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EUDES HONORATO

JERUSALEM JONES
Caubóis, máquinas do tempo, zumbis… Nas páginas
deste livro a imaginação não precisa ficar presa a um
único tema. Ela pode viajar dentro de si mesma.

O DESERTO TE CHAMA
“Jerusalem
Resolvi dar um tom extraordinário às tramas de

Eudes Honorato • JERUSALEM JONES • O DESERTO TE CHAMA


Jones, que iriam do terror à fantasia, com
referências à cultura pop que absorvi durante os anos.
Para os que o estão conhecendo agora, só posso
dizer que esperem o inesperado em suas aventuras.
São histórias, a princípio, de faroeste, mas podem se
desdobrar em horror, pastelão, ficção-científica, seriado
japonês, quem sabe até em uma boa comédia romântica
(se bem que não tentei isso ainda).
Jerusalem pode viajar no tempo, é quase um zumbi, luta
contra bandidos comuns — de vez em quando, ele mesmo
é um bandido comum —, encontra personagens famosos,
versões diferentes de si mesmo, é um pistoleiro, caçador
de recompensas, vagabundo. Às vezes é até mesmo herói,
se for absolutamente necessário e do seu interesse.

ilustração da capa Juarez Ricci


JERUSALEM JONES
Edição e projeto gráfico Martin Fernando
Revisão de texto Flávia Maíra e Martin Fernando

Universidade de São Paulo


Reitor João Grandino Rodas
Vice-reitor Hélio Nogueira da Cruz

Escola de Comunicações e Artes


Diretora Margarida Maria Krohling Kunsch
Vice-diretor Eduardo Henrique Soares Monteiro

Departamento de Jornalismo e Editoração


Chefe Mayara Rodrigues Gomes
Suplente Ciro Marcondes Filho

Com-Arte Editora Laboratório


Professor responsável Plinio Martins Filho

Gestão | 2º semestre 2013


Administrativo Caroline da Cruz Alias, Ilana Fridlin,
Martin Fernando, Natália Gaio Lopes

Comercial Alissa Queiroz, Ana Paula Rizzo, André Saretto,


João Vieira, Leonardo Uliam, Lilian Yuri Ishida,
Tamires Cordeiro, Thaís Gaal Rupeika, Thaís Valim

Editorial Adam Novaes, Anaïs Fernandes, Anita Porfirio,


Beatriz Bevilacqua, Camila Baumhak, Camila Cysneiros,
Felipe Itai, Gabriela Cavallari, Gabriela Ubrig Tonelli,
Hugo Otávio Cruz Reis, Giovanna Marcondes,
Luciane Yasawa, Luisa Granato, Luisa Lozano,
Olívia Lima, Rafael Bacarolo, Rogério Cantelli,
Stella Mesquita, Thaís Afonso
Eudes Honorato

JERUSALEM JONES

o deserto te chama
contos

ilustração
da capa
Juarez Ricci
Copyright © 2013 by Eudes Honorato

Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

H774j Honorato, Eudes


Jerusalem Jones : o deserto te chama : contos / Eudes
Honorato ;
ilustração da capa Juarez Ricci - São Paulo : Com-Arte,
2014.
138 p.

isbn 978-85-7166-151-6

1. Conto – Brasil – Século 21 I. Título

cdd 21.ed. – 869.936

Com-Arte editora laboratório


Rua Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443 - bloco 2, sala 10
05508-900 - Cidade Universitária - São Paulo - SP
(11) 3091-4016
www.editoracomarte.com

2014

Printed in Brazil
prefácio Jerusalem Jones sempre esteve lá 07

o deserto te chama

1. O ouro e o tolo 13
2. Por cinco pontas malditas 17
interlúdio Protocolo Beta 77 21
3. Tempestade 25
4. Meu nome é Jerusalem Jones 29
5. Salvação 33
6. Vivo ou morto 41
***
7. Demônio interior 47
8. Crise no Velho Oeste 53
9. Xerife Wayne 59
10. Encontro com Black Goddard 65
11. O monstro de ferro 71
intervalo Textos rejeitados 75
12. O homem mascarado 79
13. Nasce Jerusalem Jones 83
14. O bom, o mal e os outros 89
15. Os mortos que não tinham túmulo 93
16. Luz, câmera, ação 99
17. A insólita aventura de Jack Triplecolt 105
18. Caledonian Circus 109
19. O Natal de Jerusalem 113
20. O velho 117
21. Epifania 123
22. Gothic City 127
• prefácio •

jerusalem jones
sempre esteve lá

QUANDO EU ERA CRIANÇA ainda, meu pai comprava aqueles


livrinhos de faroeste de bolso, bem baratinhos, de leitura
rápida e fácil, que infestavam as bancas de jornal, para
quando ele estivesse no ônibus, indo ao trabalho. Eu nem
mesmo sabia ler, apenas admirava as capas. Ao lado de
minha mãe, eu via filmes de caubói, com Giuliano Gemma
ou Terence Hill, que ela parecia gostar mais do que eu,
mesmo que não admitisse.
Com o tempo, eu mesmo me tornei admirador do
gênero, fosse por assistir Clint Eastwood nas telas ou por
ler quadrinhos como os de Tex, o caubói criado por italia-
nos. Quando meu irmão começou a demonstrar talento
para o desenho, sugeri que fizéssemos nossa própria his-
tória em quadrinhos. Qual foi o tema escolhido? Sim, fa-
roeste. Apesar de não ser um fã inveterado, daqueles que
sabem o nome de todos os grandes astros dos filmes de
Velho Oeste, ele esteve sempre ali, permeando minha vida.
Ao surgirem os blogs na internet, acabei fazendo um
para mim, o Rapadura Açucarada. Tratando sobre quadri-
nhos, mas sem se limitar a isso, o RA foi mudando de foco
e comecei a usá-lo para fazer algo que nunca pensei antes:
escrever poesias. No início, eram execradas pelos leitores,

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mas isso não me incomodava. Continuei, mesmo com as
duras críticas. Em seguida, comecei a escrever memórias,
estas mais bem aceitas que os poemas.
Não demorou muito para que eu ganhasse confiança e
começasse a escrever contos. Por meses postei histórias
variadas, explorando diversos gêneros, como ficção-
-científica, terror e fantasia, mas sem nenhum persona-
gem fixo. Quando estava, certo dia, tentando encontrar
inspiração para um novo conto, pensei que poderia fazer
um que se passasse no Velho Oeste. Desde a adolescên-
cia, com a história que meu irmão desenhou, não me
aventurava a escrever esse gênero. Era isso mesmo que
eu iria fazer, restava agora encontrar um nome para o
personagem central.
Eu nem mesmo tinha uma história, mas precisava de
um nome. Em frente ao computador, pensava em várias
opções, e me veio à mente Jericho Jones. Soava bem, mas
fiz uma busca rápida na internet e descobri que era o
nome de uma banda obscura qualquer. Desisti. Não queria
que o nome fosse conhecido. Continuei a pensar, e percebi
que Israel tinha outros nomes interessantes para caubóis
surreais. Então, seguindo a linha de pensamento, fui de
Jericho (ou Jericó, cidade bíblica) para Jerusalém, e assim
nasceu Jerusalem Jones.
Nasceu no episódio que abre este livro, “O Ouro e o
Tolo”. E, acredite, era para ter ficado ali mesmo, nunca
mais aparecido, como os personagens de tantas outras
histórias que escrevi. Mas Jerusalem Jones já existia antes
mesmo que eu o criasse, ele apenas surgiu, e não iria
embora assim, sem mais nem menos.
Jerusalem voltou nos textos publicados no R A, que
agora compõem este livro, com exceção do último, escrito
exclusivamente para esta edição. E suas histórias, assim
como seu nome, não poderiam ser comuns. Confesso que
a mais normal das aventuras do pistoleiro foi a primeira,
quando escrevi sem a intenção de que ele retornasse.

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Resolvi dar um tom extraordinário a suas tramas, que
iriam do terror à fantasia, com referências à cultura pop
que absorvi durante todos esses anos. Sua personalidade
também precisava ser definida, e JJ — como acabei por
apelidá-lo — não seria um herói, tampouco um vilão, mas
o típico anti-herói. Não é um cara cruel, mas também não
é tão bonzinho assim. Seu humor é seco, assim como seu
jeito de ser. Jones faz piadas, mas não é exatamente en-
graçado. Apesar de sua aparência não ser descrita com
detalhes no livro, eu sei como ele é. Alguns amigos tenta-
ram desenhar o pistoleiro, mas nenhum chegou perto de
como o vejo. Jerusalem Jones está na casa dos quarenta
anos, é magro, mas não esquelético. Veste sempre seu
capote, eternamente empoeirado, mesmo quando limpo.
A cicatriz no pescoço, que ganhou em um dos episódios,
chama a atenção, mas ele não se importa. Tem olhos
atentos, com nariz e lábios finos. O chapéu esconde ca-
belos negros, constantemente desgrenhados, como se
nunca os penteasse. JJ é notado onde quer que chegue,
querendo ou não.
Para os que o estão conhecendo agora, só posso dizer
que esperem o inesperado em suas aventuras. São histó-
rias, a princípio, de faroeste, mas podem se desdobrar
em horror, pastelão, ficção-científica, seriado japonês,
quem sabe até em uma boa comédia romântica (se bem
que não tentei isso ainda). Jerusalem Jones pode viajar no
tempo, é quase um zumbi, luta contra bandidos comuns
— de vez em quando, ele mesmo é um bandido comum —,
encontra personagens famosos, versões diferentes de si
mesmo, é um pistoleiro, caçador de recompensas, vaga-
bundo. Às vezes é até mesmo herói, se for absolutamente
necessário e do seu interesse.
Talvez Jerusalem viva em um Velho Oeste que nunca
existiu, ou talvez nós é que ainda não chegamos a conhecê-
-lo. Quem sabe seja apenas um universo paralelo, e eu
tenha que agradecer aos universos paralelos, afinal, o que

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faria sem eles? Porém, na maioria das vezes, o Velho
Oeste é apenas algo em segundo ou terceiro plano, sendo
que as aventuras do pistoleiro podem tomar qualquer
forma, fazendo com que o leitor esqueça que está acom-
panhando um personagem de faroeste.
Assim, acompanhe as aventuras de JJ, sabendo que, ao
adentrar em seu mundo, não haverá mais volta. Jerusalem
Jones cavalga sempre em direção ao perigo, e ri na cara da
morte, mesmo quando a piada é sobre ele mesmo.

Eudes Honorato,
Rio de Janeiro, 2013.

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o deserto te chama
• episódio 1 •

o ouro e o tolo
o deserto te chama primeira parte

AQUELES ERAM DIAS ESTRANHOS . No entanto, Jerusalem


Jones estava feliz, pois ganhara “honestamente” todo o
ouro de Billy Sem Pescoço. O que ele podia fazer se o
outro era tão bronco, que achava que jogar cartas era sim-
plesmente uma diversão como outra qualquer? Jones real-
mente ficou chateado quando Billy tentou atirar nele, e
ficou mais chateado ainda por ter que abrir uma saída de
ar em sua cabeça. Sério, chateado mesmo. Afinal, eles
eram amigos há bastante tempo. Foi Jerusalem quem lhe
dera o carinhoso apelido de Sem Pescoço, que Billy acei-
tou prontamente, depois de os dois rolarem no chão numa
briga que deve ter durado umas três horas. Jones admite
que levou uma bela surra, mas era tarde demais, Billy conti-
nuou Sem Pescoço.
Jerusalem não era homem de guardar rancores, e não
foi por isso que jogara cartas de forma é… hmmm… alterna-
tiva com Billy. Não. É porque ele era desonesto mesmo.
Estava em seu sangue. E, ao ver o sujeito com aquela monta-
nha de ouro, propôs logo um joguinho de pôquer. Diacho!
Ele nem mesmo sabia que Billy tinha se tornado mineiro.
Mas, para sua felicidade, ele se tornara sim. E continuava o
mesmo bronco de sempre…

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Billy repetia suas aventuras em busca de ouro, as quais
devia engarrafar e vender como xarope contra insônia.
Seu entusiasmo em contar as histórias ia diminuindo à
medida que perdia mais e mais do ouro que tinha consigo.
Até que finalmente as histórias acabaram, junto com o
ouro. Foi aí que ele se lembrou de que tinha uma arma.
Péssima ideia. Adeus, Billy.
Quando Jerusalem saiu para a rua, com o sol forte ba-
tendo no rosto, ajeitou o chapéu e foi em direção a seu
cavalo para guardar a pequena sacola de ouro. Foi nessa
hora que viu as iniciais P.S. bordadas nela, e não entendeu,
nem fez questão de entender. Mas deveria. Quando ia
montar, um homem — vestido bem até demais para o estilo
decadente de Cashville — passou e entrou no bar de onde
Jones acabara de sair. Jerusalem percebeu que o sujeito
pedia informações e que o barman apontava para Billy,
morto na mesa, e para ele, Jerusalem, em resposta. Jones
suspirou. Pensou em montar e desaparecer, mas sentiu um
frio na espinha ao ver que o homem já estava praticamente
em sua frente.
— O senhor está com algo que me pertence, sr. Jones.
— Qual seria sua graça?
— Peter Shepherd — disse o homem apoiando a mão
sobre o cabo do revólver mais reluzente que Jerusalem já
vira em sua vida.
Por alguns segundos ele amaldiçoou o Sem Pescoço
em sua mente. Mineiro coisa nenhuma. Apenas um ladrão-
zinho de merda. E ainda inventando histórias enfadonhas
sobre sua vida nas minas. Deveria ser escritor, o desgra-
çado. Se bem que seria um fracasso de vendas. O que
fazer? O que fazer?
O homem tinha um olhar congelante. Como diabos o
Sem Pescoço tinha conseguido roubar esse cara? Isso
tudo era uma confirmação de que os dias andavam muito
estranhos, como se as coisas estivessem fora do lugar.
Jerusalem estendeu a sacola, com todo aquele ouro que

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nunca vira em toda vida. Para alguns gananciosos talvez
fosse pouco, mas para ele poderia significar o fim de uma
vida desonesta. Bom, também não vamos exagerar.
— Eu ganhei isso num jogo justo, senhor — explicou
Jones numa desculpa de última hora.
— Sim, ganhou — disse o homem sem mover um músculo
da face, mas mesmo assim Jerusalem sentiu o sarcasmo.
Quando Shepherd tomou a pequena sacola com ouro,
logo a soltou e deixou cair. Em seg uida tombou para
frente, quase em cima de Jones, que se desviou. Uma faca
enorme estava cravada em suas costas, e ele estrebuchava
no chão. Em pé, atrás dele, estava um índio. Jerusalem
lembrava de tê-lo visto perambulando pela cidade, e pare-
cia bem inofensivo. Pelo menos até agora.
O índio estava como que em transe olhando o corpo de
Shepherd, que dava suas últimas estrebuchadas. Quando,
por fim, este parou de se mover, o índio pegou a sacola do
chão, segurando a mão de Jones para entregar-lhe o ouro.
— Homem do revólver reluzente estuprou e depois
matou filha de Pássaro Triste. Homem feio ajudou a dis-
trair homem de revólver reluzente, então ouro seu. Pássaro
Triste agra… — mas Pássaro Triste não terminou a frase,
os homens do xerife não estavam nem aí para vinganças
pessoais e caíram em cima dele, prendendo-o.
Homem feio. Homem feio é o cacete! Não sou tão feio
assim, pensava consigo Jerusalem.
Quando ia guardar novamente a sacola no alforje,
Jerusalem percebeu que havia algo errado. As iniciais
haviam sumido. O saco era o mesmo, claro que era. Abriu-o,
sem pensar duas vezes, meteu a mão e puxou… pedras.
Nada mais que pedras. Num canto, olhando para Jones,
um velho bêbado ria sem parar. Ainda rindo, ele apontou
para trás do saloon. Jerusalem foi olhar, e só viu a poeira
dos cavalos do índio e dos supostos ajudantes do xerife.
Já iam longe.

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— Fica felisshh! Eu esshhhcutei que elesshhh iam pegar
era vochê, massshhh o almofadinha chegou e elessh
mudaru o prano. HAHAHAHAHAHAHA! — e, gargalhando, o
bêbado se mijou.
Odeio gente desonesta, murmurou Jerusalem. E montou
em seu cavalo.

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• episódio 2 •

por cinco
pontas malditas
o deserto te chama segunda parte

JERUSALEM JONES estava num daqueles dias em que nada


dava certo para ele. Nada mesmo. Depois de ter perdido
todo aquele ouro para um maldito pele-vermelha, o que
ele menos queria na vida era ver outro índio pela frente.
Provavelmente atiraria no primeiro que aparecesse, só
para fazer a raiva passar.
Era pensando nisso que Jerusalem cavalgava para
Terence Falls, ao norte. A noite já estava avançada, e ele
não ia querer atravessar o deserto no escuro. Estava na
hora de apear, acender uma fogueira, comer alguma coisa
e dormir. Ia fazer isso, quando viu um clarão mais adiante.
Um defeito que Jerusalem Jones detesta em si mesmo é a
sua maldita curiosidade. Invariavelmente ela o coloca em
alguma enrascada. Mas ele precisava descobrir o que era
a luz lá na frente. Então, montou no cavalo, disparando
naquela direção.
Enquanto se aproximava, viu que a coisa não era nada
agradável. Logo percebeu que uma caravana havia sido
atacada. O clarão vinha do fogo das carroças incendiadas.
Na escuridão da noite, o espetáculo era assustadoramente
hipnótico. Porém, chegando mais perto, a cena era muito
mais aterradora: corpos espalhados para todo lado. Jones

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desceu de seu cavalo, passou com cuidado entre uma das
carroças atingidas e começou a andar entre a tragédia.
Sua mente gananciosa só pensava em encontrar alguma
coisa de valor que tivesse ficado para trás.
Enquanto examinava os corpos, sentindo o calor do
fogo que não parecia diminuir nunca, percebeu que as
carroças em chamas faziam um círculo perfeito em volta
dos cadáveres. Poderia ser uma manobra para se proteger
do ataque, mas alguma coisa não estava certa. Ele só não
entendia o quê. Foi quando percebeu que as pessoas no
chão, todas mortas, também estavam dispostas em uma
ordem. Aquilo fez um arrepio percorrer todo seu corpo.
Nem mesmo a forma brutal com que foram assassinadas,
algumas até mesmo decapitadas, fez o pistoleiro sentir
tanto incômodo ou, como ele não queria admitir, medo.
Parece que estava na hora de Jerusalem Jones deixar o
local, pois de valor, ali, não havia nada. Também seria bom
cavalgar mais um pouco e descansar em outro lugar.
Estava para sair, quando o luar fez reluzir algo dourado
embaixo do corpo de uma menininha loira, que fora dego-
lada. Ele se abaixou e puxou com força. Era um cordão
com um pingente estranho. Uma estrela de cinco pontas,
com inscrições em uma língua que com certeza ele, quase
analfabeto, não conhecia. No reverso havia desenhos bi-
zarros que, mesmo minúsculos, via-se que pareciam ter
saído do inferno. Jerusalem escutou um uivo de lobo bem
distante, o que era comum naquelas paragens, mesmo
assim outro arrepio percorreu seu corpo.
Bom, o que importava era que o cordão era pesado, e
de ouro. Jerusalem não queria saber como aquelas pessoas
tinham sido massacradas. Provavelmente foi algum bando
de saqueadores sádicos. Índios não foram, pois não havia
uma flecha sequer por ali. Se foram ladrões, é estranho
terem deixado o cordão para trás. E também terem estri-
pado e degolado aquelas pessoas que pareciam não fazer
mal a uma mosca.

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Jones levantou, olhou mais uma vez para a estrela,
depois para os corpos espalhados no chão, e levou um
susto. Chegou mesmo a engasgar com a própria saliva.
Tossindo, ele saiu do meio das carroças em chamas, sen-
tindo o vento da noite ficar mais frio. Olhou ao redor e viu
uma elevação. Correu na direção dela e subiu até seu topo.
De lá dava para ver os corpos, todos dentro do círculo fla-
mejante. Jerusalem tremia. Os corpos. Ele levantou a es-
trela e, fechando um olho, a sobrepôs à imagem dos
corpos. Sim, eles estavam dispostos no mesmo formato da
estrela de ouro.
Foi quando Jerusalem Jones ouviu o grito mais aterra-
dor de toda sua vida. Como se mil demônios gritassem
numa única voz, como se as portas do inferno se abrissem,
um grito que rasgava a alma em tiras. Jerusalem se dese-
quilibrou e rolou da elevação, caindo lá embaixo, aos pés
de alguém. Ele viu pequenos pés descalços e brancos
como neve. Olhou para cima, era a menina da qual tirara o
cordão. A menina loira, com seu vestidinho branco. Não
estava mais degolada, nem mesmo suja de sangue. Parecia
preparada para ser posta na cama. Olhava para o pistolei-
ro caído no chão, com seus olhinhos de criança e um sor-
riso incômodo. Estendia uma das mãozinhas e apontava
para a estrela. Ela a queria de volta.
Jerusalem não sabia o que fazer. Sua ganância supera-
va seu medo. Medo esse que não era pouco. A menina
apontou novamente para a estrela, fazendo sinal de que a
queria de volta. Seu sorriso desaparecera. Jones hesitava
em entregar. Sentado no chão, começou a se arrastar para
trás, para longe dela, devagar. A menina avançava calma-
mente em sua direção. Seu rosto se transformara numa
máscara de fúria contida. Ela apontou mais uma vez para a
estrela, indicando que a devolvesse. Sem perceber, Jerusalem
fez que não com a cabeça. Nessa hora a menina deu um
grito gutural ensurdecedor, e pulou em cima de Jones, que

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segurou a estrela com força e acertou a cabeça da criança
com uma das pontas.
Ela caiu e começou a entrar em convulsões violentas,
soltando gritos terríveis. O pistoleiro tapou os ouvidos,
pois parecia que iriam ensurdecê-lo. Quando terminou, o
que restou foi um monte de estrume seco no lugar da me-
nininha. Jerusalem quase riu daquilo. Estrume seco e fu-
megante. Ele meteu a mão naquilo, e puxou a estrela de
ouro. Quando olhou na direção do massacre, as carroças
estavam apagadas, restando muito pouco delas.
Ele não havia notado, mas o dia estava amanhecendo.
Jerusalem Jones sentia algo estranho dentro de si, e no
que acabou fazendo depois, nem ele mesmo acreditou.
Conseguiu o máximo de pedras que podia, e deu um en-
terro cristão àquelas pessoas. Armou cruzes e as fincou
em cada um dos montes de pedra. Treze pessoas no total,
contando o estrume que um dia fora a menininha. Sentia
como se a esquisita estrela de ouro fosse seu pagamento
por aquilo. Quase se sentia honesto.
Ele não sabia o que tinha acontecido ali, queria apenas
chegar o mais rápido possível à cidade, para se livrar da-
quele cordão pelo melhor preço que pudesse. De preferên-
cia antes da meia-noite.

20
• interlúdio •

protocolo beta 77

ESTAVA ESCURO e ainda era o meio da tarde. A chuva cairia


em breve. Eu ouvia alguns trovões ao longe e tudo aquilo
tornava o dia mais sinistro. Olhava para o deserto adiante, a
perder de vista, e sentia na alma uma angústia da qual não
conseguia identificar a causa, afinal sabia tudo o que preci-
sava fazer. Nada do que acontecera fora por acaso. Tudo
tinha sido planejado. Até mesmo os erros do projeto não
foram surpresa. Todos sabiam o que estava em jogo, e re-
solveram arriscar, confiando que os benefícios poderiam
ser infinitos para a humanidade… Nesse ponto eu quase
solto uma gargalhada: “benefícios para a humanidade”.
Todos estavam ávidos de enriquecer tanto quanto eu.
Um clarão atravessa as nuvens negras, muito longe
ainda, e segundos depois vem a resposta de um trovão,
como um mau presságio. Escuto o som a que me acostu-
mei nos últimos dias, vindo do freezer. É Tanya. Não tive
coragem de fazer mal a ela. Quando tudo saiu errado, con-
segui fazer aquilo para o que havia sido treinado, como
nas simulações. Injetei a única dose de antídoto em mim
mesmo, e matei todos os outros antes que o prazo che-
gasse ao fim. Mas não consegui eliminar Tanya. Tanya, de
quem agora escuto os grunhidos vindos do freezer.

21
Tomo um gole do café frio que tenho comigo e volto a
encostar a cabeça na vidraça que dá para o deserto. Se o
código do cumprimento da missão não for enviado no
horário previsto, os militares virão com força total para
cá. Provavelmente bombardearão o laboratório, e só
depois farão perguntas. Eu já devia ter fugido daqui. Mas
não consigo deixar Tanya. Não consigo. Uma ironia e
tanto, já que nosso projeto não se importava com os hu-
manos envolvidos. Os cientistas não sabiam que eles
mesmos eram as cobaias, e que as pesquisas com animais
eram apenas uma atividade para distraí-los. A droga foi
desenvolvida para agir nos seres humanos. Disso eles
sabiam, só não imaginavam que seria testada neles. Que
bando de ingênuos. Foi muito bom estourar a cabeça do
Paul Bryan depois daquelas piadas infames sobre meu…
ah, melhor esquecer isso. Esse assunto está morto e en-
terrado. Ou quase.
Sou despertado para a realidade por um grito mais
agudo de Tanya, seguido por gorgolejos horríveis. É sinal
de que está se alimentando. Acho que já consumiu quase
toda a carne que deixei no freezer com ela. Se tudo aqui
fosse ilegal, seria uma boa maneira de eliminar as provas
do crime. Mas foi patrocinado pelo governo, e as expe-
riências tinham um objetivo prático, pelo menos para o
exército. Eu aceitei porque, além da fama e fortuna, eles
disseram que haveria aplicações humanitárias também.
Não sei se acreditei, ou se apenas quis acreditar. Mas
exceto pelo caso de Tanya, lá no freezer, tudo valeu a
pena. Aprendi coisas que não aprenderia em cem anos.
Mas tudo tem seu preço, aqui não seria diferente. Não sou
tão inocente assim.
Preciso ir embora, informar aos militares que limpem a
área. A chuva começa a cair pesada, as gotas parecem
bombas quando atingem o chão. O cheiro de terra molha-
da atravessa as paredes. Preciso ver Tanya, uma última
vez. Sei que talvez não seja uma visão agradável, mas devo

22
isso a ela, por tudo pelo que passamos. Tenho que acabar
com seu sofrimento e partir. As tentativas que fiz de re-
produzir o antídoto foram em vão. Não há salvação para a
mulher que amo.
Melhor deixar de protelar e fazer a ligação para os milita-
res, pôr fim na tragédia de Tanya e fugir deste cemitério no
meio do deserto. Pego meu celular e teclo um número secre-
to. Alguém com voz impessoal atende. Eu digo apenas
“Protocolo Beta 77”, e ouço um “entendido” do outro lado da
linha. Desligo o aparelho e levo um susto quando vejo que o
laboratório está escurecendo, e não é por causa do tempo lá
fora. O local está sendo lacrado. Eu não sabia desse procedi-
mento. Malditos! Fui estúpido em achar que deixariam
alguma testemunha. Sou tão descartável para eles quanto
todos os outros.
O laboratório é vedado completamente. Logo tudo será
mandado pelos ares. Deve ser questão de minutos até que os
bombardeiros cheguem. Engraçado, estou tentando lembrar
algo importante. Nossa! É isso! O freezer! Existe material
explosivo dentro do freezer, mantido a baixa temperatura.
Foi utilizado em algumas experiências de outro bloco. Acho
que poderei usá-los para escapar. Hã… a porta do freezer…
está aberta?! Desde quando? Merda! Há um temporizador na
porta, estava marcado para abrir automaticamente…
Sinto uma dor imensa na perna direita, e tudo escurece.

Que… hã… que sonho estranho. Tanya, querida, você


está aí? Está escuro, e frio… Que cheiro horroroso! Onde
estou? Não é a cama, estou congelando! Ah, um interruptor.
Enfim, luz. Hã… Tanya… onde estamos? Que há com você?
Por que estamos no freezer? O que você está comendo?
Isso é uma perna, Tanya? Oh, meu deus… minhaaaaaaaaaa
aahhhhhhHHHHHHHHH!!!

Ao longe, uma bola de fogo se forma no deserto em


meio à tempestade que cai.

23
• episódio 3 •

tempestade
o deserto te chama terceira parte

JERUSALEM JONES ACORDOU, como se saísse de um poço de


areia movediça. Olhou para o lado, na cama, e fez uma
careta. Era sempre assim quando ele bebia demais, acaba-
va no quarto com uma mulher que poderia muito bem sair
no tapa com um urso e vencer.
Procurou sair de fininho, mas o barulho do ronco era
tão alto que nem foi preciso muito esforço. Tremia ao
imaginar o que teria feito para que ela dormisse com
tanta satisfação e com aquele sorriso, onde faltavam
vários dentes, estampado na cara. Jerusalem estava no
bordel que sempre frequentava e, se acabara com aquilo
lá na cama, devia ser mais uma peça de Betina, a dona do
estabelecimento. Ela adorava fazer esse tipo de coisa
com o pistoleiro.
Quando desceu as escadas, as poucas garotas já acor-
dadas ficaram cochichando entre si, dando risinhos. Jones
procurou não dar atenção e foi ao bar pedir alguma bebida
para curar a ressaca. Betina estava servindo e apenas
sorriu para Jerusalem, como quem diz que ele mereceu o
que passou. Depois de beber mandou pendurar, coisa com
que Betina já estava acostumada, e saiu.

25
O dinheiro da estrela de ouro não deu para muita
coisa, mas Jerusalem tinha alg uns negócios em Duel
Valley. Ele queria apenas resolvê-los, pegar a grana, e se
deitar com a mulher mais gostosa que conseguisse para
esquecer o episódio dessa noite. Montou em seu cavalo,
indo para o norte a toda velocidade, com a cabeça explo-
dindo devido à ressaca.
Viajaria sem paradas, de dia mesmo, pois os últimos
acontecimentos, lá no deserto, ainda estavam frescos em
sua memória. Rezava, sabe-se lá para quem, suplicando
que nada de estranho acontecesse desta vez. Mas seus pe-
didos não seriam atendidos, uma tempestade já estava se
formando, e era das grandes. Ele tinha de se apressar. Não
bastava a dor de cabeça, ficar ensopado seria mais uma
coisa para irritá-lo.
Jerusalem Jones cavalgava, sentindo a tempestade se
aproximar. No entanto, os relâmpagos pareciam emitir
sons estranhíssimos, como o de metal sendo raspado por
metal, e céu adquiria um tom avermelhado. Chegou a
pensar se não seria coisa de sua imaginação, ou simples-
mente da ressaca ainda não curada.
Olhou para trás, e a cidade de onde acabara de sair
tinha um céu límpido. Isso quase o fez cair do cavalo.
Jones começou a pensar se não atraía esse tipo de coisa.
Lembrou de quando era garoto e presenciava fatos inex-
plicáveis. Uma vez, sua mãe saiu correndo para fazer o
parto de Patty O’Malley, com ele junto. Quando chegaram
lá, era tarde demais, a criança já havia nascido. Ou melhor,
algo havia nascido. Aos pés de Joe O’Malley estava uma
criatura que parecia vinda do próprio inferno, com um an-
cinho fincado no meio do peito. Jerusalem vomitou tanto
nesse dia que quase colocou as tripas para fora. Algum
tempo depois, Patty e Joe se suicidaram.
Um relâmpago mais forte fez com que o cavalo de
Jones quase o derrubasse. Ele achou que o melhor a fazer
seria parar por ali e procurar abrigo. Logo encontrou uma

26
caverna não muito funda, onde entrou com seu cavalo. A
chuva começou a cair forte, parecia que o mundo ganhava
outro dilúvio. Foi quando Jerusalem escutou um estrondo.
Olhou para fora e viu, ao longe, uma bola de fogo se for-
mando no deserto em meio à tempestade que caía.
Era uma explosão, obviamente, mas uma que o pisto-
leiro nunca tinha visto. A chuva foi diminuindo, e a sua
curiosidade aumentando. Logo se pôs a cavalgar na direção
de onde avistara a luz. Jerusalem se sentia estranhamente
vivo. Cavalgava com rapidez e logo pôde ver escombros de
algo que, ele tinha certeza, não era daquelas bandas.
Quando se aproximou, um homem com roupas incomuns
veio em sua direção usando algo como bengala, pois lhe
faltava uma perna. Aliás, ele havia feito um torniquete
precário nela. Jones, vendo o homem naquele estado, sabia
que não precisava temê-lo. Este chegou mais perto e
começou a falar como louco:
— A explosão… o laboratório… a tempestade… Criaram
um vórtice temporal! Em que ano será que estou… Em que
ano estou? Você é um caubói? Estou no Velho Oeste? A
tempestade criou um vórtice temporal e a explosão me
lançou para o passado, junto com tudo mais. Eu consegui
escapar… consegui escapar dela… dela…
— Hmmm… “dela” quem, meu camarada? — perguntou
Jerusalem, sem ter certeza se queria mesmo saber.
Então o homem apontou para adiante, dizendo:
— T-Tanya!
O pistoleiro viu uma mulher, com sangue na boca e
roupas semelhantes a do homem sem perna, parada a
alguns metros deles. Dava para perceber que não era uma
pessoa comum. Jerusalem lembrou do bebê dos O’Malley,
e seu estômago embrulhou.
Ela respirava ofegante, parecia estar tomando uma de-
cisão. A mulher olhava para eles e para Terence Falls, que
na verdade nem podia ser vista dali, mas era a direção

27
correta. Tanya cheirou o ar, soltou uns grunhidos horren-
dos, e começou a correr para lá.
— O que é aquilo, o que ela está fazendo? — perguntou
Jones ao estranho.
— E-Ela… está com… cof, cof… ela está com fome…! — e
o homem desabou na lama. Parecia ter morrido pela perda
de sangue.
Jerusalem observou a mulher correndo na direção da
cidade como nunca vira nada correr. Provavelmente era
mais rápida que seu cavalo. A chuva já havia parado por
completo. Olhou para a perna do estranho, e entendeu
como ele a perdera. Imaginou também o que iria aconte-
cer no povoado. Foi nessa hora que Jerusalem Jones sentiu
o que devia fazer, e fez. Esporou seu cavalo e saiu galopan-
do a toda, na direção contrária da cidade.

28
• episódio 4 •

meu nome é
jerusalem jones
o deserto te chama quarta parte

JERUSALEM JONES estava lavando o rosto à beira de um


rio e sua mente começou a vaguear para o passado, para
quando ainda era garoto. Lembrou da vez em que per-
guntou ao pai por que diabos ele escolhera esse nome,
“Jerusalem”. Shamus respirou fundo, estava sentado à
mesa, descansando depois de trabalhar na construção de
uma nova ferrovia. Ganhava uma miséria, mas era o que
tinha para sustentar o filho e a mulher. Suspirou fundo
mais uma vez. Shamus McMurray Jones tinha essa mania.
Como habitualmente isso acontecia logo após uma per-
gunta, Jerusalem suspeitava que ele estivesse apenas ga-
nhando tempo.
“Meu filho”, começou, “quando você nasceu foi um ver-
dadeiro milagre. Sua mãe e eu nem esperávamos mais ter
filho, porque a gente vinha tentando há muito tempo e nada
de nascer nosso herdeiro. Ou mesmo herdeira, eu não era
exigente. Então, numa noite, antes da sua mãe e eu trep…
nos deitarmos para fazer amor — como já te expliquei antes,
aquela história da abelhinha — eu fiz uma promessa para
Deus. Na minha promessa eu disse que se a gente tivesse
um bebê, eu daria a ele o nome da Terra Santa, Jerusalém.

29
“No dia seguinte, quando eu fui trabalhar, um homem
que eu nunca vi na cidade começou a me acompanhar. Ele
tinha uma roupa bonita, branca, um revólver reluzente,
parecia de prata. Eu não entendia como a roupa dele con-
seguia ser tão branquinha nesse lugar tão poeirento. Eu
quase perguntei que sabão que ele usava pra deixar a
roupa com aquele branco radiante. Ele foi puxando con-
versa e, do nada, ele disse que a Beth tava prenha. Eu saltei
pro lado e agarrei o colarinho dele, perguntando logo o
que diabos ele tava querendo dizer com aquilo. Daí ele se-
gurou minha mão e disse para eu ficar calmo, que minhas
preces iam ser atendidas e eu ia ganhar um garoto forte e
sadio. E que o nome dele seria Jer usalem. Jer usalem
McMurray Jones.
“Quando ele falou aquilo eu quase caí para trás. O
troço devia ser algum tipo de coisa divina, sei lá. Um anjo,
querubim, ou outra coisa dessas que o padre Caffey falava
na igreja. Só sei que depois disso eu prestei mais atenção
no que ele dizia. Ele disse que meu filho ia ser grande e
que eu tinha escolhido bem o nome dele. Que ele ia ser
lembrado pelos seus feitos, e os Jones iam se orgulhar de
serem lembrados por ele. E depois de dizer isso, ele tirou
aquele chapéu dele, branco que nem neve, fez um cumpri-
mento, eu senti o sol me ofuscar, e ele sumiu. Nove meses
depois você nasceu.”
Jerusalem olhou para o pai, deu uma fungada, e ficou
em silêncio alguns segundos. Tomou um gole de seu café,
que havia esfriado enquanto ele escutava a história.
Shamus olhava para Jones com uma cara engraçada, e
então o menino reclamou: “pai, fala sério, poxa!”. Shamus
deu uma gargalhada, daquelas que só ele sabia dar, bateu
na perna, e respondeu:
“Tá certo, tá certo, você é danado de esperto, garoto.
Você é meu filho mesmo! Pra dizer a verdade, quando você
nasceu, sua mãe queria te chamar de Jericho. Eu disse que
tudo bem. Ela ainda não podia levantar para ir ao cartório

30
comigo, então eu fui te registrar. Só que no caminho eu
parei para dar a notícia para os amigos, e conversa vai,
conversa vem, eu tomei umas e outras e cheguei no cartó-
rio, digamos, num estado meio cambaleante” — e, dizendo
isso, gargalhou de novo, batendo na perna. “Então, eu…
como vou dizer, eu esqueci o nome que sua mãe falou. Eu
só sabia que começava com J, mais nada.
“Eu esperei para ser o último. Deixava todo mundo
passar para poder lembrar o raio do seu nome, mas não
conseguia. O tabelião me chamou, e eu fui, sem saber que
nome que eu ia te dar. Para tentar a sorte, eu perguntei
qual era o nome dele, do tabelião. Ele disse que era David.
Eu fiz uma cara feia, que acho que ele percebeu. Mas aí eu
pensei: ‘David?! Rei dos Judeus?! Cidade Santa?! Jerusalém!’.
Era esse o nome que a Beth falou. Eu tinha toda certeza do
mundo. E, depois de um pequeno arroto, eu disse: ‘Jerusalem
McMurray Jones, pode escrever aí’.
“Quando cheguei em casa, ainda sob efeito da mardita,
sua mãe, que te carregava no colo, te colocou no berço
com cuidado. Depois, mesmo não estando muito bem, ela
jogou quase tudo que havia na casa em cima de mim.
Minha sorte é que a gente sempre teve pouca coisa. Com o
tempo ela me perdoou, mas só te chama de Jerry até hoje,
como você bem sabe. Eu prefiro Jerusalem Jones, acabou
ficando bonitão, né não, meu filho?”
O pistoleiro sorriu, afinal era impossível levar seu pai a
sério. Ele era um homem honesto e trabalhador, que gos-
tava de tomar umas de vez em quando. Nunca fez mal a
ninguém. Jerusalem enxugou o rosto e se viu refletido nas
águas que corriam para Terence Falls, cidade que ele dera
as costas depois que aquela aberração saiu correndo.
Aquela… Tanya.
Jones pensava nisto há dois dias. Para desencargo de
consciência, quando passou por Duel Valley relatou o caso
ao xerife que, é claro, riu na sua cara. Jerusalem não era
muito digno de crédito por aquelas bandas, ainda mais

31
contando uma história daquelas. Quem iria acreditar em
explosões após tempestades esquisitas, e em uma mulher
que comeu a perna de um estranho? Quem iria acreditar
que ela corria mais que seu cavalo? (Jones percebeu que,
pelo menos essa parte, deveria ter omitido).
Nesses dois dias ele só pensava em Betina e nas garo-
tas do bordel, as únicas pessoas que valiam alguma coisa
naquela cidade inteira. Jerusalem podia não ter muita
consciência, entretanto sabia o que era amizade. Mas o
que fazer?
Jones lembrou das palavras que o estranho da lorota
de seu pai havia dito, que ele seria lembrado pelos seus
feitos. O pistoleiro sorriu ao recordar do pai, e de como ele
era bom com histórias. Sua mãe que o diga. Porém Jerusalem
sabia que o que seu pai contara era um desejo genuíno.
Mas ele não nascera para ser herói. O pistoleiro bufou,
meio puto consigo mesmo, montou em seu cavalo, e dispa-
rou para Terence Falls. Ele precisava saber como estavam
Betina e as garotas. Elas eram sacanas, mas pelo menos
eram no bom sentido.

Sem Jerusalem perceber, alguém observou sua partida.

32
• episódio 5 •

salvação
o deserto te chama quinta parte

JERUSALEM JONES seguia para Terence Falls. Relembrando


agora, tudo parecia apenas um sonho ruim. Aquele homem
com roupas esquisitas, sem uma das pernas, saindo dos
escombros de uma construção que nunca estivera ali. E
aquela mulher de aspecto demoníaco e olhar faminto, que
deixou os dois numa velocidade que Jerusalem nunca vira
um ser humano correr. Pelas marcas de dentes no que res-
tava da perna do estranho, Jerusalem logo deduziu: aquela
louca comia gente. O pistoleiro parecia sentir em suas en-
tranhas que tinha acontecido o pior no povoado. Ou vai
ver ele estava com problemas intestinais e não sabia. Mas
foi com essas dúvidas na cabeça que resolveu voltar para
ver se estava tudo bem com Betina e as meninas do bordel.
Há algum tempo ele percebia que vinha sendo seguido.
Resolveu descobrir quem era o intrometido. Deu um tiro
para assustá-lo e se escondeu atrás de uma rocha proemi-
nente. Quando viu o sujeito passando, guardou as armas.
Era apenas Traseiro Pelado. Ele sorriu para si mesmo e
lembrou de como detestava índios, mas para Traseiro
Pelado abria uma exceção. Era quase um amigo. Recordava
de como lhe dera esse apelido, assim que o conheceu. O
índio estava com os fundilhos da calça rasgados, sem mais

33
nada por baixo. Jerusalem, na hora, cunhou o apelido que
o outro tanto detestava. O pistoleiro saiu de seu esconde-
rijo e emparelhou com o pele-vermelha:
— Então era você, Traseiro Pelado? Quer morrer, seu
desgraçado?
— Hã? Já te falei JJ, é Búfalo Pequeno! Será que você
nunca vai esquecer esse maldito apelido? — Jones gostava
de ver como Traseiro Pelado falava melhor que muito
branco que ele conhecia.
— Você sabe que é com carinho… hahahaha! E aí, que
faz me seguindo? Alguém te contratou pra me matar com
seus peidos?
— Nada. Eu apenas vi você saindo da cidade e resolvi
te seguir. Senti seu espírito pesado, e achei que talvez
pudesse ser de ajuda.
Outra coisa que Búfalo Pequeno tinha de peculiar, ele
achava ser um tipo de feiticeiro, e estava sempre vendo
“espíritos pesados” por toda parte. Quando bebia fazia a
dança da chuva, que terminava com alguém lhe jogando
um balde de água na cabeça. No fundo o pessoal gostava
dele, e era tudo uma brincadeira inofensiva, fora que só
assim ele tomava banho.
— Vai começar com isso de xamã, Traseiro? Sabe que
não acredito e, mesmo se acreditasse, não acho que seria
competente o bastante para ser um deles.
— Pode rir, JJ, mas sinto que o Grande Espírito me
compeliu a seguir seus passos por algum bom motivo.
— Dinheiro emprestado?
— Cinco dólares e não te perturbo mais — e os dois
caíram na gargalhada.
Jerusalem contou tudo o que acontecera e os motivos
de estar voltando a Terence Falls. Traseiro Pelado ouvia
sem interromper, e ao final suspirou, tentando dar uma de
sábio indígena:
— Meu avô, um feiticeiro poderoso de nossa tribo, me
contou já ter visto algo semelhante. Os mortos-sem-túmulo.

34
Disse que os viu atacar e que escapou por pouco. Sempre
que contava a história ele repetia o feitiço que tinha usado
para fugir. Nessas horas sempre entrava em transe, como
se voltasse àquele dia.
— Então você acredita nisso tudo?
— Eu sou índio, Jones, já vi coisas muito piores.
Nesse momento estavam chegando ao local onde o
pistoleiro vira o homem sem uma das pernas cair morto.
Não se espantou por não haver mais sinal de nada, nem do
homem, nem dos escombros da instalação. Mas, ao passar
bem onde tinha deixado o cadáver, uma marca no chão, o
contorno de um corpo, deixava claro que alguém estivera
ali. Búfalo Pequeno agitou os amuletos que trazia no pes-
coço, espantando os maus espíritos.
Passaram o resto do caminho calados, como se não
soubessem muito bem o que dizer. E foi assim que entra-
ram na cidade. Até que Búfalo Pequeno quebrou o silêncio:
— Cadê todo mundo, JJ?
— Não faço a mínima ideia, Trasei…
— Búfalo Pequeno!
Era o meio da tarde e não havia viva alma em lugar
alg um. Casas com janelas e por tas aber tas, o saloon
abandonado, e não havia cavalos, nenhum deles. Era um
silêncio assustador. O vento trouxe de repente um cheiro
de carne podre que fez Jerusalem e Búfalo Pequeno senti-
rem náuseas.
— Que diabos é isso, JJ? Que cheiro desgraçado é esse?
Jones foi na direção da igreja, que ficava logo adiante.
O cheiro parecia vir de lá. Búfalo Pequeno o seg uiu.
Quando os dois saltaram dos cavalos, estes relincharam,
empinaram, e se puseram em disparada. A dupla ficou sem
entender, mas não podia culpar os animais, aquele cheiro
era insuportável.
A ig reja estava aber ta. Jones e Búfalo sacaram as
armas e foram entrando devagar, atentos para qualquer
surpresa. Quando puderam ver o interior do recinto, logo

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se arrependeram. No altar, sentada em uma cadeira,
estava Tanya, como se fosse uma rainha. Espalhadas pela
igreja, várias pessoas da cidade, tão monstruosas quanto
a mulher. Mas isso não era tudo. O cheiro não vinha
deles, mas da carne humana que ocupava todo o lugar.
Pedaços de cadáveres apodreciam pelos cantos, era como
uma despensa, e Tanya e os seus seguidores eram os que
se deleitavam com aquele banquete macabro.
Os dois se seguravam para não vomitar nem fazer ba-
rulho. Mesmo que aquelas coisas só se preocupassem em
comer, sem prestar atenção em mais nada, era melhor não
abusar. Na penumbra, Jerusalem conseguiu identificar
Betina, umas duas garotas do bordel e uns três moradores
da cidade. Provavelmente os últimos sobreviventes, e a
última refeição daquela horda. Era necessário, pelo menos,
salvar Betina. Mas como?
Jerusalem Jones puxou Búfalo Pequeno para longe da
igreja e disse:
— Acho que essas pessoas aí dentro não tem mais sal-
vação, a não ser as que ainda são, digamos, normais.
Devem estar sendo guardadas para quando o estoque dos
corpos espalhados pela igreja acabar. Mas eu sei como
tirá-las daí.
— Jones, acho que não vamos conseguir, você viu aquilo
lá? Parece o inferno. Aquelas coisas são muitas, e nós
somos só dois.
— Exato, vamos diminuir essa diferença. Sei onde tem
explosivo suficiente para acabar com todos eles.
Jerusalem Jones levou Búfalo Pequeno até a delegacia,
onde procurou as bananas de dinamite que precisava, e
delineou seu plano:
— Eu vou explodir a parede esquerda, onde Betina e as
outras pessoas estão. Vou tentar causar o maior estrago
possível, sem atingi-las. Abro um buraco e entro. Você fica
na porta onde estávamos, com estas dez dinamites aqui, e
acende o pavio principal assim que nos separarmos. Mas

36
você só joga depois de contar até cinco após ouvir a minha
explosão. Até cinco, entendeu? Isso deve ser suficiente
para eu entrar e tirar o pessoal. Parecem estar meio
fracos, mas vão conseguir andar. Quando eu sair, suas di-
namites vão mandar a igreja e os que estiverem lá dentro
pelos ares. Certo?
Búfalo Pequeno acenou que sim, mas com a garganta
seca. Seguiram para a igreja, logo saberiam se o plano
daria certo ou não. O índio se postou na porta, e Jerusalem
correu para a parede esquerda da igreja. Búfalo Pequeno o
viu sumir e acendeu o pavio principal. Agora era esperar a
explosão, contar até cinco, e jogar.
Jerusalem tentou lembrar onde vira Betina e os outros,
calculando aproximadamente em que lugar deveria explo-
dir. Betina era a primeira pelo modo como estavam perfi-
lados. Jones cortou o pavio de apenas uma dinamite, o
mais curto possível, e acendeu.
Búfalo Pequeno estava preocupado. Sua mão tremia e
começava a escorregar. O fogo já havia passado do pavio
principal para os pavios individuais. Ele trocou a dinamite
de mão, suava muito. Búfalo estava atrás da porta e era
apenas empurrá-la e arremessar o explosivo.
O pistoleiro colocou a dinamite no chão e se distan-
ciou o suficiente. A explosão foi quase imediata. Abriu um
rombo na lateral da igreja. Ele entrou correndo com a
fumaça atrapalhando um pouco. Lá dentro as criaturas se
alvoroçaram confusas. Ele avançou sem pensar muito
nelas. Viu Betina encostada na parede e os outros logo
atrás dela. Pareciam não ter se dado conta da explosão.
— VAMOS! VAMOS!!! VENHAM POR AQUI!
Búfalo Pequeno começou a contar.
Um…
Jerusalem Jones sabia que a algazarra daquelas coisas
iria durar pouco, e que logo Búfalo Pequeno mandaria
todos pelos ares. Mas ninguém se mexia, que inferno!
Ninguém parecia querer ser salvo. Que se danem todos.

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Dois…
Ele agarrou Betina pelo vestido.
Três…
Notou que Tanya já se refazia da confusão.
Quatro…
Arrastou Betina pelo buraco afora, sentindo uma mão
agarrar sua camisa por trás.
Cinco…
Ele conseguiu empurrar Tanya para dentro da igreja e
puxar Betina, correndo o mais rápido possível, se afastan-
do da explosão…
BUUUUUUUUMMMMMMMMMMMMMMMMMM!!!!
Jerusalem protegeu Betina com o corpo. Pedaços de
madeira voaram para todos os lados, pedaços de pessoas
vieram junto. Jones viu Búfalo Pequeno correndo em sua
direção. Tudo dera certo.
— Betina, conseguimos!
Quando viu a mulher, percebeu um vazio estranho em
seu olhar. Ela parecia normal, mas os olhos estavam
mortos. Jerusalem notou uma mordida profunda no pulso
da mulher, muito infeccionado.
— Fome, Jones, estou com fome… — disse Betina, avan-
çando em seu pescoço.
Por instinto, Jerusalem sacou a arma e atirou várias
vezes. Mas a mulher não morria, continuava avançando.
De longe, Búfalo Pequeno gritou:
— Na cabeça! Atira na cabeça!
E foi o que Jerusalem Jones fez. Betina estrebuchou, e caiu.
— Como você sabia disso?
— Eu não sabia, simplesmente deduzi que fosse uma
opção viável.
— Diacho, detesto quando você fala difícil!
Jerusalem levou a mão ao pescoço. Betina havia conse-
guido cravar os dentes, mesmo que não profundamente.
Sentiu a área coçar, precisava urgentemente de um curativo.
— Será que todos estavam na igreja, Jones?

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— Eu não sei dizer, nem vou me dar ao trabalho de veri-
ficar — respondeu, olhando para a capela. — Mas, apenas
para ter certeza, pega mais um bocado de dinamite e
acaba com essa porcaria.
Depois de destroçar o que restava da igreja, Jones e
Búfalo enterraram Betina.
— Afinal, o que aconteceu aqui, Traseiro?
— Pelo que você me contou, aquela tal de Tanya não
apenas comia gente, mas passava sua maldição para os
que sobreviviam. Ela parecia estar formando um tipo de
exército. Acho que sua amiga, Betina, estava prestes a
fazer parte dele, se é que você me entende.
Jerusalem Jones coçou o ferimento no pescoço, onde
havia feito um curativo apressado.
— Ela te mordeu, não foi?
— É, acho que estou com um problema do tamanho de
um trem, Traseiro Pelado.

39
• episódio 6 •

vivo ou morto
o deserto te chama parte final

JERUSALEM JONES NÃO ACREDITAVA que um dia isso aconte-


ceria, mas sim, ele estava casando. Apenas Jenny Eckhart
conseguiu mudar a cabeça do pistoleiro. Os dois se conhe-
ciam desde a infância, e foram namorados por muito
tempo, até que Jerusalem decidiu não criar mais raízes.
Com a morte banal do pai, ele resolveu virar um pária, um
nômade sem destino. Jenny aceitou tudo muito bem,
depois de dar-lhe um belo soco na cara. E ainda fez um
discurso sobre compromissos, responsabilidades, infanti-
lidades e tudo mais. Parecia que estava concorrendo a
algum cargo político. Jones simplesmente montou em seu
cavalo dizendo que iria viver a vida, e Jenny viu a poeira
levar aquele desgraçado que ela tanto amava.
Depois de passar por muita coisa na vida, o pistoleiro
acabou reencontrando a mulher que nunca tinha deixado
de amar. Jenny era agora viúva de um tenente morto na
Guerra Civil. Jerusalem dava graças a Deus por ela não ter
tido filhos, pois não estava a fim de cuidar da cria dos
outros. Para que Jenny o aceitasse de volta, teve de pedi-la
em casamento, e ela aceitou se tornar a sra. Jones, Jenny
Jones. Jerusalem brincou que poderiam batizar o filho que
tivessem de James, assim seria jota pra tudo quanto é lado.

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A cerimônia foi simples, na igreja da cidade em que
Jenny morava, onde Jerusalem iria se estabelecer levando
uma vida pacífica. No altar estavam os pais da noiva e a
mãe de Jones, a qual ele fora buscar. Parecia cansada, mas
feliz. Os poucos convidados davam ao evento certa impor-
tância que JJ nunca esperou.
O casamento começou, e o padre fez tudo como manda
o figurino, dizendo por fim que os declarava marido e
mulher. Jerusalem abraçou Jenny, aproximando sua boca
dos lábios dela. Fechou os olhos e tascou um beijo de recém-
-casado na recém-esposa, sentindo como eram macios seus
lábios, saborosos, por assim dizer. De repente o pistoleiro
escutou gritos horrorizados. Quando abriu os olhos, viu
que arrancara um pedaço da boca da noiva. Sentiu o sabor
da carne… e gostou. Jenny desmaiou em seus braços, san-
grava muito. Jerusalem se virou para os convidados, o pai
da noiva sacou a arma e a descarregou no pistoleiro, que
recuou para trás com o impacto das balas, mas não morreu.
A confusão tomou conta do altar. O padre fugiu pela
porta dos fundos, as pessoas corriam e gritavam. A mãe de
JJ continuou sentada, olhando para o filho sem entender.
O sangue escorria pela boca do pistoleiro, que apenas
pensava em mais carne. O pai de Jenny descarregou nova-
mente a arma em Jerusalem. Este apenas observou, sem
entender por que não morria. Enquanto o velho recarre-
gava a pistola, Jones deu um salto incrível e cravou os
dentes em seu pescoço, arrancando um grande pedaço. O
sangue espirrou em seu rosto, deixando-o com aspecto
demoníaco. O velho não era mais problema. Mas Jerusalem
ainda tinha fome.
A única pessoa que permaneceu no recinto foi sua mãe,
que olhava com ar estupefato, mas ao mesmo tempo com
piedade. Jones não estava consciente do que fazia ou deixa-
va de fazer, e caminhava na direção dela. A mulher não se
movia. Ele não quis saber o motivo, apenas tinha fome. Uma
fome que o consumia por dentro, que apenas carne humana

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poderia saciar. Quando estava para cometer o impensável,
Jerusalem ouviu um berro. Era o padre, que voltara.
Ele estava com uma haste de metal na mão, semelhan-
te aos ferros de marcar gado. Gritou para JJ, mas este não
entendeu. Parecia língua indígena. No entanto, ao escutar
aquilo, Jerusalem não conseguia mais se mexer. O padre
começou uma cantoria estranha, a dançar como um velho
índio. Jones sentiu uma coceira infernal no pescoço. O
pároco usou o marcador de gado, a parte pontuda, para
enf iar na cabeça de Jenny, estendida no chão. Fez o
mesmo com o pai dela. Ao se aproximar de onde estavam
Jerusalem e sua mãe, apenas apontou a porta para a senho-
ra, com um movimento de cabeça. Olhando para Jones,
frente a frente, o padre disse, com um carregado sotaque
indígena: “Agora sou eu e homem branco. Mais ninguém”.
E enfiou o marcador de gado, em brasa, no pescoço do
pistoleiro, que sem poder se mexer, apenas gritou. Gritou
muito. E desmaiou.

Jerusalem Jones abriu os olhos, como se tivesse dormi-


do por uns dez anos. Logo se deu conta de que estava
amarrado a um tronco, com braços e pernas imobilizados.
Sentiu uma coceira desgraçada no pescoço, mas não podia
coçar. No entanto, era diferente da que vinha sentindo por
causa da mordida de Betina. Adiante, fazendo café em uma
pequena fogueira, estava Búfalo Pequeno.
— O que… o que aconteceu, Traseiro Pelado? Por que tô
amarrado aqui como um peru de natal?
— Não lembra mais, JJ? — respondeu o índio aproxi-
mando-se. — Nossa, foram quatro dias e quatro noites de
arrepiar, meu amigo. Provavelmente terei pesadelos com
isso pelo resto da vida, mesmo depois de partir para os
Grandes Pastos Celestiais.
— Quatro dias e quatro noites?!
— Depois que saímos de Terence Falls, consegui con-
vencê-lo a deixar meu avô cuidar de você, para tentar

43
impedir que se transformasse em um daqueles mortos-
-sem-túmulo. A sua ferida no pescoço já tinha aumenta-
do bastante, o único jeito foi usar um ferro em brasa para
cicatrizá-la. Fizemos isso mais de uma vez, a ferida era
tão persistente quanto você. Por umas três vezes quase
fui mordido. Depois que meu avô conseguiu dominá-lo,
ele tratou de usar todo tipo de erva que conhecia. Colocou
compressas sobre a ferida, mas não dava pra fazer você
beber o medicamento. Então ele preparou uma pasta,
embrulhou em folhas, enrolou tudo até ficar bem peque-
no e… Entenda, Jones, era isso ou você teria virado uma
daquelas criaturas…
— Era isso o quê, Búfalo Pequeno?
— Hahahaha, lembrou meu nome, não é?
— Era isso o quê, Búfalo Pequeno?
— Cara, você tem sorte de meu avô gostar muito de
mim. Ele não faria isso por qualquer um.
— DE QUE DIABOS VOCÊ TÁ FALANDO, BÚFALO PEQUENO?!
— É isso mesmo que você está pensando. Ele enfiou a
erva pelo seu cu, meu amigo!
Jerusalem Jones xingou toda a geração de Traseiro
Pelado. Amarrado, xingou e esperneou. Esperneou até
não poder mais. Depois de se acalmar, fez o índio prome-
ter, por tudo que era mais sagrado, que aquela história
nunca sairia dali. Ou ele arrancaria seu pescoço a denta-
das, mesmo não sentindo a mínima vontade de comer
carne humana. Búfalo Pequeno respondeu que sim, que
estava tudo bem, pois ele sabia que, no fundo — e quando
disse “no fundo”, soltou uma gargalhada —, não valia a
pena espalhar aquilo.
Depois de perguntar várias vezes se estava realmente
calmo, Búfalo Pequeno soltou o pistoleiro do tronco.
Jerusalem Jones deixou de lado a parte humilhante, se
sentindo agradecido por estar vivo.
— Cadê o seu avô? Queria agradecê-lo.

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— Ele já foi, não sabia qual seria sua reação, hehehehe!
Tô brincando, ele foi descansar na aldeia. Foi muito cansa-
tivo pro velho. Ele me falava que era feitiçaria de homem
branco o que você tinha. Coisa que pouco conhecia, mas
ele fez de tudo, e parece que conseguiu te salvar. A ferida
do pescoço já quase sumiu. Aliás, me responda uma coisa,
quem diabos é Jenny Eckhart? Você repetiu várias vezes
esse nome enquanto delirava.
— Era… alguém do meu passado. Agora, obrigado por
tudo, Búfalo Pequeno. Te devo essa, mesmo tendo tomado
no… bom, você sabe — dizendo isso, apertou a mão do
índio e montou em seu cavalo.
A manhã estava agradável. Ao cavalgar, seus pensa-
mentos se voltaram para Jenny. O que estaria fazendo a
única mulher que amou de verdade? Jerusalem Jones
sentiu uma ereção ao pensar nela e em tudo que viveram,
dizendo consigo mesmo:
— Nossa! Preciso chegar ao bordel mais próximo. Tenho
que comer alguém, no bom sentido da palavra.

45
• episódio 7 •

demônio interior

ERA QUASE MEIA-NOITE, no meio do nada, e eu estava com


um bando ao qual me juntara para fazer um “trabalho” por
estas bandas. Depois de despistarmos quem precisava ser
despistado, resolvemos levantar acampamento por aqui
mesmo, já era tarde para continuar cavalgando. Então di-
vidimos o suor do nosso servicinho entre nós.
Eu não conseguia dormir. Na verdade, estava tenso e
desconfiado demais pra dormir. O bando contava histórias
de fantasmas, o que parecia cair bem para tirar a sonolên-
cia. O’Halley terminava a dele naquele momento.
— … e quando o idiota foi ver, o fantasma que o perse-
guia pelo cemitério era nada menos que um abacate, que
tinha caído no cesto que ele carregava nas costas. No fim
ele não sabia se ria ou se chorava.
— Ah, O’Halley, você tá brincando, né? Que historinha
safada! E o Jones aqui? Tem alguma história boa pra contar?
— Não. Eu não sei nenhuma história de fantasmas, ou
de assombração, como meu pai chamava.
— Vai dizer que nunca aconteceu nada de estranho
contigo?
— Não, não! Eu levo uma vida bem pacata. Só fica mais
agitada quando preciso de grana. No geral eu não… — nessa

47
hora um coiote uivou tão próximo que fez com que a maio-
ria empalidecesse.
— He he he! Isso deve ser um sinal! — disse Bonney, in-
sistindo que eu devia contar alguma coisa.
— Tá bom! Tá bom! Teve uma vez, um tempo atrás,
quando eu estava em casa altas horas da noite, que alguém
começou a bater na porta. Quando fui atender, não vi
ninguém, até que olhei pra baixo. Era o moleque mais
novo dos Kindall.
— Meu pai tá chamando o sinhô. Ele diz que é urgente.
Os Kindall eram uma família bem generosa comigo.
Enquanto estava morando naquela cidade, várias vezes
pude almoçar com eles, e até mesmo jantar. Eles gosta-
vam da minha companhia, e eu da deles. Além do menino,
eles tinham mais um filho, adulto, chamado Ramsey.
Por isso, fui sem pestanejar até a casa deles, apesar
de já ser bastante tarde. Quando cheguei lá, os dois esta-
vam bem nervosos, muito assustados. A casa parecia ter
sido atingida por um tornado, e havia uma gosma verde
nas paredes.
— O que aconteceu, pessoal? Vocês foram assaltados?
— N-Não, sr. Jones. F-Foi o Ramsey, entende?
— Não, não tô entendendo não.
Eles me pediram para sentar e explicaram o que acha-
vam que tinha acontecido ao filho mais velho. Eu fiquei
assim, meio boquiaberto, sem saber o que dizer. Era lou-
cura tudo aquilo. Eu apenas perguntei por que, então,
não tinham chamado um padre. A sra. Kindall me levou
até o quarto, e lá mostrou algo no canto, terrivelmente
horroroso de se olhar, algo que havia sido uma pessoa
algum dia.
— Nós… chamamos…
Eu corri e, com o bom estômago fraco que tenho, vo-
mitei um bocado, em qualquer lugar mesmo, já que coisa
nojenta era o que não faltava naquela casa.

48
— O que vocês querem que eu faça? Cadê o Ramsey, e
como vocês sobreviveram?
— Acho que — dessa vez foi o sr. Kindall quem tomou a
frente — acho que a coisa que possuiu Ramsey estava com
pressa. Quando ele conseguiu se livrar do padre, correu
pra fora, saindo da cidade a pé. Parecia estar procurando
alguma coisa.
— Mas por que o Ramsey? Seu filho era tão quieto.
— É, quieto até demais, sr. Jones. Ele se envolveu com
uma garota, que parecia estar metida com uma seita satâ-
nica e coisas assim. O prefeito prendeu alguns, expulsou
outros, e deixou que os pais se acertassem com os filhos.
— Nossa, eu fugindo dessas coisas e seu filho indo
atrás! O que acham que eu posso fazer? Procurar por ele
e trazê-lo de volta? Se o Ramsey tá mesmo com esse
troço, vou terminar pior que o padre.
— Mas foi aí que nós erramos, em chamar o padre. A
gente não precisava de um homem de Deus, e sim de um
homem… — o sr. Kindall parou de falar.
— Ok, ok! Entendi o que o senhor quer dizer, mas
saiba que não é bem assim. Certo, vou ver o que consigo
fazer, vocês são gente boa. Pra que lado ele foi?
Os dois apontaram para a direção onde estava, eu me
lembrei, um destacamento do exército que seguia para o
Forte Delaware. Se Ramsey tinha ido naquele sentido,
poderia topar com eles. E, de fato, ele topou.
Quando cheguei lá, o cenário era indescritível. E olha
que eu nem sei falar direito indescritível. Diante de tantas
cabeças, braços, pernas arrancadas, eu sabia não ter a
mínima chance contra Ramsey, ou seja lá o que fosse.
Não vi movimento nenhum, tudo era tão silencioso.
Pensei, então, em dar Ramsey como perdido, fazer uma
hora por ali e retornar com as más notícias para os Kindall.
Foi quando escutei uma voz gutural, como se viesse do
fundo de um poço:
— PAI!

49
Olhei para trás e vi, num canto, debruçado sobre algum
cadáver, Ramsey. Ao que parece, não tinha me percebido ali.
— Pai — continuou a coisa em Ramsey — eu te encon-
trei, depois de tanto tempo. Desde que nasci, fui criado
nas trevas mais profundas, sendo ensinado por minha mãe
apenas o sentido da palavra VINGANÇA. Este se tornou meu
nome. Ela me contou como seus truquezinhos baratos a
enganaram quando você era apenas um soldado de merda
e ela um demônio na flor da idade, ingênua, nos seus pri-
maveris 280 anos. Tive de esperar muito tempo, pois só
poderia entrar neste mundo através de outro filho seu,
quando ele estivesse adulto, nas condições adequadas. Um
filho bastardo, como eu e… Quem está aí?
Meu coração quase saiu pela boca quando o demônio
me percebeu. Quando se virou, vi que estava com a cabeça
de quem chamava de pai em uma das mãos.
— Esta é uma reunião de família. O que faz aqui?
— J-Já estava de saída. Só vim avisar que os pais… quer
dizer, a mãe dele está… é… preocupada. Sabe como é, né…
mães são superprotetoras: filho, não saia sem camisa;
filho, não saia na chuva; filho, não empreste seu corpo a
demônios; e coisas assim…
— Ela não sabe de nada. Acha que este corpo é filho de
seu marido. Não que eu me importe. Mas cumpri minha
missão a temphhhrrrgh… — o corpo de Ramsey estrebu-
chou e caiu, se debatendo. — Maldição… o tempo aqui não
p-passa como nas profundezas… v-vou ficar preso neste
corpo se você não a-tirar…
Não acreditei. Eu tinha de matar Ramsey para livrar o
demônio. Não havia saída, se não o matasse, ele seria só uma
moradia pro bicho ruim. Apontei para a cabeça do rapaz.
— RÁAAPIDO, HUMANO DESPREZÍVEL!
Resolvi apontar para o coração. Atirei. Ele parou de se
debater, e uma fumaça cinza escura deixou seu corpo.
Escutei uma voz, a do demo, pela última vez:

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— Estou em débito com você, humano. Quando preci-
sar, chame Deculion e pagarei minha dívida.
Ramsey abriu os olhos, estava confuso. Na verdade, eu
também estava. Errei o tiro de propósito, não poderia
matá-lo. Acho que, até no mundo das trevas, algumas
coisas funcionam pelo poder da sugestão.
Logo fomos embora para casa. Não toquei em assuntos
delicados, como a paternidade de Ramsey nem nada. Eles
eram uma família feliz, podiam continuar sendo. E é isso.
Viveram felizes para sempre.
— Jones, que historinha de merda! Você quer que eu
acredite nisso? Isso tem mais furos que minha bota. Bom,
pessoal, acho que depois dessa podemos despachar nosso
amigo Jerusalem Jones e ficar com sua parte. Ninguém vai
sentir falta dele mesmo.
Os outros idiotas concordaram com essa estupidez.
Bonney já estava se preparando para atirar, quando eu
perguntei:
— Posso falar uma última coisa em minha defesa?
— Que seja, só não demora muito.
— Deculion.

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• episódio 8 •

crise no velho oeste

JEREMIAH BERNSTEIN me devia uma grana e eu precisava


ir até sua casa cobrar. Isso implicava em chegar perto
dele, o que eu detestava. Ele era um velho que teimava
ser cientista e, em função de suas muitas invenções revo-
lucionárias, nunca tomava banho enquanto trabalhava
num projeto. Como estava sempre concluindo um e ini-
ciando outro… Nem mesmo eu conseguia ficar sem água
e sabão por tanto tempo.
Outra coisa chata era quando ele me agarrava e co-
meçava a delirar, contando que tinha inventado o trem a
vapor e a caneta-tinteiro, e como essas patentes haviam
sido roubadas por pessoas inescrupulosas. Tudo bem,
fora o cheiro insuportável, algumas vezes eu até dava
boas risadas. Mas naquele dia não estava de bom humor.
Me aproximei da casa, bati na porta, e ela se abriu so-
zinha. Quando entrei, um cheiro tão forte de putrefação
invadiu meu nariz que quase desmaiei. Acho que o Bernie
realmente precisava de um banho, urgente.
Uma fumaça espessa vinha de outro cômodo, onde eu
mesmo nunca tinha ido. Quando fui até lá, a visão me
deixou enjoado. No chão, saindo da geringonça seme-
lhante a uma enorme caldeira com uma porta na frente,

53
estava o corpo do velho. Como se estivesse se arrastan-
do, o rosto em desespero, olhando diretamente para
mim. Mas o pior é que não era o Bernie inteiro, algo o
havia rasgado ao meio, levando embora seu corpo da cin-
tura para baixo. Estranhamente, sua metade estava bem
rente à entrada daquele aparelho. A máquina emitia um
som, como se resfolegasse, igual a um trem que se prepa-
ra para partir da estação. Estava muito, mas muito quente.
Olhei num de seus lados, e um relógio esquisito se co-
nectava a vários canos que davam para o centro, no alto
da estranha invenção. Em vez de dois ponteiros, o relógio
tinha uns cinco. Em vez de marcar as horas, parecia estar
marcando outra coisa. Porém, eu não conseguia entender
o que era. Quando aproximei o rosto do marcador, senti
uma forte pancada na cabeça, e apaguei.

Xingando a mãe de todo maldito traiçoeiro que ataca


pelas costas, acordei. Fui abrindo os olhos e divisando as
coisas ao meu redor. Quando consegui enxergar com cla-
reza, percebi um cara olhando diretamente para mim.
Fiquei pasmo ao perceber que se parecia muito com o
Bernie. Nunca soube que ele tinha um filho. O homem
devia ter uns quarenta anos. Será que tá achando que eu
matei o pai dele?
— Você é Jerusalem Jones? Ele me disse que eu devia
procurá-lo se algo desse errado — disse o sujeito, apon-
tando para o corpo de Bernie.
— Sim, sou eu. Mas por que me acertou na cabeça?
— Não fui eu, amigo. Quando cheguei você já estava
desmaiado aí no chão.
— Hmmmm… certo. Você é filho do Bernie?
— He he he he he!!!
A risada era esquisita, ao mesmo tempo melancólica e
com certo pavor. Aparentemente não queria responder à
minha pergunta. Ficou mirando o cadáver com um olhar
estranho, longínquo. Talvez estivesse tentando sentir

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alg uma coisa por aquele velho que não via há tantos
anos, talvez Bernie o tivesse aband…
— Eu sou ele. Sou Jeremiah Bernstein, que vai morrer
daquele jeito ali. Acho que não é todo dia que alguém vê
como vai morrer. Sabe, quando esse velho maluco me pro-
curou dizendo que eu devia tomar cuidado com quem me
associava, para não perder as patentes das minhas mais
importantes invenções, não acreditei. Assim como você
não está acreditando agora. Não acreditei até que alguns
forasteiros invadiram minha casa, exatamente naquele
momento, e foram para cima do velho, que pegou um tipo
de caixa com uma pequena alavanca. Quando ele a acio-
nou… bom… os homens o agarraram pelas pernas, e foi
com isso que eles ficaram. A caixa com alavanca permane-
ceu na sala, não sumiu com a outra metade do corpo do
velho. Os homens ainda tentavam entender o que havia
acontecido quando peguei a caixinha e, sem pestanejar,
também puxei a alavanca… e aqui estou. Saí de dentro da-
quela máquina, e não faço ideia de como vou voltar para
minha época, pois, pelo que pude perceber, fui trazido
para o futuro. O futuro do meu eu idoso, que constrói isso
aí, que pode transportar as pessoas pelo tempo.
Eu fiquei sentado olhando para o homem, para o filho
do Bernie, estupefato, de boca aberta, sem conseguir
dizer uma palavra. O cara era jovem e já estava tão louco
quanto o pai, que jazia ali, saindo de dentro daquela coisa
que, com cer teza, era alg uma invenção estúpida que
tinha dado errado. Talvez um novo tipo de máquina para
retirar o fedor de meses sem tomar banho.
Eu tentava não cair na gargalhada, afinal o cara evi-
dentemente era um maluco, e sabe-se lá o que poderia
fazer se eu começasse a rir de sua história ridícula. Foi
pensando nisso que ouvi a máquina chiar alto. Sua porta
se fechou com um estrondo, quase jogando o corpo do
Bernie para a parede do outro lado. Um silvo agudo nos
ensurdeceu, o vapor preencheu a sala. Quando tudo

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parou, a porta se abriu e de dentro da máquina saiu…
saiu… saí… EU… vinte anos mais moço!!!
Meu eu mais jovem olhou na minha direção. Deu um
sorriso maroto, mas não disse nada. Foi até o cara que eu
achava ser o filho do Bernstein, sussurrou-lhe algo, e
então guiou o sujeito até a máquina. Mexeu nos vários
ponteiros do estranho relógio, puxou uma alavanca, e
correu para dentro do aparelho, se aper tando com o
outro homem. Antes de fechar a porta, olhou para mim:
— Cara, os anos não serão nada gentis comigo — e
tocou a aba do chapéu num cumprimento, puxando a
porta. A geringonça chiou, apitou de novo, e um estrondo
indicou que os dois já tinham ido embora.
Quando tudo terminou, e a fumaça de vapor se dis-
persou, Bernie não estava mais na sala. O corpo havia
sumido. Na verdade, a própria máquina também tinha
desaparecido. A casa estava limpa, não fedia mais. Ouvi
passos vindos de outro cômodo. Era… bom, era o Bernie,
trazendo um copo com água.
— Desculpe ter te acertado, Jones. Pensei que fosse
um ladrão. Não que você seja muito honesto, meu caro —
disse com um sorriso.
Era tudo estranho demais e, para piorar, ele estava
limpo, sem barba, parecia gente de verdade.
— Aqui está a grana que te devia, Jones — Bernie me
pagou integralmente, e isso foi a gota d’água.
— Bernie, o que diabos aconteceu aqui?!
— Não sei, mas acordei hoje com uma sensação de
déjà vu que não quer ir embora por nada. E tenho a im-
pressão de que possuo uma enorme dívida de gratidão
com você.
— Não, não, está tudo bem. Acho que o dia está estra-
nho demais pro meu gosto hoje.
Eu me levantei e ia saindo, quando vi uma caneta-tinteiro
na mesa. Ao lado dela estava escrito Bernstein Inc. Quando

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saí da casa, pude ver que ela agora era bem maior e luxuosa
do que antes. Com uma baita dor de cabeça, montei no meu
pangaré e fui embora, para não voltar a ver o Bernie num
futuro tão próximo.

57
• episódio 9 •

xerife wayne

ALGO ME DIZ que não devo entrar nesta cidade, pensou


Jerusalem Jones ao ver, suspenso na árvore diante dele, o
que parecia ser o xerife do lugar. Calculou o quanto as
coisas poderiam estar ruins naquela cidadezinha se até
seu representante da lei acabara enforcado e colocado na
entrada como um alerta.
— É, meu camarada pendurado, acho que vou acatar
seu aviso silencioso e dar meia-volta. Antes, porém, vou
levar sua estrela de xerife como recordação deste nosso
infeliz encontro.
Jerusalem se pôs em pé no cavalo, puxando a estrela
do falecido xerife. Lustrou-a em sua camisa, e resolveu
experimentá-la, para ver como ficaria de autoridade da lei.
Quando fixou a estrela no peito, Jones sentiu um vento
seco que não soube de onde vinha, ouviu uma voz em sua
cabeça, e apagou.

O xerife Wayne olhou para seu corpo balançando


tristemente na árvore à frente. As coisas degringolaram
da pior maneira possível. Sua vida de xerife era tranquila
na pequena Badland City. Era uma boa cidade, até a che-
gada de Zedediah Smith e seu bando, que na verdade não

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passava de um amontoado de foragidos que ele resolvera
liderar. Os dias foram difíceis desde então, e uma verda-
deira guerra foi travada para expulsar aqueles assassinos.
Wayne e seus dois assistentes, mais alguns homens da
cidade — e até mesmo Verona, a jovem esposa do xerife —,
formaram a linha de frente de Badland.
A batalha durou dias, e houve baixas dos dois lados. Mas
Wayne acreditava na justiça, como seu pai lhe ensinara.
Acreditou até o momento em que se encontrou dependura-
do em uma árvore, como o mais baixo dos criminosos. Tudo
porque estava prestes a expulsar da cidade Zed Smith e
seus dois únicos capangas sobreviventes. Mas Wayne
estava de volta, pela última vez, para consertar aquilo. A es-
trela de xerife era sua autoridade, e ela estava de volta ao
seu peito, mesmo que não literalmente.
Conduzindo o cavalo e o corpo de outra pessoa, Wayne
entrou na cidade que havia sido feita refém por três imbecis
que mal sabiam falar. Estavam no saloon, de onde manti-
nham o lugar sob o domínio do medo.
Wayne se aproximou do estabelecimento onde, ele
sabia, Verona e outras mulheres da cidade haviam sido
obrigadas a servir Zed de todas as formas. Wayne rangeu os
dentes, saltou do cavalo, e entrou.
— Posso saber quem é você? — perguntou Zed ao ver o
forasteiro.
— Meu nome é Jerusalem Jones. Algum problema?
— Nenhum, a não ser essa estrela no seu peito e as
armas, que eu pediria que deixasse com o barman — Zed se
referia a um de seus capangas, que sorria mostrando os
dois dentes que lhe restavam.
— Você é o xerife da cidade? — quis saber Wayne.
— Pode-se dizer que sim — Zed apontou a arma para
Wayne, apesar de este já estar desarmado. — E você, onde
conseguiu essa estrela? Bem se vê que não é, nem nunca foi,
um xerife.

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— A estrela… é uma lembrança — Wayne não via Verona
entre as garotas por perto. Isso o preocupava.
— Lembrança? — perguntou Zed, rindo para outro ca-
panga sentado com ele à mesa. — Lembrança do quê, ou
de quem?
— Uma lembrança de quem é a lei em Badland City!
Wayne sentiu Zed retesar o corpo e reconhecer algo na
voz de Jerusalem. Bastou esse momento de espanto para
que Wayne puxasse uma faca da bota de Jones e a enfiasse
na mão do barman que, distraído com a conversa, não tinha
retirado do balcão as armas do xerife. Wayne pulou para
trás da bancada, já pegando as pistolas. O tiroteio começou
antes mesmo que ele aterrissasse do outro lado. O barman
foi atingido sem dó nem piedade. Wayne viu que todo
mundo que estava ali contra a vontade aproveitou para se
mandar. Eram apenas ele, Zed e o último capanga.
Os dois bandidos atiravam freneticamente contra a
parte inferior do balcão, onde Wayne se escondia, sem se
darem conta de que a bancada fora construída para supor-
tar esse tipo de inconveniente (o antigo proprietário era um
homem precavido) e que as balas não vazavam a madeira
chumbada. Acreditavam piamente que, do outro lado, o
adversário já estivesse morto, ou no mínimo mortalmente
ferido. Quando Wayne percebeu que os tiros acabaram, e
que os out ros se aprox imava m do ba lc ão, ele fez o
inimaginável.
— Eu me rendo! — gritou.
— Quê? Esse filho da mãe está vivo?
Wayne se levantou sob a mira de Zed e de seu capanga,
e largou suas armas no balcão.
— Creio que isto pertence a vocês — disse Wayne, levando
a mão à estrela para entregá-la a Zed.
— Que pensa que está fazendo? Pra trás! Já estou farto
de você! — queixou-se o outro, engatilhando.
O xerife arrancou a estrela de seu peito e a cravou no de
Zed, que no susto disparou, acertando o ombro do corpo

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que abrigava Wayne. Merda, calculei errado, pensou, e
Jerusalem Jones caiu.
Atordoado, Zed olhou para seu capanga, pegou a arma
em cima do balcão, apontou para a cabeça do companheiro,
e atirou. Wayne estava controlando o corpo de Zed agora.
Ele se dirigiu para o outro lado da bancada. Viu Jerusalem
caído, a bala só passara de raspão. Wayne não sabia se o
pistoleiro havia desmaiado pelo ferimento ou pela súbita
saída de seu corpo. Mas tudo indicava que ficaria bem, só
era necessário um curativo. Antes, porém, Wayne tinha de
encontrar Verona e se despedir. Precisava fazer isso, mesmo
que fosse ali, no corpo de Zed.
Quando se levantou, Wayne viu que no alto da escada,
escondida, Verona observava, chorando, a todos os aconte-
cimentos. Largando os revólveres, ele fez um gesto de que
estava desarmado.
— Verona… não se assuste — quando disse isso, ela deu
um grito e correu, correu para os braços de Wayne.
— Eu sabia… sabia que você conseguiria, meu amor… —
murmurava entre lágrimas a mulher, cheia de paixão.
— Então você sabe? Você consegue me ver?
— Claro, meu amor! Claro, Zed! [música de suspense!]
— O quê?!
— Graças a Deus, você escapou. Pensei que depois de
tudo que passamos para nos livrar do Wayne, você fosse
morrer pelas mãos desse fracassado. Já bastava eu viver
nesta cidadezinha com um xerife caipira. Mas quando
você me contou sobre o que poderíamos ter junt… — um
tiro interrompeu Verona. No lado de sua cabeça, um buraco
fora aberto. Os olhos brilhantes, vidrados no xerife, se
apagaram.
Wayne achou engraçado que a única coisa que lhe
viesse à mente naquele instante fosse se matar, mesmo já
estando morto. Apontou o revólver para sua cabeça — para
a cabeça de Zed — e aper… Não. Ele podia fazer melhor.
Wayne foi até o balcão e procurou uma faca, bem amolada,

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a mais amolada que pudesse encontrar. Pegou um pano,
enrolou, e colocou entre os dentes. Ele tinha todo o tempo,
toda a privacidade do mundo. As pessoas estavam bem
longe do saloon, em suas casas, com medo, esperando tudo
aquilo terminar.
Wayne sentou com o corpo de Zed numa cadeira. Abriu
a calça e puxou para fora seu bem mais precioso. A dor, na-
quele momento, seria de Wayne, mas só naquele momento.
Colocou a faca bem no talo, fechou os olhos e, com toda a
raiva que sentia, cortou.
Wayne quase desmaiou. Ficou zonzo de dor, mas fez de
tudo para permanecer acordado. Sangrando e segurando
a joia de Zed, se aproximou da porta e a jogou para alguns
cachorros que estavam por perto.
“Lúcido. Preciso ficar… lúcido.”
Wayne foi até Jerusalem e prendeu a estrela novamente
no peito do pistoleiro. Nesse momento Zed caiu desacorda-
do, e Wayne se levantou, agora em Jerusalem Jones. Por um
prazer mórbido, juntou o corpo morto de Verona ao de Zed,
ainda desacordado, como se fossem um lindo casal. Colocou
a faca na mão da mulher, e foi embora.
Caminhou até a árvore em que seu corpo estava pen-
durado, retirou-o dali, e deu a si mesmo um enterro cris-
tão. Antes de ir embora, tirou a estrela do peito e a jogou
sobre sua cova.

Jerusalem bambeou um pouco, mas não caiu. Porém


não conseguiu evitar vomitar, sem saber o porquê. Viu a
cova, a estrela sobre ela e a árvore sem o corpo enforcado.
Resolveu não se fazer muitas perguntas, apenas ir embora
sem levar nada.
Quando montou no cavalo, se preparando para partir, o
pistoleiro ouviu um grito pavoroso vindo da cidade. O grito
de alguém que parecia ter pedido a própria alma ou, quem
sabe, mais que isso.

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• episódio 10 •

encontro com black goddard

NINGUÉM FAZIA IDEIA da origem de Black Goddard, sabiam


apenas que ele aparecera em Neville City e, rapidamente, se
tornara dono de metade dela. A cidade não era mais prós-
pera por causa disso, porém nunca mais foi a mesma após
ele, de modo estranho, ir tomando conta do lugar. Parecia
uma erva daninha, sempre crescendo, sempre querendo
mais. Passava o dia conversando com estranhos, que não
eram habitantes do lugar, e sempre que estes iam embora,
Goddard se tornava dono de mais um pedaço da cidade,
fosse um imóvel, um negócio, ou mesmo uma vida.
Era evidente para todos que ele gostava do poder. O
prefeito e o xerife praticamente respondiam às suas
ordens, e muitos crimes na cidade eram encobertos, ora
por um, ora por outro. Porém, Black Goddard, nos últimos
dias, vinha pensando em alçar voos mais altos. Onde iria
chegar, só Deus poderia saber.
Enquanto isso, chegou na cidade Jerusalem Jones. Veio
à Neville apenas para descansar e seguir rumo a Fawcett
City. A cicatriz no seu pescoço coçava mais que o normal.
Devia ser por causa do calor. Fora isso, os efeitos daquela
maldit a mordida pareciam ter sido obliterados para
sempre. Jerusalem tentou lembrar como diabos aprendera

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aquela palavra, “obliterado”, já que seu vocabulário não era
dos melhores. Deve ter sido em alguma aventura do Jack
Triplecolt que andou lendo.
No saloon da cidade, Goddard pensava consigo mesmo
que, para levar adiante seu plano mais recente, precisaria
de alguém ingênuo o bastante para que tudo desse certo.
Na verdade, ingênuo não era bem a palavra, teria que ser
alguém bem…
— IMBECIL! Olha por onde anda! — gritava um homem
enorme em quem Jerusalem esbarrara ao entrar.
— Ei! Desculpa, meu camarada, mas você podia evitar
ficar sentado bem na entrada, hein?
O homem fulminou Jones com o olhar, preparava-se
para dar-lhe um belo soco, quando Goddard segurou seu
braço, dizendo:
— Calma, Smitheson. É assim que você trata os visi-
tantes? — e este se acalmou, afinal era Black Goddard
quem pedia.
— Bem-vindo, forasteiro. Pode entrar e ficar à vontade
em meu estabelecimento. Sente-se naquela mesa que já
me junto ao senhor.
O pistoleiro não entendeu nada, mas foi para a mesa
indicada. Sentiu uma pontada na cicatriz, ainda coçava.
Quem sabe agora parava, já que saíra do sol escaldante. O
estranho, que devia ser o dono do lugar, chegou com duas
canecas de cerveja e as colocou em cima da mesa.
— Por conta da casa — disse, empurrando uma para
Jerusalem. — Então, o que o traz à Neville City?
— Minhas pernas! — retrucou JJ com uma gargalhada
solitária.
— Hmmm… Fora trazer seu bom humor, veio à cidade
tratar de algum negócio em particular, senhor…?
— Jones, Jerusalem Jones.
— Prazer, me chamo Black Goddard.

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De repente, Jerusalem se engasgou com a bebida.
Começou a tossir e a rir ao mesmo tempo, num ataque
desconcertante. Goddard quase levou um banho de cerveja.
— Você tá falando sério? — perguntou Jones quando
conseguiu se controlar. — Que diabo de nome é esse?
— Jerusalem Jones também não é lá um nome muito
comum — respondeu Goddard, tentando reprimir a anti-
patia que começava a sentir pelo forasteiro.
— Certo, mas tem bem mais estilo, se me permite
dizer. No seu caso, bom, seu pai chegou e disse, “põe aí
Black, meu filho vai se chamar Black”? Ou isso é tipo um
nome de guerra? Admita, não se veem muitos Blacks por
aí, pelo menos não da sua cor — concluiu JJ, explodindo
em outra gargalhada.
As pessoas no saloon, sem querer, ouviam a conversa, e
se contagiavam pelas risadas histéricas de Jerusalem.
Tentavam segurar o riso, mas o estranho se divertia descon-
troladamente por algo tão banal, que não conseguiam se
conter. Sabendo como Goddard podia ser cruel, os clientes
começaram a pagar suas contas e sair.
A cicatriz no pescoço de Jones coçava miseravelmen-
te. Por que estava coçando tanto? E por que estava rindo
de algo tão bobo quanto o nome daquele cara? Não con-
seguia se controlar. Precisava parar, estava até mesmo
perdendo o fôlego.
Black Goddard já havia desistido de usar aquele fra-
cassado para qualquer plano. Se esforçando para não
atirar no desgraçado ali mesmo, disse:
— Eu o desafio para um duelo!
— Mas… hihihi… o que… hauahauahaua… eu fiz?
O pistoleiro estava ficando desesperado. Não conse-
guia parar com as risadas, nem de coçar a cicatriz no
pescoço, que agora queimava. Goddard agarrou o tal
Jerusalem Jones pela gola da camisa e o levou para fora.
Ninguém mais tinha vontade de rir, exceto JJ:

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— Como… hahaha… vou conseguir… hauahauahaua…
atirar assim?
Goddard não deu a mínima para seu apelo. Contou vinte
passos de onde estava o forasteiro e virou de frente. Jones
se pôs em pé com dificuldade, estava sem ar de tanto rir.
Não entendia o que havia com ele, a piada já perdera a graça
fazia muito tempo. Goddard designou o barman como juiz
do duelo, e mandou que este indicasse o momento de dis-
parar. Goddard só estava fazendo aquilo para matar o pis-
toleiro dentro da lei, ali na frente de todos.
O juiz começou a contar até três: “Um”. Jerusalem
estava praticamente em convulsões por causa da crise de
riso. O juiz disse “dois”. Jones tentava ao menos colocar a
mão sobre sua arma. O juiz gritou TRÊS . Um disparo foi
ouvido pela cidade. Jerusalem Jones girou, e caiu.
A multidão ficou em silêncio. O juiz se aproximou de JJ
para constatar sua morte. O forasteiro estava caído de
costas, não havia sangue. Quando foi virá-lo, notou a cica-
triz em seu pescoço, e estava… a cicatriz estava… pulsan-
do?! O pobre homem só sentiu seu corpo ser arremessado
para longe. Jerusalem, ensandecido, se pôs de pé e olhou
para Black Goddard, que estava estupefato, esquecendo
que tinha uma arma na mão. Quando lembrou que podia
atirar, era tarde demais. Jerusalem deu um salto que
nenhum homem normal conseguiria. Caiu em cima de
Goddard, que perdeu a arma na queda. Este gritava todos
os palavrões do mundo, ordenando que alguém atirasse no
desgraçado. Mas as pessoas não sabiam o que fazer, talvez
com medo de acertar o chefe.
Quando, entre os xingamentos desesperados, Goddard
ofendeu a mãe de Jones — com nomes que aqui não cabe-
riam —, o pistoleiro soltou um rugido g utural e, num
rápido movimento, arrancou algo de Black Goddard. O
grito deste foi ensurdecedor, ele entrou em pânico ao ver
o forasteiro saboreando sua orelha.

68
Então Jerusalem sentiu um disparo passar rente à sua
cabeça. Estava chegando ajuda para Goddard. Antes que
fosse morto, o pistoleiro rumou para fora da cidade. O
xerife e seus ajudantes, assim como o homem sem orelha,
observaram como sua velocidade era inumana.
Black Goddard levantou-se, ensanguentado, sabendo
que de agora em diante tinha um novo objetivo na vida:
caçar e matar Jerusalem Jones. Em seguida desmaiou.

Demorou muito para que JJ acordasse. A única coisa


de que lembrava era do disparo de Goddard passando de
raspão por seu braço. Recordava-se também que era
tanta a dor no pescoço, por causa da cicatriz, que ele
desmaiara. Não sabia o que hav ia se passado depois
disso. A cicatriz estava quieta, nem mesmo parecia exis-
tir. O que teria acontecido? Estava sem seu cavalo e teria
de andar bastante até conseguir outro. Levantou, lavou o
rosto num córrego próximo, bateu a poeira da roupa, e se
pôs a andar. De repente Jerusalem soltou um arroto, e
sentiu um gosto estranhíssimo na boca. Não se lembrava
de ter comido nada.

69
• episódio 11 •

o monstro de ferro

O MONSTRO DE FERRO amassou a delegacia de Old Town.


Apenas o xerife Wild Grumppy escapou, sendo que Billy
Boas-Maneiras estava atrás das grades; portanto… adeus,
Billy. Mas o monstro queria mesmo era a mim. Soltando
vapor por todos os lados, o bicho de mais de vinte metros
gritava:
— JONESYYYY !!!
Tá certo, a culpa foi minha. Tudo começou com uma
piada inocente feita a um oriental no armazém do Grabbie.
Ele estava lá, comprando todo tipo de parafuso e metal,
quando eu, depois de ter tomado umas no saloon do
Arnold Beckinsale (que agora não existe mais, vá com
Deus), puxei conversa:
— E aí, china, pra que tanto parafuso e placas de metal?
— Eu não sou chinês, sr. “Jelusalem Jonesy”, sou japonês.
— Uau, tô ficando famoso, já me conhecem até na
China… ops, Japão!
— Não. Apenas já me alertaram contra a sua pessoa,
sr. “Jonesy”.
— Tá certo. Só queria fazer uma pergunta, algo que
sempre comentam acerca dos homens orientais.

71
— Diga logo, estou com “plessa”. Não tenho o dia todo
livre como certas pessoas.
— Ui, essa doeu! Mas me diga, é verdade o que dizem
sobre o negócio do japonês ser muito, mas muito pequeno?
— Negócio, que negócio? Eu não sou comerciante, sr.
“Jonesy”.
— Hmmm… com negócio, eu quero dizer bráulio,
bilau, pinto, estrovenga, ou, numa linguagem mais colo-
quial, pênis!
Nessa hora o japa ficou vermelho como um tomate, ou
até mais. Pensei que fosse explodir. Parecia estar parali-
sado, mas logo meteu a mão no bolso e puxou a arma mais
minúscula que já vi em toda minha vida, que apontou para
minha cabeça. Provavelmente disparava grãos de arroz.
— Sr. “Jonesy”, no meu país existe um velho ditado que
diz: “Não é o tamanho que importa, e sim o modo como se
usa” — e dito isso, ele disparou.
Plec, plec, puff…
A arma do japa engasgou, e em seguida explodiu em sua
mão. Claro que eu não pude manter minha boca fechada:
— É, eu acho que os boatos sobre as coisas miúdas
made in Japan são verdadeiros!
— Sr. “Jonesy”, a honra é algo muito importante em
meu país. Esteja amanhã, ao meio-dia, em frente ao “saroon”
para um duelo até a morte!
— Não vou faltar. Venha com uma arma maior, senhor…
senhor…?
— Toshio Miyake Seijin! — e foi embora, levando seus
parafusos e placas de metal.

Ao meio-dia ele veio. Chegou de trem. Trem que esta-


cionou com seus dois vagões bem em frente ao saloon,
deixando toda a cidade em polvorosa. Claro, afinal ali não
havia trilhos, e a estação ficava do outro lado da cidade. Eu
não estava entendendo por que ele tinha chegado num

72
trem. Bom, não estava entendendo até ele dar um sorriso
enigmático, de dentro da cabine, e puxar uma alavanca.
Se a coisa já estava esquisita, ficou ainda pior. Com
muito ruído e muita fumaça — parecia funcionar a vapor,
como as locomotivas comuns — o trem começou a ficar de
pé! Se transformou em uma espécie de monstro de ferro.
A maioria das pessoas corria com medo, gritando, mas
muitas ainda permaneciam para saber em que aquilo ia
dar. O estabelecimento do pobre Arnold foi o primeiro a
ser destruído. A coisa não conseguia andar direito e, ao
tentar vir na minha direção, esmagava tudo que estava à
sua frente ou ao seu lado.
O bicho era tão grande que entendi mais ou menos a
ironia da coisa. O japonês estava tentando me esmagar
como um inseto. Para piorar, o troço soltava fogo, como
um dragão. Aquilo devia estar consumindo car vão de
forma absurda.
O barulho das engrenagens era ensurdecedor. Eu ten-
tava ficar o mais longe possível, mas correr não ajudava
em nada, aquela máquina estava destruindo a cidade in-
teira ao tentar me capturar. Ficava me perguntando como
essa história ia terminar. Bem que poderia ser apenas um
sonho e eu acordar, mas acho que isso será usado em
outro episódio. Precisava me livrar daquilo de alguma
forma. Não havia outra saída.
Consegui montar em um cavalo qualquer e disparar
até a saída da cidade, indo a toda para o deserto. Imaginei
que, como aquilo era bem pesado, não andaria tão rápido.
Olhei para trás e suspirei aliviado, a máquina estava dei-
xando a cidade, vindo em minha direção. Provavelmente o
deserto acabaria com o japonês e suas reservas de carvão.
Até lá eu já estaria long… hã… como? O monstro voa?! Com
todo aquele peso? Como pode?
Agora aquilo ia me alcançar em questão de minutos.
Quando o bicho aterrissou, o barulho fez meu cavalo se
assustar, me derrubando. O monstro de ferro levantou um

73
pé enorme, ia me esmagar, quando vi o brilho de uma es-
trela bem sobre ele, descendo. Um clarão mais forte me
cegou completamente. Corri como pude para longe da ba-
talha entre o monstro de ferro e algum gigante de outro
mundo que parecia só saber gritar HUÁC.
Me escondi em uma pedra, ainda sem enxergar. Quando
aquela luta estrondosa acabou, só ouvi o som de metal
sendo amassado e um último HUÁC. Me encostei na rocha e
esperei um bom tempo, até que a cegueira fosse embora.
Ao conseguir enxergar, só havia uma gigantesca bola de
ferro retorcido e o corpo do japonês, totalmente nu, jogado
para o outro lado. Fui lá ver se o idiota ainda estava vivo.
Pude constatar que respirava, apesar de muito mal.
— O que aconteceu, japa?
— Até aqui… esse maldito… “Urutoraman”… cof… me
persegue — e desmaiou.
Dei um chute no lado do desgraçado, isso porque não
sou de guardar rancor. Coloquei-o sobre o cavalo para
entregá-lo ao xerife e… hmmm… que tem demais? Conferi
os documentos do japonês e… realmente os boatos, pelo
menos no caso dele, são bem verdadeiros, minusculamente
verdadeiros.

74
• intervalo •

textos rejeitados

De Volta para o Exterminador do Futuro


Jerusalem Jones sente o ar do deserto crepitar, e um
gosto de ozônio se instala em sua boca. Não que ele saiba
como é o gosto de ozônio, na verdade ele nem sabe exa-
tamente o que é ozônio, mas é o que acontece. Acordado,
no meio da noite, de seu sono no deserto, JJ vê uma bola
de fogo branco se formar quase que à sua frente. Depois
de todo “misancéne” (sei lá como se escreve isso), uma
mulher aparece ali, no meio do nada, e vai em direção ao
pistoleiro estupefato:
— Venha comigo, senhor Jones. O futuro depende de
sua salvação!
— Do que a madame tá falando? Quem diabos é você?
— Meu nome é Sarah Connor. Fui enviada de 1987,
onde o mundo é dominado pelos nazistas desde 1938. Mas
um homem nos trouxe a esperança, e ele é seu filho. Os
nazistas estão enviando um exterminador-robô para que o
senhor não gere nosso salvador, o Indiana Jones!
— Mas peralá… Nem mulher eu tenho!
— Sr. Jones, porque acha que fui enviada pelada?!

***

75
O Ataque dos Tomates Verdes Fritos
Jerusalem Jones fecha o livro que acabou de comprar.
Sentado em sua recém-adquirida casinha de cerca branca,
passa os dias a ler romances água com açúcar, fingindo
que não está chorando para que seu cão de estimação,
Murdock, não perca o respeito por ele. Tudo corre tran-
quilo na vida de um Jerusalem aposentado, que viveu
tantas aventuras. Poderia escrever um livro, se sua letra
não fosse tão horrível que nem mesmo ele é capaz de ler.
Mas o velho pistoleiro sabe que as coisas não costu-
mam ficar tão calmas em sua vida durante muito tempo.
Tanto é que não se espanta quando vai à horta e leva uma
mordida, não sabe de quê, até ver um tomate com dentes
pontiagudos quicando em sua frente. E outro, e outro, e
outro! Jerusalem sai em desabalada correria, quando dá
um encontrão com uma mulher:
— Venha comigo, senhor Jones. O futuro depende de
sua salvação!
— Peralá… tem coisa errada. Por que você tá pelada?

***

O Dia em que a Terra Parou, Olhou para os Dois Lados


e Atravessou
O eclipse estava assombrando os moradores de Deckard
City. Todos olhavam para cima, boquiabertos, enquanto
Jerusalem Jones bocejava em uma mesa do Goldmine.
Eclipses… bah… quem precisava deles. O pistoleiro preci-
sava era de dinheiro, urgentemente. O pouco que tinha
não dava nem para mais uma bebida. Foi pensando nisso
que JJ teve uma sensação estranha. Olhou para frente e
viu que tudo estava muito parado, literalmente. Tudo e
todos estavam impassíveis, imexíveis.
Jerusalem se levantou, saiu do saloon, e quando pôs os
pés para fora, uma mulher o agarrou:

76
— Venha comigo, senhor Jones. O futuro depende de
sua salvação!
— Ah, chega disso! — e empurrou a mulher para longe,
que cambaleou nua, sem entender nada.
Jones andou mais um pouco, vendo que as pessoas
realmente estavam estáticas. Somente então é que sua
mente, que trabalhava devagar, compreendeu que aquilo
era um sinal dos céus. Era para que ele pudesse recolher
a grana dos incautos paralisados! Para não ser injusto,
deixaria os doces das criancinhas intocados. Quando
meteu a mão no bolso do primeiro transeunte, ouviu um
grito em uníssono:
— PEGADIIIIIIINHA!!!!!!

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• episódio 12 •

o homem mascarado

ATÉ AGORA NÃO ENTENDI por que diabos estou sendo per-
seguido pelo mascarado no cavalo branco e pelo índio que
o acompanha. Só podem ser bandidos.
Tudo começou quando o sr. McTaggert, do Banco de
Pennsilville, resolveu me confiar uma tarefa secreta:
desvio de dinheiro. Conhecendo meu caráter, digamos,
maleável, ele sabia que podia confiar em mim, por uma
pequena comissão. Nada que eu já não tivesse feito antes.
E nada que fosse realmente crime, no pleno sentido da
palavra, pois ele sabia o que estava fazendo. Ou pelo
menos eu pensava que sabia. Então me coloquei a caminho
da cidade vizinha, levando a grana comigo para entregá-la
ao sócio de McTaggert, que organizava o esquema. Até
que esses dois se puseram no meu encalço, atirando sem
mais nem menos.

Algumas horas antes…


No Banco de Pennsilville, o sr. McTaggert, sabendo que
estava a ponto de ser descoberto pelos magnatas para
quem trabalhava, resolveu jogar a culpa em cima de
alguém… esse alguém era Jerusalem Jones.

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— Sim, isso mesmo, sr. Cavaleiro Solitário. Ele acabou
de sair com mais um leva de dinheiro, que vem sistemati-
camente arrancando do banco. As autoridades locais nada
conseguiram fazer para capturá-lo. Assim, resolvi recor-
rer ao senhor e ao seu companheiro índio.
— Fique tranquilo, meu caro, nós capturaremos o fora
da lei.

E foi assim que…


Eles vão acabar me acer t ando. O jeito é rev idar.
Totalmente sem jeito, eu saco a arma e dou dois tiros
para trás, sem nem mesmo olhar, pois quero manter dis-
tância deles. Depois dos disparos, um silêncio toma conta
de tudo, restando apenas o galopar de meu pangaré. Será
que eu…?
Quando viro para trás, vejo os dois estatelados no chão
e seus cavalos correndo sem rumo. Eu os acertei de pri-
meira?! Como? Resolvo voltar, só para ter certeza. Quando
chego perto, o índio está morto, com um tiro no meio da
testa. O mascarado eu acertei no estômago, não vai viver
muito tempo.
— Se deu mal, né? Achou que fosse levar minha grana
fácil. Tudo bem, eu não sou nenhum rei do gatilho, mas
parece que a sorte fica do meu lado às vezes. Quem são
vocês, afinal?
— Ca-Cavaleiro So-Solitário… e esse é… era… meu
parceiro.
— Hmmm… Mas peralá, se ele era seu parceiro, como
você poderia se autointitular Cavaleiro Solitário? No
máximo poderia ser o Cavaleiro do Parceiro Indígena.
— T-Tonto!
— Você tem o apelido estranho e eu que sou tonto?
— N-Não, imbecil! O… cof… cof… nome do índio era
Tonto!!! Tivemos… muitas aventuras juntos…
— Aventuras… sei.

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— S - SEU L ADR ÃOZINHO ESTÚPIDO ! DO QUE … COF…
COF… DIABOS VOCÊ ESTÁ FALANDO?
— Ladrãozinho é a mãe! Quem de nós dois usa máscara
aqui? Eu estou de cara limpa, fazendo um trabalho hones-
to… bem, na verdade quase honesto… mas você sim tava
me perseguindo pra roubar meu dinheiro!
— E-Eu sou um Ranger, s-seu animal… cof…cof… um
Ranger solitá…
— Mas e o ín…
— Tá, tá, tá… e-esquece a p-porra do índio, merda! J-Já
ouviu… cof… falar em licença po-poética alguma vez, seu
desgra… cof… çado!
— Não sei por que tá irritado. Me perseguir atirando, sem
se identificar, não é uma atitude muito digna de um Ranger.
— O gerente do… cof… banco de… P-Pennsilville…
disse… cof… q-que… você… o… cof cof… vinha roubando.
— Ah, agora entendi! É… quer que eu limpe esse sangue
da sua boca, cara? É o mínimo que posso fazer.
— Sim, obrigado. E-Eu… eu me exaltei. A-Acabei fu-
mando um pouco das e-ervas que Tonto sempre ca-carre-
ga e… elas afetaram mi-minhas decisões.
— Cê tá falando de cannabis?
— E-ERVAS MEDICINAIS , DROGA ! T-Totalmente legali-
za… cof…cof…
E, dizendo isso, o Cavaleiro Solitário, que sempre
andava acompanhado, deu seu último suspiro. Gostei dos
revólveres dele. Quando abro o tambor de um deles, vejo
que as balas são de prata. É, o cara pode ser azarado, e
meio esquisito, mas tinha estilo. Merece até ser enterrado
decentemente… mas não por mim, infelizmente. Estou
com pressa. Merda! Meu cavalo sumiu. Por perto só tem o
cavalo branco do mascarado. Dá para ver, de longe, um
nome gravado na sela: Silver. Deve ser o nome do bicho.
Assovio para ele, que nem olha pra mim. Então berro:
— AÍ… ÔOOOOOOO… SILVÊEEEER!!! — e ele vem.

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• episódio 13 •

nasce jerusalem jones

POR QUE VOCÊ TINHA QUE NASCER justo hoje, moleque?!


Sim, eu sei que é um moleque. Sinto nos meus ossos.
Sexta-feira 13 não é um bom dia para nascer. Além disso, a
chuva lá fora faz a noite parecer um quadro do inferno.
Chove tão forte que não sei como o Doc conseguiu chegar
até aqui. Trovões e raios deixam tudo pior do que já é.
Minha mulher urra e grita a todo o momento. A noite vai
ser longa. O moleque não quer sair. Parece até saber das
coisas ruins que temos aqui fora.
— Jones, para de ficar olhando pela janela. O que diabos
você perdeu lá fora, homem? Me ajude aqui! Só preciso que
pegue mais panos quentes e outro balde de água morna.
Depois pode voltar para seu posto.
— Ok, Doc. Eu só… só não estou gostando desta chuva.
— É uma tempestad… KRAAAK-A-BUMMMMM …tra qual-
quer, homem! O parto está difícil, não sei se vou conse-
guir, Jones. Esteja preparado para qualquer coisa.
O Doc sempre foi assim, nada sutil.
KRAAK-A-BUMMM!!!
Credo, juro ter escutado um grito pouco antes do
trovão. Esse menino vai nascer na pior noite que esta terra

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desgraçada já presenciou. Ou, segundo o Doc, talvez nem
chegue a nascer.
Olho para a mãe do meu filho, e ela está com o rosto
desfigurado de dor. Faz força como nunca vi um homem
fazer na vida. Mas não posso ir lá segurar sua mão. Preciso
ficar aqui na porta. Pego meus revólveres na mesa e os
coloco na cintura depois de conferir se estão carregados.
— Que é isso, Jones? Vai atirar na chuva? Você devia era
dar um jeito de a água parar de entrar na casa. Está come-
çando a me atrapalhar aqui. Eu avisei há muito tempo que
você precisava comprar uma casa melhor!
— Ok, Doc. Obrigado por fazer o papel da minha esposa
enquanto ela não está em condições.
Juro ter visto um vulto na chuva. Quem seria louco de
sair neste aguaceiro? Nem mesmo o Dead John seria doido
para isso, e olha que ele é doido, clinicamente falando.
Diacho! Acho que vi alguém novamente e… olhando para
cá! Não tenho vergonha de admitir que minhas pernas
estão começando a tremer. Os gritos altos da minha mulher
não ajudam em nada os meus nervos. Nasce logo garoto,
acaba com este sofrimento. Eu prometo que nunca mais
mexo com sua mãe pra fazer nada, pelo menos nada que a
deixe grávida de novo. Ai, meu Deus, é uma pessoa na
chuva mesmo! Encurvado como um corcunda. Que diabos
esse cretino tá fazendo olhando para cá? Tirou a noite
para me assustar mais do que já estou?
— Jones, sua mulher perdeu os sentidos! Eu não sei se
ela vai sobreviver! Preciso saber se salvo ela ou a criança.
Preciso saber agora!
— Doc, você vai salvar os dois, porque você me deve!
Há uns quinze anos, eu e Doc atravessávamos o deser-
to quando ele foi picado por uma cobra em uma região
bem delicada do corpo. O que ele me obrigou a fazer,
depois de apontar sua arma para mim, eu não posso dizer
aqui. O pior é que nem sei se essa história de sugar veneno
é verdade. Seja como for, ele ficou me devendo. Mas, se ele

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contasse para alguém, eu jurei que… O sujeito lá fora, está
vindo pra cá!
— JOOONEEESSS… ELA ESTÁ EM CONVULSÃO!
— Dá um jeito aí!!! Tem um cara estranho lá fora, vindo
pra cá. Não posso sair daqui!
Doc a segura como pode, parece não entender o motivo
de ela estar em convulsão. E isso, sendo ele médico, não é
um bom sinal. Meu coração parece sair pela boca quando
vejo os olhos do troço lá fora brilharem em vermelho. Não
sei se estou alucinando ou se é tudo real. Mas o sujeito
saca o que parece ser uma carabina e vem correndo na
minha direção. Quando pego os revólveres e atiro… nada
acontece. Olho os tambores e estão vazios. Tenho certeza
de que estavam cheios, eu conferi! O intruso está mais
perto, e minha mulher grita mais alto:
— SAI DAQUI, AGOOOOORA!
Do que ela está falando? De onde está não tem como
ver a janela. O homem corcunda avança rápido, o jeito é
segurar a porta. Ele dispara e a madeira se despedaça
como se todos os cupins do mundo estivessem ali. Meu
Deus! Aquilo não era uma arma, era algo… demoníaco.
Fogo no meio da chuva. Vamos todos morrer e eu nem
mesmo tenho ideia do motivo.
Me afasto da entrada, rezando como se fosse o homem
mais crente do mundo. Quando a criatura atravessa a so-
leira, com a respiração ofegante e os passos pesados que
fazem um som horrível nas poças d’água, vejo que ela não
tem forma definida. É como se fosse feita daquela chuva
maldita. Olho para trás, e Doc está com meu filho no colo.
Minha mulher, sentada, como que em transe, reza numa
língua que nunca ouvi antes. Chego a pensar que está
dopada por algum remédio.
— Jones, o que está acontecendo aqui?!
A criatura pula na minha direção. Ouço um disparo, e
mais um, e mais um, que acertam aquela coisa do inferno.
Quem atira não para um segundo sequer, descarregando

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toda a munição em cima do monstro, que me esquece e se
levanta, indo na direção do atirador. Mesmo com medo,
vou até a porta e vejo tudo.
Um homem de capote atira como louco, parece que
sua munição não acaba nunca. Ele consegue desarmar a
criatura, que tenta alcançá-lo, mas os disparos a impe-
dem. Minha mulher grita alto naquele idioma absurdo que
resolveu falar, e sinto a criatura cambalear. É o suficiente
para que o pistoleiro pegue uma outra arma de dentro do
capote, mire no coração do bicho, e atire.
A criatura solta uma risada resignada, e corta o pró-
prio pescoço com as unhas que parecem navalhas. Ainda a
ouço dizer, entre os gorgolejos da morte:
— Nem eu, nem você, Jones.
Não entendo como sabe meu nome. Depois disso, ela
simplesmente morre, sumindo com a chuva que para,
como se a criatura também estiasse. A noite fica com
aquele cheiro de terra molhada, mas não de um jeito bom.
O homem do capote se aproxima e fala comigo:
— A criança… ela nasceu?
Tento responder, mas só consigo fitar a cicatriz em sua
garganta. Enorme, pulsante. A cicatriz pulsa, como se esti-
vesse viva! Deus, eu preciso de uma bebida.
Ele olha para dentro de casa, e vê o menino no colo de
um Doc pálido, tremendo como vara verde. Minha mulher
se acalmou depois de toda aquela reza.
— Sim, ele nasceu. Quem é você? O que era aquilo?
— Eu caço aquela criatura há um bom tempo, e sabia
que ela viria aqui, por isso dei um jeito de estar no mesmo
lugar e na mesma hora que ela. Uns amigos índios me aju-
daram. O senhor nem acredita no que todas aquelas can-
torias e ervas são capazes. E eu que achava que fossem só
pra ver elefantinhos cor-de-rosa. Mas agora vai ficar tudo
bem, sr. Jones. Dê isso aqui à sua esposa. Também é dos
meus amigos índios, mas é curativo. Nada de alucinógenos
pra ela, pelo menos por enquanto.

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E o pistoleiro vai embora, rindo como um moleque tra-
vesso. Podia jurar que sumiu diante de meus olhos, mas foi
apenas pela escuridão, eu acho. Dou a planta para minha
esposa, sem pestanejar. Não estou em condições de duvi-
dar de nada. Doc fica falando sobre intoxicação e coisas
do tipo. Minha mulher logo acorda e sorri para mim, can-
sada mas feliz. Pego nosso filho e levo até ela. O bebê
parece tão calmo diante de tudo aquilo, não chorou nem
por um instante.
Vou até ao armário onde está a garrafa de uísque e
encho dois copos.
— Estamos quites, Doc. Mas agora, aqui entre nós, eu
não precisava ter sugado aquele veneno, não é?
— Jones, isso de novo? Eu tô aqui todo cagado e você
me vem com coisas do passado! Vou pra casa me limpar e
dormir. E, pelo amor de Deus, não tenha mais filhos!
— Se eu descobrir que aquilo não era necessário, Doc…

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• episódio 14 •

o bom, o mal e os outros

EU GOSTO DO DESERTO, isso é um fato. Outro fato, no en-


tanto, é que no deserto me acontecem as coisas mais es-
tranhas e inesperadas. Talvez no fundo eu goste de coisas
estranhas e inesperadas. Sim, estou tocando nesse ponto
porque há alguns dias aconteceu mais um desses casos
que parecem me perseguir.
Eu vinha de Begin Hill rumo a Final Valley, atravessando
o deserto, nada contente por ter perdido dinheiro no jogo.
Estava chateado por mais de um motivo, pois a grana não
era minha, e sim o pagamento a que tinha sido incumbido
de fazer aos irmãos McNeill. Achei que estivesse com sorte
e resolvi apostar o dinheiro do resgate do pequeno Bob
Laughton, que havia sido sequestrado há doze dias pelos
tais irmãos. Convenci o pai do Bob de que poderia levar o
dinheiro em segurança e resgatar o garoto. É incrível como
as pessoas acreditam em qualquer um hoje em dia.
Não me olhem desse jeito, eu apenas sou fraco quando
se trata de jogatina. Perdi toda a grana e ainda precisei
empenhar minhas armas. O pobre Bob estava em maus
lençóis. Eu até que tinha intenção de resgatá-lo, mas fi-
caria com o dinheiro, mandando os irmãos McNeill para

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o inferno. Como exatamente iria fazer isso, no caminho
eu ia decidir.
Bom, mas como ia dizendo, eu passava pelo deserto,
quando vi um cavaleiro ao longe, se aproximando rapida-
mente. Não pude deixar de notar que ele carregava alguém
na garupa. Alguém pequeno. Quando ia passar por mim, a
toda velocidade, quase caí do cavalo de tanto susto. O
desgraçado era a minha cara!!!
Acho que ele passou tão rápido que nem me notou.
Parecia estar com muita pressa. Resolvi ir atrás. Quando o
alcancei, ele se deu conta da semelhança que havia entre
nós e parou. Ficamos meio que pasmados por certo tempo,
até que um dos dois resolveu falar, no caso eu:
— Somos irmãos gêmeos separados no nascimento ou
o quê? Qual é seu nome?
— Meu nome é Jerusalem Jones. E o seu?
Eu não podia acreditar, era algum tipo de brincadeira.
O que estava acontecendo afinal?
— Quem é o garoto com você, posso saber?
— Eu não sei o que está acontecendo aqui, até nossas
vozes são idênticas. Mas ele se chama Bob Laughton,
acabo de resgatá-lo. Estou levando o garoto e o dinheiro
de volta para seu pai. Espero que os dois consigam recons-
truir suas vidas depois desse constrangimento.
Minha cabeça estava doendo demais. Quando ouvi
essas coisas é que notei que havia algumas diferenças
entre nós: ele parecia mais… mais… honesto. Eu já ia fazer
outra pergunta, quando olhamos os dois para um cavalei-
ro que chegava. Ele se aproximou: era outro JJ! Tinha um
olhar insano e o mesmo garoto na garupa. Só um pequeno
detalhe: o menino estava mor to, esfaqueado. O novo
Jerusalem Jones vinha coberto de sangue. Não parecia ver
nenhum problema em estar diante de duas versões de si
mesmo, e caçoou:
— Reunião de família, hein? Tenho que entregar essa
encomenda ao velho Paul Laughton. Eu disse que ia resgatar

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o filho dele… só não falei em que condições! Vocês preci-
savam ver o que fiz aos irmãos McNeill. Pena que não con-
segui me controlar e deixar o garoto vivo… Hehehehe!
— Por que diabos você matou o garoto? — perguntou
meu eu honesto.
— Porque o Demônio das Sete Chaves Ocultas falou
comigo enquanto eu cagava em Barrows City. Disse que se
fizesse isso eu salvaria o mundo e ganharia a simpatia
dele. Ah, e também porque eu estava sem nada pra fazer.
O meu eu honesto ia retirar o revólver do coldre,
quando um quarto cavalo veio, com alguém sobre ele,
claro. Mas dessa vez parecia uma mulher. Respirei mais
aliviado. Quando ela se aproximou, vi que estava vestida
como uma pistoleira e… se parecia comigo! Ver meu rosto
emoldurado por cabelos compridos e com batom não foi
nada animador. O meu eu psicopata perguntou, babando:
— E aí, querida? Você também é da família? Qual seu
nominho?
— Sou Jerusalena Jones, e o primeiro que rir do meu
nome leva chumbo.
Ela não tinha ninguém na garupa. Mas deve ter parti-
cipado de algum combate, pois parecia bem machucada.
Por curiosidade, quis saber:
— Você estava tentando resgatar alguém?
— Roberta Laughton, filha de Paula Laughton. Cheguei
tarde demais. Porém consegui dar cabo das assassinas.
Mas o que diabos significa isso, somos todos tão pareci-
dos… E por que esse maluco está com um garoto idêntico
ao que está vivo na garupa do outro?!?
Foi quando ela disse isso que vi o menino, olhando
para todos nós de boca aberta, como se visse fantasmas —
e ninguém podia culpá-lo por isso.
Eu queria apenas continuar meu caminho e deixar
aquelas cópias para trás. Quando dei sinal de que iria
partir, meu eu insano sacou a arma para atirar. Meu eu
honesto se meteu na frente e levou o balaço. A garota

91
atirou no doido, bem no peito, mas não escapou de levar
um tiro, bem na cabeça. E fiquei ali, todo mundo morto,
menos eu… e o garoto.
Me veio a ideia de que, para compensar o fato de ter
perdido o dinheiro de Paul Laughton, eu devia levar seu
filho de volta. Mesmo que não fosse exatamente o mesmo,
afinal o original já devia estar morto a essa altura.
— Vem, garoto. Vou te levar para seu pai — ele subiu na
garupa e retornamos para Begin Hill.
De volta à cidade, um outro cavaleiro passou ao meu
lado. Achei que se parecia muito comigo, só que era negro.
Como eu estava com pressa, apenas segui em frente.

92
• episódio 15 •

os mortos que
não tinham túmulo

O SOLDADO RICHARD BAKER já tinha ouvido muitas histórias


acerca do Pelotão Morto-Vivo — os índios os chamavam de
mortos-sem-túmulo —, mas obviamente descartava qualquer
possibilidade de sua existência. Sempre pensou que fosse
uma invenção dos soldados que queriam receber baixa por
insanidade. Alguns mostravam as marcas das mordidas,
mas Rick sabia que em uma guerra valia tudo.
Porém, com as garras de um morto-vivo em sua gar-
ganta, os olhos injetados de sangue e a boca se abrindo em
sua direção, o soldado tinha de admitir que o Pelotão
Morto-Vivo era uma dura realidade. Antes de ser morto, o
Sargento Selkirk acertou um dos monstros na cabeça,
pena que logo em seguida foi engolido por uns outros seis.
Rick escapou, pegou sua arma e continuou atirando.
Descobriu que devia mirar nas cabeças, o que só entendeu
após sua divisão sofrer várias baixas. Naquele momento,
Rick achava que apenas ele estivesse vivo, e não imaginava
o que seria de sua miserável existência.

***

93
Dois anos atrás
O Doutor incumbiu Fletcher de arranjar mais espéci-
mes para o que ele chamava de “excesso de contingente”. Os
Estados Unidos estavam em guerra, e ao Doutor foi solici-
tada uma tarefa no mínimo inusitada: encontrar soldados
para morrer. A ideia inicial era recrutar indigentes e motivá-
-los a lutar pelo bem do país, mesmo que não quisessem.
Fletcher, grande e forte, conseguia isso facilmente. Mas foi
com aquele homem estranho, de cicatriz no pescoço, que as
coisas mudaram completamente.
O Doutor ficou fascinado pela cicatriz. Parou de simples-
mente injetar soluções que deixavam os recrutas coletados
sem vontade própria e resignados a morrer na frente de ba-
talha. Quando o homem da cicatriz no pescoço chegou, o
Doutor, depois de examiná-lo, vislumbrou melhores possibili-
dades. Ninguém soube o que ele havia descoberto, mas um
novo elemento foi adicionado à solução. Agora os soldados
eram mais violentos e bem difíceis de se matar. Fletcher des-
cobriu isso quando o Doutor o largou em um quarto fechado,
apenas com um revólver e um dos espécimes junto. Fletcher
quase foi morto, e só entendeu o que tinha de fazer quando
acabou a munição. Ele, desesperado, bateu com o cano da
arma na cabeça do monstro, que finalmente morreu.

Rick se alistara pensando em viver algumas aventuras


para contar aos netos, caso sobrevivesse. Se morresse,
pelo menos seria como um herói. Naquele momento, no
entanto, ele não queria nem viver, nem morrer, só desejava
acordar daquele pesadelo. Todo um pelotão de mortos-
-vivos estava em seu encalço, e ele não tinha a mínima
esperança de sobreviver.
Rick nunca fora religioso, e sua mãe, May Baker, já de-
sistira de tentar incutir isso nele. Era um tanto quanto
teimoso para as coisas de Deus. Mas Rick estava rezando
mais que todos os pastores de sua cidade natal juntos.
Ele agora não tinha medo da morte, seu medo era o de

94
terminar como seus colegas de pelotão. Os mortos-vivos
faziam exatamente aquilo que contavam as histórias. Eles
devoravam as pessoas vivas.

Um ano atrás
O Doutor fornecia mais e mais soldados, apesar de
Fletcher achar que o lado deles na guerra continuava a
perder. O homem da cicatriz, que fornecia a matéria-prima,
permaneceu todo esse tempo em sono profundo, induzido
pelo Doutor. Era difícil entender como ainda estava vivo.
Já o trabalho de Fletcher — conseguir homens para
morrer ou, pelo menos, demorar a morrer — estava cada vez
mais difícil. Ele já estava tendo que apelar para índios e chi-
neses. Fletcher queria que a guerra terminasse logo, para
que ele e o Doutor voltassem às suas atividades normais.

Rick encontrou uma caverna para se esconder. Ficando


muito quieto lá dentro, na escuridão mais profunda, o sol-
dado desejou que aquelas coisas não tivessem a visão ou o
olfato aguçado de certos animais. Esperava que fossem
estúpidas como pareciam ser, e que não percebessem que
ele entrara na caverna.
Rick se lembrou de que Jerusalem Jones, bêbado, uma
vez lhe contara como tinha ganhado aquela cicatriz no
pescoço quando enfrentou uma mulher morta-viva, que
só não o transformou completamente porque uns amigos
índios o salvaram. Rick perguntou: “como assim, não o
transformou completamente?” Jones deu uma risada ner-
vosa e disse que havia se expressado mal. Porém o solda-
do conhecia histórias sobre Jones, rumores que achava
que fossem apenas brincadeiras de mau gosto. Afinal, o
que não faltava era gente para caluniar JJ. Mas inventar
que ele comia carne humana de tempos em tempos era
muita bobagem. Foi pensando nisso que Rick escutou as
criaturas encontrando a caverna.

95
Onze horas atrás
Fletcher estava cansado desses dois anos de caça a
vagabundos e de conviver com monstros que ele devia
levar, dopados, até os campos de batalha. Por várias vezes
quase morreu. Queria uma aposentadoria o mais rápido
possível. Talvez seja por isso que ele tenha esquecido de
dar a dose diária de entorpecentes para o homem da cica-
triz. O Doutor dizia que não queria aplicar-lhe algo muito
forte, com medo de perder sua valiosa fonte. Foram apenas
uns minutos de esquecimento, mas o bastante para que
acordasse. Fletcher foi sua primeira vítima. O homem
estava alucinado, sua cicatriz pulsava horrivelmente e ele
se transformara em algo muito pior que os soldados do
Doutor. Matou todos os espécimes que estavam no peque-
no laboratório, e vagarosamente se aproximou do cientis-
ta , que ainda tentou se salvar. Sua cabeça voou, indo
parar junto a Fletcher, que sangrava até a morte pelos
golpes que levara do homem da cicatriz. Não era bem esse
o tipo de aposentadoria que desejava.

Rick estava encomendando a alma, sabendo que aque-


les eram seus últimos instantes. Sentiu uma mão agarrar
seu uniforme e puxá-lo, mas o largou em seguida. Os
sons de ossos quebrando, carne sendo dilacerada, eram
ouvidos por todos os lados. Grunhidos, gritos abafados,
silêncio.
Rick ainda ficou por várias horas encolhido no fundo
da caverna antes de pensar em sair. Quando o fez, já era
manhã do dia seguinte. Na entrada da caverna, estava
ninguém mais ninguém menos que Jerusalem Jones, esta-
telado de costas, nu, com tantos ferimentos que não pa-
recia possível estar vivo. Mas sua respiração denunciava
que sim. Ele abriu os olhos, com muito esforço, piscou
algumas vezes, e virou para o soldado ao seu lado:

96
— Esses… foram os últimos. R-Rick… é você, garoto?
Diabos, acho que agora… nunca mais… vai me chamar…
de mentiroso…
E desmaiou.

97
• episódio 16 •

luz, câmera, ação!

COOORTA !!! Sr. Jones, quando eu digo “ação!” é para que


todo mundo fique quieto e, principalmente, para que nin-
guém passe na frente das câmeras!
— Hã… desculpe, mas este era o único caminho para o
banheiro e eu precisava dar uma mijada. Sabe como é,
bexiga de velho…
— Eu… entendo… sr. Jones. Agora, se me permite…
— Oh, claro, claro!
— Em suas marcas! AÇÃÃÃOOOOO!!!
O ator que me interpretava quando jovem, nessa coisa
chamada cinema, deu um soco que passou a três metros do
cara que seria o Devil John. Mesmo assim este voou outros
três metros para trás, caindo sobre uma mesa que devia ser
feita de papelão.
— Eh… sr. Caufield… não aconteceu assim.
— Perdão, sr. Jones. O senhor está interrompendo
novamente?
— Não aconteceu assim. Não foi desse jeito que eu
contei ao sr. Dillon.
— Já ouviu falar em licença poética, sr. Jones?
— Não. É algo que se tira na prefeitura?

99
— Sr. Jones — Caulfield estava ficando roxo — o senhor
vendeu os direitos sobre a história que contou ao Dillon.
Ele, por sua vez, a adaptou para que pudesse ficar bem na
tela. Não importa se o que está lá é verdade ou não, nós é
que decidimos. Sua história agora é nossa.
— Sr. Caufield — um assistente apareceu, desesperado —
o sr. Dillon, ele… ele…
— Ele o quê, homem de Deus?
— Ele acabou de dar um tiro no peito em seu escritório.
— O qu… O QUÊ?!! Aquele desgraçado nem terminou o
roteiro! Por que diabos ele resolveu se matar logo hoje?!
— Eu acho — comecei a falar — que o Devil John não
gostou do jeito que a história está sendo contada.
— Como assim, sr. Jones? Esse idiota não morreu anos
atrás, segundo o senhor mesmo disse?
— Era isso que eu estava tentando falar. Não aconteceu
assim como vocês estão mostrando. Acho melhor eu contar…
Devil John era o apelido de um quase amigo meu cha-
mado John Dereck. Nós fizemos algumas parcerias, mas
isso não era garantia de que ele fosse confiável. John se
envolvia com as coisas mais sinistras que se pode ter notí-
cia. Certa vez, ele sumiu e voltou dizendo que tinha ido até
à África, passando um bom tempo entre algumas tribos.
John voltou com muita quinquilharia na sacola, objetos que
deve ter saqueado pelos lugares por onde passou. Disso eu
tenho certeza, na verdade. Trouxe coisas que pareciam
amuletos, pra lá de medonhos.
John voltou mudado, não saberia dizer se para pior, pois
ele já não era flor que se cheirasse. Estava apenas… mudado.
Mais ambicioso, só que não parecia interessado em dinheiro.
Era por outra coisa, algo que eu descobriria logo, logo.
John ficou em meu quarto naquela noite. Quando acor-
dei no meio da madrugada, me dei conta de que ele não
estava lá. Sem me preocupar muito, voltei para o sofá. No
dia seguinte, John estava dormindo profundamente, segu-
rando um dos amuletos que trouxera com ele. Quando saí

100
pela cidade, uma notícia me chamou a atenção: o pastor da
igreja local havia se suicidado com uma tesoura enfiada no
pescoço, não sem antes matar três de suas fiéis.
Nas noites seguintes, aconteceu a mesma coisa: John
sumia de madrugada e, pela manhã, notícias de mortes
violentas e suicídios. Também havia começado uma onda
de possessões demoníacas, atingindo homens, mulheres,
crianças. O lugar parecia estar sofrendo alguma maldição.
No meio de tudo isso, estava John, cada vez mais feliz e
saudável, sem se preocupar com nada.
Eu já estava pensando em abandonar a cidade, não
tinha muito o que fazer ali. Eles precisavam de um Vaticano
inteiro para resolver o problema, e eu nem para coroinha
servi. Ia partir no dia seguinte, quando tudo desceu por
água abaixo. Eu procurava não pensar que John tivesse
algo a ver com tudo aquilo. Até que, naquela madrugada, o
ouvi falar dormindo.
— O Coletor… o Coletor está cumprindo seu trabalho.
O Coletor tem muito trabalho a fazer nesta cidade… e nas
próximas…
Talvez ele tivesse arranjado algum bico trabalhando
com impostos, sei lá. John se agarrava a um dos amuletos,
àquele que parecia ter maior apego. Quando olhei de perto,
sua mão apertava o objeto com tanta força que chegava a
sangrar. Uma gritaria me tirou de meus pensamentos. Corri
para a janela, e a cidade inteira parecia possuída. Uma
matança terrível teve início lá fora.
Eu sabia, mesmo não querendo admitir, que John era o
responsável, e que eu precisava tomar alguma atitude. Mas
o cara nunca tinha me dado problema. Mesmo naquela
situação, ele não tinha tentado nada contra a minha pessoa.
Foi quando John, em seu sono, grunhiu novamente:
— O Coletor levará o coração de Jones como uma dádiva
especial, mestre.
Bom, aí a coisa mudou de figura. Eu saquei o revólver e
mirei na cabeça dele, com a certeza de que fazia a coisa

101
certa. Quando atirei, John se moveu tão rápido que parecia
uma assombração. Me acertou um soco, que me fez cair no
chão e a minha arma voar longe… Só que, para me bater, o
John precisou largar o amuleto na cama.
Quando ele veio na minha direção, tentei me desviar. Levei
mais socos e pontapés. Mas dessa vez caí perto do revólver.
— Pode atirar, Jones. Agora nada é capaz de me ferir.
Nada. Tenho uma missão para cumprir. Atire, Jones. Eu… O
que você está fazendo?!?
— Não é em você que quero atirar.
Mirei na direção da cama, e disparei. Acertei o amuleto
de pedra em cheio. Ainda no chão, procurei pelos outros
ídolos espalhados pelo quarto. A cada amuleto que des-
truía, John soltava gritos horríveis. E minguava. O homem
grande e forte parecia estar murchando. Quando terminei,
John estava morto, exalando um cheiro horrível.
A cidade voltou ao normal, pelo menos o que tinha so-
brado dela. Enterraram seus mortos, e eu enterrei John,
que ganhou, ali e nas redondezas, o carinhoso apelido de
Devil John. Tempos depois me contaram uma história idiota
de que ele teria voltado dos mortos e que andava à minha
procura. Só que, em todos esses anos, nunca o encontrei.
— Certo, sr. Jones. O Dillon escreveu algo um tanto
quanto mais crível para nosso filme. Espero que o senhor
já tenha tomado seus remédios, parece que está preci-
sando. Mas o que aconteceu com nosso roteirista não foi
surpresa. Ele andava bebendo muito, cheio de dívidas, e
sua mulher o trocou por… bem, por outra mulher. O
máximo que podemos fazer é terminar nosso filme em
homenagem ao coitado. Assim sendo, vamos continuar as
filmagens. Pessoal, vamos terminar esta cena hoje. Em
suas marcas… AÇÃO!!!
— JE-RU-SA-LEM JOOOOONES!!! — Devil John irrompeu
no estúdio gritando, babando, cheio de ódio. Parecia do
mesmo jeito que o vi pela última vez. Quero dizer, que o
enterrei pela última vez. As únicas diferenças eram a pele

102
esverdeada, as veias salt adas, e um colar com o que
restou dos amuletos.
— EU VOU TE MATAAAAARRRR!!!!
Quando ele avançou em mim, só pude me abaixar.
Então escutei uma saraivada de tiros passar por cima da
minha cabeça, que acertaram Devil John e estouraram
seus amuletos.
— Eu já disse… que… não é… pra passar… na frente… da…
CÂAAMERAAA!!!
Não era à toa que o chamavam de diretor, o homem
sabia mesmo em que direção mandar as balas. Depois disso,
procurei não interromper mais o sr. Caufield, até que termi-
nasse o seu filme com a versão que ele quisesse contar da
minha história.

103
• episódio 17 •

a insólita aventura de
jack triplecolt

ERA UM DAQUELES DIAS em que fico filosófico. Estava no


saloon, bebendo umas e outras, e acho que tinha lido
demais. Eu adorava as histórias do Jack Triplecolt, e de
como o cara se metia em cada aventura maluca, coisas que
nem mesmo eu poderia… Bom, eu não podia falar muito,
mas o Triplecolt era só o personagem de uns livretos de
dez centavos.
Bob Calhoun, na mesa comigo, já estava bêbado há
algum tempo. Conversava com ele, mesmo já sabendo que
não ouvia mais nada. Eu também tinha bebido bastante,
mas estava melhor que meu companheiro de copo.
— E, lendo as aventuras do Jack Triplecolt, parei pra
pensar por um instante: e se nós, aqui, e tudo isso ao
nosso redor, for apenas fruto da imaginação de outra
pessoa? E se nada disso existir, e você, Bob, bêbado aí, dei-
tado na própria baba, for apenas o que as palavras de
alguém, em algum lugar, estiverem descrevendo? Doido,
né? Eu penso nisso porque às vezes as histórias do Triplecolt
são tão reais. Olha só esta edição que acabei de comprar
do velho Gorgie, chama Um Túmulo para Jack. Vou ler pra
você… ei, Boooob!!!
— Hã… mãe, quero leite e páprica no meu pão…

105
— Presta atenção! Vou ler pra você.
Jack Triplecolt estava entre a vida e a morte depois de
salvar a filha do rancheiro. Havia conseguido colocá-la
num cavalo, dando cobertura para que fugisse em segu-
rança. Teve de enfrentar o bando inteiro, conseguiu matar
todos, mas não sem sair gravemente ferido. Jack sangrava
e agonizava. Com o frio tomando conta de seu corpo,
sentiu que era o fim. O fim, depois de enfrentar perigos
muito piores que o derradeiro. Porém, morreria como
sempre quis, lutando pela justiça.
Subitamente, talvez causadas pela perda de sangue,
Jack começou a ter alucinações. Viu a si mesmo cavando
um túmulo, sua sepultura, num lugar ermo, onde ninguém
se lembraria dele, nem de seu nome, nem de seus feitos.
Via a si mesmo cavar com vigor, sem descanso. Dentro do
túmulo, havia um abismo sem fim, uma escuridão pastosa
e assustadora. Jack, que nunca sentira medo na vida,
sentiu agora, na morte. Era como se expiasse seus pecados,
como se tivesse que passar por aquilo para alcançar a paz.
A escuridão do túmulo começou a criar garras negras, e
a puxá-lo com força para dentro do além-vida; na verdade,
para o além-morte. Jack foi sugado para a sepultura, pen-
sando que alcançaria o inferno quando atingisse o fundo.
Entretanto, quando abriu os olhos, estava à entrada de
uma cidadezinha, dessas tranquilas, onde o tempo parece
ter parado. Entrou na rua principal, algo dentro dele pare-
cia guiá-lo para um lugar específico.
— Errr… Jerusa… essa história tá uma grandess… gran-
dessízi… tá uma merda! Quem… hic… escreveu isso?
— Bob, você nem sabe ler, não pode querer dar uma de
crítico literário! Agora deixa eu continuar.
Mesmo sendo amistosas, as pessoas logo notavam que
Jack não era da cidade, e percebiam algo distinto naquele
homem, como se ele conhecesse muito mais do mundo. E
assim, Jack continuou seguindo para onde seus pés pare-
ciam levá-lo, até o saloon da cidade. Um lugar modesto,

106
infestado de homens comuns que queriam beber para es-
quecer a vida simplória que levavam. Mas era onde estava
a resposta para sua busca.
Numa das mesas do canto, um homem lia um livro em
voz alta. Lia para um sujeito com a cabeça apoiada na
mesa, quase desacordado pelo excesso de bebida.
— Jerusa… hic… para de inventar, vai… Isso… hic… isso
não tá escrito aí… hic…
Também comecei a duvidar do que estava lendo. Mas a
próxima frase fez com que eu levantasse a cabeça para
olhar a entrada do saloon: “O homem com o livro levantou
a cabeça, e olhou na direção de Jack”.
Queria continuar a leitura, mas o Jack Triplecolt
estava bem na minha frente. Paralisado, eu não sabia o
que fazer. Não era apenas coincidência, o homem parado
na porta, olhando pra mim, era como os livretos descre-
viam o personagem. O que estava acontecendo afinal?
Com muito esforço, voltei minha atenção para o livro,
para ver o que iria acontecer.
O caubói se dirigiu ao estranho homem com o livro
para perguntar o que estava acontecendo ali. Mas, antes
que pudesse falar, Jack acordou.
Olhei para a porta e Triplecolt não estava mais lá.
Continuei lendo.
Jack estava em uma cama. A filha do rancheiro cuidava
dele. Ela contou como seu pai havia chegado com mais
homens, entre eles um médico, e como este conseguira
salvar Jack da morte iminente. Disse também que o caubói
havia ficado desacordado por três dias, e que ela perma-
necera sempre ao seu lado.
— Minha nossa, sr. Triplecolt. Fiquei aqui todo este
tempo lendo em voz alta, mesmo sem saber se me ouvia,
pois esperava que se recuperasse logo.
— Posso ver o título desse livro, senhorita?
— Claro.
— “As Aventuras de Doc Fletchwood”.

107
Jack respirou aliviado, pois achava ter visto seu nome
estampado na capa do livreto do estranho na alucinação.
Despreocupadamente, folheou o livro até a última página,
até a última frase: “Doc, não se desespere. Somos apenas
fruto da imaginação de outra pessoa”.
Jack não entendeu, apenas sorriu para a moça. Entregou-
lhe o livro, se recostou para voltar a dormir, e em seus
sonhos não havia mais túmulos.
Jerusalem terminou de ler e deixou Bob sozinho na
mesa. Lá fora, riscou um fósforo na bota e suspirou, obser-
vando em volta como se tentasse enxergar algo invisível
a seus olhos. Então jogou o livro no chão e pôs fogo.
Detestava coisas que não era capaz entender.

108
• episódio 18 •

caledonian circus

VOCÊ ESTÁ FICANDO VELHO, pensava consigo mesmo JJ ao


relembrar, sentado ali naquela arquibancada, que fazia 35
anos que ele não entrava em um circo. Na verdade, há 35
anos ele nem chegou a ver a apresentação. O pai, sem a
menor explicação, não o deixara ir. Mas isso não impediu
que Jerusalem fosse aos arredores de onde a tenda estava
montada, apenas para…
O pistoleiro foi arrancado de seus pensamentos, justa-
mente por aquilo que ele menos queria ver ali, mesmo estando
no circo: um palhaço. Aliás, uma profusão deles. Jones odiava
palhaços tanto quanto Rangers ou índios trapaceiros. Estar
ali fazia com que se arrependesse de ter desobedecido a seu
pai na infância.

Passeando pelo terreno onde estava sendo armado o


Caledonian Circus, o jovem Jerry (a mãe de Jerusalem o cha-
mava assim) andava tranquilamente, sem entender que mal
havia em ir ao espetáculo daquela noite. Vestido com seu
macacão surrado, o menino observava atentamente todo o
agito que fazia aquele bando de trabalhadores itinerantes.
Pensou com seus botões que eles eram mais livres que qual-
quer outra pessoa no mundo. Mais livres que ele, preso

109
naquela cidadezinha. Talvez fugisse com o circo e fosse viver
caminhando pelo Velho Oeste, quem sabe pelo mundo.
Jerry andou tanto que não notou que a tarde fora embora
e que caía a noite. Nem que ele era a única pessoa da cidade
por perto, pois ninguém mais parecia poder entrar na área
onde o circo estava sendo montado. Mas por que ele podia?
Jerry lembrou que, durante suas andanças por ali, não vira
mais nada além de trabalhadores braçais erguendo pilastras
de madeira e arrumando a lona, que pareceram nem mesmo
tê-lo notado. O sol já havia ido embora totalmente, quando
esbarrou em algo felpudo:
— Garoto, como você conseguiu entrar aqui antes do
tempo? — um urso, imenso, fitava Jerusalem Jones com olhos
de fogo e… falava! — Como conseguiu entrar aqui antes do
tempo? Diga!
O menino ficou estático. O urso falava! Falava e… agarrava!
Quando o gigante o prendeu com suas unhas enormes, Jerry,
sem nem saber como, se desvencilhou e começou a correr o
máximo que pôde, apenas para trombar com um palhaço.
— O garotinho que chegou antes da hora, hein? Gosta
de malabarismo? — Jerry, que caíra sentado no chão, não
respondeu. Apenas ficou olhando o arlequim, com aquela
pintura macabra e sorriso diabólico, tirar de uma sacola
seus terríveis malabares. Aquilo o acompanharia pelo resto
da vida. Aquilo e a risada cada vez mais alta do palhaço ao
ver o menino dar no pé, chorando e gritando.
Queria chegar em casa, mas parecia nunca sair da área
do circo, por mais que corresse. Era como se estivesse
preso, ou como se todo aquele terreno se expandisse. O
pequeno Jerry sentia as outras criaturas daquele lugar
atrás dele, mesmo sem olhar para trás. Ele não queria
olhar, não precisava.
Seu coração quase saía pela boca, suas pernas pareciam
de concreto. O garoto sentia o bafo do capeta, ou seja lá o
que fosse, soprar em sua direção. Uma coisa quente e pega-
josa, como vapor saindo de cadáveres putrefatos. Aquilo

110
não era um circo, não era um lugar de diversão, mas de
morte. Ou talvez algo muito pior.
Quando, enfim, viu-se distante de tudo aquilo, sentou
debaixo de uma árvore para recuperar o fôlego. A noite era
mais densa que o normal. A lua se escondia, e as estrelas
pareciam ter sumido do universo. Jerry nunca tinha co-
nhecido o medo como conhecera naquela noite. Estava
tremendo tanto que mal percebeu quando sua mão tocou
algo de madeira jogado ao seu lado. Um boneco, um boneco
de ventríloquo. O fantoche parecia tão mal ajambrado. A
roupa remendada em vários lugares, e uma cartola amas-
sada, enterrada na cabeça de pau. Por um instante ele
ficou observando, curioso, até o boneco virar a cabeça e
perguntar, ameaçador:
— Por que diabos você veio antes da hora, moleque?!
Nem mesmo Jerry acreditou em sua reação, quando
agarrou violentamente o boneco pelo pescoço. Este come-
çou a esmurrá-lo, com aquelas mãozinhas de madeira,
duras, gritando:
— NÃO QUERÍAMOS VOCÊ AQUI ANTES DA HORA!
As outras criaturas do circo macabro se aproximavam, e
o boneco parecia comandá-las, chamá-las, recitando um
tipo de feitiçaria enquanto esmurrava e arranhava o rosto de
Jerry. O menino já não aguentava mais, estava exausto de
medo e cansaço. Ele seria engolido por aquelas aberrações.
Quando finalmente caiu de costas, o fantoche sobre seu
peito ia desferir o golpe final. Mas o estampido de uma espin-
garda ecoou na noite, transformando a cabeça do boneco em
milhares de farpas. O menino fechou os olhos. Quando abriu,
estava em casa, na cama. Seu pai conversava com sua mãe na
porta, e entregava a ela uma espingarda que Jerry nunca vira
antes. Sua mãe levou-a embora.
— De-Desculpa, pai.
— Nada disso, garoto — o pai respondeu sorrindo. — Eu
sabia que você ia para aqueles lados. Assim que eu disse
que não podia, já me preparei para o que ia acontecer. Na

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verdade, eu precisava de você. Só você podia entrar lá
antes da hora. Não me pergunte como eu sei disso. O im-
portante é que os filhotes de cruz-credo foram embora.
Talvez para outra cidade, mas aí não é problema nosso.
Agora vai dormir. Um dia você vai entender tudo.
— Pai… e a espingarda?
— Ah, ela é sua. Te deram de presente, mas você ainda
não pode usar. É muito criança para essas coisas. Claro que
também é muito criança para ser usado de isca, e acho que
sua mãe vai ficar em greve de “fazer neném” pro resto da
vida depois disso. Mas, quando você crescer, a espingarda vai
ser sua. Talvez acabe precisando mesmo.

Os palhaços eram todos idênticos àquele que JJ tinha


visto quando criança. Atrás deles, o urso enorme, com olhos
de fogo. Isso sem falar nas outras aberrações. Entretanto,
ninguém na arquibancada parecia se dar conta disso. Todos
se divertiam como se fosse um circo comum. Mas Jerusalem
sabia por que apenas ele enxergava.
Quando o apresentador chegou ao centro do picadeiro,
começou a anunciar que naquele momento seria cobrada a
entrada, que não fora paga de início. Ele tirou o pano de cima
de algo que trazia no braço, revelando um boneco de ventrí-
loquo, cuja cabeça destoava do corpo. Parecia maior. Quando
o boneco abriu a boca, ele não falou, mas tudo parou. Um
vácuo começou a se formar. As pessoas pareciam estar
sendo sugadas, mesmo estando ali sentadas.
Jerusalem Jones se levantou, puxou a espingarda de
dentro do seu capote e disse:
— EI, PESSOAL! DESSA VEZ EU CHEGUEI NA HORA!
Uma série de estampidos preencheu a lona do circo, e foi
se dissipando, cada vez mais longe. Uma gargalhada se fazia
ouvir acima de todo o barulho. Jerusalem Jones nunca esteve
tão feliz em um circo antes. Agora ele entendia.

112
• episódio 19 •

o natal de jerusalem

NÃO HAVIA NADA PARA FESTEJAR . Jerusalem Jones estava


bêbado como um gambá alcoólatra. Queria apenas esque-
cer que era Natal. Não, não que sua infância tenha sido um
desastre e que ele nunca tenha ganhado um presente. Seu
Natal sempre foi o de uma criança normal. Pena que ele
nunca tenha sido uma criança normal. Detestava o Natal
apenas por detestar. Ou era só mais uma desculpa para se
entupir de bebida. Na verdade, acho que era isso mesmo.
Afinal, ele dizia odiar a Páscoa também, e enchia a cara
pelas mesmas razões. Ou falta delas.
O pistoleiro nunca acreditou em Papai Noel. Certa vez
seu pai caiu na besteira de brincar com isso, tentando
subir no telhado de casa. Jerusalem, lá com seus oito anos,
pegou o revólver do sr. Jones e começou a atirar em sua
direção, que rolou pelo telhado e caiu no chão, passando o
Natal todo quebrado. Sua mãe só ria de tudo aquilo.
É, JJ simplesmente detestava esse negócio de espírito
natalino. Ele dava graças a Deus por não ter parentes, ou
mesmo amigos, a quem tivesse que dar presentes. Além de
estar sempre duro, provavelmente daria algo que não seria
do agrado da pessoa. Foi meditando na vida ao sabor do
álcool destilado que Jerusalem viu, àquela hora da noite,

113
quatro Papais Noéis saindo de um dos bancos de Snowflake
City. Cada um com o saco mais cheio que o outro. Jones
sabia, por algum motivo, que os sacos não estavam cheios
de brinquedos.
A rua encontrava-se deserta, pois todos comemoravam
em volta de suas árvores de Natal. A gangue do Papai Noel
parece ter achado a oportunidade ideal para limpar o
banco. E, com aquele disfarce, podiam ser abordados por
aí e diriam que eram apenas mais um de tantos bons velhi-
nhos que circulavam pela cidade.
Todos eles notaram Jerusalem, mas vendo seu estado
alcoolizado, os bandidos não deram a mínima. Mas ele
estava sóbrio agora, apesar de não parecer. Havia duas
coisas que deixavam JJ sóbrio, por mais bêbado que esti-
vesse: cheiro de mulher gostosa e cheiro de dinheiro.
Fingindo-se de embriagado, o pistoleiro seguiu a quadri-
lha a certa distância. Estavam correndo para uma carrua-
gem, que já tinha um cocheiro à espera. Entraram os quatro,
e a carruagem partiu a toda. Jerusalem tinha que segui-
-los. Enfiou dois dedos debaixo da língua e tentou assoviar
para chamar seu cavalo. Não conseguiu. Tentou novamen-
te. Só saía baba, ainda tinha os efeitos do álcool agindo em
seu corpo. O jeito foi gritar:
— CADÊ VOCÊ, CAVALO DOS DIABOS?!?
O cavalo apareceu dobrando a esquina, e caminhou
relutante em sua direção. Jones pulou na sela de qualquer
jeito, correndo atrás dos bandidos. A noite estava um breu,
a lua mal iluminava o caminho. Ele mais escutava do que
propriamente via a carruagem. Seguiu mantendo boa dis-
tância, até que depois de um longo tempo percebeu que os
ladrões decidiram parar. Com certeza iam dormir para
seguir viagem de dia. Estavam todos no meio do deserto.
Jerusalem saltou e começou a imaginar o que ia fazer.
Até o momento não havia pensado em nenhum plano para
enfrentar quatro Papais Noéis armados. Suspirou, e quase
morreu com o próprio bafo de cachaça. O que fazer, afinal?

114
Nessas horas é que JJ desejava que algo inesperado aconte-
cesse, uma daquelas reviravoltas que costumam ocorrer
quase sempre em suas histórias.
Jerusalem via a fogueira, que os outros acenderam,
tremular no meio da noite. Puxou seu revólver do coldre, o
segurou bem rente ao rosto, se preparando para sabe-se
lá o quê. Morrer, talvez. Foi quando começou a escutar
gritos horrendos vindos do acampamento improvisado.
Sua espinha virou uma trilha de gelo em suas costas.
Quando, enfim, o rebuliço parou, o silêncio voltou a reinar
sobre o deserto. Mas ir lá ver o que era, nem pensar. Não
com essa escuridão.
Quando o sol nasceu, Jones sentia dores horríveis pelo
corpo por não ter conseguido pregar os olhos. Foi andan-
do, devagar, até o local onde a quadrilha estava. Quando
chegou bem perto, conseguiu deduzir o ocorrido. Os
bandidos não viram, mas tinham montado acampamento
bem no meio de um cemitério indígena de animais. Ou
talvez até soubessem, mas não estavam nem aí.
Mesmo assim, JJ não entendia o que poderia ter atiça-
do a ira dos espíritos. Havia pedaço de Papai Noel para
todo lado. Roupa vermelha, barba branca, restos de gente
enterrados até a metade. Jones olhou ao redor e viu os
sacos de dinheiro intactos. Sorriu feliz da vida. Olhou em
volta, vendo os estranhos túmulos de animais, que eram
marcados por pedras empilhadas, e notou que uma das
covas estava remexida. Ele não acreditou. Um dos bandi-
dos havia aberto o que pensou ser apenas um buraco, e
cagou dentro. Vendo o que restava dos ossos, Jones perce-
beu que era o túmulo de um cachorro bem grande. Devia
ser de algum chefe da aldeia.
Jerusalem se apressou em juntar os quatro sacos,
quando ouviu às suas costas alguns galopes. Era o xerife e
seus ajudantes…
— Jones! Foi você mesmo quem fez isso, filho?! Sempre
soube que era um vagabundo insolente, mas nunca pensei

115
que fosse dado a heroísmos. Vou considerar esse massa-
cre, que não faço ideia de como cometeu, um ato de legíti-
ma defesa. Pelo jeito você sabia que esse dinheiro é das
obras de caridade de quatro cidades, doações do governa-
dor e de seus conhecidos para o Natal. Passe as sacolas,
filho. Você fez um bom trabalho!
O pistoleiro ficou alguns segundos ali, segurando
quatro sacos vermelhos cheios de dólares, pensando em
como odiava ser chamado de filho por pessoas que não
eram seu pai. Ele fungou pensativo, até que decidiu entre-
gar as sacolas:
— É, xerife, tudo pelas criancinhas. Feliz Natal pro
senhor e sua família.
— Para você também, filho.
O xerife deu as costas e se foi com os ajudantes, sem
que vissem o dedo que Jones mostrava para eles. Ia embora
também, quando notou um pé próximo de uma grande
pedra. O corpo de algum dos bandidos estava destroçado
atrás dela. Seu braço encontrava-se mais adiante, seguran-
do um maço de notas. O idiota deve ter tentado subornar a
assombração. Jerusalem pegou o dinheiro e viu que era
uma grana considerável. Olhou para onde estava a cabeça
do assaltante, ainda com a barba postiça — na verdade a
barba parecia ser verdadeira —, e agradeceu:
— Obrigado, Papai Noel! Eu adoro o Natal!
E se mandou para a cidade mais próxima, onde iria
comprar alguns presentes para si mesmo.

116
• episódio 20 •

o velho

O VELHO ACABOU COM TODOS. Havia se entrincheirado em


uma vala seca, de onde matou cada um dos que vieram
comigo atrás dele — o xerife, seus dois ajudantes e quatro
voluntários. Eu estava preocupado apenas com a recom-
pensa, que só entendi por que era tão alta depois que disse-
ram, quando já estávamos a caminho, o que velho havia
feito. Comecei a rir quando contaram que ele chacinara
uma família inteira, sem poupar nem mesmo duas crianças
pequenas. Achei que fosse piada, que o auxiliar Bradley esti-
vesse tentando se divertir às minhas custas. Afinal, quem o
velho tinha matado era Sanford Couper, caçador de re-
compensas aposentado que resolvera casar e construir
família — mas não tinha deixado de ser o mesmo pistoleiro
por causa disso. Só que o velho conseguiu acabar com ele,
e com todos os que ele amava. E olha que Sanford nunca
tinha amado ninguém. Quando o auxiliar Bradley não riu
comigo, percebi que a coisa era séria, e fiquei sem jeito.
Ao nos aproximamos da vala, o velho, como se estives-
se possuído, matou logo dois dos voluntários. Pulamos
para rochas próximas, nos escondendo, mas o que esperar
do sujeito que havia matado Sanford Couper?

117
Depois de alguns minutos de tiroteio incessante —
ninguém entendia como a munição do desgraçado não
acabava —, o xerife Joachim Rose, que detestava ser cha-
mado pelo sobrenome e por isso nós o chamávamos, re-
solveu tentar uma emboscada indo por trás, com um dos
auxiliares, enquanto dávamos cobertura. Claro que não
funcionou. Rose e o auxiliar Potts foram para o inferno.
Sem o xerife no comando, os dois voluntários não obede-
ceram às ordens do último auxiliar e tentaram fazer as
coisas de seu jeito. Morreram antes de entender o que
dera errado. Sobramos apenas eu e o auxiliar Bradley. O
velho estava conseguindo me preocupar.
Não pude culpar Bradley quando ele resolveu que era
hora de bater em retirada e, de fininho, caminhou até seu
cavalo, tentando se manter fora da visão do velho. Após o
auxiliar cavalgar alguns metros, ele caiu, como que fulmi-
nado por um ataque do coração ou algo assim, porque
tenho certeza de que não ouvi nenhum tiro. Parece que
esse velho tinha mais truques do que podíamos imaginar.
Agora era apenas eu e ele. Então, depois de matar
todos sem dizer uma palavra sequer, o velho começou a
falar comigo, mesmo sem eu entender como diabos ele
me conhecia.
— Não vai correr para a mamãe também, Jerry? Era o
que seu pai faria numa situação destas. Você é igual a
ele? Faz muitos anos que não o vejo. Quanto a você, bom,
devo confessar que é a primeira vez que ficamos tão…
próximos. Ele nunca falou de mim, de seu amado avô
Jerome Jones?
— Seja lá como sabe meu nome, só posso dizer que meu
avô faleceu bem antes de eu nascer. Se quer se divertir
antes de morrer, não tem problema, tenho todo tempo do
mundo — gritei, num dos piores blefes da minha vida. O
calor estava acabando comigo, eu estava quase des-
maiando. Provavelmente não teria chance contra aquele
velho dos infernos.

118
— Jerusalem Jones, não é irônico? Outro JJ na família.
Bom, quem sabe seu pai não me odiasse tanto assim. Mas
dizer que eu morri, isso certamente foi algo que me magoou.
Tudo bem, não guardo rancores, Jerry. Seu pai não era dos
nossos. Algumas maldições, assim como certas doenças,
pulam uma geração. E eu sei que é amaldiçoado. Já escutei
muitas histórias sobre você, como se mete com coisas do
outro mundo, irritando até alguns pés-cascudos. Isso me
faz sentir orgulho de que seja um Jones.
O velho, de alguma forma, sabia quem eu era, e estava
se divertindo antes de acabar com minha raça. Ele falava
tanta asneira, que simplesmente desliguei meus ouvidos
enquanto tentava imaginar como iria matá-lo para rece-
ber a maldita recompensa, que agora parecia muito baixa.
Só me restava fingir que tinha caído na sua conversa e
fazê-lo falar mais. Quanto mais ele falasse, mais tempo
de vida eu teria.
— Meu pai era um homem corajoso a seu modo, Jerome,
ou seja lá qual for seu nome. Parece que para você um
homem só tem valor se viver como um assassino, matando
pessoas sem nenhum propósito.
— Oh, Jerry! Nada é sem propósito nesta vida. Os Couper,
por exemplo, não morreram em vão. Tudo faz parte de um
plano maior. Eu sabia que você estava na cidade, sabia que
viria com os outros atrás de mim. Sei como você pensa e
como você age. Somos sangue do mesmo sangue, e é do
seu que eu preciso. E, devo lhe dizer, não fui eu quem quis
assim. Foi o destino.
“Jerry, Jerry… Eu tenho 637 anos. Sim, pode rir. Seu pai
foi meu último filho, e seu único propósito nesta vida foi
trazer você ao mundo e escolher seu nome, nada mais.
Não posso nem imaginar a quantidade de descendentes
que tenho por aí, mas nenhum deles foi mais aguardado
por mim do que você. E, de certo modo, foi difícil encontrá-
-lo em meio a tantos. Para viver eternamente eu não
queria vender minha alma. Afinal, o que sou depende de

119
quem sou por dentro. Era um jogo muito astuto o que o
Oculto me propôs. Se vendesse minha alma, eu seria uma
casca vazia vivendo eternamente. Babando numa cadeira,
como um débil mental, para todo o sempre. Mas… uma
alma que fosse mais ou menos minha, isso eu podia vender.
“Ele gostou da ideia, e concordou. Entretanto, tive de
me cercar por todos os lados. Sabia que poderia viver
eternamente… se ninguém arrancasse minha cabeça ou
enfiasse uma estaca em meu coração. Soube de casos
assim, me informei. Então deixei o Bicho Ruim com água
na boca quando prometi a ele um descendente vindo da
Cidade Santa. Sabe qual é a Cidade Santa, Jerry? Bom,
tenho certeza de que alguém já lhe disse: Jerusalém.
“O problema é que nunca estive lá. Mas poderia ser
alguém com o nome dessa cidade. Só que não dava para
simplesmente batizar um filho assim, o Dito-Cujo não é
tão idiota. Então, o destino seria meu fiador. E o destino
nunca me deixou de calças na mão.
“Meu tempo estava se esgotando. Já havia quase me
conformado com o fato de que não se pode ter tudo o que
queremos. Estava bem longe daqui, e tinha até mesmo me
esquecido de seu pai entre tantos filhos dispersos. Porém,
o destino trabalha de forma organizada. Tinha de ser a se-
mente do meu último filho a trazer a salvação e a vida
eterna. Graças a Deus o Coisa-Ruim também tinha seus
interesses pessoais nessa história. Pelo jeito, você andou
prejudicando alguns amigos dele. Se não fosse isso, creio
que eu já estaria morto. Agora, só precisamos esperar
anoitecer para que as condições certas me permitam in-
vocar a Sombra. Na verdade, este é o lugar exato onde fi-
zemos nosso acordo. Destino, Jerry. Dest…”
— Nossa, velho, você fala demais! Seja ou não meu avô,
pelo menos sabe contar história pra criança dormir.
Surgi pelas costas do desgraçado, que simplesmente
acreditou que o chapéu e o revólver de alguém atrás de
algumas pedras ficariam sem se mexer por tanto tempo.

120
Cravei a faca, que trazia no cinto, em seu pescoço. Com ele
se debatendo e atirando para todos os lados, forcei o
máximo que pude, até o velho parar de se mexer. Resolvi
não me arriscar e, com uma pedra grande que usei como
marreta, bati com firmeza na lâmina fincada, até arrancar
a cabeça do maldito, seguindo as regras que ele mesmo
havia contado. Precisaria da cabeça para receber a recom-
pensa, então, na verdade, estava sendo prático.
Coberto de sangue, depois de enterrar o corpo decapi-
tado, me preparei para ir avisar quem fosse substituir o
xerife Rose para vir buscar os homens mortos na embos-
cada do velho. Havia anoitecido, o frio que fazia foi substi-
tuído por um vento morno. Senti que era obser vado.
Talvez fosse minha imaginação, talvez o cansaço junto
com todo aquele sangue em cima de mim. O fato é que
levantei a sacola onde tinha guardado a cabeça do velho e
disse, em voz alta, para o vento:
— O destino é uma via de mão dupla — e fui embora
daquele lugar amaldiçoado, assoviando uma canção que
meu pai havia me ensinado.

121
• episódio 21 •

epifania

NUNCA TIVE PROBLEMA COM OS ÍNDIOS , estava sempre


entre eles. Não me metia em suas guerras, nem eles nas
minhas. Claro que algumas vezes quebrava essa regra, e
quase sempre ficava em maus lençóis com meus irmãos
brancos. Mas como geralmente eram meus irmãos do lado
podre da família, isso pouco importava. E os índios salva-
ram minha vida mais de uma vez, mesmo quando nem
sabiam quem eu era. Coisa que nunca entendi o motivo.
Quando perguntava a algum que falava minha língua,
diziam apenas que eu era como um bom cavalo que não se
podia desperdiçar. Vou te dizer uma coisa, não sei se isso
era um elogio ou alguma piada. O ruim nos índios é que eles
conseguem ser sarcásticos sem que você perceba.
Se estou vivo hoje, mesmo depois de ter sido mordido
por uma morta-sem-túmulo, agradeço aos meus amigos
índios. Mas o caso é que eu estava passando algum tempo
entre os cherokees, visitando o chefe Cavalo Cansado. Ao
mesmo tempo, evitava sua filha, Égua Lépida que Cavalga os
Montes em Busca de Companhia para Dias Tempestuosos,
que eu chamava apenas de Alice. Ela vinha tentando me
arrastar para o casamento indígena, principalmente depois
que tivemos uma noite de amor e ela cismou em me chamar

123
na aldeia de Touro Abastado. Até gostava do apelido, mas não
sou de me gabar. E nem quero me casar.
Já era noite, com a aldeia em alguma festa que eu não
sabia exatamente sobre o que era. Cavalo Cansado e outros
maiorais da tribo fumavam suas ervas especiais. Eu apenas
perambulava, esperando não esbarrar com Alice. Fui para
um canto mais isolado, só descansar um pouco antes de
enfrentar a viagem da manhã seguinte, mas vi que não
estava só. Um indiozinho de uns quatro anos me olhava,
com cara de pena, como se eu fosse um morto de fome. Eu
estava sentado, tentando cochilar, e ele ficava ali me es-
piando. De repente, abrindo uma das mãos, me ofereceu
alguma coisa. Parecia uma avelã, só que menor. Para que
ele fosse embora e eu pudesse dormir, aceitei. O garoto
saiu correndo, aparentemente contente pela boa ação de
alimentar um faminto. Preciso ganhar alguns quilos, essa
minha aparência sempre confunde as pessoas.
Ia jogar fora a tal fruta, mas senti sua textura na mão.
Aquilo me instigou. Não tinha casca, e o cheiro era sedu-
tor. Coloquei na boca e mastiguei, sentindo estalar. Meus
dentes a trituravam e eu percebia uma espécie de seiva
deixando o miolo. Aquilo era realmente bom. Quando ter-
minei de engolir, senti, quase de imediato, minha língua e
minha boca ficarem dormentes, anestesiadas. Isso se esten-
deu para o rosto, pescoço, por todo o corpo.
Caí de costas e fiquei ali, na areia, olhando para o céu
estrelado. Podia sentir um filete de baba escorrendo pelo
queixo. Queria falar, gritar, chamar alguém, mas não con-
seguia. Estava paralisado, olhando fixamente para cima.
As estrelas brilhavam com mais intensidade, como gran-
des bolas de prata que explodiam. Uma a uma, começaram
a riscar o céu, como estrelas cadentes, fazendo um baru-
lho alto — vussshhh. Iam e vinham, como se dançassem no
firmamento. Uma música estava tocando, dentro da minha
cabeça, acompanhando o bailar dos astros. Assistia a tudo

124
imóvel, mas não por muito tempo. Senti que o solo abaixo
de mim se transformava em areia movediça, que me engo-
lia, até me cobrir por completo. Na escuridão, eu ainda
respirava, sentia e ouvia. Vozes sussurravam palavras que
não compreendia, outras se sobrepunham a elas, antes
mesmo de terminarem de dizer fosse lá o que fosse. A escu-
ridão foi ganhando forma, vi algo se mover no meio daque-
le breu. Parecia um vaga-lume, um pequeno vaga-lume no
centro do vazio. Então escutei uma voz, que disse como se
respondesse a alguma outra: “Sim, haja luz”.
Senti uma dor terrível nos olhos quando o pirilampo
explodiu em um bilhão de fachos incandescentes. Mas não
fiquei cego. Vi aquela luz se revolver toda e se transformar
em imagens. Só que passavam rápido demais, não conse-
guia distinguir quase nada. Tudo ia em velocidade cres-
cente, fulminante, quando de repente parou, e vi a mim
mesmo, como num espelho, olhando de outro lugar, de
outro tempo. Meu reflexo abriu a boca, disse alguma coisa,
e eu via as palavras, não as ouvia. Não eram palavras escri-
tas, mas as via. Eram sólidas, podia senti-las me tocar,
passarem por mim. Agarrei uma delas, que se contorceu
em minhas mãos, a palavra era solte-me. Ao soltá-la, se
dispersou pelo ar, e meu reflexo também. Quando pisquei,
tudo mudou. Via o passado à minha frente, ele lutava com
o presente para tentar chegar ao futuro. Era uma batalha
épica, em que muitos anos e séculos sucumbiram, e o
sangue dos milênios manchava o solo. Um pássaro anun-
ciou o fim da guerra às treze horas de dia nenhum. Um
desfilar de eventos históricos se tornou o prêmio; a coroa
do campeão, uma ampulheta. Eu não tinha mais tempo
tempo
tempo
tempo
tempo.
Um sino tocava, distante; seu ribombar alterava a rea-
lidade. Comecei a me expandir, em ondas, como o lago em

125
que alguém joga uma pedra. Cada círculo, uma nova reve-
lação, tão pungente que não saberia expor em palavras.
Outra pedra. Minha consciência transbordava, se alterava,
se revelava para si mesma. Todos os significados da vida,
nenhum deles era segredo. Estavam ali, o tempo todo.
Meus olhos não eram meus.
Afundei, um navio naufragado na direção da racionali-
dade. Como um tesouro escondido nos destroços da embar-
cação, meu eu se tornou algo a ser procurado, esperando
que o X não estivesse em um mapa, mas na palma de
minha mão. Eu a leria igual um cigano moribundo, para
descobrir o segredo do fogo. Naquele momento eu ardia,
como uma febre. Sentia cada segundo passar sob meus
pés. Cada pergunta me era respondida, antes mesmo que
as formulasse. O mar me levou novamente, agora para
cima. Como uma tábua de salvação, emergia sobre a areia
que me tragara. O dia estava claro, o sol queimava meus
olhos. Era apenas o sol, como um dia qualquer.
Olhei em volta e, por mais que procurasse, não vi o
menino da noite anterior. Perguntei sobre o garoto a
alguns dos índios que passavam, descrevia-o, e ninguém
parecia conhecê-lo. Fui até Cavalo Cansado, contei-lhe o
que tinha acontecido. Ele me olhou, repreendedor, e
apenas disse:
— Você bebeu bastante água de fogo antes de deitar,
Touro Abastado! — e saiu, galhofeiro.
Enquanto caminhava até meu cavalo, vi Alice correndo
na minha direção, gritando em sua própria língua palavras
melosas. Dei um salto e montei no Catapulta. Não sei se
entendi o que me aconteceu, só sei que as mulheres é que
nunca vou entender. Não quero me casar, raios!
E esporei o cavalo com toda força.

126
• episódio 22 •

gothic city

AINDA ME LEMBRO DA FATÍDICA NOITE como se fosse hoje.


Todos os dias. Meus pais e eu vínhamos do teatro, na dili-
gência. Já era tarde e precisávamos atravessar o deserto que
separava Smalltown de Gothic City. Às vezes tento esquecer
aquela noite. Impossível. Fomos abordados por um ladrão
solitário, que baleou o condutor e anunciou o assalto. Meu
pai saiu da carruagem de mãos para o alto, disse que ia
pegar a carteira, mas sacou o revólver. Levou um tiro no
coração. Minha mãe gritava, e eu fiquei apavorado demais
até para isso.
O assaltante desceu do cavalo e abriu a porta do coche.
Arrancou o colar do pescoço de minha mãe, que o arranhou
na face, cheia de ódio e medo. Ele atirou, atirou no rosto
dela. Meu pai e minha mãe estavam mortos, e a noite pare-
cia cada vez mais escura. Tento lembrar de como era o assas-
sino, mas vejo apenas trevas. Quando ele apontou a arma
em minha direção, a escuridão se avolumou e criou milha-
res de asas. Hoje entendo o que foi aquilo: uma nuvem de
morcegos. Aquela área era conhecida pelas cavernas cheias
dessas criaturas.
O desgraçado foi enredado naquela revoada, atirando
para todos os lados. Eu fiquei encolhido. Quando os morcegos

127
voaram para longe, pensei que o bandido também havia desa-
parecido, como em um passe de mágica. Chorava vendo
minha mãe morta ao meu lado e meu pai lá fora. De repente,
a porta atrás de mim se abriu e me agarraram. O assassino
não havia ido embora. Comecei a me debater e ele acertou
minha cabeça. Fiquei tonto, quase perdendo a consciência.
Encostou o cano da arma na minha nuca, quando ouvi
alguém dizer, numa voz que parecia vir de muito longe:
— Não faça isso, Jerusalem Jones! — e escutei um disparo.
Depois, só me lembro de acordar em casa, na minha
cama. Alfie, nosso mordomo, cuidava de mim. Ele disse que o
condutor, Richmond Grayson, que levara um tiro, havia
ficado desacordado. Só recobrou a consciência quando eu
estava prestes a ser morto. Ele baleou o bandido, que me
soltou e fugiu, talvez ferido. Grayson me trouxe para casa e
foi para um hospital. Nunca mais o vi, era contratado tem-
porário de meu pai. E eu não tinha mais pai, nem mãe.
— Alfie, já ouviu falar de algum Jerusalem Jones?
— Não, pequeno Bryce. Por quê?
— É que quando crescer eu vou matá-lo.

Morcegos, odeio esses bichos. E a área em volta de


Gothic City é infestada deles. Nossa, deve fazer uns quinze
anos que não apareço por aqui. As coisas não mudaram
muito, se bem que a cidade parece mais segura, não se
veem muitos bandidos por aí. Na verdade, não vejo nenhum.
Os jornais das cidades próximas falavam do tal Morcego,
um pistoleiro mascarado. Ainda bem que antigamente ele
não existia, e que hoje estou aqui só de passagem. Preciso
encontrar o Smile, depressa, antes desse vigilante. Tenho
que levá-lo daqui, pelos velhos tempos, e pela recompensa
por sua captura.
Fiquei sabendo que Smile agora tem um parque de diver-
sões na cidade. Quando o conheci, ele era um ladrãozinho
barato, que fazia pequenos furtos sem causar mal a nin-
guém. Nós éramos quase parceiros, mas tivemos certas

128
divergências quando ele passou a agir com crueldade. O
sujeito sumiu, nunca mais tive notícias dele, até descobrir
que tinha voltado para Gothic City. Fiquei sabendo, pelos
jornais, que Jack Smile havia sofrido um acidente que o
deixou pálido como um lençol branco. Um palhaço dono de
um parque de diversões. Parece até piada.

Jack Smile, a podridão que corrói esta cidade. Pulo sobre


ele, que tenta reagir. Não tem meu treinamento, nem mesmo
minha força. Entretanto, há algo de sobre-humano em seu
modo de agir, rindo o tempo todo, mesmo enquanto apanha.
De todos os facínoras que encontrei, ele é o mais ardiloso.
Poderia simplesmente matá-lo, mas seria fácil, rápido
demais. Prefiro que apodreça na prisão ao lado de seus
capangas. O xerife Norton garantiu que se eu conseguisse
provas ele poderia enjaular Smile para sempre.
— Morcego… uff… Eu não fiz nada! Não bastou me desfi-
gurar na fábrica de tecidos? Poderia ter te processado, mas
sei que não possui endereço fixo, e isso atrapalharia a entrega
da intimação! — o bandido solta uma longa gargalhada.
— Tenho certeza de que você é um assassino, Smile. Seu
ar de bom cidadão é apenas fachada. Crianças vêm desapa-
recendo, e que lugar melhor para atraí-las do que um parque
de diversões?
— O xerife Norton já vasculhou tudo, Morcego. Não há
nada aqui. Eu sou inocente, apenas um homem de negócios.
Não chego a ser milionário como Bryce Payne, mas um dia
chegarei lá. Agora, agradeceria se parasse de me esmurrar e
me deixasse trabalhar.
— Eu voltarei, Smile.
Deixo o verme em seu reduto. Entro na diligência-
-morcego e os cavalos me levam noite adentro. Passando
pelos arredores do centro da cidade, escuto, ao longe,
entre o burburinho, alguém gritando um nome:
— Ei, Jerusalem Jones, é você mesmo?

129
Ouço Billy Cranston me chamar, uma das poucas pessoas
desta cidade de que ainda me lembro. Vem falar comigo,
quando uma carruagem, toda negra, passa derrubando-o.
Não pode ser outro senão o Morcego. As pessoas em volta
ficam boquiabertas. Apesar de saberem da existência do pis-
toleiro mascarado, creio que poucas o viram pessoalmente.
Ele voa da diligência e me acerta no queixo com um
chute. Muito mais que a dor e a vergonha por apanhar de
um cara vestido para o baile dos enxutos — acreditem, ele
usa capa e tudo — eu fico é confuso. Na verdade, talvez não
devesse ficar, alguém com uma roupa dessas pode sim
atacar pessoas incautas pela rua. Tento me levantar, mas
sou impedido por sua bota sobre meu peito.
— Eu não conhecia seu rosto, Jerusalem Jones, só sabia
seu nome. Hoje chegou a hora de pagar por seus crimes,
assassino covarde!
Torço seu calcanhar e o derrubo. De pé, me preparo
para sacar os revólveres. O cara fantasiado se levanta como
um raio, atingindo meu rosto com um cruzado, igual um
lutador de boxe treinado. Quase desmaio. Ele me ergue
sobre os ombros como um saco de arroz, e se vira para me
jogar dentro da diligência. Vejo Billy se ajeitar, assustado,
olhando para mim. Ainda tenho tempo de dizer:
— Adeus, Billy.
O Morcegão me tranca e sobe para conduzir os cavalos.
Não vê que alguém está pegando carona, atrás da carrua-
gem. Parece tão preocupado comigo que não pensa em
mais nada. Para onde ele estará me levando?
— Você vai para a minha caverna, Jones.
E, dito isso, tudo ficou escuro.

Prendo Jones sobre a maca que uso quando Alfie trata de


meus ferimentos mais graves. Minha vontade era matar o
bandido, mas prefiro entregá-lo ao xerife Norton, dentro da
lei. Porém, ele não sairá desta sem levar uma surra para se
lembrar pelo resto da vida.

130
Acordo zonzo, preso a uma maca em uma caverna.
Não uma caverna comum, parece mais algum tipo de
museu, com armários de vidro expondo armas antigas,
inclusive espadas. Há também muita quinquilharia espa-
lhada, como… uma moeda gigante com o rosto de George
Washington?!?
Vejo que o Morcego louco olha para mim, através daquela
máscara que cobre quase o rosto inteiro. Seus olhos são
puro ódio, não faço a mínima ideia do motivo.
— O que… — levo um soco no meio da boca e decido que
é melhor ficar calado. Não adianta, ele continua me golpean-
do enquanto fala.
— Há muito tempo espero reencontrar o assassino dos
meus pais para um acerto de contas. Enquanto isso, minha
vingança se estendeu a cada um dos malfeitores que infes-
tam Gothic City. Mas finalmente Jerusalem Jones está
frente a frente com o Morcego!
Meu olho esquerdo está quase se fechando pelo incha-
ço, ele se prepara para me bater de novo, quando uma
porta se abre:
— Patrão, o que está fazendo?
— Eu o encontrei, Alfie. Encontrei o assassino de meus
pais!
O homem me olha com pena e curiosidade. De repente,
espantado, coloca a mão sobre a boca:
— Patrão! Esse é o condutor da diligência de seus pais…
é Richmond Grayson, que o impediu de ser morto naquela
trágica noite!
O Morcego fica visivelmente confuso, mas não tem
tempo de dizer nada. De trás de uma rocha na caverna
surge Jack Smile. Foi ele quem veio escondido na diligência.
— Nossa, que grandes revelações temos aqui! Quem
diria que Bryce Payne é o Morcego… E que ele existe por
minha causa? Devia ter me deixado matar esse moleque
naquela noite, JJ.
***

131
Quinze anos atrás…
— Não faça isso, Jerusalem Jones — grita Jack Smile com o
revólver apontado para o jovem Bryce dentro da diligência.
Smile está sob minha mira. Disparo em seu ombro. Ele
larga a arma e o garoto consegue fugir. Mesmo sabendo que
eu era o condutor da carruagem, Smile tinha me baleado.
Por sorte não se certificou se eu estava mesmo morto. A
nuvem de morcegos que o atacou me deu tempo de acordar
e evitar que ele matasse o menino. Os pais dele foram bons
comigo, me dando esse emprego temporário. Tive de inven-
tar um nome falso, já que caçadores de recompensa não
licenciados são vistos com reservas. Agora preciso ajudar o
garoto. Pego o menino no colo, que está de olhos fechados,
quase apagando. Ele tenta balbuciar alguma coisa:
— Mo-Morcegos…
— Eu sei, também detesto morcegos. Agora, vou levá-lo
para casa.

Esse tempo todo o assassino de meus pais viveu em


Gothic City? Antes que eu possa ter alguma reação, Smile
atira para o alto e ordena que lhe entregue as armas.
Obedeço e chuto os revólveres para ele. Passo por Jones,
preso na maca, e me arrependo por saber que espanquei o
homem que salvou minha vida. Como se assistisse alguma
comédia, Smile se diverte:
— Então você é o garotinho que esse aí evitou que eu ma-
tasse? Sabe que nunca me dei conta de que aquele era o casal
milionário de Gothic City? Eu era inexperiente e assaltava
sem planejamento. Fui embora da cidade, e só voltei uns
cinco anos depois. Nem soube que tinha sido eu quem havia
apagado nossos patronos. A noite estava escura, e tivemos
aqueles malditos morcegos que, devo deduzir, foram a inspi-
ração para essa sua roupa ridícula!
As risadas insanas do maldito ecoam nas paredes rocho-
sas e ele quase perde o fôlego. Depois prossegue o discurso,

132
enquanto caminha observando o arsenal nas prateleiras de
vidro da caverna.
— Quando voltei à cidade, com o produto de assaltos
mais bem sucedidos, me estabeleci de vez. Comprei o parque
de diversões e, sim, sou o culpado pelos desaparecimentos
das crianças. Acho que adquiri uns hábitos… exóticos! E, não
sei se notou, estou sempre adicionando novos brinquedos ao
meu estabelecimento. A argamassa que uso para construir
os alicerces tem, digamos, muito calor humano! Por isso o
xerife nunca descobriu os corpos! E sim, sim, estou contando
tudo isso porque nenhum de vocês irá sobreviver.
Smile atira três vezes em meu peito. Caio, sabendo que
estou prestes a morrer. Alfie tenta me defender pegando uma
das espadas nos armários de vidro, mas é alvejado e não
resiste. Meu amigo de toda uma vida, morre diante de meus
olhos. E eu não vou aguentar muito tempo.
— E você, Jones, o que veio fazer na cidade? Ainda nessa
de caçador de recompensas?
— Você cometeu algumas atrocidades fora de Gothic City
e deixou rastros. Estão oferecendo uma recompensa pela sua
captura, e eu vim te levar, para te salvar de você mesmo.
Pelos velhos tempos. Mas parece que você pirou de vez…
— Posso saber o que pensa fazer, preso nessa maca?

— Smile…
— Sim, Jones, fale suas últimas palavras.
— Eu não estou mais preso — digo, erguendo os braços
sem as amarras.
Acerto o bandido com meu soco mais forte. Ele camba-
leia e tomba, largando os revólveres. Antes de ser atingido
por Smile, o Morcego tinha acionado algum mecanismo se-
creto na maca, que soltou as travas que me prendiam. Não
posso negar que o cara é cheio de truques.
Smile se levanta e corre inclinado para pegar suas armas.
Acerto seu estômago com um pontapé, minha raiva toda
contida naquele golpe. Caído, ele parece se lembrar de algo, e

133
começa a apalpar por dentro da camisa. Provavelmente pro-
cura outra arma. Preciso pegar as dele, no chão. Mergulho
sobre elas, Smile consegue sacar uma pequena pistola antes.
Vejo que é minha hora final. Ele aperta o gatilho e… saem
bolhas de sabão?!
— Merda, arma errada.
Descarrego a munição em seu corpo, que cai estatelado
contra a moeda gigante que enfeita a caverna. A liás,
quem guarda uma moeda gigante em uma caverna? Pior,
onde se consegue uma moeda gigante dessas? Nossa,
prefiro nem pensar.
Meu rosto está inchado, levei umas boas pancadas. Pego
meus revólveres, me dirigindo para a saída da caverna. Sou
o único sobrevivente dessa matança. Quando escuto alguém
tossir e me chamar, vejo o Morcego se levantar, cambalean-
do. Corro para ampará-lo.
— Cof… cof… Eu vou ficar bem.
— Mas… como é possível?!
— Essa fantasia é mais resistente do que parece. Eu não
sabia se funcionaria, por um instante pensei que fosse
morrer só pela dor do impacto…
O justiceiro se detém, seus olhos se voltam para o
mordomo morto:
— Pobre Alfie, não sei como vou fazer sem a ajuda dele.
Mas minha cidade não pode ficar abandonada — ele ajeita a
máscara no rosto — pois eu sou o Morcego!
— Hã… claro, claro que você é.
— Jones, muito obrigado.
— Não precisa agradecer.
— Digo, obrigado por tudo. Por estar lá, por salvar
minha vida.
— Ei, vamos parar. Um homem vestido de morcego já é
estranho, se chorar então, fica pior. Agora, eu preciso ir.
Acho que você pode cuidar do resto sozinho.
— Até um dia, Jerusalem Jones.

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O Morcego diz que posso levar duas de suas monta-
rias. Carrego o corpo de Smile até a diligência e o jogo por
cima de um dos cavalos. Monto em outro e solto os ani-
mais do coche. Vamos embora na direção do sol, que
começa a aparecer na entrada da caverna. Preciso atra-
vessar o deser to até chegar à próxima cidade. A inda
quero receber minha recompensa, e comemorar por mais
uma vez ter escapado de meu fim.

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Título Jerusalem Jones: O deserto te chama
Autor Eudes Honorato
Editor Martin Fernando
Revisão de texto Flávia Maíra
Martin Fernando
Ilustração da capa Juarez Ricci
Projeto gráfico Martin Fernando
Formato 12,5 X 18 cm
Tipologia Lora e Roboto
Papel Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)
Pólen Soft 80 g/m2 (miolo)
Número de páginas 136
Impressão e acabamento Lis Gráfica e Editora

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