda finíssima, quase
imperceptível, que corria verticalmente na parede e descrevia uma linha tão reta que, em
hipótese alguma, se poderia ter formado naturalmente.
Muito tenso, seguiu-a com a luz débil. Encontrou o ponto situado pouco abaixo do
teto onde esta descrevia um ângulo reto, correndo paralelamente ao teto por um certo
trecho, e o lugar em que descrevia outro ângulo reto, para voltar a descer em vertical.
Dynah não vira nada.
— Aqui está a porta! — disse Richard em tom indiferente.
Dynah correu para junto dele e examinou o lugar.
Richard entregou-lhe o isqueiro e pediu-lhe que o segurasse junto à parede.
Procurou mover o pedaço da rocha destacado pela fenda. Não havia nenhuma maçaneta,
nenhuma tramela, nenhum botão. Mas existiria uma possibilidade de movê-lo.
Richard pensou que bastava apenas empurrar a porta para dentro. Então encostou o
corpo à mesma e empurrou com toda força. A parede não saiu do lugar. Richard esteve
prestes a desistir. Mas, subitamente, ouviu um leve estalido nas proximidades do solo!
A porta começou a mover-se com facilidade. Richard, por pouco, não perdeu o
equilíbrio. O pedaço da rocha deslocou-se para o lado de dentro, como se corresse sobre
rolamentos bem lubrificados. Uma abertura surgiu na parede; dois caminhos estreitos
surgiram pelos flancos do bloco de rocha empurrado para dentro. Um para a direita e
outro para a esquerda.
Richard recuou. Não sabia por que de repente se sentia tão orgulhoso. Talvez fosse a
proximidade de Dynah. De qualquer maneira, fez um gesto convidativo em direção à
entrada, que subitamente surgira à sua frente, e olhou para Dynah, como se quisesse
dizer: “Descobri isso para você. Entre e dê uma olhada.”
E foi assim que Dynah fez a descoberta que deveria ter sido reservada a ele. Em
atitude um pouco hesitante, com a mão direita estendida para trás, como se quisesse que
Richard a segurasse, passou pela abertura, a fim de olhar o que havia do outro lado.
Richard viu-a inclinar-se para a frente. A cabeça desapareceu atrás do bloco de rocha.
Vendo a jovem imobilizar-se, assustou-se.
“O que a fez ficar assim?”, perguntou-se mentalmente.
Pegou sua mão, tentando puxar a jovem para trás. Mas, no mesmo instante, Dynah
virou a cabeça. Estava muitíssimo comovida.
— Lá embaixo! — exclamou. — O vidro, Dick...!
8
***
Ron Landry bem que gostaria de dar outra resposta. Mas os canais intergalácticos de
telecomunicações não se destinavam à transmissão das emoções de cada um.
Ao ver a mensagem, Larry Randall soltou uma risada amarga.
— Não têm a mínima idéia de como são as coisas aqui embaixo — constatou.
— Nem poderiam ter — disse Ron. — Se conseguir pôr as mãos no tal do Silligan,
ele verá o que é bom. Poucas vezes vi alguém fazer uma tolice pior que ele.
Larry meneou a cabeça.
— Não sei. Se estivesse no seu lugar, provavelmente teria feito a mesma coisa.
Ron virou-se, devagar e bastante contrariado.
— Pois é justamente isso — disse meio contrafeito. — Cada um acredita que tem de
cuidar de si mesmo. Ele devia saber que a Terra não abandona seus homens. Nunca
abandonou...
Larry lançou-lhe um olhar de espanto.
— Suas palavras parecem bastante patéticas — disse. — Não sei se, quando
chegasse o momento, eu confiaria nelas.
Ron fez um gesto enérgico.
— Um dos princípios de nossa política é este: se um único terrano se vê em
dificuldade no espaço, envia-se, caso seja necessário, uma expedição de salvamento. A
idéia é do próprio Perry Rhodan, que é de opinião que de outra forma não podemos levar
os saltadores, e outras criaturas que tenham alguma coisa contra nós, a deixar nossas
naves em paz. Rhodan toma isso a sério, e para mim é uma excelente idéia. Quem se vê
em situação difícil faz apenas o necessário para conservar-se vivo. Quanto ao mais, deve-
se esperar, e ter confiança, pois a qualquer momento surgirá uma nave terrana que tirará a
pessoa da situação penosa em que se encontra.
Larry fez um gesto de concordância; parecia perturbado.
— Ah; será que o senhor está falando sério?
— Sem dúvida.
Larry refletiu por algum tempo. Finalmente disse em tom discreto:
— Muito bem. A gente tem de acostumar-se a isso. Até agora os terranos sempre
comeram as sopas que cozinharam. Não posso condenar Silligan pelo que fez.
Ron voltou a ficar junto à janela, com o copo na mão.
— Para falar com franqueza, também não posso — confessou. — Mas
provavelmente a bravata lhe custará a vida... e a vida da moça que está em sua
companhia. Não posso permitir que Warren Teller e seus homens fiquem nadando uma
eternidade lá embaixo. Terão de agir. E se até então Silligan e a moça não tiverem
aparecido, seu ato lhes custará o pescoço.
Larry refletiu.
— Alboolal também está lá embaixo, não está? — perguntou.
Ron fez que sim.
— Sim. Pela descrição que recebemos deve ser Alboolal.
— O que será feito dele?
Ron hesitou um pouco.
— Teller recebeu instruções para procurá-lo — respondeu. — Se Silligan e a moça
aparecerem em tempo, não teremos lugar para Alboolal, e nesse caso ele próprio terá de
comer a sopa que cozinhou. Mesmo que os dois não sejam encontrados, Teller e seus
homens terão bastante trabalho para acolher os prisioneiros em segurança e escapar da
cidade que desmoronará. Conclui-se que não poderão correr atrás de Alboolal.
— Mas poderão descobrir antes onde ele se encontra, não poderão?
— Só se estiver ao alcance de sua vista. Em certos lugares a cidade não está
envidraçada.
— E isso se aplicará tanto aos prisioneiros como a Alboolal. Se Teller não puder ver
onde eles se encontram, não poderá libertá-los.
Ron sorriu.
— Perfeitamente. Justamente por isso Teller esperará, depois de receber ordens para
entrar em ação, até que os prisioneiros apareçam em algum lugar.
***
***
***
***
Por estranho que possa parecer, Ez Rykher foi o primeiro a ver o peixe. Isso
aconteceu quando as atenções dos ghameses se concentraram exclusivamente no grupo,
formado por um saltador, cinco guardas e três prisioneiros, que atravessava a praça.
Alboolal, o saltador, ameaçara os prisioneiros de levá-los ao buraco mais escuro de
Guluk, se estes não lhe contassem espontaneamente aquilo que desejava saber. Seu
interesse dirigia-se principalmente para um novo sistema de propulsão de naves que,
segundo ouvira, passou a ser construído há alguns anos nos estaleiros da Terra. Ninguém
sabia dar informações a este respeito. Lyn Trenton e Ez Rykher não sabiam
absolutamente nada. Tony Laughlin ouvira falar alguma coisa, mas não estava em
condições de fornecer detalhes, porque não entendia nada do assunto.
Alboolal disse que se tratava de uma desculpa e dispôs-se a cumprir sua ameaça.
Os prisioneiros seriam levados novamente a uma parte da cidade, situada num ponto
mais baixo.
Ez Rykher estava refletindo sobre esta perspectiva nada animadora, quando viu o
peixe. Parou, fazendo com que Lyn Trenton esbarrasse nele. Com isso Lyn teve sua
atenção despertada. Olhou pela parede de vidro e também viu o monstro.
— Meu Deus...! — gritou em tom de espanto.
Os guardas perceberam que dois dos prisioneiros haviam parado e obrigaram-nos a
seguirem adiante. Por pura curiosidade também dirigiram os olhos para a parede de vidro.
— Liiidioooque...! — soou o grito selvagem e cantante.
Com isso, todas as pessoas na praça notaram que alguma coisa estava acontecendo.
Os ghameses giraram sobre os calcanhares. Ninguém deu a menor atenção aos
prisioneiros. Ez Rykher, perplexo, continuava a fitar o monstro. De repente percebeu que
mais quatro se aproximavam rapidamente, colocando-se diante da grande janela.
O pânico espalhou-se entre os ghameses. Gritando e lamentando-se, fugiram em
direção às saídas da praça. Os guardas também se esqueceram do seu dever. Lançaram
um olhar assustado para o saltador e saíram correndo. Uma confusão terrível formou-se
nas ruas que saíam da praça.
O saltador logo compreendeu a situação. Também parou e dirigiu a arma de
radiações sobre os três prisioneiros.
— Não quero que ninguém acredite que esta é a grande oportunidade — disse com a
voz séria, numa ameaça inconfundível. — Vamos andando; prosseguiremos. Os lidioques
não nos farão nada.
Mas os lidioques não pareciam ser da mesma opinião. Investiram em conjunto
contra a parede de vidro, chocando-se contra ela com uma força inimaginável. No
momento do impacto, a gigantesca área de vidro ressoou que nem um sino gigantesco
plantado no fundo do mar. A cidade foi sacudida sob o solavanco. Por alguns segundos a
gritaria dos ghameses, que se aglomeravam nas ruas, cessou, para recomeçar mais forte e
mais apavorada que antes.
O saltador começou a movimentar-se mais depressa. Parecia já não ter tanta certeza
da exatidão de sua teoria.
Os cinco lidioques fizeram meia-volta, afastaram-se da parede de vidro, colocaram-
se outra vez de frente para esta e repetiram o ataque. Ez Rykher parou, muito embora
Alboolal o ameaçasse com a arma, e observou o segundo ataque, contendo a respiração.
E quando os monstros bateram com um enorme estrondo contra o vidro, estremeceu.
Respirou aliviado no momento em que fizeram meia-volta, mas subitamente viu a grande
fenda que atravessava a parede em direção oblíqua. Em alguns lugares a água esguichava
violentamente para a praça.
O saltador pôs-se a correr. Não deu a menor atenção aos prisioneiros. De repente
perdeu todo o interesse pelos novos sistemas de propulsão e outros segredos.
E os lidioques uniram-se para o terceiro ataque.
“Desta vez passarão”, pensou Ez Rykher. “Diabo! Atrás desta parede a água exerce
uma pressão de vinte atmosferas.”
9
***
Ao segurar esta mensagem, Ron Landry soltou uma terrível praga, muito embora
soubesse que, no fundo, os homens da retransmissora XIV estavam com a razão.
***
Desceram lado a lado. O calor que os envolvia tornou-se cada vez mais
insuportável.
Os ghameses ainda não haviam percebido nada. O chiado da água, na qual se
despejava o vidro liquefeito, abafava o ruído dos passos de Richard e Dynah.
Richard olhou para Dynah. Estava séria, mas não parecia nervosa.
Quando chegaram à altura da tina de água, Richard seguiu para a direita. Dois
ghameses encontravam-se junto à tina, e os mesmos serviam tão bem como quaisquer
outros para serem os primeiros a ouvir a terrível notícia inventada por Richard Silligan.
Este começou a correr, como se estivesse com uma tremenda pressa, e Dynah corria a seu
lado. Seus passos ainda não podiam ser ouvidos. Os ghameses só notaram a presença dos
dois terranos, quando estes se encontravam a seu lado.
Richard sentiu que não agüentaria por muito tempo o calor que fazia naquele lugar,
a apenas dez metros da torrente de vidro. Sua exaustão só era fingida em parte. Gritou:
— Lidioques! Um bando deles está atacando a cidade. Se não fugirmos, estamos
perdidos.
Falou em arcônida. Não tinha certeza de que o nome do peixe gigante realmente era
o que tinha na memória. Mas os ghameses pareciam compreendê-lo. Um deles virou-se
para o lado e soltou o velho grito de pavor dos habitantes de Ghama:
— Liiidíoooque...!
O grito superou o ruído das massas de vidro liquefeito. Os outros ghameses
levantaram os olhos. Richard entesou os músculos. Era este o momento em que veria se
seu truque seria bem sucedido ou não.
Nesse instante aconteceu alguma coisa com a qual Richard não contaria nem mesmo
nos seus sonhos mais ousados. Um estrondo surdo e forte atravessou a rocha. O ruído
gelou o sangue nas veias de Richard; os ghameses já pareciam conhecê-lo e puseram-se a
correr. Richard teve de esforçar-se para segurar pelo ombro um dos dois que se
encontravam próximos a ele. Notou o pavor que estava estampado na face daquela
criatura.
— Onde estão os barcos...? A comporta...? — gritou para ele. — Nós não sabemos
nadar.
Teve de repetir a pergunta. De tão nervoso que estava, o ghamês não compreendeu o
sentido da pergunta e procurou libertar-se.
— Ali... — gaguejou depois de algum tempo. — Na mesma direção... nós vamos...!
Isso soava lógico. Se os ghameses quisessem sair da cidade porque temiam os
lidioques, também teriam de usar uma comporta, mesmo que soubessem nadar. Não
poderiam atravessar uma parede compacta. Richard soltou o ghamês.
— Corra atrás dele! — gritou para Dynah.
Movido por uma grande curiosidade, Richard abaixou-se rapidamente e pegou uma
pequena peça de vidro que se encontrava ao lado da tina. Enganara-se quanto à
temperatura da peça. Queimou os dedos. Mas não se importou com isso. Colocou a peça
de vidro no bolso e correu atrás de Dynah e dos ghameses.
***
***
A comporta não ficava longe do pavilhão de vidro. Mas nesse meio tempo a cidade
fora sacudida por mais duas fortes pancadas. Richard, que inventara a história dos
lidioques para fazer com que os ghameses saíssem correndo, teve a impressão de que
conjurara o demônio. De qualquer maneira, os ghameses pareciam ver nos ruídos um
sinal inequívoco de que a cidade realmente estava sendo atacada por lidioques.
Com isso, a situação modificou-se. Richard realmente estava com pressa. E não
poderia permitir que os ghameses saíssem a nado, para que ele mesmo compreendesse em
tempo o mecanismo de um dos barcos.
O tanque da comporta era de um tamanho espantoso, e nele havia uns cinqüenta
barcos de todos os tipos. Richard e Dynah mantiveram-se próximos de um dos ghameses
e, ao verem que os que iam na frente saltavam para dentro do tanque da comporta a fim
de nadarem até o portão exterior da comporta e abandonarem a cidade, seguraram o que
se encontrava a seu lado e apontaram para os barcos.
Era difícil fazer com que o ghamês, terrivelmente apavorado, compreendesse
qualquer coisa. Mas depois de algum tempo pareceu entender o que desejavam. Apesar
disso Richard não tirou os olhos dele, quando saltaram da borda baixa do tanque para o
convés de um dos barcos. Com os dedos trêmulos o ghamês abriu o fecho da escotilha
que levava para o interior do barco. Mal conseguiu abri-la, fez menção de entrar, mas
Richard segurou-o. Dynah foi a primeira, depois Richard, que prestou atenção para que o
ghamês voltasse a fechar a escotilha.
A última coisa que ouviram antes de trancar a escotilha do lado de dentro foi um
ribombar vindo do alto, que provavelmente era provocado pelas massas de água que se
precipitavam para dentro da cidade.
No barco, onde se sentia mais seguro, o ghamês parecia perder parte do medo de
que se sentia possuído. Uma vez no interior da pequena cabine de comando, agiu com
rapidez e segurança. O motor foi posto em movimento, e o barco deslizou pelo tanque,
em direção ao portão externo. O portão estava aberto, e o barco penetrou num túnel
escuro, que levava ao tanque de flutuação. Richard permanecera na cabina principal do
barco e procurava verificar se a catástrofe já se manifestara no interior das comportas.
Mas não viu nenhum sinal disso, até que o barco desapareceu no túnel de flutuação.
Numa viagem tranqüila, mas rápida, o barco chegou ao tanque de flutuação. A
abertura da comporta demorou algum tempo. Depois o veículo saiu para a penumbra
verde das águas profundas do mar. Richard olhou pelas pequenas janelas da cabina
principal e viu a grande nuvem de lama e poeira que se levantava no lugar em que antes
ficava a cidade de Guluk.
A água estava cheia de ghameses. Ao que parecia, a catástrofe acontecera
morosamente e todos tiveram tempo de salvar-se.
***
Levantou-se. Uma série de pensamentos confusos atravessou seu cérebro.
Subitamente ouviu uma voz que saía de um alto-falante situado quase no teto:
— Meu nome é Warren Teller. No momento encontro-me na cabina de comando
deste veículo que tem a forma de um lidioque. Acho que o senhor é Ez Rykher.
Mantenha-se calmo e reprima qualquer sensação de pânico. É o que se deve fazer numa
situação como esta. Colocá-lo-emos em segurança, a bordo de uma nave terrana. É só.
Ez Rykher procurou obedecer ao conselho. Disse para si mesmo que não havia nada
demais em ser devorado por um lidioque e, posteriormente, constatar no interior do
ventre do monstro que este era apenas uma imitação, feita na Terra, a fim de salvar cinco
terranos que se encontravam numa situação extremamente difícil.
Lembrou-se de Richard Silligan e Dynah. Sentiu-se sacudido por um choque. Os
dois não puderam ser salvos pelos lidioques de imitação. Deviam ter sido esmagados
pelos destroços da cidade, ou morrido afogados.
A tristeza não ajudou Ez Rykher a superar aqueles torturantes minutos de confusas
reflexões.
“Dick e Dynah, santo Deus!”, pensou. “A essa hora já devem estar mortos.”
Não sabia há quanto tempo já se encontrava ali, quando, de repente, surgiu uma
abertura na parede e um homem, envergando o uniforme da frota terrana, entrou no
recinto quadrado. Sorriu, mas Ez não estava com disposição para sorrir. Antes que o
homem tivesse tempo de abrir a boca, investiu com esta pergunta contra ele:
— O que aconteceu com Dick Silligan e a moça? Conseguiram salvá-los?
O rosto do homem assumiu uma expressão séria. Balançou a cabeça.
— Não; não pudemos esperar mais. Tivemos de atacar, e não tínhamos a menor
idéia de onde os dois estavam.
Ez baixou a cabeça. Depois de algum tempo prosseguiu:
— Não adianta recriminá-lo por isso. Suponho que o senhor seja Warren Teller.
O homem fez um gesto afirmativo.
— E agora? — perguntou Ez num tom de voz que revelava já não estar interessado
em mais nada.
— Chegamos ao destino. Encontramo-nos junto à Urânia, um cruzador pesado da
frota terrana. Peço-lhe que suba a bordo. Será levado para casa pelo caminho mais rápido.
A propósito: seus dois companheiros também estão em segurança, e conseguimos prender
o saltador.
***
***
A Urânia não tinha mais nada a fazer em Ghama. O comandante recebera instruções
para recolher a bordo as pessoas resgatadas, bem como o Tenente Larry Randall e o
Capitão Ron Landry, e por fim os cinco monstros lidioques fabricados na Terra, a fim de
que não restasse nenhum vestígio da missão secreta que haviam desempenhado em
Ghama. Depois disso deveria retirar-se o mais depressa possível, para que os nativos não
tivessem oportunidade de refletir sobre as atividades misteriosas desenvolvidas em seu
mundo aquático.
No entanto, a decolagem da Urânia foi retardada.
Um pequeno submarino dos nativos emergiu e, logo que avistou a nave que pairava
pouco acima da superfície do mar, tomou a rota da Urânia. Assim a decolagem da nave
foi adiada.
O que seria que os nativos queriam a bordo?
O pequeno submarino encostou junto à Urânia.
Quem primeiro apareceu no convés liso e arredondado foi o Tenente Dick Silligan,
ex-tripulante do cargueiro Carolina. Parecia um tanto cansado e sua roupa estava bem
maltratada, mas de resto achava-se em perfeitas condições e bem-disposto.
Depois de Silligan surgiu a moça sobre a qual tanto se falara nas últimas horas:
Dynah Langmuir. Também dava a impressão de não ter levado uma vida muito
confortável nos últimos tempos. Assim que foi levada para bordo, chorou de alegria e
cansaço.
O ghamês, que pilotara o submarino, não quis subir a bordo da Urânia; preferiu
continuar no submarino e sair à procura de seus conterrâneos. Os lidioques de imitação já
se encontravam nos compartimentos de carga da nave, motivo por que não poderia nutrir
suspeitas quanto à destruição da cidade de Guluk e quanto ao papel que os terranos
haviam desempenhado na mesma.
A Urânia decolou depois de certificar-se, por meio de uma troca de mensagens com
a ilha Killanak, onde o sucessor de Larry Randall já entrara no exercício de suas funções,
de que por lá estava tudo em ordem.
A base dos saltadores mantinha uma atitude de tranqüila expectativa. Não precisaria
aguardar muito para descobrir o que havia acontecido.
***
Naquele dia, Larry Randall viu pela primeira vez o Coronel Nike Quinto, e por ele
sentiu a mesma antipatia que Ron Landry lhe dedicara no início. Mas Ron já o preparara
para essa impressão. Por isso manteve-se em atitude de expectativa e procurou descobrir
de que forma se manifestaria a “genialidade” de Quinto.
De início Nike não deu sinais da mesma. Suava. Seu rosto vermelho formava um
contraste pouco agradável com os cabelos ralos.
— Que coisa horrível são estas instalações de condicionamento de ar! — exclamou
com a voz aguda. — São totalmente insuficientes numa temperatura como a atual. Um
dia ainda me matarão. Minha pressão sangüínea não pára de subir.
Parecia procurar alguma coisa na escrivaninha; talvez fosse apenas um gesto de
nervosismo. De qualquer maneira, depois de uma ligeira pausa disse:
— E o senhor ainda me fez ficar mais doente!
— Permite que pergunte de que forma, sir? — indagou Ron Landry com a maior
tranqüilidade.
— Naturalmente; não posso deixar de responder. Os cinco peixes gigantes, que o
senhor encomendou, devoraram boa parte do meu orçamento. Sabe lá quanto custam
cinco lidioques dirigíveis? Dez milhões de solares, se são produzidos segundo as rotinas
normais, e o dobro dessa cifra se a gente tem tanta pressa quanto o senhor.
Ron reprimiu o riso. Sabia de fonte segura que o orçamento da Divisão III era
ilimitado. Nem sequer tomaria conhecimento de um prejuízo de vinte milhões de solares.
— Foi uma medida imprescindível, sir — observou Ron. — Sem isso não
poderíamos ter impedido as maquinações dos saltadores, sem chamar a atenção dos
nativos.
— Hum... — fez Quinto com um sorriso matreiro. — Isso não deixa de ser verdade.
Mas por que haveremos de permanecer em boa paz com os nativos? Por que fazemos
tanta questão de que nos considerem amigos? O senhor sabe dizer?
— Não senhor. O senhor conseguiu evitar que eu soubesse disso.
Nike Quinto acenou fortemente com a cabeça.
— Ora essa! Se eu não conseguisse manter um segredo como este, não seria capaz
de comandá-los. Bem, trata-se de certa matéria-prima.
Pronunciou estas palavras com tamanha ênfase que pareceu estar revelando todo o
segredo.
— É mesmo? — foi esta a única resposta de Ron.
— É mesmo? — disse Nike Quinto, imitando Ron. — Até parece que isso não
representa nada para o senhor.
Ron balançou a cabeça.
— Pois eu lhe digo. Conhece o estranho tipo de vidro usado pelos ghameses? É
totalmente transparente. Tem uma permeabilidade de cem por cento. Não produz a menor
dispersão na faixa da luz visível. Apresenta um ângulo incrivelmente aberto para a
reflexão total. Em poucas palavras: é a matéria-prima ideal para um objeto invisível.
Além disso, apresenta excelentes qualidades óticas em outras freqüências. É o meio ideal
para o laser infravermelho. Etc, etc...
Ron Landry confessou que já começava a compreender.
— Não conhecíamos a matéria-prima — prosseguiu Nike Quinto. — Conseguimos
amostras do produto acabado, mas nossos cientistas não descobriram como o mesmo é
fabricado. Um processo totalmente desconhecido à nossa tecnologia deve ser empregado
na fabricação. Pensamos que poderíamos conseguir mais se obtivéssemos uma amostra
da matéria-prima e se nos tornássemos amigos dos ghameses, a fim de que um dia eles
nos revelassem o segredo. Precisamos do material. O laser infravermelho pode ser
transformado numa arma portátil tão eficiente que a Galáxia nunca viu igual. Além disso,
os saltadores estavam interessados no mesmo negócio, e, com isso, nossa situação
tornou-se ainda mais difícil. Acho que o senhor já compreende os motivos por que o
assunto teve de ser resolvido com tamanha discrição, não é?
Ron fez um gesto afirmativo.
— Sem dúvida, sir — respondeu. — Mas com isso compreendo ainda menos por
que o senhor achou que a despesa com a fabricação dos lidioques dirigíveis foi tão
pesada.
Nike Quinto parecia explodir.
— Por quê? — gritou. — Porque o problema já foi solucionado, e isso graças à
coragem e à criatividade de um jovem tenente, que a esta hora já é capitão. Ele soube
fazer a coisa certa na hora certa, e, além disso, soube escapar da cidade dos ghameses
graças à própria habilidade, sem que lançasse mão dos lidioques dirigíveis.
Ron estacou.
— Se não me engano, o senhor está aludindo a Dick Silligan.
— Isso mesmo. Estou falando em Dick Silligan. Esse jovem revelou-nos o segredo.
Esteve no lugar em que os ghameses fabricam o material maravilhoso e trouxe uma
amostra do produto semi-acabado.
Ron Landry manteve-se calado.
— A matéria-prima — prosseguiu Nike Quinto — que é algum silicato, é derretida
num forno. O material derretido é resfriado rapidamente por meio da água do mar à
temperatura normal. Provavelmente os ghameses não sabem mais que isso. Mas a
amostra trazida por Silligan permitiu-nos descobrir que o processo não serve apenas ao
resfriamento. A água do mar, continuamente renovada pelos ghameses por meio de uma
instalação bem concebida, contém um tipo de alga que produz certa reação química na
massa vitrificada. Se não fossem estas algas, o produto final seria um vidro igual a
qualquer outro, em nada melhor ao que antigamente costumava ser usado nas vidraças
das janelas. O segredo está nas algas. Dick Silligan trouxe um pedaço desse vidro. Ainda
apresentava vestígios das algas. Isso bastou para que nossos cientistas desvendassem o
segredo. Já estamos em condições de fabricar o vidro dos ghameses.
Recostou-se. Estava muito satisfeito; até parecia que tudo aquilo devia ser creditado
a ele, em pessoa.
Ron Landry riu.
— Quer dizer que agora podemos tratar os ghameses como quisermos, não é? —
perguntou.
O corpo de Nike Quinto precipitou-se para a frente.
— Não se atreva! — berrou sua voz aguda em tom furioso. — Os habitantes de
Ghama são nossos amigos, e como tais serão tratados.
Subitamente levantou-se de um golpe.
— Caramba! Vá embora. O senhor deixa meu coração em pandarecos com essa falta
de compreensão das coisas. O que será da minha pressão? Apresente-se amanhã ao setor
de pessoal, entendido? Há alguma coisa para os senhores por lá. Se os compreendi bem,
trata-se de uma degradação ou de uma promoção. E agora dêem o fora!
Ron e Larry levantaram-se, fizeram continência e saíram. Já no corredor, a uma
distância segura de Nike Quinto, pararam e sorriram.
— Que tal uma bebida, capitão? — perguntou Ron Landry.
Larry Randall soltou um suspiro.
— Não sei se minha pressão sangüínea suportará, major.
***
***
**
*
A Divisão III, chefiada por Nike Quinto, agiu de modo
eficaz. E o que é mais importante: não deixou pistas...
O próximo volume da série, intitulado O Monstro de
Plasma, liga-se aos acontecimentos relatados no volume 100.
Os habitantes do sistema Azul vão mostrar um novo tipo de
arma.