Vous êtes sur la page 1sur 19

A PROPÓSITO DE ''ACREDITAR QUE P MAS NÃO P'', OU SOBRE ''TER UMA CRENÇA FALSA''1

César Romero Fagundes de Souza*


e-mail: caesarsouza@gmail.com

Resumo: De acordo com Wittgenstein, somente proposições extensionais podem ter valor de verdade,
proposições intencionais, i.e., as que exprimem ''intenção de...'', as que expressam crenças, ou
atitudes proposicionais, e são, portanto, não-extensionais, não são redutíveis às funções de verdade.
O objetivo deste trabalho é discutir se é possível, então, ter-se uma ''crença falsa''; ou, em outras
palavras, ''acreditar que p, mas não p''.

Descartes, no final da primeira Meditação, diz o seguinte:


'Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de
sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas
coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não
está em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade , ao menos está ao meu
alcance suspender meu juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha
crença nenhuma falsidade.. Descartes, Meditações 2, p. 123.
Sentenças3 que expressam crenças, ou atitudes proposicionais, podem ter valor de verdade?
De acordo com Wittgenstein, somente proposições extensionais podem ter valor de verdade.
As proposições intencionais, i.e., as que exprimem ''intenção de...'', as que expressam atitudes
proposicionais, e são, portanto, não-extensionais, não são redutíveis às funções de verdade.
Neste trabalho, eu gostaria de tratar de um ponto bem específico dentro desse contexto, a
saber: se é possível ter uma ''crença falsa''; ou, em outras palavras, ''acreditar que p, mas não
p''.
Para tanto, proponho, primeiro, o seguinte: que todas as sentenças de atitudes
proposicionais possam ser descritas, em sua estrutura, segundo a forma geral ''X acredita que
p'', na qual 'X' possa ser substituído por um nome ou por qualquer pronome pessoal reto; e
onde 'p' represente qualquer proposição 4 —quer verdadeira ou falsa. Segundo, que todas, sem
exceção, possam ser reduzidas a sentenças de atitudes proposicionais em que 'X' é substituído
pelo pronome de primeira pessoa 'eu'. Em outros termos, que todas as sentenças de atitudes
proposicionais em oractio obliqua —em discurso indireto— possam ser reduzidas a sentenças
de atitudes proposicionais em oractio recta —discurso direto—, em especial, sentenças da
forma ''Eu acredito que p'', que são, na base, sentenças de auto-atribuição de predicados
psicológicos, em que a referência do proferidor da sentença, de acordo com Frege 5, é
garantida. Sendo assim, não há como dizer de uma crença se ela é verdadeira ou se ela é falsa.

1
Trabalho escrito em 1997.
*
Doutorando em Filosofia, PUCRS.
2
Descartes, R., Meditações, em Obra Escolhida, trad. J. Guinsburg e Bento Prado Junior, SP, 1973.
3
Distinguirei aqui entre, de um lado, proposições, no sentido mais específico em que Wittgenstein, bem como a
filosofia lingüística e analítica posterior, concebeu, e, de outro, sentenças (ou enunciados), como uma categoria
mais ampla dos atos ilocucionais, que incluiria qualquer proferimento elocucional do falante, podendo coincidir
(incluir) a própria proposição. Essa distinção, assim como sua própria necessidade se verificará no curso da
argumentação.
4
No sentido em que Wittgenstein concebe proposição, enquanto figuração da realidade, como o lugar onde o
pensamento se exprime ''sensível e perceptivelmente'' (3.1), que pode estar de acordo com o que figura ou não, a
realidade considerada por ela, i.e., ser verdadeira ou falsa. Cf. Wittgenstein, L., Tractatus Logico-Philosophicus,
trad. de Luiz Henrique Lopes dos Santos, EDUSP, 1993.
5
Frege, Gotllob , Sobre o Sentido e a Referência, em Lógica e Filosofia da Linguagem, seleção e trad. de Paulo
Alcoforado, Cultrix, SP, 1978.
2

Melhor dito, crenças, ou sentenças de atitudes proposicionais, são imunes —como querem
Frege e Wittgenstein— aos valores de verdade. E dizer, de uma crença, que ela é verdadeira
ou falsa é falar sem sentido, ou, conforme Wittgenstein, é desconhecer a gramática do verbo
''acreditar''. Dito isso, passo, então, a fundamentar essas afirmações.
Tomarei para análise as seguintes sentenças:
(i) C. disse: ''Bob está no pátio''. (oractio recta)
(ii) C. disse que Bob está no pátio. (oractio obliqua)
(iii) Bob está no pátio.
(iv) C. acredita que Bob está no pátio. (oractio obliqua)
Consideremos, agora, as sentenças (iii) e (iv). O que elas têm em comum e no que
diferem, se tal é o caso? Podemos enumerar semelhanças simples entre ambas tais como: são
escritas em língua portuguesa; compartilham uma mesma informação; etc., etc.. Mas o que é
relevante para a direção em que pretendo apontar é aquilo no que diferem. E a diferença entre
ambas consiste em que (iii) é uma proposição e (iv), uma sentença de atitude proposicional.
Sim, mas o que é uma sentença de atitude proposicional? É isso que vou tentar mostrar.
Considere agora (iii). O que esta sentença tem que (iv) não tem? Seguindo aqui a
concepção de Wittgenstein —no Tractatus e nas P.U.—, (iii) é uma proposição, i.e., é uma
figuração da realidade, que pode ser verdadeira ou falsa. Em outros termos, (iii) é algo que
está pelo que pretende representar, figurar, e, enquanto tal, ela pode estar de acordo com este
algo que pretende figurar, ou não. Este algo pelo qual ela pretende estar é, no caso, um fato.
Se a sentença diz que o mundo é tal como ele é, ela é verdadeira; caso contrário, ela é falsa.
(Nos termos de Frege, esta sentença é um juízo —diz algo sobre o mundo— se do sentido que
ela expressa podemos passar à sua referência. A referência de uma sentença, para Frege 6, é
seu valor de verdade, i.e., é o fato de ela poder ser determinada quanto à sua verdade ou sua
falsidade, ou seja, ter um valor de verdade verdadeiro ou falso 7).

6
Para Frege, todo ''aquele que não admite que o nome tenha uma referência não lhe pode atribuir nem negar um
predicado. Mas, neste caso, a consideração da referência do nome se torna supérflua; poder-se-ia contentar-se
com o sentido, se não fosse apenas o sentido da sentença -i.e.,o pensamento-, então seria desnecessário
preocupar-se com a referência de uma parte da sentença; pois, para o sentido da sentença, somente importa o
sentido desta parte, e não sua referência. O pensamento permanece o mesmo se o nome ... tem referência ou não.
O fato de que nos preocupamos com a referência de uma parte da sentença indica que geralmente admitimos e
postulamos uma referência para a própria sentença. O pensamento perde o valor para nós tão logo reconhecemos
que a referência de uma de suas partes está faltando. Estamos assim justificados por não ficarmos satisfeitos com
o sentido de uma sentença, sendo assim levados a perguntar também por sua referência. Mas por que queremos
que cada nome próprio tenha, não apenas um sentido, mas também uma referência? Por que o pensamento não
nos é suficiente? Porque estamos preocupados com seu valor de verdade.'' Op.cit., p. 68. E, mais adiante, p. 70:
''Um valor de verdade não pode ser uma parte de um pensamento, tal como não o pode ser o sol, posto que ele
não é um sentido, mas um objeto. / Se nossa suposição é correta, de que a referência de uma sentença é seu valor
de verdade, então este tem de permanecer inalterado, quando uma parte da sentença for substituída por uma
expressão que tenha a mesma referência, mas sentido diverso [de acordo com a lei de Leibniz da
intersubstitutibilidade dos indiscerníveis e da indiscernibilidade dos idênticos].(...) Que mais, senão o valor de
verdade, poderia ser encontrado, que pertença de modo muito geral a toda sentença onde as referências de seus
componentes são levadas em conta, e que permaneça inalterado pelas substituições do tipo mencionado? Se o
valor de verdade de uma sentença é sua referência, então, por um lado, todas as sentenças verdadeiras têm a
mesma referência e, por outro lado, o mesmo ocorre com todas as sentenças falsas. (...) Nunca nos devemos,
pois, nos ater somente à referência de uma sentença; porém, o pensamento, isoladamente, não nos dá nenhum
conhecimento, mas somente o pensamento junto com sua referência, i.e., seu valor de verdade. (...) Os juízos, cf.
Frege, ''podem ser encarados como uma trajetória de um pensamento para seu valor de verdade''.
7
Nesse sentido, sentenças de auto-consciência, ou de auto-conhecimento, poderiam ser consideradas como
pertencentes à categoria das ficções, uma vez que não podem ter determinadas seus valores de verdade. Pois,
3

Então (iii) é uma proposição e (iv), uma sentença de atitude proposicional; (iii) tem
valor de verdade, i.e., pode ser verdadeira ou falsa; e (iv)? De acordo com a interpretação que
estou propondo aqui, (iv) não é nem verdadeira nem falsa. Nos termos de Frege, (iv) é um
pensamento, e, enquanto tal, tem sentido mas não tem referência, i.e., não pode ser
determinada quanto ao seu valor de verdade; (iv) não tem condições para ser verdadeira, nem
para ser falsa. Pois bem, mas na base do que posso afirmar isso? Como posso, então, verificar
a referência de (iii) —nos termos de Frege— e o sentido, as suas condições de verdade, i.e.,
saber em que condições (iii) é verdadeira ou falsa —nos termos de Wittgenstein?
Para isso, basta confrontar (iii) com a realidade, i.e., ir lá no pátio e ver se Bob está ou
não está lá; se estiver ela é verdadeira; caso contrário, ela é falsa. E por que não podemos
fazer o mesmo com (iv)? Porque não temos como confrontar como fizemos com (iii) (iv)
com aquilo que ela expressa; i.e., (iv), diferentemente, de (iii), não diz nada sobre a realidade,
ela trata sobre um ''estado de espírito'' —nos termos de Descartes— ou de ''auto-consciência''
de C. —nos termos de Anscombe (1975) e Kenny (1979). O que isto quer dizer? Isto significa
que, a fim de determinar (iv) quanto ao seu valor de verdade —sua referência, para Frege; seu
sentido, para Wittgenstein— seria necessário inspecionar o ''espírito'' (mente, consciência) de
C.. O que é impossível. Resta-nos, apenas, o fato físico —no caso de C. proferir ou escrever a
sentença— de constatar o proferimento de C. sobre si mesmo, em discurso direto —oractio
recta— e confiar no que ele diz, i.e., no caso aqui, que ele realmente acredita que Bob está no
pátio. Por que isso? Porque o que (iv) expressa pode ser um algo manifesto verbalmente por
C. ou não.
Vamos supor, agora, o seguinte: primeiro, que Bob esteja no pátio, tal como (iii) diz
que está; segundo, que a razão (motivo/critério/sintoma) para (i) e (ii) seja o fato de Bob estar
latindo para o alto de uma árvore. Portanto, se perguntarmos a C. por que ele disse: ''Bob está
no pátio'', C. poderá dizer, então, ''Ora, porque estou ouvindo seu latido daqui!''. Portanto, o
critério empírico para C. proferir (iii) é o ter ele ouvido o latido de Bob que vem da direção do
pátio. Proponho, então, acrescentarmos uma quinta sentença às outras quatro, que estamos
utilizando na exploração do assunto, a saber:
(v) Bob está latindo.
Consideremos, agora, a seguinte ilustração: Imagine que você esteja curioso, e não se
tenha dado por satisfeito com a razão que C. apresentou. Por isso, você se dirige até à porta
dos fundos da casa, abre-a e contempla tudo ao redor... É noite, e há lua, o que torna nítidas as
figuras de Bob e da árvore. Isso permite a você constatar, sem admiração, que Bob late
insistentemente em direção ao topo da árvore, que fica rente ao muro do pátio. Você pára ali,
então, de pé, na soleira da porta dos fundos, e fica um instante a olhar para a árvore e para
Bob latindo, e se pergunta: ''Ora, por que será que Bob late tão insistentemente em direção ao
topo da árvore?''.
Até esse momento, sem que saibamos, Bob está latindo em direção ao topo da árvore
porque, momentos antes de C. ter constatado a presença de Bob mediante seus latidos, um
gato caminhava sobre o muro, vindo do pátio vizinho, e foi flagrado por Bob, que latiu e o fez

uma proposição, pode ter sentido, mas não ter referência, i.e., valor de verdade, para Frege. Para Wittgenstein,
porém, não. Compreender uma proposição, ou melhor, ser uma sentença uma proposição, é ela ter sentido, e ter
sentido uma proposição, ou melhor, compreendê-la, é saber o que é o caso se ela for verdadeira, i.e., as
condições de estabelecimento do sentido dependem das condições do estabelecimento da verdade de uma
proposição. Uma sentença que não tem valores de verdade (verdadeiro ou falso) não tem sentido, ou não é
determinada quanto ao sentido. E uma sentença sem sentido não é uma proposição, para Wittgenstein. Portanto,
a noção de proposição -que é a expressão do pensamento, onde o pensamento se manifesta- , implica a de
sentido e esta a de valores de verdade. Portanto, para Wittgenstein, sem a possibilidade da determinação dos
valores de verdade, não tenho a possibilidade da determinação do sentido; e sem a possibilidade da determinação
do sentido, uma sentença não é uma proposição; e sem a proposição não tenho pensamento.
4

subir na árvore. Bem, enquanto você olha intrigado naquela direção e pensa —sem saber
disso que narrei—, o gato pula da árvore para cima do muro, e deste para o pátio vizinho,
desaparecendo no escuro, sem que Bob, que o acompanha até onde pode, consiga pegá-lo,
pois o muro é excessivamente alto. Daí, você pensa: ''Ah, então foi por isso! Bob latia porque
acreditava que o gato estivesse escondido no topo da árvore!''.
Suponhamos, então, que depois disso você volte para dentro de casa, e encontre C.,
lendo, sentado no sofá da sala, e que diga a ele:
- Descobri por que Bob latia tanto! - ao que C. responde:
- Ah é, e por que era então?
- Ele acreditava que havia um gato em cima da árvore.
- É?! Mas como você sabe disso?
- Bem, porque eu vi um descer dela e pular o muro!
- Ah, bom!
Na verdade, se as coisas tivessem se passado assim, C. teria sido bem condescendente
com você, pois ele poderia ter complicado bastante as coisas, perguntando, por exemplo:
''Como você tem certeza de que era realmente um gato? Não estava escuro?''. Obviamente,
você responderia conscientemente e com a naturalidade adequada a uma situação dessas:
''Bem, porque eu vi!''. Ao que C. poderia contrapor: ''Mas como você tem certeza de que não
foi outra coisa que você viu, em vez de um gato? Como você sabe se não pensou ver o que na
verdade não viu? Você poderia ter alucinado, imaginado ver um gato, quando, na verdade, o
que você viu foi uma folha caindo...''. Realmente, esta conversa, se tivesse tomado esse rumo,
os levaria bem mais longe...
Digamos que as coisas tivessem se passado de maneira um pouco diferente, e que Bob
não tivesse visto o gato descer da árvore e pular sobre o muro em direção ao pátio vizinho,
como propus, e que ele, iludido, permanecesse latindo, como no início, em direção ao topo da
árvore. Bem, então, eu poderia perguntar a você:
- Como você justifica esse fato? —e você, para ganhar tempo, enquanto pensasse, recolocaria
a pergunta:
- Que fato?!
- Ora, o fato de Bob ter continuado latindo mesmo depois de o gato ter descido da árvore! —
com certeza, você me responderia então:
- Bem, nesse caso, simplesmente, porque Bob acredita que o gato está no topo da árvore!
Você disse: ''Bob acredita que o gato está no topo da árvore''. Temos agora todos os
elementos para completar a argumentação.
Pois bem, mediante essa série de concessões, proponho acrescentar uma sexta
sentença à minha análise:
(vi) Bob acredita que o gato está no cimo da árvore.
Prosseguindo, então, eu retomo um pouco até aqui. Logo acima, quando eu lhe
perguntei por que C. havia dito que Bob estava no pátio, você me deu (v) como resposta, com
base no depoimento de C., certo? Depois de eu ter torcido um pouco meu exemplo, eu
perguntei por que então Bob continuou latindo para o topo da árvore —mesmo quando o gato
já não se encontrava mais nela, pois esta foi a razão que você alegou para ele ter começado a
latir—, você me respondeu (vi). O fundamento da sentença (v) parece ser híbrido: ela tem
uma base empírica de verificação o sentido da audição e uma elaboração racional —
5

manifesta na formulação lingüística— no depoimento de C., que é a própria sentença (v). Mas
qual é o fundamento da sentença (vi)?
Se admitirmos (iv), tendo já admitido (vi), temos, então, uma dificuldade. E é esta a
dificuldade que está imbricada na pergunta acima acerca do fundamento de (vi). Ao afirmar e
admitir (vi) e (iv), insinuou que Bob, um cachorro, assim como C., um homem, tem uma
crença. Ora, como podemos dizer que um cachorro acredita em algo?
Conforme McDermott (1988, p. 143), uma crença pode ser considerada como ''uma
relação entre aquele que acredita (believer) e uma proposição''. Considere a sentença (iv). Esta
sentença expressa uma crença, uma atitude proposicional? Acima, dissemos que sim. Seymor
(1992) propõe que se leia esta sentença como afirmando que C. está em uma certa relação de
crença com a sentença 'Bob está no pátio'. Para Seymor, ''toda sentença de crença apresenta
uma relação de crença entre o agente e um certo significado lingüístico sob um modo de
apresentação que é uma certa forma verbal'' (Ibid., p. 184). Mas podemos perguntar, então, o
seguinte: ''Se (iv) expressa a crença de C. em (iii), no que, afinal, C. acredita: no sinal gráfico,
ou naquilo que (iii) figura, ou seja, o fato representado pela proposição 'Bob está no pátio'?''.
Na verdade, estamos perguntando aqui pelo objeto da crença de C..
Crimmins e Perry (1989) consideram crenças como ''particulares cognitivos ou coisas
na cabeça'' (Ibid., p. 688). Mas os objetos de crenças não são de modo algum coisas, mas sim
proposições. E, mais especificamente, conteúdos proposicionais: ''Um agente acredita em
alguma proposição em virtude de ter uma crença com este conteúdo'' —leia-se: o conteúdo
dessa proposição na qual o agente acredita. Em outros termos: existe um algo (um conteúdo
proposicional) pelo qual está a proposição que se encontra na relação de crença; e é este algo,
pelo qual a proposição está, que é o objeto da crença. Para Crimmins e Perry, muitos agentes
podem estar em relação de crença com a mesma proposição, pois ''proposições são públicas''.
As crenças, advindas dessa relação dos agentes com as proposições, não são públicas, mas
''particulares concretos que pertencem aos agentes tanto quanto braços, dores de cabeça e
ataques de gripe''. Uma crença é algo que tem de ser constituído pelo agente. Nesse sentido,
portanto, ''ela não é um tipo de coisa que está aí para o agente a adotar. Agentes acreditam na
mesma coisa, numa proposição 'p', quando cada um tem uma crença com 'p' como seu
conteúdo'', i.e., com o conteúdo de 'p' (Ibid.).
Isto posto, podemos perguntar agora o seguinte: 1 - Crenças têm sempre por objeto
conteúdos proposicionais? e 2 - Para se ter uma crença —ou uma atitude que a revele—, é
necessário o domínio de uma linguagem? (Essas duas perguntas são desdobramentos daquela
que fizemos acima acerca de (iv) e (vi) ). À primeira, podemos responder: 'não', uma crença
nem sempre tem um conteúdo proposicional como objeto, pois, conforme Crimmins e Perry,
uma crença normalmente ''tem um conteúdo proposicional'' (Ibid.), o que equivale a dizer que
nem sempre tal é o caso. À segunda, podemos responder: 'sim' e 'não'. Para tornar clara esta
posição, devemos retomar a pergunta acima e dar a ela uma via de solução.
Acima, você foi colocado frente ao problema da atribuição de crenças a seres não
dotados de linguagem —i.e., não-racionais—, quando chamei sua atenção para a afirmação de
(iv) e (vi). Para você entender melhor minha pergunta, proponho levar aqui em conta a
distinção que Seymor faz entre dois usos do verbo 'acreditar' em sentenças que expressam
crenças, ou atitudes proposicionais. Para Seymor, nós podemos falar de dois usos do verbo
''atitudinal'', o verbo 'acreditar': ''um uso intencional, no caso em que toda sentença relaciona
um agente a um certo significado lingüístico por meio de um tipo de sentença; e um uso
material, quando toda sentença descreve uma relação entre um agente e um certo conteúdo, e
a sentença usada não serve senão ao propósito de especificar algum modo de apresentação
enquanto tal para o agente''8.

8
Seymor, op.cit., p. 184.
6

No uso intencional do verbo 'acreditar', ''a atribuição de crença estaria fundada ou


sobre o assentimento sincero [do agente] ou sobre disposições para sinceramente assentir à
sentença''. O uso material do verbo teria a função de informar um ''estado teleológico
funcional do agente'', i.e., ''no caso da atribuição material, nós tentamos representar um certo
estado funcional do agente. É como se o agente fosse descrito tentando adaptar-se ele-próprio
a certas características do meio ambiente [contexto], quer estas características existam ou
não''. No caso do cachorro Bob, latindo para o topo da árvore: Bob é um ''agente'',
considerado funcionalmente, ''comportando-se como se houvesse um gato na árvore''9.
Seymor distingue ainda entre o relatum e a natureza das crenças, conforme o uso do
verbo, se intencional ou material. No caso do uso intencional, o relatum da crença ''é um
significado lingüístico sob um certo modo verbal de apresentação''; se o uso é material, o
relatum é ''um certo conteúdo''. Quanto à natureza da relação de crença, se o uso do verbo é
intencional, conforme Seymor, ''falaríamos sobre uma relação de apoderar-se ou apreender
diretamente um certo conteúdo intencional''; se o uso é material, ''nós lidamos com uma
relação puramente ficcional [g.m.] que não implica apoderar-se ou apreender um conteúdo,
qualquer que seja ele''.
Mas a diferença que mais interessa à minha discussão é a que ele observa acerca da
'reflexibilidade' das crenças intencionais. Para Seymor, ''os dois tipos de crenças diferem
também pelo fato de que somente crenças intencionais são reflexivas e trazem consigo uma
autoridade de primeira pessoa [g.m.]. Se um agente intencionalmente acredita que 'p', ele
representa a ele-próprio como alguém que acredita que 'p' e, como importa de fato, ele sabe
que ele acredita que 'p'. No uso material isso não se dá, pois no caso de uma crença material, o
agente não necessita ter uma representação reflexiva de sua própria crença'' 10. Basicamente, o
enfoque que Seymor quer salientar em seu trabalho, nessas suas distinções entre o uso
intencional e o material do verbo 'acreditar' em sentenças de crenças, é o de que, mesmo sob
descrições diferentes do mesmo fato, diferentes agentes podem ter crenças verdadeiras acerca
de fatos materialmente idênticos. (Em outros termos, ele estaria aqui ocupado com uma outra
formulação, no campo das atitudes proposicionais, do problema de Frege acerca da referência
da 'Estrela da Manhã' e da 'Estrela da Tarde'; o problema da correferencialidade de descrições
incompatíveis).
Seymor distingue também, e isso é interessante para análise da qual me ocupo, entre
relatos que são usados para representar crenças básicas e os que representam crenças
derivadas11. As crenças intencionais básicas são as que não pressupõem qualquer ato
inferencial da parte do agente, enquanto as derivadas são as que são inferidas dessas.
Conforme Seymor, o ''mesmo tipo de observações aplica-se mutatis mutandis às crenças
materiais... Existem aquelas que são atribuídas diretamente do comportamento do agente e
aquelas que são atribuídas na base de crenças prévias''. Por exemplo, eu posso diretamente
inferir do comportamento de Bob latindo para o topo da árvore a crença material básica de
que a coisa vista antes está agora na árvore —que, no caso, é o gato. Com base nisso, ''eu
posso então obter uma crença material derivada do efeito de que existe um gato na árvore'' 12.
Para Seymor, quando estamos fazendo uso de sentenças básicas e derivadas, entram
em jogo pressuposições pragmáticas, i.e., considerações acerca do uso contextualizado de
sentenças de crenças por parte dos falantes, ou usuários da língua. Conforme Seymor,

9
Ibid., p. 185.
10
Id., loc.cit.
11
Na verdade sua formulação é mais complexa, a saber, entre: ''crenças intencionais atômicas básicas'' e ''crenças
materiais atômicas básicas'', de um lado, e ''crenças intencionais derivadas'' e ''crenças materiais derivadas'' de
outro.
12
Ibid., p. 188.
7

(...) quando nós estamos usando uma sentença de atitude proposicional para relatar uma
crença básica intencional, nós podemos pressupor que o agente tem um completo
entendimento do significado lingüístico da sentença, mas nós poderíamos muito bem
cancelar essa pressuposição. Ela não é uma informação contida no significado literal da
sentença de crença [, pois] (...) atitudes intencionais acarretam uma conexão com
significados lingüísticos que são mediados pela linguagem. Uma certa forma verbal
serve ao propósito de um modo de apresentação. Isto é perfeitamente compatível com a
possibilidade de que o agente tenha um entendimento incompleto da sentença que
comporta-se como o objeto de sua atitude. Todavia, quando nós tomamos por garantido
o fato de que o agente tem um entendimento completo do significado lingüístico ligado
à sentença pelos membros de sua própria comunidade lingüística, nós fazemos uma
pressuposição pragmática que pode por definição ser cancelada. Quando estamos
fazendo uma tal pressuposição pragmática, todavia, nossos relatos intencionais podem
envolver uma assumção de racionalidade subjetiva mínima da parte do agente, sejam ou
não os princípios de racionalidade similares aos nossos próprios princípios.13
Podemos, agora, retomar as perguntas que fizemos acima, e, com base nessas
posições, respondê-las, aqui, em definitivo. Pois bem, primeiro, eu havia colocado o problema
de se animais podem ter crenças como seres humanos; depois, se o conteúdo de todas as
crenças —seu objeto— era proposicional; e, por fim, se possuir uma crença pressupunha o
domínio de uma linguagem. Acredito que, se a posição dos autores que apresentei aqui
procedem, todas essas perguntas ficam respondidas. Portanto, animais podem, segundo
Seymor, ter crenças materiais básicas; donde, nem todas as crenças terem como conteúdo ou
objeto um conteúdo proposicional, e não ser necessário, para ter-se uma crença, dominar uma
linguagem, o que não quer dizer que, para eu formular ou expressar uma crença eu não
necessite de um meio de expressão, pois os animais podem ter crenças —leia-se: atitudes
perante representações—, mas só nós podemos, primeiro, expressá-las, segundo,
posicionarmo-nos perante elas e daí deliberarmos agir no sentido estrito de ''ter a intenção
de''14. Daí a intencionalidade das nossas crenças.
Considere, agora, o problema acerca da primeira pessoa, a referência de 'eu', discutido
por Anscombe15 e Kenny16, mas sob um aspecto diferente. O modo como é apresentado, o
problema acerca da referência do pronome 'eu', ou sobre que tipo de coisa ele refere ou é, ou,
ainda, a que categoria ele poderia ser vinculado, me parece bastante restrito. Por que isso?
Porque a colocação do problema, bem como a sua formulação, nos dois trabalhos, vincula-o,
enquanto problema, à estrutura da língua inglesa; ou seja, formulam e colocam o problema do
ponto de vista da própria gramática da língua que falam, o inglês —e valendo, certamente,
para todas as línguas que têm os mesmos critérios para a formação de sentenças. Ora, você
sabe que no inglês, não há senteça com sujeito e predicado, sem o sujeito expresso; ou seja,
não é gramaticalmente correto (para não dizer impossível) nem usual construir nem proferir
qualquer sentença sem que o sujeito esteja expresso ou por um nome —substantivo comum
ou próprio— ou por um pronome —seja de primeira, segunda ou terceira pessoa, reto ou
demonstrativo—, devido ao fato de o verbo, em inglês, não possuir desinência de pessoa.

13
Ibid., p. 188-9.
14
Cf. Aristóteles, ''o ato voluntário consiste em fazer alguma coisa depois de haver aplicado a ela de certa
maneira o pensamento e a razão.''. (...) ''Chamo capaz de deliberar àquela faculdade, com relação à qual a
deliberação é o princípio e a causa, e que faz com que se deseje uma coisa, porque se deliberou sobre ela. Isto
nos explica por que a intenção acompanhada da preferência não se encontra nos demais animais, e por que o
homem mesmo não a tem em todas as idades nem em todas as circunstâncias.''. Em Moral a Eudemo, em Obras
Completas, trad. D.Patricio de Azcárate, Argentina, 1947, v. I, livro II, cap. VIII, p. 423 e 431.
15
Anscombe, G.E.M. , The First Person.
16
Kenny, A., The First Person, in C. Diamond & J. Teichman (eds.) Intention and Intentionality: Essays in
Honour of G.E.M. Anscombe (Ithaca: Cornell University Press, 1979): 3-13.
8

Com isso, quero afirmar que ambos não levam em conta, na consideração do problema, tal
como o formulam, a gramática de outras línguas.
''Ei, espere um pouco, aí!' —você dirá— ''Ambos mencionam o caso do latim, em que
o 'o' do verbo 'ambulo' designa a marca da primeira pessoa''. De acordo. Porém, nos dois
textos, o problema é apenas mencionado. Ou seja, não há uma ênfase maior na ocorrência de
sentenças proferidas em oractio recta sem a menção explícita do pronome de primeira pessoa.
Tome como contra-exemplo o nosso próprio idioma, o português, no qual é gramaticalmente
correto, além de usual, formar sentenças com sujeito e predicado, seja em discurso direto ou
indireto, nas quais o sujeito não vem expresso nem por nome nem por pronome, mas, como
no latim, é perfeitamente identificável pela desinência verbal. E isso se aplica claramente às
sentenças em oractio recta, em especial, às sentenças em primeira pessoa. Minha afirmação é
a de que, saber a quem ou ao que se refere o 'eu', quando ele é expresso, é irrelevante. Sob
esse aspecto, interessa, sobretudo, saber a que se referem as sentenças proferidas, e que,
gramatical, semântica e pragmaticamente (contextualmente), são identificadas como se
referindo ao seu proferidor. Você quer saber a base desta minha interpretação?
Pois bem, eu lhe pergunto, na situação dialógica entre você e C. —ambos falantes
nativos do português—, quem era a primeira pessoa? Ou, melhor, como você é capaz de
identificar a primeira pessoa? Enquanto você pensa, e eu lhe digo, que, em princípio, de duas
maneiras, ambas gramaticalmente: primeiro, pelo uso do pronome 'eu'; segundo, pela
desinência verbal de primeira pessoa. (E até aqui você quer saber no difere o que eu digo —
não fosse pela forma tosca da minha argumentação— do que Anscombe e Kenny dizem em
seus trabalhos). Por exemplo, no diálogo, acima, que eu simulei entre você e C., você disse,
sucessivamente: ''Descobri porque Bob latia tanto!'' e ''Bem, porque eu vi um descer dela e
pular o muro!''. Na primeira sentença, o 'i' de 'descobri' indica a primeira pessoa gramatical;
na segunda sentença, o próprio pronome 'eu' desempenha a função.
''E daí?'', você pergunta. (Espere um pouco que eu já chego onde pretendo chegar).
Considere agora uma situação em que um mau falante do português (algo parecido com um
Tarzan conversando com Jane, pode ser um alemão nativo candidato a aprender o português),
numa sintaxe profunda, aponta o dedo para o seu próprio peito e diz coisas tais como estas:
''[auto-apontar-se] querer comer'', ''[ _ ] acreditar chover hoje'', ''[ _ ] Hans'', ''[ _ ] sentir dor'',
etc.. Se você está disposto a tentar entendê-lo, i.e., comunicar-se com ele, com boa vontade,
você decifrará o que ele tentou dizer como sendo, respectivamente: ''[Eu] quero comer'', ''[Eu]
acredito que choverá hoje'', ''[Eu] sou Hans'', ''[Eu] sinto dor''. Em todas essas sentenças, você
concordará, a referência explícita do dêitico 'eu' é gramatical e semanticamente
desnecessária17.
Pois bem, o que eu quero dizer sobre o intuito do falante de designar-se a si-próprio,
na primeira pessoa gramatical, quer usando explicitamente o pronome 'eu', quer
implicitamente designando-a pela desinência do verbo, quer, ostensivamente, apontando para
si-próprio, quer ainda mostrando a letra 'A' gravada nos pulsos (como ilustra Anscombe18), o
que interessa é o fato de, em todas essas situações, o conteúdo dos sinais lingüísticos
referirem-se ao seu proferidor (mais ou menos como Kenny19 afirma), i.e., de referirem-se a

17
Você pode, também, no ato discursivo, ou na situação dialógica, identificar a primeira pessoa material como
aquela que fala primeiro, por isso, primeira pessoa; o que se define sempre no próprio ato da comunicação. E,
como Kenny mesmo afirma (ver, abaixo, nota 25), o problema não é esse.
18
Anscombe, op.cit., p. 143-4.
19
Cf. Kenny, 'eu' não é um nome próprio, não porque todo mundo possa tê-lo, nem porque ele seja um nome
que todos usem para falar de si mesmos. No caso do exemplo de Anscombe, em que as pessoas teriam em seus
pulsos escrito 'A' e em suas costas as letras de 'B' a 'Z', e quando fossem falar de si mesmas, referindo-se a ações
suas, usassem o 'A' e quando fossem falar umas das outras usassem as letras de 'B' a 'Z'. Mesmo nesse caso, o 'A'
não seria como nosso 'eu', a não ser, cf. Kenny, que ''ele fosse, como 'eu', uma manifestação de auto-
9

ele-próprio, ou, melhor, de ele, o proferidor dos sinais lingüísticos, referir-se a seus estados de
consciência, de espírito, de sua mente, de seu conhecimento de si, de sua auto-consciência20.

consciência''. (Como no exemplo de W. James citado por Anscombe no final de seu artigo). Op.cit., p. 4. Cf.
Wittgenstein: ''Não existe (...) qualquer objeção à adoção de um simbolismo em que uma certa pessoa ocupe,
sempre ou temporariamente, o lugar excepcional. E, por conseqüência, se pronuncio a frase ''Sou eu o único que
vê realmente'', é concebível que os meus semelhantes adotem, em conseqüência disso, a sua notação de modo a
concordarem comigo dizendo ''fulano é realmente visível'', em vez de ''L.W. vê fulano'', etc.,etc.. O que, contudo,
está errado é pensar que posso justificar esta escolha de notação. Quando disse, do fundo de meu coração, que
era o único a ver, sentia-me também inclinado a dizer que, com ''eu'', não queria realmente referir-me a L.W.,
embora, em proveito dos meus semelhantes, pudesse dizer ''neste momento é L.W. que vê realmente, embora não
fosse isso o que de fato queria dizer. Quase poderia dizer que, com ''eu'', me referia a algo que habita,
precisamente neste momento, L.W., algo que os outros não conseguem ver. (Referia-me ao meu espírito, mas
apenas o podia indicar através do meu corpo). Não há nada de errrado em sugerir que os outros me deveriam
atribuir um lugar excepcional na sua notação; mas a justificação que pretendia dar para isso, a saber, que este
corpo é agora a morada daquilo que realmente vive, não tem qualquer sentido, dado que isto não afirma,
confessadamente, algo que no sentido vulgar seja uma questão de experiência. (E não pensem que é uma
proposição baseada na experiência, apenas suscetível de ser por mim conhecida, porque só eu me encontro na
posição de ter a experiência particular). Ora, a idéia de que o verdadeiro eu vive no meu corpo está relacionada
com a gramática peculiar da palavra ''eu'', e com os equívocos cuja origem é da responsabilidade desta gramática.
Existem dois casos diferentes no uso da palavra ''eu'' (ou ''meu'') a que poderia chamar ''o uso como objeto'' e ''o
uso como sujeito''. São exemplos do primeiro tipo de uso: ''O meu braço está partido'', ''Eu cresci doze
centímetros'', ''Eu tenho um inchaço na testa'', ''O vento despenteou o meu cabelo''. São exemplos do segundo
tipo de uso: ''Eu vejo isto e isto'', ''Eu ouço isto e isto'', ''Eu tento levantar o meu braço'', ''Eu penso que vai
chover'', ''Eu tenho dores de dentes''. Pode indicar-se a diferença entre estas duas categorias dizendo: os casos da
primeira categoria envolvem o reconhecimento de uma pessoa particular, e existe nestes casos possibilidade de
um erro, ou, melhor dizendo, providenciou-se a possibilidade de um erro. (...) É possível que, por exemplo, sinta
uma dor no braço, veja ao meu lado um braço partido, e pense que é o meu, quando na realidade ele é do meu
vizinho. E poderia, olhando para um espelho, tomar um inchaço na testa do meu vizinho por um inchaço na
minha testa. Por outro lado, não há a menor dúvida de que quando digo que tenho dor de dentes isso não tem a
intenção de identificar uma pessoa. Perguntar: ''tens a certeza de que és tu quem tem dores?'' seria absurdo. Ora,
quando neste caso nenhum erro é possível, isso deve-se ao fato de a jogada que nos sentiríamos inclinados a
pensar ser um erro, uma ''má jogada'', não fazer parte do jogo. (Fazemos a distinção no xadrez entre bons e maus
lances e, se expusermos a rainha a um bispo, chamaríamos a isso um erro. Mas não é um erro promover um peão
a rei). E agora esta maneira de expor a nossa idéia ocorre-me ao espírito: que é tão impossível que, ao fazer a
afirmação ''Eu tenho dor de dentes'', tenha confundido outra pessoa comigo, como o é gemer de dor por engano,
tendo confundido outra pessoa comigo. Dizer: ''tenho dores'', bem como gemer, não constituem afirmações sobre
uma pessoa particular. ''Mas a palavra ''eu'' na boca de um homem refere-se certamente ao homem que a diz;
indica-o; e muito freqüentemente um homem que a diz aponta, de fato, para ele próprio com o seu dedo''. Mas
era inteiramente supérfluo apontar para ele próprio. Poderia apenas afinal ter levantado a mão. Seria errado dizer
que, quando alguém aponta para o sol com a mão, por ser ele que aponta está a apontar em simultâneo para o sol
e para si próprio; por outro lado, pode, ao apontar, chamar a atenção tanto para o sol como para si. ... A palavra
''eu''não significa o mesmo que L.W., nem significa o mesmo que a expressão ''a pessoa que está agora a falar''.
Mas isso não quer dizer que ''L.W.''e ''eu'' signifiquem coisas diferentes. Isso significa simplesmente que estas
palavras são instrumentos diferentes da nossa linguagem. (...) A boca que diz ''eu'' ou a mão que se levanta para
indicar que sou eu que desejo falar, ou eu que tenho dor de dentes, não aponta, ao fazer isso, para alguma coisa.
Se, por outro lado, desejo indicar o lugar da minha dor, aponto. E aqui, de novo, lembrem-se da diferença entre
apontar para o lugar doloroso sem ser conduzido pelo olhar e, por outro lado, apontar para uma cicatriz no meu
corpo depois de a ter procurado. (''Foi aqui que me vacinaram''). O homem que grita de dor, ou diz ter dores,
não escolhe a boca que o diz''. Wittgenstein, O Livro Azul, trad. de Jorge Mendes, Edições 70, Lisboa, 1992, p.
117. E sobre o uso de 'eu' como demonstrativo, ver também, p. 118-19.
20
E isso, para nós, deveria ser incompreensível, pois, segundo Wittgenstein, posso ''exprimir o meu solipsismo
dizendo ''só é realmente visto o que eu vejo (Ou: vejo no momento presente)''. Aqui sinto-me tentado a dizer:
''Embora eu não me refira com a palavra ''eu'' a L.W., se outros a entenderam como referindo-se a L.W., isso será
correto, se neste preciso momento eu for de fato L.W.. ''Poderia também expressar a minha pretensão dizendo:
''Sou o receptáculo da vida''; mas notem que é essencial que todos aqueles a quem eu digo isto não possam
compreender-me. É essencial que o meu interlocutor não possa compreender ''o que eu realmente quero dizer'',
10

A referência garantida que uma investigação (filosófica, gramatical ou psicológica —


não importa) deveria encontrar em tais situações de proferimentos (exteriorizações) de
sentenças de auto-conhecimentos, estados de espírito, é a mesma referência, falando como
Frege, a saber, o valor de verdade verdadeiro 21 —sejam estes crenças, dores, sensações,
desejos, etc., que podem ser interpretados (tal como quer Descartes e, posso dizer, como
instrui o próprio Frege) como pensamentos, e, enquanto tais, todos, dentro dessa mesma
modalidade: a da auto-referência. Pois, como quer Descartes, todas essas maneiras de auto-
referir-se têm de ser consideradas necessariamente verdadeiras todaa as vezes e enquanto
aquele que as profere o faz. Em outros termos, se eu puder situá-las todas dentro da mesma
modalidade da sentença cartesiana 22 —que Descartes chamou, discutivelmente hoje,
''proposição''— do ''Eu sou, eu existo'' como sendo verdadeiro todas as vezes em que a
profiro, sentenças de auto-conhecimento têm de ser consideradas necessariamente verdadeiras

embora, na prática, possa fazer o que eu desejava, concedendo-me uma posição excepcional na sua notação. Mas
pretendo que seja logicamente impossível que ele me compreenda, quer dizer, que não tenha sentido, e que seja
falso dizer que ele me compreende. Assim, a minha expressão é uma das muitas que, em várias ocasiões, são
usadas pelos filósofos e que, supostamente, comunicam algo à pessoa que a diz, embora sejam essencialmente
incapazes de comunicar algo a qualquer outra pessoa. Ora, se para que uma expressão comunique um sentido, tal
significa que deve ser acompanhada por, ou produzir, certas experiências, a nossa expressão pode ter os sentidos
mais diversos e não desejo dizer seja o que for sobre eles. Mas somos, na realidade, induzidos em erro ao
pensarmos que a nossa expressão tem um significado no sentido em que o tem uma expressão não-metafísica;
visto que comparamos indevidamente o nosso caso com um caso em que uma pessoa não pode compreender o
que dizemos porque lhe falta uma certa informação. (Esta observação pode tornar-se clara se compreendermos a
relação entre a gramática, o sentido e a ausência de sentido). Wittgenstein, op.cit., p.112.
21
Pois, para Frege, devemos reconhecer ''o valor de verdade de uma sentença como sendo sua referência.
Entendo por valor de verdade de uma sentença a circunstância de ela ser verdadeira ou falsa. Não há outros
valores de verdade. Por brevidade, chamo a um de o verdadeiro e a outro de o falso. Toda sentença assertiva, em
face à referência de suas palavras, deve ser, por conseguinte, considerada como um nome próprio [posição da
qual Wittgenstein não compartilha], e sua referência, se tiver uma, é ou o verdadeiro ou o falso. (...) Alguém
poderia ser levado a conceber a relação do pensamento com o verdadeiro, não como a do sentido com a
referência, mas como a do sujeito com o predicado.'', op.cit., p. 69. ''(...) Que mais, senão o valor de verdade,
poderia ser encontrado, que pertença de modo muito geral a toda sentença onde as referências de seus
componentes são levadas em conta, e que permaneça inalterado pelas substituições do tipo mencionado? Se o
valor de verdade de uma sentença é sua referência, então, por um lado, todas as sentenças verdadeiras têm a
mesma referência e, por outro lado, o mesmo ocorre com todas as sentenças falsas. (...) Nunca nos devemos,
pois, nos ater somente à referência de uma sentença; porém, o pensamento, isoladamente, não nos dá nenhum
conhecimento, mas somente o pensamento junto com sua referência, i.e., seu valor de verdade.'', op.cit., p. 70.
(Esta poderia ser uma outra maneira de apresentar a formulação kantiana de que o conhecimento é a operação
conjunta do conceito e da intuição?). Nesse sentido, sentenças de auto-consciência, ou de auto-conhecimento,
poderiam ser consideradas como pertencentes à categoria das ficções, uma vez que não podem ter determinadas
seus valores de verdade. Pois, uma proposição, pode ter sentido, mas não ter referência, i.e., valor de verdade,
para Frege. Para Wittgenstein, porém, não. Compreender uma proposição, ou melhor, ser uma sentença uma
proposição, é ela ter sentido, e ter sentido uma proposição, ou melhor, compreendê-la, é saber o que é o caso se
ela for verdadeira, i.e., as condições de estabelecimento do sentido dependem das condições do estabelecimento
da verdade de uma proposição. Uma sentença que não tem valores de verdade (verdadeiro ou falso) não tem
sentido, ou não é determinada quanto ao sentido. E uma sentença sem sentido não é uma proposição, para
Wittgenstein. Portanto, a noção de proposição -que é a expressão do pensamento, onde o pensamento se
manifesta- , implica a de sentido e esta a de valores de verdade. Portanto, para Wittgenstein, sem a possibilidade
da determinação dos valores de verdade, não tenho a possibilidade da determinação do sentido; e sem a
possibilidade da determinação do sentido, uma sentença não é uma proposição; e sem a proposição não tenho
pensamento.
22
Cf. Descartes,''após (...) ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por
constante que esta proposição ['proposition', cf ed. francesa], eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira,
todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.'' [g.m.]. Op.cit., p. 126.
11

todas as vezes em que os seus proferidores a proferirem 23, desde, é claro, que não estejam
alucinando, nem possuídos24 —seja por anjos ou espíritos—, nem sonhando, e não
provenham de gravadores ou replicantes 25, etc., etc..
Por que isso?! Na verdade, se você concordar com Wittgenstein acerca da
impossibilidade de eu saber se alguém, além de mim-mesmo, sente a dor nas costas que estou
sentido agora, depois de oito horas escrevendo no computador —ou mesmo se alguém sente
algo, seja o que for—, e que tudo o que me resta é crer que o que o outro, fora de mim, diz 26
de si é verdade, ou por seus gestos, expressões, ou por que eu não tenho outra alternativa
senão acreditar que assim é já que ele —que diz 'eu'— diz que é assim, ou que tal e tal é o
caso acerca de si27. (A base dessas afirmações você encontra em Wittgenstein, quando ele fala
sobre o aprendizado da linguagem, do treino nessa linguagem, no uso contextualizado e
compartilhado por outros falantes dessa mesma língua28).
Em outros termos, o que eu quero dizer com isso é que eu uso 'eu', ou a desinência de
pessoa nos verbos que utilizo para auto-referir-me —às minhas ações, aos meus estados de
auto-conhecimento, etc.— (ou mesmo a letra 'A' de Anscombe gravada em meus pulsos), por

23
Pois, cf. Descartes, ''por mais que me engane, não poderá [o deus engangador] jamais fazer com que eu nada
seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa.''[g.m.]. Op.cit., p. 125.
24
Cf. Kenny, comentando exemplo mencionado por Anscombe, o fenômeno da possessão pode ''atirar na
confusão o sentido de 'eu' emergindo de uma boca humana. Eles não podem criar um sentido de 'eu' no qual, em
vez de expressar a auto-consciência do corpo ao qual a boca pertence, serve para expressar a auto-consciência de
algum outro agente. Alguém que se acredite ele-próprio possuído pode é claro dizer 'Não foi eu que proferi estas
terríveis blasfêmias num momento passado'. Ele não está negando que foi seu corpo que fez os ruídos: e nós
podemos julgar sensata sua reclamação. Nem sempre o movimento que o corpo de uma pessoa faz é um
movimento corporal desta pessoa: mas isto não significa que possam existir movimentos corporais de uma
pessoa que não sejam movimentos do corpo desta pessoa. Para que um movimento do corpo de X seja um
movimento feito por X ele tem de ser um movimento voluntário: e as blasfêmias do possuído, nós podemos crer,
não são ações voluntárias suas. Mas em todas estas é o 'eu' da pessoa desafortunada possuída que nós podemos
entender, e não o 'eu' de um possessor.''. Op.cit., pp. 10-11. E, no final de seu artigo, diz Kenny: ''Eu argumentei
que nem a consideração dos papéis de intérpretes, nem a reflexão sobre o fenômeno da possessão, nem a
imaginação de um estado de privação sensória dão razão para pensar que conteúdo pode ser dado para 'eu'-
pensamentos onde não existe pessoa identificável como um atual ou possível proferidor de pensamentos.'',
op.cit., p. 13. A propósito do exemplo de Anscombe da possessão de corpos por espíritos, o caso dos médiums;
ou o caso dos anjos de Descartes possuindo um corpo e a diferença entre este e um espírito de um homem em
seu próprio corpo dizendo 'eu' e dizendo o que que sente ocorrer em seu corpo. No caso do anjo e no do espírito
encarnado no corpo do médium, não é possível a eles referirem-se às afecções sensíveis, pois o corpo em que se
encontram não lhes pertence, por assim dizer.
25
Pois, cf. Kenny, ''quando nós olhamos para o verificador ou falseador de 'eu'-sentenças nós temos que olhar
para o primeiro proferidor da sentença e não para proferidores secundários tais como intérpretes, telefones, ou
gravadores. Nós individuamos a idéia de ação individualizando o proferidor primário; e nós descobrimos que X
é o proferidor primário em um tal caso por descobrir, inter alia, os sons feitos pelo corpo de X dentro do campo
de detecção do proferidor secundário.'', op.cit., p. 8.
26
''Se o que sinto é sempre a minha dor apenas, o que poderá significar a suposição de que uma outra pessoa tem
dores?'' A única coisa a fazer nesses casos consiste sempre em ver como as palavras em questão são efetivamente
usadas na nossa linguagem''. Cf. Wittgenstein, op.cit., p. 100. A esse propósito, ver também §§ 244, 256-257,
293, 300 das Investigações Filosóficas de Wittgenstein
27
Cf. Kenny, ''Anscombe argumentou que 'eu' não é uma palavra cuja função é referir seu proferidor. Mas é
parte do sentido de 'eu' que asserções contendo-o são verificadas ou falseadas por referência à história do
afirmador. Isto é alguma coisa que você sabe por conhecer a gramática da palavra, não alguma coisa que você
conhece como um resultado do estudo do contexto de uma elocução particular. Uma elocução pública de uma
'eu'-sentença tem um claro sentido somente quando é claro que é o corpo, a pessoa, que a profere como seu
proferidor primário. O que vale [goes for] para a elocução pública tem de valer para o pensamento privado
também, se Wittgenstein está correto [em dizer] que não existe uma coisa tal como um sentido privado.'', op.cit.,
p. 12.
28
Cf. Wittgenstein, op.cit., pp. 38-41 e p. 61,
12

que fui treinado a fazê-lo, de acordo com a gramática (estrutura) da língua que falo e com a
comunidade dos falantes dessa língua, que compartilham tacitamente das mesmas regras e de
situações semelhantes nos contextos de aprendizagem, i.e., os casos paradigmáticos em que
somos ensinados —melhor seria dizer adestrados ou treinados— a proferir tal e tal coisa de
tal e tal modo em vez de tal outra e assim por diante, i.e., o caso em que aprendemos as
regras29. Nesse sentido, a posição de Cavell30 —compartilhada por Chomsky e criticada por
Katz e Fodor31— vem nessa direção:

29
Poderia arriscar a dizer, de uma maneira extremamente simplista, dizendo que 'eu' é o dêitico, nome
gramatical, que, em toda situação discursiva, o falante da língua em questão, proferidor das suas elocuções, usa
para referir-se a si mesmo, em lugar do seu nome; nesse sentido estrito, 'eu' é o nome que está pelo nome numa
situação específica do processo discursivo do sujeito material falante; i.e., é o signo que ele aprendeu a usar para
referir-se a si mesmo, às suas ações, aos seus estados de espírito, às suas crenças, aos seus medos, anseios,
desejos, etc.. Considerado assim, 'eu' não é um nome, e está apenas indicando, no ato da elocução, que a pessoa
que está falando está falando de si mesma. Nesse sentido, 'eu' nada mais é senão um signo que aprendemos a
usar para substituir nosso nome e para atribuirmos predicados a nós próprios quando falamos e pensamos; do
mesmo modo que aprendemos a usar o 'tu', o 'ele' para referimo-nos às demais pessoas do discurso. Na verdade,
a palavra 'eu' não deveria oferecer nenhuma dificuldade de compreensão, uma vez que ela não encerra em si
coisa alguma, substância pensante alguma. Seu uso é o resultado das ações cognitivas e das habilidades
discursivas desse sujeito material que toma de si uma distância no ato ilocucional de referir-se a si próprio
enunciando e conectando predicados e propriedades a si. Por exemplo, num ato discursivo qualquer, substituindo
o 'eu', poderíamos ter, aos moldes de Descartes, isso: em vez de 'eu' em ''Eu sonho em viajar para Miami'',
poderíamos ter 'a-coisa-que-está-precisamente-agora-falando-estas-palavras-que-vocês-estão-ouvindo' em '' 'A-
coisa-que-está-precisamente-agora-falando-estas-palavras-que-vocês-estão-ouvindo' sonha em viajar para
Miami''; e assim por diante. Se encararmos o 'eu' como uma mera convenção gramatical para economizar as
auto-referências nos atos discursivos para proferir sentenças acerca de si-próprio, em vez do nome de uma
entidade complexa, ou coisa que o valha, complicações sobre este tema, como as que tece Anscombe passam a
ter pouco interesse. O fato é que discordo da interpretação que a própria Anscombe dá de seu próprio exemplo
acerca dos 'A'-usuários. 'A' serve tão bem como 'eu' para referir o si-próprio, desde que, tal como 'eu', isso seja
uma convenção compartilhada por todos aqueles que falam a língua em questão e pertencem a esta comunidade
de falantes. Visto de fora, parece tão estranho alguém referir-se a si-próprio com 'A' como pode parecer estranho
a um falante nativo de português, que não conhece o francês, o inglês ou o alemão, ver os falantes nativos destas
línguas referindo-se a si-próprios -ao proferirem estados interiores seus, pensamentos, desejos, ações- em atos
elocucionais (situações discursivas), utilizando-se dos respectivos pronomes de primeira pessoa dessas línguas
'je', 'I', 'ich'. O problema não é, ao meu ver, o 'eu' mas o que ele encerra ou, o que é mais preciso, aquilo que o
encerra, portanto, o sujeito material que faz uso consciente desse signo (dêitico), que tem valor gramatical
apenas, e é válido para todos os que falam o idioma em questão. (A não ser que Anscombe esteja se referindo ao
uso do dêitico de primeira pessoa direto, de qualquer língua, como capaz de ser o suporte lingüístico para as
operações de auto-atribuições do sujeito material -que toma a cena no ato discursivo, para falar de si, daquilo que
está nele-, referindo-se diretamente a uma substância de atributos, um suporte de atribuições, etc., etc.. Bem, se é
isto, e se minha interpretação, além equívoca, não é uma trivialidade, o que eu disse é desnecessário, sem contar
que nem toca no ponto em questão).
30
Stanley Cavell, Must We Mean What We Say?.
31
Para Fodor e Katz, o argumento de Cavell é um non sequitur, pois ele parte da premissa de ''que um falante
nativo é a fonte da evidência empírica dos lingüistas, para a descrição de uma linguagem natural, para a
conclusão de que os enunciados do falante nativo sobre sua linguagem não podem, por sua vez, necessitarem [be
in need] de evidência empírica para sua sustentação.'' Cf Fodor e Katz, o que ''Cavell esquece é a distinção entre
o que um falante nativo diz (os enunciados que ele produz no curso da fala) e o que ele diz sobre o que ele e
outros falantes nativos dizem (os comentários metalingüísticos que eles fazem quando o modo [mood]
(disposição) reflexiva está sobre ele. Pode não haver dúvida mas a maioria (embora definitivamente não todos)
dos enunciados de um falante nativo são enunciados da linguagem do falante. Esta verdade é garantida pelo
truísmo de que uma linguagem natural é o que um falante nativo da linguagem fala. Todavia, os enunciados que
um falante nativo faz sobre sua linguagem, suas exigências metalingüísticas, não necessitam ser verdadeiros a
fim de que o lingüista tenha que procurar explicar.'' Cf FK, o que ''Cavell falhou em mostrar é precisamente que
a possibilidade de uma descrição empírica de uma linguagem natural pressupõe a verdade das exigências
metalingüísticas de seus falantes. '' (Cf nota: ''A exigência de que o lingüista deve assumir a verdade dos
13

Nós podemos ter em mente o fato de que esses enunciados -enunciados em que alguma
coisa é dita em inglês- estão sendo feitos por falantes nativos do inglês [ou qualquer
outra língua]. Tais falantes, em geral, não exigem evidência para o que é dito na
linguagem; eles são a fonte de tal evidência. É deles que o lingüista descritivo toma o
corpus de enunciados na base dos quais ele construirá uma gramática dessa linguagem
... mas, em geral, para dizer o que é e não é inglês, e se o que é dito é propriamente
usado, o falante nativo pode confiar em si prório; se não, não poderá confiar em coisa
alguma. (...) [P]ara um falante nativo dizer o que, em circunstâncias ordinárias, é dito
quando, nenhuma informação especial é necessária ou exigida. Tudo o que é necessário
é a verdade da proposição que [afirma que] uma linguagem natural é o que o falante
nativo dessa linguagem fala.32
Considere, agora, uma objeção que pode ser dirigida à tentativa que apresentei de
descrever todas as sentenças de atitudes proposicionais —ou crenças— segundo a forma geral
''X acredita que p''. Pois bem, segundo essa interpretação, sentenças de atitudes proposicionais
têm a estrutura ''X acredita que p'', onde 'p' é uma proposição, e o conteúdo de 'p' é o objeto da
crença de 'X'; nela, 'X' se encontra em uma relação, por meio da forma verbal —o verbo
'atitudinal', conforme Seymor— 'acredita', com a proposição 'p'.
Digamos que você agora decida refutar essa interpretação da análise de crenças, que
venho defendendo, objetando-me em meus próprios termos, da seguinte maneira 33: ''Bem,
acima você afirmou que, crenças ou atitudes proposicionais —i.e., aquelas que podem ser
atribuídas a agentes racionais que dominam uma linguagem, e que não se encontram apenas
numa relação funcional com a sentença (como no caso das materiais)—, em que o verbo
atitudinal é usado no sentido intencional, não têm por objeto apenas conteúdos proposicionais.
Ora, se é assim, como você explica então, por meio deste seu artifício, uma sentença de
atitude proposicional —i.e., uma crença intencional— que tem a forma ''X acredita em p'',
donde 'X' é um agente não funcional e 'p' não é uma proposição, porém outro agente —
expresso por um substantivo, um nome próprio—, que, preenchidos os lugares de argumentos
'X' e 'p' —da função ou expressão funcional, conforme Frege—, respectivamente, por 'João' e
'Maria', dá a seguinte sentença ''João acredita em Maria''?''
Devo iniciar minha resposta, fazendo uma observação gramatical, pois o seu
exemplo, tal como foi apresentado, introduz uma distinção, que pertence à gramática do verbo
'acreditar', i.e., ao seu uso. Segundo a N.G.B. (Nomenclatura Gramatical Brasileira), o verbo
acreditar é um verbo transitivo indireto, que exige um complemento preposicionado. Em
outros termos, o objeto deste verbo deve vir introduzido por preposição. Portanto, de acordo
com essa descrição, quem acredita acredita em alguma coisa ou em alguém, i.e., o verbo
'acreditar' é regido pela preposição 'em'. E, nesse sentido, a preposição indica aquii que a
''ação'' do agente não incide diretamente sobre o seu objeto. Nesse caso, o do verbo 'acreditar',
a preposição encaminha a ''intenção'' do agente em direção ao seu objeto. Já em verbos como
'comer', p.ex., a ação do agente incide diretamente sobre (no) objeto, alvo de sua ação. Sendo
assim, de acordo com a regra (gramatical) de uso do verbo 'acreditar', essa regência indireta

enunciados metalingüísticos em poder dos falantes nativos a fim de descrever sua linguagem corretamente é
indefensável. Enunciados metalingüísticos dos falantes nativos aparecem no corpus do lingüista da linguagem,
mas isto prova coisa alguma acerca de sua verdade porque o corpus contém enunciados falsos e verdadeiros sem
discriminação. Se o lingüista tivesse de separar as verdades das falsidades sobre a linguagem antes que ele
pudesse iniciar a descrever a linguagem, ele teria que conhecer muito sobre a linguagem antes que seu trabalho
lingüístico pudesse ter início.''). In Jerry A. Fodor and Jerrold J. Katz, The Availabillity of What We Say, in
Philosophical Review, Cornell University, v. LXXII, no. 1, p. 60, 1963.
32
Ibid., cit.cit., p. 59.
33
O que se segue aqui é uma reconstrução da objeção feita a mim, em aula, pelo professor Jaime Rebello,
durante a apresentação do artigo de Fodor 'Propositional Attitudes'. (Eu formulo aqui uma resposta que não dei
mediante a objeção, pois não tinha em relação ao tema a clareza que agora penso ter!).
14

vale para sentenças simples, i.e., não-compostas. O que você tem numa sentença assim, como
complemento do verbo, é o próprio objeto em direção ao qual o agente exerce (manifesta) sua
intenção, expressa pelo verbo 'acreditar'. Isso, porém, não ocorre no caso das sentenças em
que o objeto do verbo acreditar é introduzido por uma outra sentença subordinada a ele. E é
deste tipo de sentenças que a forma geral, que apresentei, pretende dar conta.
Dito isso, como é que eu resolvo o problema colocado pela apresentação gramatical da
sentença que você utilizou como contra-exemplo? Bem, de acordo com a interpretação de
Frege34, os gramáticos consideram as sentenças subordinadas substantivas, adjetivas e
adverbiais, como partes de sentenças. Para Frege, esta ''divisão das sentenças poderia ensejar
que a referência de uma sentença subordinada não fosse um valor de verdade, mas algo
similar à referência de um substantivo ou de um adjetivo ou de um advérbio, em resumo, algo
similar à referência de uma parte da sentença cujo sentido não é um pensamento, mas apenas
parte de um pensamento.''35 Nesse caso, o que a sentença que você apresentou como exemplo
tem de diferente da que considerei em minha interpretação é a estrutura, i.e., a sentença que
você apresentou é uma sentença simples, i.e., não composta, em que o complemento do verbo
'acreditar' é um substantivo e vem introduzido pela preposição 'em'; enquanto o tipo de
sentença de atitude proposicional, que é objeto de minha consideração, trata-se de uma
sentença composta por subordinação, em que o objeto do verbo 'acreditar' é uma sentença
subordinada ao conteúdo desse verbo, e é introduzida pela conjunção integrante 'que'. Isso
significa dizer que, gramaticalmente, eu posso reduzir o complemento do verbo 'acreditar',
que é o pensamento contido na sentença subordinada, por um substantivo que se aproxime do
que ela expressa, i.e., que mantenha o significado da sentença enquanto todo —nos termos de
Frege: que satisfaça a lei de Leibniz36— e, vice-versa, eu posso transformar um substantivo,
complemento do verbo 'acreditar' na sentença simples, numa sentença subordinada
introduzida pela conjunção 'que', que expressa o pensamento em relação ao qual se encontra o
agente material —sujeito gramatical— por intermédio do verbo 'acreditar'37.

34
Op.cit. , p. 71.
35
''Às sentenças substantivas abstratas introduzidas pelo ''que'' pertence também o discurso indireto, no qual ... as
palavras têm sua referência indireta, que coincide com o que é, costumeiramente, o seu sentido. Neste caso, a
sentença subordinada tem como referência um pensamento, e não um valor de verdade; como sentido, não um
pensamento, mas o sentido das palavras ''o pensamento de que...'', o qual é apenas parte do pensamento da
sentença composta como um todo. Isto ocorre depois de ''dizer'', ''ouvir'', ''pensar'', ''estar convencido'', ''inferir'' e
palavras semelhantes. (...) Que nestes casos a referência da sentença subordinada é de fato o pensamento, pode
também ser visto pelo fato de que, para verdade do todo, é indiferente se tal pensamento é verdadeiro ou falso.
Comparem-se, p.ex., as duas sentenças: ''Copérnico acreditava que as órbitas planetárias eram circulares'' e
''Copérnico acreditava que o movimento aparente do sol era produzido pelo movimento real da terra''. Pode-se
aqui substituir uma sentença subordinada por outra, sem prejuízo da verdade. A sentença principal, juntamente
com a sentença subordinada, têm como sentido apenas um único pensamento, e a verdade do todo não implica
nem a verdade nem a não-verdade da sentença subordinada. Em tais casos, não é permissível substituir, na
sentença subordinada, uma expressão por outra que tenha a mesma referência costumeira, senão por uma que
tenha a mesma referência indireta, i.e., o mesmo sentido costumeiro. Se alguém fosse inferir: a referência de uma
sentença não é seu valor de verdade, ''posto que, se assim fosse, ela poderia sempre ser substituída por uma outra
sentença do mesmo valor de verdade'', teria provado demais; poder-se-ia alegar, da mesma forma, que a
referência da expressão ''Estrela da Manhã'' não é Vênus, desde que nem sempre se pode dizer ''Vênus'' no lugar
de ''Estrela da Manhã''. Aqui a única conclusão pertinente é que a referência de uma sentença nem sempre é seu
valor de verdade, e que ''Estrela da Manhã'' nem sempre se refere ao planeta Vênus, a saber, quando esta
expressão tem sua referência indireta. Uma tal exceção ocorre nas sentenças subordinadas ... cuja referência é
um pensamento. / Quando se diz ''parece que...'', o que se quer dizer é ''parece-me que...'' ou ''penso que''. Temos,
portanto, o mesmo caso anterior.''. Frege, op.cit., pp. 71-73.
36
Ver nota 34.
37
''A sentença subordinada tem, habitualmente, como sentido, não um pensamento, mas apenas uma parte de
pensamento, e conseqüentemente, nenhum valor de verdade como referência. A razão disto é que, ou bem as
palavras da sentença subordinada têm uma referência indireta, de modo que a referência da subordinada, e não o
15

Ora, isso tudo para dizer que o seu contra-exemplo não pertence à mesma categoria de
sentença da qual trata a forma geral que propus para descrever sentenças de atitudes
proposicionais, pois seu exemplo, de acordo com minha análise, não é uma sentença de
atitude proposicional, no sentido que defini acima. Ele expressa uma crença de João, sim.
Porém, não deixa claro no que ele acredita. Sentenças subordinadas, anexadas às sentenças
simples, têm exatamente a função de expandir e tornar mais nítido, em casos assim, nosso
entendimento —pensamento— acerca do objeto que se encontra relacionado com o agente
material —sujeito gramatical— por meio da atitude expressa pelo verbo. Portanto, se você
desconsidera as distinções gramaticais que eu procurei salientar acima, sentenças da forma ''X
acredita que p'' e ''X acredita em p'' —donde 'p', na primeira, é uma proposição com valor de
verdade, e, na segunda, um substantivo—, são, superficialmente, o mesmo tipo de sentenças.
Pensando bem, se você tomar a sentença, que você apresentou como contra-exemplo à
minha argumentação, ''João acredita em Maria'' e perguntar, seriamente, qual é afinal o objeto
da crença de João... creio que você não se dará por satisfeito com a resposta: ''Maria''. Porque,
na verdade, você sabe que o nome (de um suposto agente) 'Maria' esconde, digamos, uma
sentença, um pensamento mais complexo, que pode ser uma proposição, nesse caso, e
portanto ter um valor de verdade, qual seja, a sentença (ou proposição) ''Maria diz a verdade'' /
''Maria disse a verdade'' / ''Maria fará o que disse'', etc., etc.. Nesses termos, você admitirá que
o nome 'Maria', enquanto objeto da crença de João, tem um conteúdo, e que esse conteúdo
pode ser expresso proposicionalmente.
Ora, se você me concede isso, então você não poderá achar minha proposta de
interpretação tão absurda, e admitirá que, ao fim e ao cabo, todas as sentenças de atitudes
proposicionais, ou que expressam crenças, podem ser cobertas pela forma geral ''X acredita
que p'', donde 'p', agora, podendo ser, também, um conteúdo proposicional, mas não só, uma
vez que, dependendo do uso do verbo 'acreditar', esse conteúdo poderá ser expresso ou por
uma representação (um conteúdo mental), ou por um substantivo, ou por uma proposição, ou
por uma sentença que expresse um pensamento, etc.. Portanto, se você, agora, tomar a
sentença do seu contra-exemplo, e reinterpretá-la segundo minha sugestão, i.e., substituindo o
nome 'Maria' pela proposição ''Maria diz a verdade'', e subordinando-a, por meio da conjunção
'que', à parte principal da sua sentença ''João acredita ...'', você verá, agora, sem dúvida, uma
sentença de atitude proposicional onde antes você não via. Fazendo as substituições, você
terá, então: no lugar de ''João acredita em Maria'' , ''João acredita que Maria diz a verdade'' 38.
Se procede essa interpretação das atitudes proposicionais e/ou sentenças que
expressam crenças como redutíveis a sentenças de atitudes proposicionais em oractio recta —
i.e., sentenças de atitudes proposicionais da forma ''X acredita que p'', onde 'X' é o proferidor
da crença, indexado ou por uma marca gramatical no verbo ou pelo pronome 'eu', e 'p' uma
sentença que expressa ou um conteúdo mental (Seymor), ou um pensamento (Frege) ou uma
proposição (Wittgenstein), as crenças intencionais (Seymor) 39—, nenhuma sentença de crença

seu sentido, constitui um pensamento, ou bem a sentença subordinada, por conter um indicador indefinido, é
incompleta e só exprime um pensamento quando justaposta à sentença principal. Porém, pode também ocorrer
que o sentido da sentença subordinada seja um pensamento completo, e esta pode ser substituída por outra de
mesmo valor de verdade, sem afetar o valor de verdade do todo, desde que não haja nenhum obstáculo
gramatical.'' [Esta análise se aplica ao caso das sentenças que têm um sentido simples]. Frege, op.cit., p. 81-2.
38
Considere, ainda, a sentença ''João acredita em Deus'' como equivalente à sentença ''João acredita que Deus
existe''. Pergunto: ''Deus existe'' é uma proposição? Diz algo acerca do mundo, cf Wittgenstein? É um juízo, i.e.,
se encaminha do sentido à referência, cf Frege? Bem, seguindo aa concepção de Wittgenstein, 'Deus existe' não é
uma proposição, porque não pode ser determinada quanto ao sentido, i.e., não tem sentido. Para Frege, é um
pensamento. Portanto, a sentença 'Deus existe' é o pensamento cujo conteúdo é o objeto da crença de X.
39
Cf. Seymor, ''somente crenças intencionais são reflexivas e trazem consigo uma autoridade de primeira pessoa.
Se um agente intencionalmente acredita que 'p', ele representa a ele-próprio como alguém que acredita que 'p' e,
16

ou atitude perante uma ''proposição'' proferida em discurso direto pode ser falsa, enquanto
acreditada pelo proferidor material da sentença; seu conteúdo, porém, se puder ser submetido
às funções de verdade, sim. Em outros termos, a sentença de atitude proposicional em oractio
recta não pode ser falsa, porque o que ela expressa não pode ser objeto de verdade ou
falsidade —desde que seu contéudo (objeto) pertença ao agente material proferidor, assim
como ''braços, dores de cabeça e ataques de gripe'' (Crimmins).
Do fato de um agente poder ter uma crença cujo conteúdo possa ser falso, caso
reservado apenas, como mostrei, às crenças cujo conteúdo é proposicional —pois, os casos
em que o conteúdo da crença é uma ''imagem mental'' (uma coisa vista, sentida, etc.) ou um
pensamento (tal como: ''Deus existe'', ''Os unicórnios têm um chifre'', etc.), não estão sujeitos
às funções de verdade—, não se segue, ao meu ver, que sua crença seja falsa, o que levaria a
pensar que alguém, por desconhecer a verdade daquilo que acredita, pudesse, por essa razão,
acreditar falsamente. O que não tem sentido. Por exemplo, o caso da crença de João em
Maria: ''João acredita que Maria diz a verdade'' não implica que seja verdadeiro que 'Maria diz
a verdade'. É perfeitamente compatível com o conceito de crença que João acredite na
verdade da proposição que diz: ''Maria diz a verdade'', mesmo quando tal não seja o caso, i.e.,
que ela minta, mas ele não saiba. Do contrário, se João soubesse, p.ex., que a proposição
''Maria diz a verdade'' é verdadeira, se tal fosse o caso, nós teríamos, então: ''João sabe que
Maria diz a verdade''. O que não implica que ele não possa desacreditar de tal fato mesmo
sabendo que tal é o caso.
Em suma, minhas atitudes de crença não dependem do estado de coisas. Portanto,
crenças, assim como sentenças de atitudes proposicionais que expressam crenças, não estão
comprometidas com a verdade ou não de seus objetos. Por isso, eu posso dizer: ''Acredito em
Deus'' ou ''Acredito que Deus existe'', mesmo sem saber se ao pensamento, com o qual se
relaciona minha atitude de crença, corresponde um conteúdo ou não. Isso quer dizer que
posso acreditar em coisas para as quais não possa atribuir nem verdade nem falsidade.
Talvez essa conclusão seja um tanto óbvia, se procedente. Mas o fato é que, se você
pensar um pouco, lembrará das inúmeras vezes em que ouviu, leu, disse ou mesmo pensou
que uma crença pudesse ser falsa. A esse respeito, reconsidere a passagem das ''Meditações''
de Descartes, com que iniciei minha exposição, onde ele apresenta claramente um exemplo
desse modo de falar e de formular as coisas (e, talvez, de crer):

Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne,


de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas
essas coisas <mais croyant faussement avoir toutes ces choses>40. [g.m.].
No entanto, nessa mesma passagem, um pouco mais adiante, o próprio Descartes dá a
pista para evitar, por assim dizer, o problema:
Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está
em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade , ao menos está ao meu
alcance suspender meu juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em
minha crença nenhuma falsidade <de ne recevoir en ma croyance aucune
fausseté'>.[g.m.].
Na verdade, quando ele diz ''não receber em minha crença nenhuma falsidade'' [g.m.],
ele parece distinguir a 'crença' de seu 'objeto' (conteúdo), que pode ser falso —i.e., se a
proposição, que é objeto da crença, for falsa. E, desse modo, procede corretamente. Porém, de

como importa de fato, ele sabe que ele acredita que 'p'. No uso material isso não se dá, pois no caso de uma
crença material, o agente não necessita ter uma representação reflexiva de sua própria crença.''. Op.cit., p. 185.
40
Descartes, R., Méditations Métaphysiques, org. par Émile Faget, Nelson, Éditeurs, Paris, pp. 127-8.
17

acordo com minha interpretação, quando ele antes disse ''... mas dotado da falsa crença de ter
todas essas coisas...'' [g.m.], o erro que ele comete —bem como todos os que formulam, dessa
maneira, sentenças que expressam crenças—, é o de transferir a propriedade que pertence (é
atribuída) ao 'objeto' da crença —a proposição que expressa seu conteúdo—, o poder ser
verdadeiro ou falso (o estar submetido às funções de verdade) à própria crença enquanto tal. E
isso, como procurei mostrar, é fazer mau uso da gramática de 'acreditar'.

Apêndice: (entendendo o ''insulamento'')


Eu gostaria de falar mais um pouco sobre as sentenças de atitudes proposicionais em
oractio recta —as de discurso direto em primeira pessoa—, como sentenças de auto-
conhecimento, e da diferença entre (iii) e (iv). Em que medida, uma sentença de atitude
proposicional pode ser considerada uma tomada de posição do sujeito material proferidor da
sentença sobre sua relação consigo mesmo e com o mundo, e, nesse sentido, uma atitude de
insulamento? Por exemplo, quando digo (iii) ''Bob está no pátio'' e (iv) ''C. acredita que Bob
está no pátio'', essas duas sentenças são idênticas? Já mostrei que não! O proferimento da
segunda exige um distanciamento consciente do sujeito-material-proferidor que o
proferimento da primeira não exige, no sentido de que a primeira é uma figuração
(representação) de um fato (arranjo presente das coisas) da realidade por meio da linguagem,
a constatação de que tal é o caso acerca do real, enquanto que, paralelamente, a segunda é
uma ação reflexiva frente a uma figuração da realidade, por meio da linguagem, i.e., é a
constatação (lingüística) frente a um aspecto da consciência de si que o proferidor da sentença
naquele momento apresenta, uma constatação de que tal coisa é o caso acerca de si em relação
a algum aspecto ou de si-próprio ou do real.
Em outros termos, a primeira fala do mundo, diz como o mundo se apresenta ou não
no momento em que é considerado, já a segunda diz algo sobre aquele que a profere, sobre a
sua posição em relação a si-próprio ou algo que se dá no mundo ou dele em relação a esse
algo. A primeira pode ser verdadeira ou falsa, i.e., ter valor de verdade, nas palavras de Frege.
E a segunda, pode ser algo ao qual podemos atribuir valor de verdade do mesmo modo que a
primeira? Já mostrei, também, que não! No meu entender, sentenças de atitudes
proposicionais do tipo ''Acreditar que p'' estão no mesmo nível de sentenças tais como ''Eu
sou, eu existo'', na medida em que exigem do sujeito-material-proferidor um certo
insulamento, no sentido de que exigem dele que se distancie do real e reflita sobre sua
percepção dele ou de si-próprio, e torne a expressar sua atitude sobre o real ou sobre si
mesmo, uma certa atitude de tomada de posição perante seu estado de conhecimento em
relação ao real e si-mesmo. Nesse caso, a atitude reflexiva frente ao conteúdo proposicional,
pode desencadear um tipo de comportamento que a só pura constatação do fato expresso pelo
conteúdo da crença 'p', por exemplo, não desencadearia.
Com base na distinção entre o uso intencional e material do verbo ''atitudinal'', que
propõe Seymor, considere a situação em que Bob está latindo para o cimo da árvore.
Enquanto Bob late para o cimo da árvore ele está colado ao real e ao que o real lhe informa.
Quando Bob, digamos, ''reflete'' sobre a inultilidade do seu ato —supondo aqui, a outra
possibilidade de exemplo que apresentei, a saber, a de que o gato tenha fugido sem que Bob
tenha se apercebido disso, e que ele, portanto, tenha prosseguido latindo—, e ''julga'' que o
gato já deva ter saído dalí há muito, podemos supor que essa atitude de ''Bob-ter-pensado-na-
inultilidade-do-ato-porque-o-gato-já-foi-embora'' é uma atitude de Bob refletir sobre si-
mesmo. O conteúdo resultante dessa ''reflexão'' de Bob leva-o a mudar de atitude perante o
fato, i.e., ele se pensa. Você pode objetar aqui, evidentemente, que estou forçando a barra. A
explicação mais trivial dessa situação é a de que Bob tenha constatado, vendo ou mesmo
supondo, que o gato já tivesse descido da árvore, e esse fato teria falseado o conteúdo de sua
crença, e, uma vez falseado o conteúdo de sua crença, não restaria a ele nada mais do que
18

mudar de crença, e, portanto, de atitude. Ora, no meu entender, não creio ser apenas isso, pois,
se for assim, as minhas crenças passarão a depender de ser verdade ou não aquilo em que
acredito. Ao meu ver, nesse caso, eu passaria da crença ao conhecimento, ou seja, se eu faço
minha crença em 'p' depender da verdade de 'p', ou bem eu tenho uma crença ou bem eu tenho
um conhecimento acerca de 'p'.
A atitude do insular-se nasce, no meu entender, no momento em que digo 'eu', ou que
me penso. Portanto, quando digo ''Eu penso'', ''Eu estou'', ''Eu creio'', ''Eu acho'', ''Eu
acredito''... , não estou obviamente no mesmo nível de quando digo ''Chove lá fora'', ''Bob está
latindo no pátio'', ''O gato subiu na árvore'', etc.. O fato é que, ao dizer, 'eu', ou proferir uma
sentença acerca de mim-mesmo, tomo, inevitavelmente, uma distância da realidade que o
mero proferimentro de uma proposição não me obriga a ter. E esse distanciamento racional do
julgar-se sobre si-mesmo em relação a si ou a algo no mundo é, no meu entender, um insular-
se, e, portanto, a atitude filosófica por definição. Quando digo 'eu', ou me penso, em relação a
algo no mundo ou a mim-mesmo, saio do ''raso'', e passo ao ''reflexivo'' 41.

41
Paulo Faria, ''O mundo Exterior: Uma Investigação Gramatical''. Tese de doutorado, UFRGS: 1994.
19

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANSCOMBE, G.E.M.: The First Person. In Samuel Guttenplan, ed., Mind and Language.
Oxford: Clarendon Press, 1975, pp. 45-65.
ARISTÓTELES, Moral a Eudemo, em Obras Completas, trad. D.Patricio de Azcárate,
Argentina, 1947.
CAVELL, S., Must We Mean What We Say?. Inquiry (1958), reprinted in V.C. Chapell (ed.),
Ordinary Language 75-112, 1964; also reprinted in Stanley Cavell, Must We Mean What We
Say? Cambridge University Press , 1976.
CRIMMINS, M. and PERRY, J., The Prince and the Phone Booth: Reporting Puzzling
Beliefs, in The Journal of Philosophy, v. LXXXVI, no. 12, pp. 685-711, 1989.
DESCARTES, René, Meditações, em Obra Escolhida, trad. J. Guinsburg e Bento Prado
Junior, SP, 1973.
________., Méditations Métaphysiques, org. par Émile Faguet, Nelson, Éditeurs, Paris.
FARIA, P.F.E., O mundo Exterior: Uma Investigação Gramatical. Tese de doutorado.
UFRGS: 1994.
FODOR, J. A., Propositional Attitudes, in Representations: Philosophical Essays on The
Fundations of Cognitive Science, The Harvester Press, 1981.
FODOR, J.A. and KATZ, J.J., The Availabillity of What We Say, in Philosophical Review,
Cornell University, v. LXXII, no. 1, p. 60, 1963.
FREGE, Gotllob, Sobre o Sentido e a Referência, em Lógica e Filosofia da Linguagem,
seleção e trad. de Paulo Alcoforado, Cultrix, SP, 1978.
KENNY, A., The First Person, in C. Diamond & J. Teichman (eds.) Intention and
Intentionality: Essays in Honour of G.E.M. Anscombe (Ithaca: Cornell University Press,
1979): 3-13.
McDERMOTT, M., A Russelian Account of Belief Sentences, in The Philosophical Quaterly,
v. 38, no. 151, 1988.
SEYMOR, M., A Sentential Theory of Propositional Attitudes, in The Journal of Philosophy,
N.Y., v. LXXXIX, no. 4, 1992.
WITTGENSTEIN, L., Tractatus Logico-Philosophicus, trad. de Luiz Henrique Lopes dos
Santos, EDUSP, 1993.
________., O Livro Azul, trad. de Jorge Mendes, Edições 70, Lisboa, 1992.
________., Investigações Filosóficas, trad. Marcos G. Montagnoli, RJ, Vozes, 1994.

Vous aimerez peut-être aussi