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O fim do

desenxergar
e outras 29 histórias
de mudança no Maranhão
© Xavier Bartaburu e Fellipe Neiva, 2018

Coordenação de edição
Ednilson Machado (OCCAM)

Produção geral
Agência Terruá

Edição
Tito Montenegro (Arquipélago Editorial)

Revisão
Luciana Thomé

Capa, projeto gráfico e diagramação


Paola Manica e equipe (Brand&Book)

O fim do
Foto da capa
Fellipe Neiva

desenxergar
Impressão
Mais Soluções Gráficas

e outras 29 histórias
de mudança no Maranhão

Xavier Bartaburu | Texto


Fellipe Neiva | Fotos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

B283f Bartaburu, Xavier


O fim do desenxergar: e outras 29 histórias de mudança no
Maranhão / Xavier Bartaburu e Fellipe Neiva. — São Luís: Secretaria
de Comunicação e Assuntos Políticos, 2018.
288 p. ; 16 x 23 cm.
ISBN 978-85-5450-016-0
1. Plano de desenvolvimento – Maranhão – Brasil. 2. IDH
– Maranhão – Brasil. 3. Plano Mais IDH – Governo do Estado do
Maranhão – Brasil. 4. Políticas públicas – Maranhão – Brasil. I. Neiva,
Fellipe. II. Título.
CDU 338.2(812.1) Secretaria de Comunicação e Assuntos Políticos (SECAP)
316.344.23(812.1)
Governo do Maranhão
(Catalogação na fonte : Paula Pêgas de Lima — CRB 10/1229)
Santana do Maranhão 129

Sumário Aldeias Altas 135

Araioses 145

LESTE
Milagres do Maranhão 153

São João do Soter 163

Belágua 171

Água Doce do Maranhão 177

Afonso Cunha 183

Primeira Cruz 1889

São Francisco do Maranhão 197


Apresentação 9 Santo Amaro do Maranhão 205
Ações do Mais IDH 19

Lagoa Grande do Maranhão 37

Marajá do Sena 45
CENTRO

Jenipapo dos Vieiras 53

OESTE
São João do Caru 215
Itaipava do Grajaú 61
Amapá do Maranhão 223
Fernando Falcão 71
Centro Novo do Maranhão 233
São Roberto 79
Pedro do Rosário 239
Santa Filomena do Maranhão 87
Cajari 247
Arame 93
Serrano do Maranhão 255
Brejo de Areia 101
Governador Newton Bello 263
Conceição do Lago-Açu 107

Satubinha 113

São Raimundo do Doca Bezerra 121


Apresentação
O nome é Plano Mais IDH, mas bem que poderia se chamar
Mais Esperança. Ele nasce de uma realidade dura de ma-
ranhenses até então esquecidos à própria sorte desde que
se entendem por gente. Dos 100 municípios com mais baixo
Índice de Desenvolvimento Humano Municipal no Brasil, 30
estão no Maranhão, de acordo com o censo de 2010 do IBGE.
Um quadro secular, profundamente agravado nas últimas
décadas, mas que está mudando.

Muitas dessas cidades apareceram nas estatísticas há pouco


tempo, mas a vida miserável de quem sempre morou por
lá é história antiga. É o caso de Fernando Falcão, que tem
o pior IDH no estado. Emancipado em 1997, tem uma área
quatro vezes maior que a cidade de São Paulo e é quase do
tamanho de todo o Distrito Federal. Mas tem menos de 10
mil habitantes, mais de 70% deles vivendo abaixo da linha
da pobreza, segundo o último levantamento oficial. Se fosse
um país, estaria entre os 15 mais pobres do mundo – abaixo
do Sudão, de Ruanda e do Zimbábue.

Há ainda um agravante: grande parte da população do


Maranhão se espalha pelos povoados, pequenas comunida-
des de poucas famílias cujos antepassados, em algum mo-
mento da vida, por lá se fixaram em busca de um lugar para
chamar de seu e – quem sabe, construir uma história que
não seja só de miséria. Um desejo legítimo, mas que torna
ainda mais desafiador fazer chegar educação, saúde e, acima
de tudo, oportunidade de ter trabalho e renda.

Um Maranhão esquecido por décadas, mas uma história que


hoje quer ser esquecida. Superada. Esse é o desafio do Mais
IDH. Para além do Índice de Desenvolvimento Humano, esta-
mos falando de Dignidade Humana.

O Mais IDH não é uma bandeira de governo fincada aqui ou


acolá. Não é uma marca espalhada pelas 30 cidades mais
carentes do Maranhão. Ele é um guarda-chuva, um tanto
quanto invisível, que orienta três eixos de políticas públicas
– na saúde, na educação e na geração de emprego e renda –
e se complementa com outros programas de infraestrutura.

Cada eixo cumpre seu papel isoladamente e também con-


tribui para o conjunto. Mais que colher índices melhores no
próximo censo, a ideia é mudar agora a vida de quem mais
precisa e sempre foi esquecido.

Reverter o ciclo vicioso da desigualdade econômica e social


não é nada fácil. O que é pobre fica ainda pobre. Ou mise-
rável. Para quem luta para ter o de comer, como pensar na
saúde ou ainda se a água é boa ou não para beber? Ou então
em garantir que o filho vá à escola? A missão do Plano Mais
IDH, que há quase quatro anos vem mudando uma realidade
de esquecimentos e esquecidos, é construir um novo ciclo,
mas desta vez virtuoso. Os primeiros frutos começam a apa-
recer e estão neste livro.
Apresentação 15
A viagem
O jornalista Xavier Bartaburu e o repórter fotográfico Fellipe
Neiva percorreram os 30 municípios atendidos pelo Mais IDH
atrás de histórias de vida. Foram mais de dois meses, entre
fevereiro e abril de 2018, viajando por três roteiros: indo do
extremo Leste, na divisa com o Piauí, aos rincões do Oeste, já
nas franjas da divisa com o Pará. Uma viagem de mais de 6
mil quilômetros, centenas de entrevistas e milhares de fotos.
Depararam-se com muitas histórias sofridas, no passado e
no presente, mas também com depoimentos de esperan-
ça e, sobretudo, de superação. De quem está vendo a vida
melhorar.

Depois de mais de quatro séculos de abandono e esqueci-


mento, é apenas o início de uma mudança. As 30 crônicas
que agora você tem em mãos são um retrato do Maranhão
que queremos.

Boa leitura!
Ações do
Mais IDH
O Mais IDH é um conjunto de 32 programas de governo,
alguns deles exclusivos para os 30 municípios de menor IDH
do estado. Outros projetos – como a construção de mora-
dia, o asfaltamento de ruas e estradas e a implantação de
saneamento básico – alcançam todo o estado e, por tabela,
também contribuem para a melhoria da qualidade de vida
nas cidades mais carentes. Conheça os principais programas:
Saúde

Força Estadual de Saúde

A principal ação para dar um atendimento de saúde mais


digno aos cidadãos dos 30 municípios mais carentes foi a
criação da Força Estadual de Saúde. São mais de 170 pro-
fissionais, entre médicos, enfermeiros, psicólogos e fisiote-
rapeutas, contratados por concurso para morar na sede dos
municípios. Eles reforçam o atendimento nos postos munici-
pais de saúde em casos de urgência, mas sua maior missão é
percorrer os povoados, indo de casa em casa, às vezes aten-
dendo quem mal conseguia se levantar da rede. Ou pesso-
as que não viam um médico há mais de uma década – não
porque tivessem uma saúde de ferro, mas pela simples falta
de atendimento em certas áreas do interior maranhense. A
equipe da Força faz o chamado atendimento médico primá-
rio e a parametrização de grupos de risco. Cinco são seus
focos de ação: bebês de até um ano de idade, gestantes de
risco, pessoas com hipertensão, pacientes diabéticos e por-
tadores de hanseníase.

Outras ações

Os municípios do Mais IDH também foram prioritários na


distribuição de ambulâncias e de kits de higiene bucal. Era
comum, nos povoados mais distantes, que uma escova de
dentes fosse dividida entre até cinco crianças.

Além disso, passaram pelos municípios os mutirões de saúde


e cidadania, a Carreta da Mulher (montada para a realiza-
ção de exames médicos e enfrentamento à violência contra
a mulher) e os consultórios odontológicos sobre rodas, os
Odontomóveis.
Educação

Escola Digna

Um retrato típico no interior do Maranhão: escolas de taipa e


sem banheiro. Era comum que crianças com idades variadas
estudassem juntas – aquelas que ainda estão aprendendo a
ler e a escrever com outras que já deveriam avançar mais na
matemática. Bancos improvisados faziam as vezes de carteiras
escolares. Quase sempre, os cadernos eram apoiados sobre as
próprias pernas e todos tinham de se esforçar para enxergar
uma lousa pequena e mal iluminada. Essa era uma rotina e
não uma exceção em muitas escolas do Maranhão. O programa
Escola Digna vem mudando essa realidade, que ainda persiste.
É uma batalha difícil, já que a cena acima se repete às cente-
nas em cidades e povoados. Um dos primeiros compromissos
de governo, o programa Escola Digna começou a sair do papel
ainda em 2015. De lá para cá já foram construídas ou reforma-
das cerca de 750 escolas. Muitas delas, aquelas de taipa, foram
ao chão e deram lugar a classes montadas com carteiras, ca-
deiras, lousa grande e ventilação adequada. Algumas antigas
ainda estão em pé – ao lado das novas de parede de tijolo e
pintadas de branco e azul – e hoje não passam de uma lem-
brança de um passado que convidava à evasão escolar.

Ônibus escolares

Evasão que tinha ainda outras razões de ser. Não bastassem


a precariedade das salas de aula e a eventual falta de me-
renda, pesava também a distância. Para chegar à escola era
preciso, em muitos casos, percorrer quilômetros a pé. Ou de
bicicleta. Entregues à sorte do dia, pela chuva ou o sol. Os
municípios mais pobres do estado agora contam com ônibus
para o transporte das crianças – aqueles amarelos e com
uma faixa preta e a palavra “escolar” estampadas na carro- A começar pelo próprio nome: um dos desafios é mostrar –
ceria. São 30 ônibus que rodam hoje por asfalto, estradas de e convencer – que todos podem, sim, deixar a escuridão das
terra e areais, levando e trazendo os alunos, além de uma letras para trás. É preciso instigar a força de vontade e a auto-
lancha – sim, há regiões em que o jeito mais rápido e prático estima daqueles que pensavam que lousa, lápis e caderno não
é ir pelo rio. eram feitos para eles. Isso sem falar em uma dificuldade extra:
manter as turmas motivadas ao longo do curso, uma vez que
Bolsa Escola não é pouca coisa trabalhar o dia todo na roça e, à noite, ainda
ter pique para a sala de aula.
Outra iniciativa que alcança quase 1,2 milhão de estudan-
tes no estado – com presença assegurada nas cidades do As duas ofensivas de alfabetização reúnem 2.425 professores
Mais IDH – é o pagamento do Bolsa Escola. No início de cada e quase 30 mil alunos nas 30 cidades do Mais IDH, entre for-
ano, famílias cadastradas recebem o benefício para ajudar mandos e já formados. Salas de aula reformadas e construí-
na compra do material escolar em estabelecimentos comer- das pelo Escola Digna também abrigam as sessões noturnas
ciais cadastrados pelo governo em todo o Maranhão. Nos 30 do Sim, Eu Posso!, mas há tanta gente para aprender que
municípios mais carentes, são 140 estabelecimentos creden- muitas turmas descobrem o beabá em salas adaptadas nas
ciados e quase 100 mil beneficiados. casas dos próprios professores recrutados pelos programas.

Há ainda a distribuição de uniformes escolares – ou far- E foi só diante das lousas e dos cadernos que muitos mara-
damento, como se costuma dizer no Maranhão e em outras nhenses descobriram um obstáculo a mais para aprender:
partes do Brasil. Só nos 30 municípios do programa foram a tal vista cansada ou outras enfermidades oftalmológicas.
distribuídos mais de 50 mil uniformes, que são confecciona- Daí nasceu uma nova investida do governo, os mutirões dos
dos por empresas maranhenses, gerando emprego e renda olhos, que percorrem os municípios fazendo exames e for-
em outros cantos do estado. necendo óculos dos mais variados tipos e cores. É o combate
ao analfabetismo aliado ao fim do desenxergar.
Sim, Eu Posso!
Iema
Onde normalmente falta tudo, também é comum que sobre
o analfabetismo. Aprender a ler e a escrever era um artigo Outra ação que aproxima cidadãos e cidadania são os cursos
de luxo no passado, o que levou os municípios mais caren- profissionalizantes oferecidos pelo Instituto Estadual de
tes do Maranhão a colecionar os mais elevados índices de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (Iema) em par-
analfabetismo do Brasil. Para quem hoje está na faixa dos ceria com setores produtivos locais e regionais. São cerca de
40 aos 80 anos, a única maneira de frequentar a escola era 100 cursos nas áreas de agricultura, horticultura, culinária,
pagando os professores que os fazendeiros contratavam nas língua inglesa, corte e costura, eletrificação urbana, artesa-
regiões. Como era um luxo, a escrita quase sempre ficava em nato e panificação, entre outros.
segundo plano. O programa Sim, Eu Posso!, ao lado do fede-
ral Brasil Alfabetizado, está desafiando as estatísticas.
Renda

A inércia é uma das leis de Newton, da Física, mas cai como


uma luva também para a economia. A começar pela eco-
nomia doméstica. Uma engrenagem quase invisível que,
quando parada, compromete setores maiores. As ações em
saúde e educação são fundamentais, mas é preciso ter polí-
ticas específicas para geração de renda.

O que se busca com o Mais IDH é fazer as engrenagens se


mexerem. Aos poucos, das menores para as maiores. Uma
galinha que vira horta. Um salão de beleza onde antes só
se vendia gasolina. Rendas – aquelas que saem de mãos de
rendeiras talentosas – virando renda, ganha-pão. Pães que
se multiplicam, alimentam e geram empregos. Hortaliças
e frutas que saem de quintais antes praticamente aban-
donados para as feiras públicas ou merendas escolares.
Ou ainda para as refeições de hospitais. Redes de buriti
e outros artesanatos que caem no gosto de turistas mais
endinheirados.

Sistecs – Sistemas Integrados de Tecnologias Sociais

Para vencer a inércia, basta um empurrãozinho. É isso que


faz a Secretaria da Agricultura Familiar (SAF) por meio dos
Sistemas Integrados de Tecnologias Sociais. Não há mis-
tério: os técnicos percorrem cidades e povoados, cadas-
trando e orientando famílias naquilo que sabem fazer de
melhor. Para uns, o apoio financeiro e o acompanhamen-
to transformam uma plantação de subsistência em uma
pequena produção rural com excedente para comerciali-
zação. Para outros, investimentos em animais – pode ser
peixe, galinha, porco – que vão se multiplicar e também
vão ao mercado. Há quem prefira se dedicar a um salão
de beleza, uma padaria ou à produção de artesanato. Não
importa o sonho e o destino, o que vale é a oportunidade
de trabalhar e mudar.

Feiras da Agricultura Familiar e Programa


de Aquisição de Alimentos

Quando milhares de pequenas engrenagens domésticas saem


da inércia, é possível movimentar outras um pouco maiores.
É aí que entram dois programas: as Feiras da Agricultura
Familiar e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O
primeiro organiza e fornece estrutura para que os agriculto-
res – cerca de 300 nas 30 cidades – tenham onde vender os
mais diversos produtos. E vai além: a produção passou a ter
um selo de qualidade e de identificação de origem. Por meio
do segundo programa, o governo compra os excedentes de
produção – novamente com selo de origem – de quase 1.200
agricultores para abastecer 65 entidades, entre escolas, cre-
ches e hospitais.

Sementes e equipamentos

Há ainda a distribuição de sementes – mais de 700 tonela-


das nas cidades do Mais IDH – e a entrega de uma variada
gama de equipamentos agrícolas que dão suporte ao pe-
queno agricultor, como tratores, patrulhas agrícolas e kits de
irrigação.
Infraestrutura

Em complemento aos três eixos centrais do Mais IDH, exis-


tem as ações de infraestrutura, que também ajudam a me-
lhorar a qualidade de vida – e saúde – da população.

Minha Casa, Meu Maranhão

Assim como as escolas, muitas casas nos povoados e em


áreas urbanas das cidades do Mais IDH também são de taipa.
Até o momento, foram entregues 400 unidades habitacionais
em quatro municípios e outras 1.100 estão em fase de cons-
trução em outras 11 localidades.

Mutirão Rua Digna

Em Cajari e Primeira Cruz, duas das 30 cidades do Mais IDH,


outra iniciativa que gera renda e benefício direto à popula-
ção local saiu do papel. Em parceria com organizações da so-
ciedade civil, obras de melhorias urbanas são tocadas pelos
próprios moradores. Eles são orientados na produção e ins-
talação de blocos, transformando vias de terras e de areia
– quase escaldante, como era em Primeira Cruz – em ruas
pavimentadas. E outras 21 cidades também estão em fase de
execução dos projetos.

Saneamento básico

Ninguém discorda que água é sinônimo de saúde. É por


isso que o governo investe suas forças em diversos pro-
gramas de saneamento. O Água Para Todos tem como ob-
jetivo a implantação de poços artesianos, reservatórios e
sistemas de ligação, levando água potável a cidades e po-
voados. O Primeira Água, por sua vez, envolve a construção
de cisternas para o abastecimento de escolas, enquanto o
Segunda Água promove o armazenamento de água para a
produção agrícola.

Mais Asfalto

Só quem mora ou já viveu ao lado de uma estrada de chão


batido sabe o quanto a poeira, na seca, e a lama, na tem-
porada de chuvas, complicam simples tarefas do dia a dia,
como sair para o trabalho ou ir à escola. É praticamente im-
possível levar o asfalto aos povoados e à porta das casas de
todos os cidadãos no interior do Maranhão, um estado de
grande extensão territorial, mas, aos poucos, ele vai chegan-
do. Já são quase 200 quilômetros asfaltados em rodovias e
vias urbanas do estado.
CENTRO
Lagoa
Grande do
IDHM: 0,502

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

4
POPULAÇÃO: 10.517 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 45,5% do total

CENTRO
RENDA PER CAPITA: R$ 158,30

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 60,75%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 45,5%

MORTALIDADE INFANTIL: 33,1 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Cozinhas Comunitárias; Escola Digna;
Feiras da Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão;
Fortalecimento do Comércio Local; Juventude com Ciência; Kits de Irrigação;
Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais Saneamento; Mais
Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Programa
Avança; Programa Brasil Alfabetizado; Programa de Aquisição de Alimentos;
Programa Nacional de Alimentação Escolar; Regularização Fundiária; Sim, Eu
Posso!; Sistecs; Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água; Quintais
Produtivos; Uniformes Escolares.
A galinha que
virou horta

À direita, milho, macaxeira, fava e feijão. À esquerda, cebola,


pepino, pimenta-de-cheiro e cuxá – e as folhas de inhame
rastejando ao pé da cerca. No centro, rente a uma fila de ma-
moeiros, crescem na sombra o coentro, a couve e a ceboli-
nha. As frutas atrás: tem pé de goiaba, coco, acerola, banana
e limão. E no fundo o maxixe e o quiabo, bem onde acaba a
propriedade de Leude e Biu e começam os pastos e morros
do Vale do Mearim.

Um ano e meio atrás, não tinha nada. Quer dizer, tinha: uma
galinha. E alguns ovos. Que Leude vendeu por exatos 30 reais

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para comprar um pacote de sementes de coentro. Leude era
da roça; Biu, não. Biu era pedreiro, sempre foi: ganhava diária
para fazer tudo quanto era serviço pesado em Lagoa Grande
do Maranhão. Até que se encheu. Da cidade e do sufoco. Faz
dois anos, Leudiane Loiola da Silva e Francisco Edimilson de

Lagoa Grande do Maranhão


Lima Costa (ou Biu) se mudaram com os dois filhos para o
Centro dos Fortunatos, distante três quilômetros de estrada
de chão do centro da cidade.

– Vou aprender a fazer lavoura e seja o que Deus quiser –


decidiu Biu.

Acharam para comprar um terreninho no fundo do povoado


– 150 metros de comprido por 50 metros de largura –, onde
tudo era mato e lixo. Passaram meses limpando, dia e noite,
e ainda arranjaram tempo para ir catar castanha de caju nos
campos e vender na cidade, para ter o de comer. Foi quase
meio ano assim, até que veio o coentro – o da galinha –, que
cresceu bonito no quintal atrás da casa e, em pouco tempo,
já tinha comprador. Biu e Leude não precisavam mais pegar
castanha no mato.
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Lagoa Grande do Maranhão
Francisco Edimilson de Lima Costa, o Biu
– Era eu, a coragem, a vontade de Deus e aquela mulherzinha Falta alguma coisa? Sim, a casa. Uma casa nova, bonita. Mas
ali – diz Biu, apontando para Leude, sentada debaixo de uma logo nem essa vai faltar mais: com o dinheiro da horta, Biu
bananeira. já levantou as paredes daquela que será a mais nova mora-
dia do Centro dos Fortunatos. É casa de tijolo, projetada a
Daí em diante, só melhorou. No começo de 2017, Leude e
quatro mãos com Leude, feita para substituir o casebre de
Biu entraram no mapa do programa estadual de agricultura
taipa onde vivem desde que compraram o terreno.
familiar – que mata a fome e gera renda. Com o incentivo
financeiro, deu para comprar o sombrite para os coentros, – Quero botar alpendre nela todinha em volta – já vai so-
a mangueira para a água e ainda algumas galinhas. Teve nhando Biu.
também trator com roçadeira, doado pelo governo ao muni-
– E a cor da casa, já sabe qual vai ser?
cípio e emprestado aos lavradores sempre que necessário, e
ainda um kit de irrigação, que Biu ganhou na mesma época – Ainda não. Aí é com ela – e Biu mais uma vez aponta
em que os maços de coentro começavam a se multiplicar em para Leude, agora com o canto do olho. Leude ri, mas não
seu quintal. responde.
De maço em maço, o coentro foi dando lucro. Era Biu na
enxada e Leude na moto: todo dia, quando ia levar os filhos

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9

na escola, ela aproveitava a viagem e deixava o coentro


nas vendas de Lagoa Grande – maços e crianças na garupa.
Com esse dinheiro, já deu para comprar sementes outras:
de pimenta, mamão, maxixe, macaxeira. E tudo também
cresceu bonito e foi parar nas mesas de escolas, creches e
O fim do desenxergar

Lagoa Grande do Maranhão


hospitais. Resultado: hoje Biu e Leude chegam a tirar até
três mil reais por mês.

– Vim pra cá pra sustentar a família e hoje tenho emprego


todo dia – resume Biu.

E não é que até a alimentação da família melhorou? Numa


região onde a refeição é quase sempre arroz, feijão, farofa
e carne, os dois botam na mesa das crianças tudo quanto é
fruta e verdura. Frescas, direto do quintal.

– Meu menino não comia couve – diz Leude. – Hoje ele só


come a salada se tiver couve.

E o que é melhor: sem agrotóxico. Nada que venha da horta


de Leude e Biu tem veneno algum.
Marajá
do Sena
IDHM: 0,452

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

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POPULAÇÃO: 8.051 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 85,6% do total

CENTRO
RENDA PER CAPITA: R$ 96,25

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 78,2%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 50,9%

MORTALIDADE INFANTIL: 25 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Escola Digna; Feiras da
Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com
Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/ Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais
Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH;
Mutirão Rua Digna; Odontomóveis; Programa Avança; Programa de Aquisição
de Alimentos; Programa Nacional de Alimentação Escolar; Programa Primeira
Água; Programa Segunda Água; Regularização Fundiária; Sim, Eu Posso!; Sistecs;
Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.

Silvana Carvalho Sousa


Com quantas linhas
se tece um sonho?

E não é que a Silvana voltou a costurar? Desde que a velha


máquina se desmantelara, fazia mais de ano que os carre-
téis da casa andavam inoperantes, embobinados à espera
de agulhas novas que sabe-se lá quando viriam. Pois vieram:
bastou cair na conta o dinheiro do programa de apoio ao
pequeno empreendedor e lá foi a Silvana comprar o novo
instrumento de trabalho. Voltou de Paulo Ramos, cidade
próxima, com uma Singer novinha, e, em pouco tempo, o
tequeteque se fez ouvir novamente na Chapada do Cantinho.

Já tinha até encomenda: 25 camisas de homem, 25 vestidos

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de mulher e mais cinco trajes de princesa para vestir a qua-
drilha junina de um povoado vizinho. Nove dias trabalhando
sem parar, ela e a filha Susana, para dar conta do serviço.
Fotos dessa roupaiada ela diz que não tem, mas se apressa
em mostrar as mais recentes criações, por ocasião de um

Marajá do Sena
batizado: duas camisas com babados para os caçulas da fa-
mília, os gêmeos Samuel e Daniel, e um vestido de tule para
a sobrinha. Tem também um registro da filha trajando um
vestido lilás – perguntada se é obra sua, Silvana diz que esse
foi comprado. Porém emenda:

– Mas se trouxer o pano eu faço do mesmo jeito.

Marajá do Sena é um município que fica no meio de tudo:


entre a Mata dos Cocais e a Amazônia, entre o planalto e a
planície, entre a miséria do povo e a riqueza da terra, tida
como uma das mais férteis do Vale do Mearim. Tanto é que
Demar, marido de Silvana, quando aqui chegou faz mais de 30
anos, nem acreditou que podia haver algo tão verde, tão fe-
cundo e tão diferente do sertão de Bodocó, em Pernambuco,
de onde saíra fugido da seca.
16
Marajá do Sena
Valdemar da Silva,
Samuel Sousa, Daniel
Sousa e Silvana Sousa
acompanhados por uma
agente da Fesma
– O Maranhão é bom demais! Quando viemos pra cá ficamos a máquina de costura nova como ainda deu para montar
besta, a gente não sabia nem o que fazer! um galinheiro. Tem cinco por quatro metros de tamanho,
muro de tijolo e teto de palha de babaçu. Falta a tela e os
Pois fez o que devia: criou água onde não tinha, botou roça
pintos – Silvana quer pelo menos 50 ciscando ali. E já tem
de milho e mandioca e se meteu a percorrer o lamaçal das
planos para eles:
estradas de Marajá do Sena para vender a safra – só até
Paulo Ramos, a 70 quilômetros, eram quatro dias de viagem. – Com o dinheiro das galinhas, vou comprar tecido para
De quebra, Valdemar da Silva conheceu uma moça de nome fazer roupa de cama.
Silvana Sousa, 15 anos mais nova, e juntos subiram o cha-
Sim, porque o que a Silvana gosta mesmo de fazer é colcha.
padão para fincar a primeira casa do Cantinho, vivenda de
Cobertas coloridas, cheias de retalhos e detalhes, que ela
taipa que por década e meia abrigou a família das chuvara-
diz serem sua especialidade. E mostra, orgulhosa, as três
das que, se por um lado fazem vicejar a produção, por outro
que já fazem parte do patrimônio da família: uma costurada
deixam o município inacessível durante parte do ano.
quando a filha nasceu, outra quando deu à luz os gêmeos e
Mas a velha casa de taipa já está entregue às fissuras do a outra para a cama onde ela e Demar dormem. Essas, claro,
tempo: fez um ano agora que Demar e Silvana se mudaram ela não vende de jeito nenhum. Está só esperando os pintos
para uma casa de tijolo, levantada pelo próprio Demar. chegarem e crescerem para que do tequeteque nasçam os

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mais lindos mantos que a Chapada do Cantinho já viu. Talvez


– Fui criado no bagaço – justifica. – Quero dar uma casa pros
até todo o Marajá do Sena.
meus filhos. Aumentar mais um pedacinho de terra pros me-
ninos não sair no mundão, que tá muito complicado.

Susana, a mais velha, já saiu: foi para Brasília fazer faculda-


O fim do desenxergar

Marajá do Sena
de, paga com o dinheiro do milho e da farinha que Demar
vende por todo o Vale do Mearim – Pedreiras, Bacabal, Paulo
Ramos, Lago da Pedra – e da produção que sai lá da rocinha
da Silvana, comprada pelo governo para abastecer hospitais,
creches e escolas.

– Este ano botei macaxeira, inhame, mamão, melancia e vi-


nagreira. Falta a banana, que vou plantar na lua cheia – diz,
tomada por sábios mistérios.

Samuel e Daniel ainda não saíram porque são crianças,


mas já têm motivos de sobra para ficar por aqui. Além da
compra da produção agrícola garantida, logo a família vai
poder vender ovo e galinha. Pois, quem diria, o incentivo
que a Silvana recebeu do governo não só deu para comprar
Jenipapo
dos Vieiras
IDHM: 0,490

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

20
POPULAÇÃO: 15.440 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 83,7% do total

CENTRO
RENDA PER CAPITA: R$ 127,24

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 70,3%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 43,6%

MORTALIDADE INFANTIL: 26,4 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Escola Digna; Feiras da
Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com
Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/ Arca das Letras; Mais Extensão
Universitária; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão;
Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua Digna; Odontomóveis; Programa Avança;
Programa de Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de Alimentação
Escolar; Programa Primeira Água; Programa Segunda Água; Sim, Eu Posso!;
Sistecs; Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.
Hoje tem teatro

Thamara e Thamyris poderia ser nome de dupla sertaneja,


mas são duas enfermeiras da Força Estadual de Saúde do
Maranhão – com veia artística, contudo. Mal chegaram em
Jenipapo dos Vieiras, o desafio estava posto: como se co-
municar com os quase seis mil índios Guajajara que vivem
no município? Como reduzir a mortalidade infantil ensi-
nando sobre o risco de doenças e as consequências da má
alimentação a quem pouco entende e muito menos fala o
português? Thamara Azevedo e Thamyris Machado acha-
ram um jeito: teatro.

É dia de visita na aldeia de Cacimba Velha, uma das no-

22
venta da Terra Indígena Cana Brava. De um lado da sala, no
posto do saúde da comunidade, estão as duas enfermeiras.
No colo de Thamyris, uma boneca: neste momento o ser de
plástico é sua filha, protagonista de situações domésticas,
próprias da maternidade. Enquanto vai contando a his-
tória, arrisca umas palavras em língua Guajajara: tiehahi,

Jenipapo dos Vieiras


diarreia; uhu, vômito. Do outro lado as índias, munidas de
tipoia, e em cada uma pendurado um bebê. Exceto Maria
Onete Guajajara, cujo colo sustenta dois corpinhos: o de
Raiane e Eliane, quatro meses de vida e quatro pés pinta-
dos de jenipapo até as canelas – um jeito de protegê-las
contra doenças. Todos ali sabem que estão diante de duas
sobreviventes.

Certas tradições indígenas brasileiras alimentam um tabu


em relação ao nascimento de gêmeos: muitos índios acre-
ditam que crianças que nascem duplicadas carregam um
mau presságio, e que portanto devem ser condenadas à
morte tão logo vêm à luz. Embora polêmica, e cada vez
menos comum, ainda é uma crença que vez ou outra volta
a pesar, mesmo entre os Guajajara. Não por acaso, quando
Maria Onete Guajajara
com as gêmeas Raiane e Eliane
o marido de Maria Onete viu no ultrassom a notícia de lugar, quase sempre um ponto cego no mapa desprovido
que a quinta gestação de sua esposa traria à vida duas de água, luz, escola ou posto de saúde. E lá vão Thamara
meninas de uma vez, quis logo acabar com o suposto in- e Thamyris, diligentes, atrás da nova aldeia, tentando ga-
fortúnio: tomado de descontrole, pôs-se a chutar a barriga rantir que os bebês Guajajara se mantenham vivos, mesmo
da esposa com a intenção de provocar o aborto. Por obra privados das mais diversas necessidades.
da sorte, Raiane e Eliane escaparam da agressão – viveram
Cacimba Velha um dia já foi assim. Hoje a aldeia celebra a
para ver a luz, ainda que antes da hora. Nasceram prema-
sobrevivência de Raiane e Eliane, além das sete cisternas
turas, com 33 semanas, e já foram logo internadas. Raiane,
de 25 mil litros que algumas famílias acabaram de rece-
a menorzinha, tinha 29 centímetros de perímetro cerebral.
ber, e ainda uma cisterna com o dobro de capacidade hoje
– Se não fosse prematura, seria microcefalia – esclarece cravada nos fundos da Escola de Educação Indígena Anisio
Thamyris. Guajajara. Essa já tem serventia assegurada: sua água irá
regar a horta comunitária que em breve surgirá ao lado, de
O fato é que as duas estão aí, no colo da mãe, gordinhas
onde brotarão os alfaces, tomates, abóboras e pimentões
e bem, e até o pai, quem diria, acabou se tornando um
que alimentarão os cerca de 300 alunos da escola. Logo
homem zeloso e orgulhoso das caçulas geminadas.
mais também as gêmeas de Maria Onete estarão lá, estu-

26
25

As adversidades, contudo, não terminam aí. O desafio de dando e comendo uma boa salada, coisa rara por ali.
Raiane e Eliane agora será tratar de não engrossar as tene-
– Eles não têm o hábito de consumir folhosas – esclarece
brosas estatísticas que assombram as mais de cem aldeias
Thamyris.
Guajajara da região. Em Jenipapo dos Vieiras, um terço da po-
pulação é de indígenas, e é o estado precário em que vivem Daí a horta. Daí a água das cisternas. Daí o teatro. Tudo
O fim do desenxergar

Jenipapo dos Vieiras


que ajuda a puxar para baixo o IDH do munícipio. Cerca de converge para uma meta única: garantir que Raiane, Eliane
70% dos habitantes, por exemplo, estão abaixo da linha de e todos os novos Guajajara que virão depois, gêmeos ou
pobreza – e todos os índios estão incluídos nessa cifra. não, se lembrem das privações apenas como uma vaga
memória de infância, dessas que a gente nem se recorda
– Em 2017, todos os óbitos infantis do município foram em
se aconteceram de verdade.
terras indígenas – informa Thamyris. – Tivemos um surto
de leishmaniose visceral nas aldeias.

Cacimba Velha escapou das mortes, mas não do surto:

– Ano passado adoeceu quase a vila toda – conta o caci-


que, Sabino Guajajara.

E isso que a aldeia tem posto de saúde. E as que não têm?


Como se não bastasse, os Guajajara vivem fazendo brotar
aldeias novas mata adentro: uma família se desgarra de
uma comunidade já existente e vai fundar outra em outro
Itaipava
do Grajaú
IDHM: 0,518

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

28
POPULAÇÃO: 14.297 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 69,9% do total

CENTRO
RENDA PER CAPITA: R$ 136,77

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 64,2%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 45,9%

MORTALIDADE INFANTIL: 34,1 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Desenvolvimento da
Cadeira Produtiva do Artesanato e dos Trabalhos Manuais; Escola Digna; Feiras
da Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com
Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Saneamento;
Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Odontomóveis;
Programa Avança; Programa de Aquisição de Alimentos; Programa Nacional
de Alimentação Escolar; Programa Primeira Água; Programa Segunda Água;
Regularização Fundiária; Sim, Eu Posso!; Sistecs; Sistemas Simplificados de
Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.

Raimunda
dos Santos
Jatobá já sabe ler

“Negativo”, dizia o laudo. E foi alegria em dobro para o João:


não só estava curado da tuberculose como ainda pôde ler
com os próprios olhos a notícia da cura. Imagine o João
três meses antes, no primeiro dia de aula da turma da pro-
fessora Vanusa: os dois pulmões avariados, impossibilita-
do de trabalhar na roça por conta da doença – e por isso
morando de favor na casa das pessoas –, e ainda analfabe-
to de todo. Cinquenta anos de idade e nunca na vida tinha
frequentado escola. Agora o João lê laudos alvissareiros e
escreve o nome completo na lousa: João Paz Amorim de
Sousa. De quebra, outra alegria: mês passado, na mesma
semana em que saiu o resultado do exame, apareceu lá no

30
Jatobá uma irmã que não via há mais de 20 anos. Levou
para morar junto. João agora tem pulmão, tem escrita e
tem casa também. E olha que está na metade do curso:
faltam ainda quatro meses para a formatura. Há muito a se
aprender. Mas João acha é pouco:

Itaipava do Grajaú
– Tô ficando triste já.

E a Maria Sebastiana Sousa, colega de turma, que já está lendo


a Bíblia? Fiel da Assembleia de Deus, o que ela mais queria
era mergulhar nas Escrituras, poder decifrar cada palavra, do
Gênesis ao Apocalipse. Começou faz pouco mais de um mês e
já decodificou o Pentateuco inteiro, conforme atesta a tabeli-
nha da igreja que o pastor ensinou a preencher à medida em
que se avança a leitura. E ela tem pressa:

– Todo dia leio cinco capítulos. Já hoje vou começar o Livro


de Josué. Até julho, se Deus quiser, já li tudo.

João e Sebastiana são dois dos mais aplicados entre os


21 alunos matriculados na turma da professora Vanusa,
uma das sete instaladas no povoado de Jatobá, onde 118

Silvestre Pereira da Silva


Itaipava do Grajaú 32
pessoas, de segunda a quinta, tentam reduzir o histórico e solidariedade aliada ao empurrãozinho e apoio que vem
crônico analfabetismo em Itaipava do Grajaú. Segundo o de fora. Vanusa, professora faz mais de 20 anos da rede
censo de 2010, cerca de metade dos 15 mil habitantes do municipal, decidiu radicalizar: mudou-se para outra casa
município, acima de 25 anos, não sabe ler ou escrever. Ou e transformou em escola o velho endereço residencial.
não sabia, pois já está na hora de atualizar esse número Quebrou paredes, enfeitou as que sobraram, botou lâm-
aí: em 2017, 988 pessoas se formaram na primeira leva do padas – as aulas são à noite e muitos alunos, idosos, têm
programa Sim, Eu Posso!. Em 2018, já são 2.097 alunos dis- dificuldade para enxergar –, levantou uma estante cheia de
tribuídos nas salas de aula de 22 povoados. livros e ainda leva bolo de aniversário quando tem aluno
fazendo anos.
Jatobá está entre eles. Além de figurar na rota da alfabeti-
zação, o lugarejo também disse adeus à poeira da antiga – Tem gente aqui que nunca apagou velinha.
estrada de terra que passava por ali, aquela que na es-
Vanusa faz parte de uma numerosa tropa de elite da edu-
tação das chuvas fazia o pessoal subir no jumento ou na
cação básica maranhense, cujo pelotão em Itaipava do
canoa para ir até a cidade, a seis quilômetros da vila.
Grajaú é composto de 133 educadores, cada um com sua
– Aqui só andava carro de seis em seis meses, na seca. O turma, e mais 20 coordenadores. Todos moradores do pró-

34
povoado até parava para ver – lembra João. prio povoado ou bairro onde ensinam – é uma forma de
33

envolver a população local nesse colossal esforço de al-


Pois acabou a lama: em 2017, foram pavimentados os 70
fabetização e ainda aumentar um pouco a renda dos edu-
quilômetros que ligam o centro de Itaipava do Grajaú à
cadores: cada um recebe uma bolsa de 600 reais por mês
BR-226, a mesma que leva a Barra do Corda e a Imperatriz.
durante os oito meses de duração do curso.
A pista rasgou Jatobá e todo o mundo saiu ganhando, in-
O fim do desenxergar

Itaipava do Grajaú
clusive os tenazes alunos do Sim, Eu Posso!, que agora têm Por habitarem o mesmo bairro ou vila que seus alunos,
o asfalto para se locomover quando é chegada a hora da acontece demais de os educadores terem que alfabetizar
aula. Uns têm moto, outros bicicleta e há os que vão a pé, os próprios familiares. Simone da Silva, por exemplo, tem
por conta própria ou quando Vanusa, a professora, vai lá na turma de 15 alunos o marido, Wilas, e o pai, Silvestre. A
buscar os mais fujões. Não é porque os alunos do progra- mãe, Maria Firmina, caiu na sala de Jarleane, a outra filha
ma são gente crescida que, às vezes, não se dão ao luxo de alfabetizada da família (de um total de nove irmãos, sete
matar aula, feito criança. deles analfabetos). Esse analfabetismo generalizado se
deu porque, no Maranhão do passado, não havia escolas
– Muitos trabalham na roça o dia inteiro. Quando chega de
públicas nos interiores: se um trabalhador quisesse dar
noite, estão cansados – explica Vanusa da Rocha. – Mas eu
estudo aos filhos, tinha que abrir mão de parte de sua pro-
faço questão de que eles venham.
dução para pagar o professor contratado pelo fazendeiro
O curso de alfabetização quase sempre é na própria casa local para ensinar a prole. Foi assim com Silvestre: até o
dos educadores, sala de estar transformada em sala de primeiro ano, seu pai, avô de Simone, pagou os estudos.
aula, incluindo lousa e tevê (o conteúdo do Sim, Eu Posso! Depois, não pôde mais.
é em parte transmitido por meio de videoaulas). É a
Sobre os alunos-parentes, Simone jura que não mistura as
bolas. Mesmo dando aula na sala de casa, quando chegam
as sete da noite, ela vira a professora Simone. E ralha com
os alunos se preciso for. O mais bagunceiro? Silvestre.

– Ele é muito interativo. Passa a aula toda conversando,


contando história.

O pai se defende:

– Toda a vida eu fui assim, conversador.

36
35
O fim do desenxergar

Itaipava do Grajaú
Maria Sebastiana lendo a Bíblia
Fernando
Marcio Lima de Sousa

Falcão
IDHM: 0,443

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

38
POPULAÇÃO: 9.241 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 83,7% do total

CENTRO
RENDA PER CAPITA: R$ 106,99

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 72,7%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 49%

MORTALIDADE INFANTIL: 33,8 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em


Extensão Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Cozinhas Comunitárias;
Desenvolvimento da Cadeira Produtiva do Artesanato e dos Trabalhos
Manuais; Escola Digna; Feiras da Agricultura Familiar; Força Estadual de
Saúde do Maranhão; Juventude com Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no
Campo/Arca das Letras; Mais Extensão Universitária; Mais Saneamento; Mais
Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua Digna;
Programa Avança; Programa Brasil Alfabetizado; Programa de Aquisição
de Alimentos; Programa Nacional de Alimentação Escolar; Programa
Primeira Água; Regularização Fundiária ; Sistecs; Sistemas Simplificados de
Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.
O milagre da fornadas como agora os pães se amontoavam em seu relu-
zente novo local de exposição. Multiplicaram-se os pães e
multiplicação também os padeiros: se antes o número de trabalhadores
se limitava aos quatro membros da família Sousa – Marcio,
Antonilde e mais os dois filhos, Artemis e Azaías; daí o nome
da padaria –, agora já são seis os integrantes da equipe que
Se Fernando Falcão fosse um país, estaria entre os 15 mais faz o pão de cada dia no Leandro.
pobres do mundo. Abaixo do Sudão. De Ruanda. Do Zimbábue.
Não tem nem 10 mil habitantes e mais de 70% estão abaixo Ou melhor, os pães de cada dia: a variedade de produtos
da linha de pobreza, de acordo com o último censo, empur- inclui os pães de massa grossa, os de massa fina e ainda
rando o IDH do município para o doloroso último lugar do o tradicional bolo cacete, que apesar do nome é salgado,
Maranhão – e segundo pior do Brasil. Mas se depender do à base de polvilho. Alguém aí quer bolo? Tem de milho, de
Marcio e da Antonilde, o que não falta é fermento para fazer puba, de tapioca, de macaxeira e de chocolate, todos de res-
essa massa crescer bonita: lá no povoado de Leandro, dis- ponsabilidade da Antonilde.
tante 30 quilômetros do centro, a Panificadora Pai e Filhos já
– E a gente ainda faz pizza e pão de cachorro-quente por
está produzindo fornadas na casa dos três mil pães. Por dia.

40
encomenda – ela acrescenta.
39

Dois anos atrás, quando a família Sousa comprou a padaria,


eram três mil por semana. Antonilde, aliás, é sempre a primeira a chegar. Quatro da
matina ela já está lá, preparando o café que vai ajudar a acor-
Marcio, antes de ser dono, foi empregado: quando não estava
dar os padeiros. Marcio chega uma hora depois, para botar
cuidando da roça, aproveitava as horas vagas para ganhar
lenha e não deixar o fogo se apagar. O forno da Panificadora
um extra na padaria da vila. Aí o antigo patrão resolveu se
O fim do desenxergar

Fernando Falcão
Pais e Filhos tem que permanecer ardendo 24 horas por dia.
aposentar e perguntou se o Marcio não queria comprar o Se faltar madeira, é o Marcio mesmo que vai na mata pegar:
estabelecimento. Quis: foram 23 mil reais divididos em 24 uma vez por semana, sobe o chapadão de motosserra em
parcelas, todas já quitadas. punho e só volta quando tiver completado uma carrada de
Depois foi o pessoal da Secretaria de Agricultura Familiar lenha – algo como uma tonelada e meia, o bastante para
que apareceu em Leandro fazendo outra proposta ao novo encher a caçamba da caminhonete. A melhor madeira para o
panificador da região: aderir ao programa de incentivo à pro- forno? Segundo o Marcio, sucupira e catinga-de-porco.
dução local, juntando-se às outras 258 famílias no município Lá pelas seis e meia começa a chegar a freguesia: em pri-
beneficiadas pela iniciativa. Marcio ponderou: meiro lugar, os 11 vendedores responsáveis pela distribuição
– Se for pra galinha, não quero não. Mas se der pra investir dos pães na zona rural de Fernando Falcão e em outros dois
na padaria, aí eu quero. municípios vizinhos.

– Uma bondade aqui pra mim é que não tenho concorrente – se


E assim foi: com o dinheiro do benefício, Marcio comprou
deleita o Marcio.
uma vitrine nova e mais doze assadeiras. Operou-se o mi-
lagre da multiplicação. Não só aumentou o volume das
42
Fernando Falcão
Marcio com a mulher,
Antonilde, e o filho Azarias
Cada vendedor compra seis pacotes de pão por dois reais,
que serão vendidos pelos interiores a 1,30 cada. Fazendo-se
as contas, cada um fica com 70 centavos por pacote. Se vender
cem pacotes, já são 70 reais por dia. Ou seja: ganham os ven-
dedores, ganha a família, ganham os padeiros contratados e
ganha também a clientela, que agora tem pão fresco na porta
de casa, todo dia. Outro milagre: o da multiplicação da renda.

E o Marcio e a Antonilde, veja só, até já levantaram casa nova.


Faz três meses, se mudaram do antigo casebre de tijolo cru, à
esquerda da padaria, para um novo lar do outro lado, à direi-
ta, mais sólida, feita toda de tijolo assado. Do cru ao fogo, tal
como os pães. Ganhou tinta amarela na fachada, para com-
binar com a da padaria. E a casinha velha ainda deu lucro:
alugada, rende à família mais 300 reais por mês.

44
E já tem novidade à vista: em breve a clientela da Panificadora
43

Pais e Filhos pisará em piso novo, lustroso, revestido de ce-


râmica. Os pães da vitrine vão brilhar ainda mais. As placas
já chegaram: estão na varanda da casa nova, só esperando o
endereço definitivo. Coisa que não deve demorar.
O fim do desenxergar

Fernando Falcão
– Este mês ainda boto – promete o Marcio.

Alguém duvida?

Antonilde Rodrigues de Sousa


São
Roberto
IDHM: 0,516

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

46
POPULAÇÃO: 5.957 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 52,2% do total

CENTRO
RENDA PER CAPITA: R$ 153,65

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 63,7%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 45,5%

MORTALIDADE INFANTIL: 31,7 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Escola Digna; Feiras da
Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com
Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/ Arca das Letras; Mais Extensão
Universitária; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão;
Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua Digna; Programa Avança; Programa Brasil
Alfabetizado; Programa de Aquisição de Alimentos; Programa Nacional
de Alimentação Escolar; Sim, Eu Posso!; Sistecs; Sistemas Simplificados de
Abastecimento de Água; Quintais Produtivos; Uniformes Escolares.
As parideiras de – Eu tinha tido um bocado de filho, já fazia ideia de como
era – ela diz, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
São Roberto E isso que naquela época se partejava do modo mais cru
possível: em casa, na cama, cortando com tesoura o cordão
umbilical. Agora não: hoje as parteiras de São Roberto re-
Escalação completa do time de Dé: Maria Eduarda, Ana cebem luva e bisturi esterilizado. O povo lá da rua São
Paula, Ana Zilda, Ana Beatriz, Mateus, Matias, Maciel, Enedina, Pedro, onde mora a família toda de Dé, nem vai no hospi-
Regina, Gabriel e Paulo Vitor. Onze no total. Paulo Vitor é o tal: tá na hora de nascer, chama a dona Filomena. Foi assim
mais novinho: chegou faz dez meses, 18 anos depois da mais que ela fez chorar pela primeira vez quase todos os netos.
velha, Maria Eduarda, que também ganhou menino faz pouco Inclusive o Paulo Vitor.
mais de um ano. Pois é: mãe e filha, por alguns meses, esti-
– Quando viemos, ela já tinha parido – diz Glauciane Leite
veram grávidas ao mesmo tempo.
Lima, enfermeira da Força Estadual de Saúde, entidade que
– Quem ganhar primeiro cuida da outra – disse Dé na época. já fez mais de 23 mil atendimentos só em São Roberto.

Pois a primeira foi Maria Eduarda, com 17 anos de idade. A Taí um desafio da Força: manejar as parideiras da família

48
47

mãe pariu Paulo Vitor logo depois, aos 36. Tio e sobrinho Silva. Não que elas não se virem por conta própria, como
meio que vão aprender a falar juntos. sempre se viraram, mas é bom manter o olho aberto: Dé –
que na verdade se chama Artemisa – foi acompanhada bem
As Conceição Silva são família de parideiras: a mãe de Dé, a
de perto na gestação, já que fazia parte do grupo de risco,
dona Filomena, teve 14. Onze vingaram – outro time. E uma
pela idade. Todo mês tinha visita da equipe, que ainda apro-
vitória: no tempo de dona Filomena, não era tanto filho assim
O fim do desenxergar

São Roberto
veitava para distribuir vermífugo para a meninada. Por fim,
que restava vivo. Abortos mesmo foram dois, e um morreu de
deu tudo certo, e a moça nem bem pariu já estava de pé,
sarampo quando adolescente.
uma semana depois, cuidando dos filhos e da casa.
– O apelido da nossa família é “cajá” – revela a matriarca.
Desafio maior, aqui, é tratar de que não venha tanto menino
– E por que, dona Filomena? ao mundo.

– Porque cajá é fruta que só cai do pé quando tá madura. – Aumentou o número de adolescentes grávidas no municí-
Não perde, não. pio – comenta Glauciane.

Dona Filomena é parideira e parteira também: já trouxe ao Dona Filomena tenta explicar:
mundo quase 200 crianças. Começou assim, do nada, quando
– Hoje o pai e a mãe liberam muito as pixote – que, no caso,
faltou parteira bem na hora de uma das filhas dar à luz e
é sinônimo de “mocinha”.
Filomena foi lá socorrer. Parece que já sabia tudinho o que
tinha que fazer. O jeito é educar, e é por isso que a equipe da Força – comple-
mentada por iniciativas como a Carreta da Mulher e o Ônibus
São Roberto 50
Lilás – percorre o município dando palestras e oficinas nas
escolas sobre gravidez na adolescência, estimulando a liga-
dura das trompas de quem já teve muitos filhos e insistindo
na distribuição de preservativos. Insistindo, porque o povo
daqui não é lá muito chegado a usar.

– E ainda tem vergonha de pegar quando a gente dá – acres-


centa Glauciane.

Testes rápidos de DSTs também são parte da estratégia, e


desse mal São Roberto felizmente está livre. Já segurar a
multiplicação de são-robertenses é outra história. Ainda
mais quando pertencem à família dos Conceição Silva.

Veja Dé, que nem tem o marido por perto – de quando em


quando ele vai para Goiás buscar trabalho e lá fica uns seis
meses, um ano – e mesmo assim engravida toda vez que o

52
homem volta para casa.

– Na última vez que o marido veio visitar, nasceu o Paulo


Vitor – diz Glauciane.

Será assim na próxima visita? A enfermeira espera que não.

São Roberto
– Tem que ligar, né, Dé? – ela insiste, como há muito já vem
insistindo.

Mas Dé não quer, sabe-se lá por quê. Quando alguém toca


no assunto, desconversa. Dona Filomena já ligou e acha que
a filha tem que ligar também. Fez de tudo para convencer a
mulher, agora é com Deus.

– E se ela fizer mais um, dona Filomena?

– Aí fica doze, né? – responde a matriarca, resignada.

Maria Lima Alencar


Santa
Filomena do
Maranhão
IDHM: 0,525

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

54
POPULAÇÃO: 7.061 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 67,5% do total

CENTRO
RENDA PER CAPITA: R$ 140,76

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 66,2%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 42,7%

MORTALIDADE INFANTIL: 35 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão Rural;
Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Cozinhas Comunitárias; Escola Digna; Feiras
da Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com
Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais
Extensão Universitária; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu
Maranhão; Mutirão Mais IDH; Programa Avança; Odontomóveis; Programa de
Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de Alimentação Escolar; Sim, Eu
Posso!; Sistecs; Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água; Uniformes
Escolares.
Olhos de arame dois filhos para criar. Foi botar o arame e uma nova vida flo-
resceu na escuridão. Melhor até do que a primeira.

– Parece até que inventei mais coisa depois que perdi a visão…
Os olhos de Elier são 320 metros de arame. Estendem-se do Pois é: quando ainda via, tudo que tinha era uma lavouri-
alpendre da casa ao milharal nos fundos do terreno, com nha de tomate, melancia, maracujá, coisa pouca. Depois, já
escalas na pocilga, no chiqueiro, no pasto das ovelhas, em no meio do negrume, meteu-se a plantar milho, engordar
outro milharal e na rocinha de sequeiro, nutrida pela água porco, criar peixe. Em 2015, quando os técnicos de fomento
da chuva. Tateando o arame, Elier enxerga a gleba toda. É à agricultura familiar conheceram sua história e a vontade
tipo estrada, só que de aço, pela qual ele trafega no escuro de ir além, Elier não duvidou: quis diversificar a produ-
até chegar às lavouras necessárias, que apruma com assom- ção. Usou o programa para comprar duas ovelhas marrãs
brosa precisão: fileiras inteiras de pés de milho, alinhadas – recém-desmamadas –, botou um tanque com cem tam-
como um exército vegetal de estritas regras. Elier não tem baquis nadando dentro e aumentou a população suína
olhos nem régua, mas tem duas estacas e um facão, e é o da propriedade com a compra de uma porca e um barrão,
que lhe basta para estipular as medidas que farão vingar a macho reprodutor que já gerou 28 descendentes. Ah, e
produção. O resto é tato e talento: apalpando cada espiga,

56
tem as galinhas caipiras, que ciscam incautas no quintal
55

cada cabelo de milho, ele sabe se está ou não no ponto de à espera da abertura de uma cozinha comunitária na sede
colher. Precisa consertar o galinheiro, aumentar a pocilga? de Santa Filomena, bem ali perto.
Lá vai seu Elier com a mão no arame e pronto: nasce um
novo lar para porcos e galinhas. Elier também ganhou alguns quilos de sementes para avo-
lumar o milharal e ainda obteve a chance de vender qui-
José Elier Alves Barros está a ponto de completar meia vida
O fim do desenxergar

Santa Filomena do Maranhão


nhentas espigas por semana, que vão direto para escolas,
sem ver. Trinta anos atrás, no dia 11 de novembro de 1988, creches e outros serviços públicos. No escuro, apalpan-
sentiu a moto ser estraçalhada por um caminhão na estrada do o arame, seu Elier levantou um patrimônio que hoje
entre Santa Filomena e o povoado de Faveira, onde morava e lhe rende pelo menos quatro mil reais por mês. Tudo isso
ainda mora. O filho James, que estava na garupa, ficou coxo depois de ficar cego.
de uma perna. Elier teve descolamento de retina, tentou
operar, esteve até em São Paulo, mas não deu: perdeu para – Eu acho que tá é bom – ele resume. Depois conserta: –
sempre o nervo óptico. Acho, não. Tá bom mesmo.

– Com 32 anos minha vida acabou e começou outra vida, de E sentencia, cheio dos mistérios:
trevas – lamenta-se.
– Pelo esforço da gente, a gente vai enxergando coisas que
Mas Elier é cabra pertinaz, turrão mesmo, do tipo que odeia você não pode dizer.
que façam as coisas por ele. Era homem de roça, e da roça
haveria de viver, como desse. E tinha mulher e ainda mais
O fim do desenxergar 57

José Elier Alves Barros

Santa Filomena do Maranhão 58


Arame
IDHM: 0,512

ANO DE FUNDAÇÃO: 1988

60
POPULAÇÃO: 31.702 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 60,4% do total

CENTRO
RENDA PER CAPITA: R$ 210,09

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 64,9%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 43,3%

MORTALIDADE INFANTIL: 39,6 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Escola Digna; Feiras da
Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Fortalecimento
do Comércio Local; Juventude com Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no
Campo/Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha
Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua Digna; Odontomóveis;
Programa Avança; Programa Brasil Alfabetizado; Programa de Aquisição de
Alimentos; Programa Nacional de Alimentação Escolar; Programa Primeira
Água; Programa Segunda Água; Regularização Fundiária; Sistecs; SIstemas
Simplificados de Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.
Barba, cabelo
Adriel de Amorim
Sousa, o Brown

e simpatia

“Vende-se gasolina e corta cabelo”, avisa a placa cravada na


fachada. Quem estiver de passagem por Cajazeiras e estiver
necessitado de um ou de outro, é só chegar ali na casa do
Adriel, de barro aparente, bem no meio do povoado, distante
cinco quilômetros do centro de Arame. Gasolina é com o pai,
cabelo é com o filho. E, para não restar dúvida, o rapaz fincou
outra placa rente à rua, mais à vista: chapa de metal equili-
brada sobre uma estaca de madeira onde se lê, em tinta ver-
melha sobre fundo branco, “SALÃO DO BROWN”. À esquerda
e à direita do “DO”, respectivamente, o desenho de um pente
61

e de uma tesoura.

Brown, no caso, é Adriel, apelido de infância que virou ne-


gócio. Cabelo mesmo ele já corta desde mocinho, primeiro
tesourando a cabeleira dos irmãos – como são 11, deu tempo
de treinar bastante –, depois a dos vizinhos, sempre improvi-
O fim do desenxergar

sando uma barbearia na casa de quem fosse. Diz que apren-


deu sozinho, prestando atenção nas tesouradas de barbeiros
mais experientes, até que transformasse em bico nas horas
livres da roça.

E o bico acabou tendo que virar ganha-pão quando um jogo


de futebol malsucedido deixou Brown com uma tremenda
dor na costela, impossibilitado de trabalhar na lavoura. Sem
ter de onde tirar o de comer, aprendeu a viver na base dos
cortes de cabelo que apareciam de vez em quando. E quase
que não sobrava dinheiro, pois se gastava quase tudo na
compra dos remédios.

Aí a sorte virou.
O fim do desenxergar 63

Arame 64
Nesses interiores do Maranhão, muitas vezes, basta só uma últimas festas de fim de ano, as primeiras do novo salão,
oportunidade. Um instante afortunado em que os destinos o público dobrou. E o Brown já começou a matutar melho-
se cruzam e os desejos, quando menos se espera, se rea- rias. Quem sabe uma cadeira nova?
lizam. Foi assim que aconteceu: do nada, o rapaz entrou
– Tem uns irmãos aí doido pra aprender a cortar.
no radar do programa de fomento do estado. Quando os
técnicos vieram lhe perguntar onde queria investir, ele já
tinha a resposta. E o Salão do Brown deixou de ser sonho
para virar placa. À vista de todos.

– Se eu não tivesse esse salãozinho aqui, eu tava aperreado.

Tudo, tudinho, Brown aplicou no salão: comprou a cadei-


ra, o secador, os três espelhos e as máquinas, além das
telhas e da porta. O resto ele fez à mão: levantou sozi-
nho, ao longo de um mês, o puxadinho encostado na casa
do pai – ali onde se vende a gasolina – que hoje serve

66
65

de salão. Nem parece que é de taipa, pelo capricho com


que o Brown ergueu seu novo empreendimento: sobre o
barro cru, foram três mãos de cal e tinta da boa, branca por
dentro, vermelha por fora.

– Não é muito chique, não. Mas aqui onde nós mora é o


O fim do desenxergar

Arame
melhor que tem.

E quando fala em “melhor” se refere indiretamente ao


salão do primo, na rua de cima, parente e concorrente,
mais antigo no ramo, não muito dado às simpatias.

– Agora quase todo o mundo vem cortar aqui. Meu primo


tem mais experiência, mas o povo gosta mais de mim – e
ele ri, meio que zombando do primo.

Cabelo é oito reais, barba é dois. A simpatia é de graça. E


com esses preços Brown atende em média três pessoas
por dia. Só homem. As mulheres ele diz que já têm salão
próprio ali em Cajazeiras. Mesmo limitando a clientela,
fala que dá para tirar uns 300 a 400 reais por mês, e com
isso sustenta mulher e criança. Isso em dias normais – nas
Brejo
Antônia Pereira
dos Santos

de Areia
IDHM: 0,519

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

68
POPULAÇÃO: 5.577 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 48,8% do total

CENTRO
RENDA PER CAPITA: R$ 187,95

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 50,6%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 45,9%

MORTALIDADE INFANTIL: 45 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Escola Digna; Feiras da
Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com
Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Saneamento;
Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Programa
Avança; Programa Brasil Alfabetizado; Programa de Aquisição de Alimentos;
Programa Nacional de Alimentação Escolar; Regularização Fundiária; Sistecs;
Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.

Antonia Santana
Da taipa ao tijolo apoio ao pequeno produtor rural, começaram as chegar as
galinhas. A dona Antonia foi uma das beneficiadas: com o di-
nheiro que recebeu, comprou a tela do galinheiro, a ração e
ainda 50 pintos. Metade ela comeu, a outra metade vendeu:
– O material tá chegando, olha aí! conseguiu 667 reais, devidamente anotados num caderni-
nho. Equivalente a cinco meses de Bolsa-Família.
E Antonia Santana aponta para o caminhão estacionado
do outro lado da única rua do povoado de São João dos Outra Antonia, a dos Santos, vizinha da frente, também in-
Pretos, de onde desembarcam telhas, tijolos e outras coisas vestiu em galinhas. Algumas ainda estão lá no quintal, en-
de morar. A rua é de barro, como de barro é a argamassa gordando, junto ao canteiro de cebola, alface, couve e co-
com que se ergueram há muito tempo as casas da vila, mas entro que ela plantou com o dinheiro que economizou com
os tijolos que agora se empilham em frente à casa da dona o teto do galinheiro – ela mesma botou a palha. O quintal
Antonia, esses são de cerâmica – barro também, mas cozido, desta Antonia é grande: cabe ainda uma roça de respeito,
feito para durar. alimentada com os dez quilos de sementes que recebeu do
programa estadual de distribuição de grãos, com as quais
– A esperança tá boa – diz Antonia, sentada no alpendre da
planta milho nas chuvas e feijão na estiagem. Em toda Brejo
casa que foi da mãe e que agora é sua, mas que em breve
69

70
de Areia já são mais de 23 toneladas de sementes plantadas
não será de ninguém, pois seu provável destino é o desman-
nas terras de centenas de agricultores.
telamento, para que ninguém se lembre dos tempos da taipa.
– Nossa maior dificuldade aqui é água – ela diz, lembrando
A taipa foi o jeito que o povo inventou para levantar o de
que o poço do povoado só jorra uma vez por dia, pela manhã,
morar com o que a natureza dispôs. Aqui, na zona rural de
quando cada família tem direito a encher seus baldes por
O fim do desenxergar

Brejo de Areia
Brejo de Areia, foi o babaçu. Da palha se faz o teto; do caule,
apenas 15 minutos. Foi um combinado entre os moradores
as vigas – e entre elas o barro cru, amassado, do qual se
para garantir que nunca faltasse água na vila.
elevam as paredes. Da palmeira tudo se aproveita, sobretu-
do o fruto: todas as mulheres lá em São João dos Pretos são Como a taipa, os baldes matinais em breve serão passado.
peritas na cata e na quebra do coco de babaçu, com o qual Junto com as 35 novas casas que vêm despontando na rua da
fazem o carvão para cozinhar, o sabão para lavar a roupa e vila, chegarão também os canos – e as torneiras, os chuvei-
ainda o azeite e o leite para deixar a comida mais gostosa. ros, as descargas e tudo o mais que pela primeira vez fluirá
em São João dos Pretos, para assombro dos que achavam
– A gente usa o leite do coco pra cozinhar paca, tatu, galinha
que a sede já era parte da vida. As casas já estão de pé, ainda
caipira… – ensina Antonia. – Fica bom demais!
em forma de esqueleto, à espera de teto, flanqueando os
O que sobra da cata se vende interior afora, carregado na dois lados da rua central do povoado. A da primeira Antonia,
cabeça pelos povoados, na expectativa de trazer uns troca- a Santana, será no fim da rua, onde lhe foi dado um terreno
dos para casa – antes do Bolsa-Família, esse era praticamen- novo, já que onde ela mora agora em tese é patrimônio da
te todo o dinheiro que entrava nos lares de São João dos família, pertencente à mãe, que vive na sede do município.
Pretos, fora algum bico aqui e ali. Dois anos atrás, com o A da outra Antonia, a dos Santos, será onde antes se erguia
a morada de taipa original, desmontada para dar lugar ao
novo lar de tijolo cozido.

Mas Antonia não ficou sem ter onde morar: detrás da obra,
montou casebre de palha de babaçu, provisório, para abri-
gar, além dela, marido, filho e pai. Chamou uns parentes e
uns amigos e juntos levantaram quarto, cozinha e sala em
menos de uma semana, lançando mão de um saber ances-
tral que desde sempre garantiu o teto do povo nestas bre-
nhas esquecidas do Maranhão. Esta, porém, será a última
das choupanas – o ponto final de um ciclo infinito de contí-
nuo reconstruir que vem se repetindo há gerações:

– Casa de taipa a gente já constrói sabendo que vai ter que


derrubar. A cada oito anos, tem que fazer uma parede nova.
– se resigna Antonia.

72
Em breve, não mais.

Brejo de Areia
Conceição
do Lago-Açu
IDHM: 0,512

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

74
POPULAÇÃO: 14.436 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 52,4% do total

CENTRO
RENDA PER CAPITA: R$ 170,79

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 58,6%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 44,4%

MORTALIDADE INFANTIL: 31,8 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Desenvolvimento da
Cadeira Produtiva do Artesanato e dos Trabalhos Manuais; Escola Digna; Feiras
da Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com
Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Extensão
Universitária; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão;
Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua Digna; Programa Avança; Programa Brasil
Alfabetizado; Programa de Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de
Alimentação Escolar; Programa Primeira Água; Regularização Fundiária; Sistecs;
Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.
Com unhas e dentes Faltava também a clientela, pois Valdilene passara quase dez
anos morando em Belém, no Pará, longe da freguesia cativa-
da ao longo da carreira. Voltou a Conceição do Lago-Açu no
início do fatídico 2017, só para ver a vida ser mexida e reme-
Tempos difíceis para Valdilene. Primeiro as idas e vindas xida, até quase não sobrar nada da Valdilene.
com o filho Wyldemberg a São Luís para tratar da fenda
palatina. De dois em dois meses, lá ia ela com o menino de Mas sobrou a manicure.
três anos no colo para tentar reverter as sequelas do lábio Manicure agora certificada, fortalecida em sua autoestima
leporino, como a dificuldade de falar e de engolir. Depois e mais bem informada a respeito de coisas que antes não
veio a morte do marido, Zé Raimundo, assassinado num ar- sabia, como o risco de pegar doenças em decorrência da
raial das redondezas. Nove anos de casamento encerrados falta de higienização dos utensílios próprios do ofício.
a bala, e com eles uma casa nova que ficou pela metade e
também o fim do ganha-pão da família – Zé Raimundo era E Valdilene tirou do armário a maletinha de esmaltes, cremes
mototaxista. Como se não bastasse, por razões obscuras e acessórios, avisou a vizinhança que estava de volta à ativa
que ninguém soube explicar, depois da morte do marido e não só recuperou a antiga clientela como ganhou novos
o Bolsa-Família foi reduzido de 256 reais para 172. E isso fregueses. Mulheres e também homens – uma das poucas
75

76
era praticamente tudo que Valdilene e Wyldemberg tinham por ali às quais os rapazes podem acudir, já que marido de
para viver, afora os trocados que a mulher ganhava fazendo manicure não costuma gostar de ver a mulher fazendo a
as unhas dos outros. unha de outro homem. Pronto: já tinha um novo ganha-pão.

Valdilene Brandão Gomes ainda chorava a morte de Zé – Se eu não tivesse feito esse curso, como é que eu tava co-
Raimundo quando lhe chegou uma oportunidade de aliviar mendo com meu filho?
O fim do desenxergar

Conceição do Lago-Açu
o peso dos dias: em junho de 2017, menos de duas semanas
E Valdilene também decidiu terminar a casa que começara
da morte do marido, começou a fazer o curso de manicu-
a construir com Zé Raimundo. Foi morar com o pai durante
re e pedicure oferecido pelo Instituto de Educação, Ciência
o correr das obras e lá, na mesma sala onde são guarda-
e Tecnologia do Maranhão, o Iema. Era uma das 40 alunas
das as motos, passou a ocupar os finais de semana – e a
matriculadas, entre elas a sobrinha Elinicke, aos 13 anos já
mente – fazendo o que sabe de melhor. Não tem cliente todo
ganhando intimidade com a mesma carreira da tia.
dia porque, como ela explica, aqui nestes interiores unha é
Não que Valdilene não tivesse experiência com o manejo das coisa que se faz só em ocasiões importantes, tipo festas ou
unhas: com 17 anos já treinava nas mãos e nos pés de paren- viagens. Quem há de querer esmaltar mãos que passam a
tes e vizinhos, até que conquistou certa clientela e passou a semana lavando roupa ou pescando no lago?
atender na sala de casa. Mas faltava-lhe o mais importante:
Mas quem gosta de unha caprichada sabe que pode procurar
o certificado.
Valdilene porque, em se tratando de enfeite, não tem para
– Tu pode trabalhar, mas se não tiver algo que comprove fica ninguém. Além de manejar esmaltes e alicates, a moça gosta
difícil – ela explica. também de desenhar flores e borboletas de uma comovente

delicadeza. Mais uma coisa que aprendeu no curso. Antes


elas eram mais simples, pintadas direto na unha da clien-
te, que nem sempre estava disposta a esperar o tempo das
artes – aí Valdilene teve a ideia de criar desenhos prontos,
usando caixas de leite.

Isso mesmo. Caixas de leite, de suco, de Toddynho e de tudo


o mais cujo interior seja revestido de película. Nela Valdilene
pinta seus desenhos e os transforma em adesivos facilmen-
te destacáveis, prontos para serem colados na unha das
freguesas.

– Tem que inventar alguma coisa para ganhar dinheiro, né?

Foi difícil, mas Valdilene chegou ao fim de 2017 com a mente


sã e uma nova fonte de renda. E alguns planos na cabeça. De
imediato, quer botar uma estante na parede para guardar os

78
esmaltes. Mais adiante, quem sabe arranjar emprego num
salão. Ou, melhor, abrir o próprio.

– Se eu tivesse condição já teria montado meu salão – afirma,


determinada.

Conceição do Lago-Açu
Taí uma coisa que falta em Conceição do Lago-Açu. O que
existe é salão de cabeleireiro, que é onde as pessoas vão
quando querem fazer as unhas. Salão de manicure mesmo
não tem. Fica a dica, Valdilene. A cidade agradece.

 
Satubinha
IDHM: 0,493

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

80
POPULAÇÃO: 11.990 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 69,7% do total

CENTRO
RENDA PER CAPITA: R$ 131,73

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 69,9%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 40,6%

MORTALIDADE INFANTIL: 35,5 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Escola Digna; Feiras da
Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com
Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/ Arca das Letras; Mais Extensão
Universitária; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão;
Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua Digna; Programa Avança; Programa Brasil
Alfabetizado; Programa de Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de
Alimentação Escolar; Programa Primeira Água; Sistecs; Sistemas Simplificados
de Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.
Dá até gosto
de estudar

Imagine uma escola com paredes de barro, composta de


apenas uma sala onde duas aulas são dadas ao mesmo
tempo por dois professores – metade das crianças voltada
para um lado, a outra metade para o lado oposto, de costas
umas para as outras. E todas apinhadas no mesmo espaço,
dando-se cotoveladas sempre que alguém escreve ou apaga
qualquer coisa no caderno. Imagine essa mesma escola sem
banheiro nem cozinha – os alunos fazendo as necessidades
na fossa do quintal e comendo a merenda que se prepara
no fogão da casa da zeladora. Agora imagine essa escola co-

82
81

meçando a rachar, com risco de o telhado cair em cima da


criançada em plena aula de matemática e a diretora, para
evitar maiores danos, resolver transferir as aulas para sua
própria casa: uma turma na sala, outra no quarto. De manhã,
de tarde e de noite. Isso durante um ano.
O fim do desenxergar

Satubinha
– Todo o mundo parecia que andava estressado – diz
Evamisse Soares, a diretora.

Aí começou o ano letivo de 2018 e a velha sede da Escola


Municipal Professora Carmelita Queiroz ficou sendo parte
de um passado do qual ninguém quer se lembrar – foram
quase dez anos nessas condições. O dia 26 de fevereiro foi
especial não só aqui, no povoado de Santa Maria, como
também em Sapucaia, Boa Esperança e Piquizeiro, pois
todos os quatro vilarejos deram início às aulas com uma
escola nova. Quatro de uma vez, inauguradas em janeiro,
fazendo de Satubinha o primeiro município do programa
Escola Digna a receber esse tanto de unidades. No total,
cerca de 400 alunos beneficiados.
O fim do desenxergar 83

Satubinha 84
Dignidade, no caso, é poder estudar em uma escola de alve- Não por acaso, alguns desses adultos são pais das mesmas
naria sem risco de as paredes racharem. Comer uma merenda crianças que agora estudam na nova sede da Carmelita
feita em fogão industrial, com despensa e espaço suficien- Queiroz – duas gerações ocupando a mesma escola empe-
te para que Jucilene, Raimunda e Genezilda preparem com nhadas em reverter, junto aos educadores, as tristes estatís-
folga a comida de 68 alunos – e usando ingredientes produ- ticas de Satubinha, onde 98% da população não completou o
zidos sem agrotóxicos, ali mesmo no município, no roçado Ensino Fundamental. Os números são do censo de 2010, mas
de cerca de 30 pequenos produtores rurais. Dignidade é um todos por aqui estão confiantes de que no próximo recense-
banheiro, inclusive para deficientes, com privada, pia e des- amento isso vai mudar. Não será por falta de escola.
carga. É carteira de fórmica em vez de madeira gasta.

– Essa escola aqui foi um presente – celebra Maria das Dores


Quirino, uma das duas professoras do povoado antes obriga-
das a dividir a sala. – As crianças estão até mais comportadas!

A diretora Evamisse emenda:

– Os alunos se sentiram especiais. Alguém se preocupou em

86
85

dar o melhor para elas.

Veja só: cada turma agora tem sala, lousa e professor pró-
prios. Além de Maria das Dores e Glaucenir, as duas valen-
tes educadoras que dividiam a velha escola, a comunidade
ganhou outros três professores. Cada um num turno, cada um
O fim do desenxergar

Satubinha
numa sala. As salas são duas: de manhã, uma abriga a creche
e outra o quarto e quinto anos; à tarde, a turma do terceiro
ano fica em uma sala e os alunos do primeiro e segundo em
outra. À noite, a escola é dos adultos: o pessoal do povoado
que está sendo alfabetizado também ganhou escola nova.
Dos cerca de 600 homens e mulheres de Satubinha que
aprenderam a ler e escrever com o programa Sim, Eu Posso!,
esta foi a primeira turma a dizer adeus à escola de taipa. E,
pelo jeito, foi quem mais gostou da novidade.

– O número de alunos adultos aumentou: nessa turma, nós


tínhamos oito, agora são 16 – diz a diretora. – Eles começa-
ram a vir porque acharam que é aqui é mais aconchegante.
São
Raimundo do
Doca Bezerra
IDHM: 0,516

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

88
POPULAÇÃO: 6.090 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 71,6% do total

CENTRO
RENDA PER CAPITA: R$ 156,40

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 58,8%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 49,9%

MORTALIDADE INFANTIL: 39,9 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Escola Digna; Feiras da
Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com
Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/ Arca das Letras; Mais Extensão
Universitária; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão;
Mutirão Mais IDH; Programa Avança; Programa de Aquisição de Alimentos;
Programa Nacional de Alimentação Escolar; Programa Primeira Água;
Regularização Fundiária; Sim, Eu Posso!; Sistecs; Sistemas Simplificados de
Abastecimento de Água; Quintais Produtivos; Uniformes Escolares.

Maria de Jesus Carneiro


As voltas por cima

Dona Jesus não é bem uma mulher de sorte, mas é de fibra.


O primeiro revés se deu em 2005: Maria de Jesus Carneiro
estava fazia um tempo morando em Fortaleza, no Ceará, e
ganhando um bom dinheiro como diarista. Sozinha, separa-
da havia alguns anos, mas com parentes por perto – a família
do pai era toda de lá. Tudo indo bem, até que veio a desdita.

– Foi lá que eu peguei essa bendita doença – lamenta. –


Fiquei seis anos sozinha. No dia que eu conheci alguém, foi
só pra isso.

“Isso” é o vírus do HIV, e foi com ele no corpo que a dona


Jesus acabou voltando para Três Rios, povoado onde nasce-

90
89

ra, distante 14 quilômetros de estrada de chão do centro de


São Raimundo do Doca Bezerra. Lugar de origem e de desti-
no: com o que ganhou limpando casas de família, comprou
em 2013 uma terrinha beira-rio, bem onde o Mearim desenha
uma curva e se perde entre os morros antes de seguir para
O fim do desenxergar

São Raimundo do Doca Bezerra


o sul.

Ali começou vida nova sozinha, ela mais Pedro Lucas, o neto
de oito anos que pegou para criar. Mas alguém deve ter es-
palhado pela vila a notícia da doença de dona Jesus, pois
logo o povo andou a evitá-la. Ninguém mais entrava na casa,
não bebia mais a água de lá, não comprava mais os chei-
ros-verdes e os coentros que ela plantava e nem mesmo do
azeite de babaçu que ela fazia o pessoal de Três Rios queria
saber. Pior: até na cidade já sabiam da doença.

– Já fui tão humilhada naquele São Raimundo – ela diz, refe-


rindo-se à dificuldade em marcar consulta e obter os medi-
camentos, por puro preconceito.

Maria de Jesus
Chegou a ficar 12 dias sem tomar o remédio, e o vírus se – O chão aqui é muito pequeno, não dá pra trabalhar. Meu
reproduzindo. Só conseguiu retomar as doses depois que sonho é ter um canto pra morar e espaço pra plantar meus
a Força Estadual de Saúde, mesmo com o HIV fora do seu pés de fruta, meu arroz, meu feijão...
escopo de ação, interviu junto à Secretaria de Saúde munici-
Pois assim será. Num chão, uma casa nova, de tijolo. No
pal para garantir atendimento e acesso aos remédios.
outro, no lugar do velho casebre de taipa, ao lado dos coen-
Mas como já dito, se tem algo que não falta em dona Jesus é tros que agora voltaram a germinar, se abrirá toda uma pers-
determinação. Não tem quem compre seu azeite? Pois bota pectiva de futuro – uma terra em branco apenas à espera de
as garrafas na sacola e vai em outros povoados vender o ser semeada.
óleo do babaçu que ela mesmo coletou e quebrou. Ou vende
Dona Jesus confessa que, depois de tantos perrengues,
por ali mesmo, para quem estiver de passagem. Tira 25 reais
pensou várias vezes em voltar a Fortaleza – vender o terre-
por garrafa. Falta dinheiro para comprar carne? Ela sobe na
no, retomar a vida lá, incógnita, misturada à massa, de novo
canoa e vai sozinha pescar no Mearim. Volta cheia de piaus e
como diarista. Mas o Maranhão, pelo jeito, ainda a quer por
mandis, às vezes algum surubim, que come cozidos ou fritos.
aqui. E tem lugar melhor?
Diz até que gosta mais de peixe que de carne.
– Esse cantinho aqui é meu – ela diz, orgulhosa que só. –
Quando chegou o programa estadual de incentivo ao produ-

92
91

Aqui é bom. Lugar da gente.


tor rural, não deu outra: dona Jesus cavou um tanque onde
passaram a nadar 200 tilápias e ainda completou a produ-
ção com umas galinhas e um canteiro de hortaliças, que ela
mesma acomodou em um par de jiraus jeitosos, protegidos
das aves por meio de ripas de babaçu. Mas de novo a má
O fim do desenxergar

São Raimundo do Doca Bezerra


sorte: certo dia, o vento que sopra do Mearim trouxe junto
algumas gotas de agrotóxico que o avião de um pecuarista
local espalhara pela região. Cebolas e coentros amanhece-
ram murchos e o quintal de dona Jesus um pouco mais triste.

– Aquele canteiro ali tava a coisa mais linda – lamenta, mais


uma vez, para depois emendar: – Só não fui embora porque
não tem com quem deixar o menino.

Mas o quintal está crescendo de novo, e talvez cresça ainda


mais: logo dona Jesus vai ganhar casa nova do governo, a
alguns metros dali, rua abaixo. Ela e outras 120 famílias em
São Raimundo do Doca Bezerra. Dona Jesus não é muito sim-
pática à ideia de morar perto da ex-sogra, mas está gostando
da perspectiva de ter dois chãos: o de habitar e o de produzir.
LESTE
Santana do
Maranhão
IDHM: 0,510

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

4
POPULAÇÃO: 11.661 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 84,2% do total

LESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 127,77

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 70,9%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 47,3%

MORTALIDADE INFANTIL: 27,9 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão Rural;
Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Cozinhas Comunitárias; Feiras da Agricultura
Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Fortalecimento do Comércio
Local; Juventude com Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/Arca das
Letras; Mais Extensão Universitária; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha
Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Odontomóveis; Programa Avança;
Programa de Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de Alimentação
Escolar; Programa Segunda Água; Regularização Fundiária; Sim, Eu Posso!;
Sistecs; Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água; Uniformes
Escolares.

João de Deus
O gosto da água roça, fez jirau servindo de pia para a dona Bernarda lavar a
louça e levantou sem demora o banheiro novo da família.

– A gente fazia pelos mato a precisão – ele lembra.


Na vida de Bernarda e João de Deus, água mesmo era só a Banheiro hoje é cabaninha de palha de buriti cravada no
do rio Magu. Por sorte o riacho corre detrás de um barran- quintal, onde João fez jorrar o primeiro chuveiro em 40
co nos fundos da casa, de modo que não havia precisão anos, desde que ele e dona Bernarda se mudaram para lá.
de ir buscar água nos baixios. Mas era tudo que se tinha. Banho de ducha, antes, só na casa dos outros. Logo mais
Era água de regar, de lavar, de beber e de banhar, mesmo serão os outros que vão poder vir banhar aqui na casa do
quando fluía barrenta nos meses de inverno, carregando João:
na enxurrada tudo quanto era sujeira que descia dos cha-
padões. Daí que a meninada vivia com gripe e diarreia, um – Agora tem que ajeitar banheiro dentro de casa pra rece-
sofrimento só. ber visita.

– Do jeito que tava lá a água, a gente pegava – lembra a Água é que não vai faltar, pois João e Bernarda acabam de
dona Bernarda. – Era muito dificultoso. ver brotar, bem do lado do milharal, uma cisterna, apenas
aguardando a chegada das primeiras chuvas.

6
5

Aí foi piorando: o que antes era só uma vereda para tráfego


de boi, jumento e gente virou faz dez anos uma estradinha – Ave Maria, fiquei muito alegre! – exclama João. – Já vou
de chão. Melhorou o acesso, mas às custas de muita árvore puxar pra regar a laranjinha nova que eu plantei.
derrubada, coisa que fez a terra escorregar direto para o
Vai ser uma molhadeira só. Água na laranja, no chuveiro, na
rio Magu, que ficou raso, quase seco. E ainda mais sujo no
torneira, na horta e na roça toda, onde melancias, milhos,
O fim do desenxergar

Santana do Maranhão
tempo das chuvas.
maxixes e mandiocas agora vão ter água boa o ano todo:
Faz pouco mais de seis meses, Bernarda e João descobri- no estio a da cisterna, no inverno maranhense a do céu,
ram o gosto da água. Acabaram-se a sede, os banhos de que essa nunca há de faltar por aqui.
caneca, o lodo no fundo dos copos, o buscar e trazer da
E o rio Magu correndo lá embaixo, bonito como sempre foi.
água de cabaça na cabeça. Ficou só o rio sendo rio, em sua
inteira boniteza: córrego que flui sem pressa, empapan-
do preguiçoso a prainha onde crescem açaizeiros e buritis.
O povo ainda se banha lá, mas só nos finais de semana,
quanto junta a parentada, o pessoal faz churrasco, bota
som e tudo.  

Água agora vem do poço novo que chegou lá no povoado


do Coqueiro, hoje dando de beber a 17 famílias. Bastou
o encanamento passar diante da casa, debaixo da estra-
da, João já foi lá puxar a tubulação. Melhorou a rega da
O fim do desenxergar 7

Bernarda de Sousa Freitas

Santana do Maranhão 8
Aldeias
Altas
IDHM: 0,513

ANO DE FUNDAÇÃO: 1961

10
POPULAÇÃO: 23.952 habitantes

LESTE
POPULAÇÃO RURAL: 43% do total

LESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 179,92

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 60%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 48,7%

MORTALIDADE INFANTIL: 35,3 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Escola Digna; Feiras da
Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Fortalecimento do
Comércio Local; Juventude com Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/
Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais Extensão Universitária; Mais Saneamento;
Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Programa
Água Doce; Programa Avança; Programa de Aquisição de Alimentos; Programa
Nacional de Alimentação Escolar; Programa Primeira Água; Sim, Eu Posso!;
Sistecs; Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água; Quintais Produtivos;
Uniformes Escolares.
O fim do desenxergar

Tudo que restou da dona Maria da Conceição foram os óculos.

– O resto eu dei tudo – resume José de Souza, o marido.

Os óculos e a lembrança, é claro. Mas de tudo que é inerte


só ficou mesmo o par que seu José comprou para ela em
2005, dez anos antes de ela falecer, e que hoje ele guarda
na gaveta, memória em forma de vidro e aço que ajuda a
suportar a dor da falta.

– Tá lá onde ela guardava. Ninguém mexe, não.

Lá na casa da dona Conceição e do seu José era ela quem

12
sabia das coisas. Ele sabia da roça, do mato, do tempo certo
de plantar e colher, mas estudo mesmo era com ela. Seu José,
quando criança, teve lá seus dias de escola: o pai dava dois
contos por mês à professora, numa época em que ensino era
algo que se pagava, já que faltava governo que desse instru-
ção para a meninada.   

Aldeias Altas
– Naquele tempo dois contos era dinheiro...

Daí que seu José deixou de aprender o ler e o escrever e assim


ficou. Para o caso de precisão, tinha a dona Conceição e seus
óculos. Quando a esposa faleceu, que jeito?, seu José foi se
instruir também, para ver se pelo menos essa falta ele achava
forma de preencher. E descobriu, veja só, que também precisa-
va de óculos. Apertava tanto os olhos para enxergar o quadro
que a professora teve que começar a fazer as letras bem gran-
des, só para o seu José poder aprender o beabá.

Agora ele está na fila que leva ao auditório da Unidade Escolar


Antonieta Castelo, esperando o momento de botar os olhos na
máquina que vai enxergar o seu desenxergar. É a primeira das
três filas que ele vai fazer nesta manhã de sábado: a próxima
O fim do desenxergar 13

Raimundo Alves da Silva

Aldeias Altas 14
Aldeias Altas 14
é a que levará à sala de aula transformada em consultório of- espelhinhos que os mutirantes seguram na mão. Tem quem
talmológico; a última, a da escolha da armação. Sim, seu José pegue o primeiro que viu, mas tem também os que experi-
agora também vai ter seus próprios óculos. mentam quase a mesa toda. Uma vez escolhido o modelo, a
receita segue para São Luís, de onde voltará a Aldeias Altas
Ele e os outros cerca de 2.400 aldeias-altenses matricula-
uns 20 dias depois, à mão de seus donos definitivos.  
dos na segunda fase do programa Sim, Eu Posso!, que nestes
dois dias de mutirão lotam quase todos os espaços livres da Raimundinho foi um que não precisou pegar fila. Passou na
maior escola de Aldeias Altas. É preciso um pouco de paciên- frente de todos com sua cadeira de rodas, empurrada por
cia, até porque são só cinco os oftalmologistas para atender Rayssa, sobrinha e professora. Raimundo Alves da Silva teve
esse tanto de gente. Mas veja que bom: ao fim de algumas paralisia infantil aos sete e desde então passou 35 anos en-
horas, ninguém sairá dali sem uma encomenda de óculos trevado, morando com a mãe, sem que pudesse ter qualquer
novo. Muitos deles, pela primeira vez na vida. Taí um dife- tipo de instrução. Nem conta ele sabia fazer. Pior: o pessoal
rencial do projeto: além de dar cartilha, mochila e camiseta, da prefeitura quase todo ano matriculava o rapaz só para
o governo ainda fornece os óculos, já que grande parte dos poder fechar a turma – mas sem botá-lo na sala de aula.  
alunos são idosos com problema de vista. E, como a maioria
– Ele emprestou o nome para todo o mundo, mas nunca es-
trabalha na roça ou na cidade durante o dia, as aulas acon-
tudou – reclama Gabriela.

16
15

tecem sempre à noite, o que dificulta o enxergar.


Raimundinho quase não fala, mas ri que é uma beleza. Na
Já é a segunda leva de alunos do município matriculados no
turma de Rayssa, lá no povoado de Brejo do Lar, é um dos
programa de alfabetização. No ano passado, 1.918 pessoas
mais aplicados. Chega segunda-feira à noite, o rapaz é puro
receberam diploma atestando o domínio do abecê. Quando
desassossego: fica só esperando Adilson, o marido de Rayssa,
todos estes novos se formarem, Aldeias Altas será uma terra
O fim do desenxergar

Aldeias Altas
chegar para levá-lo à aula.       
de leitores.
– Quando a gente vai buscar, ele já fica todo animado – diz
– Vamos ser o primeiro município maranhense a erradicar
Rayssa. – Ele tem é prazer de estudar.
o analfabetismo – confia Gabriela Silva de Mello, briga-
dista da Brigada Salete Moreno, braço do Movimentos dos Isso ninguém tinha se dado ao trabalho de perguntar: se ele
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) responsável pela im- também queria ir à escola.
plantação do Sim, Eu Posso! no Maranhão. – E a formatura vai
ser na rua. Vamos convidar a cidade toda! Pois agora, como seu José, Raimundinho também vai usar
óculos pela primeira vez. Teve quem achou que fosse difícil
Seu José certamente estará lá. E de óculos novo. Ainda não encontrar um modelo que ficasse bom, já que o rapaz tem a
sabe qual vai escolher: são mais de cem modelos de arma- cabeça com o dobro de tamanho de uma normal, por conta
ção sobre a mesa que serve de óptica provisória na sala do da paralisia. Mas veja só: ele não levou nem cinco minutos
quinto ano. Tem de aro redondo, oval, quadrado, de metal, para escolher a nova ferramenta de enxergar. E vai ser de
de acetato, preto, colorido ou tartaruga. Para as mulheres, acetato preto, desses bem modernos.
as opções chegam a 200. É a mais lenta das filas: imagine
esse povo todo provando armação por armação, diante dos
Aldeias Altas 18
Aldeias Altas 18
Araioses

IDHM: 0,521

ANO DE FUNDAÇÃO: 1938

20
POPULAÇÃO: 42.505 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 71,6% do total

LESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 175,81

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 57,65%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 42,9%

MORTALIDADE INFANTIL: 37,9 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Cozinhas Comunitárias; Desenvolvimento da Cadeira
Produtiva do Artesanato e dos Trabalhos Manuais; Desenvolvimento do
Turismo; Escola Digna; Feiras da Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde
do Maranhão; Fortalecimento do Comércio Local; Juventude com Ciência; Kits
de Irrigação; Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais Saneamento;
Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua
Digna; Programa Água Doce; Programa Avança; Programa Brasil Alfabetizado;
Programa de Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de Alimentação
Escolar; Programa Primeira Água; Regularização Fundiária; Sistecs; Sistemas
Simplificados de Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.
Quando o rio é rua

No dia 22 de outubro de 2017, Indo e Voltando fez sua pri-


meira e última viagem de carro. A despeito do nome, foi, mas
não voltou: atada à capota de uma caminhonete, a canoa
venceu os 70 quilômetros que separam Tutoia do povoado
de Carnaubeira, município de Araioses, e ali ficou. Encontrou
endereço definitivo num trapiche à beira do rio Santa Rosa,
no meio do Delta do Parnaíba, diante de um vasto mangue-
zal, em cujos troncos se agarram ostras suculentas, apenas
reveladas nas horas de maré baixa.

Quando chegou a seu destino, a canoa não tinha nome nem


cor: desembarcara da picape tal como viera ao mundo, crua

22
e nua, com seu esqueleto de 5,5 metros de comprimento
feito de pequizeiro e louro-cedro exposto à vista de todos. Se
canoa fosse gente, talvez Paloma, o barco que Bolinha usara
nos últimos 13 anos, teria ficado com ciúmes. Imagine a velha
canoa, toda puída, encostada de cabeça para baixo ao pé de
uma árvore, assistindo Carnaubeira inteira vindo ver o novo

Araioses
instrumento de trabalho de seu dono. Mas Bolinha garante
que Paloma não será esquecida:

– Não vou botar pra perder, não. Vou botar pra consertar e
depois vejo o que faço. Talvez eu venda.

Raimundo Nonato Gonçalves – de apelido Bolinha – é filho


de pescador, genro de pescador, marido de pescadora e
ele mesmo um mestre da tarrafa há pelo menos 40 anos.
Quando gente do governo apareceu em Carnaubeira com a
ideia de investir em produtores locais, Bolinha e sua mulher,
Elizabete, não pensaram duas vezes: tá na hora de ter uma
canoa nova. Talvez algum equipamento de pesca, se sobras-
se dinheiro. (Sobrou: investiram numa caçoeira, rede que
eles soltam atravessada no rio e a correnteza se encarrega
Raimundo Nonato
Gonçalves
O fim do desenxergar 23

Araioses 24
de capturar os peixes.) As filhas também saíram ganhando: Depois da novena, antes do forró, os barcos de Carnaubeira
não com a canoa, mas com um incentivo próprio de mesmo vão se lançar ao rio na esperança de conquistar o prêmio de
valor para desenvolver peças de artesanato; Girlene usando 400 reais. Bolinha não vai remar, mas vai emprestar a canoa
cascas de ostra, Iolene pintando garrafas. nova aos cinco participantes que tentarão levá-la até a linha
de chegada.
Agora Indo e Voltando, já revestida das cores que Bolinha
escolheu para ela – branco e vermelho, com uma listra preta Resta a dúvida:
–, zarpa três vezes por semana do trapiche que lhe serve de
– E quem é fica com o prêmio, Bolinha? A equipe ou do dono
casa na direção dos canais e igarapés que o rio Parnaíba
da canoa?
desenha antes de seu encontro final com o mar. Atreve-se
inclusive a navegar águas que Paloma costumava evitar, já Bolinha faz uma pausa para responder, como se ainda não
nas franjas do Atlântico. tivesse parado para pensar nisso. Depois decreta, todo
sorridente:  
– O material é bom, novo, mais confiável – diz Bolinha. – A
gente vai mais longe, sem medo da ventania. – Com o dono, né?  
E vão sempre os dois, Bolinha e Elizabete, marido e mulher,

26
25

buscar e trazer o de comer. Garantem que não costuma dar


briga: todas as tarefas são divididas de acordo com a habi-
lidade de cada um. Na hora de pescar tainhas e camarões,
Bolinha maneja a tarrafa enquanto Elizabete comanda o
remo; se é para soltar a caçoeira à cata de robalos e cam-
O fim do desenxergar

Araioses
buris, os papéis se invertem: o marido no barco, a mulher
na rede. Com o espinhel, os dois juntos capturam pescadas,
bagres e arraias. E no caminho de volta ainda aproveitam
para arrancar algumas ostras do lodo do mangue. Saem na
maré alta e voltam sempre com pelo menos dez quilos de
peixe, que vendem ali mesmo, na comunidade – ou fresco
ou já pronto para comer, feito por Elizabete sob encomenda,
seja frito, grelhado ou cozido.

Já íntima das águas do Santa Rosa, Indo e Voltando agora vai


estrear no esporte. Domingo que vem, durante a festa de São
José, vai participar pela primeira vez de uma corrida de canoa.

– É animado que só – se empolga Elizabete.


Milagres do
Maranhão
IDHM: 0,527

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

28
POPULAÇÃO: 8.118 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 78,3% do total

LESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 144,42

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 64,2%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 46,2%

MORTALIDADE INFANTIL: 26,7 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Feiras da Agricultura
Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com Ciência; Kits de
Irrigação; Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Extensão Universitária; Mais
Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH;
Odontomóveis; Programa Avança; Programa Brasil Alfabetizado; Programa de
Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de Alimentação Escolar; Programa
Primeira Água; Regularização Fundiária; Sim, Eu Posso!; Sistecs; Sistemas
Simplificados de Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.
O dia da verdade

Dia diferente aquele na Escola Municipal de Educação Básica


Dr. Clemente Marques Macatrão. Aula de português, mate-
mática, educação física, nada disso teve. Mas teve aula de
zumba. Também bolo, biscoito e suco de acerola. E ainda
teve escova e pasta de dente distribuídas para a criançada.
As salas, todas vazias: as carteiras haviam ido parar no quin-
tal, debaixo do cajueiro que balançava com a brisa; parece
até que dançava junto com o pessoal da zumba e o forró que
insistia em vazar da caixa de som.

Teve também consulta com psicólogo, nutricionista, fisio-


terapeuta, aferição de pressão arterial e glicemia e ainda

30
kombi transformada em consultório de dentista estacionada
na porta. Era uma ação especial da Força Estadual de Saúde
dedicada ao Dia da Mulher, 8 de março, mas que acabou
sendo um dia antes, uma quarta-feira. Era quando as equi-
pes do município convocadas pelas enfermeiras do governo
estadual estavam disponíveis. Tudo bem: o que importa é

Milagres do Maranhão
que às oito e meia da manhã as salas e o quintal da escola
já estavam atulhados de gente.

Mas Raimunda Sousa, agente comunitária há 21 anos do po-


voado de São Roque, está apreensiva:

– Veio mais gente de fora que daqui do povoado. Daqui


mesmo não tem nem um quarto.

A inquietação tem um motivo, que é o mesmo pelo qual esta


ação especial foi organizada aqui em São Roque.

– Estamos fazendo uma busca ativa – revela Paula Queiroz,


enfermeira da Fesma.
O fim do desenxergar 31

Milagres do Maranhão 32
Explica-se: faz 15 dias, descobriu-se que um rapaz do povoado, Já Eliane está tensa, mas não com o resultado: nunca na vida
de cerca de 30 anos de idade, estava contaminado com o vírus levou picada de agulha. Paula tenta acalmá-la:
HIV. Com a saúde debilitada, foi parar no hospital em São Luís,
– É só uma picadinha no dedo, dona Eliane.
mas não sem antes revelar que havia tido relações sexuais
com cinco homens do povoado, todos casados. Tão rápido e tão indolor que ela não solta nem um ai. E sai
triunfante, dizendo:
– A população está assustada – diz Raimunda. – Mas nin-
guém quer fazer o exame. As mulheres dizem que confiam – Se tiver alguma coisa, é bom saber o mais rápido possível!
no marido ou que preferem não saber.
E é rápido mesmo: em meia hora já sai o resultado. Caso
Daí a ideia de chamar o povo de outras vilas próximas – Santa seja positivo, a pessoa é encaminhada à psicóloga e à as-
Helena, Flecheira, São Tomé –, para que o pessoal de São Roque sistente social que estão ali de plantão, na sala do Ensino
não se sentisse constrangido. Daí a zumba, o bolo, a kombi. Fundamental. E já sai de lá com um pedido para refazer o
exame no posto de saúde e checar se a doença está mesmo
Não são poucos, contudo, os corajosos maranhenses que
instalada no corpo. A boa notícia: dos 60 testes realizados
aguardam na fila que leva à sala da educação infantil, onde
naquele 7 de março, só um deu positivo para sífilis. Todo o
Paula, sentada numa carteira junto à janela, administra as

34
33

resto voltou para casa saboreando o doce gosto do alívio.


agulhas e as cartelas do teste rápido. Estão sendo investi-
gadas, além do HIV, também a sífilis e as hepatites B e C. A
título de informação, dois cartazes na parede explicam como
se pega e como não se pega uma doença sexualmente trans-
missível. Para não ficar dúvida, antes do início dos exames
O fim do desenxergar

Milagres do Maranhão
Paula trata de ser bem clara com a plateia:

– É importante usar a camisinha, gente. Vai que o marido


pula a cerca, né?

A fila toda se ri, um tanto nervosa, mas continua formada.


Quase todos ali são mulheres, alguns poucos homens, e
todos da meia-idade para cima.

– Eu vim fazer o diabo desse exame, sô! – diz Erotildes,


tomada de valentia.

Maria Helena também não se amofina:

– A gente sabe que tá bem por fora, mas não sabe como tá
por dentro, né?
O fim do desenxergar 35

Milagres do Maranhão 36
São João
do Soter
IDHM: 0,517

ANO DE FUNDAÇÃO: 1994

38
POPULAÇÃO: 17.283 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 61,5% do total

LESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 165,10

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 59,1%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 50,9%

MORTALIDADE INFANTIL: 37,5 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Escola Digna; Feiras da
Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Fortalecimento
do Comércio Local; Juventude com Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no
Campo/Arca das Letras; Mais Extensão Universitária; Mais Saneamento; Mais
Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Odontomóveis;
Programa Água Doce; Programa Avança; Programa Brasil Alfabetizado;
Programa de Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de Alimentação
Escolar; Programa Primeira Água; Regularização Fundiária; Sistecs; Sistemas
Simplificados de Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.

Fidelismar dos Santos


A turma da luz

Está formado o pelotão oficial da eletricidade de São João do


Soter. Armados de luvas, alicates e chaves de teste, Cata Real,
Cambora e Sassá vão pela cidade aonde quer que sejam ne-
cessárias a força e a luz. Esta semana estão encarregados
de eletrificar a futura sede da Secretaria de Ação Social. Em
breve poderão ser convocados a contribuir com a reforma
de uma escola, acudir no caso de um disjuntor queimado
na prefeitura ou mesmo estender os fios que finalmente ti-
rarão do escuro algum povoado remoto do município. Todos
os três, faz pouco tempo, foram contratados pela prefeitura
a um salário mensal de 1.500 reais cada um. E ainda sobra
tempo para uns frilas nos finais de semana, que antes não

40
podiam fazer porque não tinham lição nem documento.
Agora estão aí, trabalhando para fábricas, empresas e gover-
nos – inclusive em outras cidades.

Não que os três já não fossem eletricistas experientes, de


íntima convivência com os quadros de luz – o que lhes falta-

São João do Soter


va era qualificação e documentação para trabalhar conforme
manda a lei. Até que fizeram o curso de formação em eletri-
ficação urbana, um dos muitos oferecidos de modo gratuito
pelo Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão
(Iema). Três meses de aula, 120 horas de teoria e prática, que
nenhum dos três teria condições de fazer, pelo preço e pelo
lugar: seria necessário ir até Caxias ou Teresina para cursar
algo parecido, mas com o terço do tempo, e ainda pagar uns
900 reais por isso.

Daí o sucesso aqui em São João do Soter:

– A turma começou com 16 alunos e terminou com 16 – se or-


gulha Cata Real, que na verdade se chama Leivinha de Sousa
(Cata Real era o nome de um bingo que ele tinha e que virou
Francisco das Chagas
dos Santos
O fim do desenxergar 41

São João do Soter 42


São João do Soter 42
apelido). – O pessoal não faltou um dia na aula. Se tivesse São João do Soter e ainda passaram a ser requisitados para
mais vaga, enchia uns 30. tudo quanto é tipo de serviço, público ou privado. De segun-
da a sexta, o emprego é garantido. Sábado e domingo, quem
Cambora (ou João Francisco de Sena) concorda:
quiser tem trabalho também. Esse até sobra, na verdade.  
– Esse foi o único curso que eu vi que todo o mundo gostou
– Pela demanda que tem, hoje o que falta é dia pra trabalhar
de fazer.
– resume Cata Real.
E com razão: não só os alunos puderam aprimorar a técnica
da eletrificação como ainda desenvolveram conhecimentos
adicionais, como valiosas estratégias da arte da psicologia
humana, fundamental no trato com cliente.

– Aprendi muita coisa sobre como lidar com gente – diz


Cambora.

– Eu antes não sabia tratar com a pessoa quando ela ficava


danada. A gente já ficava logo zangado – emenda Cata Real.

44
43

Já Sassá (ou Francisco das Chagas) gostou de conhecer novos


e melhores materiais – coisa que, segundo ele, também de-
manda certo traquejo com o cliente:

– Agora eu faço questão de trabalhar com o material da


O fim do desenxergar

São João do Soter


melhor qualidade.

E teve mais. De quebra, os alunos do curso ganharam bota,


luva e todo o arsenal necessário para dar cabo das deman-
das. E ainda tiveram uma aula prática combinada com gestos
de altruísmo: na conclusão do curso, a turma toda foi ao po-
voado São Francisco para eletrificar, de graça, uma casa que
tinha pegado fogo.

Mas o mais importante mesmo foi que todo o mundo – in-


cluindo Cata Real, Cambora e Sassá – terminou o curso com
certificado de eletricista válido para todo o Brasil, habilitado
a fazer qualquer tipo de serviço, e não mais os bicos aos
que antes era preciso se submeter. No fim, saiu melhor que
a encomenda: os três foram contratados pela prefeitura de
Belágua
IDHM: 0,512

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

46
POPULAÇÃO: 6.524 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 50% do total

LESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 107,14

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 74,8%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 54,4%

MORTALIDADE INFANTIL: 38,4 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Escola Digna; Feiras da
Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com
Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais
Extensão Universitária; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu
Maranhão; Mutirão Mais IDH; Programa Avança; Programa Brasil Alfabetizado;
Programa de Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de Alimentação
Escolar; Programa Primeira Água; Programa Segunda Água; Regularização
Fundiária; Sim, Eu Posso!; Sistecs; Sistemas Simplificados de Abastecimento de
Água; Uniformes Escolares.

Eliete Silva
e a filha Sara
Uma fenda no caminho Sara fechou a fenda com 11 meses de vida, no hospital infan-
til de São Luís. Ganhou uma cicatriz, mas também o direito
de mastigar: hoje já come banana amassada e arroz empa-
pado com caldo de frango.
Sara não contava nem um mês de vida quando foi encontra-
da pela Força Estadual de Saúde. Estava já magrinha de todo, – Agora tá crescendo rápido – celebra a mãe, Eliete. – Já tá
e não parava de perder peso. Como sugar o leite da mãe com 12 quilos.
se os lábios não deixavam? Eliete até tentava amamentar a A menina ganhou também auxílio-doença, um salário
filha, apertando os seios até sair a última gota, mas o que mínimo até completar 18 anos – coisa que veio bem a calhar,
jorrava era pouco: nada como a boca de um bebê para beber pois o pai está há meses sem trabalhar depois de um aci-
o tanto de leite que o manterá vivo e forte. dente de moto. Essa ajuda agora está garantida, assim como
Quis o destino, contudo, que a boca de Sara nascera racha- as viagens pagas que mãe e filha fazem todo mês a São Luís
da: no lábio de cima, bem no meio, uma fenda se abria até para as consultas com o pediatra especializado nesse tipo
encostar no nariz. Não podia mamar e mesmo respirar era de atendimento.
difícil: vira e mexe Sara ficava sem ar, respirava pela boca e Agora falta pouco: basta só fechar o palato, que continua

48
47

aí entrava tudo quanto era vírus e bactéria. Tinha uma facili- aberto porque esse é um tipo de cirurgia que a criança só
dade danada para ficar doente. Médico especializado, só em pode fazer depois de certa idade. Sara agora já pode – tem
São Luís, a 280 quilômetros de Belágua. um ano e seis meses e já está na fila para a operação. De
– A Sara provavelmente entraria para essa estatística cruel da quebra, ainda vai ganhar uma gengiva nova durante a cirur-
mortalidade infantil – diz Leandro Moraes, enfermeiro da Força. gia. Voltará do hospital com a boca inteira restaurada, quem
O fim do desenxergar

Belágua
sabe até na mesma época em que já estiver começando a
Mas o destino, ainda que arrevesado, tinha planos melhores falar. A fenda vai ser só uma cicatriz na memória dos pais.
para a segunda filha de Moisés e Eliete Silva: a equipe es-
tadual de saúde enviou menina e mãe para a capital e lá o
médico pôde reverter o quadro de desnutrição. Ao cabo de
algumas semanas, Sara já gordinha novamente, era hora de
cuidar da fenda palatina – ou lábio leporino, como se diz –
com que tinha nascido. E era um tanto urgente, pois logo a
menina teria que começar a falar, e mesmo isso, com o lábio
superior partido ao meio, seria difícil.

– A fenda vem desde o céu da boca – explica Leandro. – A


fala, a audição, até a visão podem ficar comprometidas. Está
tudo conectado.
O fim do desenxergar 49

Belágua 50
Água Doce
do Maranhão
IDHM: 0,500

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

52
POPULAÇÃO: 11.581 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 72,9% do total

LESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 172,55

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 59,5%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 45,7%

MORTALIDADE INFANTIL: 40,6 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência da
Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Desenvolvimento da Cadeira
Produtiva do Artesanato e dos Trabalhos Manuais; Escola Digna; Feiras da
Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Fortalecimento do
Comércio Local; Juventude com Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/
Arca das Letras; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão;
Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua Digna; Programa Água Doce; Programa Avança;
Programa de Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de Alimentação
Escolar; Regularização Fundiária; Sim, Eu Posso!; Sistecs; Sistemas Simplificados
de Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.
Gerando renda com a renda

A do Carmo faz roupas de bebê e kits de banheiro em forma


de coruja. A dos Milagres, toalhas de mesa e de banho.
Natalia já teceu uma cortina de três metros para a cunha-
da e Cleilda virou especialista em enfeitar panos de prato
com bicos, bordas e babados. Tudo de crochê. Quem quiser
pode procurar por elas nos povoados de Piranhas e São
Joaquim, bem no meio da estrada que liga o litoral do Piauí
ao do Maranhão. Quando tem feira de produtores rurais em
Água Doce, lá estão elas, todas juntas numa barraca só, cada
uma com seu pedaço de estrado para expor as peças. Numa
dessas feiras, não é que a do Carmo vendeu dois tapetes em
forma de elefante para a própria prefeita?

54
– Ela pagou 150 reais por cada tapete! – comemora Maria do
Carmo da Conceição Pereira, valor devidamente anotado no
caderninho que começou a preencher logo que uma técnica
da Secretaria de Estado de Agricultura Familiar apareceu com
a ideia de começar um programa de artesanato por aqui.

Água Doce do Maranhão


“Caderno do Faturamento da Do Carmo Graça a Deus e o
Flávio Dino”, ela escreveu na primeira folha. A página inicial
de um capítulo que começou em maio de 2017 junto com
outras cinco artesãs da zona rural de Água Doce do Maranhão,
todas participantes do programa de Desenvolvimento da
Cadeia Produtiva do Artesanato e dos Trabalhos Manuais. O
benefício: incentivo financeiro para investir em fios e nove-
los – incluindo-se aí as idas e vindas até Parnaíba, no Piauí,
onde se pode pechinchar melhores preços.

Todas já dominavam o crochê, mas poucas ganhavam di-


nheiro com isso. Era arte à toa, para se deixar a casa mais
bonita, salvo quando vendiam uma peça ou outra ali pelos
povoados. Maria dos Milagres Vilar já nem costurava mais:
tinha quase se esquecido de como era que se fazia o que – Elas vendem muito fiado, para receber depois de 30 ou 60
a mãe lhe ensinara quando menina. Cleilda lhe lembrou, dias – conta Paula Jessica Santos, a técnica da SAF. – Essa é
reensinou-lhe alguns pontos e aí está a cozinha da dos a realidade da região.
Milagres, toda enfeitada: fogão, botijão de gás, liquidificador,
A não ser que façam como a do Carmo, que se dispõe a bater
panela elétrica, puxador de armário, tudo agora protegido do
de casa em casa com a sacola na mão, repleta de peças de
pó pelas peças de crochê que ela mesmo fez. E tem também
tudo quanto é tipo, tomada do entusiasmo que lhe é habitual:
as que vendeu: cinco toalhas e 15 panos de pratos até agora,
totalizando 323 reais amealhados em seis meses e, como fez – Bom dia, meu amigo! Vamos fazer uma comprinha hoje?
a do Carmo, também registrados em papel – sinal de que os
ensinamentos sobre gestão foram bem assimilados. E foi assim que a mulher, em um ano, conseguiu juntar 1.500
reais vendendo artigos de crochê. Das quatro, é a que tem a
Cleilda Pereira de Lima é mais das sutilezas: só trabalha com maior oferta de produtos e também a mais dada a voos de
linha fina, que exige mais trabalho, tempo e dinheiro. Mas criatividade: ela mesma desenha as próprias peças. Primeiro
ninguém em São Joaquim faz bicos de crochê como ela: cada rabisca no papel as imagens – frutas, flores, bichos e, sobre-
pano de prato que ela compra no mercado sai de sua mão tudo, corujas (“tenho como tradição”) – para depois trans-
transformado numa peça nova de bordas rendilhadas em formá-las, com as agulhas, em tapetes, cortinas e kits de

56
55

formas geométricas, de flores ou corações. Cada uma custa banheiro, incluindo a caixa acoplada da privada. Agora anda
12 reais. E tem também as toalhas de mesa, lindas rendas às voltas com uma cortina em forma de onça, para ser pen-
circulares que ela voltou a fazer justo porque agora já podia durada no alto da porta: o bicho servindo de varão, para das
comprar a matéria-prima. O preço: 70 reais. patas pender o cortinado.    
Já Maria Natalia da Cruz Vilar ganhou ajudante para dar conta – Pra parecer que ela tá trepada no penhasco – explica.
O fim do desenxergar

Água Doce do Maranhão


da nova demanda: a filha Nataline, a mais nova peça de uma
trama centenária que vem sendo tecida pelo menos desde Ah, e a do Carmo também aceita encomendas. Todas igual-
o bisavô. Isso mesmo: quem ensinou crochê à dona Maria, mente anotadas no caderninho, para já saber quanto vai
mãe de Natalia, avó de Nataline, foi seu pai – um homem nas gastar e quanto vai cobrar. Coruja é o que mais lhe pedem,
agulhas, coisa rara por aqui. Hoje as duas tecem juntas tudo mas diz que se lhe pedirem um sapo, ela faz um sapo. No
quanto é artigo trançado em linha: tapetes, panos de prato, outro dia lhe encomendaram um tapete do Bob Esponja. Do
guardanapos, roupas de criança e, sim, uma cortina de três Carmo não sabia bem o que era, foi procurar na internet. E
metros em linha fina pela qual receberam a generosa quan- já decidiu:  
tia de 300 reais.
– Como é famoso, vou cobrar 80 reais.  
Mas não vá pensar que é fácil vender esse tanto, assim de
uma vez.

– Aqui é dinheiro de tico-tico – diz Natalia, lembrando que


na zona rural de Água Doce a clientela não é das mais
endinheiradas.  
Afonso Cunha
IDHM: 0,529

ANO DE FUNDAÇÃO: 1959

58
POPULAÇÃO: 5.905 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 45,2% do total

LESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 149,78

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 66,8%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 48,3%

MORTALIDADE INFANTIL: 34,4 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Escola Digna; Feiras da
Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com
Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/ Arca das Letras; Mais Extensão
Universitária; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão;
Mutirão Mais IDH; Programa Água Doce; Programa Avança; Programa de
Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de Alimentação Escolar; Sim, Eu
Posso!; Sistecs; Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água; Quintais
Produtivos; Uniformes Escolares.

Antonio Francisco
Barbosa da Silva
A segunda vida em Assistência Social (Cras) ao município: 85 reais por mês,
coisa pouca, mas uma ajuda razoável para quem não conse-
de Antonio guia nem comprar feijão.

– Com o Bolsa-Família, ele já pode controlar melhor a alimen-


tação – explica a enfermeira da Fesma, Carina Gonçalves.
Quando Cristina, a agente de saúde do município, apareceu na
Agora a glicose de Antonio está em 130 e o peso já bate nos 56
casa de Antonio, não gostou nada do que viu. O rapaz deita-
quilos. Das sequelas da diabetes, ficou a atrofia do pé direito e
do no sofá, entregue à fraqueza, com uma tremenda dor nas
a perda da visão. Total do olho direito; parcial, bem pouca, do
pernas, a vista turva, magrinho (pesava 44 quilos) e ainda com
olho esquerdo. Mas a força e a vontade de viver voltaram. Até
uma barriga enorme que parecia a ponto de explodir. Aí veio
uma rocinha de quiabo Antonio se pôs a plantar. Quem visitar
o pessoal da Força Estadual de Saúde, que foi medir a glico-
o rapaz vai ver também que a casa está sempre arrumada – ele
se: altíssima. Tão alta que o aparelho acusava o valor máximo
mesmo, com o pé e o olho que lhe sobraram, ambos esquer-
que era capaz de medir: 600 mg/dL. O normal é de 100 para
dos, se encarrega de varrer, botar ordem e ainda cozinhar a
baixo. Foi ali que Antonio Francisco Barbosa da Silva descobriu
própria comida.
que possuía diabetes, que ela estava desenfreada e que, para

60
59

piorar, tinha uma bola de comida não digerida no estômago Cristina, a agente de saúde, fica toda orgulhosa:
por conta de uma bactéria – daí o barrigão.
– Me sinto uma pessoa muito feliz de poder falar que hoje ele
Antonio vivia sozinho na casa de adobe que pertencera à mãe, tá bem.
recém-falecida. Não tinha trabalho, nem renda, nem Bolsa-
Família, nem pé de meia. Passara três anos cortando cana no Tão bem que, veja só, Antonio já aprendeu a ler e a escrever.
O fim do desenxergar

Afonso Cunha
interior de São Paulo, até que começaram a doer-lhe as pernas Tão logo completou 40 anos, matriculou-se no Sim, Eu Posso!.
– já um sinal da diabetes – e ele se vira obrigado a retornar ao Assim, ruim da vista mesmo.
Maranhão, impossibilitado de trabalhar até mesmo na roça de
– Foi um desafio bem grande pra mim – diz a professora,
casa. De volta a Afonso Cunha, dependia da comida que vizi-
Cristiane de Sousa. – Mas queria fazer alguma coisa pra ajudar.
nhos e parentes lhe davam. Muito arroz, farofa, bolacha, pão.
E fez: apontava para Antonio onde estavam as linhas do cader-
– Toda coisa que o pessoal me dava eu comia – ele diz.
no, escrevia as letras bem grandes no quadro, passava tarefa
Não deu outra: a diabetes desembestou. para ele fazer em casa. E não é que o moço se formou? Foi no
início de janeiro de 2018. Escreveu cartinha e tudo. E ainda vai
Sorte foi a agente de saúde, Cristina da Conceição, ter feito essa ganhar óculos: faz pouco o mutirão oftalmológico passou por
primeira visita, abrindo caminho para que a Força Estadual de Afonso Cunha, examinando a visão dos 600 alunos do progra-
Saúde intervisse a tempo de evitar tragédia maior. E veio o tra- ma no município que devem receber as lentes. O rapaz, no
tamento: antibiótico para o estômago, remédio para a diabe- caso, não só vai ter óculos novos como ainda vai ganhar uma
tes, revolução na dieta. Veio também o Bolsa-Família, que o cirurgia de catarata, receitada pelo oftalmologista. O mundo,
pessoal conseguiu depois da chegada do Centro de Referência para Antonio, finalmente vai ficar um pouco mais bonito.
O fim do desenxergar 61

Afonso Cunha 62
Primeira
Cruz
IDHM: 0,512

64
ANO DE FUNDAÇÃO: 1947

POPULAÇÃO: 13.954 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 69,3% do total

LESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 129,85

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 71,4%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 33,7%

MORTALIDADE INFANTIL: 35,1 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Bolsa Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão
Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Desenvolvimento da
Cadeira Produtiva do Artesanato e dos Trabalhos Manuais; Desenvolvimento do
Turismo; Feiras da Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão;
Fortalecimento do Comércio Local; Juventude com Ciência; Kits de Irrigação;
Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais Extensão Universitária;
Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais
IDH; Mutirão Rua Digna; Odontomóveis; Programa Água Doce; Programa
Avança; Programa Brasil Alfabetizado; Programa de Aquisição de Alimentos;
Programa Nacional de Alimentação Escolar; Programa Segunda Água;
Regularização Fundiária; Sistecs; Sistemas Simplificados de Abastecimento de
Água; Uniformes Escolares.
A vida sobre rodas

A rua lá do bairro do Pixuri só tinha de bom mesmo era a


brisa, que soprava gostosa por cima da cidade e ia bater lá
no alto, arejando a vida do pessoal. Sim, porque a rua em si
era custosa demais de se pisar: não havia vento que refres-
casse o areal que cobria a via inteira, tão grosso que chegava
a bater nas canelas.

– A gente ia se acabando na areia quente – lembra Tatiele


Ferreira. – Queimava nossos pés pra desgrama.

Os velhos e os deficientes não saíam de casa, as crianças


iam à escola aos pulos para não fritar os pés e quem preci-
sasse de hospital tinha que dar um jeito de descer a ladeira

66
65

de areia, ainda que fosse carregado no colo. Nem mototáxi


se atrevia a vir até aqui. Muito menos ambulância.

Veja o caso do Thayson, o filho de dois anos de Tatiele com


Walber, que outro dia queimou a bochecha na moto bem
O fim do desenxergar

Primeira Cruz
na hora de agachar para pegar um bombom no chão. Se a
rua fosse de areia, como antes, era pelo menos 40 minutos
caminhando até o pronto-socorro – isso com o menino aos
berros no colo e os pés ardendo no chão. Pois agora não só
tinha calçamento como tinha também moto para levar o guri.
A moto é nova, adquirida com a chegada do asfalto, como
também é nova a casa que Walber está construindo, levan-
tada em terreno próprio, comprado quando souberam que
Primeira Cruz ganharia sua mais nova rua calçada – aquela
que agora se chama Rua Benjamin Lopes.

Foram quatro meses de obras e 28 pessoas envolvidas no


trabalho – sem contar os detentos que integram o programa
de ressocialização em Pedrinhas (Complexo Penitenciário
São Luís), responsáveis pela produção dos bloquetes usados
para a pavimentação. Todos os que colaboraram com a obra
são moradores da própria via, e foram todos remunerados dez minutos de voadeira pelo rio Periá a partir de Humberto
pelo serviço. Ou seja, não só ganharam rua nova como ainda de Campos; o suficiente, no entanto, para manter esta cidade
um dinheirinho extra para ajudar a melhorar um pouco a um pouco à margem de tudo, quase tão isolada quanto era
vida. Foi o que aconteceu com Wagner Sousa e Laise Silva, 400 anos atrás, quando missionários capuchinhos franceses
vizinhos de frente de Walber e Tatiele: enquanto o marido cravaram-lhe a primeira cruz – daí o nome.
misturava a massa de areia e cimento para fincar os bloque-
Pois o asfalto, veja só, já está chegando, assim como a água,
tes, a esposa fazia a limpeza da obra ou preparava suco e
depois que um sistema foi implantado levando o de beber
biscoitos para servir na merenda. Deu no que deu: compra-
a mais de quatro mil primeira-cruzenses. A rodovia estadual
ram moto também.
que alcançou Santo Amaro do Maranhão agora será esten-
– A gente antes só tinha uma bicicletinha cargueira – diz dida até Primeira Cruz – mais 47 quilômetros –, facilitando o
Wagner. ir e vir inclusive dos turistas, que serão novidade por aqui.
Convém lembrar que parte do município contém o Parque
Cargueira porque era o que o rapaz usava para descer a la-
Nacional dos Lençóis Maranhenses.
deira de areia nos fundos da casa e ir buscar o carvão que
comprava e revendia ali no bairro. Depois subia tudo de novo Enquanto o asfalto vai chegando, o povo lá do Pixuri vai cur-

68
– carvão e bicicleta no ombro. tindo a reinvenção da roda. Wellington Alles acaba de mudar
67

a oficina que tinha no centro – a Alles Repintura Automotiva


– Agora as pessoas vêm trazer o carvão de carro e deixam
– para cá.
na porta.   
–  Carro agora chega na porta, né? – diz.
Chega carro, chega mototáxi, chega até ambulância: um mo-
rador foi salvo de um AVC porque o socorro bateu à porta de E Wagner e Laise andam finalmente pensando em comprar
O fim do desenxergar

Primeira Cruz
casa. E até quem tinha tudo para não sair para a rua agora o carrinho de bebê que estava nos planos desde que Ravi,
se arrisca a passear. É o caso de Maria da Conceição Ferreira: agora com dois anos, se anunciava na barriga da mãe. Na
imagine a mulher, cega há quatro anos por conta de um época, Wagner chegou a sugerir a Laise:
glaucoma, caminhando sobre aquela areia dos infernos. Não
– Bora comprar carrinho?
saía de casa quase nunca, é claro. Pois hoje, adivinhe, vai
toda tarde fazer uma caminhada na rua acompanhada pela – Como, se não tem calçada? – respondeu Laise.
filha. E ainda aproveita para visitar os parentes.
Uns dias atrás, com Ravi no colo e novo filho na barriga de
– Tendo quem me leve, vou pra todo lado – comemora. Laise, Wagner perguntou de novo:
Vale mencionar que a vida sobre rodas é um tanto rara em –  Bora comprar carrinho?
Primeira Cruz. Não que não haja carros – os dos poucos va-
lentes que se atrevem a cruzar os 23 quilômetros de areal Bora. De cara, já vão comprar carrinho para os dois.
que separam o lugarejo da cidade vizinha de Santo Amaro do
Maranhão –, mas é que o melhor acesso é de barco. São só
Primeira Cruz 70
São Francisco
do Maranhão
IDHM: 0,528

ANO DE FUNDAÇÃO: 1835

72
POPULAÇÃO: 12.146 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 66% do total

LESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 182,60

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 54,8%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 36%

MORTALIDADE INFANTIL: 32,8 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão Rural;
Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Cozinhas Comunitárias; Desenvolvimento da
Cadeira Produtiva do Artesanato e dos Trabalhos Manuais; Feiras da Agricultura
Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com Ciência; Kits
de Irrigação; Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais Extensão
Universitária; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão;
Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua Digna; Odontomóveis; Programa Avança;
Programa Brasil Alfabetizado; Programa de Aquisição de Alimentos; Programa
Nacional de Alimentação Escolar; Programa Primeira Água; Regularização
Fundiária; Sistecs; SIstemas Simplificados de Abastecimento de Água; Quintais
Produtivos; Uniformes Escolares.
Como salvar duas vidas  

Cinco da manhã e Larissa Emanoelle já quis chegar causan-


do. Maria Francisca Feitosa acordara se sentindo esquisita:
dor de cabeça, vontade de vomitar, a menina se mexen-
do dentro da barriga e um fluido pálido escorrendo pela
vagina. Dor mesmo, dessas que anunciam chegada de bebê,
ela não sentira. E era dor que ela conhecia bem, depois de
seis filhos gerados. Bigola – o apelido da mulher – achou,
pois, que ainda não era a hora. E seguiu a vida. Quis o des-
tino, contudo, que naquela manhã de novembro de 2016 a
equipe da Força Estadual de Saúde estivesse de passagem
pelo povoado de Caraíba do Norte. Caso contrário, a meni-
nada estava hoje órfã de mãe. O negócio era sério, e Bigola

74
nem se dera conta disso.

– Eu tava esperando a dor pra ir no médico – ela conta.

Pois foi o médico quem chegou antes da dor, e ainda bem


que foi assim, dado que a pressão de Bigola marcava 17 por 9

São Francisco do Maranhão


naquela manhã. A bolsa não só tinha rompido antes da hora
como a mulher estava com pré-eclâmpsia – condição grave
que consiste em um perigoso aumento de pressão durante a
gestação. Sem tratamento, pode evoluir para as convulsões
da eclâmpsia.

– É uma das principais causas de morte materna – diz o doutor


Eduardo dos Santos Sousa, o médico que atendeu Bigola na-
quele dia. – No caso dela, o desfecho seria bem ruim.

Vale registrar que, nas 30 cidades mais carentes do Maranhão,


as equipes da Força Estadual de Saúde conseguiram, em
pouco mais de um ano, reduzir em 85% os casos de mães
que morrem ao dar à luz.
O fim do desenxergar 75

São Francisco do Maranhão 76


E dá-lhe carro rasgando a estrada entre Caraíba e o centro
de São Francisco do Maranhão: 34 quilômetros de estrada
de areia que a própria equipe da Fesma percorreu com a
mulher no banco de trás da caminhonete que serve para
médicos e enfermeiras rodarem pelos distantes povoados
de cada um dos municípios cobertos pela Força. No hospital,
Bigola tomou logo na veia uma dose graúda de sulfato de
magnésio, para evitar as convulsões. Naquela mesma noite,
Larissa Emanoelle nasceu. Mãe e filha estavam salvas. Quase
dois anos depois, com a menina já caminhando por tudo
quanto é canto, é Bigola quem melhor define a filha:

– É uma menina danada, muito ativa.

E Bigola, veja só, foi outra que também começou a cami-


nhar. Enquanto a filha estudava seus primeiros passos sobre
o chão da casa, a mãe tomou vergonha na cara e decidiu

78
77

há algum tempo comprar a briga contra a obesidade e a


hipertensão. Agora, todo fim de tarde, sempre às cinco, ela
gasta exatas duas horas percorrendo a pé a estrada que liga
Caraíba a São Francisco do Maranhão – não por acaso, a
mesma que fez Larissa Emanoelle viver. De quebra, aprovei-
O fim do desenxergar

São Francisco do Maranhão


tou também para repaginar a dieta, não só a dela como da
família toda, já que o marido também é hipertenso. Saíram
de cena a gordura e o sal, entraram as galinhas e as hortali-
ças que o casal começou a produzir com a ajuda do incentivo
estadual à agricultura familiar. A vida lá em Caraíba do Norte
agora pulsa em todos os cantos.
Santo Amaro
do Maranhão
IDHM: 0,518

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

80
POPULAÇÃO: 13.820 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 73,7% do total

LESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 135,04

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 69,5%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 34,7%

MORTALIDADE INFANTIL: 31,7 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Desenvolvimento da
Cadeira Produtiva do Artesanato e dos Trabalhos Manuais; Desenvolvimento
do Turismo; Feiras da Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do
Maranhão; Juventude com Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/Arca
das Letras; Mais Asfalto; Mais Extensão Universitária; Mais Saneamento; Mais
Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua Digna;
Odontomóveis; Programa Avança; Programa Brasil Alfabetizado; Programa de
Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de Alimentação Escolar; Programa
Primeira Água; Programa Segunda Água; Regularização Fundiária; Sistecs;
Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.
Entre a palha e o asfalto
Ainda falta a ponte sobre o rio Alegre, mas o asfalto mesmo
já chegou a Santo Amaro do Maranhão. Antes, quem qui-
sesse alcançar esta cidade abancada na borda dos Lençóis
Maranhenses tinha de enfrentar 35 quilômetros de um vasto
areal, desses que viram pura lama no tempo das chuvas. Isso
quem tivesse carro. De ônibus – que é como a população
se move por aqui –, eram horas sacolejando no pó. Ir, por
exemplo, a um hospital mais bem equipado ou fazer com-
pras em uma cidade maior pressupunha embarcar num jipe
Bandeirante que partia à uma da manhã, atravessava a ma-
drugada recolhendo gente nos povoados e só tocava a BR
com o sol raiando no horizonte.

82
Essa era a vida de Silvia Meneses quando aqui chegou, faz
pouco mais de 30 anos, ainda moça, para morar com a avó.
Vinha do interior de Barreirinhas, o outro ponto de acesso
ao Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, há bem mais
tempo abençoado pelo asfalto. Santo Amaro do Maranhão

Santo Amaro do Maranhão


naquele tempo não tinha estrada nem turista. Mas já tinha
as redes de buriti que o povo daqui sabia fazer muito bem,
incluindo Silvia. O que ela não sabia era que podia haver
gente disposta a pagar por elas.

Descobriu quando os primeiros e audazes turistas se atreveram


a encarar o lodaçal da MA-320, não faz muito tempo. Alguém
viu as lindas redes que Silvia e outras mulheres usavam em
casa, pronto: nascia uma clientela. Em 2006, a cidade ganhou
seu primeiro Centro de Artesanato, na outra ponta da praça
onde se ergue a igreja. E Silvia lá, desde o início, todos os dias
da semana, vendendo suas redes e ajudando a manter o lugar
de pé. Por cinco anos trabalhou como voluntária recebendo os
visitantes. Hoje diz que recebe um “salariozinho”.

Mas o que fez a diferença mesmo foi a aposta, nos últimos


anos, em transformar esta cidade com grande potencial
Santo Amaro do Maranhão 84
turístico também em um polo de produção de artesanato. E Agora mesmo Silvia tem só uma rede para vender no Centro
se tem uma coisa que não falta em Santo Amaro é artesão. de Artesanato, a única entre dezenas de outros objetos
Dez mestres do município foram contemplados com um in- saídos das mãos inquietas dos artesãos locais, como bolsas
centivo para investir em sua arte: além de Silvia, outras duas também de fibra de buriti, peças de crochê e bijuterias. Todas
fazedoras de rede de buriti, mais seis artesãs de crochê e as outras que ela teceu alguém já comprou. Embora seja o
ainda quatro especialistas da cidade em transformar cocos mais caro dos itens à venda no centro, Silvia garante que é o
em objetos de decoração – entre eles Nito, o marido de Silvia. que mais tem saída, graças aos turistas. Incluindo os estran-
Cada um empregou a quantia recebida onde quis. Silvia, no geiros, cada vez mais numerosos por aqui – ainda que sejam
caso, se concentrou na matéria-prima. Parece até estranho os que mais gostam de pechinchar:
investir tudo só em palha de buriti, mas não se engane. A
artesã faz as contas: – Gringo é bicho chorão pro pé!

– Um quilo de fibra custa 35 reais. Pra fazer uma rede, preciso E é bom que Silvia vá se aprimorando nas artes da barganha
de 2,5 quilos. E ainda tenho que pagar 30 reais pra alguém porque, afinal de contas, o asfalto já está aí. Ela não esconde
torcer a fibra pra mim. certa inquietação a respeito disso, como muitos outros mo-
radores, porque Santo Amaro hoje é uma cidade de poucas
Torcer a fibra ela mesma, nem pensar: ruas e apenas 3.600 habitantes. E é, definitivamente, a mais

86
85

próxima das dunas e lagoas dos Lençóis Maranhenses: dez


– É um processo medonho pra chegar numa rede dessas! minutos numa estradinha e você já está no meio das areias.
Silvia explica: primeiro alguém tem que subir no pé de buriti Agora imagine um feriado como o último Sete de Setembro,
para pegar o “olho”, o talo de uma folha jovem, que cresce logo após a conclusão da estrada, quando havia uns 300
no centro da palmeira. Precisa-se de oito olhos para um carros estacionados do outro lado do rio Alegre. Como não
quilo de fibra. Depois tem que desfiar o olho e então tratar
O fim do desenxergar

Santo Amaro do Maranhão


existia ponte, o único jeito de chegar à cidade era (ainda é)
a fibra: botar para cozinhar por 30 minutos em tacho grande ter um 4x4 para cruzar o rio ou contratar um condutor local
ou, para o caso de não ter tacho, dentro de vala cavada na que tivesse o carro – o que ainda hoje ajuda a segurar o trá-
areia quente. Depois de cozida, a fibra seca no sol e então é fego do lado de lá. Com ponte, como será? O Secretário de
torcida até virar novelo. O que Silvia compra é o novelo, justo Turismo, Jorge Augusto Santos Silva, tem um plano:
num povoado convenientemente chamado de Buritizal.
– A ideia é que o turista deixe o carro no estacionamento e
No fim, uma rede dessas não sai por menos de 120 reais para só entre na cidade com um condutor cadastrado. E pagaria
ser tecida. Fora o tempo que se gasta no tear: no mínimo 15 uma taxa por isso.
dias caso uma pessoa trabalhe sozinha. Quando Silvia tem a
ajuda da irmã ou das filhas, o tempo do tecer cai para uma Se assim for, Santo Amaro do Maranhão tem tudo para se tornar
semana. Vale a pena: um turista em Santo Amaro vai pagar o destino sustentável da vez: crescendo no ritmo certo e na
entre 250 e 300 reais por uma rede de palha de buriti. Dá para medida exata para garantir que Silvia e suas amigas vendam
se viver disso – desde, é claro, que se tenha o dinheiro para in- infinitas redes de fibra de buriti. E garantam infinitas horas de
vestir na matéria-prima. É aí que entra o incentivo do governo. descanso para todos os que tiverem a sorte de comprá-las.
OESTE
São João
do Caru
IDHM: 0,509

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

4
POPULAÇÃO: 12.309 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 48,6% do total

OESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 165,38

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 56,6%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 45,5%

MORTALIDADE INFANTIL: 43,7 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Desenvolvimento
da Cadeira Produtiva do Artesanato e dos Trabalhos Manuais; Feiras da
Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Fortalecimento
do Comércio Local; Juventude com Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no
Campo/Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais Saneamento; Mais Sementes;
Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua Digna; Programa
Avança; Programa de Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de
Alimentação Escolar; Programa Primeira Água; Regularização Fundiária;
Sim, Eu Posso!; Sistecs; Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água;
Uniformes Escolares.

Antonio
Antôniode Almeida
de Almeida
Bacilo danado de 10% do total nacional. São João do Caru, município situado
nas franjas da Floresta Amazônica, quase encostado no Pará,
tem 23 pacientes sendo acompanhados no momento, só na
sede. Parece pouco, mas é dez vezes mais que a média bra-
Segunda de manhã e Antonio de Almeida já está sentado na sileira de casos por habitantes.
sala dos fundos do Centro de Saúde Dr. Benedito Carvalho.
Momento importante: Antonio vai ter alta. Foi um ano e meio – Em uma única rua de um povoado, praticamente todas
pelejando contra a hanseníase, desde que apareceram as as casas tinham alguém infectado – diz a enfermeira Elys
primeiras manchas e a orelha esquerda começou a inchar. Regina Martins.
Notou que tinha algo estranho, foi ao médico, fez exame de Em breve será um paciente a menos na estatística, pois
sangue, deu negativo – e o doutor mandou Antonio voltar Antonio deve receber alta ainda nesta segunda, assim que
para casa. Nem o rapaz e nem o médico, pelo jeito, sabiam a dra. Laís, a nova médica da Força Estadual de Saúde,
que o bacilo que causa a doença só aparece nos laudos chegar para seu primeiro dia no emprego novo, integrando
quando ela já está bem avançada. A de Antonio estava no a equipe que já fez mais de 21 mil atendimentos na cidade
começo, e desde então só piorou. em pouco mais de dois anos. Enquanto isso, o rapaz de
32 anos aguarda na sala mais arejada do posto, dotada

6
5

Seis meses depois, com a orelha enorme e as manchas


maiores em número e tamanho, o rapaz topou, no distante de duas grandes janelas permanentemente abertas e dois
povoado de Água Azul, com Pretinho, que há algum tempo já ventiladores permanentemente ligados. Hanseníase é
procurava o rapaz pelos interiores depois de ser informado doença que se transmite pelo ar, por meio de fala, tosse ou
da suspeita de sua hanseníase. Pretinho (cujo nome de ba- respiro – quanto mais ventilado o ambiente, menor o risco.
tismo é Alexandro Ferreira da Silva) é técnico de saúde do E pelo jeito funciona, pois Pretinho, depois de quase duas
O fim do desenxergar

São João do Caru


município, há quase 20 anos dedicado a encontrar e ajudar décadas em contato com infectados, poderia muito bem ter
a tratar os infectados pelo bacilo-de-hansen. Trabalha todos virado paciente ele também.
os dias na sala ao fundo do centro de saúde, a mesma onde – Graças a Deus nunca peguei! – celebra o agente de saúde.
agora Antonio espera receber alta e a mesma na qual re-
cebeu o diagnóstico definitivo um ano atrás do dr. Geraldo, Pretinho divide seu tempo entre a busca ativa pelos povoados
médico da Força Estadual de Saúde. Estava com umas 15 atrás de supostos infectados e as horas no centro de saúde,
manchas no corpo, a orelha direita começando a desfigurar acompanhando os pacientes, administrando as doses do me-
também e a sensibilidade dos pés e das mãos visivelmente dicamento e, na falta de médico ou enfermeira, recebendo
comprometida. as pessoas e identificando os primeiros sinais da doença. O
mais comum são as manchas avermelhadas que surgem pelo
O Brasil é o segundo país com maior incidência de hanse- corpo. E mais comum ainda é que os infectados, sobretudo
níase no mundo – doença antiquíssima, amaldiçoada desde nestes interiores do Maranhão, deixem as manchas se alastra-
tempos bíblicos, que viceja particularmente nos Trópicos, rem antes de pedir ajuda. Quando chegam ao posto de saúde
sob condições precárias de vida. O Maranhão é o líder no ou são encontrados por Pretinho, já estão na fase mais agres-
Nordeste: cerca de três mil casos notificados em 2017, mais siva, a multibacilar, muitas vezes incapazes de sentir dor, frio
São João do Caru 8
ou calor, caminhando para uma possível perda da visão ou a Agora curado, passados nove dias do último comprimido,
atrofia das mãos e dos pés. Antonio, quando começou o trata- Antonio está pensando em ficar por aqui, na cidade: arranjar
mento, estava já nessa fase. emprego novo, cuidar da saúde.

– Noventa por cento dos pacientes que temos é multibacilar É assim, de paciente em paciente, que a hanseníase aos
– informa Pretinho. poucos vai sendo debelada. No começo do século 21, o
número de casos no Maranhão era cinco vezes maior do que
Daí a importância das novas companheiras de sala que o
hoje. Ainda é alto, mas a queda de incidência nos últimos
agente ganhou um ano e meio atrás, a enfermeira Elys Regina
anos aponta para um bom prognóstico. A cura já existe – é
e a nutricionista Nataniele Viana, ambas da Força Estadual
só questão de encontrar as pessoas infectadas e tratá-las. O
de Saúde, que ao menos uma vez por semana passam o dia
Maranhão nunca esteve tão perto disso.
sob os dois ventiladores atendendo os pacientes. Vale lem-
brar que a hanseníase tem cura, mesmo nos estágios mais
avançados: o tratamento dura de seis a 12 meses e é feito à
base de comprimidos diários de manutenção e ainda uma
dose mensal de cinco comprimidos, que devem ser tomados
sempre na frente de um profissional de saúde. É a chamada

10
9

dose supervisionada, feita para garantir que o doente siga o


tratamento à risca.

Antes da chegada da Força, Pretinho costumava trabalhar


com outro agente de saúde, e mesmo assim era impossível
O fim do desenxergar

São João do Caru


acompanhar todos os pacientes, tamanha a demanda. Agora,
a cada três meses, as moças da Fesma montam plantão no
centro de saúde para fazer a avaliação de todos os que es-
tiverem em tratamento. O equipamento é simples, mas tre-
mendamente eficaz na hora de determinar se a pessoa está
com a sensibilidade comprometida: bastam uma caneta, um
fio dental, um chumaço de algodão, alguns pregos e uma
lamparina e com isso já é possível detectar se o paciente
tem ou não, por exemplo, sensibilidade ao calor, a objetos
pontiagudos e às cócegas.

Nesta manhã de segunda, enquanto aguarda a alta, Antonio


está exatamente se submetendo a todos esses procedimen-
tos. Mal vê a hora de se ver livre da doença. Faz um ano que
está sem trabalhar, morando com os pais, que impediram o
rapaz de ir para a roça enquanto estivesse sendo tratado.
Amapá do
Maranhão
IDHM: 0,520

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

12
POPULAÇÃO: 6.431 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 24,7% do total

OESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 182,63

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 58,5%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 45%

MORTALIDADE INFANTIL: 42,6 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Cozinhas Comunitárias; Feiras da Agricultura Familiar; Força
Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com Ciência; Kits de Irrigação;
Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais Saneamento; Mais
Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua Digna;
Programa Avança; Programa Brasil Alfabetizado; Programa de Aquisição de
Alimentos; Programa Nacional de Alimentação Escolar; Regularização Fundiária;
Sistecs; Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.
Açaí com farinha

Viu bandeira na varanda, pode parar que tem açaí. A ban-


deira é vermelha, meio que para lembrar a cor da fruta –
que é roxa, diga-se, mas quem costuma trafegar pela es-
trada entre Amapá do Maranhão e Carutapera não liga. Já
de longe reconhece o sinal: sabe que ali tem vinho de açaí
fresco, recém-batido, pronto para tomar ou levar.

– O caminhão do correio para toda hora. Compra sempre uns


dois, três litros – diz a dona Luzenir.

E, de fato, lá está o colosso amarelo parado no acostamen-


to, cujo motorista desce num salto da cabine para cruzar a
estrada e em menos de cinco minutos retornar ao veículo

14
com dois sacos transparentes na mão. Lanche garantido.
Aqui não tem frescura: embalagem de açaí é sacola plástica
mesmo, pois o que importa é o líquido que vem dentro, feito
com fruta da boa, produzida no mais novo estabelecimento
do povoado de Curtiçal – o Ponto do Açaí.

Amapá do Maranhão
É lugar novo, não conta nem dois meses. Mas, como se vê,
já tem clientela. Luzenir Lisboa e seu marido, Domingos, são
veteranos no ramo: vivem há anos de colher, bater e vender
açaí – que alguns lugares do Maranhão chamam de juçara –,
tanto que o povo que passa por ali já conhece. A diferença é
que antes a dona Luzenir fazia o vinho na cozinha de casa,
toda apertada, numa batedeira velha que já não estava pres-
tando mais. Agora tem batedeira de inox, balcão de atendi-
mento e até mesa para sentar e comer, já com o potinho de
farinha de puba à disposição do cliente. Sim, açaí por aqui se
come com farinha. Com açúcar, jamais.

– Eu acho que tira o gosto – opina Luzenir.


O fim do desenxergar 15

Amapá do Maranhão 16
A história que levou à criação do Ponto do Açaí teve início um “um cimentozinho”, como diz seu Domingos. De lá para cá,
ano e meio atrás, quando Domingos Barros da Silva come- não só aumentou o volume de farinha para vender como
çou a vender sua produção para o Programa de Aquisição de também os vizinhos ajudaram a complementar a renda. É um
Alimentos do governo estadual. Macaxeira, abóbora, maxixe, excelente negócio: seu Domingos empresta a casa de farinha
acerola, laranja, tudo que em sua roça se plantava passou a para os outros torrarem e, em troca, recebe quatro quilos de
ser vendido semanalmente na sede de Amapá do Maranhão, farinha por cada saco produzido (de 50 quilos cada).
com o objetivo de alimentar escolas, creches e hospitais.
Daí que, com o dinheiro do PAA e da farinha, seu Domingos
– Ele já foi a pessoa que mais vendeu pro PAA no municí- juntou tudo o que precisava para realizar o sonho de Luzenir.
pio – comenta Angelo Matias, da Secretaria de Estado de
– Isso aqui tudo é da força dele – orgulha-se a esposa.
Agricultura Familiar. Ao todo, são 14 pequenos produtores
que participam do programa. E ainda sobrou uns trocados para investir na produção pró-
pria de açaí. Cerca de três mil mudas de açaizeiro já estão
Pois é. Seu Domingos, além de passar um bocado de tempo
despontando suas folhas no quintal de casa, esperando o
subindo nos açaizeiros para colher a fruta, ainda arranjou
momento de serem replantadas em um terreno a sete quilô-
jeito se de dedicar ao roçado para garantir a venda para o
metros dali, depois que passarem as chuvas.
governo. Fora as horas que ele gasta cruzando e descruzan-

18
17

do a divisa entre o Maranhão e o Pará para comprar e re- – Quero plantar dez mil mudas – planeja Domingos.
vender açaí. Apesar de o povoado estar em plena Amazônia
maranhense, quase encostado no Pará, a safra é diferente O que é uma decisão crucial para quem pretende viver de
nos dois lugares: aqui, a palmeira frutifica nas chuvas, entre açaí: Amapá do Maranhão tem visto perder um bom naco
outubro e fevereiro; do lado de lá da divisa, na estiagem, por de floresta nos últimos anos, decorrente do avanço das
O fim do desenxergar

Amapá do Maranhão
volta de julho e agosto. pastagens – inclusive por parte dos próprios moradores do
povoado. Seu Domingos conta que o Curtiçal nasceu de um
– Quando acaba aqui, a gente compra do Pará. Quando acaba assentamento agrário, onde dezenas de famílias foram con-
lá, a gente manda daqui – sintetiza seu Domingos. templadas com lotes de terra. Ao invés de manter a floresta
de pé e tentar viver dela, o que quase todos fizeram por aqui
E ainda tem a farinha.
foi derrubá-la para investir em gado, que se acreditava mais
Quem viesse visitar o casal alguns meses atrás ia ver a casa lucrativo. Só descobriram o quanto era custoso viver de bois
de forno meio caída: o chão ainda de terra, o teto de palha quando a terra já estava toda devastada. E o açaí cada vez
de inajá e uma caixa d’água de plástico servindo de tanque mais raro.
para deixar a mandioca de molho (daí o fato de a farinha
– Não tem nem metade do que tinha aqui – argumenta a
de puba também ser chamada de “farinha d’água”). Com o
dona Luzenir. – Daqui a um tempo, quem não tiver plantio
incentivo do Sistema Integrado de Tecnologias Sociais, um
não vai ter pra vender.
dos quase 300 instalados na cidade, veio a chance de mudar
tudo: a mandioca lá no Curtiçal agora se hidrata em tanque Pois seu Domingos e dona Luzenir já se adiantaram: não vai
de azulejo, o teto é de telha de Brasilit e até o chão ganhou faltar açaí nem para vender nem para servir. Quem quiser,
já sabe: é só espiar a fachada e ver se a bandeira está fin-
cada lá. Placa na porta ainda não tem, mas não deve tardar:
“Ponto do Açaí”, bem bonito, cravado na parede lilás – que,
por sinal, está mais para a cor roxa do açaí do que a bandeira
vermelha. Mas quem se importa? Tendo açaí – e farinha para
acompanhar, sempre – todo o mundo fica feliz.

20
19
O fim do desenxergar

Amapá do Maranhão
Maria Luzenir
Silva Lisboa
Evanilde Sales
dos Santos

Centro Novo
do Maranhão
IDHM: 0,518

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

22
POPULAÇÃO: 17.622 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 68,6% do total

OESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 188,88

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 53,6%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 33,1%

MORTALIDADE INFANTIL: 36,1 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão Rural;
Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Cozinhas Comunitárias; Desenvolvimento da
Cadeira Produtiva do Artesanato e dos Trabalhos Manuais; Escola Digna; Feiras
da Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Fortalecimento
do Comércio Local; Juventude com Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/
Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa,
Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Odontomóveis; Programa Avança; Programa
Brasil Alfabetizado; Programa de Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de
Alimentação Escolar; Programa Primeira Água; Sistecs; Sistemas Simplificados de
Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.
Os porcos de Evanilde Com o dinheiro das vendas, já deu para comprar calçado
novo para as crianças irem à escola. Chinelo, agora, só em
casa. E ainda sobrou um tanto para os remédios e o incre-
mento do almoço:
Já vai fazer um ano que Neguinha e Pintada se mudaram
para a casa de Evanilde. O endereço: Quadra 40, de nome 22 – Já dá pra comprar comida pra mim e pra eles.
de Abril, Projeto de Assentamento São Francisco, a menos de “Eles”, no caso, são os porcos. Precisamente cinco: além das
cinco quilômetros de onde o rio Gurupi traça a divisa líquida duas fêmeas e de Pintado, o barrão (o macho reprodutor),
entre o Pará e o Maranhão. Tão logo chegaram, já ganha- na pocilga vivem ainda mais uma porca – comprada com a
ram casa nova: uma pocilga de três cômodos com parede de segunda parcela do incentivo governamental – e um macho
tijolo e teto de palha. E não tardaram em arranjar namorado. capado, nascido ali mesmo, “enjeitado”, como se diz.
Sim, o mesmo: o porco do seu Quincas, que com as duas
gerou 16 leitões. Dois a família comeu e o resto foi vendido. – Nasceu feinho o leitão, bem pequeno. Vou engordar pra
Exceto um, macho, filho de Pintada, que entrou para a família vender.
e acabou recebendo o nome da mãe: Pintado. Este também
Naquelas bandas, um porco desses custa 11 reais o quilo. E
não demorou a arranjar namorada. No caso, Neguinha.

24
faltam só cinco quilos para que o capado alcance os 45 míni-
Evanilde Sales dos Santos faz parte de uma das 240 famí- mos que se exige para a comercialização no mercado local. E
lias contempladas com o Sistema Integrado de Tecnologias tome mais uns 500 reais na conta de Evanilde.
Sociais em Centro Novo do Maranhão, município onde quase
A família suína também cresceu: Pintado e Neguinha já gera-
dois terços da população vive no campo, a imensa maioria
ram os primeiros descendentes, dez leitões. Pintada também
formada por pequenos produtores rurais. Quase todas as

Centro Novo do Maranhão


pariu os seus: quatro. Catorze bacorinhos agora passeiam no
famílias escolheram investir em hortas e aviários. Evanilde
quintal, engordando a olhos vistos, do mesmo modo como
inovou: quis porcos. E tem se saído muito bem com a escolha.
também engorda a renda de Evanilde e sua família. Já está
– Eu não tinha nada, nada, nada – ela diz. – Só essa roça de até dando para pensar num passo além.
arroz e milho, que dá esse tantinho aqui. Como vai vender?
– Meu sonho agora é construir minha casinha, que eu não
Até então, ela, o marido e os dois filhos viviam dos 300 e tenho.
poucos reais do Bolsa-Família e daquilo que conseguiam
O que ela tem é um casebre de madeira com telhado de
plantar no quinhão que lhes cabia dentro do terreno de
palha. Mas “casa” mesmo, por aqui, é morada de tijolo. E não
50 hectares repartido entre os pais e outros dois irmãos. Aí
é que a matéria-prima já está chegando?
chegou a primeira parcela do incentivo estadual: 1.400 reais
gastos com as duas porcas e a construção da pocilga, re- – A gente está comprando de pouquinho – diz Evanilde,
cuperados já na primeira barrigada de Neguinha e Pintada, toda sorridente, apontando para as pilhas de tijolos que se
cujos leitões foram vendidos a 100 reais cada um. acumulam no quintal, protegidas do sol por um telhado de
palha. Não por acaso, bem do lado da pocilga.
– Agora tem os bichinho pra vender! – comemora.
Centro Novo do Maranhão 26
Pedro do
Rosário
IDHM: 0,516

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

28
POPULAÇÃO: 22.732 habitantes

POPULAÇÃO RURAL:74% do total

OESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 154,00

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 64,9%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 37,9%

MORTALIDADE INFANTIL: 40,7 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Cozinhas Comunitárias; Escola Digna;
Feiras da Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão;
Fortalecimento do Comércio Local; Juventude com Ciência; Kits de Irrigação;
Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais Extensão Universitária;
Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão
Mais IDH; Mutirão Rua Digna; Odontomóveis; Programa Avança; Programa
Brasil Alfabetizado; Programa de Aquisição de Alimentos; Programa Nacional
de Alimentação Escolar; Programa Primeira Água; Regularização Fundiária;
Sistecs; Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água; Uniformes
Escolares.
É dia de feira

Não são nem oito da manhã e Ronivaldo já está no caminho


de casa. A feira vai até umas dez, mas Ronivaldo de Jesus
não tem mais nada para fazer aqui. Vendeu tudo. Todos os 11
frangos vivos que trouxe neste sábado, esgotados em menos
de duas horas pelo preço de 30 reais cada um. Ele já vendeu
outros 30 frangos nesta mesma feira e ainda tem mais uns
60 ciscando em casa, no povoado de Pensão, esperando
virar produto. São todos remanescentes dos 150 pintos que
comprou com a chegada do Sistec, o sistema de incentivo à
produção agrícola implantado pelo governo estadual. Com
o dinheiro, Ronivaldo poderia também ter mandado cons-
truir o galinheiro, mas preferiu ele mesmo fazê-lo: usou ripas

30
de paparaúba, telhado de pindoba e, para o rodapé, lançou
mão da taipa. Fez tudo sozinho, assim desse jeito, com uma
perna só – Ronivaldo perdeu o membro direito do joelho
para baixo em um acidente de moto. Hoje anda com uma
bengala adaptada: em uma ponta, um aro sustenta o joelho;

Pedro do Rosário
em outra, um aro menor serve para trocar a marcha da moto.
Sim, é de moto que ele vem trazer os frangos até o centro da
cidade. Dizem que anda como tivesse as duas pernas.

É a quarta vez que Ronivaldo vem participar da Feira de


Agricultura Familiar que, há cinco meses, vem sendo mon-
tada na entrada de Pedro de Rosário, bem no acostamen-
to da agora pavimentada MA–006. Quando aconteceu a
primeira edição, fazia pouco mais de um mês que os 42
quilômetros que ligam a cidade à BR-316 – rodovia que
conecta Belém, São Luís e Teresina – haviam terminado de
ser asfaltados. Desde então, não só ficou mais fácil a vida
para os moradores dos cerca de dez povoados no caminho
como também para os que todo sábado vêm comercializar
seus produtos.
O fim do desenxergar 31

dos Santos
Ronivaldo de Jesus

Pedro do Rosário 32
Pedro do Rosário 32
E não é só Ronivaldo e seus frangos que chegam mais rápido – Comprei também uma máquina de bater juçara – ela co-
ao centro de Pedro de Rosário. Elizabeth Sousa, outra pro- menta, ressaltando que antes tinha que esmagar no pilão os
dutora-comerciante, não leva nem dez minutos para fazer o frutos do juçaral que cresce na frente de casa.
trajeto entre o povoado da Quineira, a dois quilômetros da
E tem também o freezer, igualmente comprado com o dinhei-
sede, e o local da feira. Primeiro por conta do asfalto; segun-
ro dos frangos, maxixes e farinhas que vendeu, que usa para
do, por causa da moto que conseguiu comprar com o dinhei-
guardar as polpas congeladas de tudo quanto é fruta que sai
ro que ganhou vendendo tanto nas feiras quanto nos progra- vendendo pelas casas do povoado. Tem de manga, bacuri,
mas governamentais de compra de produtos da agricultura acerola, cupuaçu...
familiar. Duas fontes de renda que ela nem imaginava que
teria um dia. Antes, lavoura se plantava só para comer. Agora – Ainda não botei minha casa, mas este ano eu chego lá – ela
serve também para vender: tudo o que ela produz hoje tem diz, confiante.
venda garantida e vai se espalhando pelo Maranhão, virando Taí uma coisa na qual Josenilde de Jesus, na barraca ao lado,
merenda nas escolas e refeições em hospitais. Ela e mais os se adiantou. Pena que durou pouco.
22 produtores do município cadastrados nos programas, que
juntos superaram em cerca de 200% a meta prevista para um – Construí uma casa de tijolo grandona, de três quarto. Aí

34
33

ano de vendas. separei do homem, bagunçou tudo de novo. É a vida, né?

– Pedro do Rosário foi o município que mais produziu para Como todos ali, o dinheiro da casa de Josenilde também veio
o Programa de Aquisição de Alimentos em 2017 – informa da criação de frangos com apoio do governo e da venda de
alimentos. No caso dela, uma produção e tanto: só em 2017
Suellen Arruda, coordenadora da equipe da SAF.
lucrou 16 mil reais – uma boa parte gasta com a construção
O fim do desenxergar

Pedro do Rosário
Elizabeth vende de tudo: arroz, feijão, farinha, pimenta, abó- da casa e perdida com a separação.
bora, maxixe, cuxá e, sim, frango também, igualmente produ-
Mas a vida tem seus mistérios e hoje Josenilde já está de
zido com a ajuda do Sistec, como as aves de Ronivaldo.
casa nova, também lá na Quineira, conquistada por meio de
– Já botei três lotes de cem frango – ela diz. – Vendi todos. um programa do governo federal. Ela e sete de seus nove
filhos ali começarão vida nova, com tudo novo. Josenilde
Mas não neste sábado. Frango hoje não teve, mas teve todo está lá não faz três meses e já botou quatro canteiros. O de
o resto, que com poucas horas de feira já está perto de se alface, ela diz que está a coisa mais linda. O novo galinhei-
esgotar. Enquanto Ronivaldo sobe na moto para ir embora, ro também está avançado. E vai ser melhor que o da casa
Elizabeth já pensa em desmontar a barraca, praticamen- antiga: de alvenaria, não de taipa. Tão logo entre o dinheiro
te vazia: sobraram só um pacote de farinha, um de feijão e das vendas, tudo ali vai rebrotar, certamente mais viçoso do
dois pedaços de abóbora. O arroz torrado foi todo. O maxixe que antes, porque com gosto de renovação.
também. Já quem quiser tomar um suco de bacuri ou uma
– Quero plantar até nos óio do pau! – diz Josenilde, tomada
tigela de açaí (ou juçara, como se diz por aqui) vai ter que
de inabalável confiança.
passar no povoado da Quineira, pois é lá que Elizabeth está
investindo em outras frentes de negócio. Imagine só o que ela não vai ter para vender depois disso.
Cajari
IDHM: 0,523

ANO DE FUNDAÇÃO: 1948

36
POPULAÇÃO: 18.338 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 76,6% do total

OESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 136,39

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 68,8%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 28,1%

MORTALIDADE INFANTIL: 30 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Desenvolvimento da
Cadeira Produtiva do Artesanato e dos Trabalhos Manuais; Escola Digna; Feiras
da Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com
Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais
Extensão Universitária; Mais Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu
Maranhão; Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua Digna; Odontomóveis; Programa
Avança; Programa Brasil Alfabetizado; Programa de Aquisição de Alimentos;
Programa Nacional de Alimentação Escolar; Programa Primeira Água;
Regularização Fundiária; Sistecs; Sistemas Simplificados de Abastecimento de
Água; Quintais Produtivos; Uniformes Escolares.
Maria da Graça, o marido
Chico Doria e a filha Irlany
Cruzada contra o fumo

Era uma questão pessoal para Suzanne Martins. O que ela


não pôde fazer em casa, lá em São Luís, veio tentar em Cajari.

– Esse trabalho tem uma carga muito pessoal pra mim – diz.
E se emociona.

Suzanne é psicóloga especializada em dependência química


e trabalha na Força Estadual de Saúde. E tem uma mãe fu-
mante. Tudo que sabe – todos os dados, todos os argumen-
tos –, ela usou como modo de convencer a mãe a largar o
cigarro. Não conseguiu. Daí Cajari.

Nem bem chegou a esta cidade da Baixada Maranhense,

38
Suzanne tratou logo de montar um programa de combate ao
tabagismo. Está há um mês em campo e já tem 12 usuários
sob sua condução. Com todos, usou a mesma abordagem:
chegou devagarinho, visitando a casa, querendo conhecer os
hábitos, entender quando vem a vontade de fumar.

Cajari
– Eu tento descobrir qual é a relação do usuário com o ci-
garro – ela explica. – Quais são os hábitos que estimulam
o fumo, por exemplo, como os encontros com a turma do
baralho, a vontade de fumar depois do café…

E o mais importante: averiguar se a pessoa quer ou não parar


com as tragadas. Se não quiser, Suzanne já tem na manga
toda uma estratégia para redução de danos, como mudanças
na alimentação e estímulo ao exercício físico. Se a pessoa
quiser, então será o momento de sacar da bolsa o caderni-
nho em branco – na verdade um bloco de pedidos de exame
da Secretaria de Estado da Saúde com o verso das folhas
virado para cima – que servirá como registro diário do con-
sumo de tabaco.
Cajari 40
– É improvisado, mas serve para a pessoa começar a visuali- menos por enquanto. Domingo que vem vai ser a prova de
zar o problema – diz a psicóloga. fogo. E desafia a esposa:

Às vezes funciona, às vezes não. Tem gente que é regrada, – Vou comprar meia dúzia de cerveja pra ver se tu fuma. Vou
tem que gente não. A Maria, por exemplo, não é. E isso que te testar!
Suzanne recrutou até as filhas dela, Ingrid e Irlany, para
Maria se ri, um tanto nervosa, mas não diz nem que sim, nem
ajudá-la a preencher a agenda. Mas a mulher, talvez até
que não.
por autossabotagem, vivia esquecendo. Mudança de estra-
tégia: contar os cigarros que vão sobrando dentro da car- Quem responde é Irlany, a filha de dez anos do casal, recém-
teira. Funcionou: -chegada da escola
– Eu fumava quase duas carteiras por dia – diz Maria da – Tua mãe vai parar, né? – aproveita para perguntar Suzanne.
Graça Costa, que é dona de casa, moradora do centro da
cidade. – Hoje eu fumo só três: um de manhã, um de tarde e A filha nem pensa na hora de responder:
um de noite.
– Com certeza!
– E melhorou, dona Maria?

42
Suzanne se entusiasma. Não apenas com dona Maria, mas
41

– Rapaz, tô me sentindo muito melhor. Até parei de tossir! porque, de algum modo, se vê espelhada em Irlany – duas
filhas partilhando do mesmo desejo, o de ver a mãe parar
Pois é. Comprar os cigarros por unidade, e não a carteira de fumar. A mãe da psicóloga ainda não largou o vício, mas
toda, também ajudou. Assim como ajudou – e foi uma tre- ao menos o número de tragadas diárias já caiu um bocado.
menda ajuda – o estímulo do marido, Chico Doria, o mais
O fim do desenxergar

Cajari
novo ex-fumante da família. Chico é agente de saúde, e – As histórias que eu vou levando vão encorajando ela – diz
pegava até mal um profissional como ele ser viciado em ni- Suzanne.
cotina. Bastou Suzanne chegar na cidade, o homem já foi
Tudo depois de Cajari.
logo tomando vergonha na cara:

– Em vez dela perder tempo comigo, achei melhor ela perder


tempo com outro.

Chico já estava há dez dias sem fumar quando passamos por


Cajari. E com dez dias, veja só, já parou de acordar de madru-
gada com chiado no peito. Admite que às vezes dá vontade,
mas as táticas que introduziu para superar o vício têm, pelo
menos até agora, se mostrado infalíveis. Uma delas é não
deixar mais a carteira de cigarros em cima da tevê. Quando
acorda, só de não ver o maço lá, a vontade nem vem. O jogo
de buraco e a cerveja com os amigos ele também cortou. Ao
Serrano do
Maranhão
IDHM: 0,519

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

44
POPULAÇÃO: 10.940 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 61,3% do total

OESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 123,44

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 72%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 41,9%

MORTALIDADE INFANTIL: 32,2 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Construção de Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS); Cozinhas Comunitárias; Desenvolvimento da
Cadeira Produtiva do Artesanato e dos Trabalhos Manuais; Escola Digna; Feiras
da Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão; Juventude com
Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/Arca das Letras; Mais Asfalto; Mais
Saneamento; Mais Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH;
Mutirão Rua Digna; Odontomóveis; Programa Brasil Alfabetizado; Programa de
Aquisição de Alimentos; Programa Nacional de Alimentação Escolar; Programa
Primeira Água; Regularização Fundiária; Sistecs; Sistemas Simplificados de
Abastecimento de Água Uniformes Escolares.

Nathaliele Reis
Cordeiro
O boi vai brilhar

Em 1915, quando Serrano do Maranhão ainda era parte de


Cururupu, o povo lá do quilombo de Soledade decidiu criar
uma festa de boi. Outros bois nasceram, antes e depois, ali
nas reentrâncias do oeste maranhense, e criaram fama em
todo o estado pelo jeito de tocar o pandeiro com o dorso da
mão. Virou sotaque: costa-de-mão. Cururupu entrou para a
história como o berço desse sotaque, e de fato os maiores
bois desse tipo vêm de lá. Mas Serrano do Maranhão não
é mais Cururupu. Emancipou-se faz duas décadas e aquele
primeiro boi virou o único do município, dos mais antigos da
região, por cem anos escondido – mas não esquecido – nas
matas do litoral. Isso até 2016, quando o Bumba-meu-boi

46
União da Sociedade fez sua estreia em São Luís.

– O meu sonho era levar esse boi pra cidade – revela Nelci
de Almeida Pinto, atual presidente da Associação Cultural da
Comunidade Quilombola de Soledade e Adjacências, devida-
mente registrada em ata de criação no ano de 2012.

Serrano do Maranhão
E lá se foram os 45 integrantes do boi de Soledade brilhar
na capital. As índias na frente e atrás o batalhão, e no meio
deles Nelci, neto de um dos fundadores, brincante há mais
de 40 anos. Na voz, Denivaldo Piedade, puxador e com-
positor das mais lindas toadas. Depois voltaram no ano
seguinte – e brilharam de novo. Mas eram ainda brilhos
forasteiros, como sempre foram, bordados pelos artesãos
de Cururupu.

Tudo leva a crer que 2018 será o ano em que Serrano do


Maranhão vai declarar sua segunda emancipação de
Cururupu, essa agora a dos bordados. Trinta mulheres da
comunidade passaram o segundo semestre do ano an-
terior, todos os finais de semana, aprendendo a criar as
O fim do desenxergar 47

Denivaldo de Nazaré

Serrano do Maranhão 48
vestimentas que fazem os bois cintilarem pelas ruas e Pois é: além de aprender o novo ofício, elas ainda vão vender
praças do Maranhão. Foi um dos seis cursos que o Instituto as peças para a própria comunidade. Já que roupa de boi
de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (Iema) ofe- é algo que precisa ser comprado todo ano, que seja pelo
receu aos moradores do município, cinco deles em comuni- menos de gente daqui, não de Cururupu. E olha que um boi
dades quilombolas. Vale lembrar que Serrano do Maranhão como o de Soledade não é barato: só a roupa das oito índias
é o município mais negro do estado: 40% da população se do grupo – entre elas Nataniele – custou 4.200 reais. A ves-
declarou de cor preta no último censo. timenta de Denivaldo, o puxador, de longe a mais enfeita-
da, saiu por 1.500 reais. Tem gente na Soledade que investe
– Esse ano vamos fazer já com as vestimentas daqui – confia
pesado nas roupas: vende porco, farinha, carvão, até boi (o
Nelci. – A gente tá pedindo a Deus que elas firmem esse po-
bicho) já venderam. Mas a festa mesmo é patrocinada pelos
tencial delas.
oito sócios da União da Sociedade, que fazem a vaquinha
Nataniele Cordeiro, por exemplo, já está bem avançada na anual para garantir o brilho na capital.
costa de camisa que começou a bordar durante o curso. E
– Pra mim é mais pesado porque eles acham que eu tenho
mostra, cheia de orgulho: um pano de veludo vermelho, para
mais dinheiro, por ser o presidente – diz Nelci, cuja renda
se destacar sobre o calção preto, decorado com um ramo
vem toda da roça e da aposentadoria. – Se eu tivesse um

50
49

enorme rodeado de figuras semelhantes a estrelas que aqui


salário bom, eu não ia medir distância!
chamam de “salpico”. Detalhe: cada canutilho – são milhares
– é costurado a mão. Nada de cola. Se tem uma coisa que O bom é que parte do investimento se paga com o cachê das
não falta nas roupas do boi é enfeite – imagine o trabalho. E apresentações em São Luís. Mas, de todo modo, há que se
imagine o peso: ter o dinheiro para comprar e bordar os brilhos todos.
O fim do desenxergar

Serrano do Maranhão
– Tem camisa que pesa mais de quatro quilos – informa Nelci. – É um gasto, mas quando chega a festa é só alegria pra
gente – diz Nelci, já emendando o convite para vir a Soledade
– E é um forno! – emenda Nataniele.
no próximo São João ver o boi brilhar. – Vou te ligar, hein?
Daí que, durante o curso, sob a orientação de Gregória e
Nazaré – professoras da comunidade, mais experientes na
arte do bordado –, Nataniele e suas colegas tiveram de exer-
citar o coletivo, repartindo entre si as partes de cada vesti-
menta: umas fizeram as costas da camisa, outras a frente,
outras as mangas, outras cada perna da calça, e assim por
diante. Já virou jeito de fazer a coisa funcionar:

– Estamos querendo trabalhar em equipe – anuncia a moça. – É


uma experiência nova.

– E é bom porque é dinheiro, né? – acrescenta Nelci.


Governador
Newton Bello
IDHM: 0,521

ANO DE FUNDAÇÃO: 1997

52
POPULAÇÃO: 11.921 habitantes

POPULAÇÃO RURAL: 64% do total

OESTE
RENDA PER CAPITA: R$ 190,15

POPULAÇÃO ABAIXO DA LINHA DE POBREZA: 54,7%

TAXA DE ANALFABETISMO (ACIMA DE 25 ANOS): 47,7%

MORTALIDADE INFANTIL: 35,9 entre mil nascidos vivos

AÇÕES DO MAIS IDH: Água para Todos; Assistência Técnica em Extensão


Rural; Bolsa Escola; Carreta da Mulher; Cozinhas Comunitárias; Escola Digna;
Feiras da Agricultura Familiar; Força Estadual de Saúde do Maranhão;
Juventude com Ciência; Kits de Irrigação; Leitura no Campo/ Arca das
Letras; Mais Asfalto; Mais Extensão Universitária; Mais Saneamento; Mais
Sementes; Minha Casa, Meu Maranhão; Mutirão Mais IDH; Mutirão Rua Digna;
Odontomóveis; Programa Avança; Programa de Aquisição de Alimentos;
Programa Nacional de Alimentação Escolar; Programa Primeira Água;
Regularização Fundiária; Sim, Eu Posso!; Sistecs; Sistemas Simplificados de
Abastecimento de Água; Uniformes Escolares.
Casa, escola, poço e praça

Primeiro chegou a escola. O povo do futebol não gostou


muito: iam ter de construir o edifício bem em cima do campo
de bola, que era o único lugar plano do povoado de Santa
Luzia. Fogoió, o líder comunitário, teve de intervir:

– No futuro, o filho de vocês vai dizer: ‘Meu pai preferiu o


campo de futebol em vez da escola’. É isso que vocês querem?

Funcionou. O gramado perdeu um terço do que tinha (embora


tenha continuado razoavelmente grande), e em seu lugar
brotou a Escola Municipal São José – em apenas dez dias.
Era um sistema novo, modular, criado com base em painéis
de aço galvanizado. Foi a primeira Escola Digna no Maranhão

54
construída nesses moldes.

– Rapaz, foi ligeiro… – lembra Deuzimar Lima da Silva (o


Fogoió), presidente da associação local.

E ainda bem que foi, pois já ninguém ali na Santa Luzia

Governador Newton Bello


aguentava mais ensinar e estudar no casebre amarelo
atrás da igreja, onde turmas de várias séries diferentes as-
sistiam juntas às aulas em uma sala apertada que nem
banheiro tinha. Agora os cerca de 50 alunos matriculados
– da pré-escola à quinta série, mais a turma do Sim, Eu
Posso! – se distribuem em duas salas de aula (de manhã e
de tarde), desfrutam de dois banheiros e bebem da água
que mina em poço próprio, construído com um dos pro-
gramas de saneamento do estado. E ainda comem a me-
renda preparada em uma cozinha de verdade, feita com
ingredientes frescos ali mesmo do povoado – produzidos
pelos lavradores locais e vendidos ao estado por meio do
Programa de Aquisição de Alimentos.

Fogoió é só orgulho:
– A escola mais bonita do município tá sendo essa aí. outro nos fundos e enfeitou a casa inteira com requintes de
decoradora. Na cozinha, abusou do vermelho: nas cortinas,
Santa Luzia não tem nem 20 anos de idade, mas eram
nos panos de prato, na toalha de mesa, nos tapetinhos, na
séculos de desenvolvimento os que separavam a comu-
cobertura das cadeiras. Para o banheiro, preferiu uma paleta
nidade dos requisitos mínimos de bem-estar a que todo
focada no amarelo. É o banheiro “das visitas”, segundo ela:
ser humano tem direito. Até não muito tempo atrás, cerca
de 200 pessoas viviam em casas de taipa ou de palha de – Quando vem gente, é tão chato a pessoa chegar na casa da
babaçu, onde água era sempre um problema – ou porque gente e a gente não ter o que oferecer…
era de menos, tirada de um cacimbão nem sempre cheio,
Pois agora já tem. E daqui a pouco vai ter também almoço
ou porque era demais. E demais no lugar errado: no tempo
em fogão a lenha, que é o que falta para a casa da dona da
das chuvas, o chão das casas embrejava todo, a ponto de
Luz ficar pronta. No alpendre de trás, do lado de onde reluz
se criar poças no meio da sala.
uma mesa enorme de madeira dada pelo filho, a proprietária
– O sofrimento era tão grande que a gente acordava de noite da casa mais bonita de Santa Luzia já está perto de terminar
com água minando debaixo da rede – lembra Fogoió. aquele que será o arremate de seu projeto de decoração. E
ela jura que, depois disso, vai parar com as reformas.
Pois o sofrimento diminuiu seis meses depois da chegada da

56
55

escola, quando 46 famílias receberam a chave da casa nova. – Agora vou comer meu dinheirinho – ela diz, levando a mão
Santa Luzia foi a primeira comunidade escolhida pelo comitê à boca, de brilho nos olhos.
local do Mais IDH a receber as quase cem moradias do Minha
E logo mais, veja só, também Santa Luzia vai ser toda re-
Casa, Meu Maranhão construídas no município. De quebra,
paginada: o asfalto enfim vai encostar na soleira da porta
veio junto um poço novo e todo um sistema de saneamento,
da dona da Luz e das outras dezenas de moradores cujas
O fim do desenxergar

Governador Newton Bello


fazendo jorrar a água não mais do chão, mas das duchas e
casas se enfileiram em torno da praça central do povoado.
torneiras.
“Praça” é modo de dizer, já que é onde ficam a igreja e a
Que o diga Maria da Luz Macedo, que nem bem tinha acaba- maior parte das moradias, mas não é o melhor nome para
do de construir uma casa de taipa quando o governo chegou definir o quadrilátero tomado por mato e areia que recebe
oferecendo casa de tijolo. Fazer o quê? Teve que botar abaixo os que chegam. Quando por fim a Rua Digna – já aprovada –
a casa nova. E ela adorou a ideia: estiver concluída, aí sim, Santa Luzia vai ter uma praça para
chamar de sua. Vai ter praça, poço, escola, casario de tijolo e
– No ano que levantei aquela casa, fui obrigada a derrubar.
até banheiro com ducha e projeto de decoração. A dignida-
Mas ganhei uma melhor. Essa é diferente. É pro resto da
de, aqui, tem vários nomes.
minha vida.
Fogoió ainda custa a acreditar:
Diante dessa constatação, a dona da Luz investiu tudo o que
pôde na casa onde hoje mora com o marido, o irmão, o pai – De repente veio tanta coisa… Caiu do céu, né?
e a neta: com o dinheiro da aposentadoria, aumentou mais
um quarto, ampliou a cozinha, pôs um alpendre na fachada e
Governador Newton Bello 58
Este livro foi diagramado com o tipo Fira Sans
e impresso em novembro de 2018.

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