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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Mariana Pedrosa Marcassa

SONS DE BANZO

DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

SÃO PAULO

2016
MARIANA PEDROSA MARCASSA

SONS DE BANZO

DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de Doutor em
Psicologia Clínica, sob a orientação da Profa. Dra. Suely
Belinha Rolnik.

SÃO PAULO

2016
BANCA EXAMINADORA

__________________________________

__________________________________

__________________________________

__________________________________

__________________________________
Dedico este estudo:

A todos os meus ancestrais,


Mineral, vegetal, animal, humano;

Aos de Jurema;

E a todas as almas,

Nascidas dos ventos e das estepes da Mongólia.


Agradeço ao CNPq pelo financiamento concedido.
Gratidão a minha orientadora Suely Rolnik,

e a todos os professores, amigos, colegas e parentes.

Gratidão a todas as falanges que me acompanham.

Gratidão Filipe e Alice.


RESUMO

Esta pesquisa traça uma discussão sobre o modo em que o banzo foi sendo
desenhado pela mentalidade colonial através de um importante estudo de 1793
e alguns relatos de viajantes, médicos e naturalistas estrangeiros, que estiveram
no Brasil durante a primeira metade do século XIX. Desconfiando da ideia de
que o banzo seja um prolongamento da melancolia ocidental, tal como aparece
ao longo de sua formação no Brasil, propõe-se outra abordagem para este afeto
na tentativa de diferenciá-lo, oferecendo-lhe um estatuto próprio e singular
enquanto enfermidade psicopatológica produzida pela lógica escravocrata e
colonial. É, portanto, de um ponto de vista essencialmente clínico que este
estudo se propõe a explorar o banzo artisticamente enquanto um afeto sonoro,
que reverbera e atua há mais de cinco séculos através de diferentes tipos de
práticas diárias, fazendo ouvir a lógica, que poderíamos chamar, de um “Brasil
profundo”. Na fase final deste estudo, o afeto banzo e suas sonoridades são aqui
abordados através da relação do banzo com o estado do sem-voz, conduzindo-
nos para o encontro com o mundo da música modal e as experimentações
vocais de artistas do século XX. Tais relações e encontros nos levará propor a
voz como uma linguagem imanente a si mesma (e não subordinada à fala). Em
linha com esta imanência propomos a criação de um canto da voz (na via de
Demetrio Stratos) capaz de convocar as partículas do afeto banzo na tentativa
de deslocá-lo: apresentá-lo na sua potência afirmativa e criadora.

Palavras-Chaves: Banzo, Brasil, escravidão, melancolia, som, voz,


performance.
ABSTRACT

We begin by using both an important study dating back to 1793 and chronicles of
foreign travelers, physicians and naturalists to launch a discussion on the way
“banzo” was sketched by the colonial mentality in the first half of the 19th century.
Skeptical to the idea that “banzo” is a continuation of Western melancholia, such
as the notion appears throughout the period in which Brazil was formed, a
different approach is suggested so as to both distinguish “Banzo” as an affect
and grant it its own singular psycho-pathological statute as an infirmity produced
exclusively by the colonial slave-based logic. It is, then, from an essentially
clinical point of view, which questions the effects of the historical formation of
Brazil in the forces making up its contemporary reality, that this study sets out to
explore “banzo” artistically, as a sonorous affect reverberating for five centuries in
all sort of everyday practices, being the operation of its logic most felt in Brazil's
interior or what is commonly called “deep Brazil”. In the final stages of this study,
the banzo affect and its sonorities are broached in terms of the relation between
banzo and the state of ‘voicelessness’, in what leads us to an encounter with the
modal system in music and the voice-related experimentations of twentieth
century artists. These encounters and experimentations will lead us to propose
the voice as a language immanent to itself (and not subordinated to speech). In
line with such immanence we propose the creation of a “song of the voice” (in the
wake of Demétrio Stratos) capable of calling forth the particles of the “Banzo”
affect in an attempt to displace its own destiny, and present it in its affirmative,
creative potency.

KEYWORDS: Banzo, Brazil, slavery, melancholia, sound, voice, performance.


SUMÁRIO

I. PALAVRA BANZO .......................................................................... 11

II. PAISAGEM BANZO ........................................................................ 20

III. BANZO, MELANCOLIA DOS TRÓPICOS? ................................... 30

III.I. APRISIONAMENTO, o entre-tempo .................................................. 62

IV. BRAZIL BANZIL ............................................................................. 78

V. AUDIOPSICOGRAFIAS ................................................................. 99

VI. O CANTO DO BANZO ................................................................... 113

VII. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................... 125

VIII. BIBLIOGRAFIA .............................................................................. 134

IX. AUDIOGRAFIA ............................................................................. 139

X. ANEXOS ........................................................................................ 144


“Olhai, sois já filhos de Deus; Estais a caminho das terras
espanholas (ou portuguesas), onde ireis aprender as coisas da fé.
Esquecei tudo o que se relacione com o lugar de onde viestes,
deixai de comer cães, ratos ou cavalos. Agora podes ir e sedes
felizes.”

*Palavras pronunciadas aos africanos nos portos marítimos em África, após o seu batismo, no dia do
embarque para a América.
I. PALAVRA BANZO

BANZAR1. Pasmar com pena; Stupere pra dolore. Dolore Stupidum Obmutescere.

BANZEIRO2. Inquieto. Mal seguro. Mar banzeiro, nem quieto, nem tormentoso. Dubium
maré. Mas como o mar, com a calmaria andava Banzeiro. Barros, I. Dec.Fol.27.col.I.
O jogo está banzeiro, nem uma nem outra parte ganha.

PASMADO3. Muito admirado de alguma coisa. Stupefactus.


Ficar pasmado, Obstupefactus est admiratione.
De uma coisa tão nova, tão importante, ficou o Consul tão pasmado que perdeu a fala;
A qual desgraça deixando-os atônitos e pasmados; Aquele que pasmado de alguma
coisa ficou como tonto; Pasmou o vaqueiro de o ver.

Ao contrário do que pensam alguns, Banzo não é um termo por aí usado,


não é uma palavra costumeiramente empregada. Inúmeras vezes, ao longo
desta pesquisa, no ato de dizer o seu título [Sons de Banzo], vivenciei o imediato
atordoamento que o som da palavra banzo instaurava naquele presente. A testa
franzida do ouvinte mareado, os movimentos da orelha em espreita, a boca torta,
evidenciavam a operação da memória buscar no Tempo a lembrança que lhe
cabia atualizar. Era como se o ouvinte estivesse frente a um bloco de sensações
sonoras que lhe puxava para longe, trazendo cheiros, ritmos, clarões que logo
desapareciam, sem nunca fixar-se. Um claro-obscuro, um sei-e-não-sei, um
lembro mas não recordo. Eu observava com divertimento e aguardava com
angústia até o momento de ter que dizer brevemente: Banzo é o nome que se dá
ao estado a que eram acometidos os negros africanos em terras brasileiras.

1
Primeiro Dicionário da Língua Portuguesa Vocabulario Portuguez & Latino, aulico, anatomico,
architectonico bellico, botanico etc., de autoria do padre Raphael Bluteau, publicado em Coimbra
(1712-1728). Fonte: Instituto de Estudos Brasileiros – IEB USP.
http://200.144.255.59/catalogo_eletronico/consultaDicionarios.asp
2
Ibdem.
3
Ibdem.

11
Uma espécie de tristeza profunda que se manifestava nos negros, na sua
condição de escravo, longe de sua terra natal. Um corpo escravo, quando em
banzo, apresentava-se meio a intenso fastio, profundo silêncio, dores de uma
liberdade abortada, sofrimento continuado das asperezas com que o tratavam.
Impoder absoluto da vida. Dor em relação àquilo que já não mais se pode ser,
onde ‘eu’ já não pode ser o mesmo. Mais que isso, onde 'eu' já não pode se
redesenhar frente às forças que o assolam, levando-o ao suicídio forçado.
O ouvinte tão logo se expressava com espanto e admirado interesse
sobre algo que lhe é estranho, mas familiar. Em seguida apareciam muitas
perguntas de ordem sonora e performática, uma vez que é no campo da arte
(som e performance) que tenho explorado e apresentado esta pesquisa. Eu
procurava responder algumas, não hesitando em demonstrar o meu lugar
banzeiro, também ele mareado, nebuloso e embaçado. E concluía ao dizer não
sei bem o que faço. É um tatear e aquilo que me orienta são as sonoridades do
banzo que grudaram em mim. Pois o banzo não se restringe ao sofrimento dos
escravos, nasce com ele e passa a ser mais que isso. O que grita nos meus
ouvidos é o fato do banzo – apesar de quase desaparecido do linguajar
brasileiro – nunca ter deixado de existir. Ele é real e atua, opera na lógica de um
Brasil profundo. O banzo assola a invenção do Brasil. Eu me interesso por suas
expressões sonoras. A conversa acabava aqui. Nada mais a ser dito no encontro
com o ouvinte mareado4.
É no ponto da voz calada5 que proponho iniciar esta escrita. Pois, se há
algo de fundo neste Banzo é o nó na garganta que arrasta a voz para o mudo. A

4
Refiro-me às distintas conversas que se sucederam ao apresentar o andamento da tese (em
conversas informais ou no grupo de orientação da pós-graduação) e durante a realização de
minhas ações performáticas que impulsionaram este estudo.
5
Lembro-me de um trabalho que desenvolvi durante a Residência de Verão da Nuvem, em
fevereiro de 2014. A Nuvem – Estação Rural de Arte e Tecnologia – é um espaço de
experimentação que se encontra no Vale do Pavão em Visconde de Mauá (Serra da Mantiqueira
– RJ). Minha curta residência ocorreu em cinco dias. A partir do segundo dia me propus ficar em
silêncio absoluto até o meu último dia de residência. Não me comuniquei verbalmente com as
pessoas do lugar e evitei todo e qualquer tipo de comunicação corporal. Neste período toquei
berrante várias vezes dentro do pequeno rio que atravessa a chácara. Explorei as sonoridades
do sopro, da água e do berrante. No final do terceiro dia me propus voltar à fala, num processo
lento, dentro do mesmo rio que habitei durante os dias de mutismo. Após tocar o berrante várias
vezes, soprando, deixei vir todas as espécies de sons desarticulados, gritos, glossolalias, para
12
própria experiência dos três primeiros anos de doutoramento em profundo calar,
sem conseguir dizer, expressando os sintomas do que se veio a chamar banzo,
desde seus primeiros balbucios, quando a palavra ainda não havia ganho
espaço no léxico6 da língua portuguesa, tampouco lugar na minha própria
pesquisa7.
Tal como seus termos vizinhos ‘banzar, banzeiro e pasmado’ encontrados
no Primeiro Dicionário da Língua Portuguesa Vocabulario Portuguez & Latino,
aulico, anatomico, architectonico bellico, botanico etc., de autoria do padre
Raphael Bluteau, publicado em Coimbra (1712-1728), esta tese se apresentou:
pasmada; inquieta; mal segura; estupefata; atônita; muda.
Num dia em que procurava escrever um projeto de arte na intenção de
chegar mais próximo do estado de coisas que me levara a calar, recebo um

então, por fim, ler repetidamente o texto um corpo de minha autoria. O que ocorreu durante a
performance foi certo espanto ao me deparar com a dificuldade de retomar a fala. Eu teria
condições de continuar dias, semanas, em silêncio. Não havia em mim qualquer necessidade de
compor sons cheios de sentido. Voltar a falar foi um enorme esforço, uma exigência que passava
pela obrigatoriedade comunicante de nossa “sociabilidade compulsória” (Elizabeth Pacheco).
Esta performance me permitiu tomar consciência da potência da Voz por ela mesma, de seus
sons, e dos blocos sonoros que ela pode liberar, nos arrastando para lugares distintos e
estranhos. Entre a Mudez e a Palavra há um (ou vários) mundo(s) a ser percorrido, criado e
inventado.
http://nuvem.tk/wiki/index.php/Mariana_Marcassa
Para acessar o texto um corpo de minha autoria (ver p. 214):
https://cadernosdesubjetividade.files.wordpress.com/2013/09/cadernos2011_baixaresolucao.pdf
6
Segundo Ana Maria Galdini Raimundo Oda o substantivo banzo foi incorporado ao léxico oficial
da língua portuguesa na segunda metade do século XIX, e surge nos dicionários de Eduardo
Faria (1859) e frei Domingos Vieira (1871) significando a mortal nostalgia dos escravos africanos
transportados para o Brasil. No entanto, quem oferece este conceito ao banzo pela primeira vez,
com ênfase e dedicação, será o estudo de Luis Antônio Oliveira Mendes, em 1793.
7
Ele está cansado. Os músculos ardem, os pés latejam, a boca seca. Ele treme porque já não
sabe mais dizer. Não diz. Faz movimentos com a boca até a língua dar câimbra. Toca o céu da
boca, morde as gengivas, come a pele de dentro. Dá sangue. Mas a câimbra paralisa. A
garganta sofre. É então que vem a baba. E a baba é coisa dita, coisa feita, coisa espessa. Sente
a língua em saliva branca, faz os olhos arder. Balbucia frases que eriçam os pelos. O nariz
dilatado engole ar e come atmosfera. Cheira tudo, dos poros da pele até o balanço das ancas,
cheira as entranhas, adentra um campo ilimitado de memória que o faz suar. É Cavalo de
Macumba: não para, vive este incessante movimento longínquo. O Cavalo faz das voltas um eixo
que parece ser outro. Arrebenta o corpo e conecta-o às memórias inscritas no Tempo. Um
estado, um rebento, uma cavalaria de macumba. Catimbó, roça, terreiro, performance. Revolta,
performance. Performance.
Que estado é este?

13
sopro de ar quente nos ouvidos sussurrando “sons de banzo” e imediatamente
um bloco de sensações sonoras me coloca frente a frente com o buraco no qual
me encontrava há alguns anos. Um misto de imensa felicidade, espanto e
admiração ao me deparar com a facticidade de ouvir a ferida. A ferida aberta, e
com ela, o assombro que me custou imensa apatia, marasmo, pasmaceira,
diante da constatação atordoante de que seria preciso encontrar um modo de
colocar o dedo no afeto que me investia: ouvi-lo, pensá-lo, reinventá-lo. O
próprio som da palavra banzo – ao dizê-lo, ao torná-lo audível – fez da mudez
que me acometia um silêncio acompanhado. Traição dupla: dizer banzo abria
em fratura exposta o silenciamento da voz ao mesmo tempo em que produzia o
efeito de se voltar contra os ouvidos, feito um golpe, tornando meu corpo mais
uma vez emudecido. No entanto, a tensão oferecia-me algo. Ainda que
escorregadio e frágil esse algo era uma coisa a ser perseguida na urgência de
se fazer Voz.
Fui atrás de estudos específicos sobre o banzo no Brasil, de como ele se
tornou dizível, de como ele deixou de ser balbucio do verbo pasmar para se
tornar substantivo banzo. Tarefa nada fácil, apenas rastros, relatos de viajantes,
breve conceituação em dicionários antigos e atuais, um raro e importante estudo
sobre o tráfico negreiro e as doenças dos escravos, escrito por Luis Antonio
Oliveira Mendes, em 1793. No campo das atualidades, uma única companheira:
a Profa. Dra. Ana Maria Galdini Raimundo Oda8. Com estes estudos logo me
deparo com uma primeira pergunta: Será que o banzo é um prolongamento da
melancolia ocidental? Será que o seu sofrimento tem de fato a ver com uma
incontornável “saudade da terra natal”? Nada satisfeita com esta associação,
que, todavia, eu e muitos reproduzimos sem pensar, fui seguindo o meu
percurso.

8
Declaradamente agradeço a Ana Maria Galdini Raimundo Oda. Profa. Dra. no Departamento
de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Foi através
de seus artigos, publicados na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental (na qual
Oda é uma das editoras associadas) que pude entrar em contato com sua extensa pesquisa a
respeito da “Escravidão e psicopatologia no Brasil”. Suas publicações me trouxeram referências
bibliográficas, reafirmaram trajetos que eu já havia iniciado, e me ofereceram uma discussão
histórica do banzo desde a perspectiva da História das Patologias e a certeza do quanto é
escassa a discussão sobre o banzo no Brasil.

14
Iniciei aulas de canto na certeza de que o exercício do sopro me abriria a
garganta de modo a fazer música do silêncio da voz calada. A verdade é que
não só me abriu a garganta como também a obstrução das vias respiratórias, o
sofrimento crônico, absurdamente agressivo que me acomete desde menina.
Passei a respirar melhor.
Infelizmente a boa respiração durou o tempo do exercício das canções e
das sonoridades que estive explorando em minha residência artística na Oficina
Cultural Oswald de Andrade entre os meses de novembro de 2014 a março de
2015. Durante este trabalho muitos aspectos se abriram, tive a oportunidade de
clarear o ‘sons de banzo’ por meio da exploração sonora de minhas
performances. Durante a residência viajei para o Sertão Mineiro, ouvi as
veredas, a paisagem daquele cerrado banzeiro e todas as conversas com
sertanejos que pude presenciar e gravar. Como contrapartida deste processo
desenvolvi a performance “Sons de Banzo” 9 tocando o meu berrante,
instrumento que tenho como aquele que berra e faz vibrar um lamento profundo.
Nela, eu e Andreas Trobollowitsch compusemos a massa sonora que
intercambiou trabalho de voz, instrumentos tocados ao vivo, sons previamente
gravados emitidos por mim, arquivos de aboio, falas de sertanejos e sons
percussivos. Respiração, voz, canto, berro, aboio, caneca (cowbells), chicote de
couro, berrante, acordeon. Esta foi a massa sonora que nos permitiu compor
uma espécie de ritual onde os sons produzidos na performance eram da ordem
de um ‘banzo gutural’. Meu corpo esteve inteiramente banhado por música
percussiva e cantos de vaqueiros do sertão, e minha voz se apresentou como
um lugar por onde atravessam muitas vozes, paradoxalmente as mais
longínquas e as mais familiares. No entanto, a pergunta que insiste é: Que vozes
são essas? Qual a sua vibração? Onde se poderá ouvi-las? E o que elas teriam
que ver com Banzo?

9
Sons de Banzo é também o nome da pesquisa performática que propus ao Programa Mergulho
Artístico na Oficina Oswald de Andrade desenvolvida nos meses de novembro de 2014 a março
de 2015. Sua apresentação final foi a realização de uma performance inédita, elaborada
especialmente durante a residência. Suas apresentações foram nos dias 28, 30 e 31 de Março
no espaço de recepção, aberto, da Oficina Cultural Oswald de Andrade e contou com a parceria
de um amigo músico, austríaco, Andreas Trobollowitsch. Ver em anexo (Portfólio) detalhes e
áudio do trabalho.

15
Na exigência de sentar e escrever passo a sentir, mais uma vez, a falta de
ar do corpo alérgico. O sintoma da supressão, da opressão, do sem-palavra
gritando socorro.
E no meio desta confusão, entre leituras e as tentativas de escrever a
tese, eu não parei de pesquisar corporalmente. De ouvir e ouvir obsessivamente
inúmeros arquivos sonoros no youtube10 como dispositivo para encontrar alguma
ressonância dos sons que se apresentaram na realização da minha performance
com Andreas Trobollowitsch. De produzir uma multiplicidade de barulhos e sons
com minha voz, garganta, narinas, línguas e dentes. Aqui encontrei minha tribo,
via contágio sonoro, esta que eu nunca havia conseguido nomear desde quando
me iniciei na Performance. Trata-se de um encontro que a Performance sem-voz
da História da Performance e das Artes do Corpo mais convencional não teriam
condições de proporcionar. E o motivo é porque sinto seus corpos se
apresentarem em metáforas ou em fortes gestos que se desintegram, que se
despotencializam na equivocada escolha de separar o corpo em dois: corpo
versus voz. Corpos estes que, parecem-me, sequer considerarem a voz
enquanto corpo, o corpo enquanto voz. Noto com esta separação que nas Artes
do Corpo sem-voz da História convencional, o corpo é investido exclusivamente
enquanto imagem, signo, gesto, entretanto, se por ventura necessitar abrir a
boca e falar, cantar um som, descambará, definhará o corpo impotente sem-
voz11.

10
O leitor terá a oportunidade de acompanhar este trajeto sonoro através de referências e links
que se posicionam ao longo desta escrita e na bibliografia, para tanto, sugiro que se faça uso de
headphones.
11
Refiro-me à História da Arte da Performance difundida com mais ênfase no Brasil, contada a
partir das experimentações dos anos 60 e 70 que transitavam mais incisivamente na Europa e
nos EUA. Em geral, esta história tende a não incluir as contribuições do teatro de Artaud, por
exemplo, ou das experimentações vocais no campo da música de mesma época (exceto John
Cage ou eventualmente Meredith Monk que por sua vez são artistas dos EUA). Dificilmente esta
história levará em conta a voz enquanto matéria plástica e performática, pelo contrário, parece-
me que tais performances evitam a voz por confundi-la com a palavra, que por sua vez,
historicamente está relacionada como objeto do teatro “convencional” que, todavia a
Performance rejeita... Trata-se, do meu ponto de vista, de um grande equívoco: por um lado o
teatro experimental, a dança e a música são parte indispensável na criação e no pensamento da
performance; por outro lado, tal postura parece tender a um certo “purismo” que a performance
reclama para si, esforçando diferenciar-se do teatro, da música e da dança, resultando na
negação de sua própria gênese híbrida. Desta tradição e formação surgem inúmeros trabalhos
de performance art no Brasil que indicam esta mesma linha de pensamento. É raro encontrar
16
É então que me deparo com o Canto dos Harmônicos, o canto das
civilizações antigas, o canto do pastoreio, o canto do xamã, o canto da Voz e
seus artistas experimentais: Demetrio Stratos, Fátima Miranda, Diamanda Galás,
Meredith Monk, Sainkho Namtchylak, Mike Patton, Tran Quang Hai, Dhafer
Youssef, Joan La Bárbara, Jöelle Léandre. Tuvanos, mongóis, monges
tibetanos, indígenas da amazônia, africanos, árabes e mulçumanos.
Mas é também na escrita misturada com estas derivas sonoras o lugar
onde tudo acontece, caminhos inauditos, agenciamentos talvez estranhos para
aquele que espera uma abordagem musicológica que, todavia, o seu título
poderá sugerir. Então eu declaro: não se trata de um estudo histórico, estético e
teórico das possíveis invenções musicais que os escravos produziram e que
certamente são muitas e inteiramente válidas, tal como o blues, os vissungos, o
samba e tantos outros cantos de trabalho ou de rituais que remexem com as
partículas sonoras que eu poderia identificar relacionadas ao banzo. O que
proponho é um projeto artístico que procura abordar o problema do banzo
enquanto um trauma; afeto sonoro que ressoa, ecoa e atua desde a sua
invenção, observando como nervo de seu sintoma a relação peculiar entre o
afeto banzo e o estado do sem-voz.
Porém, este trajeto não tem sido fácil e será por este motivo que o leitor
encontrará nesta pesquisa capítulos que se constroem passo a passo, fazendo-
se aos bocados, manifestando diferentes vozes ao longo de suas partes: uma
“voz histórica” que desconfia da associação do banzo com a melancolia
ocidental; uma “voz filosófica” que se esforça na produção da diferenciação da
melancolia e do banzo para a sua afirmação enquanto afeto singular e próprio;
uma “voz clínica” que procura pensar o trauma do banzo hoje; uma “voz literária”
que inventa ritmos e escritas “soltas” para convocar uma película banzante;
enfim, é uma experimentação artística que se procura compor aqui.

uma performance art que faz uso da voz, e se o faz, dificilmente se propõe na sua dimensão
intensiva e sonora (ruídos, sussurros, gritos, explorações glóticas). No decurso desta pesquisa
percebi, por exemplo, que hoje apenas os artistas da música experimental têm conhecimento
das referências artísticas que convocamos, como por exemplo, Demetrio Stratos, Fátima
Miranda, Sainkho Namtchylak, etc. Artistas que, a meu ver, contribuem significativamente para o
pensamento do campo da performance.

17
Contudo, tratando-se de sons de um afeto, ouso e lanço-me para um
lugar desconhecido no meu trajeto artístico: a música e mais especificamente na
sua lógica modal, na sua versão oriental, nos seus cantos guturais e nômades,
apresenta-se como um lugar a ser explorado. É através dela que um universo de
ruídos, harmônicos e sons primordiais tem vibrado em meu corpo, chamando-me
para o seu encontro, produzindo estalos em meu corpo, movendo esta tese,
puxando do banzo os seus sons abafados convocando-os para uma dança.
Encontrar este universo no percurso desta pesquisa é uma flecha certeira que
aponta diretamente para o cerne da questão: a relação entre o afeto banzo e o
estado do sem-voz. Percebi com Demetrio Stratos12, Antonin Artaud e o mundo
modal que a voz é portadora de uma dimensão potencialmente medicinal,
criadora, primordial, mágica, xamânica e também o seu inverso; castradora,
agressora, aterrorizante e maldita. Mas não se trata da voz-fala que desfruta de
um papel fundamental no seio de nossa civilização ocidental, historicamente
tomada como objeto de interpretação pela psicanálise, pela filosofia e pelas
ciências da linguagem em geral. Refiro-me a voz-pharmakós de Demétrio
Stratos. Da voz que se liberta da hegemonia da fala comunicacional, da voz que
cria uma linguagem própria tornando audível tudo àquilo que a linguagem-
sentido tem vindo a reprimir (ruídos, tremores, sussurros, respiros, etc.). É por
isto que persigo e persisto num caminho de experimentação com a voz; para
extrair do sem-voz os seus sons abafados, ruidosos e estranhos, ouvi-los e
arrancá-los do mutismo – não porque se deseja que o sem-voz fale, mas porque
se deseja que ele crie uma nova voz, potente, singular e ativa, em consonância
com sua própria vida, cheia de sons inauditos.
Posso afirmar que o meu desejo é ouvir, é cantar a voz, é correr atrás dos
sons que me fazem tremer. Estes que quando ouço sinto por dentro os estalos
de um deslocamento: o tal do banzo que se inventou em mim apresentando-se
na sua potência afirmativa e criadora. O meu desejo é criá-lo mais, entendê-lo
por dentro. Fazer da minha voz as vozes da sua sonoridade.
Pode-se pensar esta tese como uma grande canção. O canto do banzo
que oferece espaço para uma multiplicidade de vozes, como num canto dos
12
Sobre Dmetrio Stratos, o seu trabalho com a voz, os artistas experimentais, Artaud e a música
modal trataremos nos capítulos Audiopsicografias e O Canto do Banzo.

18
harmônicos dos nômades da Mongólia13 que musica a sua dor, evitando a
significação frásica e investindo no ritmo, na entonação, nas vibrações,
conferindo aos fragmentos sonoros a sua linguagem própria. Mais precisamente,
compondo e tornando audível o som do movimento de suas vibrações interiores.

13
Sobre o canto dos harmônicos e o canto dos nômades da Mongólia ver notas 123 e 129 e os
capítulos Audiopsicografias e O Canto do Banzo.

19
II. PAISAGEM BANZO

Os pastos secos de tom ocre desenham imensos horizontes no qual


pululam montículos de barro resistentes ao sol, às chuvas, ao tempo. A isso dá-
se o nome de cupinzeiro. As extensas áreas atapetadas por campos de
murundu, inundadas por elevações cobertas de pequenos arbustos e árvores
retorcidas é um tipo de fisionomia comum pelas bandas de cá. A compressão do
barro árido misturado à baba e excrementos do cupim-inseto é pura expressão
barroca. Inúmeras espécies de cupim, cada qual na sua labuta, constroem e
habitam um mesmo labirinto barroso. Um labirinto rococó. Forte, grandioso,
fresco e subdividido por múltiplas repartições onde pequenas salas se dobram
umas às outras. Chegam a medir três ou quatro metros de altura num crescente
ao infinito sem norte, sem sul, sem leste-oeste. É acúmulo desmedido de barro,
dejetos e saliva de inseto que vai sendo sedimentado num movimento contínuo
e arredondado, dobra sobre dobra. Dele não há proprietário tampouco inquilino,
são diversas as espécies de cupins construtores de uma mesma estrutura física.
Constroem o mesmo cupinzeiro e o habitam em câmaras separadas. Há
também aqueles que poderíamos chamar de colonizadores: invadem, ocupam e
se apropriam. Aqui o labirinto vai deixando de ser um barroco cavernoso escuro
e passa a ser tão luminoso quanto um vislumbre do futuro. É que centenas de
vagalumes se encontram para um baile nupcial e suas larvas são depositadas
nas entranhas dos cupinzeiros. O pasto ganha coloração aberrante,
fluorescente, luminosa. Pirilampos bailam no ar, esbarram-se, batem-se uns
contra os outros, dançam e guardam suas larvas nas texturas infinitamente
porosas dos murundus. Tudo brilha! A noite quente e úmida anuncia a chegada
das chuvas. As inúmeras estrelas banzando a noite escura dão profundidade
tamanha ao céu sem nuvens. Nuances de azul-negro dobram o céu saltando-o
para longe, ao mesmo tempo em que suas dobras caem para baixo, tocando a
vida terrestre. Um cheiro doce e afrodisíaco ocupa a noite. Ele é vários: o do
pequi é o mais forte. Dizem que nascera dos testículos do jacaré e por isso
comê-lo pode engordar sensivelmente mais as mulheres do que os homens.
20
Talvez seja esta a causa do pequi nascer espinhoso, prenhe de flechas que
saltam à garganta caso a boca exerça um movimento demasiado voluptuoso.
Ora vejam só, uma boca gulosa, molhada e sedenta que num abocanho
devorador dá com os dentes em centenas de espinhos ferozes, o que faz da
boca um inchaço de pura glote. Tá aí o motivo de se comer pequi com as mãos.
Entre flechas, espinhos, cheiros doces e afrodisíacos não há modos de etiqueta.
Gestos e padrões de comportamento é coisa das friezas do homem que pensa
estupidamente bem. Enfie um garfo na carne amarelada do pequi e ele lhe
soltará milhões de espinhos. Na lógica do contato, são a boca, a língua, a pele e
as mãos que devem sentir a medida do encontro. Da flor do pequi deve-se
ressaltar: é hermafrodita. Ao bater dos ventos um cheiro forte desprende nódoas
que exalam o cheiro de esperma. Esperma de jacaré, de bicho, de macho à
procura da cópula. E assim vão se fazendo campos e campos de árvores
retorcidas, com suas cascas grosseiramente salientes, de flores hermafroditas e
frutos carnudos. Desde um olhar menos detalhado e mais panorâmico, a
coloração destas paisagens tende a persistir no amarelo ocre. Mas sendo cor
movimento, o amarelo-ocre, no encontro com as chuvas, devém amarelo-ouro,
amarelo-intenso, amarelo limão e pouco a pouco ganha o verdejante de uma
mata menos seca e mais umedecida. Com a chegada das chuvas o céu
estremece por inteiro, desaba litros de água morna em pingos grossos,
recobrindo imensidões de horizontes. Ventos pavorosos invadem a paisagem de
um dia abrasador e fazem gritar a franja vermelha do poente. Terras secas
chupam as deságuas do céu alaranjado.
É também com as deságuas que chegam outros cantos, outros voos,
outros pios de aves aventureiras. Gritam e sobrevoam nos ares como que num
gesto agradecido. Kiiiééé, kiiiééé, kiiiééé! Escuta-se o agudo-anasalado do
gavião-carijó de coloração marrom. E como resultado das reações involuntárias
da percepção, ratos do mato e outros animais de pequeno porte sentem no grito
do gavião a ameaça do predador. Tocando seus aparelhos auditivos, aquele
grito causa tremor em seus corpos e os faz vibrar por inteiro. Correm
ariscamente com o auxílio de suas patas curtas para a direção de um abrigo
qualquer. É também aqui que os montículos de barro se apresentam
esconderijo. Sob sua sombra são inúmeros os animais camuflados em sombra-
21
barro-mata-ocre quando ameaçados por aves de rapina. Há aqueles
desafortunados que não alcançam a velocidade necessária para esquivar-se do
voo preciso de um gavião. É talvez por isso que nos pastos de murundus
encontram-se muitos ossos, dos mais diversos, de inúmeros tamanhos. Existe o
trabalho indispensável das aves negras conhecidas por abutres-do-novo-mundo.
Necrófagos por excelência rodeiam o corpo putrefato até o preciso momento da
devoração. A vaca abocanhada por um ou outro morcego agoniza em sangue
dias e dias sob o arder do sol. Feridas abertas produzem uma espécie de pus
purulento que atraem dezenas de moscas indesejáveis, perturbando a sanidade
do animal. Baba o sangue vermelho escuro que escorre pelas pernas,
encharcando a terra ocre do pasto, o que lhe dá por vezes, manchas
amarronzadas e úmidas de forte odor persistente ao tempo de uma seca. Em
seu corpo é expresso uma espécie de espasmo em localizadas regiões. A carne
treme involuntariamente num ritmo que se acelera na medida em que cai a
agonia na profundidade. Quanto maior o buraco que faz escorrer o sangue
vermelho-pardo, tanto mais se anuncia um fim, atraindo os sobrevoos de
inúmeros urubus-de-cabeça-preta que pacientemente acompanham a agonia do
animal. São dezenas a sobrevoar o céu em círculo, desenhando a névoa escura
que recobre a região em que se encontra a vaca putrefata estirada no solo. De
corpo paralisado, apenas o rabo ainda exerce algum movimento voluntário, na
tentativa de espantar as moscas que já iniciam o serviço a ser definidamente
executado pelos urubus. Como último sopro de vida o rabo levanta e bate
desgovernadamente no lombo do animal, caindo de súbito, para nunca mais
erguer-se. Mas a vida ainda lá está, os olhos molhados choram a dor de um
pasto seco, ressequido, de campos de murundu e horizontes infinitos. Tremem o
sofrimento antológico dos milhões de defuntos desintegrados nos solos ocres
das bandas de cá. O choro derramado sobre os pelos marca com intensidade a
coloração escura da cara preta do animal em agonia. Oferece ao redor dos olhos
uma espécie de máscara carnavalesca, desenhando manchas de tom
assustador. As manchas sussurram a dor da vaca, a dor do gado, a dor do
pasto, a dor da seca, a dor da vida. E neste choramingar escuta-se a cantiga de
um ninar para o infinito: boi boi boi, boi da cara preta... O coração para, as
lágrimas cessam e apenas são expressos espasmos carnais da ordem das
22
terminações nervosas quando em colapso. Ai, ai da vaca! Sutis tremeliques
expressam-se por toda a sua carne, como que vindo de dentro, numa espécie de
tique dos nervos que não encontraram no cérebro um possível comando de ação
e movimento. A vaca agora é pura vibração. A dignidade expressa ali não
pertence a sua morte, tampouco ao próprio animal. Mais parece ser da ordem de
uma louca corrente de ar que faz girar os ventos calorosos destas paisagens.
Um cheiro de carne e sangue espalha-se pelo pasto convocando o pouso dos
abutres-do-novo-mundo. Um casal de urubu-rei percebe o movimento de grupos
de abutres de outra espécie e desce em terra. Com o andar paciente, esperam
cautelosamente por uma hora às voltas da vaca estirada. Convencidos de
nenhum perigo é o casal de urubu-rei que dará o primeiro abocanho. O bico
afiado rompe o duro couro bovino e inaugura o manjar dos carniceiros
limpadores dos cerrados. E só aqui o ermo abutre, de hábito solitário, é visto na
companhia de outras espécies. Em poucos minutos a vaca é apenas carcaça.
Couro, carne e órgãos foram inteiramente devorados. Comem até mal poderem
se mover e de barriga cheia exalam um mau cheiro putrefato repugnante que se
pode sentir a quilômetros de distância. Quando ameaçados, regurgitam e
sopram a matéria putrefata impedindo a aproximação do predador que não
suporta tal fedor. De suco gástrico poderoso neutraliza as toxinas cadavéricas
eliminando perigos de infecção. No seu estômago revira em voltas o sofrimento
da vaca que um dia existiu. Da vaca somente os ossos estirados no pasto que
num dia qualquer será recolhido por um ou outro louco andarilho do mato. Por
toda a parte banzo. O calor é intenso e aos ares sobrevoam palinhas
carboretadas do fogo que consome a mata seca do inverno sem chuva. São
quilômetros de um fogaréu devastador, levando consigo insetos, vegetações,
ninhos, aves, pequenos mamíferos. O fogo, detido em pontos aqui e ali, queima
com mais lentidão e vai aos poucos morrendo. Pode-se chegar a imensas
monoculturas de soja. Essa pobre plantação de única espécie, sem
multiplicidade, sem variedade, está impossibilitada da comunicação com o
ambiente. Produzidas em laboratórios, já no germe lhe foi arrancada a
capacidade de alta vibração. Emudecida, a plantação enreda extensões
territoriais assustadoras do tamanho de cidades inteiras, fazendo da paisagem
uma vida de pura monotonia. Uma vida agonizante a que tudo contamina, litros
23
de veneno são pulverizados sobre o solo e suas plantações; só lhes resta a
potência de reprodução. Uma névoa intoxicante se desenha sobre a paisagem
de modo a causar náusea. Um cheiro químico altamente tóxico impregna o ar, a
terra, os ventos, as narinas, fazendo de qualquer corpo puro sofrimento.
Doenças sem nomes, má formação genética, dores estranhas, seres
monstruosos. Um homem manipula os líquidos tóxicos tal como um aprendiz de
alquimista que na sua ignorância, faz das misturas o convite à sua morte. Abre
os potes de veneno, prepara o líquido a ser pulverizado na plantação e inala
diariamente o ar sufocante dos químicos da indústria de guerra. O cheiro vai
entrando pelos poros, dia a dia, preenchendo seus vasos sanguíneos num
movimento de contato envenenador com o corpo. Rachaduras vão sendo
expressas por toda a pele. Nas mãos, os dedos cortados criam o mapa
geodésico do cerrado intoxicado. Os olhos vão sendo pintados de amarelo ocre:
é o próprio ocre do pasto a ser expresso no corpo do agricultor. A boca
ressequida vem a ser muda. Sem voz. Não mais pelo cansaço da labuta diária
de um trabalhador braçal, e sim, pelos líquidos venenosos que correm num
desvario de fluxos do corpo, contaminando os nervos até a urina vir a ser cor de
coca-cola. O defunto faz lembrar os tantos insetos exterminados pela nuvem
toxica dos pesticidas, rolinhas e outras aves que sufocam no pasto. Da zonzeira
profunda que assola o pasto empobrecido ainda nasce a vida que alimenta
muitos seres.
Por toda a parte aborrecimento. Populações inteiras são deslocadas de
suas propriedades, desabrigando famílias da terra, varrendo vidas feito sobras
de lixo. Vê-se ao longe um rosto marcado por linhas tortas. A pele queimada de
sol, pontos escuros, saliências, marcas das mais estranhas. As mãos grossas,
os dedos espessos de pele calejada. Ao abrir a boca o rosto é manco. Produz
uma espécie de tique: é coisa querendo sair e imediatamente reprimida. Os
dentes falhos desenham buracos na boca fazendo da saliva a baba que escapa.
A boca, num esforço fora do comum puxa toda a pele, faz do rosto um tom ainda
mais avermelhado, tornando ver as veias grossas do pescoço. É então que a
boca mexe e apenas ela mexe, pois da garganta pouco ou nada sai. Nenhum
som aprazível, compreensível ou que de fato se ouça. A boca insiste em puxar o
esforço para se fazer ouvir. Algo range dentro da garganta: efeito do ar ao tocar
24
frouxamente suas cordas vocais. Nenhuma voz se faz. Nada pode ser dito. Um
sem-som quase absoluto se não fosse o sussurrar da voz muda a cuspir sílabas
entrecortadas pelo hiato que se impõe. Sopra um ou outro ar e não se apercebe
de que a voz fala para dentro, ecoando num sem-fundo ad infinitum... Dos hiatos
e sopros frouxos a voz passa a ganhar tonalidades das mais diversas,
modulações entre agudo e grave, riso e choro. Grunhidos, sons guturais,
rouquidão, desvarios vocais. O rosto marcado de traços grossos acompanha
desgovernadamente os movimentos da voz. Os olhos abrem-se para a voz que
ri ao mesmo tempo em que salgadas gotas líquidas preenchem as córneas.
Sôfrego, os lábios estremecem e produzem a saliva que escorre e lubrifica
exageradamente a boca sem-palavra. Narinas abrem-se e fecham-se
derramando a mucosa transparente que desce ao encontro da boca que baba.
Na face desenham-se micro movimentos de um espasmo na tentativa de
expressar-se. Sobre as maçãs do rosto um volume de pele se altera entre
contração e relaxamento. Eis que se ouve uma frase mais organizada. A boca
diz: passo a vida a escorar nos troncos retorcidos e secos de um pequizeiro,
servidão perpétua, paisagem que me assola, cuidei do suicídio, mas não dei
conta de realizar.

Da devastidão de suas palavras um hiato mais forte se impõe e cala a


boca pra nunca mais. Os olhos voltam para o olhar perdido, o rosto manco. A
nulidade se expressa de corpo inteiro e faz do homem o brucutu ensimesmado.
Já velho, ainda sente no corpo a inutilidade de sua vida, a mesma que o
acometia quando jovem nas fazendas do patrão, no lido com o gado, no trato
com as gentes, no sustento do gesto doce e fiel de um serviçal que com o tempo
cai em mínguas por se aperceber de sua condição escrava, tão ardilosamente
mascarada, que mais parece um desenho a esboçar na fumaça que há pouco
ardia no mato, pra tão logo desmanchar-se.

E feito fumaça - a esboçar um desenho que nunca se fixa - o homem sem


voz ao longe se esvai. O anoitecer desce em terra trazendo a polifonia cantante
dos inúmeros insetos e outros bichos do mato. No teto do céu, o azul cinzento
se gradua em minuciosas diferenciações de azul, roxo, lilás-rosado, pêssego,
até criar alaranjadas pregas de linhas estiradas no fundo do horizonte. Uma
25
espacialidade infinita se compõe no encontro dos sons com as cores, como se
as cores fossem outra expressão das possíveis tonalidades sonoras. É aqui que
o homem sem-palavra sente-se chamado a peregrinar num movimento contínuo
e sem descanso, procurando enganchar-se nos sons que se apresentam:
rajadas de cores em diferentes escalas, sopros de ventos abrasadores, pios e
cantos de aves e insetos, rastros e movimentos dos bichos de habito noturno,
micro movimentos da vida vegetal. Da sua voz, nada. Apenas a necessidade
incessante de procurar o eco que a sua garganta não é capaz de ressoar
sozinha, a não ser na própria paisagem já em si sonora.

Mudo e sem palavras, é para este horizonte que ele vai, como um cavalo
selvagem, louco e delirante, em galopes largos, relinchando, correndo num
desvario em direção ao seu lar, tão logo, quando solto. Assim o homem de rosto
manco desaparece na paisagem que o assola, levando consigo a luz ardida do
dia que ainda queima através do bafo exalado pelo solo quente. Mas nele o
cavalo selvagem nunca desaparece completamente. Pela noite a fora ele
rodopia, dá voltas e voltas sem sair do lugar, fareja todos os odores, todos os
sons e todas as cores das paisagens de cá. Corre tantas e tantas vezes,
cansado, suando o pelo agora molhado. São muitas as sensações e inúmeros
os efeitos quando já exausto, zonzo, insiste mais um tanto para logo, no
amanhecer, escorar-se num tronco retorcido de um pequizeiro. Sob a sombra da
árvore, ele pode ver ao longe um homem estirado: roupa em trapos, braços
abertos, olhos fechados, boca ressequida, corpo magro em ossos. O homem-
cavalo senta-se ali mesmo, ao lado do morto, e acompanha seu descanso
sentindo-o por dentro. Uma sensação de matéria bruta, pesada, imóvel, privada
de vida. Ainda recostado no pequizeiro, o morto – pensa ele – é um cajuí de
profundas raízes, daquelas que não há como desenraizar. Não se sabe bem há
quantos meses, talvez três ou quatro do ocorrido, e a cada dia tanto mais ele se
afunda no ocre do solo, feito o cajuí, aquele arbusto rasteiro que se enterra e
contorce à procura de água. Morrera de morte traída; assassinato covarde. Um
golpe violento na cabeça, às escondidas, fez do morto um vermelho-paralisado,
escuro, quase preto, de sangue pisado. O rosto voltado para o céu, para o sol
ardente, para os luares claros, exprime o sofrimento esperançoso que o levara a

26
cair ali. Murcho apenas e seus traços saltavam à cabeça trazendo as marcas de
um corpo que delirara vendo ao longe, no sertão, a ilusão maravilhosa de um
seio de mar. Nem um verme se aproxima, apenas lânguido, seu corpo morto é a
própria secura daqueles ares.

Tantos meses, noites e dias ao lado do morto, fazendo-o companhia, e a


geografia muda de paisagem. O homem-morto-cajuí já florescera e seus frutos
maduros, carnudos e avermelhados impregnam as narinas com forte odor
provocando a salivação. O homem que ali escorou-se não hesita. Colhe o fruto
maduro e, acocorado, o abocanha com desejo. Mastiga lentamente a polpa
carnuda fazendo escorrer o suco ácido e adocicado pra dentro e fora da boca. É
tanto suco preenchendo toda a cavidade bucal, de uma só vez, que por vezes
escapa pelos lábios, escorre no pescoço, molha o tórax e perfuma a pele. As
mãos esmagam a polpa da fruta e faz espremer o sumo que derrama pelos
dedos. Na língua, uma explosão. Espécies de botões gustativos são eriçados
nas laterais da língua com o ácido do fruto, ao mesmo tempo em que o doce e
afrodisíaco da sua carne agitam as papilas gustativas da pontinha da língua que
acaricia o alimento. Em goles largos a faringe ressequida suga o delicioso
líquido com tesão, reconhecendo o seu irrigar que desde há muito não sentia.
Os lábios se encaixam de tal modo na carne do fruto fazendo ereto o pênis do
homem acocorado. De pau duro ele continua, abaixa o cós de suas calças de
ganga e, ainda chupando o cajuzinho-do-cerrado, massageia seu próprio pênis
com apetite em busca de sacio e exaustão. Colhe e abocanha outro fruto,
prolonga o manjar dos deuses e acelera seus movimentos até a ejaculação.
Goza intensamente por alguns segundos e, satisfeito, cai no chão o corpo todo
arrepiado, oferecendo-se à prazerosa malemolência do esgotamento. Uma
chuva leve, fina e calma se inicia. E junto ao cajuí o homem adormece sentindo
a terra úmida que cheira a mato e bosta de um ou outro gado que se encontra
por ali. Um cantarolar bem ao fundo compõe o território seguro que o embalará
para um sono profundo.

Escuta-se ao longe:

27
Muriquinho piquinino... Muriquinho piquinino... De quissamba no
cacunda... Purugunta aonde vai... Purugunta aonde vai... Pro quilombo do
Dumbá...

Muriquinho piquinino... Ô parente, Muriquinho piquinino... De quissamba


no cacunda... Purugunta aonde vai... Ô parente, Purugunta aonde vai... Pro
quilombo do Dumbá... Ei, chora-chora mgongo ê devera... chora, mgongo,
chora... Ei, chora-chora mgongo ê devera... chora, mgongo, chora 14...

O cantarolar pouco a pouco entra em seus ouvidos, invade seus


esquemas motores e anuncia o desenrolar dos sonhos num trânsito frouxo entre
percepção, consciência e lembrança.
A ação auditiva é cada vez mais forte ao passo que o homem,
entorpecido do sono profundo, se esforça brutalmente na tentativa de abrir as
pálpebras. Estas, duras como pedras, pesam sobre os olhos, exigindo todo o
esforço possível e de uma só vez do corpo inteiro do homem, que treme e
suspende – muito lentamente – as sobrancelhas e por fim as pálpebras. De
olhos abertos e fixos para lugar nenhum, a paisagem passa a ser plano de fundo
e dá lugar ao delírio dos vultos de seus antepassados que zanzam pelas terras
de cá. Uma coleção de homens fortes em traje de algodão trabalha nas minas
ao mesmo tempo em que pronuncia os acontecimentos da vida através de
canções em língua crioula. Cantam para o moleque, que de trouxa nas costas,

14
Vissungo transcrito do livro de Aires da Mata Machado Filho: O Negro e o Garimpo em Minas
Gerais, publicado no ano de 1943, pela Livraria José Olympio Editora. Deste livro fizeram - anos
depois de sua publicação - o disco (LP/1982) O Canto dos Escravos, com Clementina de Jesus,
Tia Doca e Geraldo Filme. Pode-se baixá-lo inteiro aqui
http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Disco=DI04410 e ouvir
específicamente este vissungo em: https://www.youtube.com/watch?v=L5-ebjlQxys
Vissungo é o nome que se dá aos cantos de trabalho, em língua crioula, dos escravos
mineradores da região de Diamantina – MG. Clóvis Moura assim descreve em seu Dicionário:
“VISSUNGO: Tipo de canto de trabalho especial criado pelos escravos no interior e na zona
decadente dos garimpos em Minas Gerais, no início do século XIX. Os vissungos dividiam-se em
boiado, cantado a solo pelo mestre, e dobrado, canto solo seguido de coro. Machado Filho
(1943) traduz o termo “vissungo” como “fundamento”, vocábulo que até hoje, no vocabulário da
dança meio religiosa e meio profana, designa o sentido oculto dos versos cantados em forma de
metáfora. Isso se explica pela necessidade dos escravos de se comunicarem sem serem
entendidos pelos brancos, como desejo de preservação de sua cultura e de seus costumes.”
MOURA, Clovis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, 1. Ed., 1. reimpr. – São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2013.
28
vai fugindo para o quilombo do Dumbá. Cantam e choram pela vida do moleque
que foge, e pela prisão dos que nunca conseguirão fugir. O homem sem-
palavras assiste aquele delírio com curiosidade e atenção. E para seu espanto,
quanto mais seu corpo acorda, menos a canção se faz audível, tornando-se
apenas zumbido dos inúmeros urubus que rodeiam o corpo putrefato do morto-
cajuí. Em seu singular entendimento, os pássaros negros não eram outra coisa,
senão, uma coletividade de escravos mortos no decurso da colonização
daquelas terras, zumbindo no seu ouvido e implorando reparação.

E com a garganta arrochada ele se levanta bem devagarzinho. Manco,


curvo e bambo das pernas. Foi-se aos bocados, parando para respirar. A
angústia no peito esmagando o coração. Assim segue o homem o seu caminho
para lugar nenhum. Mapeando a toa. Rumoreja uma voz íntima, consigo só, de
algumas notas saídas de dentro que voltam pra dentro mesmo. Ao escutar as
perdizes, responde em pios. Ao chamado agoniado da esquiva jaó, replica por
meio de assobios que traz o som de um sopro falho e agudo. Aos gritos
estridentes da seriema, rebate com gosto um lamento em microtons. Silencioso
no mais das vezes, quando fala é para dentro. Quanto canta, o faz em pios.
Quando há grito na garganta, lamenta em canto feito um gado que muge sem
parar15.

Um homem carregado de seus próprios animais, aquele carregado das


próprias rochas, do inorgânico, lá onde reina o silício 16.

15
Ouvir http://letras.mus.br/luiz-gonzaga/82383/ ou
https://www.youtube.com/watch?v=tGsJrAlAQDs
16
"O super-homem é, segundo a fórmula de Rimbaud, o homem carregado dos próprios animais
(um código que pode capturar fragmentos de outros códigos, como nos novos esquemas de
evolução natural e retrógrada). É o homem carregado das próprias rochas, ou do inorgânico (lá
onde reina o silício). É o homem carregado do ser da linguagem (dessa 'região informe, muda,
não significante, onde a linguagem pode liberar-se', até mesmo daquilo que tem a dizer)."
DELEUZE, Gilles. Foucault. SP: Brasiliense, 1988, p. 141-42.

29
III. BANZO, MELANCOLIA DOS TRÓPICOS?

BÂNZO (1850), s.m. (Lat. pansus, apartado, aberto, do verbo pandor, apartar-se, abrir-
se.) melancolia ou tristeza mortal, a que se entregam os escravos tirados da África, procedida
ordinariamente da saudade da pátria, da cogitação profunda sobre a perda da liberdade, ou do
mau-trato que algumas vezes recebem.17

BANZO (1872), s.m. Melancholia, que ataca os negros captivos; espécie de nostalgia
mortal, resultante da saudade da pátria.18

BANZO (2013), Estado de depressão psicológica que se apossava do africano logo após
o seu desembarque no Brasil. Geralmente os que caíam nessa situação de nostalgia profunda
terminavam morrendo. Atribui-se tal estado depressivo à saudade da aldeia africana da qual
provinham, de modo que o banzo atingia somente a primeira geração de escravos, isto é,
aqueles diretamente importados da África. Há, porém, quem explique o banzo sem recorrer as
causas psicológicas, alegando que os africanos assim ficavam porque já estavam contaminados,
antes de embarcar, pela “doença do sono”, enfermidade decorrente da picada da mosca tsé-tsé.
No entanto, não nos parece muito plausível esta hipótese, sendo preferível a explicação da
depressão psicológica, mesmo porque muitos escravos acometidos do banzo terminavam
suicidando-se, o que não ocorreria no caso da doença do sono. João Ribeiro (1900) assim
descreve os africanos escravos acometidos da moléstia: “Uma moléstia estranha, que é saudade
da pátria, uma espécie de loucura nostálgica, suicídio forçado, o banzo dizima-os pela inanição e
fastio, ou os torna apáticos e idiotas”. [...] Renato Mendonça (1935) atribui a origem do termo ao
quimbundo mabanza, que significa aldeia e, por extensão, terra natal, ou seja, significaria em
última instância, saudade da aldeia, da África. Sobre essa moléstia e os seus efeitos,

17
Eduardo de Faria. Novo Diccionario da Lingua Portugueza. O mais completo..., (1850), p. 745-
746. https://archive.org/details/novodiccionariod01fariuoft
https://archive.org/stream/novodiccionariod01fariuoft#page/744/mode/2up/search/N último
acesso em 10 de novembro de 2015.
18
Dr. Frei Domingos Vieira. O Grande Diccionario Portuguez ou o Grande Thesouro da Lingua...
(1872), p. 721.
https://books.google.com.br/books?id=6MdRAAAAcAAJ&printsec=frontcover&dq=o+grande+dicci
onario+portuguez+ou+thesouro+da+lingua+volume+1&hl=pt-
BR&sa=X&ved=0CCwQ6AEwAmoVChMIy-Gbt--
FyQIVShmQCh2BVwVg#v=onepage&q=o%20grande%20diccionario%20portuguez%20ou%20th
esouro%20da%20lingua%20volume%201&f=false

30
transcreveremos como documento este trecho de Luís Antônio de Oliveira Mendes, apresentado
à Real Academia de Lisboa em 1973...19

Dos poucos estudos históricos sobre a escravatura atlântica que incluem


a questão do banzo no Brasil, o que merece especial atenção é o estudo de Luís
Antônio de Oliveira Mendes. Datado em 1793, foi o primeiro estudo a nomear o
banzo como phátos dos negros escravos, ou seja, o primeiro registro escrito da
palavra banzo para além do seu uso oral, provavelmente corriqueiro, entre as
bocas dos mercantes e senhores de escravos. Tal registro e sua conceituação
causou forte impacto na literatura, de modo que será com ele e através dele que
a enfermidade banzo se fará presente na maior parte dos registros posteriores
até os dias atuais. Ecos da sua descrição podem ser encontrados em dicionários
da língua portuguesa a partir de meados do século XVIII, nos escritos de
estrangeiros que estiveram no Brasil na primeira metade do século XIX, bem
como, em estudos atuais sobre a vida dos escravos no Brasil e sua economia
transatlântica.
Sendo verdade que o banzo de Oliveira Mendes nos oferece um rico
testemunho, procuraremos aqui abordá-lo a partir de três linhas de
problematização: Qual a relação do banzo de Oliveira Mendes com as noções
de melancolia e nostalgia traçadas ao longo da história? Como a sua
conceituação se fará presente nas literaturas de viagem do século XIX de F.
Sigaud e von Martius? Quais as características e os estereótipos inventados por
estes estudos sobre o africano, o índio e o brasileiro? E, partindo destas linhas a
serem problematizadas, perguntaremos: Porque o banzo hoje quando replicado
– e, neste caso, ocupando um espaço sempre mínimo –, o é desde o ponto de
vista de um desdobramento da melancolia ocidental? Será que ao encaixá-lo na
entidade melancolia não estaríamos fugindo do banzo na singularidade de seus
afetos? Não estaríamos esquivando-nos de um problema maior e mais obscuro
totalmente implicado na economia escravista? E por fim, em que medida
podemos convocar a melancolia pensada pela psicanálise, enquanto
instrumento para a operação de um deslocamento, na intenção de diferenciar o

19
MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. – 1. Ed., 1 reimpr. – São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2013, p.63-64.

31
banzo da melancolia ocidental? Será o banzo, de fato, uma “melancolia dos
trópicos”, como anonimamente o designaram20?

O Banzo de Oliveira Mendes

O luso-brasileiro Luis Antônio de Oliveira Mendes, nascido em Salvador


da Bahia no ano de 1748, formou-se em Direito na Universidade de Coimbra
(1777) onde também se dedicou ao estudo de outras Artes e Ciências. Viveu
boa parte de sua vida em Lisboa exercendo a função de advogado na Casa de
Suplício e foi membro da Academia Real das Ciências onde apresentou
memórias sobre variados temas21.
Escrita em Portugal e apresentada na própria Academia, o Discurso22, se
dedica sobre as condições do tráfico de escravos entre África e Brasil.

20
Não saberíamos precisar o primeiro autor a estabelecer uma relação direta do banzo com a
melancolia tropical. No entanto, é recorrente nos diversos estudos sobre as doenças do Brasil,
em especial no decorrer do século XIX, o uso do termo “tropical” como um adjetivo das doenças
que nos trópicos ganharam características específicas de seu “clima”. Dentre eles, o banzo
insere-se enquanto modalidade da melancolia que no Brasil tropical se instala nos corpos dos
escravos. Para além desta relação geral, encontramos mais especificamente os artigos de Leila
Danziger, Banzo e Preguiça: notas sobre a melancolia tropical e Melancolia à brasileira: A
aquarela negra vendendo caju, de Debret. Apesar de proporem uma abordagem diferente da que
pretendemos discutir aqui, os artigos oferecem importante debate acerca do banzo (enquanto
melancolia tropical) e sua presença nas aquarelas de Debret.
21
“Em sua bibliografia constam temas tais como: técnicas de melhoria da criação de carneiros e
da agricultura em Portugal, a economia da cidade de Salvador (Bahia), um inacabado dicionário
de línguas africanas etc. (Capela,1977). Portanto, vê-se que ele era um típico homem ilustrado,
interessado em buscar e difundir as luzes do conhecimento em suas múltiplas vertentes, e crente
em seu poder de melhorar ou reformar a sociedade. Não se sabe ao certo se ele esteve na
África, ou se utilizou apenas informantes que lá estiveram (Capela, 1977) – além de contar com
suas lembranças de infância no Brasil – para compor a sua memória sobre as condições do
tráfico negreiro e as doenças dos escravos.” O banzo e outros males: o páthos dos negros
escravos na Memória de Oliveira Mendes in: Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental, São Paulo, v. 10, n. 2, jun. 2007p. 349.

22
A Academia Real de Ciências de Lisboa tinha como prática divulgar os estudos produzidos na
Universidade de Coimbra e estimular as investigações úteis ao Reino. O Discurso de Oliveira
Mendes foi, portanto, uma resposta ao Programa, com questões específicas, determinado pela
própria Academia: “Discurso acadêmico ao programa: Determinar com todos os seus symptomas
as doenças agudas, e chronicas, que mais frequentemente accommettem os pretos recém
tirados da África: examinando as causas da sua mortandade depois da sua chegada ao Brasil:
se talvez a mudança do clima, se a vida mais laboriosa, ou se alguns outros motivos concorrem
32
Não se trata aqui de discutir o viés político de seu estudo, se
antiescravista ou a serviço da manutenção da economia escravagista,23 mas sim
de pinçar em seu texto o modo como o banzo foi sendo desenhado como um
páthos próprio ao processo da escravidão negra no Brasil e suas possíveis
ressonâncias com as diferentes noções ocidentais de melancolia e nostalgia
traçadas ao longo da história.
O Discurso é dividido em seis partes. A primeira dedica-se ao africano em
seu habitat: natureza, qualidade do ar, salubridade, da “liberdade do seu viver e
de seus costumes”. A segunda trata “do modo, causas, e princípio, porque são

para tanto estrago: e finalmente indicar os methodos mais apropriados para evitalo, prevenindo-
o, e curando-o: tudo isso deduzido da experiência mais sizuda, e fiel.”
Luis Antônio de Oliveira Mendes apresentou-a numa audiência pública em 12 de maio de 1793.
Sendo publicada apenas em 1812, no tomo IV das Memórias Econômicas da Academia Real das
Ciências de Lisboa. Todas as citações diretas que faço ao Discurso de Mendes foram alteradas,
por mim, para o português mais atual, tendo como referência dois documentos: O primeiro,
sendo o original Memorias economicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Lisboa:
Academia das Ciências de Lisboa, 1812. t. IV, p. 1-82.
Disponível em: HTTP://books.google.com/books?id=0-QAAAAAYAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
BR&source=gbs_book_other_version_r&cad=3_0#PPP19,M1 - Último acesso em 12/09/2015.
E o segundo, são os trechos do Discurso transcritos por Ana Maria Galdini Oda publicados na
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v.10, n. 2, p. 362-373, jun.
2007.
23
Há toda uma discussão a respeito do viés político do discurso de Oliveira Mendes. À primeira
vista pode nos parecer um texto em favor do tráfico, propondo soluções para melhor rendimento
dos escravos em proveito da economia escravagista. No entanto, vale esclarecer que seu estudo
foi publicado em duas versões, sendo a primeira mais reduzida e, não por acaso, censurada nas
partes tendenciosamente antiescravistas. Cabe salientar que trabalhei precisamente com a
versão que inclui tais partes. Elas aproximam-se das literaturas de viagem pela África,
publicadas na Inglaterra e EUA (sec. XVIII e XIX), incluindo as slaves narratives às quais pude
ter acesso de trechos através do trabalho de Jaime Rodrigues. Ainda que não haja uma
discussão sobre a escravidão em sua essência, é frequente o esforço por oferecer ao escravo
qualidades humanas (desde o ponto de vista ocidental de humano), moralmente dignas, não
economizando palavras para denunciar os maus tratos, a tirania, a precariedade e o sadismo
que circundam o africano desde seus primeiros passos em direção à escravidão. Para maior
esclarecimento ver os artigos de Ana Maria Galdini Oda na Revista Latinoam. de Psicopat.
Fund.,São Paulo v. 10, n. 2, jun. de 2007. E Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n.
4, p. 735-761, dez. 2008 (Suplemento).
Está sendo traduzida para o português, com previsão para publicação em final de 2016, a única
auto-biografia escrita por um ex-escravo que viveu no Brasil. Mahommah Gardo Baquaqua
nasceu no Norte da África no início do século XIX, chegou no Brasil em 1845 morando em
Recife, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul respectivamente. Fugiu para NY em 1847 onde
escreveu a sua biografia. http://oglobo.globo.com/sociedade/historia/historiadores-traduzem-
unica-autobiografia-escrita-por-ex-escravo-que-viveu-no-brasil-14671795
Acesso em 25-08-2015 às 18h39.
Site do Projeto Baquaqua: http://www.baquaqua.com.br/
33
desapossados da sua apreciável liberdade”. A terceira parte dedica-se
criticamente às “distintas idades” da escravatura: “quando são desnaturalizados
dos seus países até ao porto marítimo, onde na África são revendidos para
serem transportados para o Brasil.” “Quando são transportados, e entregues ao
Comissário até àquela época em que são revendidos no Brasil a diversos
senhores”, e “quando na América os senhores os compram, e os ficam
possuindo até ao último espaço das suas vidas.” Na quarta e quinta parte, que
nos interessam em especial, Oliveira Mendes se dedica às doenças crônicas e
agudas que acometem os negros africanos desde sua desnaturalização,
transporte e instalação no Brasil. A sexta e última parte sobre os modos dos
negros se “acautelarem” e cuidarem de suas enfermidades.
“Homens de pedra ou de ferro”, enfatiza Oliveira Mendes. Marcados
sucessivas vezes no peito a fogo, o carimbo lhes confere o lugar de
pertencimento. Após um longo processo de tornar-se cativo, seriam estas as
primeiras marcas carnais do brutal processo de desterritorialização pelo qual
passavam os escravos. Nestes termos, as marcas que lhes atribuíam lugar não
lhes permitiam constituir um re-território, pelo contrário, são a evidência da
produção de códigos de uma economia na qual o escravo é forçosamente parte
enquanto coisa-objeto, mercadoria, ferramenta de trabalho:

“(...) sofrem o sinal privativo do sertanejo24, que os leva na escravidão, para


serem conhecidos, e achados, no caso de fuga. Ainda de mais lhes acresce, que
chegando ao porto marítimo, aonde hão de ser embarcados, e transportados aí
tornam a ser marcados no peito direito com as armas do rei, e da nação, de

24
O sertanejo (Certanejo) que Oliveira Mendes se refere é uma espécie de mercador, que
conhece profundamente o sertão africano, responsável pelo transporte de escravos do interior
(sertão) até os portos marítimos. Neste sentido, o sertanejo é um dos muitos intermediários que
participaram da economia do tráfico atlântico. Parece-nos que tal memória ainda pulsa na
etimologia da palavra sertanejo e das palavras que dela derivam. Tal é o caso de sertanista de
contrato, palavra esta que se refere aos que prestavam serviço à elite colonial brasileira de
combate aos índios e aos negros. Contratados pela classe dominante, os sertanistas de contrato
eram os bandeirantes responsáveis pela captura de índios e negros e pela destruição de
quilombos. Ao mesmo tempo, o trânsito para o sertão só poderia ocorrer por aqueles que
conhecessem ou tinham interesse em desbravar o seu interior, portanto, o mesmo nome será
dado àqueles que foram viver para os sertões, colonizando e habitando o “Brasil profundo”,
tendo como sua maior atividade econômica as fazendas de gado.

34
quem ficam sendo vassalos, e vão viver sujeitos na escravidão; cujo sinal a fogo
lhes é posto com um instrumento de prata no ato de pagar os direitos: e a esta
marca lhe chamam carimbo. Sofrem de mais outra marca, ou carimbo, que a
fogo também lhes manda pôr o privativo senhor deles, debaixo de cujo nome, e
negociação eles são transportados para o Brasil; a qual lhes é posta ou no peito
esquerdo ou no braço, para também serem conhecidos no caso de fuga: sem
que nestes lances a natureza ceda aos martírios.”25
(...)
“Reduzido o homem preto livre à escravidão na África, ou porque a ele assim foi
julgado, ou por efeitos da piratagem e da aleivosia, como fica dito, é o indivíduo
da espécie humana o mais infeliz, que se pode considerar; porque desde logo é
lançado a ferros, aonde só come o que os primeiros inimigos da humanidade, e
tiranos lhe querem dar.”26

A perda de liberdade era um longo e complexo processo que se iniciava


desde a condenação do livre para a condição de escravo entre os povos
africanos27. Seja como castigo exercido pelo Pátrio Poder ou Direito Marital, seja
por sentença do crime cometido ou por piratagem e aleivosia, o fato é que um
corte radical para com a liberdade, os laços afetivos e seus modos de vida e
morada é o disparador de um traumático mal-estar. Era comum a venda de

25
MENDES, Luis Antônio de Oliviera. Memorias economicas da Academia Real das Sciencias
de Lisboa. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1812. t. IV, p. 8.
Disponível em: HTTP://books.google.com/books?id=0-QAAAAAYAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
BR&source=gbs_book_other_version_r&cad=3_0#PPP19,M1 - Último acesso em 12/09/2015.

26
MENDES, Luis Antônio de Oliveira, p 21.
27
É verdade que a escravidão já existia entre os povos africanos, anteriormente à chegada dos
europeus na África do séc. XVI. No entanto, é preciso destacar que a economia escravista
(tráfico transatlântico) mudou radicalmente o seu modo operacional e a sua dimensão estrutural.
Em primeiro lugar ganhou proporções aberrantes. Estima-se que mais de 9,5 milhões de
escravos saíram da África em direção às Américas entre os anos de 1502 a 1860, sendo o Brasil
o maior importador de “homens-pretos”. Em segundo lugar, o escravo passou a ser visto como
mercadoria, promovendo um maior número de guerras inter-tribais como meio eficaz dos
traficantes conseguirem cativos (e mais violentas, nas quais a introdução da arma de fogo pelos
europeus mudou fundamentalmente a natureza do conflito inter-tribal). Deste modo,
estabeleciam-se elos entre europeus e africanos de diferentes etnias e hierarquias: relações
comerciais e de troca, tendo como o maior bem precioso, os próprios cativos e seus corpos.

35
esposas e filhos (Pátrio Poder), ou a entrega de ambos aos Sobas28 como
pagamento da dívida ou do crime cometido pelo seu detentor, o pai. O trajeto
que sofria o cativo, desde a sua sentença até a chegada aos portos para seguir
viagem via Navio Negreiro era tormentoso. Oliveira Mendes descreve com
detalhes as inúmeras etapas das explorações e crueldades exercidas por esses
tumbeiros29. A vinda para a América era mais uma faceta propulsora de que se
sustentava toda a economia escravagista. Cruzar o Atlântico era adentrar em
direção ao desconhecido inferno sem volta30.
Era instalar-se na condição do homem-preto, homem-coisa, homem-
moeda, homem-mercadoria31. Os diferentes maus-tratos, a falta de alimentação,

28
Espécie de Juiz, em África, a quem lhes é confiado o poder de julgar os crimes cometidos
pelos africanos. Os castigos e as sentenças eram determinados por estes. Havia a possibilidade
de permutação, como por exemplo, um pai castigado à escravidão entregar-lhes a filha, a
esposa ou o filho em seu lugar.
29
Tumbeiros são os indivíduos encarregados de conduzir as levas de escravos do interior para o
litoral da África, permutando-os a troco de diferentes mercadorias.
30
O ‘inferno sem volta’ foi uma premissa, mas não privada de exceções. Sabe-se, por exemplo,
que existiram alguns casos de escravos que conseguiram comprar a liberdade e o seu retorno
para África. Mary Karasch nos oferece uma tabela na qual se pode conferir o registro do retorno
de escravos libertos para a África entre os anos de 1853 a 1855, sendo a maioria muçulmana e
de nacionalidade Mina. No Benin de hoje, podemos encontrar a comunidade dos Agudás,
descendentes dos escravos que para ali retornaram durante século XIX e que ainda hoje são
chamados de os brasileiros do Benin, mantendo algumas práticas culturais tipicamente
“brasileiras”. Existem dois documentários que tratam disto especificamente. Atlântico Negro, na
rota dos orixás de Renato Barbieri: https://www.youtube.com/watch?v=5h55TyNcGiY ; e Pedra
da Memória de Renata Amaral, na qual Renata propõem um desdobramento do documentário
de Renato Barbieri, levando o babalorixá pai Euclides Talabyan e sua esposa para uma encontro
(físico) com seus antepassados no Benin: https://vimeo.com/56037980 . Outra perspectiva é a do
suicídio por afogamento no mar associado à crença no calunga, a água como barreira que se
deveria cruzar para chegar à África e reencontrar seus ancestrais. Ou o suicídio através do
enforcamento em árvores nas florestas, uma associação entre os espíritos das florestas e das
árvores, e o suicídio nelas como possibilidade de efetuar este reencontro...
31
Na entrevista intitulada, A Europa já não é o centro de gravidade do mundo, as seguintes
perguntas são dirigidas à Achille Mbembe: O «Negro» não passa de uma invenção do
capitalismo atlântico? Que lugar atribui aos mundos do oceano índico e árabes transaarianos na
sua construção? As quais ele responde: “A escravatura atlântica é o único complexo servil multi-
hemisférico que transforma pessoas de origem africana em mercadorias. É, por esse facto, a
única a ter inventado o Negro, isto é, uma espécie de homem coisa, de homem metal, de homem
moeda, de homem plástico. É nas Américas e nas Caraíbas que os seres humanos são
transformados, pela primeira vez na história universal, em criptas vivas do capital. O Negro é o
protótipo deste processo”. In: http://www.buala.org/pt/cara-a-cara/a-europa-ja-nao-e-o-centro-de-
gravidade-do-mundo

36
os castigos exagerados, os abusos e tiranias de seus senhores intensificavam o
processo de erradicação de mundos possíveis a esses escravizados. Já em
terras brasileiras:

“Os tiranos fazem divertimentos da crueldade, se o escravo delinqüiu pelo Santo


Antônio, contam-se-lhe a trezena de açoites, se pelo tempo de algum outro santo
conta-se-lhe a novena; ainda que estes açoites sejam arbitrários em cada um
dia, proferindo-se-lhe a sentença de 50, de 60, de 80, de 100, até 200; para mais
realçar a crueldade, a sentença diz, que primeiro há de ser picado, e no fim de
cada um dia pingado com sebo quente. Eu vi correr pelo chão o sangue de meus
semelhantes. Eu vi os seus olhos escarnados pelos açoites. Eu os vi morrer
neles, e passam impunes os tiranos. Os escravos metidos nesta tortura,
sustentando o horrível combate da vida com a morte, tremendo, e sendo
obrigados todos os dias a comparecerem como réus: umas vezes tomam o
fôlego, e morrem; outras vezes passam navalhas às goelas; outras lançam-se
nos poços; outras precipitam-se das janelas, das grandes alturas; outras
finalmente matam a seus senhores”.32

E Oliveira Mendes insiste: “Em aquele instante, em que perdeu a


liberdade, perdeu também tudo quanto lhe era bom, e aprazível e gostoso. À
vista do que eles entram a suportar que coisa foi o extermínio de Adão lançado
fora do Paraíso!”.
Paraísos à parte, o fato é que os mundos, os territórios, as referências e,
sobretudo, a liberdade, lhes são arrancados de modo que tudo que subsista a
isso faz parte da memória cravada no Tempo, no Passado e nos poros dos
corpos despedaçados a qual, <desgraça deixando-os atônitos e pasmados33>,
será o acontecimento da invenção do Brasil.
Desde a primeira parte do Discurso, nos parece o autor interessado em
esclarecer as diversas circunstâncias – se talvez a mudança do clima, se a vida
mais laboriosa, ou se alguns outros motivos concorrem para tanto estrago (os
abusivos maus-tratos e exageradas horas de trabalho) na intenção de
32
MENDES, Luis Antônio de Oliveira, p. 35-36.
33
Definição de “Pasmar” encontrada no dicionário do padre Raphael Bluteau (1712-1728), citada
no capítulo 1, p. 15 desta pesquisa.

37
determinar com todos os seus sintomas as doenças agudas e crônicas, que
mais frequentemente acometem os recém-tirados da África – sendo a mais
importante e recorrente o banzo. As febres, as doenças pulmonares, a sarna
pustulosa, o sarampo, a disenteria, o “maculo” ou “mal-de-bicho”34, e todo o
sortilégio de doenças e infecções típicas do séc. XVIII oriundas do trânsito
Atlântico, na companhia da fome, desnutrição, castigos e escravidão – tudo isso
irá compor a desgraçada trama que desenhará a paisagem propícia para acolher
o que Oliveira Mendes chamará de o banzo dos escravos:

“Uma, e das principais moléstias crônicas, que sofrem os escravos, a qual pelo
decurso do tempo os leva à sepultura, vem a ser o banzo. O banzo é um
ressentimento entranhado por qualquer princípio, como por exemplo: a saudade
dos seus, e da sua pátria; o amor devido a alguém; à ingratidão, e aleivosia, que
outro lhe fizera; a cogitação profunda sobre a perda da liberdade; a meditação
continuada da tirania com que os tratam; o mesmo mau trato, que suportam; e
tudo aquilo que pode melancolizar. É uma paixão da alma, a que se entregam,
que só dão por extinta com a morte: por isso em o seu competente lugar disse
que os pretos africanos eram extremosos, fiéis, resolutos, constantíssimos, e
susceptíveis no último extremo do amor, e do ódio. Raimundo Jalama, sujeito de
probidade, digno de toda a crença, que conta oitenta anos de idade, e que por
vezes navegara para a Ásia; homem muito pronto, e experimentado em cálculos,
e projetos mercantis; e que por dez anos na cidade de São Paulo de Luanda fora
administrador do Contrato, e das Companhias do Pará e Pernambuco, estava na
posse de comprar, e remeter ao Brasil, para sortimento das ditas Companhias,
um grande número de escravos em todas as estações do ano. Ele fielmente me
informou a respeito desta enfermidade, chegando a afirmar que no tempo da sua
administração e sucessiva compra de escravos, em um dos lotes comprados
tivera certa escrava com uma filha a qual depois se chamara Lucrécia, de idade
de sete para oito anos; a qual escrava se entregara a um total fastio, por efeitos
do banzo, que nada queria comer, ainda oferecendo-se-lhe as melhores
comidas, assim do nosso trato e costume, como as do seu país; para cujo fim
tinha cozinheira própria; e observando ele esta obstinação e teima, pela filha
para isto insinuada entrou a pesquisar a causa e o motivo, por que a escrava se
entregara ao banzo inspirando na filha com promessa de prêmio, que em
conversa quisesse insuspeitavelmente extrair dos sentimentos de sua mãe, qual

34
O “maculo” ou “mal-de-bicho” era uma doença provavelmente comum entre os escravos, que
se iniciava com forte diarreia produzindo no orifício anal, tanto interno como externo, pequenas
úlceras que continham bichos. Segundo o dr. Sigaud a doença era bastante frequente entre os
africanos de Angola e Moçambique, tendo como características “uma excessiva dilatação do
ânus”, a paralisia da “parte interior do reto” e um complexo relaxamento do músculo esfíncter. O
seu estado final é marcado por gangrena e odor pútrido. Clóvis Moura fala da possibilidade de
ser o “maculo” as doenças que os médicos chamavam de “febre pútrida”.

38
vinha a ser a causa; e com efeito veio a adquirir a certeza de que seu marido, a
quem tanto amava, havia nomeado a ela com ingratidão, com separação, e
desterro à dura e cruel escravidão, e juntamente a sua filha tão estimada, como
penhor da sua aliança. Sabida a causa, dispendendo-se os maiores agrados,
promessas, e realidades de bom trato, e até de liberdade; nada foi capaz de lhe
desfazer esta imaginação. À vista dos agrados na presença de muitas pessoas,
que para eles concorriam, os seus olhos eram dois rios; de contínuo tinha a
cabeça sobre os joelhos; continuou a não querer comer; faleceu: e a sua filha foi
estimada, como a de uma heroína de amor, e de constância e sendo isto
sucedido há mais de vinte anos, ainda há dois anos houveram cartas, que
Lucrécia era viva. Este mesmo banzo por vezes observei na América
Portuguesa, que matara a muitos escravos; porém sempre foi efeitos do
ressentimento, da crueldade, e da tirania com que aos escravos tratavam os
seus senhores”35

Se por um lado, a mulher, mãe de Lucrécia, sofre de um banzo fruto da


opressão do Pátrio Poder, colocando em evidência a coresponsabilidade e a
participação dos povos africanos na produção da escravatura atlântica – tanto do
ponto de vista da sujeição ou coautoria, quanto do ponto de vista das
resistências e tensões – ao virarmo-nos para as interpretações de Oliveira
Mendes, não estariam às compreensões, paixão da alma, ressentimento
entranhado, meditação continuada, saudade da terra e dos seus, contaminadas
pelo cruzamento das ideias melancólicas, tanto às antigas quanto às
contemporâneas ao autor?

Breve história da Melancolia

Sabe-se que estudos do final do século XVII e início do XVIII indicavam a


nostalgia como um páthos próprio aos expatriados a qual associavam à
melancolia, embora constantemente variada ao longo da História. Teremos que
evocar tal interpretação brevemente, na intenção de situarmo-nos com relação
às diferentes noções de melancolia, e sua qualidade nostálgica, para melhor
compreender seu impacto na conceituação do banzo no Brasil 36.

35
MENDES, Luis Antônio de Oliveira, p. 43-44.
36
O artigo de Ana Maria Galdini Raimundo Oda nos oferece uma boa discussão sobre o tema
Nostalgia-Melancolia no banzo dos escravos no Brasil, ver: Escravidão e Nostalgia no Brasil: o
39
Johannes Hofer, jovem suíço e estudante de medicina, desenvolveu sua
tese em 1678 sobre o sofrimento dos jovens suíços em guerra, na qual surgiu
pela primeira vez a palavra nostalgia, uma justaposição das palavras gregas
Nostós (regresso) e Algós (dor). Para Hofer os jovens sofriam de desordem da
imaginação que provocava a produção de fluxos nervosos que passavam por
zonas cerebrais responsáveis pela sensação do desejo de regresso à casa. Em
1731, o médico e naturalista Johann Jakob Scheuchzer desenvolverá como
resposta a Hofer, a noção de que a nostalgia teria que ver com o sintoma
fisiológico da mudança brusca de altitude (pressão atmosférica), afetando a
distribuição dos fluxos vitais do corpo. Para Scheuchzer, são os corações dos
soldados que sofrem de excesso de pressão e não a sua imaginação, como
queria Hofer. Desde meados do século XVIII a melancolia helvética (ODA: 2008)
tornara-se menos suíça e se estenderá a outros povos durante a experiência de
guerra.
Zimmemar em 1764 publicará uma série de casos entre soldados
franceses, escoceses, austríacos, etc, afirmando que a nostalgia estaria
intimamente ligada à condição dos soldados em guerra e o seu desterro forçado
(ODA: 2008). Seja por desordem da imaginação ou por pressão atmosférica que
afetava o coração, a discussão girava entorno da ideia de que o trânsito forçado
de um contexto natal a um contexto outro, estranho, forjava uma série de
sintomas dos quais os mais comuns eram o estado melancólico, a languidez, a
perda de apetite, a perda da voz e a inanição. Uns de posição mais fisiológicas e
naturalistas, outros com tendências neo-hipocráticas, a associação nostalgia –
saudade dos seus e de sua pátria estava marcadamente presente no
pensamento das enfermidades melancólicas, e inscrita na noção do banzo no
Brasil. Embora aparentemente estranha, ou imprecisa, parece haver uma
associação entre os corpos obrigatoriamente desterrados, tanto dos jovens
soldados quanto dos escravos, e que levam consigo a experiência comum de
um violento contexto: guerra ou escravidão.
Certamente a nostalgia elaborada pelos suíços não esteve descolada das
noções de melancolia, que por sua vez, remonta desde a Antiguidade Clássica.

banzo, in: Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 4, p. 735-761, dezembro 2008
(Suplemento).

40
Hipocrates, o ‘pai da medicina’, irá desenvolver a ideia de distúrbio mental como
resultado de um desequilíbrio dos quatro humores básicos do corpo e suas
respectivas estações do ano, qualidade e temperamento. O sangue está para a
primavera e possui a qualidade temperado-úmido e um temperamento
sanguíneo; a bílis amarela é associada ao verão, com suas qualidades calor-
quente e um temperamento colérico; a linfa é inverniça, fria e úmida e seu
temperamento fleumático; a bílis negra está para o outono, é fria e seca e de
temperamento melancólico. A melancolia na Antiguidade Clássica é um estado
prolongado de tristeza e de medo e que, ao acometer o corpo, poderá produzir a
epilepsia. Saturno também será o planeta da melancolia, o mais distante do
sistema solar e o de lenta movimentação. Estaria aqui o nascimento da
intrínseca relação entre melancolia e lentidão?
No entanto, é Aristóteles quem fará da melancolia um aspecto próprio aos
homens de exceção, que consistiria no desequilíbrio dos humores que tende ao
excesso da bílis negra no coração, característico aos intelectuais e artistas.
Entretanto, Galeno alargará sua concepção. Do coração a melancolia passará
para o cérebro e estará relacionada à inundação deste pela bílis negra, tendo
como um de seus sintomas o espessamento do sangue que se tratará através
de sangrias. Todavia, dependendo de sua gravidade e de seu tempo no corpo
do enfermo, ela poderá se tornar uma afecção generalizada da bílis negra no
sangue, ou então, se inicial e primitiva, estaria localizada na região do estômago
e dos órgãos digestivos (hipocôndrios) – a chamada hipocondria. Ainda que se
aplique uma definição física para a melancolia, há, evidentemente, o seu
entendimento somático, considerando desde os humores do corpo até as
relações climáticas, geográficas, alimentares, morais e sociais, perceptíveis nas
diferentes terapêuticas comuns à época. O melancólico deverá buscar locais
arejados, nem excessivamente claros, tampouco demasiado escuros; diversão,
distração, atividade moderada, satisfação de alguma vaidade; distanciamento de
pessoas e objetos que possam trazer motivo de tristeza.
Para Jean Starobinski37, é Galeno quem fixa a descrição e a definição de
melancolia que se tornará critério de autoridade até o século XVIII. “As obras

37
Autor de vasta obra no campo da psiquiatria e da literatura, publicando inúmeros artigos e
livros a respeito da melancolia, dentre eles Histoire du traitement de la mélancolie, des origines à
41
médicas da Idade Média, Renascimento ou Barroco são, em sua maioria, senão,
aplicadas traduções de Galeno, mais ou menos adornadas com novas provas e
enriquecidas com alguma receita inédita. (...) Durante muito tempo a
originalidade consistirá, não em negar o saber tradicional, mas em recarregá-lo
de acessórios”38. Na Idade Média a melancolia continua a ocupar um lugar
importante. Doença do corpo ou da alma? Um pecado de tristeza?
Da ordem das tentações do “demônio do meio-dia” a acedía, “desgaste ou
perturbação do coração, especialmente em solitários” causava inquietude ou
sonolência exacerbada e a frequência de pensamentos delirantes que se
proporá como terapêutica o trabalho físico. Uma tristeza que envolverá o
mutismo, secando o dom da palavra e da oração, levando a extinção da voz nos
termos de uma afonia espiritual. Os melancólicos da Idade Média “não emitem
39
palavras senão puros burburinhos.” Demônio da mei(l)odia?
No fim da Idade Média retomam-se os conceitos hipocráticos e galênicos
de humor melancólico e acentuar-se-ão a lentidão como qualidade típica da
melancolia e seu antídoto: a ocupação; o trabalho na sua dimensão terapêutica
enquanto negação do ócio. Na Renascença, com todas as suas descobertas e
expressões que levava o homem ao centro do universo, marcando posição
radicalmente oposta à mentalidade medieval religiosa, a melancolia será
retomada como uma doença, sim, no entanto, mais uma vez, com qualidades
ligadas aos homens especiais de gênios.
Com a Modernidade, a expansão marítima e comercial, o processo de
colonização e a promessa de um novo mundo, a melancolia será entendida
sobre novas bases, ainda que contaminada por sua história secular. Ao mesmo
tempo em que há no ar o entusiasmo do novo mundo (a promessa da terra-
paraíso, o nascimento dos impérios europeus) paradoxalmente se instala, mais

1900 Thèse, Bâle, Acta psychosomatica, 1960; La mélancolie au miroir. Trois lectures
de Baudelaire, Paris, Julliard, 1990 e L'Encre de la mélancolie, Paris, Le Seuil, 2012.

38
STAROBINSKI, Jean. Acta Psychosomatica. Historia Del tratamiento de La melancolia desde
lós Orígenes hasta 1900, p. 25. Impreso en Suiza, junio de 1962. Tradução para o espanhol
encontrada na biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tradução livre para o
português realizada por mim.
39
Starobinski, p. 32

42
uma vez e com força, o mal-estar melancólico que começará ganhar uma face
acentuadamente e, cada vez mais, psicopatológica na qual ‘loucos’ não terão
espaço, tampouco ‘graça’ ou ‘genialidade’. No Brasil, com a presença da cultura
portuguesa, instala-se através de seus colonos a invenção de d. Duarte40: a
saudade portuguesa sem equivalente no latim ou qualquer outro idioma.
Saudade, nostalgia, desterro, paixão da alma, lentidão e seus efeitos
renúncia, recusa, tristeza profunda, medo, passividade: a melancolia. Chegamos
aqui, no conjunto que ofereceu a Oliveira Mendes e aos viajantes que estiveram
no Brasil da primeira metade do século XIX (esses já no contágio das ideias de
Pinel e Esquirol) as condições necessárias para elaborarem, juntamente com
observações sobre o tráfico de escravos e o sofrimento dos mesmos, a noção de
banzo que se instalará fortemente e impregnará a sua conceituação até os dias
atuais.

O banzo na literatura de viagem de F. Sigaud e Carl von Martius

Para melhor entendimento desta constelação convocaremos breves


passagens sobre o banzo nos relatos de dois viajantes do século XIX. Neles
escutaremos reverberar as noções de melancolia numa perspectiva neo-
hipocrática com tendências biológicas. Ao mesmo tempo que aparecerá a
nostalgia como herança do banzo de Oliveira Mendes, na sua face saudade da
terra e dos seus enquanto sintoma típico do desterrado, presente desde a
Antiguidade Clássica que considerava o viajante, o homem errante, o peregrino,
como figuras tipicamente melancólicas. É desta mesma época a ideia de que “a
melancolia se contrai recorrendo o mundo”, como diziam os sonetos romanos de
Du Bellay (Starobinski: 1962).

40
D. Duarte (1391-1438) é considerado o rei-filósofo português de extrema importância para a
construção e afirmação de uma cultura efetivamente portuguesa. Uma de suas publicações mais
famosas é o Leal Conselheiro, escrita durante os anos de 1420 a 1438, tendo sido reorganizada
no seu último ano de vida. Trata-se de uma publicação de ensaios em que d. Duarte oferece um
projeto de vida pessoal, social e nacional aos portugueses. Foi o primeiro livro redigido em língua
portuguesa (galego-português) no qual, aparece pela primeira vez, a palavra saudade (suydade)
referindo que não encontrou um termo equivalente em latim ou outra língua. Não tivemos a
oportunidade de ler o próprio livro, Leal Conselheiro, de todo modo, parece-nos de extrema
importância e inventividade, oferecendo desde aí o tom melancólico ao português e sua saudade
como um trânsito entre ausência e desejo.
43
Entretanto, agora, o banzo ganhará nova e importantíssima perspectiva:
este sofrimento não se limita ao escravo africano. Sintomas parecidos com o
banzo foram relatados por Carl F. von Martius41 ao observar os indígenas (os
brasis) que se encontravam em território brasileiro:

“Inércia das funções vitais: Tudo quanto até aqui temos dito a respeito das
particularidades somáticas dos brasis nos leva a concluir que ocorrem neles
deficiência de sensibilidade e retardamento das funções vitais. Uma observação
mais minuciosa demonstra isto. Comparativamente, a força assimiladora dos
brasis é muito menor. É fácil a digestão das comidas que lhes são usuais,
embora se componham de raízes e frutos verdes, ou de carnes mal preparadas;
o mesmo, porém, não acontece com alimentos não habituais e adubados. (...)
Eles só apreciam o sabor das coisas que lhes são conhecidas e que, por assim
dizer, já se identificaram com sua natureza, e conseguem com este modo de
viver, sempre metódico, conservar suas forças. Fora destas condições de vida,
os brasis mostram-se logo incomodados e aborrecidos por tudo que os afete de
modo contrário à sua vida anterior; em breve definham, em consequência de
profunda melancolia e desespero em que se acham; perdem o apetite e a
agilidade dos membros; caem num abatimento geral e, quase sempre, acabam
vítimas de diarréias coliquativas. Os colonizadores e fazendeiros que empregam
os índios como criados ou escravos nos trabalhos de suas fazendas, trazidos por
expedições belicosas ou pacíficas, os chamados descimentos, podem muito bem
dar testemunho desta grande prostração, desta carência de energias das
funções nutritivas, principalmente, nos lugares onde faltam ao índio os encantos
da alma e em que se vê sujeito a um modo de viver, de todo contrário ao que
levava anteriormente. Poucas semanas bastam para reduzir o índio mais robusto
a um esqueleto, levando-o fatalmente à morte, se não voltar pela própria
vontade, pelo auxílio dos companheiros ou, raras vezes também, pelos cuidados
humanitários do patrão, à sua primitiva liberdade nas matas. Essa rápida
decadência da nutrição sempre se realiza sob a influência de profunda
melancolia e isto com razão é mencionado como prova do grande domínio que
têm as influências psíquicas sobre o índio. Julgamos poder atribuir como causa
disto a debilidade do seu sistema plástico. O que dizemos torna-se ainda mais
evidente, quando comparamos os brasis com os negros, em idênticas
circunstâncias, isto é, sob a influência do sofrimento denominado Banzo, tão

41
Karl Friedrich Philipp von Martius foi um naturalista bávaro que esteve em viagem pelo Brasil
entre os anos de 1817 a 1820. Suas pesquisas resultaram em várias publicações, tais como:
Natureza, doenças, medicina e remédios dos índios brasileiros (1844); Flora Brasiliensis (1867);
Glossaria Linguarum Brasiliensium (1863); Viagem pelo Brasil (1817-1820) juntamente com J.B.
von Spix. Considerado o precursor da etnografia brasileira, von Martius, ainda que traga
concepções ocidentais para os problemas das doenças dos brasis, compatíveis à mentalidade
médica e científica da época - o naturalista certamente nos oferece um testemunho histórico
riquíssimo a se considerar, e confere aos indígenas reconhecida sabedoria a respeito dos
poderes medicinais das plantas nativas e seus respectivos fins terapêuticos.
44
conhecido dos possuidores de escravos. Essa nostalgia manifesta-se também
nos negros, por um profundo abatimento que na maioria dos casos acaba com a
morte. Enquanto o índio quase não exterioriza o que se passa no seu íntimo, e
trabalha, se bem que sempre só, embora mandado, parecendo ter-se tornado
um autômato que não tem outra ideia senão talvez fugir, no banzo do negro se
reflete uma excitação extraordinária de todas as sensações de seu estado de
espírito. Este desgraçado se entrega então, inteiramente, e com prazer, a suas
tristes ideias; a lembrança do passado, que a cada instante se lhe apresenta
revestida das mais vivas cores pela exaltação da imaginação, o extasia; abstém-
se de todo e qualquer alimento, e parece querer, com estas torturas, dar mais
realce ao seu lento e horrendo suicídio. Apesar disto, porém, o negro resiste
mais do que o índio aos estragos produzidos por esses sentimentos dolorosos;
arrasta, por muitos meses, lânguida existência, até que, por fim, uma repentina
hidropisia ou tuberculose galopante o arrebata à vida torturada, que ele parece
sentir mais do que o aborígine da América. Muitos outros fatores concorrem para
o enfraquecimento da nutrição e debilitação dos índios, como por exemplo: a
lenta cicatrização das feridas e úlceras, especialmente as dos pés, muitas vezes
crônicas, de que são portadores, sem manifesta repercussão sobre o estado
geral.” 42

Vejamos que o livro de von Martius foi publicado no Brasil pela primeira
vez em 1939. O tradutor Pirajá da Silva fará uma longa nota para o trecho que
acabamos de citar, e nela, esclarecerá a noção de banzo reafirmando as
concepções trazidas por Oliveira Mendes, e acrescentará uma possível
explicação etimológica para a palavra, tendo sua origem no verbo cu-banza da
língua bunda, que significa pensar associando-o ao pasmar de pena e mágoa,
bem como, do quimbundo mbanza que significa aldeia e, portanto, banzo seria
saudade da aldeia, por extensão. Quanto à concepção de nostalgia, Pirajá da
Silva nos trará, em mesma nota, a curiosa nomenclatura de “nostalgia das
selvas” que o próprio Martius elaborou em seu livro Através da Bahia:

“Permita-se aqui intercalar uma observação de nostalgia das selvas, feita pelo
próprio Martius, referente ao seu guia – índio Custódio, na qual bem se evidencia
a grande força do poder atávico: ‘O índio Custódio que havia oito meses nos
acompanhava desde o presídio de João Batista, em Minas, desaparecera,
quando íamos partir. Voltara às florestas de sua tribo, segundo informações,
aliás, equívocas, dos índios do Almada. Provavelmente, a vista do estado

42
MARTIUS, Karl Friedrich Philipp Von (1794-1868). Natureza, doenças, medicina e remédio dos
índios brasileiros: 1844; tradução, prefácio e notas de Pirajá da Silva. – 2. ed. – São Paulo: Ed.
Nacional; Brasilia:1979, p. 21-23.

45
primitivo dos Camacans lhe despertara o sentimento de nostalgia, de que
considerávamos tanto menos capaz quanto não só eram inequívocas as provas
de dedicação que nos havia dado, como era ao mesmo tempo, grande o desejo
de ver o país, onde, como costumava dizer, todos os homens eram pálidos e
usavam calças. Nesta resolução de nos acompanhar para a Europa havia
grande parte de vaidade, porque muito se ufanava de admiração que iria causar.
Entretanto, como ficou demonstrado, tais considerações nada conseguiram
contra o poder dos velhos hábitos e do atavismo do pensamento’”.43

‘Nostalgia das selvas’ embeleza, encobre e denega o que se vê. Não


será esta a palavra que estremeceria o entendimento “branco” do
comportamento dos brasis? Não seria demasiado ocidental a ideia de que o
índio titubeia entre a vaidade pelo seu reconhecimento em cruzar o atlântico e o
poder dos velhos hábitos?
Retornemos para von Martius, na sua concepção de torpor do sistema
nervoso e notemos a inércia – forças físicas e morais dissociadas – como
característico dos indígenas. Estaríamos frente à preguiça melancólica dos
Antigos ou diante de Macunaíma preconizado desde um ponto de vista menos
apaixonado?

“Torpor do sistema nervoso: Semelhante condição só pode provir de um sistema


nervoso inerte e pouco irritável; por isso, daremos, como segundo característico
somático dos brasis, essa notável inércia e torpor que lhe são peculiares. A
íntima ligação de todas as atividades orgânicas entre si, com a vida psíquica
superior, constituindo um característico essencial do homem de refinada
sensibilidade, não se observa nos brasis, nem mesmo comparativamente aos
negros, e, menos ainda aos homens de raça caucásica. Tanto as forças físicas
como as morais acham-se neles [os brasis] separadamente dissociadas, e ficam
em completa passividade ao lado uma da outra. Por isso, suas funções são mais
lentas, suas simpatias unilaterais e menos fortes – todos os antagonismos
menos acentuados”. 44

Continuemos na companhia de von Martius e agora escutemos,


declaradamente, a herança de uma concepção galênica para o temperamento
do brasis:

43
Martius, p. 22, notas 1 e 2 de Pirajá da Silva.
44
Martius, p. 25.

46
“Por todas as qualidades inatas e habituais dos brasis, tanto psicológicas como
físicas até aqui enumeradas, devemos necessariamente concluir serem esses
homens de temperamento linfático. Tendo pouco sangue nas veias, pouco
calórico e turgor no corpo, limitado em todas as suas atividades intelectuais, que
tanto influem para a vivacidade, vivem constantemente mergulhados na
monotonia; nutrindo-se de alimentos grosseiros, pesados, mal cozidos e não
adubados, além de terem fraco sistema nervoso, devem os brasis superabundar
em humores crus. Esses homens são de natureza pesada e fria e, por assim
dizer, quase anfíbios humanos. A pouca excitabilidade da sua fibra que é
animada só por poucas paixões, o lânguido movimento do seu sangue frio, a
vagarosa assimilação de pouca substância proveniente da abundância de
alimentos grosseiros a ainda mais o silêncio a batimento da alma, são os
elementos determinantes de uma constituição linfática. A isso corresponde o
predomínio da fleima e da melancolia no temperamento do índio.”45

Longe de desacreditar na possibilidade da existência de um estado que


poderíamos chamar de “melancólico” no indígena46, de algo que lhe pudesse
acometer e arrancá-lo o ‘chão’ (seja este qual for, desde a sua perspectiva
cósmico-animista), compreender o seu temperamento do ponto de vista que nele
vê fragilidade e fleuma, no qual o humor da atrabílis estaria em predomínio, não
seria sobrepor uma ciência estranha a corpos que entoam outros cantos? Quais
ofuscamentos seculares evidenciam-se nestes trechos para além daquele
assumido por von Martius e seu companheiro de trabalho o dr. von Spix ? “De
início supusemos não haver diferença apreciável nenhuma entre os índios
brasileiros, somente depois, com o tempo de convívio, se habituou a entrar em

45
Martius, p. 43
46
Orlando Sampaio Silva nos traz o mito da panema indígena descrita por Eduardo Galvão em
sua tese doutoral e seus estudos sobre os indígenas Tenetehára. A Panema seria um estado de
perda de características essenciais de pessoas, animais ou coisas, que, nesta condição, sob a
influência maléfica, tornam-se incapazes de executar suas ações ou de serem utilizados para
uma dada função. Um apanemado sente-se incapaz de diferentes ações (caçar, colher
alimentos, etc.), os animais não servem para o seu dono e os objetos ficam imprestáveis em sua
função. Mito ou não, infelizmente não tivemos a oportunidade de nos ater a este tema, todavia,
nos parece importante para somar à discussão de uma espécie de banzo-indígena no Brasil.
Ver: Eduardo Galvão: índios e caboclos, São Paulo: Annablume, 2007.

47
47
minúcias...” Não podemos deixar de suspeitar que tal ofuscação não para de
operar, reverberando desde então, até os dias atuais...

Retornemos para o banzo do negro-escravo na perspectiva de outro


viajante, o médico e naturalista François Sigaud48, para o qual banzo é uma
enfermidade relacionada às doenças nervosas (sistema nervoso):

“Mortalidade e venenos: A mortalidade dos negros foi, em todas as épocas,


muito grande. Não existe documento oficial que permita constatar o número
positivo, seja nas paróquias das grandes cidades, seja nos registros das
municipalidades. A única declaração que se pode tirar proveito é a dos capitães
dos navios negreiros ao entrar nos portos do Brasil, as quais sucumbem.
Obtiveram-se às vezes informações inexatas nestas declarações, pois os
capitães tiveram frequentemente necessidade de esconder o número de mortes
ou de aumentá-lo, segundo o interesse do momento. Eu disse que a mortalidade
é muito grande; pois li numa história do Brasil que, dos 1.552 negros que
entraram no hospital da Misericórdia em 1792, 706 sucumbiram. Aqueles que,
como eu, viram o amontoado de cadáveres nos últimos anos do tráfico, em 1830
e 1832, provenientes dos depósitos de negros do bairro do Valongo,
compreenderão facilmente que quase a metade tenha sucumbido sobre esse
número de 1.552. (...) Eu suponho, aqui, que os números da mortalidade sempre
são superiores àqueles das províncias do interior, por causa do desembarque de
negros e de moleques, chegando a ano a bordo dos navios que fazem o tráfico
por contrabando, espremidos, amontoados, a ponto de nada mais lhes restar do
que dar o último suspiro ao tocar no solo do Brasil. (...) O ciúme, os castigos
injustos, a nostalgia, levam freqüentemente os negros a se deixarem morrer,
resolução que nada pode vencer, que não cede a ameaça alguma, nem a
qualquer espécie de promessa de bem-estar futuro, inabalável até a completa
execução do suicídio voluntário. Raimundo Jalama, ancião octogenário que
durante dez anos exercera a função de administrador das Companhias de
comércio de escravos do Pará e Pernambuco em São Paulo de Luanda, no reino
de Angola, e pelas mãos do qual mais de um milhão de negros e negras haviam

47
SPIX e MARTIUS. Viagem pelo Brasil: 1817-1820 – Vol. 1 – Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São
Paulo; Ed. Da Universidade de São Paulo, 1981.
48
Joseph François Xavier Sigaud, médico e naturalista francês, chegou ao Brasil no ano de 1825
e viveu no país durante 30 anos. Teve importante papel nas áreas da medicina e da cultura no
Brasil Imperial. Foi médico do jovem imperador Pedro II, pioneiro da imprensa nacional, editor de
periódicos médicos, fundador e presidente da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro,
membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Foi o principal responsável pelo trabalho
de tradução, no Brasil, das pesquisas higienistas no século XIX. Por ter vivido o drama de uma
filha cega, empenhou-se na criação do Instituto Imperial dos Meninos Cegos e do método de
alfabetização por Braile.

48
sido comprados e vendidos, assinalou muitos casos de suicídio provenientes das
causas mencionadas. Este ancião, relatou, entre outros, um fato curioso e
interessante, na memória de Luis Antonio de Oliveira Mendes, que no Brasil teve
ocasião de observar mortes lentas, espécies de consumpções produzidas pela
inanição, e devidas a uma causa moral. A tendência às idéias funestas é mais
que conhecida entre estes infelizes: os jesuítas lançavam mão da música para
distraí-los desta tendência. Os grandes proprietários de engenhos, os que
dirigem a escravaria, os plantadores enfim que contam com grande número de
escravos trataram de seguir este exemplo, que buscam fortalecer o melhor que
podem com práticas da nossa santa religião”. 49

Mais uma vez escutamos ressoar as descrições sobre o banzo do


Discurso de Oliveira Mendes, agora, com acentuada tonalidade antiescravista.
Entretanto é de se notar o tom científico da cultura sanitária em que Sigaud
ressalta – contrastando com a opinião médica da época – que não há diferenças
na ocorrência da loucura, histeria e hipocondria segundo as raças:

“Alguns autores, o Sr. Thévenot entre eles, pretenderam que a inflamação das
membranas do cérebro, a loucura e a hipocondria eram raras entre os negros.
Eu estou longe de compartilhar esta opinião, por causa de um grande número de
fatos que pude recolher em confirmação do contrário. (...) O suicídio é muito
comum entre os negros das nações Mina e Congo: se entre os primeiros ele é
obra de uma forte resolução, resultam, entre os últimos, de um completo
desarranjo das faculdades mentais, caracterizado por uma mania aguda. O
excesso de libertinagem, o abuso da aguardente da cana, a masturbação, o
verme solitário, provocam convulsões que logo se revestem de forma epiléptica;
e se inicialmente os centros nervosos não são alterados a lesão se desenvolve
progressivamente.” 50

(...)

“Em uma região inquietada pelas paixões políticas, onde as revoluções


tumultuaram a sociedade. Em um país em que as hemorroidas e a hepatite são
reputadas endêmicas, a hipocondria e a loucura existem forçosamente, todavia
sem emprestar do clima um rosto novo. A alienação mental ataca mais os
europeus, por causa das suas paixões frustradas, a maioria acreditando, à força
de atividades, poder adquirir os favores da fortuna em pouco tempo, e tentando
o impossível, em detrimento de sua saúde. A mania se observa igualmente entre
os pretos e reveste entre eles assim como entre os brancos, as formas
conhecidas da melancolia, do delírio agudo, da monomania, da loucura religiosa,
49
SIGAUD, J.F.X., Do Clima e das doenças do Brasil ou estatísticas médicas deste império.
Tradução de Renato Aguiar – Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009, p. 124-127.
50
Sigaud, p. 119-120.

49
etc. Os que pretenderam que índios e negros não eram suscetíveis de loucura
na verdade quiseram separar as duas raças das condições inevitáveis da
humanidade. De serem deixados livres , circulando à vontade nas cidades e
habitações, assim como uma série de brancos maníacos, e de só serem
encarcerados em caso de acessos furiosos, não decorre que não existam índios
e negros em estados de loucura outros que não o idiotismo.”51

Paira no ar um Brasil desconjuntado. Esfacela-se o ideal da terra-paraíso


frente às imensas dificuldades em colonizar a terra tropical. Desarranjam-se os
nervos dos negros por excesso de libertinagem e água ardente. Ainda que não
pareça, os loucos estão soltos 52, ou quando encarcerados – por motivo de
ataque furioso – aos negros lhes conferirão dentro do próprio hospício o seu
lugar de escravo. Argumentando a importância da criação de novos hospícios
para o Brasil, Sigaud descreve criticamente o destino dos alienados no Hospital
de Misericórdia de 1826-1835 e comemora a sua reforma de 1837:

“Era nesta prisão que corresponde a uma sala de 36 a 28 palmos, que se


encontravam empilhados os maníacos, os velhos paralíticos e os furiosos, os
escravos dormindo em camas de madeira ou acorrentados durante a noite por
uma parte do corpo a um tronco de madeira ou barra à qual, de dia, fixavam-se
os escravos do hospital para receberem chicotadas, e onde às vezes os próprios
doentes eram amarrados para serem fustigados, ao bel prazer dos guardas que
reprimiam os acessos de fúria ou de delírio com atrozes castigos.”53

(...)

“A livre circulação de maníacos nas cidades e nos campos chamou igualmente a


atenção dos meus confrades: também e a tempo, eles reclamaram junto à
autoridade o fim do escândalo e dos perigos de tal costume, em tudo semelhante
àquele dos povos do Oriente, que só trancafiam seus loucos quando estes se
tornam furiosos, deixando-os expostos aos curiosos até que se irritassem a
ponto de cometerem crimes ou tentarem suicídio. (...) A hipocondria e a

51
Sigaud, p. 250
52
Importante lembrarmo-nos que será no sec. XIX que o movimento alienista irá se fortalecer. A
perspectiva de que existem os que “parecem loucos mas não são perigosos” versus os que “não
parecem loucos mas o são”, é de extrema importância para o capítulo Brazil Banzil que nos
dedicaremos mais a frente. Deleuze e Guattari tratam desta questão especificamente em Sobre
alguns regimes de signos, in: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 2 – São Paulo: Ed.
34, 1995 (tradução brasileira).
53
Sigaud, p. 252.

50
melancolia religiosa são observadas em maior número nos campos do que nas
cidades; nestas, o idiotismo, o delírio dos bêbados, a mania, proveniente da
supressão dos suores, de diversas nevralgias, do fluxo hemorroidal, complicada
de epilepsia e da tendência ao suicídio, são as espécies mais frequentes de
vesânias. Os mesmos tratamentos utilizados na Europa foram colocados em
prática por vários dos meus confrades, mas com menos chances de sucesso,
por causa da ausência de condições higiênicas. Viagens marítimas foram
tentadas sem nenhum benefício, tanto as de longa como as de curta distância,
ao longo da costa. Ao contrário, em alguns casos elas concorreram ao
agravamento da doença e não proporcionaram nem distrações, nem emoções
capazes de aliviar a maioria dos alienados.” 54

Embora F. Sigaud nos ofereça uma linguagem bastante médica e de


acordo com os movimentos alienistas da época, o autor nos fará notar que este
é um tempo em que os antigos saberes humorais se cruzam com as
mentalidades científicas do século XIX. As terapêuticas exercidas pelos médicos
alienistas do Brasil incluem banhos frios, sangrias, o emprego de catárticos e
revulsivos, a beladona e o heléboro que desde a Antiguidade Clássica são
utilizadas como tratamento para a melancolia. Na sua face “psiquiátrica-
escravista” encontram-se medidas como a camisa de força, a reclusão, a
repressão em troncos e a insistência nos estudos da anatomia humana e em
especial de seu sistema nervoso. Tal observação nos parece importante para
que se evidencie a contaminação de diferentes mentalidades na concepção dos
males psicossomáticos do Brasil colônia, escravocrata, dentre eles o próprio
banzo.
Frente as específicas descrições de von Martius e F. Sigaud sobre o
banzo no Brasil, interrogamos: Não nos parece evidente a tentativa de afirmar a
existência de certa operação corrosiva nos corpos, não apenas dos negros-
escravos, mas também dos brasis, quando em situação de intenso desgosto e
adversa às suas origens? Entretanto, não seria igualmente evidente, que tal
operação destrutiva vai se diferenciando no funcionamento de cada organismo?
Os indígenas são interpretados como lentos nas funções vitais,
dissociados no sistema nervoso, frágil e dominado por suas questões psíquicas,
e lhes é atribuído como “causa disto a debilidade do seu sistema plástico”.
54
Sigaud, p. 252-253.
A perspectiva de que a loucura estaria mais presente no campo do que na cidade nos interessa
especialmente, retomaremos este ponto no capítulo que se segue, Brazil Banzil.
51
Apático e frágil rapidamente emudece, sozinho, feito um autômato em direção à
morte. Por outro lado, no banzo do negro “se reflete uma excitação
extraordinária de todas as sensações que se acham em relação com seu estado
de espírito”. O africano entrega-se intensamente – e com prazer! – ao
sofrimento. Remói as ideias e imagens do passado, dobra-se para dentro de um
lugar perdido, priva-se de todo e qualquer alimento e, pior, intencionalmente o
faz para realçar o “seu lento e horrendo suicídio”.
O africano como o extremo do amor e do ódio, resultado derradeiro de
suas paixões e de um “completo desarranjo das faculdades mentais,
caracterizado por uma mania aguda”. O índio como a passividade absoluta,
expressão de “todos os antagonismos menos acentuados”. Seja na apatia
indígena ou nos nervos ardentes dos africanos-escravos, de modo geral, há de
fundo a operação de uma melancolia que está associada aos desarranjos do
sistema nervoso e linfático como mais uma explicação, agora de base biológica
e anatômica, para os sintomas do banzo: inanição, mudez, apatia, nostalgia,
lentidão, tristeza profunda.
Será que podemos ouvir, ainda hoje, as ressonâncias das compreensões
trazidas por estes estudos? Pressentimos que tais concepções estejam na base
das representações que se secularizaram a respeito tanto do indígena, quanto
do africano e, por conseguinte do “ser brasileiro”. Desde um ponto de vista da
dualidade dos opostos, dissipando o problema das forças que estão jogo, ora se
romantiza a “preguiça”, a “lentidão” e os “extremos do amor e do ódio” enquanto
atos de resistência, ora lhes chicotearão como característicos de um “ser menor
e subdesenvolvido”...

Será que podemos convocar a melancolia elaborada pela


psicanálise, enquanto instrumento para a operação de um deslocamento,
na intenção de diferenciar o banzo da melancolia ocidental?

Por um lado, num passar de olhos, podemos suscitar o contágio das


diferentes noções de melancolia na elaboração conceitual do afeto banzo no
Brasil Colônia por parte daqueles que se dedicaram a isso. Seus estudos e
52
esforços nos oferecem um documento precioso a ser escutado. No entanto, por
outro lado, hoje não poderíamos deixar de questionar o porquê de tais
concepções, quando reproduzidas, o serem brevemente com pouca dedicação
crítica. Evidentemente o problema do banzo carrega dimensões bastante
obscuras, que flertam com campos vastos entre a história, a clínica e a política,
com os quais estamos longe de abarcar em sua plenitude. Contudo, nos parece
indispensável arriscar, saltar para dentro do banzo, procurar abri-lo. Fazer com o
banzo uma abordagem (dentre muitas) sobre a economia escravocrata e,
especialmente, de sua herança que ecoa sem parar no Brasil atual. Insistimos:
Por que o banzo, atualmente, quando abordado em fragmentos aqui e acolá,
aparece como replicas de frases de Oliveira Mendes e F. Sigaud, ou enquanto
um desdobramento da melancolia ocidental? Existiria algum fio que conecta o
banzo-melancolia do Brasil Colônia e a melancolia depois de Freud?
À primeira vista os sintomas poderiam nos parecer semelhantes: a recusa
desde a mudez à inanição; a constante sensação de vazio; a tristeza como o seu
humor fundamental; o irreversível estado melancólico que leva o acometido em
direção à morte ou até ao suicídio. No entanto, ao determo-nos mais
atentamente, tão logo tais sintomas se apresentarão como sendo radicalmente
de outra ordem. Ainda que Freud encontre a dificuldade de situar a melancolia
num quadro definido, nela, há algo marcadamente presente e que diz respeito à
formação psicossocial do humano. Neste sentido, o anseio por alguma coisa
perdida estaria relacionado com o luto impossível que leva à perda da libido. A
falta será um fator determinante que se apresenta como um buraco na esfera
psíquica ou como perda que gerará o afeto do luto, afirmação por excelência
desta afecção: “O melancólico é um enlutado com a vida.”55
Mas será Julia Kristeva56 quem insistirá na melancolia e na depressão
como um conjunto, extraindo do seu seio a experiência comum da perda do

55
PERES, Urania Tourinho. Dúvida Melancólica, Dívida Melancólica, Vida Melancólica, in:
Melancolia. São Paulo: Ed. Escuta, 1996, p. 67.
56
Kristeva, Julia. Sol negro: depressão e melancolia; tradução de Carlota Gomes. – Rio de
Janeiro: Rocco, 1989. “Chamaremos de melancolia a sintomatologia psiquiátrica de inibição e
de assimbolia que, por momentos, ou de forma crônica, se instala num indivíduo, em geral se
alternando com a fase, dita maníaca, de exaltação. Quando os dois fenômenos, de abatimento e
da excitação, são de menor intensidade e frequência, podemos então falar de depressão
53
objeto e de uma modificação dos laços significantes. O melancólico e o
depressivo partilham da mesma recusa, e igualmente, da mesma dificuldade:
negam a sua separação do objeto amado e se defrontam com a impossibilidade
de efetuar o luto. Dentre as consequências disto, estaria a dimensão simbólica
revelar-se insuficiente, quebrada, “o deprimido não fala de nada, não tem nada
57
do que falar”. Aniquilando o sentido simbólico também aniquila o sentido do
ato e por isso o suicídio ser tão comum. A fala está destituída do poder de
investimento, linguagem e vida perderam o sentido: “a língua morta que ele fala
58
e que anuncia o seu suicídio esconde uma Coisa enterrada viva”. A Coisa com
a qual ele não tolera separar-se, impossibilitando transpô-la através de um luto
que nunca se realiza, e que por fim, não encadeará novos significantes em
palavras e atos59. É por este motivo que Julia Kristeva vê nas palavras

neurótica. Ao mesmo tempo em que reconhece a diferença entre melancolia e depressão, a


teoria freudiana revela, em todo lugar, o mesmo luto impossível do objeto materno. Pergunta:
impossível em razão de qual falha paterna? Ou de que fragilidade biológica? A melancolia –
encontramos ainda o tremo genérico, depois de termos distinguido as sintomatologias psicótica e
neurótica – tem o temível privilégio de situar a interrogação do analista na encruzilhada do
biológico e do simbólico. Séries paralelas? Sequências consecutivas? Cruzamento ocasional a
ser precisado, outra relação a ser inventada? Os dois termos, melancolia e depressão, designam
um conjunto que se poderia chamar de melancólico-depressivo, cujos limites, na realidade, são
imprecisos e no qual a psiquiatria reserva o conceito de ‘melancolia’ à doença espontaneamente
irreversível (que só cede com a administração de antidepressivos). Sem entrar nos diversos tipos
de depressão (‘psicótica’ ou ‘neurótica’ ou, segundo uma outra classificação, ‘ansiosa’, ‘agitada’,
‘retardada’, ‘hostil’), nem no campo promissor mas pouco preciso dos efeitos exatos dos
antidepressivos (IMAO, tricíclicos, heterocíclicos) ou dos estabilizadores tímicos (sais de lítio),
nos situaremos numa perspectiva freudiana. A partir daí tentaremos extrair o que, no seio do
conjunto melancólico-depressivo, por mais imprecisos que sejam seus limites, depende de sua
experiência comum da perda do objeto, bem como de uma modificação dos laços significantes.
Estes últimos, em particular a linguagem, no conjunto melancólico-depressivo, revelam-se
incapazes de assegurar a auto-estimulação necessária para iniciar certas respostas. Em vez de
operar como um “sistema de recompensas”, a linguagem hiperativa, pelo contrário, o acopla à
ansiedade-punição, inserindo-se assim no retardamento comportamental e ideativo característico
da depressão. Se a tristeza passageira ou o luto, por um lado, e o estupor melancólico, por
outro, diferem clínica e nosologicamente, eles se apoiam contudo numa intolerância à perda do
objeto e na falência do significante, para assegurar uma saída compensatória aos estados de
retração nos quais o sujeito se refugia até a inanição, até fazer-se de morto ou até a própria
morte. Assim, falaremos de depressão e melancolia, continuando a não distinguir as
particularidades das duas afecções, mas tendo em vista a sua estrutura comum” (p. 16-17).
57
Kristeva, p. 54.
58
Kristeva, p. 55.
59
Aqui estaria o papel da análise: auxiliar o depressivo-melancólico a dar o salto, efetuar o luto
da Coisa, transpondo-a através da criação de novos significantes (palavras e atos).
54
repetitivas e monótonas, o lugar em que o deprimido traz a força do silêncio,
suspendendo qualquer ideação, “soçobrando no branco da assimbolia ou no
excesso de um caos ideatório não ordenável”.60 Os bolsões de ar, hiatos, vazios,
silêncios, pausas de uma fala não encadeada, são o testemunho de um combate
que o homem trava com a melancolia-depressão.
É também Julia Kristeva quem nos fará notar a relação entre o
“retardamento motor, afetivo e ideativo” (a antiga lentidão melancólica, agora, na
perspectiva científica da psiquiatria?) como característicos do conjunto
melancólico-depressivo, que motivará diferentes estudos no campo da
psiquiatria e da psicologia do século XX, situando a interrogação na encruzilhada
do biológico e do simbólico.
Tais estudos entendem que certas substâncias químicas do cérebro
tendem a um duplo comportamento, ora neural ora endócrino, o que nos leva a
pensar num possível alargamento da polarização proposta por Sigaud e Martius,
entre o índio-apático-linfático (endócrino) e o negro-nervoso-dramático (neural).
Sobre este duplo comportamento cerebral, valerá a pena transcreveremos na
íntegra as palavras de Kristeva, pois sua abordagem nos parece revelar,
resumidamente, a perspectiva da leitura psiquiátrica-psicanalítica da melancolia:

“Numerosos são os autores que insistiram no retardamento motor, afetivo e


ideativo característico do conjunto melancólico-depressivo. Mesmo a agitação
psicomotora e a depressão delirante, ou mais geralmente o humor depressivo,
parecem indissociáveis do retardamento. O retardamento verbal participa do
mesmo quadro: o fluxo da enunciação é lento, os silêncios são longos e
frequentes, os ritmos diminuem, as entonações ficam monótonas e as próprias
estruturas sintáticas, sem acusarem perturbações e confusões como as que
podemos observar nas esquizofrenias, em geral caracterizam-se por supressões
não-recuperáveis (omissões de objetos ou de verbos impossíveis de serem
reconstituídos a partir do contexto). Um dos modelos propostos para se pensar
os processos subjacentes ao estado de retardamento depressivo, o ‘learned
helplessness’ (confusão aprendida sic), parte da observação segundo a qual,
com todas as saídas fechadas, o animal, tanto quanto o homem, aprende a se
retirar em vez de fugir ou de combater. O retardamento ou a inação, que
poderíamos chamar de depressivos, constituiriam portanto uma reação de
defesa aprendida contra uma situação sem saída e contra choques inevitáveis.
Os antidepressivos tricíclicos aparentemente restauram a capacidade de fuga, o

60
Kristeva, p. 39.

55
que faz supor que a inação aprendida está ligada a uma depleção
noradrenérgica ou uma hiperatividade colinérgica.”61

(...)

“Neste ponto das tentativas atuais de pensar as duas vias – psíquica e biológica
– das afecções, podemos recolocar a questão da importância axial da linguagem
no ser humano. Na experiência de separação sem solução ou de choques
inevitáveis, ou ainda de perseguição sem saída, contrariamente ao animal que
só pode recorrer ao comportamento, a criança pode encontrar uma solução de
luta ou de fuga na representação psíquica e na linguagem. Ela imagina, pensa,
fala, a luta ou a fuga assim como toda uma gama intermediária, o que pode
evitar que se feche na inação ou que se faça de morta, ferida por frustrações ou
danos irreparáveis. Entretanto, para que essa solução não-depressiva para o
dilema melancólico fugir-combater (flight/fight, learned helplessness) seja
elaborável, é preciso que a criança tenha uma sólida implicação no código
simbólico e imaginário, que, somente nestas condições, torna-se estimulação e
reforço. Então, ela inicia respostas para uma certa ação, ela também
implicitamente simbólica, informada pela linguagem ou na ação somente da
linguagem. Se, pelo contrário, a dimensão simbólica se revela insuficiente, o
sujeito encontra-se de novo na situação sem saída da confusão, que desemboca
na inação e na morte. Em outros termos, a linguagem, na sua heterogeneidade
(processos primários e secundários, vetor edeico e emocional de desejo, de
ódio, de conflitos), é um fator poderoso que, por mediações desconhecidas,
exerce um efeito de ativação (como inversamente, de inibição), sobre os
circuitos neurobiológicos. Nesta ótica, várias questões continuam em
suspenso.”62

(...)

“As interrupções das sequencialidades linguísticas e, ainda mais, as suas


substituições por operações supra-segmentais (ritmos, melodias) no discurso
depressivo podem ser interpretadas como uma deficiência do hemisfério
esquerdo que comanda a construção linguística, em proveito de uma dominação
– mesmo provisória – do hemisfério direito, que comanda os afetos e as
emoções, assim como suas inscrições ‘primárias’, ‘musicais’, não linguísticas.

61
Kristeva, p. 40.
Grosso modo, depleção noradrenérgica seria uma espécie de inibição do funcionamento da
noradrenalina, hormônio neurotransmissor produzido pelas suprarrenais, de extrema importância
no regulamento do sistema de “alerta”, de “combate”, de “defesa” do organismo. Sua produção
prepara o corpo para a “luta” contra a ameaça ou a fuga. A atividade colinérgica, produtora do
neurotransmissor acetilcolina, opera numa lógica de relaxamento do corpo, num sistema de
“repouse e digira”, sendo portanto, sua hiperatividade o excessivo estado de “repouso e
digestão”, configurando na depressão uma espécie de paralisia e apatia.
62
Kristeva, p. 42.

56
Por outro lado, a estas observações acrescentaremos o modelo de um duplo
funcionamento cerebral: neural, elétrico ou por cabos e digital, assim como
endócrino, humoral, flutuante e analógico. Certas substâncias químicas do
cérebro, mesmo certos neurotransmissores, parecem ter um duplo
comportamento: às vezes ‘neuronal’, às vezes ‘endócrino’. (...) Entretanto, hoje
nada permite estabelecer qualquer correspondência – a não ser um salto – entre
o substrato biológico e o nível das representações, sejam elas tonais ou
sintáticas, emotivas ou cognitivas, semióticas ou simbólicas. Contudo, não
poderíamos negligenciar os relacionamentos possíveis entre esse dois níveis e
tentar ressonâncias, certamente aleatórias e imprevisíveis, de um sobre o outro
e, ainda com mais razão, modificações de um em relação ao outro”. 63

Ora, se suspeitamos que não temos condições de sobrepor ao banzo


colonial a operação psicanalítica, ou seja, o modo em que a psicanálise aborda o
conjunto melancólico-depressivo, afinal, porque insistimos em trazê-la aqui? A
resposta está em nossa desconfiança de que a ideia de ‘retardamento motor,
afetivo e ideativo’, característicos do melancólico e do depressivo, elaborados
pela psicanálise e pela psiquiatria, nos oferece uma linha que atravessa a
melancolia, a nostalgia e o banzo, flertando com a biologia; por outro lado não
podemos deixar de incluir nesta linha a história, as narrativas dos viajantes, a
mentalidade Colonial e as condições inventadas pela escravatura atlântica. E
que linha seria esta? Sublinharemos que será na sua característica de
aprisionamento que poderemos traçar o seu maior parentesco:

“Estar deprimido é estar aprisionado num sistema de ação, é agir, pensar, falar,
segundo modalidades cujo retardamento constitui uma característica”. 64

Arriscaríamos dizer que a noção de aprisionado não apenas atrita a


vizinhança entre banzo e melancolia, ou banzo e o conjunto melancólico-
depressivo como quer Kristeva, mas é o que nos interessa fundamentalmente. E
se nos interessa, é apenas na medida em que o aprisionamento poderá nos
63
Kristeva, p. 43-44.

64
Encontramos esta citação em uma nota de rodapé, página 40, nota número 2, de Sol Negro:
depressão e melancolia.: “Reportar-nos-emos à obra coletiva sob a direção de Daniel Widlöcher,
Le Ralentissement dépressif (O Retardamento depressivo), P.U.F., Paris, 1985, que resume
esses trabalhos e traz uma nova concepção do retardamento próprio à depressão: ‘Estar
deprimido é estar aprisionado num sistema de ação , é agir, pensar, falar segundo modalidades
cujo retardamento constitui uma característica’ (Ibid., p.9)”.

57
oferecer um gancho para efetuarmos um salto em direção ao banzo enquanto
entidade própria, singular, e não enquanto prolongamento da melancolia
ocidental, ou item suplementar do capítulo melancolia da teoria psicanalítica.
Todo o resto, caso optássemos por utilizá-lo e inseri-lo num eixo comunicante
entre banzo, depressão e melancolia, exigiria desta pesquisa uma análise
semiótica da fala que nos afastaria inteiramente do que aqui procuramos
elaborar, e mais, significaria sua denegação. Neste mesmo sentido da
denegação defensiva, implicaria na projeção de uma lógica psíquica própria do
modo de subjetivação branco-ocidental-europeu-colonial sobre uma cultura
inteiramente outra.
Longe de desconsiderar a importância da fala e da linguagem como um
fator poderoso que, por mediações desconhecidas, exerce um efeito tanto de
ativação, como de inibição, será desde uma perspectiva bastante singular que
esta pesquisa escutará os sintomas do banzo. Afinal, “os lapsos, os atos falhos,
os sintomas, são como pássaros, que vêm bater seus bicos no vidro da janela.
Não se trata de ‘interpretá-los’. Trata-se, isto sim, de situar sua trajetória para ver
se eles têm condições de servir de indicadores de novos universos de
referência, os quais podem adquirir uma consistência suficiente para provocar
65
uma virada na situação”.
Neste sentido, tal como Guattari nos sugere, seria importante situarmos a
trajetória dos sintomas do banzo descritos por esses estudos e, longe de rebater
a uma interioridade pessoal de um sujeito, interpretando-a, preenchendo-a com
sistemas simbólicos, urge entendê-los como um acontecimento, uma
constelação de agenciamentos concretos, determinados por um processo social
e nada imaginário.
Será o banzo um sofrimento testemunho da complexa rede de
funcionamento econômico-social que inventou não apenas o Brasil, mas também
a América, o preto, o agravamento de uma África partida, e a ascensão imperial
europeia? E mais, se fossemos ao essencial da questão, nos perguntaríamos:
Quais os efeitos de uma economia que teve em seu cerne o corpo-mercadoria?

65
Guattari, F.; Rolnik, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 7. Edição revisitada. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2005, p. 269.

58
Poderá haver uma cegueira entre os europeus e sua mania interpretativa,
produzindo um fugir incessante, no qual lhes custa visualizar sua própria
imagem refletida no espelho? Não seriam os sintomas do banzo, como pássaros
que vêm bater seus bicos no vidro da janela, a dimensão – outra – corrosiva,
imanente ao processo maquínico de subjetivação branco-ocidental-europeu-
colonial? Dimensão que diz respeito a uma subjetividade, que, ao assustar-se
consigo mesma, ao deparar-se com sua lógica obscura pululando nos corpos
banzados dos inúmeros negros e índios (pardos, caboclos, brancos, etc., ou
seja, brasileiros em geral), faz todo o possível para abafar, evitar, emudecer a
faceta corrosiva que ela própria produz? Talvez a cegueira não seja apenas
europeia, mas também de seu desdobramento na mentalidade brasileira, e que
tem feito de tudo para soterrar a dimensão singular e radicalmente outra do
banzo e inseri-la como uma faceta da melancolia ocidental... Ainda que
contaminada pelas noções de melancolia e pela perspectiva ocidental no sentido
mais amplo, é preciso reconhecer os esforços de Oliveira Mendes e alguns
viajantes do Brasil do século XIX em problematizar o banzo como enfermidade
típica do problema da escravidão no Brasil. No entanto, tais esforços não tiveram
continuidade posteriormente, ou mais precisamente, foram aos poucos sendo
silenciados e quando referenciados, são frequentemente reduzidos ao
estereótipo do “negro e sua dor melancólica em função da separação de sua
África”. E nada mais.
Não é demasiado redutor pensar a perda de liberdade (a nostalgia, a
saudade da terra e dos seus) como um sofrimento ligado a distância geográfica,
fisicamente localizada, onde esses corpos sôfregos teriam laços biológicos de
nascimento e familiaridade irreversivelmente dependentes? Não nego que o
corpo é feito, dentre outras coisas, de esquemas que se repetem, internalizam-
se, criando a devida familiaridade com o lugar ou o objeto de modo a estarem
intrinsecamente ligados a eles: o seu hábito-habitat. Mas estará o problema, de
fato, no apartar o corpo do seu habitat de origem, ou trata-se, antes, de algo
mais complexo?
Pesquisas atuais, por exemplo, esclarecem o tráfico transatlântico como
uma intervenção radical no próprio panorama africano, e isto na medida em que

59
os portugueses ocuparam, habitaram, travaram trocas, estudaram hábitos locais,
exercendo sua etnografia comercial:

“A fome era endêmica em Angola. Ao estudar o impacto de exportação de


escravos na drenagem de habitantes da África até os meados do século XIX,
diversos autores salientaram que este impacto foi provocado pelo tráfico negreiro
conjugado com a seca e a falta de alimentos que periodicamente atingiam as
regiões exportadoras de cativos. Patrick Manning sintetizou diversos estudos
nesse sentido e demonstrou que, no séc. XIX, ‘esses fatores serviram ao mesmo
tempo para aumentar e diminuir a exportação [de escravos]’. Paradoxalmente, o
número de escravos exportados podia ser reduzido em algumas regiões
dizimadas pela fome, seca e epidemias, mas podia ser significamente ampliados
em outras regiões também atingidas pelos mesmos fenômenos visto que
populações inteiras de homens e mulheres nascidos livres podiam ser reduzidas
à escravidão por fome, insolvência e crimes. Durante períodos de fome
prolongada, segundo Sheridan, era comum que pessoas livres se oferecessem
voluntariamente à escravidão.” 66

O que isto nos indica é que o buraco é mais embaixo. Banzo, ao contrário
do que dizem por aí, principiou já em terras africanas, antes mesmo de cruzar o
Atlântico, e quando o cruza, passa a ganhar intensas tonalidades e uma
complexa comunicação inter-moléstias, evidenciando uma indigesta rede que se
auto produz corrosiva, que se faz destrutiva, arruinando corpos, assolando-os
enquanto coisa (propriedade valiosa), e solapando, pretensiosamente, o cerne
do seu processo de subjetivação, o qual podemos dizer ser a criação de um
aprisionamento que vem atuando há mais de 500 anos no Brasil.
Desconfiamos ariscamente da ideia de que o banzo seja um
desdobramento da melancolia ocidental ou item enxertado no capítulo
melancolia da psicanálise. Há, sem duvida alianças, atritos, rasgos,
atravessamentos de uma para com a outra. Contudo, abordar o banzo pela via
da melancolia é repetir sua denegação, é duplicar o buraco instalado pela
escravidão e sua lógica colonial. É edificar um enorme muro que impedirá a sua
trans-passagem. É não enxergar o banzo na sua dimensão escravizada e
aprisionada (é preciso lembrar a todo instante que se trata de uma das

66
RODRIGUES, Jaime. De costa à costa. Escravos e tripulantes no tráfico negreiro. (Angola –
Rio de Janeiro 1780-1860), p. 41 e 42. Tese de Doutorado apresentado ao Departamento de
Historia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

60
dimensões silenciadas da escravidão). É abafar o seu singular sofrimento:
aprisionamento; corpo desapropriado de si. Mas, afinal, não valeria a pena
arriscar pensar este aprisionamento? Ou mais radicalmente: Não é esta a
urgência que se impõe ao pensamento quando necessitamos nos livrar das
sequelas do trauma deste aprisionamento?

61
III.I. APRISIONAMENTO, o entre-tempo

Voltaremo-nos para Henri Bergson, mais especificamente em “Matéria e


Memória” (1896), capítulo II, Do reconhecimento das imagens, a memória e o
cérebro e à leitura do filósofo português Filipe Ferreira a respeito da teoria da
percepção em Bergson, apresentada na conclusão de sua tese doutoral que leva
o título Esquizofrenizar a morte.
Sabemos que Bergson desenvolveu uma complexa teoria sobre o Tempo
– o cone67 de Bergson –, o problema da Memória e, no capítulo mencionado,
sobre o seu reconhecimento. Bergson desmontará a ideia de que a memória
estaria localizada exclusivamente no cérebro, e fará o esforço para apresentá-la
desde outro ponto de vista, bastante singular, onde o Passado teria então duas
diferentes maneiras de sobreviver: 1-) em mecanismos motores, por meio dos
funcionamentos automáticos do corpo, apropriados às circunstâncias; 2-) em
lembranças independentes, implicando no complexo trabalho da mente que
deverá buscar no passado as representações mais capazes de inserir tais

67
Na seguinte figura Bergson concebe o cone SAB enquanto a totalidade das lembranças
acumuladas na memória de um sujeito. A base AB está assentada no passado e permanece
imóvel. O vértice S figura o presente do sujeito que avança sem cessar ao mesmo tempo em que
toca o presente do plano P, que é a sua representação atual do Universo. “Em S concentra-se a
imagem do corpo; e, fazendo parte do plano P, essa imagem limita-se a receber e a devolver as
ações emanadas de todas as imagens de que se compõem o plano. (...) Para que uma
lembrança reapareça à consciência, é preciso, com efeito, que ele desça das alturas da memória
pura até o ponto preciso onde se realiza a ação. Em outras palavras, é do presente que parte o
apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensórios-motores da ação presente
que a lembrança retira o calor que lhe confere vida.” (Bergson, MM, p.178-179)

62
lembranças na situação atual, para dirigi-las ao presente. Para Bergson, o corpo
é como um limite movente entre o futuro e o passado, uma extremidade móvel
que nosso passado estenderia a todo o momento em nosso futuro, um condutor
interposto entre objetos que o influenciam e os objetos sobre os quais age.

“Recolocado no tempo que flui, ele [o corpo] está sempre situado no ponto
preciso onde meu passado vem expirar numa ação. Consequentemente, essas
imagens particulares que chamo mecanismos cerebrais terminam a todo o
momento a série de minhas representações passadas, consistindo no último
prolongamento que essas representações enviam no presente, seu ponto de
ligação com o real, ou seja, com a ação. Corte essa ligação, a imagem passada
talvez não se destrua, mas você lhe tirará toda capacidade de agir sobre o real
e, por conseguinte, conforme mostraremos, de se realizar.” 68

Bergson nos deixará claro que entre os dois tipos de memória há, sem
sombra de dúvida, uma relação absolutamente intrínseca e complexa. Porém, na
intenção de melhor especificá-las, o autor irá detalhar cada uma separadamente
e o que teremos será uma diferença profunda de Natureza entre elas. A
memória que sobrevive em ações automáticas do corpo, por meio da repetição,
do decorar cada vez mais e melhor uma lição, um texto, uma partitura, uma
sequencia de gestos, etc, é da natureza da ação e Bergson a chamará de
memória-motora. Aqui, a lembrança da lição aprendida exige um tempo
determinado para refazer, um a um, todos os movimentos de articulação. Trata-
se de um hábito que foi inscrito no corpo, no seu sistema motor. Neste sentido,
esta lembrança é vivida, agida, mais do que representada.
A memória que exigirá o trabalho da mente buscar no passado a imagem
que mais lhe oferece utilidade ao presente é da natureza da representação e
Bergson a nomeará memória-lembrança. É da ordem da lembrança, da imagem
e seus afetos, de um dia específico, de um acontecimento o qual podemos
convocar, alongar ou abreviar, lhe atribuir uma duração arbitrária.
Entretanto, entre os dois tipos de memória existe algo especialmente
importante, uma noção crucial com a qual Bergson irá conferir a capacidade de
liberdade do próprio corpo: a atitude do corpo. Capacidade esta que diz respeito

68
BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito;
tradução Paulo Neves. – 3ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 84-85.

63
ao seu grau de hesitação, de recuo, de “inteligência” do corpo perante a ação.
Ao adotar uma atitude do corpo, o corpo adota um grau de hesitação que lhe
permite recuar da ação. E será justamente este recuar, ou hesitar, que funciona
para Bergson como um gatilho para a evocação de lembranças.
Voltemos alguns passos atrás para descrever mais precisamente esta
atitude. Pensemos no plano de imagens de Bergson, o próprio universo material,
no qual a duração é infinitamente relaxada e nada se contrai. Aqui o presente é
infinitamente relaxado e o universo material perdura num contínuo sem começo
nem fim, recebendo movimentos e devolvendo-os inteiramente, sem deles nada
contrair. Agora, suponhamos que algo deste plano, ao receber os movimentos
vindos de fora, contrai parte deste, e os devolve, agora, diferençados. Este algo
que contraiu o movimento, retraindo parte para si e devolvendo o restante
diferenciadamente, é para Bergson, o próprio corpo (qualquer ser vivo, de uma
ameba ao corpo humano). Neste sentido, corpo para Bergson é, antes de tudo,
um intervalo.

“Mas especifiquemos: segundo a teoria de ‘percepção pura‘ avançada em


Matéria e Memória, trata-se do corpo ‘reduzido’ à sua função cerebral: um
materialismo subjectivo definido exclusivamente em termos cerebrais.
Detalhemos esta concepção: distingamos os dois extremos do próprio intervalo.
Num deles, atribuímos à função cerebral a capacidade de subtrair uma parte,
mesmo que ínfima, do movimento que, segundo Bergson, constitui o universo
material no que ele é em si e não só para nós; no outro extremo supomos que,
do movimento subtraído, a outra parte - desta vez enquanto analisada e
seleccionada pelo próprio cérebro - é agora transmitida aos centros motores do
corpo na forma de movimentos nascentes, ainda não executados.”69

Entre a subtração de uma parte do movimento que constitui o universo


material e a sua transmissão, através do cérebro, aos centros motores do corpo
na forma de movimentos nascentes ainda não executados, há uma terceira linha
a ser esclarecida e que Bergson chamará de afecção. Afecção é justamente esta
parte do movimento que foi absorvida pelo corpo, e que, por conseguinte, não
selecionada e devolvida, ocupa o intervalo (corpo) sem preenchê-lo por

69
FERREIRA, Filipe. Esquizofrenizar a morte. Tese de doutorado em filosofia apresentada à
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa – Lisboa: 2014, p.
80.

64
completo. Chegamos deste modo, nas três linhas da teoria da ‘percepção pura’
de Bergson:

“(...) a primeira refere-se ao primeiro extremo do intervalo onde se subtrai do


próprio universo material uma parte, mesmo que ínfima, do movimento que o
constitui (percepção); a segunda refere-se ao outro extremo do intervalo onde,
do movimento subtraído, uma parte será seleccionada e transmitida aos centros
motores do corpo na forma de movimentos nascentes ou de possível execução
(acção); e a terceira a parte do movimento subtraído que, não sendo
seleccionada, é absorvida pelo corpo na forma de afecções que ocupam o
intervalo sem preenchê-lo (afecções). O que se definirá são três formas do
próprio passado sobreviver, sendo que, se em relação às primeiras duas formas
notamos uma correspondência directa às linhas de percepção e acção, com a
última teremos de supor as três no seu conjunto. Anunciemos as formas: elas
referem-se à distinção entre memória-contracção, memória-motora e memória-
lembrança.” 70

Partindo destas definições e argumentando-as longamente, Bergson irá


concluir que a única forma de memória que sobrevive no próprio passado é a
memória-lembrança, uma vez que a memória-motora sobrevive não no passado,
mas no próprio cérebro (corpo). “Enquanto que, sobrevivendo na percepção, a
memória-contracção terá também de pressupor o presente como seu eixo:
mesmo que se suponham durações infinitamente contraídas, jamais deixaremos
de falar de uma contracção do passado no presente.”71
Agora teremos de nos voltar para o funcionamento das diferentes
memórias em Bergson, e perguntarmos qual o papel da atitude do corpo na
realização da percepção em seu conjunto. O que percebemos é que a atitude do
corpo se faz importante no processo de absorver o movimento e selecioná-lo
(pressupondo aqui a afecção; parte contraída não selecionada), com o qual o
corpo desenhará o seu procedimento de recuo e de análise que
necessariamente deverá adotar perante o movimento recebido, ou seja, criando
múltiplos esquemas sensórios-motores que se armam em ações nascentes
ainda não executadas (como uma aranha-armadeira que se prepara para agir,

70
Filipe Ferreira, p. 82.
71
Filipe Ferreira, p. 83.

65
podendo fazê-lo ou não)72. A atitude do corpo se faz também importante no salto
ou no gatilho, para a evocação das lembranças úteis a serem inseridas na ação
presente. As imagens-lembranças completam as ações nascentes, e estão a
serviço da função a ser executada no presente. Contudo, será a atitude do corpo
quem permitirá o salto no tempo, a convocação das lembranças do passado, a
escolha da imagem a ser atualizada nas ações que se realizam. Poderíamos
dizer, grosso modo, que a atitude do corpo – aqui, o corpo em seu
funcionamento pleno – seria uma espécie de ligação entre as três linhas da
teoria da percepção pura de Bergson, sendo elas a ‘afecção’, a ‘ação’ e a
‘percepção’ e suas respectivas memórias: memória-contração, memória-motora
memória-lembrança. E ainda aqui, teremos de sublinhar que há diferentes graus
de convocação da memória, diferentes graus de recuo e hesitação perante a
ação, diferentes modos de adoção de uma atitude, nos quais o entendimento de
que o corpo é um intervalo entre o passado e o futuro se complexificará:

“este intervalar se refere a uma espécie de fenda que se encontra entre o que
ocupa o intervalo sem o preencher (as afecções) e as acções, nascentes ou
realizadas, com que o corpo exerce o seu voluntarismo. Tratando-se de um
intervalar, assumimos também que o grau de indeterminação pressuposto pelo
intervalo varia, que são diferentes atitudes do corpo que determinam essa
mesma indeterminação (a hesitação do corpo em face ao real), sendo,
finalmente, nos termos destes variados graus de hesitação que se define a
possibilidade da consciência aprofundar o real através da actualização de
lembranças que se impregnam no dado perceptivo.” 73

Neste sentido, o que Filipe Ferreira nos sugere é a atitude do corpo


também ela um intervalar, no qual, os variados graus de hesitação definirão o
modo de inserção da memória no conjunto perceptivo. Processo este de extrema
importância para o funcionamento da vida como um todo, conferindo o grau de
liberdade do próprio corpo na sua relação com o mundo; com os objetos que

72
Conhecidas pelo nome comum de aranha-armadeira, aranha-macaco ou aranha-de-bananeira
é uma espécie da família dos ctenídeos. Altamente agressivas e rápidas, quando ameaçadas
armam-se levantando verticamente as pernas dianteiras numa posição de ataque. Ficam à
espreita e se necessário avançam, picam muitas vezes e sua peçonha é altamente venenosa. É
uma espécie típica da América do Sul e seu tamanho médio é de 4 a 5 cm de corpo com
envergadura de 17 cm. Ao contrário da maioria das aranhas, a armadeira não constrói teias.
73
Filipe Ferreira, p. 135.

66
influencia e pelos quais é influenciado: “Devemos então supor que se
introduzirmos um intervalo de tempo entre a ação e a reação, entre a causa e o
efeito, entre o imperativo e a nossa resposta, se introduzirmos a duração de uma
hesitação, estaremos introduzindo no mundo uma certa porção de liberdade?”
“Essa diferença de ritmo não é a própria liberdade?”74.
Contudo, corpo é movimento que, uma vez entendido em termos
temporais - intervalo entre o passado e o futuro - se espacializa, ganhando
formas das mais diversas. Estamos aqui num horizonte onde tal objeto lhe afeta
de tal modo que já não podemos dizer onde se inicia o espaço do corpo (suposto
sujeito) e em qual ponto finaliza o espaço do (suposto) objeto. Não se trata,
portanto, de uma projeção do espaço interior do corpo no espaço exterior. O
espaço interior do corpo é ele mesmo a expressão dessas relações entre os
estímulos de ‘fora’, as afecções retidas no corpo de ‘dentro’ e os esquemas de
ações nascentes, que escavam a sua profundidade intensiva que varia em
qualidades não mensuráveis. “O que é próprio desta profundidade é ligar-se ao
lugar, dizendo-se então topológica: é uma certa ligação do corpo com o lugar
que escava nele a sua profundidade. O espaço do corpo é esse meio espacial
que cria a profundidade dos lugares.”75 Deste modo, o espaço do corpo é um
processo de agenciamento no qual as relações entre objetos se encadeiam num
constante jogo de forças, fazendo-se no embate com o mundo por meio de um
complexo de oscilações de ritmos: movimento e repouso, velocidade e lentidão,
longitude e latitude...
Desde esta perspectiva, deveremos nos perguntar: será que no caso da
escravatura atlântica algo se opera nos corpos escravizados de modo que lhes
restrinja o seu espacializar, o seu agir em liberdade? Será que existem atitudes
do corpo específicas tanto ao índio, como ao africano, que foram simplesmente
anuladas pela escravatura, e isto pelo fato de serem totalmente outras ao próprio
homem branco? Se pensarmos, junto com Bergson, a afecção como aquilo dos
estímulos que o corpo não age, ou seja, a parte que o corpo retém e, por sua

74
BERGSON, Henri apud LAPOUJADE, David. p. 21 in: Potência do Tempo. São Paulo: n-1
Edições, 2013.
75
GIL, José. Movimento Total. O corpo e a dança. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2001, p. 65.

67
vez, a sensação como aquilo que o corpo recebe das afecções; que tipo de
sensações, no que se refere à sua frequência vibrátil76, foram produzidas nestes
e por estes corpos, enquanto colonizados, escravizados, em absoluta sujeição?
Não estaríamos diante de um problema da ordem de um aprisionamento? Não
seria justamente certo tipo de recuo, de hesitação do corpo perante a ação que
lhe foi sendo tolhido77? E no qual certo tipo de grau ou hesitação não lhe foi

76
Termo cunhado por Suely Rolnik pela primeira vez em Cartografia Sentimental.
Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. Reimpressão
com prefácio novo: Porto Alegre: Sulina, 2006; 6a ed., 2014. Para Rolnik cada um dos órgãos
dos sentidos é portador de dupla capacidade: a primeira corresponde à percepção – apreensão
do mundo em suas formas para que se projetem sobre elas as representações de que o sujeito
se dispõe, conferindo ao mundo o seu sentido. Este exercício perceptivo está associado ao
tempo, à história do sujeito e à linguagem. A segunda capacidade dos órgãos dos sentidos
corresponde à apreensão da alteridade enquanto campo de forças que nos afetam e se fazem
presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. Tal exercício está desvinculado da história
do sujeito e da linguagem – é, portanto, justamente esta segunda capacidade que Suely Rolnik
dá o nome de corpo vibráil, esclarecendo que “entre a vibratibilidade do corpo e sua capacidade
de percepção há uma relação paradoxal. É a tensão deste paradoxo que mobiliza e impulsiona a
potência de criação, na medida em que nos coloca em crise e nos impõe a necessidade de
criarmos formas de expressão para as sensações intransmissíveis por meio das representações
de que dispomos. Assim, movidos por este paradoxo, somos continuamente forçados a
pensar/agir de modo a transformar a paisagem subjetiva e objetiva.” (Ibid, p. 12-13)

77
Vale aqui uma pergunta: qual o impacto da proibição da língua Tupi no Brasil, decretada por
Marquês de Pombal a partir de 1758 e a imposição do português como língua oficial brasileira?
Não estaríamos frente a um trauma Colonial de primeira ordem? Este que literalmente produz
mudez, cala a voz e forja a construção de uma língua materna, morta (para aquele que é forçado
a dizê-la), e abafa a outra, enterrada viva? É verdade que Marquês de Pombal aboliu
definitivamente e integralmente a escravidão indígena no Brasil em 1759. Mas é igualmente
verdade que será neste período que Portugal, perdido em dívidas, encontrará na Colônia o seu
fundo inesgotável de fonte econômica. O Brasil sofrerá com as mais austeras medidas de
arrecadações de impostos e extrações de matérias-primas efetivando o plano de expansão da
colonização portuguesa. É durante o seu governo, por exemplo, que se proíbe o cultivo da vinha
e da oliva (duas das principais riquezas de Portugal até hoje) e das especiarias por interferirem
com o comércio asiático (em especial da pimenta e da canela), obrigando seus colonos
importarem o vinho, o azeite e outros produtos da “alçada” portuguesa, diretamente de Portugal
e por preços abusivos. O modelo de grandes plantações, de uma economia monocultural, da
produção de certos gêneros comerciais de grande valor lucrativo foi a base da exploração no
Brasil e em todas as colônias tropicais. Numa economia como esta não haverá espaço para mão
de obra diversificada e de alto nível técnico. Será a escravidão negra que abastecerá esta
engrenagem, tornando-se absolutamente imprescindível e necessária. E será o boçal todo
aquele africano (ou outro) que ainda não sabe falar a língua portuguesa, reverberando
pejorativamente até os dias de hoje como sinônimo de “burro”, “tonto”, “grosseiro”, “estúpido”,
“ignorante”, “tosco”...

68
sendo "permitido" adotar; produzindo deste modo, uma espécie de fratura,
buraco, onde o corpo se esquece da sua própria liberdade?

Mas teremos de melhor esclarecer a nossa perspectiva. É preciso marcar


posição radicalmente oposta à ideia da “escravidão como instituição violenta que
coisifica o negro cuja consciência fica alienada e que só escapa fugazmente da
alienação nos momentos de grande revolta”78. Que houve uma coisificação do
corpo do africano, nos parece de fato indiscutível, e que a instituição
escravocrata foi ferozmente violenta, igualmente indiscutível, no entanto, não se
trata aqui de pensar o escravo enquanto uma suposta “consciência alienada” e
de qualifica-lo de passivo, emburrecido, vitimizado e desconexo de uma
presença crítica na e para a formação do Brasil. A escravatura e a formação do
Brasil não estão imunes (nem de perto, nem de longe) de contradições, revoltas
e resistências. Em seu estudo sobre A vida dos escravos no Rio de Janeiro
(1808-1850) Mary Karasch nos esclarece:

“o que ressalta dos documentos é um retrato de um povo muito rebelde que


perturbava a paz de espírito e ameaçava a prosperidade material de seus
senhores. Os estereótipos de crianças passivas e obedientes a donos bondosos
estão ausentes da correspondência oficial que se queixava de fugas, suicídios,
insultos, insubordinações, arruaças, manifestações e conspirações. No dia-a-dia,
ano após ano, a resistência dos cativos era uma luta contínua entre senhor e
escravo que transbordava frequentemente para a violência e acabava em
castigos cruéis e desumanos para os cativos – quando apanhados. A polícia e
os registros de alforria revelam a árdua luta pela liberdade que preocupava os
escravos do Rio. A luta pela liberdade não se resume à narrativa de uma ou
duas revoltas de escravos; o processo era bastante complexo e envolvia muitas
formas de deserção e resistência física.”79

Para além das inúmeras resistências e revoltas que sabemos, desde a


fuga nas florestas, a formação de acampamentos quilombolas, a resistência
dentro do cativeiro, a alforria legal (ora bem sucedidas, ora fracassadas) e tantas

78
CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2ª reimpressão, 2001, p. 14.
79
KARASCH, Mary. A vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850); tradução Pedro Maia
Soares – São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 397-398.

69
outras que não foram escritas nos livros, existirá a prática comum do suicídio
entre os escravos como forma de resistência e fuga definitiva. Praticavam-no
através de diferentes métodos os quais o afogamento, o enforcamento ou
estrangulamento e as armas de fogo eram as mais comuns.
Quantas vozes ecoaram o grito do escravo João, fazendo-se audíveis até
os dias atuais, como num rastro de luz de uma estrela morta que se vê, mas não
está mais lá, no mesmo lugar? Vosmicê pode hoje mandar para me vim surrar-
me e fazer de mim o que quiser, por hoje se acaba a lida...
O ato de comer terra (geofagia), o sufocamento através do engolir a
própria língua, o auto-envenenamento e a nostalgia, também serão associados
como métodos de suicídios entre escravos:

“Dois outros métodos de suicídio, encontrados especialmente entre os novos


africanos, eram engolir a língua e a ‘nostalgia’, chamada de banzo. Os negreiros
e os negociantes do Valongo ficavam usualmente alertas para evitar ambas as
formas de suicídio. Os africanos que morriam sem qualquer sinal visível de dano
físico eram acusados de parar de respirar engolindo a língua. De acordo com o
dr. Sigaud, o suicídio era comum entre os negros congos e minas, que preferiam
se matar por asfixia (engolindo a língua) e enforcamento. Embora admitisse que
havia lido relatórios de fisiologistas afirmando que ninguém podia parar de
respirar dessa forma, ele acreditava firmemente nesta prática, porque a
testemunhara três vezes com negros minas. O dr. Sigaud descreveu o banzo
como um ‘tipo de consumpção’ resultante de inatividade e tendo uma ‘causa
moral’. Dizia-se que os escravos que eram ‘vitimados pelo amor extremo’ de sua
terra natal morriam de ‘nostalgia’. Recusavam-se a andar, comer ou se exercitar,
excetos se açoitados; e definhavam lentamente até morrer. Freireyss chegou a
afirmar que quando cinquenta ou mais escravos morriam a bordo de um navio
negreiro, ‘uma terça parte’ morrera por amor à terra natal.” 80

Ora, mas será mesmo o banzo um método de suicídio? Será a sua


corrosão oriunda das paixões incontornáveis à terra natal? Que consumpção é
esta na qual, provocada intencionalmente pelo escravo como artifício da ação
suicida, como ato de resistência e heroísmo, levá-lo-ia à sua morte em passos
lentos? Sinceramente, nos parece que há algo bastante estranho neste ponto
de vista. Se o suicídio do banzo carrega uma dimensão de resistência, talvez ela
esteja na negação de uma vida expropriada, ao mesmo tempo em que se

80
Karasch, p. 417

70
poderá ver na morte um caminho de reencontro e retorno à África. No entanto,
nos parece o banzo um afeto carregado de partículas aprisionadas, de modo
que não se encontrará outra solução a não ser no próprio suicídio, no próprio
deixar-se morrer... Neste sentido, não se trata de retirar a dimensão crítica e
revoltosa do escravo, mas de considerar que o processo da escravatura atlântica
produziu uma dimensão de opressão, de controle, de tolhimento, de
aprisionamento, na qual parte destes corpos – os banzados – não encontrou
resistência possível de se afirmar, melhor dizendo, de agir pela vida.
É importante sublinhar que o esforço que fazemos aqui é o de pensar o
afeto banzo enquanto um sofrimento real, inventado pela escravidão atlântica
conectada à lógica colonizadora que atuou (e ainda atua) ferozmente nos
inúmeros corpos de negros, índios, mulheres ou qualquer outro que lhes
prestasse o serviço de mercadoria. Portanto, ele não está desconectado de uma
correlação complexa entre descaso físico, maus-tratos, dieta inadequada e
doenças por vírus, bactérias, bacilos e parasitas. Tampouco está desconectado
da produção de uma espécie de ventosa da alma, com dizia Artaud, ventosa
instalada no corpo do outro de tal modo que, sugando suas forças vitais,
produzirá uma fratura no corpo invadido por afetos com os quais não tem
condições de escolher o modo de recebê-los e, portanto, o seu modo de agi-los.
E isto não apenas pelo fato de ser este corpo, literalmente um escravo, mas por
ser um tipo muito específico de escravidão na qual não é permitido recuar,
hesitar, analisar, adotar uma atitude (suas atitudes, tão estranhas ao homem
branco).
Quão diferentes cosmologias, relações de territorialização-
desterritorialização, constituições de espaços corporais e mentais tal como o
complexo de valores fortuna-infortúnio81 foram ignoradas e anuladas pela

81
Segundo Mary Karasch o ‘complexo de valores fortuna-infortúnio’, oriundo de uma vasta
região da África Central, era bastante evidente no modo em que os escravos do Rio de Janeiro
do século XIX enfrentavam a servidão: “Sendo forçados de viver no Rio, tinham que contrapor-se
ao infortúnio no qual viviam a fim de obter o que valorizavam”. Existiam três grupos de valores
que compreendiam a “vida boa” (a fortuna), sendo o primeiro a fecundidade; o segundo a
invulnerabilidade e impunidade com foco em segurança e proteção; e o terceiro no desejo de
melhorar a posição social e aumentar a riqueza. Resumidamente uma visão cósmica de
predomínio do bem na ordem natural. Estes grupos de valores dependiam de uma série de
forças espirituais: o Ser Supremo, o Criador, que reina beneficamente sobre o universo e o
homem; e a presença dos ancestrais e numerosos tipos de espíritos, cujas atividades e
71
colonização? Que nível de tensão chegamos a ponto de dizer uma residência
bem dirigida no Rio significa que a senhora é capaz de controlar os seus
escravos sem utilizar chicote ou palmatória? Não nos esqueçamos de que para
se chegar a isso é preciso toda uma economia do medo, da privação, do
controle, do adestramento. A fim de convencer os compradores de que os
escravos não estavam deprimidos, os negociantes lhes davam estimulantes para
evitar a “preguiça”: gengibre, pimenta, tabaco (açúcar e café?). Caso as
propriedades de tais plantas falhassem utilizavam-se das ameaças, dos tapas e
dos socos, das varas e dos chicotes.

“Um segundo remédio para a nostalgia era ‘estimular’ os africanos a dançar e


cantar a música de suas terras natais. Assim, o som de tambores e palmas e das
canções africanas enquanto os escravos dançavam contribuía para o andamento
da atmosfera do Valongo. Se alguns escravos se recusassem a tomar parte,
então um feitor forçava-os a dançar, porque acreditavam que a falta de
movimento estimularia a nostalgia e assim diminuiria seus lucros. Além disso,
exigia-se com frequência que os africanos dançassem ‘de maneira alegre’

intenções são boas. No entanto, existiam também as “forças malévolas que ficavam de fora da
ordem natural” causadas por sentimentos e pensamentos de pessoas significativas. O que Mary
Karasch nos sugere é que os escravos do Rio de Janeiro entendiam a cidade do Rio “como um
lugar perigoso e maligno no qual a bruxaria e a feitiçaria de seus donos floresciam.” “Contra este
infortúnio o dilema que enfrentavam era o de restaurar a força de suas vidas e afastar o mal”.
Para tanto, recorriam aos líderes mais potentes, aos feiticeiros e mandingueiros, e às práticas
mais flexíveis, reunindo e cruzando diferentes crenças (obtenção de amuletos poderosos que
deveriam ser colocados em santuários, realização de rituais de purificação, rezas, oferendas,
banhos, sacrifícios, comunicação com o mundo dos espíritos por meio de músicas, cantos,
danças, transes e sonhos). Para Mary Karasch a maioria dos africanos não se converteu ao
catolicismo, mas o contrário, desenvolveu seus próprios e diversos movimentos religiosos que se
baseavam na tradição cósmica da África Central, que em si já operava numa lógica flexível e de
trato com as diferentes forças resultando, por exemplo, na prática religiosa da umbanda. Neste
sentido, não se trata de entender a umbanda como um sincretismo religioso, mas uma
construção ativa de cunho africano (África Central) que embaralhou de novo os velhos símbolos.
Esta tese de Mary Karasch parece estar em andamento e, segundo a autora, a sua perspectiva
apresenta uma via de contramão em relação ao que se costuma pensar nos centros de umbanda
do Rio de Janeiro atual, os quais preferem, portanto, ver nas influências da umbanda, relações
diretas de sincretismo com o catolicismo, o espiritismo, a África Ocidental e os orixás do
candomblé. O que nos parece de extrema importância na perspectiva de Karasch é a de
considerar que o modo dos africanos receberem e utilizarem de símbolos e crenças do Brasil
Colônia, em sua maioria, não diz respeito à conversão para o catolicismo ou outra religião, pelo
contrário, diz respeito a uma operação na qual se possibilitava a constituição de espaços mental-
corporal e cósmico, próprios, e que, no caso do banzo, seria justamente esta possibilidade de
nova constituição corporal a dimensão afetada e aniquilada.

72
durante seu exame físico, a fim de convencer os compradores de sua saúde
excelente. Se expressassem seus verdadeiros sentimentos ou apatia e
depressão, eram açoitados. (...) Por outro lado, com o objetivo de começar o
processo de privar os africanos de sua cultura, os negociantes contratavam um
instrutor para ensinar a eles sua nova religião, o catolicismo romano, (...)
ensinava-lhes pouco mais que algumas orações, que os forçava a dizer. Nos que
recusavam, batia com a palmatória.” 82

Não nos parece nada ingênuos os negociantes de escravos. Eles sabem


que há algo de primordial sendo tolhido nos corpos destes africanos. Oferecem-
lhes os antídotos, os medicamentosos ou os de tortura. E junto a isso, os
médicos fazem esforços, criam narrativas, nomeiam os estados, interpretam os
sintomas. Associam-no à mortal nostalgia, a “saudade da terra e dos seus”:
sentados silenciosos e taciturnos, [...] esperando melancolicamente seu fado,
como gado no matadouro... Foram as doenças do sistema nervoso e os
sintomas neuropsiquiátricos que mandaram mais escravos aos hospitais que as
doenças do sistema respiratório, no Rio de Janeiro de meados do século XIX83.
E o que teria a dança, a música, o canto forçados assim como suas
práticas de origem a ver com uma possível terapêutica contra a “nostalgia”?
Será que tais movimentos oferecem a estes corpos certa vibração de ritmos de
modo a deslocar sua aterrorizante apatia?
Sabe-se que a música é praticada como terapêutica há milênios e por
diferentes culturas, mas porque as suas músicas, as suas danças, os seus
batuques? Ainda que se justificasse na ideia “saudade dos seus e de sua pátria”,
será que não se pressentia um corte mais radical e profundo operando nos
corpos destes escravos? O corte de algo – como nos diz tão bem José Gil – da
ordem da profundidade corporal, do seu espaço, espaço do corpo? Como se

82
Karasch, p. 80-81
83
Retiramos esta afirmação de Mary Karasch, na qual o mesmo trecho nos levou para a nota 39
do capítulo 6 (p. 207-258). Em nota 39 (p. 545) podemos encontrar várias citações das quais
duas nos pareceu absolutamente relevantes: “Roberto J. Haddock Lobo, ‘Estatística mortuária da
cidade do Rio de Janeiro... 1845’, Annaes de Medicina Brasiliense 1, n. 11 (abr. 1846): 443;
ibid.(para 1846), 2, n. 10 (mar. 1847): 236 (em 1845 e 1846 a Santa Casa teve mais do que o
número usual de gente sofrendo de ‘alienação mental’); Boyd, Pathology, p. 1210 (a única
variedade de insulto que costumava ser conhecida como ‘insulto ou apoplexia’ era ‘a forma de
um ataque violento, no qual o paciente caía como abatido por um machado, privado de sentido e
movimento’)”.

73
atualizar o seu passado em forma de dança e canto fosse a única possibilidade
de devolver-lhes simultaneamente a realidade e a liberdade?
Suspeitamos que houve um equívoco. Não se tratava de obrigá-los cantar
e dançar suas músicas, reatar forçosamente a sua cultura, como se o seus
sofrimentos estivessem assentes na falta de um passado perdido, mas de
permiti-los através de suas músicas e cantos, através de seus gestos e ritmos a
constituição de uma nova relação topológica com o recente lugar. Ou seja, uma
certa ligação do corpo com o novo lugar para que, então, se escave a sua
própria profundidade, produzindo corporalmente novas alianças que resultarão
em inéditas expressões84.
Neste sentido, não se trata de um problema instaurado pela nostalgia ou
pela melancolia, visto que para um melancólico todo o tempo é sempre passado,
donde se percebe o caráter irrevogável da passagem do tempo; para quem o
presente e o futuro se fecham porque tudo já aconteceu e já se passou, tudo já
acabou e sempre é tarde demais. No caso do banzo trata-se de um processo
bem mais violento: a condição da escravidão arremessa o corpo banzado para
um lugar que o aprisiona em diferentes níveis, afetando o seu mais fundo,
encurralando-o num processo de tolhimento e humilhação85 constantes, desde
as obrigações de trabalho até as obrigações mais “sutis” como gosto: “deixai de
comer cães, ratos ou cavalos”; modos de expressão; de religião; o quê e quando
falar, dançar, sorrir, expressar felicidade, satisfação, etc. A própria terapêutica

84
Não foi exatamente esta a operação realizada pelos africanos não-banzados e seus
descendentes aqui no Brasil? Através de cantos de trabalho, fundamentos e vissungos,
folguedos, calundus e umbigadas... Fazendo surgir o samba, o maracatu, o cavalo marinho, o
bumba-meu-boi, a umbanda e o candomblé, a capoeira... E tantos outros ritmos, cantos e
gestos?
85
Clóvis Moura descreve algumas práticas de humilhação realizadas pelos senhores de
escravos, na qual uma em especial me chamou a atenção, o chamado “beijar o velho”. Trata-se
de uma forma extrema de humilhação que o autor suspeita ser, para além da obrigação do
escravo beijar o cajado de seu senhor (descrita nos registros que se tem entre 1824-1826), é
também, “um caso de sadismo e exibicionismo sexual que a censura da época não permitiu que
fosse divulgado. ‘Beijar o velho’ talvez significasse beijar o órgão sexual do senhor”. Nos
registros, conta-se que os escravos que prefeririam “beijar o velho” humildemente recebiam uma
terrível bordoada na cara, que lhes fazia esguichar o sangue pelo nariz. Os que se recusavam a
tal obrigação eram açoitados violentamente. Segundo os mesmo registros, o tal senhor que
mantinha tal prática e sua esposa sofreram das mais terríveis vinganças de seus escravos.
MOURA, Clóvis. p. 68.

74
via danças, cantos e batuques impostos pelos mercantes encontra-se neste
mesmo lugar, o da obrigação e o da humilhação. Não seriam estes movimentos
forçados pelo opressor e expostos ao seu olhar, um espetáculo de sadismo?
Desapropriado de si, aprisionado na espera infinita – ou quem sabe numa
desistência infinita? 86 – de que um dia ele possa retornar a si mesmo, ainda que
através da morte, o corpo banzado instala-se na inação que rompe a voz. A
grande dificuldade do banzado não está como para os melancólicos em liberar-
se da fixação no tempo do passado, mas sim, em liberar-se de um embate, no
qual o corpo frente a sua expropriação instala-se entre o sem si e a espera de
um possível futuro. Estaríamos, aqui, defronte ao real efeito da árvore do
esquecimento87?
O que nos parece resultar com a escravatura atlântica é uma
desapropriação do corpo, vinda de fora, que produz uma espécie de “amnésia”
de si, em relação ao seu hesitar; ao seu grau de indeterminação; ao seu
espacializar; à impossibilidade de efetuar suas conexões com o novo lugar; e ao
mesmo tempo uma espécie de espera interminável em relação ao próprio por vir

86
É bastante comum encontrarmos, em diferentes fontes (acadêmicas ou não), a associação do
banzo à resistência do escravo perante a economia escravocrata. Neste sentido, uma das
questões que ficou suspensa para esta tese é a de problematizar o retardamento, tanto do
melancólico quanto do banzo em termos ativos ou reativos. Enquanto que na melancolia
suicída-se pela impossibilidade de concretizar um ideal que por princípio é impossível
(completude imaginária que nunca se concretiza desde o ponto de vista do eu). O suicídio do
escravo tenderia a ser ativo, pois ele o faz em nome da vida? Suicída-se pela impossibilidade de
existir? Deste ponto de vista, mais uma vez o banzo se diferenciaria radicalmente de um ideal ou
da nostalgia do passado. Novamente afirmaria a resistência do escravo suicida e a violência da
escravatura que, uma vez avaliada do ponto de vista dos afetos, torna-se intolerável. Por outro
lado uma pergunta insiste em meus ouvidos: mas será mesmo que o escravo banzado ainda
mantém a capacidade de avaliação a partir dos afetos diante de tamanha violência sofrida? Até
que ponto o “deixar-se” morrer por inação é de fato um suicídio? Não será que, restando-lhe um
corpo em farrapos já se extinguiu qualquer possibilidade de avaliação porque o trauma
ultrapassou toda e qualquer possibilidade? Por agora não temos condições de travar esta
complexa discussão, arriscaríamos dizer que esta questão nos parece um falso problema. Se
ativo ou reativo, se resistência ou desistência, estas são classificações que nos parece tocar a
via da interpretação categórica, titubeando entre o heroico e o covarde, perigando soterrar os
diferentes, múltiplos e paralelos movimentos que aqui se compõem.

87
Nome que se dava a árvore próxima ao porto de embarque dos cativos. Antes do embarque,
cada escravo era obrigado a dar 9 voltas (homem) e 7 voltas (mulher) ao redor. Acreditava-se
que esta prática os levariam a perder a memória, a esquecerem de seu passado, suas origens,
família e cultura.

75
do corpo. Como se o corpo esperasse, não sem sofrimento e revolta, poder
retomar em liberdade, uma das suas atitudes. Algo que o fizesse sentir que o
próprio real está dirigido a si mesmo, lhe cabendo viver. Intuímos a escravatura
atlântica como uma economia violenta produtora de sensações em que se chega
a inibir o presente do corpo escravizado, tornando-o literalmente inação,
arrancando-lhe a voz.
É, portanto, somente neste sentido que a noção de aprisionamento traça
a linha de vizinhança entre o banzo da escravidão colonial e seus corpos
pasmados, desapropriados, em estado de inação, que sofre da “saudade dos
seus e de sua terra natal” e a melancolia no seu retardamento “motor, afetivo e
ideativo”.
Agora nos parece compreensível o porquê do banzo ser constantemente
confundido com a melancolia. Para além de seus sintomas serem parecidos:
inação, apatia, mudez, tristeza profunda... Há uma linha comum que atravessa
ambos os sofrimentos desde a perspectiva de suas temporalidades corporais. O
entre-tempo do banzo (embate entre o sem si e a espera que o si retorne) incluiu
o avesso da melancolia, tal como nos diz Lapoujade a respeito da espera: “a
espera nada mais é que a melancolia invertida”. Tanto a espera quanto a
melancolia são da ordem do: “deixamos de ser livres quando estamos
submetidos a lógicas intemporais”88.
O melancólico é prisioneiro do ruminar do objeto perdido, perdeu-se de si
mesmo e não espera retomar em liberdade uma das suas atitudes; pelo
contrário, sua existência depende imaginariamente da presença do outro e de si
(a existência do outro é parte constitutiva de si, seu desejo é o espelho onde se
delineia seu suposto contorno); ambos, indissociáveis, se encontram no
passado. Este é o seu aprisionamento, produzido por seu próprio desejo:
fechado no passado de um si perdido, porque colado a um outro perdido, o
presente e o futuro não lhe acontecem.
Já o escravo banzado é objeto de uma desapropriação do corpo, vinda de
fora, que produz uma espécie de “amnésia” de si, em relação ao seu hesitar; ao
seu grau de indeterminação; ao seu espacializar; à impossibilidade de efetuar

88
LAPOUJADE, Davi. Potência do Tempo. São Paulo: n-1 Edições, 2013, p. 16

76
suas conexões com o novo lugar; e ao mesmo tempo uma espécie de espera
interminável em relação ao próprio por vir do corpo. Querer enxertar à força a
melancolia psicanalítica no banzo do escravo é denegar por completo a violência
da escravidão.
Mas insistamos, teremos de esclarecer a perda do presente no banzo,
não pela via da melancolia na qual o retardamento conduz a viver numa
temporalidade descentrada porque se está “fixado ao passado, regressando ao
89
paraíso ou ao inferno de uma experiência não ultrapassável” , para quem tudo
findou e ao mesmo tempo permanece fiel a esta coisa finda. Mas sim pela via da
expropriação, tal como nos disse sabiamente Clóvis Moura: “[banzo] era,
portanto, uma síndrome psicopatológica que somente se manifestava no escravo
em decorrência da sua situação de homem que era considerado simples
coisa”90. Para quem o retardamento lhe foi cravado no corpo uma vez que seus
poros recebem por todos os lados sensações de ser coisa, impedindo-lhe a
possibilidade diversificada de recompor uma corporeidade existencial.
Portanto, quanto mais banzado se encontra o corpo, quanto maior o seu
estado de inação, maior será o seu patinar no entre-tempo: entre uma
expropriação de si e à espera infinita de que um dia o seu corpo, a sua vida,
retome suas vibrações interiores. A grande expropriação não se reduz ao
espaço, mas ao tempo. Banzo é a vida fora dos gonzos91.

89
Kristeva, Julia. p. 61
90
Clóvis Moura, p.
91
Elizabeth Pacheco, amiga e interlocutora constante desta pesquisa, me ofereceu este presente
em um de nossos e-mails no qual no título ela escreve: Banzo, a vida fora dos gonzos. E no
corpo do e-mail: A grande expropriação não se reduz ao espaço, mas ao tempo. Querida, muito
grata por me confiar teu lindo texto/tese/alma/voz... a vós, meus cumprimentos, Beti.

77
IV. BRAZIL BANZIL

Ao situarmos o banzo como um afeto singular que se diferencia da


melancolia, mas que com ela atrita vizinhanças; ao pensarmos o banzo como
um afeto que diz respeito à enfermidade psicopatológica instaurada pela
violência do tráfico transatlântico, produtora do corpo expropriado, aprisionado
numa lógica intemporal, ou seja, produtora de um corpo despossuído, diminuído
na sua potência de agir – cabe-nos aqui algumas perguntas. Será que o banzo
deixou de existir com o fim da escravatura atlântica? Será que o seu trauma
desapareceu simplesmente porque já não se fala mais em banzo, porque já não
somos colônia ou império, porque já não importamos negros? Ora, é Achille
Mbembe na Crítica da Razão Negra quem nos afirma incisivamente:

“(...) Os riscos sistemáticos aos quais os escravos negros foram expostos


durante o primeiro capitalismo constituem agora, se não a norma, pelo menos o
quinhão de todas as humanidades subalternas. (...) Pela primeira vez na história
humana, o nome Negro deixa de remeter unicamente para a condição atribuída
aos genes de origem africana durante o primeiro capitalismo (predações de toda
a espécie, desapossamento de autodeterminação e, sobretudo, das duas
matrizes do possível, que são o futuro e o tempo). A este novo caráter
descartável e solúvel, à sua institucionalização enquanto padrão de vida e à sua
generalização ao mundo inteiro, chamamos o devir-negro do mundo.” 92

Se por um lado desconfiamos da ideia de banzo enquanto melancolia dos


trópicos, porque entendemos que a sua associação com a melancolia denega a
violência da escravatura atlântica, por outro lado, pensar o banzo em termos
tropicais é expandi-lo a nível planetário. E será a partir deste ponto que
puxaremos o fio para a sua problematização na contemporaneidade. Não temos
dúvidas em afirmar que o banzo é uma entidade, uma coisa viva, uma força que
assola o planeta. Um afeto que vibra nos corpos de todos os viventes. E aqui
não faremos distinção: todos os corpos das categorias do homem ocidental;
mineral, vegetal, animal, humano, objetos, estamos em contato com a vibração
afetiva do banzo, pois ele não para de ecoar interiormente, ele não cessa de se

92
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução: Marta Lança. Portugal: Antígona, 2014, p.
15-19.

78
transmutar e de se repetir, ainda que em intensidades variadas, conforme
diferentes contextos, episódios, eventos, corpos e fatos. Trabalhar o trauma
banzo hoje é reelaborar em termos clínicos o papel da matéria som-voz na
escuta de um afeto que tem sido assimilado pelo corpo banzado desde os seus
ossos93.
Entretanto, não temos a pretensão de fazer uma análise planetária do
afeto banzo, apenas gostaríamos de indicar que a sua operação – como uma
espécie de linha que berra o devir-negro do mundo – vem se repetindo para
além da sua fundação que data com a escravatura atlântica. Que a sua
expressão continua para além dos corpos dos escravos que no Brasil estiveram.
Que o trauma instalado por este acontecimento ainda se repete.
Sabemos que o banzo da escravatura atlântica foi de grande violência
para aqueles que o sofreram na pele, mas tratando-se de um trauma não seria
importante perguntar quais os seus efeitos na contemporaneidade? Contudo,
teremos de nos voltar para o Brasil de hoje e lançar novas perguntas: como
pensar o banzo hoje, desde a sua perspectiva atual? Como escutar os seus
ritmos e velocidades que vêm operando silenciosamente há mais de cinco
séculos? Como farejar seus traços, seus sons, seus ruídos? Como ir atrás deste
banzo contemporâneo que se cobre de camadas cascudas para se defender
daquilo que não se pode tocar?

Das Gerais: Aqui, nenhum vaqueiro antigo pra cantar um aboio. Mas tantos
sons, tanta desgraça, sol ardido. São Francisco, o rio, é tão murchinho. Parece
que os Pipas passaram por ele, sugaram suas águas, fizeram barro, tal como
fazem verdadeiramente nos rios do Sertão à dentro. De certo tudo aqui foi
esquecido aos trapos. Do chão saem uns sons abafados, deve ser da angústia
da terra. É verdade, tem coisa densa que não para de ranger. Já viu vereda com
matagal trincando as paredes da antiga estação de trem? Aqui tem disso.
Na casa do lendário vaqueirão bom, daqueles que faz chá de cagaita pra
encher a barriga e culete de buriti pra vestir, ouve-se muitas histórias. Parece

93
Trataremos desta questão nos capítulos que se seguem.

79
que o tal faz música quando fala. Ele é um caboclo índio. Do buriti tira a carocha
e de sua seda faz a capa para cobrir o corpo. Pega o chifre de boi e faz o boque:
abre, enxerta o algodão, atrita com a pedra e sopra. Produz imenso fogo pra
pitar o seu cigarro. Desembesta a falar e para: abre, sopra, pita e torna a tampar
o boque. A esposa ao lado ri. É que hoje, depois de tudo, dá pra gargalhar. O
sofrimento carcou na pele, mas ficou pra traz. Na sua casa manda a gente
entrar, abre todas as portas, cômodo por cômodo, faz questão de passar pela
dispensa estocada de fartura como um troféu de vida vencida. Fala muito,
mistura as histórias, delira com o seu arreio, diz ter sido presente de D. Pedro II.
Hospitaleiro que só, conta a sua vida de matuto com lágrimas nos olhos e
sentimento de vencedor. Fala da criação desde menino, no tempo em que não
tinha sela, era no pelo, apelava a bunda. Num tempo em que não existia salário.
Era o preço que o vaqueiro valia, uma ou duas rés. Não era muito. A casa velha
toda de palha, a outra feita de couro com os urubus em cima. Trem feio, tudo
singelo, vida sofrida, tipo escravidão. Banhava na vereda e socava a farofa no
pilão. Dormia com o gado, e quando dava a hora: bate o berrante pra frente e
levanta a boiada! Povo estranho, com medo de gente igual bicho do mato.
Seboso, uma bagunça danada, vida sofrida. Gente papudo, tudo por conta de
excesso de iodo na água, dava aquele papo grande na cara. Hoje a vida tá boa
demais, tudo civilizado, é vida de rico. Ao lado, a esposa, que confirma os
causos da vida dura. Na labuta, companheira, testemunha.
O outro vaqueiro, menos afortunado, não pode rir com tanta liberdade de
sua própria vida. Desconfiado que só, a longa conversa não passa da calçada.
Sua pobreza de agora é motivo de vergonha. A gente sente nele um ar de
despossuído. Boca sem dentes, pele encarquilhada, carapinha branca. Tem um
vozeirão que ecoa no ouvido! O moço é sabido. Grande fazedor de rédeas,
couro em suas mãos é algodão: tece engenhosamente. Benzedeiro dos bichos,
conta alegremente as mandingas que faz com a boiada, porque pra capar um
boi é preciso muita bruxaria do mato. E um dia o boi foi inchando a capação, não
urinava, caiu no chão só morrendo. Não tinha jeito de benzer, deu hemorragia.
Falou pra Damazinho que a lua tava na força da nova, muito forte. Tem que
entender pra mexer com bicho. Se lua cheia, pode não, o bicho sofre de inchaço,
fica com os bago cheio de sangue e infecciona tudo. Se lua nova ou crescente
80
não é auspicioso, porque a força da crescente traz muita vida e fluxo sanguíneo.
A minguante é que é boa. Desincha, desirriga e cuida do boi com calmaria.
É preciso ter ciência: vai cortando a ponta do saco do boi, vai fazendo
com a mão, vai com calma, limpando, sangue dá não. Usa ervas e profere
alguns sortilégios de cura e proteção que só podem ser passados de pai para
filho ou filha. Os berne, pega no gado que ficava crivado. Reza o cavalo, reza o
boi. Três talos de capim e: toma que vai derrubá a sua bicheira, toma que vai
derrubá a sua bicheira, toma que vai derrubá a sua bicheira! Mandingueiro, o
peão velho e estradeiro inventa as desculpas mais esfarrapadas para não cantar
o seu aboio. Evita entoar o canto que remexe a vida que lhe foi abafada. Fica o
vaqueirão na cidade, como todos os outros, vivendo numa casa pobrinha.
Casado? Sempre. E agora com a menina que um dia pegou no colo, cagou nas
suas pernas, é amiga de família. Ao acordar de manhã sente um desespero no
corpo que lhe manda sumir pro mundo, tocar a vida no mato. Mas a verdade é
que já cansado, foi perdendo o contato com as coisas e vez em quando dá uma
mão por aí nessas fazendas. Seu cavalo tem que ter estômago. Com bruteza
entra na macambira cheia de espinho, porque vaqueiro que é bom entra mesmo,
o ruim entra não e estaca o cavalo que vai ficando com aquela mania.
Já o pactário é quem nos guia pro curso mais à dentro. A vila que ele
mora é bom de mais pra aquela gente. Mas no fundo do fundo dá pra sentir o
desespero do pessoal ruminando na porta de casa. Uma calmaria, uma
lambança. O corpo escorado, esperando a vida passar. Não planta, não pesca.
O rio ali, na porta de casa. Só um ou outro moço jovem que gosta da carne
branca se alinha no Paracatu pescar. As moças pegam a enxada dura, mas que
na verdade ficam ali enganando a prefeitura. Não é pra menos, porque é o
governo quem paga a diária. Pouquinho, coisa de 25 reais por dia de trabalho.
Contaram também que tem um tal de doutor que chega por lá vez em quando.
Um senhor misterioso que manda a mulherada fazer a seleção das pedras do
rio. Tem todo uma ciência. As pedras que prestam e as que não prestam. E
depois ele se vai, com as pedras boas. Dizem que é pro estrangeiro. Fazer o
quê? Não se sabe não. Mistério. O pessoal mais antigo tem a mão calejada e
trabalha na carvoaria. Oh trabalho doído! Ficam tudo sujo de preto. Primeiro vão
cortar o eucalipto. Ah, é tudo plantação de eucalipto agora. O cerrado tá mirrado.
81
Então eles cortam o eucalipto e depois vão queimar na carvoaria pra levar pra
siderúrgica. É tudo exploração. Não tem assinatura, é dia de trabalho duro, 25
ou 30 reais se tiver sorte. É por isso que o pessoal que ganha bolsa família
prefere ruminar na porta de casa. Mas podia plantar, não é não? Mas o pessoal
é acomodado, tem casa, tem terra, mas não planta não. Fica à espera do
caminhão ambulante estacionar vez ou outra pra comprar os mantimentos.
Então compram ovo, queijo, farinha, tudo.
O pactário? Ah, esse é o mais interessante dessas bandas. Porque
jagunçada já não existe não. Acabou. O que tem de monte é crueldade no
sertão. Mas o pactário agora é evangélico, deixou o Cramunhão. Quando ele
tinha o pacto ganhou muito dinheiro. Fez fortuna, mulherada a rodo. Matou e foi
preso. Bebia muito o coitado. Vivia na sarjeta porque obedecia o Dêmo. Então
ele percebeu que perdia mais que ganhava, acabou fortuna, acabou tudo.
Encontrou a palavra do Senhor e a agora é evangélico. Casou com uma moça
de saia cumprida, cabelo em coque. Credo! Não era pra tanto. Mas dá pra ver lá
naquele corpão que o homem é cheio de tesão enrustido. Então ele libera a
energia com alguma malvadeza que não é pecado. Outro dia viu uma coral no
meio da estrada e passou por cima, bem devagarzinho com aquele carrão.
Nossa! E a felicidade do homem de matar a cobra de vagar? Ria, ria, era uma
gostosura. O pactário é evangélico, mas fala com extra-terreste. Vive
encontrando uma tal de Luz que aparece na estrada. Não sabe se é coisa do
demônio, se é coisa de anjo, mas tenta a todo custo falar com a tal. É uma Luz
que derrete, ela vem bem de mansinho e depois grita muito forte, dói os ouvidos,
e explode, desaparece! Tem um pessoal que diz ser tudo mentira. Mas creio
não, o pactário fala com muita veracidade. Descreve tim tim por tim tim. Tem
sempre uma ideia fixa: antes era obedecer o Cão, conversar com ele, agora é
encontrar a tal da Luz. Sabe que o pactário tem uma tendinha na frente de casa?
Uma das poucas lojas daquela vila. Vende biscoito de queijo, pão de sal, coisas
assim. Mas ó, é ruim de mais da conta! Coitado, trabalha muito o pactário.
Depois que encontrou Jesus passa a vida a trabalhar. Leva gente de cá pra lá,
de lá pra cá, é como um taxi. Porque pra essas bandas não tem transporte não.
Se alguém sofrer algum acidente morre na certa. As curandeiras da região?
Morreram ou foram pra cidade. Restou uma que rezava os defunto. E agora não
82
pode mais rezar, virou evangélica. A preta é daquelas sabida. Reza agora é só
na igreja. Mas não é que os evangélicos ajudam mais que o governo? Fez
questão de mostrar o banheiro que tinha acabado de construir dentro de casa,
com tudo que tem direito. Pia, cagatório, chuveiro, encanamento. Uma felicidade
que só. Antes, era lá fora mesmo. E a melhoria é obra da evangelização.
A ladainha é cantada ou rezada, tem na bíblia não. Aprendeu com a mãe
e a avó antes de conhecer a Palavra. Agora vai de três em três meses pra igreja
evangélica, é longe... Diz ela que mudou cem por cento pra melhor. Televisão
veio da própria igreja, a antena veio da igreja, bomba pra puxar água. O Pipa é
quem traz água pra todo mundo. É forçuda que só essa mãe-preta. Respeita
todo mundo, não desfaz de ninguém. Veio do outro lado do rio, sempre das
roças, capinando. Era miudinha, não tinha saúde não. Agora é forte. Só tem um
problema de bronquite que chia o peito quando dá muito calor. Atravessa o
Sertão pra comprar o remédio. Postinho não dá não e o remédio é caro. Se a
receita for de outra cidade então? Ah, o postinho não pega, uma malvadeza que
só. E a mulher fica com a chiadeira no peito. Casou tarde, com 28 anos. Plantou
muita verdura, bata doce, horta grande, todo mundo olhava. Era muito bom, mas
foi desgostando, os menino crescendo, querendo ir pra cidade. É ruim pra eles,
não tem casa pra morar. Por isso que ela e o marido ficaram na roça. Perdeu um
dedo no ralador de mandioca. No rodete. Drumeceu tudo, até o ombro. Veio a
ambulância lá de longe. Deus, ela e a ambulância. Quando a noite caiu, a dor
disparou. Ficou traumatizada, não pode nem ver o rodete na frente. Mandioca
não cria mais, morre tudo com o sol! Dá até piedade de olhar. Se for tirar o
porvilho, tem que fazer a massa, colocar no tapiti que o marido trança e põe pra
torrar no forno à lenha. O serviço que faz hoje é esteira de plástico. Antes era de
buriti. A filha junta os plástico pra trançar. É um passa tempo bonito. Buriti tá em
falta aqui no sertão. O marido é lavrador, trabalha só pra eles mesmos. Milho
não dá conta de comprar, tá caro de mais.
Até as fazenda grande, abastada, é de gente simples. Dessas que tem
várzea até o horizonte e dá pra ver o por do sol alaranjado, brilhando, uma
boniteza do sertão. Tem gado, tem cavalo, tem até uma mesa redonda, enorme,
com outra parte redonda em cima que gira. Coisas do oriente. É a China
invadindo o sertão. Essa mesa é lendária, todo mundo fala dela por aqui. Pois
83
outro dia, em volta dela comiam doce de leite com queijo e contavam a história
do tio Zico. Rindo que só das malvadezas dele. Falavam com orgulho do cabloco
bruto. Certo dia chegou suado. Encontrou a mulher deitada no alpendre, fogosa,
com os peito tudo de fora. Ele e a mulher combinavam até bem:
– O que você faz aí Deuscreide?
– A janta tá pronta Zico, e eu estou aqui desde as três horas deitada,
doida pra um marimbondo desses cair aqui nos meu peito e abrir meu vestido,
pra me dar uma pregada.
E não é que o Zico pegou uma enxada de três bicos e jogou o
marimbondo no peito da mulher. Menino! Quando o sobrinho chegou:
– Novidade Zico?
– Não, novidade não, eu fiz uns gosto pra Deuscreide e você vai apanhar
a caminhonetinha, rodiar por fora assim, pra levar Deuscreide pro hospital.
– Machucou?
– Não sei se machucou não, sô. Mas pregada de marimbondo foi.
– E o que é que foi Zico?
– Ela tava doida pra um marimbondo pregasse no peito dela e eu puxei a
enxada e joguei a caixa em cima dela, todinha. Não acudi não, deixei ela lá
rolando no chão e saí. Vim caçar recurso.
Doze dias ela ficou no balão internada! Gastou uma nota violenta com ela.
Saiu toda marchetada, era branca de mais a coitada. Mas viveram muitas águas,
uns 50 anos de casado. O povo daqui é assim. Você olha e pensa: Que
calmaria, ô povo acomodado, puro, bonzinho! Mas não é bem assim, viu sô? As
coisas aqui têm mistério, é ambíguo. Quem vem de fora pensa: Este é louco,
doido varrido. E então você vai chegando pertinho, vai conhecendo e percebe
que é doido, mas não faz mal. Fica mais é delirando das ideias. Agora, tem
outros, que não delira não. Parece boa gente, trabalhador, honesto. Mas de
repente, pumba! Vai ficando aluado e vira na chepa. Mata cunhado à facada,
maltrata mulher, fica de tocaia, passa a corda no pescoço. Tem gente que é
assim, aluado e não leva desaforo pra casa. Encasqueta com o caboclo e parte
pra cima, de repente.
Outro dia a menina estrangeira passeava na vila e o dono da pensão,
muito gentil, foi chegando, chegando, sempre amável. Pela noite o homem tava
84
doidinho, já tinha tomado umas pinga e queria a todo custo levar a moça pra
passear. Passear onde, naquela escuridão? De certo tinha as ideia torta e
matutava um ataque. Imagine, uma vila de chão de terra, feia que dói, com nove
ruas onde você pode encontrar ao redor vereda bonita, dá até vontade de
chorar. Histórias muitas, algumas macabras, outras engraçadas. Naquela vila,
jamais alguém diria que o homem da pensão é dessas coisas. Porque, como já
foi dito, aqui os loucos de verdade não são do tipo desavisado. É do tipo ideia
fixa. Andam como se fossem sensatos, prudentes. Delírio? Só de atos
rompantes. Parece que tem coisa no corpo que corrói por dentro e precisa
extravasar, de uma hora pra outra. É... É a crueza desta vida. Dizem que
antigamente era bom e agora não é mais. Que antigamente tinha muitas pedras
preciosas neste rio, muita riqueza que vai se acabando por conta da exploração.
Que o povo era feliz e já não é mais. Que as coisas tinham fundamento e agora
perdeu o juízo. Mas que juízo? Algum dia a vida fez juízo? Como se antigamente
fosse sempre melhor, ou sempre pior, não sei. Dizem que no passado a terra
tinha mais vida, mais natureza, mais beleza.
Falando assim, tudo aqui parece ser um antes e um depois. Como se a
vida fosse assim, separada por vírgulas. Mas com o tempo de convívio os olhos
desanuviam e o corpo sente que tudo é continuidade de um mesmo buraco. E
que esta paisagem de agora é uma fenda antiga.
Acontece que o povo passa por cima de um fato estranho: a fenda antiga
é também brejo lamacento que puxa tudo pra dentro dele. É uma queda única,
igual de um curió-de-brejo que não sabe voar. Pro curió não tem antes e depois,
a queda é a queda, não é mesmo? Uma, duas, três vezes, não importa, é
sempre queda. A não ser que o curió, no meio da sua queda, aprenda a voar,
assim, lindamente. Então acontece alguma coisa. Acontece, não é mesmo? Ele
deixa o seu canto embolado de medo pra cantar voando pelo cerradão. E o
bicho sai da queda e começa a voar. Agora sim, temos um antes e um depois.
Este é o voo do curió, o seu canto, que o mundo inteiro precisa aprender a fazer
o seu.

85
Monomania: Ideia fixa, “mania raciocinante”, uma loucura que embota o afeto
sem prejudicar a racionalidade.
Não foi por acaso que Pinel criou a categoria de “mania sem delírio”.
Observando casos de súbita agressividade em pacientes que não padeciam de
nenhum delírio cognitivo, propriamente dito, Pinel escreverá o seu tratado de
1801, inaugurando uma nova fase do alienismo francês. Certamente a ideia de
“mania sem delírio” provocara um contra-senso perante as classificações
mentais de sua época, afinal, era justamente a noção de delírio o barômetro
necessário para que os alienistas concedessem uma possível definição do
estado de loucura. Será, portanto, Esquirol em 1838, discípulo de Pinel, quem
desmanchará o contra-senso da “mania sem delírio” ao alargar as definições de
delírio e consequentemente as de loucura, propondo uma nova categoria, a
conhecida monomania, subdividida em três tipos: delirante, raciocinante e a
instintiva. Apesar de abandonada, a monomania instintiva de Esquirol é hoje
uma referência clássica para os chamados transtorno obsessivo-compulsivo
(TOC) e transtorno delirante não esquizofrênico, dentre outros que deles se
derivam; cleptomania, ludomania, oniomania, por exemplo.
Voltemos para Pinel e Esquirol. Estamos no século XIX e é preciso
recordar que as noções humorais da antiga melancolia ainda se interpenetram,
povoam as mentalidades clínicas, atuam na escuta médica e suas terapêuticas.
E é exatamente aqui, onde tudo se mescla, onde tudo parece estar entre o
nascimento da psiquiatra e o fim da teoria dos humores, que se dará a precisa
intervenção de Pinel e Esquirol. A monomania triste ou Lipemania virá para
especificar uma nova abordagem e se diferenciar da melancolia dos românticos,
dos poetas e dos antigos. Para Pinel e Esquirol, e cada vez mais ao longo do
século XIX, a melancolia é o excessivo domínio de uma ideia exclusiva que se
exerce sobre a mente. É Pinel quem nos diz: “a melancolia é um julgamento
falso que o doente se faz do estado de seu corpo, o qual ele acredita em perigo
94
por causas peculiares, temendo que seus interesses se deem mal.” Será,

94
La melancolía “consiste en un juicio falso que el enfermo se forma acerca del estado de su
cuerpo, que él cree en peligro por causas nimias, temiendo que sus intereses se salgan mal.”
Starobinski (1960) apud Pinel (1801). In: Acta psychosomatica. Le traitement de La mélancolie
dês Orígenes à 1900 (1960). p. 51. Tradução livre da autora. Agradeço Damian Kraus pela
dedicada ajuda.
86
portanto, a partir de uma escuta que pressente a necessidade de compreender o
corpo para além da teoria dos humores, e mais, que se elabora na constatação
de que o delírio de um corpo não se restringe às suas disfunções cognitivas,
declaradamente perceptíveis perante a dita normalidade, que Pinel e Esquirol
irão desenvolver as suas teorias. No entanto, como afirma Jean Starobinski, a
antiga teoria dos humores não desaparece da noite para o dia. E é por isto que
encontramos entre os alienistas do século XIX práticas terapêuticas bastante
comuns aos antigos (banhos termais, revulsivos, terapias musicais, etc.). Será,
igualmente, pelo mesmo motivo que encontramos nos estudos de médicos e
naturalistas do século XIX no Brasil, a conceituação de um banzo que transita
entre os saberes antigos e a ideia de “paixão da alma” associada ao sofrimento
de “ideia fixa”, ou seja, associada ao sofrimento de um espírito abatido que
remói a agonia em que se encontra acometido.
Extraindo da monomania aquilo que a sua gênese nos oferece – a
necessidade de se diferenciar da melancolia e de se afirmar enquanto um delírio
que não se restringe às ideias, mas pelo contrário, está ligado aos atos – talvez
a sua abordagem nos ajude a pensar o banzo no Brasil de hoje. Não queremos
dizer com isto que o banzo de agora passa a ser uma das classificações do TCI
(Transtorno de Controle de Impulso), tal como o obsessivo-compulsivo e outras
classificações vizinhas. Gostaríamos, antes, de nos perguntar: será que o
buraco cavado pelo banzo tem vindo a se repetir numa lógica que tende a um
funcionamento que embota o afeto sem prejudicar a racionalidade? Será que o
abismo do “primeiro banzo” tem vindo a se repetir numa lógica que age
desesperadamente o buraco que lhe foi injetado no corpo; o buraco do
aprisionamento de um corpo expropriado que outrora não encontrava outro
modo de agir para além do suicídio? Perguntamos, ainda mais: será que agir
este buraco em delírios de ato é de fato um agir ou, antes disso, seria a sua
própria repetição, colocando em evidência que tudo é continuidade de uma
mesma fratura? Não seriam estes atos súbitos não um agir, mas aquilo que grita
desesperadamente o sofrimento do corpo aprisionado; atos de corpos
expropriados que não param de cavar, mais e mais, a sua fenda, instaurando
pequenos caos num processo de desterritorialização que pode levar ao seu
movimento absoluto; mortes, assassinatos, incêndios, suicídios? Se assim o for,
87
o que vemos nesta paisagem de agora é, portanto, o entre do próprio devir. Mas
frequentemente passa-se por cima de um fato estranho: o entre é também
buraco negro, abismo. Ele é também uma queda que, longe de produzir um
antes e um depois, se situa dentro do tempo sem o ter, dentro do entre sem
produzir um acontecimento que definiria o seu antes e depois. Dito assim, o
devir não é apenas o que está entre o antes e o depois, mas é aquilo que repete
a própria fratura, o próprio buraco, no seu todo, de modo que para que se saia
dele é preciso produzir um acontecimento: o tal antes e depois. Sim, um
acontecimento, este por sua vez, seria o “canto do banzo” que se coloca na
urgência de ser produzido.

Regime de signo Pós-significante: Quando Deleuze e Guattari denominam


regimes de signos toda e qualquer formalização de expressão específica que
remete a agenciamentos que não se limitam aos linguísticos, afirmam a todo
instante, que não se trata de identificar um regime ou uma semiótica a um povo,
nem a um momento da história. Trata-se, antes disso, de compreender que as
semióticas são elas mesmas mistas, combinando não apenas formas de
conteúdo diversas, mas também regimes de signos diferentes. Entretanto, é
verdade que igualmente esclarecem: “as semióticas dependem de
agenciamentos, que fazem com que determinado povo, determinado momento
ou determinada língua, mas também determinado estilo, determinado modo,
determinada patologia, determinado evento minúsculo em uma situação restrita
possam assegurar a predominância de uma ou de outra [semiótica]”.95
Nesta perspectiva, há um regime de signos que nos interessa em
especial, o denominado pelos autores como pós-significante, o qual, opondo-se
à significância se define por um procedimento original, de subjetivação.
Para compreender a sua lógica de funcionamento Deleuze e Guattari
retratam um problema central à psiquiatria: dos delírios não-alucinatórios “com
conservação de integridade mental, sem ‘diminuição intelectual’” (Monomania de
Esquirol, Querelência de Kraepelin, delírio-passional de Clérambault). Será a
partir deste problema que os autores irão opor um regime ideal de significância
95
DELEUZE, Gilles e GATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.2 – São Paulo:
Ed. 34, 1995, p. 74. Grifo nosso.

88
(paranoico-interpretativo) a um regime passional (subjetivo). Este último se
exprime mais como emoção do que como ideia, e mais como esforço e ação do
que como imaginação. Em suma, delírios de atos mais do que de ideias, “pela
sucessão linear e temporal de processo finito, mais do que pela simultaneidade
dos círculos em expansão limitada”.
Temos, portanto, dois tipos de delírio – um que tende a um regime
significante; interpretativo, e outro que tende a um regime pós-significante;
passional. São Deleuze e Guattari quem nos fará notar: a psiquiatria nasceu
encurralada, presa a exigências humanitárias, jurídicas, policiais. No primeiro
polo temos aqueles que parecem loucos, mas não o são, tal como o presidente
Schreber que descreve em livro todo o seu percurso de delírios alucinatórios,
procurando a todo instante uma razão para a sua paranoia, para a sua relação
com Deus, mas que jamais deixará de administrar sua fortuna e de transitar
entre os cargos políticos. No outro polo temos aqueles que são loucos, mas não
parecem ser: desses podemos verificar seus atos súbitos, assassinatos,
incêndios, agressões.
Vem, portanto, exatamente deste impasse os diferentes modos de
tratamento na psiquiatria, coincidindo em grande escala com a distinção de
classes: ora se proporá compreensão e misericórdia para aqueles dos delírios
paranoicos; loucos, mas não verdadeiramente: os burgueses e os abastados.
Ora se proporá internações duras e agressivas, em especial para aqueles que
não perecem loucos, mas o são: pobres, proletariados, rurais e assassinos
políticos.
Mas teremos de olhar mais atentamente ao problema que se apresenta
na lógica de funcionamento do regime pós-significante, monomaníaco,
passional, autoritário: “A traição deveio a ideia fixa, a obsessão maior, que
substitui a trapaça do paranoico e do histérico. A relação ‘perseguidor-
perseguido’ não é de forma alguma pertinente: ele muda inteiramente de sentido
segundo o regime paranoico despótico, e segundo o regime passional
autoritário”. 96

96
Ibdem, p. 82.

89
Há toda uma economia da traição. “Quantas traições acompanham as
grandes descobertas na cristandade, a descoberta das terras e dos continentes
novos: linhas de territorializações, onde pequenos grupos a tudo traem: seus
companheiros, o rei, os indígenas, o explorador vizinho, na louca esperança de
fundar, com uma mulher de sua família, uma raça enfim pura que fará tudo
97
recomeçar”.
A Raça, a que tudo justifica, separa, diminui, encurrala, aprisiona. A
possessão. Há sempre o funcionamento de uma realidade dominante que
funciona de dentro: “quanto mais você obedece aos enunciados da realidade
dominante, mais comanda como sujeitos de enunciação na realidade mental,
pois finalmente você obedece a você mesmo, é a você que você obedece! É
você quem comanda, enquanto ser racional... Inventou-se uma nova forma de
98
escravidão, ser escravo de si mesmo (...).” Os atos, em seus delírios, não
param de afirmar a condição de “escravo de si mesmo”.
O regime pós-significante traça uma linha a qual o signo rompe a sua
relação de significância com o próprio signo, corre desvairadamente numa linha
de fuga atingindo uma desterritorialização absoluta: buraco negro da consciência
e da paixão que perseguem a todo instante o seu fim e a sua morte. “A
subjetivação leva o desejo a tal ponto de excesso e de escoamento que ele deve
ou se abolir em um buraco negro ou mudar de plano”: eis aqui, mais uma vez, a
figura dos atos súbitos.
Será que podemos fazer uma aproximação da lógica que se opera no
regime pós-significante e o funcionamento do banzo na atualidade? Não seriam
os atos súbitos oriundos de corpos aprisionados, que agem desesperadamente
um sistema que lhes imprime as vias sem saída, os becos interditados? Mas já
não se trata de escravatura, tampouco de colonização pautada nas economias
transatlânticas, mas sim, de seus efeitos, de seus desdobramentos na lógica
atuante de um Brasil marcado pela sua fundação fraturada. Trata-se daquilo que
Achille Mbembe formula através de sua análise cirúrgica em A Crítica da Razão
Negra:

97
Ibdem.
98
Ibdem, p. 89.

90
“Não é demais lembrar que terá sobrado qualquer coisa, das fendas e até das
lesões da crueldade colonial, para dividir, classificar, hierarquizar e diferenciar.
Pior ainda, a clivagem criada permanece. Será mesmo verdade que hoje em dia
estabelecemos com o Negro relações diferentes das que ligam o senhor ao seu
criado? Ele próprio não continuará a ver-se apenas pela a na diferença? Não
estará convencido de ser habitado por um duplo, uma entidade alheia que o
impede de chegar ao conhecimento de si mesmo? Não viverá num mundo de
perda e de cisão, mantendo o sonho de regresso a uma identidade que se
declina a si própria em função da essencialidade pura e, portanto, muitas vezes,
do que lhe é desemelhante? [...] O que explica esta sucessão infinita de cisões,
99
cada uma mais estéril que a outra?”

Parece-nos que os atos súbitos gritam a todo instante que se trata de


corpos humilhados, objetos de humilhação de uma humanidade supérflua.
Entregues ao abandono são nos delírios de atos que a sua presença no mundo,
a sua “utilidade” se afirmará. Reivindicam a cada ato os direitos desprovidos,
pois suas línguas não falam e não conseguem falar. São atos que berram, que
dizem não à “moral”, “civilizadora” e “humanitária” do projeto colonizador que
ainda repercute. Um “não” estranho, um “não” perdido, que repete o buraco do
corpo banzado.

Delírios de Atos: Quando em crise, sai para passear a noite e ao voltar à


consciência já está em outra cidade, a quilômetros de casa. Colhe a carcaça dos
animais devorados no pasto, por entre as cidades. Porco, boi, cachorro. Dá aos
ossos um tratamento especial. A casa fede osso, cal e formol.
Já em São Paulo, vira mendigo, trabalha como limpador de pratos num
restaurante em Santa Cecília. Passa a dormir no restaurante. Tempos depois
vem a surpresa de uma carta de amor que o chama de volta para o cerrado.
Em Goiânia, investe em parcelas infinitas a moto que lhe permite trabalhar
na ocupação de moto-boy. Mas o corpo em crise continua sua vida entre os

99
MABEMBE, Achille. p. 21-22.

91
passeios da noite, a bebida e os comprimidos. Bebe muito, guia a moto bêbado
pelas ruas da cidade.
Cai.
A ponte tem quinze metros. O acidente o leva ao coma e depois há o
esforço por voltar à vida. É preciso ajuda. Dão-lhe comida à boca, lavam-lhe o
corpo, limpam-lhe a bunda. E depois o trabalho duro do locomover só, do comer
só, do falar bem.
Com o esforço de sua reeducação tem a oportunidade de trabalhar como
peão de fazenda. Cuida das vacas e se masturba por entre os pastos. Uma
masturbação exaustiva para saciar o mundo que lhe rasga o corpo. Um mundo
cheio, um mundo farto que lhe atira para longe da sua pequena realidade da
vida no interior, entre a roça e a cidade. Enfia a fralda de pano por entre as
pernas e deixa a ansiedade vir. Um tesão que molha tudo, encharca a coxa.
Sua. Um dia inteiro até a exaustão do corpo. Até o seu cansaço, onde a mão já
não pode mais, dedos doem, uma buceta dói, um pau dói, um corpo dói. Chega,
a masturbação já cheira o pasto inteiro, a ansiedade se foi.
Como peão de fazenda perde um braço e ganha a vida. Partido de braço
triturado pela máquina de cortar capim compra o carro com a indenização e
dirige com um só braço. Caga de cócoras em cima da privada, vem do hábito da
vida no mato. Gagueja ao ler em público, tem muita dificuldade de pensar bem.
O olhar repressor, mudo, sem palavras, atormenta os sonhos. Grita de modo a
causar surdices. Bebe todos os dias, tanto quanto for necessário para esquecer
o câncer de alguém bem próximo e a sua vida miserável de merda. Há o
constrangimento de acordar gozado ao lado dela. Só fala em sexo e grita aos
sete ventos a ejaculação precoce. Bebe muito, cai na sarjeta. Espancado,
roubado e estatelado na rua, na manhã do dia seguinte.
Sai para passear a noite e carrega as carcaças que fedem nos pastos.
Mas num dia qualquer encontra o bicho vivo. Passa a conversar com ele, fazem
amizade. Leva-o para casa como se levasse a carcaça. Bota-o na cozinha da
lavadeira. Empurra aquele cavalo enorme, inteiro, para dentro da casinha que
fede osso, cal e formol.
Toma comprimidos de tarja preta e bebe com eles. É então que é
acometido por doença rara, tem que se proteger do sol. Corpo escondido
92
naquela roupa longa e seu jeito de criar distância. Mas aquele sangue
endurecido da aristocracia local lhe causa paralisia: aristocracia latifundiária, das
criações de gado, das posses de terra, dos massacres das gentes, do
catolicismo redentor. O corpo dói com isso, tende a escapar de si, quer fugir.
Corta-se inteiro: a faca afiada de cima a baixo abre rasgo de sangue do corpo
marcado. Toma comprimidos para se comportar bem. Por vezes, se aperta
numa roupa justa, afetada, exótica. Não sabe bem como agir a sua
homossexualidade naquela cidade de machos. Tantas roupas justas, tantas
vestimentas. Vai do revolucionário ao reacionário. Corpo arisco, difícil de chegar
perto. Contorce por isso. É gago cheio de tiques. Entre o caminhoneiro e a dona
de casa fode a cadela da roça. A cadelinha grita. Mas para quem?
Por toda a parte desolação. O calor é intenso e aos ares sobrevoam
palhinhas carboretadas do fogo que consome a mata seca do inverno sem
chuva. E como um antigo camarada das campinas goyanas, procura abrigo na
sombra de uma árvore retorcida: com a água molha os lábios ressequidos ao
mesmo tempo em que come a farinha de mandioca adoçada com rapadura.
Sabe ele que desta foda nada sairá, nenhum ser estranho poderá nascer e dar
vida longa a sua raça. Raro são seus pensamentos. No descanso, rememora
uma experiência que não é sua e cheira o couro úmido da tropa que num tempo
distante passava ali. Aquele cheiro de pelo de mula suada mistura-se com o seu,
com o cheiro do seu pau que acabara de enfiar na cadela. E toda esta sensação,
junto ao calor forte, o faz derreter. Agoniado olha o céu sem nuvens e pensa
nada. Tagarela feito cantador e procura uma calma inexistente, uma terra firme
qualquer, um chão, um lar. Solidão quase absoluta. Em sua volta cupinzeiro,
calango e sol. A queima do mato próximo insiste e o convida mais uma vez, na
fumaça ardida misturada ao suor, memorar um tempo que não é seu, mas é seu.
Imagens lhe tomam as vistas como se o corpo pudesse fazê-las sair pelos poros
anunciando-as como marcas que lhe pertencem ao fundo: a bunda assada das
viagens longas no lombo do animal, os dias áridos mato dentro, o abrir terras.
Homens fedidos babentos pelo ouro. Índios fodidos, escravos, desapossados. O
som mudo do sofrimento das gentes em fazer surgir vilas na beira do rio. Vila
Boa latifúndio. A capela, o padre, a missa. E mais uma vez o suor, o mau cheiro
da dor: pretos escravos, trabalho braçal, corpóreo, duro, rijo. Dos Goyáses resta
93
o nome e algo fundo na pele desse corpo. Aqui, a cadelinha é uma mulher, uma
escrava e uma índia. A cadelinha grita, mas para quem?
O fogo cessa e a poeira vermelha levanta, irrita os olhos e faz o corpo
sofrer. Corre em direção ao riacho. Encontra água límpida, fresca, suave. As
piabas do pequeno rio sussurram o ditado popular: coma piabas vivas para
aprender a nadar. Não hesita, abre a boca e enfia piabas vivas para dentro da
garganta que leva ao estômago. Se joga na água e nada como bicho do mato.
Já é noite.
Tempos depois vem o porco que anseia engordar para um trabalho
qualquer. Compra o porco e o leva para roça. O porco é seu animal de
estimação. Cuida do bicho como lulu de madame, alisa, acaricia, dá-lhe comida,
banho, leva-o passear. Tem amor pelo porquinho, mas engorda-o e tão logo fará
dele boa refeição. Um banquete onde o porco é o convidado de honra que sabe
gozar e goza pra caralho. Escreve por ele, pensa por ele. Grita por ele: o porco
não é uma metáfora!
Numa noite religiosa resolve acompanhar a procissão a pé, de Goiânia à
Trindade. Com um cajado enorme encontrado na rua feito osso do pasto, olha
toda aquela gente que carrega a cruz para pagar os pecados. Mas os olhos riem
toda aquela religiosidade tresloucada. Chega a Trindade, bebe algumas e volta
para trás. Exausto, cansado.
Em Goiás Velho se joga contra as paredes da igreja, tantas e tantas
vezes, parecendo libertar os sons dos mortos daquela terra. E o corpo grita no
embate com a parede. Porrada bruta do corpo exalando o mau-cheiro da dor de
seus antepassados: Goyases, Acroá, Kayapó, Karajá, Xambioá, Yavaé, Avá-
Canoeiro, Kalungas. A voz escandalosa da defunta Maria Grampinho ao enfiar
toda a sujeira da rua nos cabelos. Obcecada pelos grampos que encontrava nas
fissuras entre as pedras da calçada, entocada no porão de Cora Coralina,
maltratada, largada às traças. Preta louca passa a vida a procurar ramonas100 e
as enfia na cabeleira. Cabeleira suja cheia de grampos. De Cora Coralina, o
porão úmido, escuro e suas bruxarias culinárias.

100
Ramonas: palavra usada pelos goianos e que significa grampos de cabelos.

94
Quando feliz, o corpo bebe um tanto a mais e gago já não consegue dizer.
A fala vem para expulsar o som. A cabeça treme e o sorriso ocupa a face. Só
Jesus! Ele canta. Só Jesus!
Nas ruas diz aos berros que ele próprio, o corpo, é um hotel de quinta
categoria. Grita noites em claro, no desejo de que alguém o escute e o arranque
dali, para muito longe. Bebe por isso. Dança por isso. Roda por isso. É preciso
um cansaço. Decide furar os próprios pés num Serão Performático. E aquele
sangue espesso espalhado no chão cheira vida e morte, causa espanto e mal
estar. Mas por quê? Perguntam. Por quê?
Parou.
É que o corpo velho vê o mar pela primeira vez. Com a onda branda que
acalma os nervos o corpo passa a vestir-se somente de branco. Raspa a cabeça
e costura as estrias que marcam o ventre feito fissura aberta de animal rajado de
listras.
Aprende a controlar o próprio descontrole: vômitos na hora certa,
mastigação com alargadores de boca, movimentação do corpo retorcido,
chicotadas sobre corpo escravo açoitado. Engole mechas inteiras do cabelo à
frente, até perdê-lo de vista, e devolve na certeza que já não pode ir além. Enfia
agulhas por entre a unha e a carne – gesto sutil e delicado – já não se sabe
onde está a beleza e o horror. Joga-se nu contra as paredes. Mede forças com o
outro: tapa na cara, grito exaustivo, pedra no cabelo. Uma medição de forças
que nada tem a ver com a afirmação de si. É mais que uma medição, é todo um
esforço em que o corpo entra, uma tensão que ele habita, expressando-se ali:
repetindo e destampando todas as marcas, os colapsos, as dores e gagueiras
das desgraças de um corpo.

Repetir a fratura: Patinar num abismo sem conseguir sair dele. Repetir o
próprio buraco através de atos que o repercutem. Repetir o buraco
demasiadamente, até destampá-lo, e fazer ouvir os seus ruídos.
Peço desculpas para o leitor que já conhece o texto situado no bloco à
cima e que nesta tese recebeu o título “Delírios de Atos”. O fato é que depois de
tanto evitar, abafar e hesitar, percebo a hora de deixá-lo vir, mais uma vez. Ele é
95
resultado da escrita de meu Mestrado, no qual eu me dediquei pensar a
experiência performática do Grupo EmpreZa e mais especificamente, aquilo que
se tornou singular em mim, durante os meus dez anos como integrante e
fundadora deste coletivo, assim como os meus quatro anos vivendo na cidade
de Goiânia e todas as histórias que vivi neste período e que ainda reverberam
no meu corpo. Este texto é resultado de uma parte imprescindível da minha vida.
Foi a partir dele que se evidenciou uma dimensão inevitável de Brasil que eu não
poderia mais evitar. Parece que a sua escrita destampou um trauma há tempos
abafado, como se as suas palavras trouxessem à tona uma multiplicidade de
sons que se encontravam silenciados, rasgando o meu corpo, instaurando um
abismo doído. É aqui onde tudo começa. E por mais estranho que pareça, o
início que se fez para mim a partir deste texto não é ponto-começo e sim um
entre, um cair no buraco. Ao escrevê-lo fui lançada para um precipício no qual
eu patinei durante três anos, sem sair do lugar, repetindo a sua fratura.
Desliguei-me do Grupo EmpreZa e passei a performar sozinha. Literalmente
rodopiava com o texto, durante horas, tentando lê-lo, ou dizê-lo decoradamente,
nua, no mesmo instante em que arriscava tocar o meu berrante, soprá-lo para
dele fazer canto. Sempre assim, quase a mesma performance, rodando no
próprio eixo com o texto e o berrante no corpo, durante três anos101. Essa foi a
minha busca incessante: sair deste texto, mais que isto, sair deste lugar, deixar
de patinar, iniciar um novo sopro, inventar novas vozes, outros sons, outros
cantos.
Agora percebo que este texto é a expressão viva do buraco do banzo que
não para de se repetir em delírios de atos. Um texto que expõe os sons dos atos
repentinos, de um corpo102 sem-voz, e talvez por isto nunca consegui fazer da

101
Para melhor compreensão desta performance e de meu trabalho de arte, ver portfólio em
anexo.
102
Um Corpo é o título verdadeiro do texto que me refiro e que nesta tese ganhou o pseudônimo
Delírios de Atos. Um Corpo refere-se ao meu entendimento de certo tipo de força comum que
atravessava cada um de nós integrantes, conectando-nos enquanto grupo e impulsionando as
questões de nossos trabalhos. Questões estas que sempre estiveram envoltas com algo da
ordem das marcas de um corpo sofrido. O um refere-se não ao numeral ou numérico uno, mas
antes à singularidade não mensurável do artigo indefinido um: “Parece-me que o Grupo
EmpreZa se interessa por trabalhar as marcas das experiências que nos fazem enquanto grupo.
Os acidentes, as doenças, as depressões, a vida na roça e na periferia, o trabalho braçal, duro, a
religião e seus símbolos, são algumas das experiências atuais deste coletivo. Para, além disso,
96
minha voz instrumento deste texto. Performá-lo só me foi possível amarrando o
corpo, esgarçando a boca com alargadores odontológicos, submetendo o corpo
a situações de tensão e deslocamento, zonzando, girando incessantemente.
Agora percebo que este texto é o próprio entre do devir. Um texto que expressa
vivamente as forças que estão em jogo no trabalho do Grupo EmpreZa: as
performances deste coletivo repetem a fratura instaurada pelo banzo,
destampam o seu buraco e fazem da fratura solapada uma fratura exposta. São
atos delirantes que fazem ver e ouvir os corpos banzados, aprisionados,
expropriados de si. Sem este trabalho duro e pesado de Exú103 não nos seria
possível ouvir os sons do banzo, extraí-los e compor com eles uma nova coisa.
A esta nova coisa chamo agora Canto do Banzo, Audiopsicografias, Sons de
Banzo, a tese inteira, meu novo processo artístico: uma linha que se produz –
não na repetição do buraco do banzo em delírios de atos – mas numa via clínica
que torce, que dobra, que duplica e faz um dentro no interior dessas forças
exteriores que me engoliram104.

parece-me que outras marcas, mais profundas, perpassam e interessam a este grupo, uma vez
que também se inscrevem neste corpo. São dores do fundo, colapsos que rasgam esta
EmpreZa, empurrando-nos a exercitar criativamente as tensões destas vidas. Sendo assim, um
lugar de tensão é o modo que encontramos para fazer passar estas forças num processo
contínuo de reinvenção. É aqui que um corpo chamado EmpreZa se faz, por uma exigência
comum de embate, que se impõem a cada uma dessas existências e encontra na arte sua
expressão.” (Que copo é esse? Grupo EmpreZa: sensações de uma experiência-terreiro, p. 47).
103
Èsù, um dos orixás do candomblé e também da umbanda, é uma divindade complexa e de
extrema importância para a realização de diversos trabalhos. Ainda que se tenham diferentes
abordagens para a mesma divindade, conforme o grupo de crenças desta ou daquela religião,
Exú é o mais humano de todos os orixás, trazendo em si todas as contradições e conflitos
inerentes ao humano. Sua importância maior é o de mensageiro, é ele quem faz o elo entre os
homens e os orixás. Entidade protetora e guardiã, encontra-se sempre fora da casa, nas
entradas e encruzilhadas. Na umbanda é conhecido por ter facilidade em resolver assuntos
“urgentes”. Convocado para trabalhos difíceis e pesados é ele o encarregado por executar as
limpezas profundas, desamarrar trabalhos pesados, desfazer os aprisionamentos nefastos que
se encontram atuantes na vida de um grupo ou de uma pessoa. Do ponto de vista moral Exú é
erroneamente associado à figura do diabo.
104
“Um Lado de Fora mais longínquo que todo o exterior, ‘se torce’, ‘se dobra’, ‘se duplica’ com
um Lado de Dentro, mais profundo que todo interior, e só ele torna possível a relação derivada
do interior para o exterior”. In: DELEUZE, Gilles. Foucault – São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 117.

97
la voix d'où je tiens ma vie

98
V. AUDIOPSICOGRAFIAS

Até com imagens, eu penso no ritmo como o


fundamento básico que está no alicerce de
tudo. E não necessariamente apenas o ritmo
métrico, mas ritmo, eu diria, é o fundamento
básico destes entrelaçamentos dos diferentes
modos perceptivos (Meredith Monk).

Antes de nos debruçarmos no desenvolvimento dos dois próximos


capítulos, Audiopsicografias e Canto do Banzo, teremos de esclarecer o nosso
ponto de vista, apontar o eixo que convocaremos para tais entrelaçamentos.
A partir daqui faremos um giro, deslocaremos mais incisivamente o lugar
de onde se fala e se pensa: iniciaremos com Audiopsicografias uma parte
fortemente experimental e artística da tese, utilizaremos do percurso que
estamos desenvolvendo no campo da performance e, igualmente, de novas
experimentações vocais e performáticas. Entendemos a arte como um lugar
potente de produção de pensamento que, não apenas oferece auxílio na
elaboração daquilo que chamamos “sons de banzo”, mas é com ela (e a partir
dela) que surgem as questões que nos tem levado para esta pesquisa. Portanto,
será no contato direto com a invenção de novas experimentações artísticas que
a parte final desta tese se desenvolverá.
Não se trata de separar o pensamento em dois: o artístico e o acadêmico,
mas de declarar que a partir de agora será o nosso trabalho artístico (e suas
referências) quem nos oferecerá o território propício para pensarmos o banzo e
os seus afetos sonoros.
Lançar-nos-emos para um voo mais vertiginoso no qual temos certa
intimidade com a performance mas pouca familiaridade com a música (quase
nada sabemos da música e dos sons). Ao mesmo tempo nosso contato com a
música, os sons e as experimentações dos artistas da voz tem sido um percurso

99
absolutamente surpreendente, inaugurando em nosso trabalho de arte um novo
e irreversível caminho. Será, portanto, a partir deste novo percurso, ainda
bastante inicial e estranho, no qual não sabemos ao certo onde tudo isso vai dar,
que os próximos capítulos, respectivamente “Audiopsicografias” e “Canto do
Banzo”, se desenharão.
De certo modo, é verdade que toda a tese tem sido escrita neste fio que
nunca se mostra por inteiro, se fazendo aos bocados, na sensação de que
nunca se sabe qual a próxima paragem. É igualmente verdade, que ao longo
desta pesquisa não deixamos, um só instante, de convocar o ponto de vista
artístico: ele sempre esteve conosco, guiando nossos passos, conduzindo
nossas escolhas, convocando diferentes vozes que vêm ecoando no decorrer
deste estudo.
Entretanto, é imprescindível assumir que a partir de agora, as operações
traçadas serão da ordem dos afectos e dos perceptos105, lançando-nos ao
desconhecido, experimentando, desejando a invenção de matérias sonoras
através de uma série de procedimentos no qual me oferecerei como cobaia,
onde meu corpo-voz prestará serviço a tais experimentos.
Para tanto, situemos brevemente algumas palavras que tomamos
emprestadas para pensar o campo do som e da escuta:

105
Afectos e Perceptos tal como Deleuze e Guattari propõem em O que é a filosofia?: Um bloco
de sensações, um composto de afectos e peceptos, “seres que valem por si mesmos e excedem
qualquer vivido”. “O objetivo da arte com os meios do material, é arrancar o percepto das
percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções,
como passagem de um estado a um outro. Extrair um bloco de sensações, um puro ser de
sensações. Para isso é preciso um método que varie com cada autor e que faça parte da obra:
basta comparar Proust e Pessoa, nos quais a pesquisa da sensação, como ser, inventa
procedimentos diferentes.” (O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p. 213- 255). Neste
sentido o que buscamos com Audiopsicografias é um método de extração das sensações
“banzantes” que perpassam os sons das “vocalidades” de meu corpo. Não se limitando ao meu
corpo, à minha experiência pessoal e psicológica, tais sensações “banzantes” pertencem ao
próprio banzo (entendido aqui como um trauma que ressoa) e poderão ser convocadas através
de diferentes procedimentos. De certo modo, não seria esta a operação traçada ao longo desta
tese? Não seriam a escrita desta tese e suas diferentes vozes, a nossa performance e
experimentações da voz, tentativas diferenciadas de extração de blocos sonoros que dizem
respeito ao banzo?

100
Som: Energia vibratória interdependente; Propagação; Transmissão. Energia
não delimitada em um espaço que se espalha e se instala efemeramente nas
coisas, nos objetos, nas formas que o recebem, o absorvem, o acolhem; Sinais
sonoros que passam e atritam nas materialidades do mundo; Raízes pré-
musicais; Jogos de força, tensões, pulsões que estão sob a música, com as
quais a música trabalha e coloca em movimento sob novas bases (Pascale
Criton e José Miguel Wisnik).

Voz: O corpo da voz / a voz do corpo; Energia vibratória produzida pelo corpo
(aparelho fonador); Instrumento musical primevo; Matriz sonora que nos conduz
às inquietudes primordiais; Um meio para tornar-se, corporificar e encarnar outro
espírito; Voz, matéria tão flexível quanto a coluna; Uma linguagem própria que
não se limita ao signo e o significante, à fala e à palavra, à comunicação e à
sociabilidade compulsória. (Demetrio Stratos, Janete El Haouli, Meredith Monk e
Elizabeth Pacheco).

Escuta: Territorialidade sensorial passageira que implica outros modos de


relação com o espaço e o tempo, ocultando diferentes maneiras de sermos
afetados; Prática ativa, produção, elaboração; Realidade física, mas também
psíquica; Encenação de representações e de sensações reais e em relação com
a ficção; Processo necessariamente elaborado por uma membrana na qual
opera a copla emissor-escutador; Paisagem plural, ao mesmo tempo interna e
externa que constituímos a todo instante na relação com os sinais sonoros;
Espaço pluridimensional capaz de associar o mais longínquo ao mais próximo, o
fora, o dentro, o acima e o abaixo; Escuta ampliada, realizada desde os ouvidos
até os ossos. (Pascale Criton).

Ritmo: Não se trata de ritmo métrico, de temporalidade métrica, mas de uma


condição rítmica, expressiva daquilo que está em constante diferenciação; Uma
maneira de lidar com o Caos (Meredith Monk, Deleuze e Guattari).

101
A que vêm as Audiopsicografias?

Segundo o espiritismo, psicografia é uma escrita que resulta da capacidade


que um médium tem de se comunicar com os espíritos, na qual o espírito, em
contato com o médium, dita ou toma posse de seu corpo, de seus dedos, de
suas mãos. Mas também poderíamos propor a psicografia como uma escrita ou
grafia que deseja a todo instante, e cada vez mais, a própria escrita, que,
tomada por um fluxo intensivo, quem dita ou toma posse do “médium escritor”
são as forças do desejo em resposta à relação paradoxal entre, de um lado,
afectos e perceptos ou a “alma” se assim pudermos nomeá-los e, de outro, a
percepção marcada pela cartografia cultural em curso. A psicografia lida com
forças que não dizem respeito à psique do escritor, mas antes, a tudo aquilo que
se passa entre o escritor e a escrita, entre o pessoal e impessoal, o sujeito e o
fora-do-sujeito, o tempo cronológico e o tempo em si. Em suma, forças que
levam o escritor para estados estranhos, que tensionam o familiar, tendo como
testemunho desta experiência o seu registro escritural.
Audiopsicografia seria, portanto, um modo peculiar de grafar as forças
vibracionais e, portanto, sonoras, tornando-as audíveis; grafar o estranho em
seu atrito com o familiar. Aqui, o papel do gravador ou do escritor é a escuta.
Uma escuta ubíqua como diria Pascale Criton. Uma escuta capaz de estar
concomitantemente em toda parte. Uma escuta capaz de se imbricar com as
forças do mundo de modo a extrair delas os sons do banzo, ou seja, a sua
paisagem, o seu clima. Uma escuta ativa que extrai, seleciona, afina, absorve,
repete, compõe e decompõe. Uma escuta que é produção, que é elaboração,
que é criação.
No entanto, de antemão o som já está povoado, já é portador desta
necessidade psicográfica, mediúnica, pois ele carece da matéria (madeira, água,
ar, corpo, osso) para se fazer audível. O som são os nossos espíritos. Estes,
que nos rodeiam, que nos invadem, que tomam o nosso corpo. O som é o que
nos conduz, que nos teletransporta para lugares longínquos. Que nos faz vibrar
e vibra em nós, interiormente, que instala e desinstala diferentes estados no
corpo, deixando rastros, marcas e memórias das mais diversas.

102
Neste sentido som é afeto que no encontro com o seu homem-gravador,
bicho-gravador, planta-gravadora, feto-gravador produzirá este ou aquele
movimento. Produzirá esta ou aquela sensação em seu atrito com o familiar. E a
sensação convoca o desejo que produzirá um corpo, uma entidade, também ela
sempre sonora, pulsátil. Podemos pensar nos micromovimentos de um corpo
que age e reage aos sons que os invade. Podemos pensar a voz, os gritos, os
suspiros, os sussurros, as expressões soltas que se desprendem do corpo no
encontro com esta ou aquela força, com esta ou aquela circunstância e as forças
que a agitam. Podemos convocar inúmeros movimentos, é sempre um processo,
incessante produção de ecolalias que se expressam, que se propagam,
repetindo e diferenciando uma série de vibrações que podem se tornar audíveis.
Nossos aparelhos corporais têm limites de escuta, mas as vibrações, os sons, os
ritmos, eles estão sempre lá, nas vias de passagem, de um meio a outro.

“Os sinais sonoros são indissociáveis das condições que os provocam: forças,
tensões, energias, materiais, estruturas, bem como o meio físico em que estes
sons são emitidos e se propagam: exterior, interior, segundo superfícies mais ou
menos densas, lisas ou porosas, nas quais eles são refletidos ou absorvidos. O
conjunto de tais fatores constitui uma cadeia de determinações espaciais e
temporais que concorrem para a especificidade de uma informação sonora. O
som é uma realidade essencialmente heterogênea, uma multiplicidade feita de
contingências e determinações, de grandezas, de dimensões que crescem e
decrescem de acordo com o evento que está sendo produzido. A multiplicidade
acústica, tal como eu gostaria de propor aqui, integra o conjunto de fatores que
modelam o som, na mais aberta acepção de tudo que é audível – antes mesmo
da música. Estas qualidades e dimensões físicas no seio das quais os sinais
sonoros se propagam, natural ou artificialmente, estão em interação constante
com as operações de escuta processuais e subjetivas. O ouvido mais ou menos
prevenido se desloca e se posiciona, pratica ativamente certas operações tais
como extrair, associar, constituir planos, navegar de um plano ou de um ponto a
outro, escavar a nebulosa ruidosa por estratos ou se infiltrar na profundeza de
seus planos, apreciar a sua simultaneidade, provocá-la, entrecortá-la, enfim, toda
uma mobilidade da escuta que eu chamaria de ubiquidade do ouvido, o ‘ouvido
ubíquo’”. 106

106
CRITON, Pascale. O Ouvido ubíquo: escutar de outro modo. In: Cadernos de Subjetividade,
2012. p. 54. Para Pascale Criton a ubiquidade do ouvido é a sua qualidade de se estar
simultaneamente em diversos pontos.

103
De certo modo foi a música, muito antes da ciência, quem nos ofereceu
condições para conceber o universo como pura energia, “vibrações, séries
107
intervaladas de atritos, ruídos respirantes que projetam ondas”. Um universo
que contempla todas as coisas em constante movimento e vibração, produzindo
múltiplas sonoridades num trânsito incessante que vai do silêncio ao ruído, do
ruído ao silêncio. Invisível e impalpável “o som tem um poder mediador,
hermético: é o elo comunicante do mundo material com o mundo espiritual e
invisível. O seu valor de uso mágico reside exatamente nisto: os sons
organizados nos informam sobre a estrutura oculta da matéria no que ela tem de
animado. (Não há como negar que há nisso um modo de conhecimento e de
sondagem de camadas sutis da realidade).”108 Não podemos tocar o som
diretamente, mas ele nos toca com imensa precisão, com um poder invasivo por
ora atormentador, por ora libertador, demoníaco, aterrorizante, apaixonante,
delirante, desvairado, esquizo. Há algo nos sons e na música que podemos
considerar da ordem do fantasmático:

“(...) como que modelando objetos interiores. Isso dá a ela [a música] um grande
poder de atuação sobre o corpo e a mente, sobre a consciência e o inconsciente,
numa espécie de eficácia simbólica. Os hindus a veem (e o hinduísmo é talvez o
mais musical das religiões) como algo da ordem da materialidade sutil, quase tátil,
modelagem modeladora, toque em regiões corporais e psíquicas,
psicossomáticas. O vazio e a plenitude, dos quais o som emerge e nos quais
mergulha, são o próprio duplo, o espelho, de uma ordem cósmica regida pela
dança da destruição. Na música, como no sexo, a gênese da vida e da morte
deixa-se conhecer, por extrema magnanimidade dos deuses, como prazer”.109

Pensando o universo inteiro enquanto matéria vibrante e sonora em


constante diferenciação, um afeto, tal como o banzo, possui a sua própria
vibração que no encontro com o mundo, com uma dada circunstância ou
momento da história, determinado estilo, determinado evento, determinada
língua, produzirá diferenciados modos de expressão. E para ouvi-lo é preciso

107
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. Uma outra história das músicas – 2ª edição – São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.26.
108
Wisnik, p. 28.
109
Wisnik, p. 30.

104
muita escuta, dessas, as realizadas de corpo inteiro, a feita pelos ouvidos, pelos
poros, pelos líquidos do corpo e em especial, a escuta realizada pelos ossos.
Sabemos que os tímpanos nos são os últimos a formarem-se totalmente,
abrem-se por volta dos três últimos meses de gestação. Um feto imerso em
líquidos escuta, desde sempre, através dos ossos. Os ossos internos de um
corpo são nossas melhores caixas acústicas. Quantas sonoridades os ossos nos
proporcionam escutar? Não seriam eles os responsáveis por ressoar os sinais
sonoros vindos de fora e nos fazer sentir certas vibrações interiores, estados
diferenciados da alma? Reverberam o tremor do medo ou do frio, ecoam as
irrigações sanguíneas da fúria, do êxtase ou da alegria, “enrijecem” nos traumas,
ressoam os mínimos movimentos do trato vocal... Os ossos são o nosso ouvido
primevo e ampliado.
Escutar os sons emitidos pelo corpo é sempre uma dupla experiência: as
vindas de dentro que ressoam através de nossas caixas osso-acústicas, e as
vindas de fora que ecoam no ambiente e retornam para o corpo através dos
ouvidos, dos músculos, dos poros, dos líquidos do corpo e também, mais uma
vez, através dos ossos. É como nos diz Wisnik: “Não há som sem pausa. O
tímpano auditivo entraria em espasmo”. “Há tantos ou mais silêncios quantos
sons no som, e por isso se pode dizer com John Cage, que nenhum som teme o
silêncio que o extingue. Mas também, de maneira reversa, há sempre som
dentro do silêncio: mesmo quando não ouvimos os barulhos do mundo, fechados
numa cabine à prova de som, ouvimos o barulhismo do nosso próprio corpo
produtor/receptor de ruídos (refiro-me à experiência de John Cage, que se
tornou a seu modo um marco na musica contemporânea, e que diz que, isolados
experimentalmente de todo o ruído externo, escutamos no mínimo o som grave
de nossa pulsação sanguínea e o agudo de nosso sistema nervoso).” 110
Há uma “canção” acontecendo a todo tempo em nossos corpos,
conectando-nos a outras “canções” e frequências, criando redes, entrelaçando
ritmos, fazendo e desfazendo territórios, acessando memórias outras,
longínquas, estranhas, familiares. Os sons, a música, esta ou aquela “canção”
nos oferecem mensagens sutis sobre a intimidade anímica da matéria, ou seja,

110
Wisnik, p. 18-19.

105
sobre a sua intimidade espiritual, de seus padrões vibratórios, pois não são as
partículas de ar ou de água quem transportam as sonoridades, são os sinais
sonoros que atravessam a matéria, passando por ela, fazendo vibrar o seu
interior.
Ora, do ponto de vista do corpo banzado, dos sons emitidos por ele, e mais
especificamente dos sons que não se restringem à dimensão comunicacional
(sons que se encontram no aquém-verbal, no aquém-comunicacional, no
aquém-gestual), que tipo de “padrão” vibratório este corpo nos faz ouvir? Que
tipo de vibração o corpo emite quando em banzo? Não seriam estas vibrações
portadoras de uma intimidade sutil, nos dizendo muito a respeito do banzo
instalado no corpo? Será que os respiros, os sussurros, a expansão e a retração
deste corpo, produzem ritmos que nos são audíveis? Ou até mesmo,
movimentos minúsculos que não são audíveis pelos tímpanos, mas nos são
sensíveis através dos ossos, do estômago, dos músculos, dos nervos e das
multi-antenas que se prolongam invisivelmente, para além de nosso contorno?
Em suma, quais os sons que o banzo produz? Como ouvi-los? E se o ouvirmos,
o que fazer com eles?
Evidentemente, para percorrermos tais perguntas devemos fazê-lo através
da escuta. E, diremos mais, tratando-se da escuta de um trauma que opera em
nossos corpos há mais de cinco séculos, será preciso, igualmente, escutar e
compor com as suas sonoridades de modo a fazer do banzo outra coisa que não
seja a sua própria repetição.
No entanto, julgamos estar indo rápido de mais. Porque para compor com o
afeto banzo e produzir o deslocamento de seu ponto nevrálgico e traumático,
antes, se faz necessário decompô-lo em fragmentos, extrair dele partículas,
destampar o seu buraco que tem sido secularmente abafado e fazer ressoar os
seus sons.
É exatamente aqui que nos encontramos. É a este serviço que se prestam
as audiopsicografias. É a técnica que utilizaremos para destampar, extrair,
separar, repetir e ouvir os sons do banzo.
Não se trata de qualquer som produzido pelas mídias sonoras (indústria
fonográfica, máquinas, aparelhos), estes são instrumentos de extrema
importância e que nos auxiliarão para a captura, amplificação, composição e
106
difusão dos sons que desejamos ouvir, e, portanto, parte indispensável da
escuta-ativa que aqui propomos. É verdade que nossa matéria sensível
encontra-se intimamente vinculada ao desenvolvimento tecnológico. Sabemos
que as invenções técnicas revolucionaram nossa percepção e representação do
espaço e do tempo. O som não está, desde há muito, limitado à sua fonte.
Podemos simultaneidades que excedem a presença imediata do evento e não
abriremos mão do uso de tais aparatos tecnológicos (gravadores digitais,
editores de som, amplificadores).
Mas então, afinal, a que vêm as audiopsicografias? O que trazem a somar
junto destes procedimentos tecnológicos digitais?
Diremos ser a técnica de uma escuta desde a memória do corpo, memória
dos afectos. Paramentado de dispositivos tecnológicos digitais (amplificadores,
captadores, etc.) será o corpo e o seu saber quem escolherão os sons a serem
extraídos, repetidos e produzidos pelo próprio corpo. Somente a partir da
conexão com os sons do banzo que no corpo encontram-se registrados teremos
condições de tornar audíveis os sons que aqui nos interessam. Como se ao
repeti-los, produzi-los e escutá-los, coloca-se em movimento uma série de
blocos sonoros vinculados às partículas vibracionais do banzo instaurados no
corpo. Diríamos mais, se por um lado, a escuta que se convoca promove-se
desde o saber-do-corpo, por outro lado, a produção e a repetição destes sons
serão especialmente realizadas através da técnica da voz. Pois é a voz, na sua
capacidade intensiva de arrancar sonoridades aquém do verbal, aquém do
gestual, aquém do comunicacional, quem nos proporcionará as agitações das
memórias “profundas”. Tal como um corpo que há tempos fora adormecido
naquela língua nunca mais falada, e que na primeira oportunidade em retomá-la
colocará em movimento todas as memórias de que esta língua é portadora,
instaurando uma série de sensações que percorrerão o corpo inteiro, remexendo
os baús empoeirados do corpo-língua “quase esquecido”.
Sejamos mais crus: trata-se de um processo no qual se convoca a
recuperação do corpo perdido e emudecido. Ora, o banzado é um corpo sem
voz. Sua condição é de expropriado, foi destituído de si. Nesta condição, que
voz lhe resta? Não seriam os assobios glóticos, os roncos da garganta, os
gemidos e os sussurros, os sons falhos (tão estranhos à palavra e ao sentido,
107
estrangeiros à voz achatada da fala) os únicos companheiros deste corpo sem-
voz? E mais ainda, não seria através da convocação deste barulhismo, como
nos diz Wisnik e Cage, que se pode tentar devolver a voz do corpo e o corpo da
voz? Devolver ao corpo à sua “alma”?
Mas, teremos de esclarecer, no que tange a sua produção primordial,
estamos interessados numa fabricação muito particular de sons. Estamos
interessados nos sons que se fazem com o abismo da experiência do corpo
banzado. Dos sons que rangem na interioridade dos corpos; na experiência da
queda do corpo aprisionado. Estamos interessados na produção de sons que se
fazem no encontro do corpo com o afeto banzo, ou seja, das memórias sonoras
instaladas no corpo banzado e que necessitam ser acionadas, destampadas e
ouvidas.
Audiopsicografias, portanto, é técnica, dupla produção: fabricação de
escuta e invenção de sons desde o ponto de vista do trauma ele mesmo,
remexendo os seus registros sonoros. Não temos saída, será o próprio corpo,
nosso lugar de partida. Será no exercício do seu saber que se produzirá as
condições para detectar e consequentemente extrair os sinais sonoros do banzo.
Fazendo uso de máquinas e dispositivos digitais que auxiliam nossas
capacidades auditivas desenvolveremos, através da voz, uma operação artística
e clínica de contato, extração, repetição e invenção de tais sonoridades.
Iniciemos a nossa jornada. Retomemos sucintamente a elaboração do
banzo, tal como a propusemos aqui nesta pesquisa: banzo é afeto, entidade viva
que assola o Brasil. Instaurado pela violência do tráfico atlântico nasce no
interior dos nervos daqueles que foram escravizados. Estes, os chamados
“Negros”, deixam hoje de remeter única e exclusivamente aos genes da cultura
africana, e passam a referir à sua institucionalização enquanto padrão de vida e
à sua generalização ao mundo inteiro. Banzo diz respeito ao aprisionamento do
corpo numa lógica intemporal, produtora do corpo partido, afundado num buraco
onde perde-se de si mesmo e instala-se na espera que o si retorne. Banzo não é
saudade da terra, tampouco nostalgia ou melancolia que ruminam a experiência
ideal de um passado perdido. Banzo é expropriação do corpo, produtora dos
despossuídos, dos sem-voz: diminuídos na sua potência de agir. Na atualidade o
seu trauma pode apresentar-se nos delírios de atos, no qual o banzo
108
subitamente se repete, grita e cava mais profundamente o seu buraco por meio
das ações rompantes dos corpos mudos, destituídos na sua potência de agir.
Banzo, entidade viva que se inscreve nas paisagens de cá e nos corpos
dos que aqui vivem. Padrão vibratório que atravessa interiormente diferentes
materialidades do mundo, criando uma película que recobre os trópicos: “Cada
latitude tem sua marca, cada clima sua cor” lança F. Sigaud a epígrafe de seu
livro, frase emprestada de Cabanis. Aqui permitimo-nos continuá-la: e cada
paisagem a sua emoção111...

111
“Em Bergson, a emoção é colorante ou musical, qualificando o todo de uma experiência:
subitamente, uma nova ‘nuance’, nesse sentido, ela é sempre imediatamente estética.” In:
LAPOUJADE, David. Potências do Tempo = Powers of time; tradução Hortência Santos
Lencastre. São Paulo: n-1 edições, 2013 (série future art base), p. 41. “A emoção é a síntese
dos movimentos da sua vibração interior. Ela não é movimento em si, ou então só quando
acompanha ou prolonga o movimento daquilo que está sendo feito de outro modo. Ela é um
movimento virtual que ultrapassa o movimento real do mundo.” Ibid, p. 43.

109
Experimentações Audiopsicográficas

Do ponto de vista daquele que ouve referimo-nos aos sons que estão em
conexão com a retenção, o aprisionamento, o abismo, a colonização, o
desapossamento e os atos súbitos. Do ponto vista daquilo que se dá a ouvir,
procuraremos repetir, atuar de corpo inteiro (voz e movimento), produzir
múltiplos sons através da invenção de movimentos corporais-vocais que
convoquem estados no corpo, na sua condição de retido, de aprisionado, de
abismado, de colonizado, de expropriado, de desapossado e em atos súbitos.

#1 Colocaremos em ação o movimento da glote e da respiração. Não nos


interessamos pelas vozes fechadas num regime comunicacional e verbal.
Queremos a experimentação tal como um bebê que se encontra entre a fala e o
acesso ao mundo. Aplicaremos exercícios vocais que dizem respeito ao corpo
amarrado, preso, desesperado e diminuído na sua potência de agir (corpo que
respira mal, respirações curtas e cadenciadas, próprio àquele que se encontra
em aprisionamento; o brônquio-asmático em sofrimento; inchaços e
estreitamento dos brônquios – sons interiores, tremores da garganta a dentro);
#2 Colocaremos em ação o esôfago, os sons guturais e os gritos dos
fantasmas que sussurram em nosso ouvido; os sons do Sertão, o aboio e os
sinos que tintilam no pescoço do gado;
Endereço da web para ouvir: https://soundcloud.com/mariana-
marcassa/sets/sons-de-banzo-experimentacoes-audiopsicograficas

#3 Convocaremos as falas e as vozes, num entrelaçamento de causos que


não tem importância em si mesmo, em seus significados verbais, linguísticos,
mas antes disso, que soçobram nos ritmos de vozes que dizem respeito às
ventosas da alma que lhes chupam a energia vital. Não se trata de ouvir cada
voz separadamente, interpretando cada indivíduo supostamente instalado no
seu banzo pessoalizado, mas de sentir uma película sonora, banzada, que
recobre todas essas vozes.
Endereço da web para ouvir: https://soundcloud.com/mariana-marcassa/falalas

110
#4 Excerto ::: O Canto do Cachorro

Diz-me do tremor que não para de ecoar em mim. Trata-se de um frio que
vem de dentro. Sinto-me invadida, mas ela continua: você não escuta?
Direciona-me a deitar na esteira. Solicita-me que eu manifeste o tremor no
corpo. Ao manifestá-lo inteiramente, pede que o movimento trêmulo expulse
seus sons gélidos. Ao gemer e tremer, entro em contato com esta cançãozinha
que atua desde há tempos. Saio com a vibração da quentura de uma certa voz.
Despeço-me.

Dias depois, sob um sono profundo acordo com um sopro nos ouvidos:
antigamente os cachorros sabiam cantar, agora já não sabem mais...

Na imediatez do fim dessas palavras ouço o canto do cachorro que


lamenta atrás da cabeceira. Encontro-me em estado de catalepsia projetiva.
Arrepio-me inteira, desde a orelha direita em direção à cabeça, pescoço, ombros
e braços. Tremo a gélida sensação que se faz dentro do meu próprio corpo. Os
dentes batem e meu corpo em tremor deixa escapar o lamento do canto do
cachorro que agora se faz em mim. Não é apenas um cachorro, mas uma
matilha deles. Tomo consciência de que o canto vem de mim mesma, numa
espécie de reverberação dos uivos que escuto em minha volta. Um choro
trêmulo, profundo, de frio, que produz o ranger das pregas vocais. Um canto
nômade, variante, expressando a voz do suor de um calor que não me esquenta.
Acordo por completo, suada, arranco a camisa molhada e retomo o sono.

De manhã cedo, com o corpo quente, fico pensando sobre o canto que os
cachorros já não conseguem entoar. Sinto-me traída: cachorros malditos que se
deixaram domesticar ao demasiado! Fixaram-se na figura do amigo do homem.
Submeteram-se às ridículas relações humanas e seus gestos padrões de uma
sociabilidade compulsória112. Hoje cachorro só sabe latir. E homem limita-se a
falar e compulsivamente.

112
Elizabeth Pacheco sobre o filme Deliverance, apresentado na abertura da defesa de sua tese
de doutoramento em Psicologia Clínica na PUC-SP: “a cena abre com o ator no intervalo da
111
Endereço da web para ouvir:
https://soundcloud.com/mariana-marcassa/o-canto-do-cachorro
https://soundcloud.com/mariana-marcassa

filmagem com o violão se espreguiçando e, após toda a sutil interação musicante entre o autista
e o ator (fora de personagem por estar no intervalo), a cena se desenrola com o devir alegre do
rosto do menino no banjo em imagem afecção de afeto genuíno,
capaz de contato, de troca, de co-moção e termina quando o ator propõe o aperto de mão,
comportamento recusado pelo rapaz autista que foi capaz de contato intensivo mas não aceita o
gesto padrão de uma sociabilidade compulsoria.” Ver/ouvir trecho do filme:
https://www.youtube.com/watch?v=Uzae_SqbmDE

112
VI. O CANTO DO BANZO

Mas, se voltarmos, por pouco que seja, às fontes


respiratórias, plásticas, ativas da linguagem, se
relacionarmos as palavras aos movimentos físicos
que lhes deram origem, se o aspecto lógico e
discursivo da palavra desaparecer sob o seu aspecto
físico e afetivo, isto é, se as palavras em vez de
serem consideradas apenas pelo que dizem
gramaticalmente falando forem ouvidas sob seu
ângulo sonoro, forem percebidas como movimentos,
[...] a linguagem da literatura se recomporá, se
tornará viva (Antonin Artaud).

Artaud é um grande audiopsicógrafo. Ele escuta em demasia e sabe a


importância de invocar a qualidade primordial da palavra: seus sons.
Artaud grita, Artaud berra, Artaud sussurra, mexe a língua e os lábios,
range a garganta, convoca línguas, evoca forças. Seus sons não dizem respeito
aos surtos de um psicótico. Eles dizem respeito à voz ela mesma. Artaud, tal
como Demetrio Stratos, convoca tudo aquilo que o canal de transmissão da
música, do canto, da fala e do teatro já não consegue transmitir.
Ambos solicitaram a voz numa via de contra-mão do significante e do
significado. Arrancaram a voz da clausura, liberaram-na das narrativas, fizeram-
na esquizo. Não se trata de surtos de um esquizo, mas de fazer da voz uma voz
esquiza, ela mesma nômade e errante. Esta é a parte mais importante da voz. O
seu canto, a sua música, a voz-música, tal como elaborou Janete El Haouli
sobre os malabarismos vocais de Stratos113.

113
HAOULI, Janete El. Demetrio Stratos: em busca da voz-música. DF, México: Conaculta, 2006.

Agradeço especialmente à Janete por me disponibilizar seus estudos, referências e percursos.


Sua presença nesta banca é mais que inspiradora, é também afetiva, de muita gratidão. Entrar
em contato com Demetrio Stratos através de El Haouli foi um presente, um encontro irreversível
em minha trajetória.
113
Não estamos sozinhos. São inúmeros os artistas 114 e pesquisadores que
afirmam conosco a potência da voz. Que reclamam sua pujança, que convocam
sua exploração por vias inauditas, que arrebentam com seu achatamento
encarcerado pela comunicação, pelo canto límpido e sem ruído, pela música
empastada, pelo teatro psicológico e representativo, pela “performance sem-
voz”.
Não podemos deixar de concordar com Artaud: “os orientais estão à nossa
frente em matéria de realidade”. O que Artaud constata “Sobre o teatro de Bali”
também, nós, reconhecemos. Mais que isto, provamos com nossa boca,
garganta e ouvidos, de cabo a rabo115, no andamento desta pesquisa. Passamos
a ouvir e a experimentar com os artistas da voz e seu território expandido:
mongóis, tuvanos, inuítes, árabes, pigmeus, búlgaros, ciganos, aborígenes,
tibetanos, indianos... Sabemos que o canto, a música e o teatro dos orientais
oferecem-nos uma realidade assustadora, “uma espécie de arquitetura espiritual,
feita por gestos e mímicas, mas também pelo poder evocador de um ritmo, pela
qualidade musical de um movimento físico, pelo acorde paralelo e
116
admiravelmente fundido de um tom”.
Parece que Artaud vê no teatro balinês gestos, imagens, signos, sinais que
a todo instante re-clamam os sons, suas modulações nervosas que se fazem
através de gritos, onomatopeias, atitudes das mais estranhas ao teatro europeu:
“Nosso teatro, que nunca teve ideia dessa metafísica de gestos, que nunca
soube fazer a música servir a fins dramáticos tão imediatos, tão concretos,
nosso teatro puramente verbal e que ignora tudo o que constitui o teatro, ou
seja, tudo o que está no ar do palco, que se mede com e se cerca de ar, que tem

114
Sugiro que o leitor escute com o auxilio de headphones alguns dos links disponíveis na
bibliografia para conhecer alguns artistas da voz que aqui nos referimos. Artistas e sonoridades
de estrema importância para o pensamento desta pesquisa.
115
De cabo a rabo; do começo ao fim; de “Cabo a Rabah”. Expressão utilizada durante o período
das navegações portuguesas, no qual era comum se dizer total conhecedor de algo de “Cabo a
Rabah”. Ou seja, conhecedor de todo o continente africano, da Cidade do Cabo ao Sul, até a
cidade de Rabah no Marrocos. A expressão sugere todo um percurso em direção ao oriente, a
rota de circulação total da África com destino às Índias e que aqui nos parece oportuno trazer,
uma vez que nosso trajeto foi desenhado pelas sonoridades “orientais” do começo ao fim desta
escrita.
116
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. – 3ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.57-58.

114
uma densidade no espaço – movimentos, formas, cores, vibrações, atitudes,
gritos –, poderia, diante do que não se mede e que se relaciona com o poder de
117
sugestão do espírito, pedir ao Teatro de Bali uma lição de espiritualidade.”
Trata-se de uma “metafísica extraída de uma nova utilização do gesto e da voz”,
“uma linguagem teatral exterior a toda linguagem falada e na qual parece residir
uma imensa experiência cênica ao lado da qual nossas realizações,
exclusivamente dialogadas, parecem balbucios”, eis para Artaud, o seu fascínio
com o teatro balinês e a partir do qual ele extrairá as questões primordiais para
inventar o seu «Teatro da Crueldade».
Um teatro que nada tem que ver com a construção de cenas sangrentas e
118
cruéis, tampouco de uma “busca desinteressada de um mal físico” . Trata-se
de uma crueldade impelida pelo rigor do acontecimento de uma dramaturgia
ligada ao “apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no
sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas” 119.
Neste teatro o ator é aquele que desempenha “um atletismo afetivo”. Um
atletismo que diz respeito ao esforço necessário do corpo para a extração de
forças impessoais na qual a respiração e o sopro exercem um papel
fundamental. Artaud não elimina a palavra de seu teatro. Ele destitui a sua
hegemonia, desorganiza a sua hierarquia, reconfigura a sua função e o modo de
convocá-la. A palavra é antes de tudo uma materialidade sonora que deseja a
todo instante fazer ouvir sua própria dimensão energética, vibratória, enquanto
ser de movimento: “deslocamento de ar que a sua enunciação provoca”.
As palavras interessam a Artaud enquanto fontes respiratórias e plásticas
da linguagem, considerando-as não apenas pelo que dizem gramaticalmente
falando, mas sob seu ângulo sonoro e, sobretudo, como movimentos.

“Com a ajuda de um martelo que ele batia sobre um grande tronco de madeira,
Artaud exercia cotidianamente o golpear de seu sopro, experimentando diferentes
ritmos, proferindo em cadência uma melodia improvisada, uma sinfonia de
vibrações sonoras. Esse jogo com a sonoridade das frases escandidas, esse

117
Artaud, p. 58-59.
118
Artaud, p. 118.
119
Artaud, p. 119.

115
sopro portador de golpes, essa energia singular que ele conseguia extrair de seu
corpo, essas inacreditáveis variações de altura e de timbre que ele obtinha com a
sua voz, essa intensidade de gritos minuciosamente controlados, tudo isso era
confundido pelos médicos do hospital psiquiátrico com delírio desenfreado,
histeria verborrágica, alienação mental. Tais médicos desconheciam que o teatro
do sopro e do grito era uma maneira de praticar metodicamente a sua teoria do
Teatro da Crueldade e, pelo viés de tais operações, reinventar a sua própria
anatomia. Tal como o «humor-destruição» da época do Teatro Alfred Jarry, a
potência física e vocal desse teatro do sopro e do grito, bem como a cenografia
vocal e sonora da emissão radiofônica Para Acabar com o Julgamento de Deus
(1947), são campos de força, territórios de expansão, de vibração e de
experimentação, nos quais operam a mesma reivindicação revolucionária de um
novo corpo humano. Corpo infinitamente potencial, com poder de explodir, em luta
contínua contra a arte, a organização do organismo, a representação, a língua
carcaça e deus. Reinvente para o homem um «corpo sem órgãos», liberte-o de
seus «automatismos», assim você irá rendê-lo à sua «verdadeira liberdade», diz
Artaud” 120.

Se os médicos do hospital psiquiátrico mantiveram seus ouvidos tapados


com cera – gesto de autoproteção que esquiva à escuta das vozes de Artaud –
tal como Ulisses evitando cair no canto das sereias, Demetrio Stratos fez do
contrário. Destampou os ouvidos, encantou-se com Artaud e todo sortilégio de
sons-espíritos que o acompanham: balbucios e vocalizações dos bebês,
ondulações, gritos, vozes do mundo modal, variações das mais estranhas,
ruídos, sussurros. Parece-nos que para Stratos, recuperar a voz na sua
dimensão performática e corporal é o mesmo que reinventar um corpo para o
homem, libertando-o dos automatismos, tal como queria Artaud121.

120
LAGE, André. O teatro segundo Artaud ou a reinvenção do corpo.
http://primeirosinal.com.br/sites/default/files/artigo-publicacao/O%20teatro%20segundo%20Artaud.pdf

121
Parece-nos evidente que Artaud configura-se como uma das referências para Demetrio
Stratos. Nos textos e documentários que tivemos acesso sobre o seu trabalho não encontramos
uma discussão dedicada exclusivamente a este cruzamento Artaud/Stratos. Mas algumas
passagens podem ser encontradas em documentários no qual se sugere um encantamento de
Stratos por Artaud e do fato importante do artista ter se dedicado a uma interpretação livre e
surpreendente de Como Acabar com o Julgamento de Deus. Sugiro que o leitor veja:
Suonare La Voce: https://www.youtube.com/watch?v=ZC3IWYPYQHI e
La Voce Stratos: https://www.youtube.com/watch?v=Y6bVxr4gr9g
As partes específicas de Stratos com Artaud encontram-se aqui: (Arrigo Lora Totino parla
delle registrazioni di Antonin Artaud)
https://www.youtube.com/watch?v=M3wqIM_ZR-M&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn7UVInsMmXXxfsDs7Q&index=47 e
(Demetrio Stratos e Antonin Artaud) https://www.youtube.com/watch?v=G6nGSNI--
qU&index=46&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn7UVInsMmXXxfsDs7Q
116
Escutem, cantem, musiquem a voz! Grita o grego-egípcio-italiano Demetrio
Stratos. Falecido prematuramente aos 34 anos, nos deixou imensa contribuição
para o campo da música, da voz e da performance. Talvez seja Stratos a maior
referência para o campo da voz-música. Sua investigação aguçada, cruzando
diversos campos do saber (psicanálise, música, performance, happening, voz,
fonoaudiologia) oferece-nos um material precioso a ser estudado. Apesar de
pouco conhecido no Brasil, foi aqui, através de Janete El Haouli que o seu
trabalho ganhou forma de livro, contribuindo para o seu reconhecimento em
outras partes do mundo. Mas é também através de outros artistas que Stratos
vive, atua, prolonga-se diferenciadamente: Meredith Monk, Sainkho Namtchylak,
Fátima Miranda, Diamanda Galas, Bobby Mcferrin, Joan La Bárbara, Phil Minton,
Audrey Chen e tantos outros performers, terapeutas da música, xamãs da
atualidade, músicos do mundo que buscam incessantemente a voz como
dispositivo capaz de arrebentar os nódulos de um corpo reduzido à fala e ao
canto “límpido”. De um corpo limitado porque aprendeu a abafar o ruído e a
“sujeira”, as oscilações e as variações, a respiração e os sussurros. Um corpo
que separa a palavra do som e a música da voz, ou seja, um corpo apartado da
dimensão sutil e espiritual, próprio das vozes e dos sons.
É verdade que em geral toda música constitui-se de um jogo entre o som e
o ruído. “O som do mundo é ruído, o mundo apresenta-se para nós a todo o
momento através de frequências irregulares e caóticas com as quais a música
trabalha para extrair-lhes uma ordenação (ordenação que contém também
margens de instabilidade, com certos padrões sonoros interferindo sobre
122
outros).” No entanto, podemos dizer que é exatamente este tipo de recalque
que a história da música ocidental tonal promoverá ao longo de séculos: um
horror ao erro, um bloqueio ao ruído, desviando o pulso e o ritmo coloridos dos
timbres, “como se fosse possível projetar uma ordem sonora completamente
123
livre da ameaça da violência mortífera que está na origem do som.” O Bel
Canto, a música clássica do ocidente em geral, farão um grande esforço para

122
Wisnik, p. 33
123
Wisnik, p. 42
117
homogeneizar e retirar as nuances microtonais que caracterizavam a afinação
modal.

“(...) a escuta de uma sonata qualquer ao piano demanda grande esforço não
consciente do ouvinte para corrigir interiormente as distorções da gama
‘temperada’, implicando um grau de fadiga subliminar que a música indiana, por
exemplo, desconheceria. Instaurado o novo quadro sonoro, a antiga crença no
poder dos modos passou a ser considerada mera superstição pela Europa
ilustrada e racionalista (esquecendo-se, no entanto, o fato de que a afinação
moderna consumava o fim de todos aqueles fatores que davam ao som modal o
seu poder de convicção). Esse som recuava no Ocidente para o domínio da lenda,
e o seu golpe final, a implantação de uma afinação por semitons iguais, que
assegurou o domínio completo da música tonal, é comparável a um verdadeiro
golpe de Estado (como chamou Carpeaux)”124 .

Tal recalque, comparável a um golpe de Estado, será questionado na


cultura ocidental somente a partir das experimentações musicais e das
performances do século XX. Este é o motivo de ser a música do mundo modal o
campo referencial e exploratório, tanto para os músicos experimentais em geral,
quanto, mais especificamente, para os que tratam da voz como instrumento
musical primevo. Não é por acaso que todos os artistas que trouxemos para este
estudo, desde Antonin Artaud, Demetrio Stratos à Audrey Chen125 (que deste
grupo é a mais nova) lançam-se para o mundo modal como campo de estudo e
referência. Para eles os cantos étnicos e ancestrais tornam-se um importante
lugar de pesquisa. É, exatamente, na lógica modal que se poderá ouvir e sentir,
incisivamente, certa dimensão sacrificial, ritualística e cósmica da música, na
qual o mundo é barulho e silêncio, o ruído está sempre no limite de invadir o
som, e as passagens entre um meio a outro se evidenciam através dos
microtons.
O mundo modal, isto é, aquele que engloba todas as tradições orientais
(chinesas, japonesas, indianas, árabes, balinesas, etc.), as ocidentais (música
grega antiga e dos povos antigos da Europa) e todos os povos da floresta
(América, África e Oceania), mantém uma relação com a música numa lógica
124
Wisnik, p. 93-94
125
Artista Chino-americana, nascida em 1978 nos EUA que trabalha com os limites da voz e do
ruído. Ultimamente vem desenvolvendo parcerias com Phil Minton: http://audreychen.com/

118
caósmica. Suas práticas musicais promovem-se invocando o universo para
constituir com ele cosmos, mas sem com isso perder a sua relação com o caos
(ruído, instabilidade e dissonância). É na relação com a prática do pastoreio nas
estepes da Mongólia que os nômades cantam o khöömii, ou o Canto Largo
Mongol126. É através destes cantos que se efetua e se expressa o gancho
paisagístico da copla pastor-gado-estepe. A raga indiana é o elemento mediador
entre a escala e a música improvisada. Quando os músicos indianos tocam,
procuram afinar não apenas o instrumento, mas a própria música com o
universo, segundo o período do dia e a estação do ano em que se está. O
maqam árabe dilata a alma e por isso deve-se cantá-lo na presença da pessoa
amada. Coloca-se em evidência a constante efetuação dos agenciamentos, da
imbricação com as forças do mundo. O fato dos harmônicos se constituírem
como o eixo no qual a música modal circula e rodeia, procurando
incessantemente a transparência desta operação diz muito da escuta, da relação
com o mundo e do modo de vida destes povos. Suas músicas produzem um
tempo pautado na afinação dos pulsos, “experiência da sobreposição infinita das
fases e defasagens, descoberto no coração do instante, no fluxo do improviso,
através dos meios criados por uma cultura que crê, simplesmente, que a
127
realidade do universo não é nada mais (nem menos) do que música” :

126
O khöömii é um tipo de canto bastante comum na região da Mongólia e de Tuva. É um canto
dos harmônicos no qual o cantor, ao manipular o espaço da cavidade bucal, consegue tornar
audíveis os harmônicos da nota fundamental. Este tipo de canto é bastante comum na Ásia
central e possui diferentes técnicas e expressões, conforme a região e a cultura do lugar. Na
Mongólia é praticada pelos pastores das estepes (homens e mulheres), na sua relação com a
paisagem e os animais do lugar. Os ritmos dos cavalos selvagens, os gritos de suas águias
domésticas, os uivos dos lobos, as vibrações dos camelos fazem parte da criação de suas
expressões sonoras (ver nota 128). O Canto Largo Mongol (Urtiin Duu) é um tipo de canto
tradicional e característico da Mongólia e da Mongólia Interior (China) e hoje integra o Patrimônio
Cultural Imaterial da Humanidade. Seu nome (largo mongol) é devido ao prolongamento das
sílabas de suas palavras que duram através de vibratos, oferecendo um tom profundamente
meditativo e filosófico. Um canto largo de cinco minutos, por exemplo, poderá ter apenas sete ou
dez palavras, seus temas variam entre a vida nas estepes, o pastoreio, a religião, o romance,
tendo em comum a expressão dos vales montanhosos e certa tranquilidade do estado de alma.
No filme Camelos Também Choram (2003) pode-se ver a prática do Canto Largo para o rito de
reconciliação entre a mãe camelo e seu filhote rejeitado no pós-parto. Boindeleger é
considerada a mulher cantante mais famosa no Canto Largo Mongol.
Ver documentário: https://www.youtube.com/watch?v=QOFzLEzJYzk

127
Wisnik, p. 91-92.
119
“As melodias participam da produção de um tempo circular, recorrente, que
encaminha para a experiência de um não-tempo ou de um ‘tempo virtual’, que não
se reduz à sucessão cronológica nem à rede de causalidades que amarram o
tempo social comum. Essa experiência de produção comunal do tempo (estranha
à pragmática cotidiana no mundo da propriedade privada capitalista) faz a música
parecer monótona, se estamos fora dela, ou intensamente sedutora e envolvente,
se entrarmos na sua sintonia. É difícil descrever o modo como se produz a
circularidade temporal nas músicas modais: isso se faz através do envolvimento
coletivo e integrado do canto, do instrumento e da dança, através da superposição
de figuras rítmicas assimétricas no interior de um pulso fortemente definido, e
através da subordinação das notas da escala a uma tônica fixa, que permanece
como fundo imóvel, explícito ou implícito, sob as danças da melodia. A
circularidade em torno de um eixo harmônico fixo é traço próprio do mundo modal,
e diferenciador em relação ao mundo da música tonal – percebê-la é pedra de
toque que introduz a uma outra experiência do tempo musical” 128.

No seu livro O som e o sentido, Wisnik nos traz belíssimos trechos do


estudo de Marius Schneider, “o estudioso mais informado sobre o lastro mítico
129
do mundo modal, que ele estudou nas mais diferentes tradições” .
Sustentando que todas essas cosmogonias têm um fundamento musical
(acústico), Schneider afirma ser o sopro o próprio ato do criador. Um som saído
do Vazio, “produto de um pensamento que faz vibrar o Nada e, ao se propagar,
cria o espaço”.
Ora, mas não estaria nessa cosmogonia a origem da noção de sopro
criador e espacializante do Teatro da Crueldade de Artaud, ou o poder da voz e
da respiração nos trabalhos de Stratos, ou ainda, o OM mantra dos monges
tibetanos que faz vibrar e ressoar a gênese do mundo?

“Então ele sente sua força se elevar ao longo da coluna vertebral. Seu sopro
sonoro sobe por seus canais interiores, dilata seus pulmões e faz vibrar seus
ossos. Assim transformado em ressoador cósmico, o homem se (in)veste como
árvore que fala. Essa força sonora tomará assento na sua pele ou no seu
esqueleto, se o sacrifício tiver sido total. Então ele não será mais que um
instrumento entre as mãos de um deus, e seus ossos, ainda impregnados de sua
força sonora materializada, constituirão amuletos preciosos entre as mãos de

128
Wisnik, p. 78
129
Wisnik, p. 37.

120
seus filhos. Sua parte imortal (o som fundamental de sua alma) se encaminhará
para a Via-Láctea. Mas logo que ele tenha conseguido passar o ponto perigoso
situado a oriente, entre Órion, Gêmeos e Touro, onde os astrólogos situam a
laringe do mundo, ela se incorporará ao coração dos mortos e participará de seu
canto na caverna de luz que lança o ovo solar e o fixa sobre o chifre do touro
primaveril. A laringe do mundo é a caverna de luz, a garganta aberta dos deuses
que, a cada primavera, renova a ação do abismo primordial abrindo suas portas
ao sol que sobe como uma árvore, um ovo resplandecente ou um crânio cantante.
E é esse crânio que enuncia novamente o mundo através de uma música, cujos
raios ressoam primeiro como a sílaba OM [...] Ora, para emitir esse sombrio canto
dos começos, destinado a se clarear cada vez mais, foi preciso que os lábios do
cadáver vivo se arredondassem para formar o círculo O, símbolo da saída da
caverna de ressonância de onde sai o sol a cada primavera para renovar a
substância sonora de tudo o que existe”.130

É notável que para tais concepções o corpo é um aparelho de som


poderosíssimo. À guisa de exemplo, pensemos nos cantos dos nômades da
Mongólia, nos quais existem diversificados modos de se fazer ouvir os
harmônicos da nota fundamental131. Ouvi-los é de se volver pasmado,
estupefato. Escutar o canto de dois ou mais tons em simultâneo proferido por
uma mesma garganta, é ouvir uma polifonia de vozes que saltam e atravessam
um mesmo ser, é escutar uma única voz povoada de múltiplas vozes,
convocando naquele que ouve um intenso campo vibratório. Nesta via
exploratória, se o corpo é um poderoso aparelho de som, a voz é o seu maior e
melhor instrumento.
Meredith Monk em Notas sobre a Voz132 ao expor a perspectiva da voz em
seu trabalho, afirma a todo instante a dimensão intensiva de que ela é portadora:
“ferramenta para descobrir, ativar, lembrar, desvelar, demonstrar uma

130
Schneider apud Wisnik, p. 39.
131
Dentre todos os estudos sonoros que fizemos pelo youtube, encontramos um músico
estadunidense que postou sete diferentes cantos dos harmônicos comuns à região da Mongólia
e de Tuva.
Sugerimos ouvi-lo a nível didático (Seven Styles of Overtone Singin):
https://www.youtube.com/watch?v=7zZainT9v6Q
Há também este pequeno vídeo no qual um mestre mongol expõe alguns dos diferentes modos
do canto Khöömii: https://www.youtube.com/watch?v=NNVrmW0VL2I
Para conhecer mais sobre os cantos de Tuva e da Mongólia sugerimos que o leitor percorra as
indicações dos links que se encontram na bibliografia. Ver nota 123.

132
Monk, M. (1976) Notes on the voice. In Painted Bride Quarterly, Vol. 3, Nº. 2, pp. 13-14.

121
consciência pré-lógica, primordial”, um “meio de tornar-se, retratar, corporificar,
encarnar outro espírito”. A voz que lhe interessa é aquela que “dança tão
flexivelmente quanto a coluna”, que traça uma “linha direta para as emoções.
Todo o espectro da emoção. Sentimentos para os quais não temos palavras”,
arrastando-nos para a composição de uma “paisagem vocal”, mostrando-nos
caminhos cosmológicos sobre si e o mundo. “O corpo da voz, a voz do corpo”
como “manifestação do self”, de “persona ou personas”.
Se o trabalho de Meredith Monk convoca um companheiro (o instrumento
acompanhante: órgão, piano, taça etc.) é para produzir padrões repetidos, ruído
contínuo, inventar um tapete, “uma tapeçaria de som para que a voz possa
correr sobre, voar por cima, deslizar por baixo, prender-se e entrelaçar-se”, fazer
viajar a voz como linguagem dela mesma, e com ela, engendrar um mundo
inteiro.
Neste mundo (e não falamos apenas do trabalho de Monk, mas de todo um
território experimental a que nos referimos), o que se dá a ouvir é o processo
pelo qual a voz arrasta diferentes forças interiores da terra, avizinhando-se com
distintas forças do mundo, num jogo constante entre o caos e o ritmo. Nele não
há como dizer que esta ou aquela voz, seja de um homem ou de uma mulher.
Por este motivo Demétrio Stratos se dizia andrógeno no seu trabalho musical.
Longe de se restringir à utilização de duas vozes, uma feminina e outra
masculina, Stratos ultrapassa os limites corpóreos e binários (homem x mulher,
voz-grito x voz-fala) e produz com a sua música um processo em devir (devir-
mulher, devir-criança, devir-animal, devir-inseto...).

"Stratos, então, parece apontar para um devir-voz, para aquela voz que canta,
sussurra, lamenta, produz diplofonias miméticas, extáticas, ‘estráticas’. Ouça
‘Mirologhi 1 (Lamento d'Epiro)’ e ‘Mirologhi 2 (Lamento d'Epiro)’, por exemplo, ou
‘Criptomelodie infantili’. Nessas peças percebemos a voz-pharmakós, uma voz de
fábula, a voz do cordeiro e a do lobo fundindo-se e, ao mesmo tempo,
individuando-se, em devir [sic. deviniendo] e estimulando o valor bruto do som
pronto para se transformar em música. (...) Uma vocalidade livre como a de
Stratos não remete à integridade de um sujeito que canta ou ao conceito reiterável
de canto, como se concebe vulgarmente. Ela é polifônica e ‘esquizofrênica’,
produtora de matéria desejante, que não está sujeita às leis lógicas da identidade.

122
Ela ‘retorna’ ao ‘pré’, superando e revelando um primeiro fluxo de codificação
sobre o corpo da Terra"133.

Não podemos deixar de admitir que haja neste processo um poder


impressionante de reorganização do funcionamento do corpo. Ouvir ou cantar
desde este ponto de vista é remexer com os padrões rítmicos que atuam
naquele que se habituou, aprendeu ou se encontra marcado por esta ou aquela
paralisia, resultado de fatores variáveis; agressivas composições de universos
incorporais, existenciais e de territorialização. De certo modo, todo trauma
funciona assim, inscreve-se no corpo como uma ferida que circula interiormente
promovendo naquele que está traumatizado a sua insistente repetição: a
atuação dos mesmos padrões de expressão e funcionamento que provocam
mais e mais danos e lesões. Para que os traumas escapem e encontrem saídas
diferenciadas, é preciso que algo aconteça de modo a mexer com todo o seu
sistema. Arrastá-lo inteiramente, desterritorializá-lo verdadeiramente para
constituir novos e diferentes territórios portadores de vida pulsante: o corpo na
sua potência de agir.
Se convocamos este pequeno percurso na companhia de alguns artistas
experimentais da voz, foi para que, primeiramente, pudéssemos situar o conceito
de canto que aqui nos interessa. Entendemos o canto como toda expressão
sonora vinculada aos ritmos, aos fluxos do corpo, à pulsação: à voz desatada da
hierarquia da fala e da comunicação. É, especialmente, com Artaud e Stratos

133
HAOULI, Janete El. Demetrio Stratos em busca de la voz- música, p. 101-102. Tradução livre
para português do trecho: “Stratos, entonces, parece apuntar hacia un devenir-voz, hacia aquella
voz que se canta sussurra, gime, produce diplofonias miméticas, extáticas, ‘estráticas’.
Escuchemos ‘Mirologhi 1 (Lamento d’Epiro)’ y ‘Mirologhi 2 (Lamento d’Epiro)’ , por ejemplo, o
‘Criptomelodie infantili’. En estas piezas, percibimos la voz-pharmakós, una voz de fábula, la voz
del cordero y la del lobo fundiéndose y, al mismo tiempo, individualizándose, deviniendo y
estimulando, valor bruto del sonido listo a transformarse en música. (...) Una vocalidad libre
como la de Stratos no remitirá a la integridad de un sujeto que canta o al concepto reiterable de
canto, como se concibe vulgarmente. Es polifônica y ‘esquizofrénica’, productora de materea
deseante, que no se somete a las leyes lógicas de la identidad. Ella ‘retorna’ al ‘pre’, superando y
revelando un primer flujo de codificación sobre el cuerpo de la Tierra”.
Para ouvir as peças de Stratos citadas neste trecho:
https://www.youtube.com/watch?v=6aSZNNluWS0
https://www.youtube.com/watch?v=gqEjq9qeMPk
https://www.youtube.com/watch?v=Lw89GUCVps4

123
que desejamos cantar o banzo: voz-música capaz de recuperar a voz na sua
dimensão performática e corporal, e de libertar o corpo-voz de seus
automatismos através do exercício de um atletismo afetivo. Um atletismo que se
efetua através do sopro, dos sussurros, dos assobios glóticos e de toda uma
variedade de sons capazes de inaugurar universos e, sobretudo, novos corpos.
Cantar o banzo é fazer com que os seus sons – ritmos repetitivos de sua
ferida que circulam interiormente – sejam reorganizados de outro modo, sejam
recompostos, vinculados desde outro ponto de vista no corpo, no espaço e no
tempo. É compor um diagrama de sons através da convocação das partículas
sonoras do trauma banzo que, numa espécie de arrastão, vai sendo levado a se
conectar com outras sonoridades, criando deste modo, um corpo-canto liberto
das amarras e dos nódulos de seu antigo padrão vibratório banzeiro.
Certamente o Canto do Banzo não nos oferece a única via de saída para o
trauma banzo. Mas, antes, apresenta-nos um modelo a ser experimentado. É a
sua lógica clínica e artística que interessa acima de tudo. É a sua operação
xamânica que importa: uma viagem conduzida pelo xamã na qual ele e seu
paciente foram capazes de habitar e transitar diferentes materialidades do
mundo, proporcionando naqueles que viajam (o xamã e seu paciente) uma
experiência singular e tão potente que no retorno desta travessia os viajantes já
não são os mesmos.

124
VII. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É preciso lembrar, a todo tempo, que esta pesquisa se coloca desde um


ponto de vista artístico e micropolítico face ao estado de coisas vigente no Brasil
de hoje. Não se trata, jamais, de negar as lutas políticas que vem ganhando
força na atualidade. As batalhas contra o racismo, o machismo, o xenofobismo,
a escravidão contemporânea, a violência contra a mulher, gays, trans, o estado
de exceção que vivenciamos cotidianamente proporcionam a esta pesquisa um
suco poderosíssimo que, do ponto de vista do embate de forças, rebate no corpo
levando-nos a pressentir a importância de se repensar o afeto banzo em pleno
2016. É justamente por sofrer os efeitos de um trauma instalado pela violência
do primeiro capitalismo – configurando-se hoje numa espécie de vida
“escravocrata contemporânea” misturada com uma lógica ditatorial velada e
perversa – que pinçamos o banzo como um afeto primordial da invenção do
Brasil e que desde então tem feito parte de nossas vidas reverberando-se por
vibrações que, todavia, nunca deixaram de atuar. É a partir do banzo sofrido na
pele imediata dos milhares de escravos trazidos da África; da violência do tráfico
transatlântico e sua lógica escravocrata, que podemos pensar seus efeitos ao
longo destes séculos, e mais especialmente, em como este trauma banzo ainda
ressoa em nossos corpos, criando uma película que recobre “os trópicos” e diz
respeito a todos (brancos, negros, índios, mulheres, homens, crianças, latinos,
europeus, etc.). Pois não nos é possível pensar este banzo (tanto o primeiro
banzo, o dos escravos, quanto o banzo contemporâneo) sem considerar todos
que deles participam.

Se não trouxemos uma discussão sobre a vida urbana na Paisagem Banzo


que descrevemos no segundo capítulo desta tese, foi por entender que os
modelos de cidades que temos no Brasil atual são nada mais, nada menos, que
fratura exposta de uma ruralidade estranha. Quem habita as grandes cidades se
não uma grande quantidade de emigrantes vindos dos sertões? Quem,
especialmente, se presta à mão de obra mais barata, edificando prédios,
limpando ruas e casas, fazendo o serviço mais duro, absolutamente necessário
125
a um sistema que visa à produção de trabalhos cada vez mais imateriais? Não
seriam os “sertões” quem nos oferecem ver, crua e nuamente, as
monstruosidades ambientais em curso e um projeto de melhoria de vida das
pessoas oferecendo-lhes mais dinheiro para consumo ao invés de aprimorar (pra
não dizer implementar) o saneamento, o abastecimento de água, saúde,
transporte e educação primária?
Talvez pudéssemos dizer que há no Brasil de hoje dois grandes modelos
de cidade: a (urb)ruralidade Barretos que se orgulha da maior festa de peão de
boiadeiro brasileiro134 – cowboys com seus Land Rovers esburacando ruas e
ostentando a operação “agro-indústria-por-todo-lado” – e o puxadinho ABC que
cria descontroladamente inúmeras favelas atraídas pelas grandes indústrias;
urbanidades que a tudo recobrem, concretos que solapam os verdes das Matas
gritando e saltando pelas fendas do alcatrão rachado. Quem sabe também
Parauapebas (PA), a cidade que come a Terra e carcome a vitalidade da
Amazônia que grita. Literalmente um buraco nu e cru na cratera da terra no qual
seus habitantes-mão-de-obra equipam seus carros com aparelhos de som
potentíssimos; abrem o porta-malas e dançam ao som do sertanejo universitário.

134
Outra vertente, numa espécie de resistência à lógica agro-indústria-por-todo-lado, temos
anualmente no Brasil o festejo da Missa no Vaqueiro. A festa completou 45 anos de existência
em 2015 e é o maior evento da cultura sertaneja no país. Realizada em Serrita, cidade do sertão
pernambucano, tem como seu principal motivo a celebração da morte do vaqueiro Raimundo
Jacó, conhecido como o melhor vaqueiro do sertão. Além de bom vaqueiro, Raimundo Jacó
também é conhecido e reverenciado por ter tido boa índole ao longo de sua existência. Vítima de
um assassinato sangrento (em 1963) por motivo de inveja, uma vez que sua fama já era o de
melhor vaqueiro da região, o caso levou inúmeros vaqueiros do sertão a se organizarem sete
anos depois de sua morte, em 1970, para uma celebração religiosa no intuito de não se deixar
esquecer tal injustiça (a morte é fruto de um delírio de ato súbito, no qual o assassino chega de
tocaia e o ataca pelas costas com violentos golpes de pedra na cabeça). Desde então, a missa
vem acontecendo todos os anos num encontro de quatro dias nos meses de julho. Além da
missa proferida no quarto e último dia da festa, acontecem também shows de música sertaneja
raiz, apresentações de aboio (canto típico de vaqueiro quando em trabalho com o gado), disputa
(com premiações) de vaquejada com pega de boi (nesta disputa os vaqueiros refazem a pega de
boi como se praticava na caatinga tempos atrás). Estima-se a presença de 800 a 1000 vaqueiros
durante a missa e 70 mil pessoas frequentando diariamente o evento. A música A Morte do
Vaqueiro (sugerida como link para ser ouvida no final do capítulo Paisagem Banzo) foi composta por
Luiz Gonzaga em 1963 como forma de protesto pela morte de Raimundo Jacó, seu primo, crime que
até hoje não foi solucionado. Podemos pensar a canção de Luiz Gonzaga como uma música que
arrasta e faz vibrar as partículas do banzo que se encontram neste acontecimento.
Para melhor compreensão da dimensão do evento, ver o filme Missa do Vaqueiro:
https://www.youtube.com/watch?v=3XvFUynEVu4

126
Enquanto todo este movimento se faz, outros vivem São Paulo e Rio de Janeiro
classe-média como prolongamentos de uma Europa mais selvagem e menos
civilizada em curso desenvolvimentista135. Portanto, convocar a Paisagem Banzo
de um Brasil “profundo” é entender que é deste “profundo” que tudo sai, é a
partir dele que o banzo cobre, recobre, abafa e assola nossas vidas.

É neste mesmo sentido que se aponta a necessidade de diferenciar o


banzo da melancolia ocidental. Atrelar o banzo à melancolia é, igualmente, viver
no Brasil tendo como referência e modelo deste país as cidades de São Paulo e
Rio de Janeiro. Ambas as lógicas solapam e denegam o que já havia sido
denegado com a invasão das Américas. Uma sobreposição de modos de vida e
suas mentalidades imposta pelo projeto civilizatório da Colonização, conferindo
ao banzo e ao Brasil um espaço sempre mínimo daquilo que realmente são: o
Brasil opera engrenagens muito mais complexas e maiores que suas cidades
“litorâneas” nos oferecem ver em cartões postais. O banzo é um afeto em alto
grau mais violento que aquele referido enquanto modalidade “selvagem” da
melancolia ocidental.

Se recorremos à filosofia para diferenciar o banzo da melancolia foi por que


encontramos na discussão temporal do funcionamento do corpo uma ferramenta
que não se fixa às dicotomias que poderiam recair na demonização do
pensamento ocidental (que todavia somos) e na romantização de uma suposta
brasilidade própria ao banzo. Pensar o corpo em termos temporais liberta-nos de

135
Outro dia nos espantamos com a imagem publicitária impressa nas sacolas de papel de um
dos supermercados classe média-alta que temos na cidade de São Paulo. Numa espécie de
identificação com o projeto civilizatório ocidental, o Casa Santa Luzia criou para si a imagem de
um mercado que se encontra numa via tranquila, frequentado por pessoas de boa grife, com
uma ciclovia passando a sua frente na qual seus consumidores usam modelos Ceci com
cestinhas para transportar seus produtos enfeitados por buquês de flores. Grande invenção de
uma imagem que no seu conjunto sugere uma São Paulo “santa paz”, de estética limpa, bonita,
com jardins especialmente desenhados e povoada por pessoas “civilizadas” que utilizam
tranquilamente bicicletas como meio de transporte. Ainda que pareça óbvio, cabe dizer que tal
imagem está longe de representar São Paulo, para dar um exemplo, os grandes jeeps de seus
consumidores na região dos Jardins estão mais para o atropelamento e a intolerância das
bicicletas do que para o seu uso como meio de transporte. Percebe-se, entretanto, uma grande
contradição; na sua realidade o projeto de Brasil em curso está mais para EUA do século XX do
que para a Europa atual em decadência.

127
muitas armadilhas e nos coloca frente a um problema de ordem clínica; o modo
em que se vive o tempo em cada patologia é revelador de um processo de
constituição de sua subjetividade: do contexto histórico e social que se insere,
acompanhado de inúmeras referências, universos, dramas, fantasmas e
contornos produzidos por esta ou aquela patologia em dado contexto.

Certamente a parte que tivemos maior dificuldade (e provavelmente a mais


solta de toda pesquisa) está na ousadia de buscar pensar em como o trauma do
banzo ainda ressoa em nossos corpos através de uma lógica que tende ao
regime pós-significante. Poderíamos puxar muitas linhas para tal
problematização, e certamente muitas estão por vir após a defesa da tese. O
fato é que optamos deixar acontecer “línguas soltas”, misturando vozes,
diferentes estilos de escrita num mesmo capítulo, esforçando-nos para
apresentar minimante àquilo que se pressente do banzo hoje, e mais
especificamente, de como seu trauma ressoa em nossos corpos. Não se trata,
jamais, de diminuir a dor e a violência impelida nos corpos dos escravos, mas de
entender que foi através de tamanha violência que se criou um trauma que vem
atuando, de diferentes modos e graus, desde o seu acontecimento. Se este
trauma vibra e atua desde então, pensamos por isto viver num entre, no qual,
esta vida que tem vindo a se produzir é fratura de um mesmo buraco. A
engrenagem que está em operação é a mesma e diz respeito a um
funcionamento que “embota o afeto sem prejudicar a racionalidade” resultando,
por exemplo, na lógica dos atos súbitos que não agem, mas repetem o abismo
do corpo aprisionado. Se o entre do corpo aprisionado do banzo do escravo tem
que ver com o sofrimento da expropriação (de um corpo esquecido de si e à
espera que o si retorne – pois, aprisionado na condição de coisa, já não se
encontra em condições de redesenhar sua cartografia); por outro lado, o entre
do trauma banzo que vem se repetindo ao longo destes séculos, diz respeito a
um viver na temporalidade do abismo, experiência criada pela fratura do
“primeiro banzo” e que vem cavando um buraco cada vez mais fundo ao passo
que este trauma ecoa, ressoa e vibra, tal como o som, nas materialidades do
mundo.

128
Sintonize a sua TV no conhecido programa do Datena e você perceberá as
manobras mais bizarras de manipulação e sensacionalismo barato que as
mídias exercem sobre temas tão cruéis e sangrentos que perpassam nossas
vidas. Violências de atos súbitos que pululam a cada minuto e parecem gritar a
existência de uma vida que está corroída, sem saber ao certo como expulsar o
desespero em que se encontra o corpo aprisionado pelas vias sem saída.
Isso sem falar do ódio que recobre o nosso país nos últimos tempos,
promovido pela mídia associada às forças policiais, políticas, judiciais e
econômicas que exercem golpes manipuladores, perversos, pra não dizer
diabólicos, colocando em xeque nossa dita democracia. Parece que um embate
entre a lógica Casa Grande e Senzala tem vindo a se expressar com muita força
nos últimos dias. Os argumentos de ódio contra o PT, à presidenta Dilma, à
corrupção (e junto disto toda uma variedade do insuportável, tal como o direito
de cotas para negros e estudantes de escolas públicas) evidenciam um fundo
racista e preconceituoso que poderíamos dizer serem resquícios de uma
“colônia” que se identifica com o dominante. Parece-nos que tal ódio transparece
a insuportabilidade das classes dominantes no contato real com as classes
subalternas. Enquanto os lugares estavam demarcados o convívio se pautava
pela “cordialidade”, a partir do momento que os cargos e os espaços passam a
ser menos definidos por questões de classe ou de “raça” o ódio se levanta em
atos súbitos para a destruição do Outro. Não queremos defender a qualquer
custo o atual governo e o partido dos trabalhadores. Sabemos da urgência de se
recriar o sistema político brasileiro, e neste sentido, balançar entre o “histerismo
do ódio contra os ditos de esquerda” e a “a defesa do atual governo acima de
tudo”, para nós é igualmente patinar na mesma lama. É como nos alerta Suely
Rolnik sobre a evidente derrocada das esquerdas no continente sul-americano
(mas também em âmbito internacional): “o marco desta lógica não poderia ser
de outra maneira e, ademais, porque graças a esta situação podemos
reconhecer claramente que temos que nos deslocar da micropolítica dominante,
a micropolítica reativa do inconsciente colonial capitalístico que comanda o
136
sujeito moderno que, todavia somos” .

136
Una conversación con Suely Rolnik (Aurora Fernández Polanco / Antonio Pradel). Re-
visiones, revista de arte y pensamiento visual contemporáneo, indexada, bilíngue. # Cinco –
129
É exatamente por entender a necessidade de atuar no campo micropolítico,
intencionando deslocar a “micropolítica reativa do inconsciente colonial” que esta
tese se fez. Sendo, portanto, o nosso campo de atuação a arte, levamos a cabo
(desde o inicio) uma perspectiva artística, performática e sonora; procurando
inventar meios de elaborar e praticar no corpo tais problemáticas.
O banzo chegou a nós com um impacto especialmente sonoro (e dissemos
isso em primeira pessoa no capítulo que abre esta tese). Ao ouvir a sua palavra,
na sua dimensão sonora, um bloco de sensações nos colocou frente a frente
com sua ferida: lugar de nebulosidade que indicou sua existência e sua
importância ao mesmo tempo em que um estado de sem-voz novamente se
instalou em nosso corpo. Ademais, foram inúmeras vezes que o som da palavra
banzo instaurou um desconforto naqueles que o ouviam. O som do banzo e a
sua relação com o sem-voz se fez presente desde o início; seja em nosso corpo,
naqueles que o ouviam ou nos sintomas do escravo que tendiam à mudez e à
apatia quando banzado. Levamos a sério esta relação ao percebermos que este
afeto vibra de modo a calar a voz. A pergunta “quais sons o banzo produz e
como ouvi-los?” nos fez farejar como possibilidade de escuta os ruídos e os
movimentos glóticos deste banzo que impede a fala. O aboio do vaqueiro do
sertão foi o nosso primeiro investimento sonoro – mais uma vez o oeste nos
oferecendo pistas – sabíamos sem ao certo saber que o aboio tinha algo de
oriental em sua vibração e, portanto, algo de um ruído dolorido e profundo que
poderia dizer muito sobre os sons do banzo que nos investia. Nosso faro foi
certeiro e do aboio saltamos para o oriente: do vaqueiro do sertão fomos para os
pastores nômades da Mongólia. Foi, portanto, aqui que um encontro se deu,
lançando-nos para a voz – e não mais para a fala – como matéria intensiva,

2015. Universidad Complutense de Madrid, Plan Nacional del Ministerio de Economía y


Competitividad del gobierno de España; http://www.re-visiones.net/spip.php?article128 .

130
potente, farmacológica e clínica de produção. Encontrar o som dos harmônicos
nos abriu um mundo bastante vasto, livre e potente; o mundo modal, os sons do
oriente e suas práticas de pastoreio, espirituais, mágicas e xamânicas. A partir
daqui saltamos em galopes, enganchamos a cada dia em novos artistas e
sonoridades. O trabalho e o pensamento de Demetrio Stratos nos trouxe uma via
possível de elaboração, tanto clínica quanto artística, para o nosso problema.
Com Stratos percorremos um universo musical bastante variado tendo em
comum a proposta de se recuperar a Voz na sua dimensão ativa, performática e
clinica.
A Voz e o seu canto foi um dispositivo que encontramos para pinçar o afeto
banzo micropoliticamente, exercitando-o corporalmente e propondo um possível
deslocamento de seus nódulos. Neste sentido, é verdade que as
experimentações que propusemos em Audiopsicografias é também voz-música;
mas se optamos deixá-las como extração dos sons do banzo foi para afirmar um
processo artístico que ainda se faz e no qual nos é imprescindível tais
experimentações como parte de elaboração e construção de nossas
performances que serão criadas a partir dos problemas que esta tese convoca.

No entanto, há sempre um zumbido que fica nos ouvidos e diz respeito a


uma pergunta que qualquer cidadão preocupado em reconfigurar a cartografia
dominante nos faria: será que um trabalho de arte ou uma abordagem
micropolítica de um trauma redesenha alguma coisa? Será que este tipo de
operação é suficiente e tem impactos reais na vida e nos corpos dos viventes?
Particularmente não acreditamos que a arte, sozinha, vai mudar o mundo,
mas que suas engrenagens são parte indispensável na contribuição da criação
efetiva de outras e novas mentalidades:

“Na verdade, os meios de mudar a vida e de criar um novo estilo de atividade, de


novos valores sociais, estão ao alcance das mãos. Falta apenas o desejo e a
vontade política de assumir tais transformações. É verdadeiramente indispensável
que um trabalho coletivo de ecologia social e de ecologia mental seja realizado
em grande escala. Essa tarefa concerne às modalidades de utilização do tempo
liberado pelo maquinismo moderno, novas formas de conceber as relações com a
infância, com a condição feminina, com as pessoas idosas, as relações
transculturais... A condição para tais mudanças reside na tomada de consciência

131
de que é possível e necessário mudar o estado de coisas atual e de que isso é de
grande urgência. É apenas em um clima de liberdade e de emulação que poderão
ser experimentadas as vias novas do habitat e não através de leis e de circulares
tecnocratas. Correlativamente, uma tal remodelação da vida urbana implica que
transformações profundas sejam operadas na divisão planetária do trabalho e
que, em particular, vários países do Terceiro Mundo não sejam mais tratados
como guetos de assistidos pelo Estado. É igualmente necessário que os antigos
antagonismos internacionais se atenuem e que se siga uma política geral de
desarmamento que permitirá, em particular, transferir créditos consideráveis para
a experimentação de um novo urbanismo.
Deveremos esperar transformações políticas globais antes de empreender tais
‘revoluções moleculares’ que devem contribuir para mudar as mentalidades?
Encontramo-nos aqui diante de um círculo de dupla direção: de um lado a
sociedade, a política, a economia não podem mudar sem uma mutação das
mentalidades; mas, de um outro lado, as mentalidades só podem
verdadeiramente evoluir se a sociedade global seguir um movimento de
transformação”. 137

Retomamos a ideia de Aquile Mbembe: estamos vivendo hoje um


processo o qual toda a humanidade subalterna tem se tornado Negro, colocando
em funcionamento os fantasmas, as histerias, o horror ao Outro como objeto
ameaçador que se deve proteger, combater e destruir; mas também por outro
lado o ressentimento, a raiva, o desejo de vingança daqueles que lutam contra
as injúrias e são mais e mais obrigados a sofrerem inúmeras humilhações; ou
seja, tudo aquilo que a ideia fictícia de raça inventa e produz. Face a esta
constatação, mais uma vez perguntamos: qual a importância de convocar um
afeto, chamado banzo, nos dias de hoje? Porque pensá-lo agora, trazendo-o
para o contexto do Brasil atual?
Ora, para nós, só nos resta dizer: Se o “Negro” é o devir do mundo, o
Banzo é o seu afeto por excelência que urge ser deslocado para a veiculação de
um novo e outro sistema de subjetividade. Uma nova cartografia a partir do qual
o Banzo e o Negro se posicionarão numa postura de quebra frente às
petrificações de seus afetos, angústias e inibições, configurando na criação de
outras e novas mentalidades.

137
GUATTARI, Félix. Caosmose, um novo paradigma estético, São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 174-
175.

132
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BEPPE DETTORI
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BOINDELEGER
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DAVID MOSS
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DEMETRIO STRATOS
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DENISE REIS
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DHAFER YOUSSEF
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DIAMANDA GALAS
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FÁTIMA MIRANDA
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IBRAHIM MAALOUF
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JOËLLE LÉANDRE
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MATTEO BELLI
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https://www.youtube.com/watch?v=80w97m9bj-
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SAMUEL BECKETT
https://www.youtube.com/watch?v=ZhzssmWVbr4&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn7UVInsM
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TANYA TAGAQ

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https://www.youtube.com/watch?v=wEk5odW6KGY&index=27&list=PLJJhQWi2VEA_r2
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TRAN QUANG HAI


https://www.youtube.com/watch?v=OkFtfPTq2cQ

SITE MÚSICOS DA VOZ (VÁRIOS)


http://instrumentovoz.blogspot.com.br/

MÚSICAS E CANTOS ÉTNICOS DO MUNDO MODAL

Xingu
https://www.youtube.com/watch?v=oDIqIorqh7o&index=13&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn7
UVInsMmXXxfsDs7Q

Baka Gbiné
https://www.youtube.com/watch?v=cATZe_jlc9g

Uganda
https://www.youtube.com/watch?v=_aSHRDjpoQ4&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn7UVInsM
mXXxfsDs7Q&index=22

Berber
https://www.youtube.com/watch?v=CY5qE36_TtA&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn7UVInsMm
XXxfsDs7Q&index=4

Malinké
https://www.youtube.com/watch?v=lVPLIuBy9CY&index=11&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn
7UVInsMmXXxfsDs7Q

Vanuatu Island
https://www.youtube.com/watch?v=pEgJhfWKq4A

Shamanic Chanting
https://www.youtube.com/watch?v=uwiLBKP3oeM&index=6&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn7
UVInsMmXXxfsDs7Q
https://www.youtube.com/watch?v=l7xC2CpcGfU&index=7&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn7
UVInsMmXXxfsDs7Q

Daiqing Tana
https://www.youtube.com/watch?v=UDNvu3RYmU8&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn7UVIns
MmXXxfsDs7Q&index=8

Mongólia-Tuva-Siberia-Altai
https://www.youtube.com/watch?v=iBNuVG3g7bM&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn7UVInsM
mXXxfsDs7Q&index=9
142
https://www.youtube.com/watch?v=gQUgtEBbPi4&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn7UVInsMm
XXxfsDs7Q&index=31

https://www.youtube.com/watch?v=drUshcx4zWw&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn7UVInsMm
XXxfsDs7Q&index=33

https://www.youtube.com/watch?v=bSmkgPz_aHA&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn7UVInsM
mXXxfsDs7Q&index=21

Canto Largo Mongol


https://www.youtube.com/watch?v=QOFzLEzJYzk&index=32&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn
7UVInsMmXXxfsDs7Q

Turko
https://www.youtube.com/watch?v=kNOs5v4Qukc&index=19&list=PLJJhQWi2VEA_r2zn
7UVInsMmXXxfsDs7Q

TERAPEUTAS DA VOZ E DO SOM

Espanha - Alicante:
http://www.sonidosquesanan.net/

França – Paris:
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Brasil – São Paulo:


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ANEXOS

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