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INÉDITO:

Um erro Tem uma coisa heróica nesse negócio


emocional de escrever. Às vezes, aquilo vira uma
guerra sua contra tudo e contra todos.
Leia trecho
E se não for assim não sai, cara.”
do novo romance
Reinaldo Moraes
de Cristovão Paiol Literário • 12/13
Tezza • 28
edição

rascunho.com.br
126

O jornal de literatura do Brasil desde abril de 2000 matheus dias

Curitiba, OUTUBRO de 2010 | próxima edição 1º de NOVEMBRO | esta edição não segue o novo acordo ortográfico

O que realmente me importa, ao escrever um livro, não é ensinar ou


entreter. É travar uma espécie de contato pessoal com o leitor. É plantar
a semente de um diálogo ou inquietação que continue pulsando e
frutificando em sua mente muito tempo após o término da leitura.”
Eduardo Giannetti • 4/6

foto: bel pedrosa | Arte: Ramon Muniz


outubro de 2010

07 10
RIBAMAR inocência
20
IRONWEED
23
EU ACUSO
José Castello Visconde de Taunay William Kennedy Emile Zola

C a rta s
: : rascunho@onda.com.br : :
QUE VENHA A TEMPESTADE Paul Bowles • A GUIMBA
Dilúvio editorial próxima Will Self • A MORTE EM VENEZA Thomas Mann •
O texto A política das estantes, de Claudia Lage
edição PAIOL LITERÁRIO Adriana Lisboa e Beatriz Bracher
(Rascunho 125), o artigo de Rodrigo Gurgel
sobre Joaquim F. dos Santos, mais a Conversa

literalmente : :
sobre depois, do Affonso Romano de Sant’Anna,
enfocaram, para mim, a santíssima trindade da :: marco jacobsen
literatura que mais religiosamente (me) convém
procurar, (re)ler e presentear a familiares, amigos
e deixar como legado bibliotecário: obras
deslumbrantes, criteriosa e apaixonadamente
garimpadas no dilúvio editorial; como filho ou filão
de vida, alguma fascinante documentação histórica
(nacional, estadual ou familiar), e o espírito santo de
uma seleção de registros pessoais, em prosa ou em
verso, da passagem microbiana por este planeta.
Elmar Joenck • Curitiba – PR

Na França
No Brasil, há um ano, procurei pelo Rascunho
em livrarias e bancas de Curitiba, São Paulo e Rio
de Janeiro, sem resultado. “Quase não vem”, “já
acabou”, “não temos recebido”, “é gratuito, sai
logo”, etc. Finalmente, tive a satisfação e a surpresa
de encontrar um exemplar na Biblioteca do Brasil na
França, na Casa do Brasil da Cidade Universitária de
Paris. Para mim, foi um grande prazer a leitura dos
artigos e textos literários de excepcional qualidade
num jornal “de verdade”, que se folheia e se
manuseia, que se leva na bolsa para ler no metrô,
por exemplo. Tomo a liberdade de escrever para
lhes dizer que as pessoas interessadas em literatura
brasileira terão, talvez, mais facilidade de acesso ao
Rascunho através de um exemplar em papel do
que numa pesquisa aleatória na internet. Para isso,
envio-lhes as coordenadas das duas bibliotecas de
literatura brasileira que freqüento e que recebem
visitas de estudiosos em geral, de curiosos e de
estudantes universitários. Espero que lhes seja
possível o envio sistemático da sua publicação a
:: translato : : eduardo ferreira
esses centros de cultura brasileira. Sugiro, caso a
despesa seja excessiva para o jornal, que se peça
financiamento ao Itamaraty — seria uma ínfima
parte do trabalho que lhes cabe na divulgação da Sobre uma antiga
tradução de Petrônio
cultura produzida no Brasil.
Regina M. A. Machado • Paris – França

S
Indispensável atyricon, de Petrônio, é O tradutor arrisca muito. dos protagonistas.
O Rascunho se tornou indispensável para quem certamente uma aventu- Ninguém devolve um vivo aos vi- A tradução, com sua ligeire-
gosta de literatura. Parabéns pela coragem ra tradutória, que mui- vos imaculadamente. Um pouco za, agudizou a atualidade do tex-
e apurado senso crítico das últimas edições. tos já afrontaram. Em de sangue há de jorrar — do origi- to — que parece não deixar nunca
Sobretudo, a que analisou a “literatura” da Fernanda muitas épocas, lugares e línguas. nal, do autor, do tradutor. A tra- de ser atual, talvez por tratar de
Young e daquela bela moça (Paula Parisot) que só o Inclusive, claro, no Brasil, em dução é um compromisso, sem- temas tão caros à humanidade de
Rubem Fonseca parece gostar do que ela escreve. mais de uma época. A obra latina pre um compromisso, no qual há todas as épocas. Se a religião de-
Eldes Ferreira • Campo Grande – MS oferece todos os grandes desafios que ceder muito em troca de algo genera em rito vazio, rapinagem e
que um tradutor pode temer ou incerto. Eis o compromisso: pre- superstição, se os novos ricos per-
desejar: enorme distância geo- feriu, o tradutor, trair os dois — seguem sua sina de ostentação e
gráfica, temporal e cultural; mes- tanto o autor como o vivo leitor superficialidade, permanece vivo,
cla de prosa e poesia; e, como o — a trair apenas um deles. Cada vivíssimo, o cerne da vida: o amor,
Envie carta ou e-mail para esta seção com nome
completo, endereço e telefone. Sem alterar o conteúdo,
próprio nome indica, a presença qual recebeu sua dose de aleivo- o vinho e o mais alegre e por vezes
o Rascunho se reserva o direito de adaptar os textos. contínua do elemento irônico. sia, ministrada com cuidado, re- ingênuo desatino — personifica-
As correspondências devem ser enviadas para: Satyricon é uma obra vasta, quinte e paixão. do, este, no trio de anti-heróis.
Al. Carlos de Carvalho, 655 • conj. 1205 resistente, contundente — e só por Que a tradução pareceu fruto A tradução, com seu fio agu-
CEP: 80430-180 • Curitiba - PR. isso atravessou os séculos. Vasta de um projeto. Não foi texto qual- çado, tornou o texto mais leve. E
Os e-mails para: rascunho@gmail.com.
não pelo tamanho, mas pela quan- quer encomendado a qualquer. também mais curto. O leitor, mes-
tidade de textos que gerou e conti- Houve cuidado e planejamento. mo ainda na década de 80, antes
nua gerando. Sobreviveu, mesmo Estudo e pesquisa, como con- portanto da internet, já resistia
mutilada, às calamidades do tem- vém. Carinho para com o leitor, aos textos longos. Mas tudo tem
po, quando muitos de seus coetâ- que, quando lhe falta a cultura, remédio, e muita coisa se pode
neos tomaram o desvio do olvido. se sente amparado nas notas de resolver na tradução. Leminski
Não conheço todas as tra- rodapé. Que, aliás, não só expli- poupou o leitor, em mais de uma
duções de Satyricon para o por- cam o texto, justificam escolhas, oportunidade, de encarar longos
tuguês brasileiro. Também não mas comentam e, até, servem de e, segundo o tradutor, tediosos
conheço o texto latino original. Li veículo para opiniões insólitas do poemas petrônicos. Um vivo aos
apenas a tradução de Paulo Le- tradutor — o tradutor como eter- vivos. Tampouco Encolpo supor-
minski (Brasiliense, 1985). Há ou- no intrometido, intrometendo-se tava os versos empolados de Eu-
tras, mais antigas e mais recentes. na pele do texto. molpo. Já carregava os ouvidos
Como todas as obras de Leminski, O texto escorre solto, emba- cansados, como hoje o leitor tem
trata-se de tradução com traço au- lado por doses cavalares de sexo, os olhos pregados de tanto o que
toral forte. A estratégia tradutória sátira e vinho, com linguagem ora há para ver e ler. Não tardou por
é explicitada de maneira franca: coloquial, ora vulgar, ora eleva- esperar o poeta chato, e mais ain-
devolver um vivo aos vivos. Con- da. Muda-se rápido de registro. A da chato quanto mais rico. Sofreu
torna o erudito versado em cultura leitura flui leve, animada pela li- fim de poeta: do alto de um ro-
greco-latina e busca, diretamente, cença que se concede o tradutor e chedo, o atiravam no mar — onde
o leitor contemporâneo. pela desbragada destemperança até morrer é doce.
outubro de 2010

:: vidraça : : luís henrique pellanda SIGA O COLUNISTA NO TWITTER: @lhpellanda 3

o jornal de
O nosso herói
literatura do brasil Divulgação

fundado em 8 de abril de 2000 A Kafka Edições, comandada pelo escritor


Paulo Sandrini, acaba de lançar a Trilogia de
Rascunho é uma publicação mensal
da Editora Letras & Livros Ltda. Alhures do Sul, reunindo três livros de Manoel
Rua Filastro Nunes Pires, 175 • casa 2 Carlos Karam: Fontes murmurantes (1985),
CEP: 82010-300 • Curitiba - PR
(41) 3019.0498 rascunho@gmail.com O impostor no baile de máscaras (1992)
www.rascunho.com.br
e Cebola (1997). Na orelha deste último, o
tiragem: 5 mil exemplares
escritor Joca Reiners Terron definiu: “Karam
ROGÉRIO PEREIRA quase sozinho é o nosso Richard Brautigan,
editor o nosso Kurt Vonnegut, o nosso John Barth,
o nosso Georges Pérec, o nosso Donald
luís henrique pellanda Barthelme. Ele é o nosso herói. Disso eu tenho
subeditor
certeza”. Karam nasceu em Rio do Sul (SC), em
ÍTALO GUSSO 1947, e mudou-se para Curitiba em 1966, onde
diretor executivo morreu, em 2007. Também é autor de Sujeito
oculto, Pescoço ladeado de parafusos e
ARTICULISTAS Comendo bolacha Maria no dia de São
Affonso Romano de Sant’Anna Nunca, entre outros. Quem quiser comprar os
Claudia Lage relançamentos da Kafka pode adquiri-los no site
Eduardo Ferreira
da editora: http://kafkaedicoes.com.br.
Fernando Monteiro
José Castello
Luís Henrique Pellanda
Luiz Bras
Luiz Ruffato
Raimundo Carrero

Os dez escolhidos Comunidade ibero-americana


Rinaldo de Fernandes

ILUSTRAÇÃO
Carolina Vigna-Marú Na última noite de agosto, foram anunciados os dez finalistas do Prêmio No México, a escritora e jornalista Marina Colasanti recebeu uma menção
Felipe Rodrigues
Portugal Telecom: A passagem tensa dos corpos, de Carlos de Brito e honrosa durante a sexta edição do Prêmio Ibero-americano SM de
Marco Jacobsen
Nilo Mello; AvóDezanove e o segredo do soviético, de Ondjaki; Caim, de Literatura Infantil e Juvenil, cujo objetivo é reconhecer autores que
Osvalter Urbinati José Saramago; Lar,, de Armando Freitas Filho; Leite derramado, de escrevam para jovens e crianças em qualquer uma das línguas faladas
Panzica Chico Buarque; Monodrama, de Carlito Azevedo; O filho da mãe, de na comunidade ibero-americana. A ganhadora deste ano foi a argentina
Ramon Muniz Bernardo Carvalho; Olhos secos, de Bernardo Ajzenberg; Outra vida, Laura Devetach, que receberá 30 mil dólares. Até agora, o único brasileiro
Rettamozo
Ricardo Humberto
de Rodrigo Lacerda; e Pornopopéia, de Reinaldo Moraes. Dos 54 pré- a vencer essa premiação, criada em 2005, foi Bartolomeu Campos de
Robson Vilalba finalistas, 38 receberam pelo menos um voto. Das dez obras classificadas, é Queirós.
Tereza Yamashita interessante observar que oito são brasileiras, oito são romances, dois são
volumes de poesia e seis são editadas pela Companhia das Letras. As outras
FOTOGRAFIA
editoras são a Rocco, a Objetiva, a Alfaguara e a 7Letras. O vencedor, Cultura e desenvolvimento
Cris Guancino
Michele Müller
que será anunciado no dia 8 de novembro, leva cem mil reais. O segundo Outra escritora brasileira a ganhar destaque internacional em setembro foi
colocado, 35 mil, e o terceiro, 15 mil. Os júri é formado por Selma Caetano, Ana Maria Machado, que ficou entre os agraciados pelo prêmio holandês
SITE Leyla Perrone-Moisés, Manuel da Costa Pinto, Benjamin Abdala Jr., José Príncipe Claus, entregue anualmente a 11 indivíduos ou organizações,
Vinícius Roger Pereira Castello, Alcides Villaça, Antonio Carlos Secchin, Cristovão Tezza, Lourival de diversos países e quaisquer modalidades artísticas, que tenham uma
Holanda e Regina Zilberman. atuação relevante no campo da cultura e do desenvolvimento.
PROJETO GRÁFICO
Rogério Pereira / Alexandre De Mari

PROGRAMAÇÃO VISUAL Jabuti comparado Bracher no Paiol Divulgação


Rogério Pereira
Um dia depois do anúncio dos finalistas do Portugal Telecom, a Câmara Em setembro, o Paiol
ASSINATURAS
Brasileira do Livro divulgou as listas de indicados ao 52.º Prêmio Jabuti. É Literário — projeto
Cristiane Guancino Pereira interessante comparar os candidatos das três categorias mais populares da promovido pelo Rascunho,
premiação — Romance, Contos e crônicas e Poesia — com os do Portugal em parceria com o Sesi
Telecom. Primeiramente, chama a atenção que nenhum dos indicados Paraná e a Fundação Cultural
ao prêmio luso-brasileiro seja contista ou cronista. Em relação às outras de Curitiba — recebeu dois
categorias, entre os candidatos a melhor romance, há quatro coincidências: convidados, os escritores
colaboradores
desta edição Chico Buarque, Bernardo Carvalho, Carlos de Brito e Mello e Rodrigo Adriana Lisboa e Reinaldo
Lacerda. Entre os poetas, repete-se a indicação da obra de Armando Freitas Moraes (leia a transcrição
Cida Sepulveda é escritora. Filho. Até o fechamento desta edição, os vencedores ainda não haviam sido dos melhores trechos desta
Autora de Coração marginal. anunciados (a divulgação está prevista para 1.º de outubro). conversa às páginas 12 e 13
desta edição). E a próxima
Cristovão Tezza é escritor. Autor de
O filho eterno, entre outros.
escritora a participar do

Fabio Silvestre Cardoso


Menos conservador evento já confirmou sua
presença em Curitiba. No dia 19 de outubro, às 20 horas, no Teatro
é jornalista.
Já a sexta edição do Prêmio Bravo! Bradesco Prime de Cultura mostrou ser Paiol — totalmente reformado, e que ganhou poltronas desenhadas pelo
José Renato Salatiel é jornalista muito menos conservadora. Seus três finalistas na área de literatura são designer de móveis Sérgio Rodrigues —, é a vez da paulista Beatriz Bracher
e professor universitário. os poetas Carlito Azevedo, com Monodrama, Fabrício Corsaletti, com (foto), autora dos livros Azul e dura, Não falei, Antonio e Meu amor
Luis Bravo é poeta. Autor de Tarja, Esquimó, e a romancista Carol Bensimon, autora de Sinuca embaixo (vencedor do Prêmio Machado de Assis de 2009 e finalista do Prêmio
entre outros. d’água. O anúncio do vencedor acontece no dia 25 de outubro. Jabuti 2010), dar o seu depoimento. A entrada é franca.
Luiz Horácio é escritor e
jornalista. Autor de Pássaros grandes
não cantam, entre outros.

Luiz Paulo Faccioli é escritor.


Autor de Trocando em miúdos.

Marcos Pasche é professor e


:: rodapé : : Rinaldo de Fernandes
mestre em literatura brasileira.

Márcia Lígia Guidin é professora


e editora.

Patricia Peterle é professora de


literatura italiana na UFSC.
Machado de Assis e o sadismo (6)
Renato Bittencourt Gomes é

C
escritor e críticio literário.
ontinuando a abordagem (procedimento médico para, por vez, compreende “ambas as coisas, ao marido, que procure agir como
Rodrigo Gurgel é crítico da CENA 7 de A causa meio de queima, destruir lesões, a afeição e o silêncio”, porém “não se fosse um pedido próprio, como
literário, escritor e editor da Miró secreta: Fortunato fun- cicatrizes, ou parar o sangramento se dá por achada”. Visto de outro se fosse uma coisa dele (de Garcia).
Editorial. Também escreve no blog da a casa de saúde, não de pequenos vasos). Algo que fun- modo, o silêncio de Garcia é ainda Ora, Maria Luísa, como foi dito
rodrigogurgel.blogspot.com. só para obter lucros, mas — e so- ciona como um índice importante por interesse: serve, não só para anteriormente, pela aproximação,
Ronaldo Cagiano é escritor. bretudo — pela satisfação de estar da cena mais cruel do conto — a preservar a amizade, mas também ou melhor, pela convivência, inti-
Autor de, entre outros, com os doentes. Até Garcia, ainda que logo virá, em que Fortunato a sociedade com Fortunato. CENA midade, já sabe quem é o marido.
Dicionário de pequenas solidões. atento aos movimentos do agora cortará e queimará as patas do rato. 8: É feita inicialmente uma refe- A “situação” dela, portanto, é a de
Sergio Vilas-Boas é jornalista, sócio, se surpreende com o de- Ainda na CENA 7 é dito que, pela rência a “um incidente” que, para alguém que vive um impasse: por
escritor e professor universitário. sempenho de Fortunato na casa “comunhão de interesses”, se aper- Garcia, desvela ainda mais a “situ- um lado, condoída, não aceita as
Autor de Biografismo, entre outros. de saúde, com a abnegação deste: tam os “laços de intimidade” entre ação” de Maria Luísa no casamen- experiências com os animais, e, por
“Garcia pôde então observar que a Garcia e Fortunato. Neste passo é to com Fortunato. O “incidente” é outro, se manifestar para o marido
dedicação ao ferido [Gouveia] da que o narrador traz duas informa- em seguida indicado: “Fortunato que está sofrendo por “tais expe-
rua de D. Manoel não era um caso ções importantes: 1) que Garcia metera-se a estudar anatomia e riências”, nutrirá o sadismo dele.
fortuito, mas assentava na própria descobre em Maria Luísa uma “so- fisiologia, e ocupava-se nas horas Maria Luísa, efetivamente, está so-

60
natureza deste homem. Via-o ser- lidão moral”; 2) que ele passa a se vagas em rasgar e envenenar gatos frendo muito. E a doença da alma
vir como nenhum dos fâmulos. Não “agitar” interiormente quando a vê e cães”. Impedido de fazer suas ex- começa a atingir-lhe o corpo — ao
recuava diante de nada, não conhe- (inclusive ao piano, tocando “umas periências na casa de saúde, pois ponto de o jovem médico já descon-
cia moléstia aflitiva ou repelente, e músicas tristes”). Ou seja, começa “os guinchos dos animais atordo- fiar e pedir-lhe para “ver o pulso”, o
estava sempre pronto para tudo, a efetivamente a paixão do jovem avam os doentes”, Fortunato aca- que ela recusa. Garcia aí fica “apre-
qualquer hora do dia ou da noite. médico pela mulher de Fortunato. ba transferindo o laboratório para ensivo”. E passa mesmo a acreditar

reais
Toda a gente pasmava e aplaudia”. Quanto se descobre apaixonado, casa. E Maria Luísa, “compleição que ela pode “ter alguma coisa”, que
Fortunato, mesmo com a convivên- Garcia — à maneira de Gouveia na nervosa”, é que tem que “sofrer” é “preciso observá-la e avisar o ma-
cia mais próxima, prossegue miste- CENA 4 — coloca para si também por esses guinchos. Maria Luísa, rido em tempo”. “Ter alguma coisa”,
Assinatura anual rioso aos olhos de Garcia. Na cena um problema moral: “expelir” do então, não podendo “ver padecer” portanto, é um outro índice impor-
ainda é dito que, na casa de saúde, coração o amor que sente por Ma- os bichos, pede a Garcia que inter- tante: já remete para a doença fatal
Fortunato estuda, acompanha as ria Luísa ou preservar a relação de venha no caso e faça com que For- (tuberculose) de Maria Luísa.
www.rascunho.com.br
operações e que “nenhum outro” amizade com Fortunato? Garcia tunato cesse “tais experiências”.
rascunho@gmail.com
cura “os cáusticos”. Ou seja, que resolve “trancar” a paixão, ou seja, Mas pede usando um artifício: que CONTINUA NA
ele se aplica ainda na cauterização silenciá-la. Maria Luísa, por sua Garcia não a envolva na solicitação PRÓXIMA EDIÇÃO.
outubro de 2010

Com as idéias no lugar


Em A ilusão da alma, Eduardo Giannetti elabora um romance sensível sobre a questão mente-cérebro

: : Fabio Silvestre Cardoso riores (como Felicidade e Auto-


São Paulo – SP engano) são elaborados conforme
essa estrutura. A diferença de suas

N
o conto Teoria do me- obras anteriores para com este li-
dalhão, Machado de vro, no entanto, é elementar: este
Assis traz dois persona- A ilusão da alma é um texto de
gens, Janjão e seu pai, ficção, e o autor, habilmente, supe-
que discorrem sobre as maneiras ra o desafio de articular uma prosa
de se alcançar certo status na socie- romanesca com ensaio de idéias. O
O autor
Eduardo Giannetti dade sem necessariamente despen- artifício para alcançar o objetivo,
da Fonseca der muita energia. A certa altura do aliás, é bastante sofisticado: embora
texto, o pai de Janjão é taxativo: é a história seja contada por um nar-
Nasceu em Belo Horizonte
necessário fazer um esforço para rador, tem-se a impressão que duas
(MG), em 1957. É escritor, pro-
refrear as idéias. Conforme se lê no histórias paralelas são narradas por
fessor universitário e econo-
mista com PhD pela Universi- texto, a título de maior precisão: dois autores distintos. E isso fica
dade de Cambridge. A ilusão “As idéias são de sua natureza es- evidente em uma diferenciação na
da alma é o seu primeiro pontâneas e súbitas; por mais que a tipologia dos textos. Mais do que o
romance. Já escreveu, entre sofreemos, elas irrompem e preci- aspecto gráfico, a verdadeira dife-
outros, Auto-engano (1997), pitam-se”. Machado de Assis alude rença se dá na abordagem. Enquan-
Felicidade (2002) e O mer- à ironia para dissertar ironicamen- to o romance é contado de forma
cado das crenças (2003), e, te sobre o papel do status nos sa- efetivamente “prosaica”, ou seja,
mais recentemente, assinou
lões da corte no século 19. Chama com o relato tout court, o outro tex-
a edição de O livro das
a atenção, no entanto, a verdadei- to se mostra como apreciação crítica
citações (2008).
ra homenagem que o autor presta de um fenômeno intelectual.
ao conceito da idéia. Em Macha-
do, elas jamais estão fora do lugar, Conhece-te a ti mesmo
servindo, portanto, para traçar um É ainda na segunda parte do ro-
interessante painel da sociedade mance que se dá o salto essencial,
de seu tempo. Em 2010, Machado o que faz de Biografia de uma
de Assis ainda permanece no ima- idéia fixa um livro bastante origi-
ginário dos leitores. No recente A nal. Isso porque o autor propõe um
ilusão da alma — Biografia de debate, a um só tempo sofisticado e
uma idéia fixa, o escritor, filóso- ilustrativo, acerca da oposição en-
fo e economista Eduardo Giannetti tre Sócrates e Demócrito, dois dos
traz a história de um professor uni- grandes pensadores gregos de toda
versitário especialista em Machado a história da filosofia. Longe de ser
de Assis, que, açodado pelos acon- a exposição cabotina de um escritor
tecimentos, se vê preso a uma idéia vaidoso, o debate sobre Sócrates e
fixa. O que acontece daí por diante Demócrito existe com real objeti-
pode ser sintetizado como um inte- vo para a existência do romance.
ressante embate intelectual e uma É porque, uma vez destituído do
A ilusão da alma — discussão profunda sobre filosofia, cargo de professor universitário, o
Biografia de uma comportamento, crença e, por que protagonista do romance de Eduar-
idéia fixa
Eduardo Giannetti
não dizer?, a capacidade do ser hu- do Giannetti “gasta” suas horas com
Companhia das Letras mano de, apesar de tudo, elucubrar. uma leitura dedicada a propósito
256 págs. O romance se divide em três da relação mente-cérebro. Em uma
partes. No primeiro trecho (O tu- espécie de “conhece-te a ti mesmo”
mor físico), o narrador expõe de profundo, o protagonista deseja sa- Eduardo Giannetti por ramon muniz

que forma foi tragado para uma ber mais sobre si e, portanto, sai a
nova condição, do tumor físico. pesquisar e a escrever de maneira
Trata-se, portanto, dos antece- dedicada a propósito dessa questão
dentes que fizeram um professor que tanto o interessa e, mais do que
universitário, doutor em Machado isso, o inquieta. Amiúde, aproveita,
de Assis e lotado na Universidade também, para lembrar, de forma
Trecho
Federal de Minas Gerais, ficar per- sentimental, de sua própria traje-


A ilusão da alma
plexo ao descobrir que sua cabeça tória, enfrentando uma espécie de
está em colapso. Desterrado de si e recordação, entre o trauma e a sau-
inadequado nessa nova situação, o dade, de seu pai, figura que possui
leitor observa o personagem perder força elementar para a constituição
Até que ponto escolhemos a segurança que tinha do mundo e de seu caráter e de sua personali-
aquilo em que acreditamos? atravessar, entre o temor e o tre- dade. Pouco a pouco, à medida que
mor, uma cirurgia que lhe extirpa a ação evolui, o leitor é conduzido
É difícil saber como é
o tumor que tem no cérebro. Nesse para o que seria a verdadeira solu-
com cada um. Às vezes momento, quando aparentemente ção do enigma mente-cérebro. Não
tenho a impressão de que deveria ter renascido, o protago- custa repetir, é de maneira formidá-
nista se encontra destituído de sua vel que o autor compõe esse painel
existem pessoas capazes de
função profissional, tendo em vista intelectual, ainda que, para isso,
acreditar em praticamente que, como dano colateral, sua au- exija do leitor alguma paciência
qualquer coisa: portam- dição é gravemente prejudicada. para com as referências. Do ponto
Por esse motivo, aposenta-se como de vista filosófico, esse exercício de Em outras palavras, a dicoto-
se como consumidores a
professor e, enfim, passa a buscar intertextualidade — Giannetti pare- mia entre mentalismo e fisicalismo,
comprar ou descartar no novos desafios e objetivos intelectu- ce ter uma capacidade inesgotável tópicos que se tornam extraordiná-
mercado das crenças aquilo ais. Eis, no entanto, um problema: para citações e ilustrações literárias rios em um sujeito demasiadamen-
a pesquisa que o professor passa a — se justifica pela necessidade de te humano, acaba por ser intelectu-
em que acreditam — ou
fazer nada tem a ver com Machado trazer algum realismo a um roman- almente resolvida, mas, no que se
pelo menos dizem acreditar, de Assis em particular ou com a li- ce feito à moda de um estudo acadê- refere à vida cotidiana, tal encontro
até para si mesmas —, teratura em geral. O protagonista, mico. Sim, faz bastante sentido. com a verdade não acrescenta nada
como se optassem por uma vez atingido pela percepção de Afinal, se fosse de outra ma- de novo. E é singular que, nesse
que o leitmotiv se dá pela ciência, neira, o desfecho do livro não seria momento, ele veja em seu duplo, o
um programa na TV ou decide, então, descobrir mais sobre tão surpreendente. Chega-se, na médico responsável pelo diagnós-
uma marca de dentifrício. a relação mente-cérebro. E é nesse terceira parte (O tumor metafísi- tico de sua doença, alguém capaz
Como conseguem ser tão ponto que temos a primeira grande co), para o segundo grande salto de entender a solução desse debate
virada da narrativa. da narrativa. Dez anos depois de racional, mas que, por algum mo-
maleáveis? Mas existirão
Essa grande virada se justifi- ter sobrevivido ao tumor cerebral, tivo, supera os eventuais dilemas
pessoas assim, é o que me ca porque, na segunda parte (Libi- o protagonista segue em desenga- que esse choque de realidade pro-
pergunto — gente com o do sciendi), o que se lê é a história no. Agora, não mais um desengano voca. A resposta, aqui, não poderia
de um homem que encontra na clínico, mas, sobretudo, existencial. ser mais simples — e, por isso mes-
dom de ligar ou desligar
pesquisa sua razão de viver. E essa Aos poucos, descobre que seu acha- mo, mais abrangente na sua signi-
na consciência aquilo em razão não se dá por vaidade ou por do pouco ou nada acrescenta àquilo ficação “é que eu não sou muito de
que convém acreditar? objetivo profissional. O professor de que, como ser humano, ele é fei- elucubrar”, diz o doutor.
se torna aprendiz porque necessita to. E é dessa forma que o protago- Em A ilusão da alma, Gian-
Francamente não sei. Só
resolver as dúvidas que restaram do nista admite as suas limitações: netti não apenas expõe o dilema
o que sei — e disso estou primeiro capítulo e que, no início entre mentalismo e fisicalismo, mas
seguro — é que, se tal dom do segundo, tornam-se mais paten- Padeço de uma severa falta elabora um romance sensível a pro-
tes, podendo, talvez, ser resumidas de unidade interior. Não, ele não pósito de um tema bastante comple-
existe, eu definitivamente
em uma só: o problema da relação é passível de plena assimilação e xo. Ao fim do livro, os leitores saem
não o possuo. Comigo mente-cérebro. Para chegar a essa absorção na vida comum. Entre- certos de que, assim como vaticinava
não é assim. resposta, Giannetti faz uso de uma tanto, ouso crer que fui tão longe o personagem de Machado de Assis,
abordagem ensaística. Trata-se, quanto é desumanamente impos- as idéias, sim, irrompem e se preci-
com efeito, de um gênero, o ensaio, sível chegar. A isso se reduz a mi- pitam. E só ao compreender do que
que deixa o autor bastante à vonta- nha originalidade; nisso reside a elas são capazes pode-se, de fato, co-
de, haja vista que seus livros ante- minha tragicomédia de província. nhecer um pouco sobre si mesmo.
outubro de 2010


:: entrevista : : Eduardo Giannetti

Não acredito nem


desacredito em “Deus”
Algo a dizer
— considero-me um

E
duardo Giannetti tem um propósito: sacudir o leitor, tirá-lo de um evolucionária; a inteligência artifi- A opção pela narrativa em primeira
agnóstico, ou seja, não estado de inércia e colocá-lo em movimento. Enfim, inquietar, tra- cial; a neuroeconomia. Um dia me pessoa não foi gratuita. O que me
var um diálogo que mantenha a ressonância por um bom tempo ocorreu que valeria a pena investir interessava, desde o início, não era
sei. Na verdade, nem após a leitura. Para tanto, embrenha-se pelo mundo das idéias em numa espécie de balanço crítico re- discutir ou argumentar se o fisica-
A ilusão da alma — projetado, segundo o autor, para ser uma transficção. trospectivo dos debates travados há lismo é verdadeiro ou falso. Isso é
sei direito o que uma Ou seja, algo inclassificável entre a ficção e a não-ficção. Nesta empreitada 2,5 mil anos por filósofos, teólogos algo que está além da minha com-
(ou encrenca, como define), Giannetti passou vários apertos, pensou em de- e psicólogos: reavaliar o embate petência, nunca alimentei tal pre-
pessoa tem em mente sistir, deprimiu-se, mas retomou a escrita para finalizar o livro que, para de- entre mentalistas e fisicalistas, Só- tensão. A idéia foi mostrar o que
quando declara que fini-lo de alguma maneira, encaixa-se no gênero “romance de idéias”. Nesta crates x Demócrito, à luz do que sa- acontece com alguém que se con-
entrevista por e-mail, Giannetti fala das dificuldades na execução do livro, bemos hoje, ou seja, à luz das des- verte a esse credo e passa a acredi-
“acredita (ou não) de sua paixão pelo conhecimento, de seus autores preferidos, de como a lite- cobertas empíricas e dos resultados tar seriamente nessa possibilidade.
ratura tornou-se protagonista em sua vida e de seu futuro como ficcionista, experimentais alcançados nos últi- Daí a opção pela primeira pessoa.
em Deus”. entre outros assuntos. mos 20 ou 30 anos. Desde a tese eu Eu precisava mostrar como alguém
tinha comigo a certeza de que um vai paulatinamente se convertendo
dia voltaria ao assunto, mas foi só ao fisicalismo à medida que estuda
: : Fabio Silvestre Cardoso pessimismo em Machado, aprendeu a partir daí que nasceu o primeiro a relação mente-cérebro, como isso
São Paulo – SP a escrever com ele (ou pelo menos vislumbre do livro. O caso clínico foi se dando à revelia do que ele
se esforça para tanto). Sua narrativa do meu personagem — diagnósti- preferiria acreditar, e como uma
: : Rogério Pereira está apinhada de construções, frase- co, alucinações, cirurgia — de fato pessoa vai perdendo o chão e o pé
Curitiba – PR ados, volteios e ressonâncias do esti- cobrou um esforço e um cuidado de si mesma quando começa a tra-
lo e da sintaxe machadianos. Numa adicionais. Além de estudar alguns zer tudo isso para a sua experiência
• A ilusão da alma é seu pri- primeira versão do livro, exagerei autores e textos específicos sobre o pessoal de vida — sua compreensão
meiro romance. Por que, de- feio nos maneirismos e fui correta- assunto, como o Oxford compa- íntima de si mesma, dos outros e do
pois de se consolidar como mente alertado por meus editores. nion to the mind e trabalhos de mundo em que acredita viver. Fiz
au­­tor de ensaios, o senhor Podei boa parte deles, embora me- Oliver Sacks, contei com a ajuda de do meu personagem uma espécie
decidiu investir em um nos talvez do que deveria. O fato é dois amigos, um médico oncologista de laboratório de metafísica aplica-
texto literário? Houve al- que, quando leio Machado, tenho a e uma neurocientista brasileira ra- da, como o médico australiano que
guma motivação especial? nítida impressão de estar diante de dicada nos Estados Unidos. Graças ingeriu bactérias para testar uma
As divisões me incomodam. um texto que não foi propriamente a eles, escapei de alguns equívocos hipótese sobre a úlcera estomacal
Sempre sonhei em escrever um escrito, mas esculpido. Tudo é exa- embaraçosos e pude ser mais especí- (o Nobel de Medicina Barry Mar-
livro que não pudesse ser classi- to, compacto, apertado; como algo fico e verossímil na narrativa, inclu- shall). E o que ele acaba descobrin-
ficado como ficção ou não-ficção. talhado em pedra. Claro e belo. Dá sive nas falas de consultório, quando do é que, por mais que tente, não
Que fosse uma espécie de trans- vontade de anotar cada solução de médico e paciente dialogam. há como metabolizar a enormidade
ficção. Busco isso porque a vida é linguagem para uso futuro. E o meu do fisicalismo em nossa experiência
assim — atravessa tudo; não tem o personagem, não menos que eu, é • A pergunta “O que nos faz ser comum da vida, assim como não há
menor respeito pelas demarcações vítima do mesmo fascínio. A outra quem somos?” desafia o nar- como assimilar a insignificância cós-
acadêmicas ou convenções do mer- razão é de ordem substantiva. Creio rador e o leitor o tempo todo mica da Terra na ordem das coisas
cado livreiro. O eu-soberano, como que há mais riqueza, sagacidade e durante a leitura de A ilusão — para todos os efeitos ela perma-
chega a especular o meu persona- sutileza filosófica na produção ma- da alma. O senhor arriscaria nece, em nossa psicologia e crença
gem, talvez não passe de uma peça dura de Machado, romances, contos um palpite ou teria alguma espontâneas, como o centro inaba-
de ficção à qual estamos habitu- e crônicas, do que muitas vezes nos certeza sobre a resposta? lável do universo. O credo fisicalista
ados desde que nos pregaram um levam a crer alguns dos intérpretes Se o fisicalismo é verdadeiro, como agride de tal modo tudo aquilo que
nome e passamos a nos tomar por sociológicos de sua obra. O meu per- sustenta o meu alter ego, o La Met- sentimos e estamos habituados a
gente. A realidade está permeada sonagem tenta evidenciar isso em trie das Alterosas, então a noção crer espontânea e intuitivamente
de sonho e, o sonho, de realidade. diversas passagens do livro, como, que nos é tão cara de um eu-unifi- sobre nós mesmos que não há como
Em Felicidade, criei um diálogo por exemplo, ao evocar o “esboço de cado e soberano não passa de uma internalizá-lo e enraizá-lo em nossa
ficcional entre quatro ex-colegas de uma nova teoria da alma”, exposta peça de ficção (título que cheguei autocompreensão. Seria como pedir
faculdade que voltam a se reunir de pelo ex-alferes Jacobina no conto a propor para o livro, mas que foi a um neandertal que acredite na che-
novo, depois de longos anos, para O espelho, assim como eu já fizera prontamente vetado pelos meus gada do homem a Lua ou na tabela
estudar e debater questões de filo- em Auto-engano servindo-me de editores). O que faz cada um ser periódica. Quando a atenção relaxa
sofia moral. Vários leitores acredi- Dom Casmurro. A idéia foi tentar quem é o seu cérebro, fruto de um após o esforço reflexivo, voltamos a
taram que aquelas pessoas existiam mobilizar a bagagem filosófica de mix de fatores genéticos/nature e nos sentir, a falar e a nos relacionar-
de fato, que eram amigos meus com Machado — suas agudas análises de formativos/nurture. Eu sou a ex- mos uns com os outros como bons e
os nomes trocados, e que o livro psicologia moral e da propensão ao periência que o meu cérebro tem calejados mentalistas.
era a transcrição de diálogos efe- auto-engano; “personagens dotados de si mesmo. Acontece, porém, que
tivamente travados. Fiquei feliz ao de bom senso na sandice”, como di- o cérebro de cada indivíduo é um • Que autor contemporâneo,
saber que isso tinha ocorrido. Para zia Mario Matos; a fauna e a flora das agregado de peças e órgãos fun- da literatura brasileira ou es-
mim foi uma prova de que a trama, “tergiversações especiosas da mente cionando de modo assincrônico, e trangeira, o senhor observa
embora fictícia, parecia real, passa- humana” — para dar tempero à nar- não há nenhum eu-soberano em realizar esse tipo de narrativa
va no teste da verossimilhança. Ali- rativa e, ao mesmo tempo, mostrar seu trono, no palácio da mente, su- e que, de alguma maneira, lhe
ás, é por isso que esse livro, assim a universalidade do seu pensamen- pervisionando e ditando decretos, serviu de estímulo/desafio?
como optei por fazer em A ilusão to, um pouco na linha do que fazem alvarás e ordens régias para cá e Não faço muita distinção entre con-
da alma, não tem prefácio. Ficção Alfredo Bosi em O enigma do para lá. A noção de um eu-unifica- temporâneos, modernos ou antigos.
ou não-ficção? O que realmente olhar ou, ainda, em outro contexto do fica, assim, seriamente abalada Gosto de ler como se o autor estives-
me importa, ao escrever um livro, mas com o mesmo intuito, o filósofo pelo fisicalismo. A própria expres- se se dirigindo a mim naquele exato
não é ensinar ou entreter. É travar da mente inglês Colin McGinn, em são “meu cérebro”, por exemplo, momento, independentemente do
uma espécie de contato pessoal Shakespeare’s philosophy. não se sustenta: “meu” de quem? tempo que nos separa. Alguns livros
com o leitor. É plantar a semente Que “eu” é esse a quem o cérebro têm me acompanhado há décadas,
de um diálogo ou inquietação que • Qual a importância da pes- pertence? Eu sou a experiência quase como amigos a quem posso re-
continue pulsando e frutificando quisa sobre a relação mente- que um cérebro particular exala e tornar de tempos em tempos. Nunca
em sua mente muito tempo após o cérebro para a composição fabula de si mesmo. Podemos, em me canso de revisitá-los. Enquanto
término da leitura. Se isso aconte- do livro? É certo que o senhor suma, estar tão equivocados sobre me preparava e compunha A ilusão
cer, o livro vingou. O gênero será o possui formação acadêmica e nós mesmos — imersos na mais es- da alma, alguns livros me fizeram
que tiver de ser. O autor semeia, a intelectual para dissertar sobre pessa névoa de enganos, ilusões e especial companhia: Os cadernos
leitura insemina. filosofia, mas, no livro, o prota- fábulas sobre o que nos faz quem de Malte Laurids Brigge, de Rai-
gonista atravessa um caso clí- somos e o que nos leva a agir como ner Maria Rilke, um romance narra-
• Além de Machado de Assis, nico de alta especificidade. agimos — como, digamos, o iano- do em primeira pessoa pela persona
autor que perpassa a narrati- Sem a pesquisa não existiria o livro. mâmi amazônico ou o aborígine dinamarquesa, em oposição à solar-
va (seja na voz do narrador, Há mais de 30 anos estou com o meu australiano nos parecem equivoca- mediterrânea, do poeta; Memórias
seja nas citações de suas radar de pesquisador ligado nesse dos acerca das causas do relâmpa- do subsolo, de Dostoiévski (li os
obras ao longo do texto), assunto. Em minha tese de douto- go, do arco-íris e do trovão. Os an- três primeiros volumes da biografia
existe outro escritor de rado, escrita em Cambridge em me- tropólogos dos séculos vindouros de Joseph Frank para tentar enten-
ficção a quem o senhor ados dos anos 80, dediquei dois ca- terão com o que se divertir com os der como ele chegou a conceber essa
quis render homenagem pítulos à tese do “homem-máquina” nossos jornais e livros de história, obra-prima); O livro do desas-
neste livro? e ao trabalho do médico e filósofo assim como se divertem, desde o sossego de Bernardo Soares, alter
Não sei se “render homena- iluminista francês La Mettrie, o que século 19, com as fábulas, lendas ego de Fernando Pessoa; O sonho
gem” é a expressão adequa- quase me custou a reprovação pela e mitos das culturas arcaicas pré- de d’Alembert, romance filosófico
da. A opção por Machado banca, pois acharam tudo aquilo científicas sobre o mundo natural. de Diderot, com personagens tira-
teve dupla motivação. A um tanto excêntrico num trabalho dos do círculo de amigos do escritor;
primeira é que o nar- acadêmico de economia! Só conse- • A ilusão da alma se inscreve e A vida dos animais, do roman-
rador, meu alter ego, gui passar porque fui capaz de me dentro do que os críticos clas- cista sul-africano J. M. Coetzee, no
professor de letras e defender razoavelmente no exame sificariam como “romance de qual a protagonista, uma professora
estudioso da sua obra, oral. Perceberam que eu não era idéias”, exatamente por arti- de ética, faz uma série de palestras,
autor de As ra- tão pateta ou maluco como poderia cular ficção e ensaio. Até que reproduzidas in toto no desenrolar
bugens de parecer à primeira vista. De lá para ponto essa foi a “única saída” da narrativa, sobre a questão dos di-
cá, muita coisa aconteceu: as novas para o livro? Em outras pala- reitos dos animais.
técnicas de visualização do cérebro vras, o senhor imaginou con-
em tempo real; os achados e espan- ceber um romance que não ti-
tos da neurociência; a psicologia vesse essa levada filosófica? continua na página 6
outubro de 2010

• Em sua primeira experiên- • Qual é a sua rotina como es- • O senhor concorda com filó-
cia como romancista, houve critor? O senhor possui algum sofos como Luc Ferry que de-
algum objetivo que o senhor tipo de idéia fixa? fendem que as pessoas seriam
gostaria de ter alcançado, mas, Cada autor tem suas idiossincrasias. mais felizes se se aproximas-
por algum motivo, não conse- A condição essencial, para mim, é a sem mais da filosofia e menos
guiu? A despeito da recepção absoluta concentração na tarefa: “pu- de Deus?
da crítica e dos leitores, o livro reza de coração é desejar uma única A idéia me faz lembrar um epigra-
te satisfaz como autor? coisa”. Depois de muitas tentativas ma de Goethe: “Aquele que tem ci-
Ninguém é bom juiz em causa pró- frustradas de conciliar a minha ativi- ência e arte, tem também religião;
pria, como dizia Aristóteles. Sei que dade autoral com o meu dia-a-dia de o que não tem nenhuma delas, que
preciso trabalhar muito para apurar professor universitário e economista tenha religião!” Tudo vai depender,
a forma e a capacidade expressiva: em São Paulo, percebi que não tinha é claro, do que se entende aqui por
dizer mais com menos; deixar o dito jeito. Não consigo dar uma entrevista “filosofia” e por “Deus”. Não acre-
pelo não dito; tensionar a arte de sobre, sei lá, a crise cambial e o déficit dito nem desacredito em “Deus”
dizer o que é mais difícil de se dei- da previdência de manhã, e escrever — considero-me um agnóstico, ou
xar falar. Acho que consegui dar um sobre o neolítico moral e a maiêutica seja, não sei. Na verdade, nem sei
passo, ousar e arriscar-me um pou- socrática à tarde. A saída foi separar direito o que uma pessoa tem em
co mais dessa vez, mas desejo con- de uma vez por todas, no tempo e no mente quando declara que “acre-
quistar ainda uma liberdade interna espaço, essas atividades. Quando es- dita (ou não) em Deus”. A fivela do
que não possuo na hora de criar. Se tou em São Paulo, não alimento qual- cinturão dos soldados da Wehrma-
pudesse corrigir uma falha do livro, quer pretensão de escrever algo mais cht nazista trazia a inscrição: Gott
tentaria rebalancear a desproporção elaborado e reflexivo. Convivo com a mit uns (“Deus está conosco”). Os
entre narrativa e ensaio na segunda dispersão da atenção e estou aberto americanos, mais pragmáticos, ele-
parte — e o tom também. Como dis- e disponível para as demandas que a geram as suas moedas e notas de
se um amigo, “dá para ouvir o ensa- minha atividade profissional regular dólares para louvar o ser divino:
ísta Giannetti ali”. suscita. Vivo disso. É o que paga as In God we trust (“Em Deus confia-
contas no fim do mês e me permite mos”). O líder e general puritano,
• À página 49, lê-se: “Escritores escapar, por alguns meses, de tem- Oliver Cromwell, dizia: “O soldado
e cientistas compartem uma pos em tempos. Mas quando é para que reza melhor combate melhor”.
ambição: devassar a arquite- mergulhar em um novo projeto de Será que as pessoas estão falando
tura da alma”. Quem se sai me- livro, faço as malas e parto para um da mesma coisa quando declaram
lhor nesta tarefa? Por quê? período sabático de completo isola- ou se matam umas às outras porque
Cada um tem sua contribuição a mento. Pode ser no interior de Minas acreditam ou não em Deus? Tanto
dar. O que não se pode aceitar é a ou em Oxford. O crucial é que a vida “Deus” como “a filosofia” podem ser
redução da arte à condição de inó- prática seja a mais simples possível e fontes da mais completa felicidade
cuo entretenimento; negar a sua vo- nada me desvie da concentração na ou infelicidade. Mas será que deve-
cação cognitiva. No século 18 havia tarefa. Paro de ler jornais e revistas, mos acreditar ou deixar de acreditar
ainda uma forte afinidade e um di- não assisto tevê, não ouço rádio, não em algo porque isso nos faz mais ou
álogo profícuo entre arte e ciência. uso telefone nem acesso a internet. menos felizes? Quanto aos autopro-
Foi a partir da ascensão do roman- Levo alguns poucos livros, escolhidos clamados “ateus militantes”, que se
tismo, no início do século 19, que o a dedo, e leio relativamente pouco. propõem a tratar “a existência de
afastamento começou a se firmar e Como fico absolutamente só, mesmo Deus como uma hipótese científica
foi aos poucos se radicalizando, em quando não estou trabalhando, ao como qualquer outra”, Richard Da-
prejuízo de ambas. O filósofo aus- fazer uma refeição ou caminhar a pé, wkins à frente, não sei o que mais
tríaco Ludwig Wittgenstein, depois por exemplo, eu sei que, na verdade, me espanta: se é a falta de tino e a
de se desembaraçar das amarras estou trabalhando. Passo a dormir superficialidade que revelam dian-
Eduardo Giannetti por ramon muniz

do positivismo lógico, faz uma ob- muito cedo e a acordar com o nascer te das necessidades espirituais do
servação certeira: “As pessoas atu- do dia, a cabeça a mil. Uma regra de homem ou a fé ingênua da maioria
almente pensam que os cientistas ouro nesses períodos é jamais su- dos crentes e devotos aos quais se
existem para instruí-las, e os poetas, cumbir à tentação da pressa. Posso opõem. Ao equívoco de buscar res-
músicos etc. para lhes dar prazer. A passar dias e dias sem escrever uma postas científicas na religião corres-
idéia de que estes últimos têm algu- única linha, como aliás sempre acon- ponde o equívoco simétrico de bus-
ma coisa para ensinar-lhes — isto tece no início do trabalho. Aí eu me car respostas religiosas na ciência.
não lhes ocorre”. Penso que há mais lembro do que dizia o poeta inglês
conhecimento verdadeiro acerca da Alexander Pope: “Por aquilo que pu- • O narrador encerra A ilusão
psicologia profunda do animal hu- blico, eu peço apenas a compreensão da alma com um desafio —
mano num romance de Dostoiévski dos leitores; mas, por aquilo que des- “Refute-me se for capaz!”. O
ou de Machado do que em dezenas carto e atiro à cesta de lixo, mereço senhor gostaria que outro au-
de tratados sisudos de psicologia o aplauso imortal”. Uma hora, contu- tor aceitasse o desafio e voltas-
acadêmica. E, ao dizer isso, não do, o trenzinho apita e sai da estação. se a atenção (de maneira fic-
estou só. Veja o que escreve, por Quando volto de uma temporada cional) ao tema abordado no
exemplo, o eminente psicólogo e lin- dessas, tenho a sensação de ter mobi- seu romance?
güista americano Steven Pinker em lizado forças a que normalmente não A frase que encerra o livro é a frase
Tábula rasa: “Os cientistas e os in- tenho acesso. Não é que lá eu faço em que encerra o livro do herói do meu
telectuais não são as únicas pessoas meses o que teria me consumido vá- personagem, o L’homme machi-
que se dedicaram a examinar como um fio contínuo que veio se tecendo de estudo à medida que avançava rios anos de trabalho em São Paulo — ne de La Mettrie. Tenho recebido
a mente funciona. Todos nós somos desde pelo menos O mercado das nas investigações e procurava refle- a comparação relevante não é essa. É mensagens de leitores que aceitam
psicólogos e algumas pessoas, sem crenças, um livro pesadamente tir sobre o que vinha descobrindo. que lá, de algum modo, consigo fazer o desafio proposto e tentam me con-
o benefício de credenciais, são gran- acadêmico publicado na Inglaterra Mostrei aos meus editores e para o que eu jamais teria feito no meu co- vencer de que refutaram o fisicalis-
des psicólogos. A este grupo perten- em 1991, mas que só saiu traduzido alguns outros leitores que haviam tidiano paulista, mesmo que tivesse mo. Acontece que eu não sou o meu
cem poetas e romancistas cujo ofí- no Brasil em 2003. Em Felicidade, criticado as primeiras versões e eles todo o tempo do mundo. personagem. É curioso. Desde que
cio é criar representações justas de há um diálogo inteiro sobre a con- acharam que estava melhor agora comecei a mostrar as primeiras ver-
natureza geral. Paradoxalmente, no jectura de uma “pílula da felicidade (ou que eu já tinha apanhado o sufi- • De que maneira o senhor sões do livro a alguns amigos cien-
clima intelectual de hoje os roman- instantânea”. E por aí vai. Imagino ciente). Nunca apanhei — e aprendi tornou-se um leitor? Como a tistas e escritores, notei que a minha
cistas podem ter um mandato mais que todo autor carrega suas obses- — tanto como autor. literatura fez-se protagonista relação com o narrador era curiosa-
claro do que os cientistas para dizer sões. Eu também tenho as minhas. em sua vida? mente ambígua: quando alguém o
a verdade sobre a natureza humana. • Como é o seu método de com- O meu ponto de inflexão é claro em defende, como tendem a fazer os
(...) Poetas e romancistas têm feito • Como romancista, o senhor posição/criação? O senhor pos- retrospecto. Apaixonei-me pela leitu- cientistas (uma jovem neurocientis-
muitos dos pontos deste livro com enfrentou dilemas diferentes sui algum tipo de estratégia ra e pelo mundo do pensamento aos ta chegou a declarar — “Então você
mais sagacidade e penetração do que daqueles de quando escreveu para a feitura de seus textos em 16 anos de idade. Cursava o segundo é um dos nossos!”), o meu impulso
qualquer escrevinhador acadêmico ensaios? A tela em branco, por geral? E para este livro, seu pri- ano do ensino médio no Colégio San- é atacá-lo; mas, quando alguém o
poderia esperar fazer”. Se os cientis- exemplo, assustava mais agora meiro romance, em particular? ta Cruz, em São Paulo, e tivemos um ataca, como fizeram alguns amigos
tas se interessassem mais pela arte do que das outras vezes? Falo com desenvoltura, aulas, pales- curso chamado “Metafísica”, dirigido mais ligados à área de humanas e
e, os escritores e artistas, pela ciên- Creio que subestimei o tamanho tras, entrevistas, mas escrevo com pelo padre católico canadense Char- literatura, houve quem se sentisse
cia, todos sairiam ganhando. do desafio (para não dizer encren- enorme dificuldade — um parto. Se bonneau. Entre as leituras do curso, quase pessoalmente ofendido pelas
ca!) que estava comprando quando as pessoas soubessem a quantidade sobre as quais tínhamos de redigir idéias apresentadas no livro, o meu
• É correto afirmar que exis- embarquei no projeto deste livro. A de vezes que reescrevo uma frase ensaios interpretativos, estavam: impulso é defendê-lo. De uma coisa,
te certa afinidade entre suas principal dificuldade foi encontrar (esta por exemplo), antes de consi- Kafka, Carta ao pai e O processo; porém, estou certo: se alguém con-
obras mais recentes — O valor o tom certo e dar o acabamento li- derá-la apta a ficar como está, talvez Sartre, As palavras e A náusea; seguir refutar conclusivamente o fi-
do amanhã, O livro das cita- terário necessário à veia narrativa me julgassem insano ou tivessem dó Camus, A peste; Dostoiévski, Os sicalismo, com alguma teoria ou des-
ções e A ilusão da alma? Ou da trama. Não cabe a mim, é claro, de mim. Daí a minha relutância em irmãos Karamazov; e, por fim, coberta empírica passível de aferição
seja, para além do fato de os li- dizer se consegui — sei que sempre aceitar compromissos de produção como ponto culminante e antídoto pública, receberá com certeza um
vros terem sido assinados pelo poderia ter ficado melhor (ou me- de textos escritos. Falar em público é contra o niilismo moderno, um livro prêmio Nobel pelo extraordinário
mesmo autor, existe um tecido nos ruim) do que ficou e que pode- razoavelmente fácil e tranqüilo para do teólogo Teilhard de Chardin (não feito. Torço para que isso aconteça!
literário que os aproxima ou, ria continuar trabalhando no texto mim, adquiri razoável fluência com a me recordo o título...). Para o bem ou
como a própria classificação pelo resto dos meus dias; mas cer- prática; mas parir um texto, por mais para o mal, acho que continuo fazen- • O senhor pretende seguir
pressupõe, são textos diferen- tamente aprendi como em nenhum banal, é sofrimento na certa, princi- do esse curso até hoje e nunca me re- produzindo ficção? Há outro
tes e que não dialogam de for- outro livro à medida que ouvia e re- palmente o começo. Sempre é assim. cuperei do impacto que tais leituras livro a caminho?
ma alguma entre si? cebia as críticas de quem ia lendo e O computador sem dúvida alterou o tiveram no meu cérebro adolescen- Sim, pretendo dedicar-me cada
A afinidade, para mim, é clara — comentando o que eu fazia. A certa meu processo criativo. Seria impen- te. Lembro como fui violentamente vez mais à literatura. Mas, como
e não só com os livros citados na altura do trabalho o massacre foi de sável reler e corrigir e tornar a reler tragado por aquele mundo de idéias, disse no início, não aceito as divi-
pergunta. Às vezes chego a me sur- tal ordem que tive um momento de e emendar tantas vezes o mesmo como conversava horas a fio com sões convencionais entre gêneros,
preender quando constato como dúvida radical, deprimi e cheguei a texto se ainda precisasse escrever à amigos de escola sobre tudo aquilo, disciplinas ou escolas. Por que se
certas preocupações e possibilida- pensar em abandonar o projeto ori- mão ou numa máquina de escrever. as tentativas de colocar as minhas resignar a essas amarras — ficção
des estavam já despontando em li- ginal e transformá-lo num simples Não sei por que é assim comigo, mas idéias e inquietações nas redações, ou não-ficção, popular ou erudito,
vros mais antigos, mas só vieram à ensaio, como nos livros anteriores. posso garantir que é um processo e o patético anticlímax do desfecho prosa ou poesia? O importante é ter
tona tempos depois. O embrião de Seria a saída mais fácil. Depois re- extremamente laborioso, como polir católico-teológico, quase uma piada algo a dizer — algo que se torna im-
Auto-engano, por exemplo, está cuperei as forças e reemergi. Re- lentes ou praticar escalas musicais. insípida perto do que tínhamos lido perioso compartilhar —, e não pou-
no prefácio de Vícios privados, solvi enfrentar a parada e voltar à Imagino que tenha a ver com algu- antes. De um modo obscuro a prin- par esforços para dizê-lo tão bem e
benefícios públicos?, embora carga. Fiz uma revisão completa e ma fantasia obscura de permanência cípio, mas bastante claro em retros- tão belo quanto se é capaz. É pensar
na época eu não estivesse ciente do minuciosa do texto, joguei muita da palavra impressa. Como se uma pecto, percebo como foi precisamen- por conta própria e ter a coragem
que faria anos depois. No caso de A coisa no lixo, e decidi separar com- frase obscura ou mal-ajambrada te a partir dali que se fixou em mim o de correr riscos. Quero conquistar
ilusão da alma, a inquietação em pletamente o fio narrativo, em pri- pudesse me cobrir de vergonha ou desejo de passar o resto da vida habi- uma liberdade que me escapa — na
torno da relação mente-cérebro e meira pessoa, das anotações que o condenar-me às chamas do inferno tando e respirando de algum modo a vida e na obra. É isso que me faz
do fantasma do fisicalismo percorre personagem fazia em seus cadernos por toda a eternidade. atmosfera daquelas leituras. sentir vivo.
outubro de 2010

Joaquim de Carvalho

Ribamar
comprova uma
vez mais a velha
máxima de
que para fazer
diferença em
literatura é preciso
sujar as mãos.

Ribamar
José Castello
Bertrand Brasil
278 págs.

Uma reportagem interior


No corajoso romance Ribamar, José Castello dialoga com seu pai e com a obra de Franz Kafka

O autor
JOSÉ CASTELLO :: Luiz Paulo Faccioli relação satisfatória e que, portan- o valor da nota ou pausa. Até mes- balham um mesmo conflito, esta-
Porto Alegre – RS to, não conhece. Ou pensa não co- mo o sinal de repetição da primeira belecendo inclusive diálogo entre
Nasceu no Rio de Janeiro nhecer, pois à medida que se frus- parte da cantiga é respeitado dentro as respectivas obras, e chegam a re-

A
(RJ), em 1951. Mestre em Carta ao pai de Franz Ka- tra com o quase nada que consegue dessa estrutura. sultados tão distintos e igualmente
Comunicação pela UFRJ, o
fka talvez seja o documen- apurar sobre a biografia paterna, A procedência nordestina do válidos. Não fosse a genialidade de
jornalista, escritor e crítico
to mais impactante dentro vai também percebendo que mui- pai, a atividade literária do filho e Kafka, talvez a Carta ao pai, por
literário tem uma larga
trajetória na imprensa
da obra pequena, mas ge- to daquilo que diligentemente bus- os nomes dos dois personagens são verdadeira que seja sua concepção,
brasileira, que inclui ter sido nial, deste autor inigualável. Foi con- ca fora pode ser encontrado dentro algumas das coincidências de Ri- soasse inverossímil — e todos sabe-
repórter da revista Veja, chefe cebida não como peça de ficção, mas dele próprio. E, em igual sentido, bamar com a biografia do próprio mos o quão inverossímeis podem
de redação da IstoÉ e editor para ser efetivamente uma carta na o que não compreende sobre o pai autor que sugerem um romance au- parecer os absurdos da vida real.
do caderno Idéias do Jornal do qual o escritor, aos 36 anos de idade é de certa forma o que desconhece tobiográfico. Mais do que isso, é o Da mesma forma, em mãos me-
Brasil. Atualmente é colunista e já sofrendo as conseqüências da tu- sobre si mesmo. A descoberta pau- próprio Castelo quem confirma em nos experientes, Ribamar talvez
do suplemento Prosa & Verso berculose que iria levá-lo à morte em latina dessa simbiose — tão óbvia seu blog: “Embora não seja uma bio- redundasse em fracasso, pois mui-
do jornal O Globo, mantém o cinco anos, tenta fazer um acerto de quanto à primeira vista poderia pa- grafia, ou um livro de memórias, mas tos são os riscos envolvidos quando
blog A Literatura na Poltrona e
contas tardio com Hermann Kafka recer a de Franz-Hermann, ou seja, um romance, tem como figura cen- o autor se entrega tão intensamen-
faz crítica literária regular para
— espécie de versão masculina, som- nada — leva à perplexidade do nar- tral meu pai, José Ribamar, falecido te na composição de um persona-
as revistas Época e Bravo! e
para o jornal Valor Econômico. bria e sem graça da folclórica figura rador e em seguida ao próprio des- em 1982”. Tal fato, entretanto, não gem como José. Além disso, meta-
É autor de vários livros, dentre da iídiche mame —, que tiranizava fecho da história. José se dirige com tem aqui a menor importância. Ao linguagem e intertextualidade são
eles o romance Fantasma o filho e desdenhava das pretensões freqüência a Ribamar, o que confe- contrário de Kafka em sua Carta, a exercícios que vêm se tornando tão
(menção honrosa do Prêmio literárias daquele que viria a ser um re um caráter epistolar à narrativa, preocupação de Castello é puramen- freqüentes quanto enfadonhos na
Casa de Las Américas, em dos mais importantes nomes da lite- e o texto emula na verdade a his- te literária, e é sob este ângulo que literatura brasileira.
2002), Vinicius de Moraes: ratura universal. A carta que acabou tória da composição do romance, devemos olhar para a obra. As con- Driblando esses obstáculos
o poeta da paixão (Prêmio famosa, todavia, não seguiu o curso num outro viés metalingüístico que, vergências que realmente importam todos, Ribamar é uma obra den-
Jabuti), Na cobertura de
planejado e nunca chegou ao desti- se não é propriamente uma solução são de outra ordem. Para começar, sa, bem realizada, rica em sutilezas
Rubem Braga e Inventário
natário. Consta que Franz a tenha original, aqui faz todo o sentido. a fruição do romance também apre- estilísticas. Grande parte do suces-
das sombras. É colunista
do Rascunho. entregue à mãe, Julie, que por sua Além da Carta ao pai, outros senta dificuldades. A angústia do so deve ser creditada à prosa madu-
vez não quis repassá-la ao marido, textos de Kafka — em especial A narrador é um pouco menos velada, ra e elegante de Castello. As frases
talvez por temer sua reação, embora metamorfose, da qual Castello ex- o tom, um pouco mais alto em dire- curtas e sempre objetivas dispen-
o mais provável seja que o manuscri- trai, bem a propósito, o componen- ção ao confessional, mas a concisão sam eufemismos e filigranas. Cruas
to de 50 páginas fosse parar no cria- te conflituoso da relação de Gregor do discurso produz o mesmo efeito no sentido, denotam o cuidado com
do-mudo, seguindo o mesmo desti- Samsa com o pai, personagem do incisivo que vai causar desconforto o ritmo, a eufonia, a precisão voca-
no que Hermann mandava dar aos qual pouco se fala — são explorados em quem lê. Não há como se man- bular. As inventivas figuras de lin-
Trecho
livros do filho ao recebê-los em casa em Ribamar, dando eco à primeira ter indiferente, a opressão que vive o guagem levam em alguns momen-


Ribamar
— e com a mesma crueldade. Publi- frase do livro, onde José declara sua personagem é real e também sufoca tos a pensar em poesia, ainda que
cada postumamente, Carta ao pai obsessão pelo escritor checo. o leitor. Uma pausa será às vezes ne- não se trate aqui do que se costuma
tornou-se um título indispensável cessária para que leitor e texto pos- chamar no jargão literário de “pro-
da obra kafkiana, não só por seu ine- Canção de ninar sam respirar, cada qual a seu modo. sa poética”: o que sentimos é tão
O jumento, enfim, se gável valor literário, mas principal- Os 98 curtos capítulos se estru- O aspecto mais difícil de ser somente uma das conseqüências de
levanta. Sonolento, vai mente pelo muito que revela sobre turam a partir de uma singela canção analisado é a perfeita verossimi- uma prosa de qualidade. A mesma
o escritor e os fundamentos de sua de ninar cuja partitura vem transcri- lhança conseguida por Castello na sensibilidade que cria belas analo-
para o meio-fio. Não que ficção. Não é uma leitura fácil, mui- ta no corpo do volume e também na construção de seu angustiado José. gias musicais conduz a colocação
o motorista o machuque to menos prazerosa. A intimidade da bela capa de Victor Burton, em ou- Estamos diante de um conceito de uma vírgula, sempre na busca do
— aplica-lhe só uns golpes tumultuada relação pai e filho está tra de suas inspiradas criações. Cada que vem sempre carregado de um melhor efeito. Assim como na mú-
ali exposta com uma franqueza qua- capítulo corresponde a uma das no- alto grau de subjetividade. Talvez o sica, o bom texto depende também
fracos, quase de afeto.
se obscena, e a objetividade do dis- tas da canção e à respectiva sílaba mais cômodo fosse então capitular de um ouvido apurado. Um ótimo
O que lhe dói é ser um curso esconde nas entrelinhas a de- do verso. Castello procura estabele- com um suspiro e creditar o resul- exemplo é a cena em que o motoris-
jumento. Animal disperso núncia de um sofrimento tão grande cer uma coerência entre a duração tado ao fator autobiográfico. E ou- ta pára o ônibus no meio da noite
que muitos leitores não têm estôma- da nota e a extensão do capítulo: se tra vez é Castello quem insiste: “Se- para expulsar um jumento que blo-
e vagaroso, ele se angustia
go para vencê-la. a nota é uma mínima, o capítulo terá gui à risca os conselhos de Gide e queia a estrada, no trecho escolhido
em um mundo regido pela Em seu mais recente livro, Ri- quatro páginas; se uma semínima, transformei meu romance em uma para ilustrar esta resenha.
atenção e pela velocidade. bamar, José Castello não apenas se em torno de duas; se uma colcheia, reportagem interior”. O problema Ribamar comprova uma vez
inspira na Carta ao pai, mas pro- um pouco menos que isso. Há tam- é que a literatura não se deixa apa- mais a velha máxima de que para
Eu o encaro. Seus olhos
põe com ela um jogo de intertextua- bém uma subdivisão temática: cada nhar nesse tipo de facilidade. Fic- fazer diferença em literatura é pre-
inertes — de bicho morto lidade que perpassa todo o romance. capítulo faz parte de uma série for- ção e não-ficção passam pelo mes- ciso ter coragem de sujar as mãos.
— não correspondem ao A trama é simples e parte do mesmo mada a partir de assuntos (“Kafka”, míssimo filtro: o ponto de vista de Sem assumir riscos, sem desafiar
conflito de sua antecessora ilustre: “Aves”, “Parnaíba” etc.) que se al- quem escreve. É ele que, em última limites, sem a adrenalina gerada
animal corpulento que
com o pretexto de escrever a história ternam dentro da ordem numérica análise, vai iluminar o que interessa pela proximidade do passo em fal-
os carrega. São frágeis e do pai já falecido e cujo nome dá tí- maior. Assim, na abertura de cada e descartar o que não vem ao caso, so que faria tudo desandar não se
embaçados; duas pérolas tulo ao livro, José narra sua viagem capítulo aparecem várias informa- garantindo, dentre outras virtudes pode ambicionar o topo. Só o tem-
sujas a roçar as paredes da a Parnaíba, no Piauí, em busca de ções: seu número seqüencial, o nome literárias, a verossimilhança da his- po — os 50 anos mínimos já defen-
informações que o auxiliem a resga- da nota, a sílaba do verso, o assunto, tória. E é por causa disso também didos por alguém — terá o poder de
noite. No entanto, estão ali tar um personagem com o qual não a posição que ocupa e a quantidade que dois autores separados por um ratificar o que se afirma aqui e ago-
e fazem o jumento andar. conseguiu nunca estabelecer uma de capítulos em sua série temática e oceano e um século de cultura tra- ra: José Castello chegou lá.
outubro de 2010

8 :: palavra por palavra : : Raimundo Carrero

Cuidado, essa pessoa


é falsa e engana muito
A sofisticada técnica narrativa de escrever em terceira pessoa com foco na primeira

F
Reprodução

alsa? Uma pessoa falsa é com a impressão de todo-poderoso que o cenário-começo de Educa-
gente perigosa, perigosa e e onisciente, embora inominado, é ção sentimental é narrado por
traiçoeira. Mas não é des- na verdade mistério ou segredo do- um narrador tradicional, inomina-
sa pessoa que eu quero fa- minado pelo personagem. Ele diz, do e onisciente. Não é. A narrativa
lar, embora a literatura esteja cheia ela afirma, ele revela, prepara o lei- é do próprio Frédéric, que, por si-
de personagens assim. A começar tor, que nem percebe. Às vezes pas- nal, não aparece ali:
por Dom Casmurro, de Machado sa todo o romance sem perceber. “No dia 15 de setembro de
de Assis. Na verdade, estou falan- Um pouco mais à frente, o lei- 1840, o Ville-de-Montreou, pron-
do de uma técnica narrativa sofis- tor vai encontrar um diálogo com as to a largar, soltava os seus grossos
ticada, embora possa ser lida com vozes claras de Frédéric e a Senhora rolos de fumo junto do Cais Saint-
facilidade. Ou seja, o texto é escri- Moreau, embora pareça ainda mais Bernard. Gente chegava esbaforida;
to em terceira pessoa com foco na uma vez a narrativa. Ou para alguém barricas, cordas, cestos de roupas
primeira. Um exemplo que aparece mais esperto, um diálogo narrativo dificultavam a circulação; os ma-
em Flaubert, no romance Educa- na terceira pessoa. Observem: rujos não respondiam a ninguém;
ção sentimental: “À noite, declarou à mãe que as pessoas atropelavam-se; entre
“Teria que continuar moran- ia regressar a Paris; a Senhora Mo- os dois cilindros eram içadas en-
do num quarto andar, ter como reau ficou surpreendia e indigna- comendas, e a vozeria perdia-se no
criado o porteiro, e aparecer com da. Era uma loucura, um absurdo. silvo do vapor das máquinas que,
umas pobres luvas pretas desbota- Era melhor seguir os conselhos que escapando por entre as chapas de
das, um chapéu ensebado, a mes- lhe dera, isto é, ficar junto dela, zinco, envolvia a cena numa nuvem
ma sobrecasaca durante todo o num cartório. Frédéric encolheu os esbranquiçada, enquanto a sineta,
ano. Não! Não! Nunca! Contudo, a ombros: ‘Que idéia’, considerando à proa, tocava sem parar”.
existência sem ela era insuportável. aquela proposta um absurdo”. Dessa forma, podemos ve-
Havia muita gente que vivia bem, Talvez seja mais fácil por rificar que o cenário humano é
mesmo não tendo fortuna, por causa da marcação ou dos verbos descrito em falsa terceira pessoa
exemplo Deslauriers; — e achou- dicendi: “declarou”, ”era” e “en- pelo personagem, movido pe-
se covarde por dar tamanha im- colheu”, por exemplo. O diálogo las suas emoções e preparando a
portância a coisas insignificantes. aparece mais vivo. Mais visível, ambientação onde transcorrerão
Talvez a miséria lhe centuplicasse até. Mas explica melhor a questão os primeiros movimentos que
os dons. Exaltou-se, pensando nos Gustave Flaubert: bom exemplo em Educação sentimental. da falsa terceira pessoa com muita conduzirão o romance. Aí surge
grandes homens que trabalhavam clareza: os personagens estão fa- o amor de Frédéric pela Senhora
em mansardas”. lando, conversando, e só num mo- Arnoux no episódio do xale e os
Basta observar bem o texto mento uma palavra aparece entre personagens mais importante são
para verificar que as palavras estão proposital para dar a impressão de apaixonado pelo enredo. Na obra aspas: “Que idéia!”. Mesmo assim apresentados. É curioso registrar,
de tal forma juntas às do persona- que é a terceira pessoa. Isso acon- mais sofisticada, o narrador recor- é uma palavra que possivelmente ainda, que Flaubert escolheu, jus-
gem que parece não haver um nar- tece muito na obra de Flaubert. re à terceira pessoa, de forma que não foi dita. O verbo que vem de- tamente, um navio de passageiros
rador autônomo. A terceira pessoa Mas quando e por que usar a disfarça a pessoa gramatical e é aí pois — “considerou” — não parece para criar as condições emocio-
se confunde com a primeira que é falsa terceira pessoa — posterior- que vai desenvolvendo a trama. O muito claro, não mostra a intenção nais da história.
quase impossível separá-las, com mente falaremos na falsa primei- leitor está sempre disposto a acei- verdadeira do personagem. Exercício: Escrever um texto
exceção do pretérito perfeito que ra pessoa. Simples. Na narrativa tar o que lhe é apresentado, o que Essa técnica vem se juntar a na primeira pessoa e depois trans-
vai aparecendo no fim do parágra- convencional, quase sempre — ou está escrito, quase sempre apenas outra que mostra o estado de es- formá-lo na falsa terceira pessoa,
fo: “achou-se” e “exaltou-se”. Aí há, sempre — as peripécias são traba- lê. E lê e lê. E aquilo que parecia pírito do personagem: o cenário mostrando o estado de espírito de
com certeza, um distanciamento lhadas de forma a provocar o leitor uma informação única do narrador, humano. A princípio dá a entender um personagem.

Tive uma discussão comigo mesmo e perdi. Sem falar em


e m r ele l aç
a ç ão
ão à le eiittuu ra
ra. A Atté q qu
u an
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andodoo o cã ãoo se f fi
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ngi iaa
nas discussões com a minha mulher, com os meus d e m or
de o rto
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t o , mim i nh
n h a vivid daa in ntte
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cttuuaall e rar a m aiais p poo br
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colegas e com o meu filho de cinco anos. Poder de qu
q ue a d deel
lee./ ///CCoo me
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argumentação, zero. Ignorância, dez. O que eu dizia, e nte
enntteennddii,, no i inn íc
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m o a lgué
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por si só, já era piada. Achavam minhas respostas não mo

não mor rrri
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me. Ou Ou co om
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ia possssív
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l con onf
fuund
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engraçadas mesmo quando a pergunta era séria.//Esse u m l obo
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o b o cocom u umm a vo v o vo
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. M as a s , coc o m o te tem mpp
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problema seria resolvido com um pouco de leitura, a p re
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nd e n te
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er a ló ógg ic
ica d daa li itt er
era att ur
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diziam. Livros, jornais, revistas e até álbuns de b o ns
bo n s l ivi v ro
r o s nã
não im imit
itamam a vid ida a.. Tê êmm vi idda pr
da própópr
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figurinhas poderiam ajudar. Para quem só lia rótulo Mais
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de cerveja, seria uma verdadeira revolução. Mas cr
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ler leva tempo e eu não era paciente nem na hora de Ma
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esperar.//Meus neurônios eram preguiçosos e minha um
uma n noov
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vaa pe esssoa
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ei as mi il p páá gi
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boca tinha vergonha do que saía dela. Pior do que Ul
U l is
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s, de J Jaa me
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e , f ácáce eiis c
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las.s./ ///
não encontrar as palavras certas, era pronunciar Pas
Pa sssei
ei a gan anhhaar a at
té as s dis isccuussssõe
ões c coom a e es
sppoossaa.
as erradas. Vocabulário, zero. Coerência, menos El
E la pe perdrdeeuu a he eggeem
moonnia
ia, ma mas e essta
tava
va orgul
rgu
rg ul
lho
hos
hosa
sa
a de es
sssaa
t r ê s . / / E agora você deve e s t a r p e n s a n d o : c o m o evol
evol
ev oluç
uçãoão.
o. E e eu
u, é c clla
lar
arro
ro,
o,
, tam ambé
ambébém m me
e si innt
too muiuitoto melelhhoor
um ignorante autoproclamado escreve um texto de co
com
om es essa
sa mud udaan
nçça
a em mi minh
nha vi vidada. AfAfin
innal
al de c
al coon
nttas
tas
as,
s, um
um di iaa
324 palavras e 26 frases coesas? É que depois de perder a ggeent
nte se se ca annsa
sa de sa sabe
ber tu tudo
udo
do de A a B. B.
uma discussão para o meu cachorro, mudei de opinião

29 DE OUTUBRO,
DIA NACIONAL DO LIVRO.
Embarque
nessa história!

01 A 10 OUTUBRO 2010
Estação Convention Center
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Café Literário
Fórum de Debates
Encontros com Autores
Sessão de Autógrafos
Atividades Infantis
outubro de 2010

10

Robson Vilalba

Valioso — mas desigual


Inocência, do visconde de Taunay, é o primeiro sopro, razoavelmente feliz, do realismo brasileiro

:: Rodrigo Gurgel Em tudo lhe achava graça, absoluta maioria tenha vida efême- Estilo, aliás, que contaminou Eucli- Quando Taunay narra, a enu-
São Paulo – SP especialmente no modo ingênuo ra — muitos não resistem à primei- des da Cunha, cujos ritmo da frase meração detalhada significa, prin-
de dizer as coisas e na elegância ra troca de fraldas; poucos, cujos e organização dos parágrafos asse- cipalmente, adjetivar. Antes dos

S
ejamos claros: Inocência, inata dos gestos e movimentos. amigos estão nos postos certos, ga- melham-se aos do visconde. O leitor trechos acima, ao descrever o princí-
de Alfredo Maria Adria- Embelezei-me de todo por esta nham sobrevida de uma década. que cotejar trechos de Os sertões pio do incêndio, as chamas são “es-
no d’Escragnolle Taunay, amável rapariga e, sem resistên- Mas a fama de Taunay não com o primeiro capítulo de Inocên- guias”, “trêmulas”, “medrosas”, “va-
mais conhecido como vis- cia, me entreguei ao sentimento se deve ao empenho de pistolões. cia ficará desagradavelmente sur- cilantes” e “sôfregas” — e isso num
conde de Taunay, é um romancinho forte, demasiado forte, que em Somaram-se alguns fatores para preso. Assim escreve Taunay: espaço de três ou quatro linhas. Mais
sentimental, contaminado daquele mim nasceu. Passei, pois, ao seu conceder à ficção do visconde a à frente, o leitor desavisado pode so-
sentimentalismo — tão próprio dos lado dias descuidosos e bem fe- importância de que desfruta ain- Através da atmosfera enu- frer engulhos diante do texto piegas,
românticos brasileiros — que dá lizes, desejando de coração que da hoje: Inocência é o primei- blada mal pode então coar a luz que exibe as piores características
vida a Romeus e Julietas apartados muito tempo decorresse antes que ro sopro, razoavelmente feliz, do do sol. A incineração é completa, do romantismo brasileiro:
do gênio shakespeariano. Neste me visse constrangido a voltar às realismo; o sinal de que, enfim, o calor intenso; e nos ares revoltos
caso, a filha dos Capuletos é uma agitações do mundo, de que me a temática dos nossos escritores volitam palhinhas carboretadas, Se falham essas chuvas vi-
jovem de atrativos duvidosos, agra- achava tão separado e alheio. começava a mudar e, lentamente, detritos, argueiros e grânulos de vificadoras, então por muitos e
dáveis aos que nascem e vivem na Pensando por vezes e sempre afastava-se da estética românti- carvão que redemoinham, sobem, muitos meses, aí ficam aquelas
rudeza do sertão — “Vinha vestida com sinceras saudades daquela ca. Acrescentemos a isso o ímpe- descem e se emaranham nos sor- campinas, devastadas pelo fogo,
de uma saia de algodão grosseiro e, época, quer parecer-me que essa to de se agarrar a qualquer tábua vedouros e adelgaçadas trombas, lugubremente iluminadas por
à cabeça, trazia uma grande man- ingênua índia foi das mulheres a de salvação — afinal, precisamos caprichosamente formadas pelas avermelhados clarões sem uma
ta da mesma fazenda, cujas dobras quem mais amei. de bons escritores! —, as poucas e aragens, ao embaterem umas de sombra, um sorriso, uma esperan-
as suas mãos prendiam junto ao inegáveis qualidades do livro, a re- encontro às outras. ça de vida, com todas as suas opu-
corpo. Estava descalça, e a firme- Sentimentos que inspiraram cepção positiva da obra no exterior Por toda a parte melancolia; lências e verdejantes pimpolhos
za com que pisava o chão coberto um conto, Ierecê a Guaná, e, sem e a vocação repetitória de parcela de todos os lados tétricas perspec- ocultos, como que raladas de dor e
de seixinhos e gravetos, mostrava dúvida, Inocência. da nossa crítica — e entenderemos tivas. mudo desespero por não poderem
que o hábito lhe havia endurecido De volta à realidade e às “agi- como Taunay chegou ao panteão É cair, porém, daí a dias ostentar as riquezas e galas encer-
a planta dos pés, sem lhes alterar, tações do mundo” — que lhe confe- da literatura brasileira. copiosa chuva, e parece que uma radas no ubertoso seio.
contudo, a primitiva elegância e pe- riram, até a queda do Império, hon- O texto que mais se aproxi- varinha de fada andou por aque-
quenez” — ou aos que, semelhantes rarias próprias de um respeitável ma do equilíbrio, quando se trata les sombrios recantos a traçar às Problemas que se repetem no
a Taunay, forçado a passar longo homem público, merecedor da con- de analisar a ficção de Taunay, é pressas jardins encantados e nun- transcorrer do romance, como nesta
tempo sob situações adversas, en- fiança de Pedro II —, Taunay casou- o capítulo Ecos românticos, ve- ca vistos. Entra tudo num traba- aula de empolamento, no Capítulo
contram maneiras sugestivas de se com Cristina Teixeira Leite, filha leidades realistas do livro Pro- lho íntimo de espantosa atividade. XXIII, em que aprendemos a descre-
satisfazer as pulsões sexuais: em e neta de barões. Como disse G. K. sa de ficção, escrito por Lúcia Transborda a vida. Não há ponto ver com exagero ou enfadar leitores:
suas Memórias, ele recorda o pe- Chesterton, “a sentimentalidade, a Miguel-Pereira. A autora capta os em que não brote capim, em que
ríodo durante o qual, ocupando o que é de bom gosto chamar de do- matizes do período de passagem não desabrochem rebentões com Aquela hora dava a lua de
posto de engenheiro do exército na entia, é de todas as coisas a mais do romantismo à obra madura o olhar sôfrego de quem espreita minguante alguma claridade à
Guerra do Paraguai, enfurnado no natural e saudável; é a verdadeira de Machado de Assis — e quando azada ocasião para buscar a liber- terra; entretanto, como que se
sertão mato-grossense, comprou extravagância da saúde juvenil”. chega a Taunay, não deixa, apesar dade, despedaçando as prisões da pressentia outra luz a preparar-
de certo homem, hábil negocian- das contemporizações, de apontar penosa clausura. se no céu para irradiar com súbi-
te, a posse da filha, uma indiazi- Verbosidade problemas. Lúcia cita qualidades Àquela instantânea ressur- to esplendor e infundir animação
nha chané, por “um saco de feijão, Questões biográficas à parte, do escritor — “o íntimo sentimen- reição nada, nada pode pôr peias. e alegria à natureza adormecida.
outro de milho, dois alqueires de Inocência tem recebido encômios to da língua, a graça da narrativa, Nos galhos das laranjeiras, ouvia-
arroz, uma vaca para o corte e um dos principais críticos brasileiros, o poder de animar as persona- E ele segue, adicionando ad- se o pipilar de pássaros prestes a
boi de montaria”, valores aos quais algumas vezes com evidente exa- gens, a arte de criar ressonâncias” jetivos sobre adjetivos, a ponto de despertar, um gorjeio íntimo e
teve de acrescentar, a fim de con- gero. Trata-se de prática rotineira — mas ressalta que ele as possuía causar entojo: aveludado de ave que cochila; e
seguir a plena anuência da jovem, entre nós, infelizmente, chamar de “sem grande relevo”. Aponta tam- ao longe um sabiá mais madruga-
“um colar de contas de ouro, que, genial o apenas razoável, como se o bém sua falta de “dotes para os Basta uma noite, para que dor desfiava melodias que o silên-
em Uberaba, me havia custado país, destituído de um número de conflitos psicológicos”; salienta formosa alfombra verde, verde- cio harmoniosamente repercutia.
quarenta ou cinquenta mil-réis”. gênios que corresponda ao tama- o pernosticismo de suas perso- claro, verde-gaio, acetinado, cubra Riscava-se o oriente de dúbias
Participando de uma guerra, es- nho do seu território, se dispusesse nagens femininas; e, ao falar de todas as tristezas de há pouco. linhas vermelhas, prenúncio mal
tacionado nesta ou naquela vila, a criá-los à força, ainda que, para Inocência, acrescenta ao último Aprimoram-se depois os esforços; percebível da manhã; nos espaços
Taunay, dócil à lei da necessidade, tanto, fosse obrigado a edulcorar a senão a simplicidade esquemática rompem as flores do campo que pestanejavam as estrelas com bri-
certamente idealizou os pés gros- verdade. E não há exagero em mi- das personagens e o caráter “bas- desabotoam às carícias da brisa lho bastante amortecido, ao passo
seiros da indiazinha — além de ou- nhas palavras. Leiam os cadernos tante prolixo” de seu narrador. as delicadas corolas e lhes entre- que fina e amarelada névoa em-
tros detalhes, inarráveis —, a ponto culturais: aqui, nasce um gênio a De fato, Taunay sofre de uma gam as primícias dos seus cândi- palecia o tênue segmento ilumina-
de, anos mais tarde, escrever: cada semana. É pena que a quase tendência irrefreável à verbosidade. dos perfumes. do do argênteo astro.
outubro de 2010

11

Não basta a Taunay listar os intriga amorosa entre pessoa da sa, logo, de um curandeiro. Soma humor, pois o cientista está sempre a
sinais do amanhecer; ele é mag- família e algum estranho. mais acertos que erros à sua prá- corrigir, de maneira paternal, o em-
netizado pelo circunlóquio: a cena tica, mas não hesita em agir como pregado, enquanto este vive numa in-
pegajosa está colocada diante do Passamos, assim, da ficção ao mentiroso e aproveitador quando dignação permanente, sem compre-
leitor, os adjetivos encharcam a relatório de excentricidades, o que lhe faltam os remédios certos, pas- ender o porquê de caçar borboletas
página, mas o visconde precisa adi- talvez justifique as inúmeras tradu- sando a receitar mezinhas cujo e outros insetos, mas resignando-se,
cionar ainda mais retórica e dizer ções do livro na Europa. Pari pas- efeito é incerto — e apesar de se pois necessita do emprego. O sábio e
“prenúncio mal percebível da ma- su, várias notas de rodapé servem a dizer homem de ciência, mostra-se o rude unem-se, desse modo, numa
nhã”. Reencontraremos esse vício, igual propósito. No Capítulo XVI, a apegado a superstições. Está longe, relação que, apesar do esquematis-
O autor em diferentes proporções. Quase divertida negociação entre o curan- portanto, de representar o herói ro- mo, jamais perde a graça.
ALFREDO MARIA no final, quando Cirino conhe- deiro Cirino e um paciente sovina, mântico de moral inquebrantável. À dramaticidade fácil e previ-
ADRIANO
D’ESCRAGNOLLE ce o sertanejo a quem Inocência que regateia o preço do tratamen- Quanto a Inocência, nada tem de sível do embate final, entre Mane-
TAUNAY está prometida, pensa: “— Enfim, to, estabelecido em “cem mil réis”, inocente. Pouco aparece no livro, cão e Cirino, contrapõe-se o como-
conheci o Manecão! (...) E para é ilustrada pela nota de rodapé que escondida numa espécie de gineceu, vente Capítulo XVII, em que um
Nasceu a 22 de fevereiro
esse é que reservam a minha gen- o visconde deve ter considerado im- mas, quando surge, comporta-se de morfético busca, desesperado, a
de 1843, no Rio de Janeiro
til Inocência?!... Bonito homem portantíssima: “É o preço por que maneira a ratificar as idéias machis- ajuda do falso médico para sua do-
(RJ), neto de Nicolas-Antoine
Taunay — pintor participante
para qualquer... para mim, para um curandeiro queria curar um tas de Pereira: mal conheceu Cirino, ença, àquela época sem cura. É um
da Missão Artística Francesa ela, horrendo monstro!... E como empalamado, por cuja fazendola age como sua cúmplice e, instintiva- dos trechos mais bem estruturados
que veio ao Brasil em 1816, é forte!”. Não satisfeito, o narrador passamos em julho de 1867, nesse mente, finge diante do pai: do romance, composto basicamen-
a pedido de dom João se intromete, a fim de completar o mesmo sertão de Sant’Ana”. te por dois longos diálogos, nos
VI — e filho de Félix Émile que não necessita de complemen- — Sente mais febre? Pergun- quais seguimos o violento precon-
Taunay, diretor da Academia to: “Digamo-lo, sem por isso ames- Voltando aos adjetivos, muitas tou Cirino muito baixinho. ceito que até hoje subsiste em re-
Imperial de Belas Artes e quinhar o nosso herói, a ideia de vezes a imaginação de Taunay torna- — Não sei, foi a resposta, e lação à lepra e o trágico desamparo
professor de desenho, grego
força do rival acabrunhava-o”. E de se febril — e no afã de encontrar o resposta demorada. do fazendeiro atacado pelo mal.
e literatura do jovem Pedro
maneira a comprovar a superflui- qualificativo correto, acaba fazendo — Deixe-me ver o seu pulso. O grotesco também está pre-
II. Alfredo, mais conhecido
pelo título de visconde, foi
dade da intromissão, volta a per- péssimas escolhas. Assim, os bu- E tomando-lhe a mão, aper- sente no romance, na figura do anão
bacharel em Ciências Físicas mitir que seu personagem reflita: ritis começam a “ciciar a modo de tou-a com ardor entre as suas, re- Tico, de rosto repleto de rugas e
e Matemáticas, engenheiro- “— Se eu pudesse... esmagava-o!... harpas eólias”, os cocos são vestidos tendo-a, apesar dos ligeiros esfor- mudo — “uma espécie de cachorro
geógrafo, militar, professor E que ar sombrio e desconfiado!... de “escamas romboidais”, a vila de ços que, para a retrair, empregou de Nocência”, diz o pai. Será ele, de-
e político (senador por Meu Deus, dai-me coragem...”. Ou- Sant’Ana do Parnaíba é “sezonática ela por vezes. moníaco em sua propensão a vigiar
Santa Catarina e presidente tras vezes, ele opta pela construção e decadente”, um personagem apre- Nisto, entrou Pereira. Ino- a protagonista, que alertará Pereira
da Província de Santa pleonástica evidente e pode deixar senta respiração “isocrônica e ruido- cência fechou com presteza os e Manecão, desencadeando o fim do
Catarina e Paraná). Dedicou- escapulir uma “carniça putrefata”. sa”... A infantilização também ronda olhos e Cirino voltou-se rapida- jovem curandeiro. Tico simboliza a
se à música, à pintura,
Apesar de nascido no Brasil, o livro: um “lepidóptero” pode ser mente, levando um dedo aos lábios própria rudeza do sertão, cujas re-
ao jornalismo e à crítica.
Deixou vários romances, um
Taunay era descendente de nobres azul “como cerúleo cantinho do céu”. para recomendar silêncio. gras nascem de uma ética funesta, se
livro de memórias e suas franceses. Em família, aprendeu, — Está dormindo, avisou comparada à do mundo civilizado.
impressões acerca de um desde cedo, a fidelidade ao sistema São inaceitáveis e incompreen- com voz sumida. Mas no que se refere aos diálo-
episódio decisivo na Guerra do monárquico e às raízes aristocrá- síveis, portanto, os juízos a respeito gos plenos de naturalidade, espalha-
Paraguai: a Retirada da Laguna. ticas. Dedicado ao país — sua dig- do livro que se consolidaram e con- Depois que os jovens final- dos por todo o romance, Taunay al-
Faleceu no Rio de Janeiro, na carreira política só foi cerceada tinuam a ser repetidos. Os pródigos mente se declaram, vêem-se diante cança sua melhor forma no Capítulo
a 25 de janeiro de 1899. pelo advento da República —, pa- elogios de José Veríssimo fazem-nos da impossibilidade de ficarem jun- XXIV, no qual reúne, em torno de Ci-
recia, no entanto, escrever para de- pensar se ele, de fato, leu o livro: tos, pois Inocência está prometida rino, moradores importantes da vila
leite dos europeus. Em Inocência, a Manecão. Após longa conversa e de Sant’Ana. A epígrafe do capítulo,
o narrador interrompe seu relato a Não havia em Inocência os muitas lágrimas, é dela que parte a irônica — repetindo, aliás, o poder
Trecho
fim de explicar a esses hipotéticos arrebiques e enfeites com que ainda idéia de pedir ajuda a seu padrinho, sugestivo das demais, sempre bem


Inocência
leitores o comportamento dos per- os melhores dos nossos romances a quem o pai respeita e deve favores escolhidas pelo autor —, anuncia:
sonagens e os costumes da região; e presumiam embelezar-nos a vida e e dinheiro. Ladina, mais maliciosa “Debaixo do céu há uma coisa que
o faz com estranho distanciamento, os costumes e a si mesmos sublima- que Cirino — apesar de viver quase nunca se viu: é uma cidade pequena
assumindo a voz do etnógrafo que rem-se. E com rara simplicidade de enclausurada —, ela insiste: sem falatórios, mentiras e bisbilho-
Quando o nosso saxônio narra a estrangeiros os traços exó- meios, língua chã e até comum, es- tices”. O major Taques, o vigário e o
entrou na sala em que ticos de certo povo. No Capítulo V, tilo natural de quase nenhum lavor — Mas, interrompeu Inocên- coletor crivam Cirino de perguntas,
Pereira, o pai de Inocência, verbali- literário, composição sóbria, de- cia, não lhe fale em mim, ouviu? às quais o rapaz responde, às vezes
estavam as suas cargas,
za sua opinião sobre as mulheres: sartificiosa, quase ingênua, e, rela- Não lhe diga que tratou comigo... de maneira capenga, pois pretende
vinha tão contente do tivamente à então vigente, original que comigo mapiou... Estava tudo esconder o real motivo da viagem.
gasalho recebido, da — Esta obrigação de casar e nova, saía uma obra-prima. perdido... Invente umas histórias... Trata-se de um quarteto operístico
as mulheres é o diabo!... Se não to- faça-se de rico... nem de leve deixe perfeito, em que cada personalidade
firmeza do tempo, das
mam estado, ficam jururus e fana- Alfredo Bosi, peremptório e assuntar que foi por meu juízo que assume uma voz própria, introme-
futuras caçadas de dinhas...; se casam podem cair nas desmedido, diz que, “no âmbito mecê bateu à porta dele... Hi! Com tendo-se na conversa e fazendo ob-
borboletas, que despertou mãos de algum marido malvado... de nosso regionalismo, românti- gente desconfiada, é preciso saber servações paralelas. Logo a seguir,
E depois, as histórias!... Ih, meu co ou realista, nada há que supere negaciar... Manecão aparece e a tensão se ins-
a atenção do seu
Deus, mulheres numa casa, é coi- Inocência em simplicidade e bom tala. Quando o grupo se desfaz e os
camarada José. sa de meter medo... São redomas gosto”. E apenas para citar mais Num breve trecho, Taunay rivais se afastam, tomando rumos
Estava este encostado de vidro que tudo pode quebrar... um exemplo, fiquemos com o des- pode retratar perfeitamente as fa- opostos, os inevitáveis comentários
Enfim, minha filha, enquanto sol- tempero de João Luiz Lafetá: las e os gestos típicos, somando-os surgem, dando vida a especulações.
a uma canastra, a
teira, honrou o nome de meus ao orgulho do pai que, a seu modo, Tais cenas, que merecem elo-
esgaravatar, de faca pais... O Manecão que se agüente, A narrativa de Inocência ama a filha: gios, formam uma antevisão do que
comprida em punho, a quando a tiver por sua... Com gen- tem a graça das coisas simples, e o melhor realismo e os mais impor-
planta dos pés, verificando te de saia não há que fiar... Cruz! por isso é que nos atinge de modo — Pois bem, o Manecão ficou tantes ficcionistas pós-Semana de
botam famílias inteiras a perder, tão direto em nossa sensibilida- ansim meio em dúvida; mas quando Arte Moderna produziram em nos-
se alguma pedrinha da enquanto o demo esfrega um olho. de. Uma história de juventude e lhe mostrei a pequena, foi outra can- so país. É pena que não pertençam
estrada não havia se amor, contada sem afetação e sem tiga... Ah! Também é uma menina!... a um todo coerente, uniforme, mas
incrustado na grossa e já Preconceituosas, as palavras pretensões de grandeza, despida E Pereira, esquecido das pri- sejam o reflexo da personalidade que
refletem o pensamento típico do ho- de idealizações eloqüentes, tem a meiras prevenções, deu um muxo- Wilson Martins sintetizou: “Realista
insensível sola.
mem rude ou interiorano, transmiti- exemplaridade dos fatos paradig- xo expressivo, apoiando a palma pela inspiração, mas romântico pelo
— Homem, disse ele com do boca a boca até hoje, e recuperam máticos, representa com exatidão da mão aberta de encontro aos estilo e pelos sentimentos; olhando a
familiaridade, Mochu está a saborosa forma de falar da gente um dos grandes momentos da vida grossos lábios. realidade bem nos olhos... mas com
simples. Taunay, contudo, se encar- de cada um de nós. — Agora, ela está um tanto os olhos ingênuos do menino louro
hoje muito alegre... Viu
rega de enfraquecer a naturalidade desfeita; mas quando tem saúde é e de cabelos anelados criado junto à
passarinho verde? do parágrafo, acrescentando: Antevisão do realismo choradinha que nem mangaba do saia da mãe”. Voltaremos a Taunay
— Passarinho verde? Se há uma qualidade no tex- areal. Tem cabelos compridos e fi- num próximo ensaio. Por enquanto,
Esta opinião injuriosa sobre to de Taunay, ela se concentra no nos como seda de paina, um nariz deixo os leitores com este romanci-
perguntou Meyer. Que é
as mulheres é, em geral, corren- perfil e nas vozes de alguns perso- mimoso e uns olhos matadores... nho valioso, mas desigual.
isso? Não vi passarinho te nos nossos sertões e traz como nagens. Cirino e Inocência, o par de Nem parece filha de quem é...
nenhum... Vi uma moça conseqüência imediata e prática, apaixonados, ainda que obedeçam a
além da rigorosa clausura em que planos esquemáticos — seguem, até Um segundo par, formado por NOTA
muito bonita...
são mantidas, não só o casamen- o paroxismo, os piores chavões da personalidades antagônicas, prende Desde a edição 122 do Rascunho
— Olé... melhor ainda... to convencionado entre parentes estética romântica —, demonstram nossa atenção: o entomologista ale- (junho de 2010), o crítico Rodrigo
Conte-me isso... muito chegados para filhos de me- certa complexidade, infelizmente mão Tembel Meyer e seu criado, José. Gurgel escreve a respeito dos

e quem é ela. nor idade, mas sobretudo os nu- mal aproveitada. Cirino apresenta- O relacionamento desses dois é mar- principais prosadores da literatura
merosos crimes cometidos, mal se se como médico, mas sequer tirou o cado por uma tolerância na qual à re- brasileira. Na próxima edição, Bernardo
— É a filha cá do Sr. Pereira. suspeita possibilidade de qualquer diploma de farmacêutico; não pas- lativa tensão soma-se perfeita dose de Guimarães e O seminarista.
outubro de 2010

12

Reinaldo Moraes

N
o dia 23 de setembro, o Paiol Literário — projeto promovido pelo jornal
Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba e o Sesi Paraná
— recebeu o escritor paulista Reinaldo Moraes. Nascido em 1950, Reinaldo
é autor de livros como Tanto faz, Abacaxi, A órbita dos caracóis,
Umidade e Pornopopéia, este último finalista do Prêmio Portugal Telecom
deste ano. Numa conversa com o escritor e jornalista Luís Henrique Pellanda, o convidado
falou sobre os rumos da atual literatura de ficção, lembrou episódios de sua vida e de
sua carreira, suas primeiras leituras e a namorada de infância, e discorreu acerca de
seus livros favoritos, de seus 17 anos sem publicar e do grande ofício de escrever, que
considera uma espécie heróica de guerra, “contra tudo e contra todos”.

• O verismo e eu exemplos de ficção não abonada você quer passar duas horas matan-
No Pornopopéia, minha pela experiência de seus autores e do o seu tempo, vá ao cinema ou ao
intenção era brincar um pouqui- também, por outro lado, infinitos teatro de boulevard, entre no You-
nho com esta expectativa do leitor: títulos de livros em que isso aconte- tube”. Ao mesmo tempo, a literatura
quem é que está escrevendo? Brin- ce, onde o cara está ali cozinhando, se desobrigou de retratar realidades.
car com a idéia do verismo na litera- decantando experiências muito di- Com isso, perdeu muito público, e
tura. Se você — ou qualquer escritor retas da sua vida. Só que, na verda- vem perdendo cada vez mais. Acho
em qualquer parte do mundo — es- de, no auge da literatura do século que, a certa altura, as pessoas só vão
creve na primeira pessoa, vai gerar 19 — com Flaubert, Balzac, Zola e ler essa patacoada de quinta catego-
no leitor uma expectativa biográ- outros autores menores, mas que ria, essa mistura de ficção com auto-
fica. “Não, o cara está falando dele vendiam muito —, o interesse era ajuda que é o que o Paulo Coelho faz.
mesmo. Ele esteve na guerra e está o seguinte: as pessoas que sabiam Mas as pessoas se interessam por
contando a história da guerra. Ele ler compravam aquilo para se en- isso. Acham que ali vão ter um cres-
esteve na prisão e está contando a treter e se divertir. Não tinha tele- cimento espiritual, um contato mais
sua história na prisão. Ele foi junkie visão nem cinema. As pessoas que profundas com si mesmas e com as
e está contando a sua história como iam ao teatro, não iam lá todo dia. instâncias superiores, invisíveis, que
junkie”. Agora, a única prova que Então, a diversão doméstica era a supostamente nos regem. Então,
você tem disso é o fato de o cara estar literatura, e as pessoas não se per- na verdade, acho que a literatura só
escrevendo assim: “Eu disse, eu fiz, guntavam tanto se um cara tinha vai servir para isto: para o leitor ver publicada no JB, o jornal de maior • Filho único
eu falei”. E mais nada. Então, com o realmente vivido aquilo ou não. como vive um favelado e aprender prestígio intelectual da época. Pois As pessoas lêem coisas fantás-
Pornopopéia, quis que o leitor es- Elas queriam ler uma boa história. a se aperfeiçoar espiritualmente. É o cara, lá no JB, escreveu uma crí- ticas. Você encontra quem, aos 14
quecesse um pouco essa coisa de sa- Aquilo tinha que ter uma boa tra- uma visão bastante pessimista. tica imensa sobre meu livro, uma anos, já tenha lido todo o Kafka. Aos
ber se o autor fez ou não aquilo que ma, um bom gancho. Quem matou? crítica detalhista, simplesmente me 14, eu nem sabia quem era o Kafka.
o seu narrador em primeira pessoa Quem está apaixonado? Ele vai ca- • “Conficção” arrasando, me esculhambando. O Ou então: “Comecei a ler Proust aos
diz que fez. Na verdade, nem sei se sar ou não vai? Fulano está namo- A “conficção” é muito comum. Tanto faz era composto por frag- 16”. Eu nem sabia quem era Proust
é para esquecer. É uma questão que rando a mulher do outro — será que O primeiro livro de um autor costu- mentos, só que eu fui controlando aos 16. Mas o negócio é o seguinte:
fica um pouco cambiante, ambígua. o outro vai descobrir? Vai dar rolo? ma ser fortemente autobiográfico. esses fragmentos, compondo com sou filho único. E filho único tende
E acho interessante que seja assim. Pois esses tradicionais ganchos ro- O cara quer escrever e o assunto eles uma passagem de tempo, uma a ser um cara que convive com a so-
manescos prendiam a atenção das mais à mão é a vida dele mesmo. espécie de saga meio solipsista. Mas lidão. Meu pai trabalhando, minha
• Nada de B. O. pessoas, que liam para se entreter. Quando comecei a fazer isso, eu es- o cara não viu isso. Ele só viu con- mãe em casa, eu ali. E tinha a esco-
Atualmente, existe um tipo de Num segundo plano, claro, liam tava em Paris, com 29 anos e uma fusão, e disse: “Pô, esse sujeito nem la também. E horas e horas e horas
literatura se firmando que, acho, é o também para saber como viviam os bolsa de estudos, sozinho, num re- sabe fazer uma história com come- de solidão. Meus pais me davam li-
que está sustentando a chamada li- outros. O Balzac dizia: “As pessoas gime acadêmico que me dava muito ço, meio e fim, isso não tem pé nem vros de Monteiro Lobato. Os doze
teratura de ficção. É esse tipo de lite- me lêem porque convivo com a alta tempo livre. Eu queria escrever, e cabeça”. Na verdade, tinha, mas ele trabalhos de Hércules, O Sítio
ratura em que um cara escreve sobre sociedade parisiense, e a arraia-mi- fui escrevendo nos cafés, tomando preferiu não ver e abolir comple- de Picapau Amarelo. Livros que
algo que viveu. Você lê Cidade de úda — que sabe ler, mas que não a um vinhozinho, aquela coisa ro- tamente a distância entre autor e milhões e milhões de crianças da
Deus, do Paulo Lins, e ali tem mui- freqüenta, que não poderia jamais mântica. Chegava em casa e passava personagem. Para ele, o cara do li- época liam. Mas eu também lia gibis
ta ficção. Ele próprio já cansou de passar pelos portões dos grandes tudo para a máquina de escrever. E vro era eu. Mas eu fui a Paris como pra cacete, todos os gibis da banca,
dizer isso, e só o fato de o autor ter palácios — quer saber o que acon- aí comecei a criar um personagem, bolsista e cumpri todos os rituais e tudo, e lia os livros da minha mãe, os
armado aquelas histórias todas den- tece lá dentro, como é o baile, como um sujeito que tinha ganhado uma as liturgias de uma bolsa. Meu per- “livros escondidos”. Ficavam num
tro de uma narrativa coesa já mostra são as marquesas e os duques, quer bolsa de estudos em Paris, mas que, sonagem não. Ele dá uma banana armário, à chave, só que eu sabia
que aquilo é mesmo uma ficção. A saber da traição, da raiva e da gra- em vez de se dedicar aos mistérios à bolsa, um va fanculo, e diz: “Não onde a chave estava e, sempre que
própria linguagem também faz isso. na, e como vivem as pessoas que acadêmicos, se punha a escrever o vou fazer porra nenhuma, vou viver fosse seguro, ia até lá, abria o armá-
Mesmo que você vá contar algo que não têm que ganhar a vida. Hoje, que lhe viesse à cabeça, e até mesmo no dolce far niente”. A brincadeira rio e pegava um livro. Li Servidão
supostamente aconteceu, quando esse interesse já é fartamente su- sobre o nada. O filme que ele tinha era essa. O cara chuta o mundo da humana, de Somerset Maugham,
você o conta já está ficcionando, por- prido pela televisão e pelo cinema. acabado de ver, um mendigo na rua, produção, chuta a realidade e re- umas 30 vezes. Da primeira vez que
que a linguagem verbal nos obriga a Todo mundo já cansou de ver filme uma gripe que ele teve, um passeio solve instaurar ali uma espécie de o li, não entendi nada. Mas era um
dispor as coisas de uma forma que de guerra, de nobreza, de detetive e no metrô, uma garota linda passe- bliss, de útero. O cara recria uma livro que estava trancado, por isso
não é exatamente aquela pela qual de junkie, filme do que você quiser, ando no cais. Ou seja, ele elegia as vida uterina totalmente agradável, fui lendo, lendo, lendo até começar
aconteceram. Mas, hoje em dia, você brasileiro ou estrangeiro. Essa jane- coisas sem nenhum estatuto histó- sem responsabilidades. E esse crí- a entender um pouquinho o que es-
lê um livro e fala: “O Paulo Lins veio la para a vida dos outros deixou de rico ou psicológico, simplesmente tico dizia: “Esse cara recebeu uma tava acontecendo ali. Também li Eu
da Cidade de Deus, teve essa expe- ser literatura em algum momento. escrevia o que estava lhe passando bolsa do governo francês e do go- e o governador, da Adelaide Car-
riência de viver numa comunidade pela cabeça. E aí vocês me pergun- verno brasileiro para fazer esse raro. E aí tinham as cenas de sexo.
violenta. Estou lendo este livro com • Pessimista tam: “Então você estava fazendo monte de patifarias e ainda escre- Sexo! Aquela coisa fantástica! Então,
interesse por saber que essas histó- Então, as pessoas já não usa- uma autobiografia?”. Não, porque ver sobre isso? Onde estão as au- para mim, na infância, sobretudo, e
rias foram realmente vistas e vividas, vam preferencialmente a literatura esse personagem fazia uma série toridades, os poderes constituídos, dela até a primeira adolescência, a
e que o autor está me conduzindo a como janela para ver outras reali- de coisas que eu não fazia, e pas- que não tomam uma providência?”. literatura tinha um caráter clandes-
um universo que não conheço. E por dades. E aí o pessoal das vanguar- sou a ter aquele contorno dos per- Ou seja, na minha primeira crítica, tino. Havia aquilo que eu podia ler e
isso o livro é legal”. Discordo. Um das, do século 19 para o 20, parte sonagens picarescos de que sempre o cara mandava me prender. Fiquei aquilo que eu não podia. E, quando
livro é legal porque é bem escrito, para outro negócio. Já imaginou o gostei, desde criança, quando lia as paranóico. Falei: “Puta que o pariu! comecei a escrever, escrevia aquele
bem narrado. Um livro não é um B. Joyce? Ele escreveu Ulisses, um aventuras do Pedro Malasartes. Caralho, vai estacionar um cambu- tipo de livro que não se podia ler, e
O. Não é um boletim de ocorrência. livro complicado. As pessoas o liam rão aqui na frente!”. Era 81, era a que era muito mais interessante —
para saber o quê? Como vive um jo- • Eu, um outro ditadura. Lembro quem foi o críti- apesar de Monteiro Lobato ser uma
• Vale o que vem professor pobre com aspirações Uma tia do interior tinha uma co, mas não falo o nome dele. Nun- delícia. Eu também tinha o Tesou-
está escrito literárias, o Stephen Dedalus? Como coleção de fábulas brasileiras, e eu ca mais li nada nem soube nada ro da juventude. Meu pai me deu
A Bruna Surfistinha escreveu vive um sujeito que tem um empre- adorava o Pedro Malasartes, aque- daquele cara. Alguém, uma vez, me a coleção quando eu estava com 10,
um livro que não tem nenhum mé- guinho mequetrefe numa espécie de le personagem safado, que estava disse que ele era filho de um figurão 11 anos. Eram 18 volumes e todos
rito literário, mas vendeu milhões agência de publicidade, o Leopold sempre correndo riscos e se safando do governo João Goulart, um cara traziam condensações de livros. Eu
porque as pessoas querem saber Bloom? A coisa se passa durante um pela inteligência, essa inteligência claramente de esquerda, e que ti- lia Almeida Garrett, Camilo Castelo
como vive uma prostituta. O Drauzio dia só, e um cara fica tentando entrar muito imediata que é a coisa do ma- nha também estado em Paris, com Branco. Gostei tanto de Amor de
Varella escreveu Carandiru, pas- na cabeça dos outros, num fluxo de landro. E percebi que aquele perso- uma bolsa. Ficou indignado por perdição, de Camilo Castelo Bran-
sou anos e anos convivendo com os consciência, passa de uma pessoa à nagem que supostamente seria eu, saber que um sujeito tinha pegado co, que depois comprei o livro. Quer
detentos, e seu livro vendeu 600 mil outra, uma complicação para quem no Tanto faz, na verdade era ele. aquele dinheiro todo para tomar dizer, eu era um garoto de 12 anos
exemplares, um recorde no Brasil. As já estava afeito à narrativa discursi- Era aquela história do “moi c’est un vinho e tentar comer umas menini- que tinha lido Amor de perdição,
pessoas o compram para saber como va, cronológica e linear. Passar para autre”, “eu sou um outro”. Aquele nhas. E aí você começa a perceber de Camilo Castelo Branco! E não ti-
é a vida na prisão, naquela espécie um negócio desses era uma ginástica personagem não era eu, era esse que a literatura tem força. Porque nha com quem conversar sobre isso,
de inferno organizado. Esse tipo de que pouca gente se dispunha a fazer. Pedro Malasartes que sempre reve- se, nem por um segundo, passa não tinha um puto dum garoto a
literatura vai acabar dominando to- E essa vertente mais experimental renciei como um personagem en- pela cabeça de um acadêmico que quem eu pudesse perguntar: “Você
talmente a cena literária e aquilo que da literatura vai se acentuando com graçado, gostoso de ler. Então meu está escrevendo sobre um livro, que leu Amor de perdição?”. “O
a gente chamaria de uma “literatura o surgimento de novas mídias, mui- personagem no Tanto faz estava aquilo pode não ser a verdade, que quê?” “Do Camilo Castelo Branco,
pura” — dentro de milhões de aspas to mais rápidas. Você, em duas ho- comendo todo mundo, tomando aquilo pode não ser um B. O. que o aquele escritor português?” “Quê?!”
—, na qual o cara não está usando a ras, vê num filme como é a vida do todas e farreando, e eu, escrevendo autor está fazendo sobre si mesmo, “Aquele escritor português do sécu-
vivência dele como aval para o que outro. Esse é um pensamento um a história dele, de madrugada, que é porque o negócio tem força. Mas lo 19?” Não tinha condição.
está escrevendo. Quer dizer, ali, vale pouco simplista, mas extremamente nem um idiota. E pensei: “Acho que demorei muito a dar a volta por
só o que está escrito. A realidade que verdadeiro: a literatura se refugiou estou fazendo literatura”. cima. Depois, começaram a sair crí- • Ordem e desordem
esse tipo de ficção instaura só existe num lugar de difícil acesso. Alguns ticas extremamente positivas sobre Com 16 anos, descobri dois
entre a capa e quarta-capa dos livros. escritores têm orgulho de praticar • O crítico o Tanto faz, de pessoas bacanas, livros que me fizeram a cabeça.
uma literatura que não é para todo manda prender que tinham gostado do livro, e meu Memórias de um sargento de
• Como vivem mundo, que não tem uma legibilida- Meu primeiro livro, Tanto eguinho ficou um pouquinho mais milícias e Memórias póstumas
os outros de tão direta. É como se dissessem: faz, saiu em 1981, e fiquei trêmulo inflado. Mas tomar uma primeira de Brás Cubas. Dois livros com
A gente pode citar infinitos “Se você quer diversão imediata, se esperando a primeira crítica. Ela foi crítica dessa é barra-pesada. títulos parecidos, por coincidência.
outubro de 2010

13

Realização apoio

• Condições ideais
“Um livro é legal porque é bem meiro. Aí, o terceiro foi o do Mar-
celo Rubens Paiva, Feliz ano ve- O Pornopopéia surgiu
escrito, bem narrado. Um livro lho, e o quarto, o do Caio Fernando como um conto que eu ia publicar
Abreu, Morangos mofados. Du- no Umidade, um livro que saiu
não é um B.O. Não é um rou alguns anos essa coleção. Saiu em 2005, com dez textos. Ele seria
por lá a Ana Cristina César, o Wally o décimo primeiro conto. Eu brin-
boletim de ocorrência.” Salomão. E aí, num belo dia, olhei cava com o Luiz Schwarcz, que ado-
no espelho e falei: “Porra, véio, cê ra futebol — eu também, mas nem
virou escritor! Agora fudeu”. tanto —: “Esse livro tem que ter
onze jogadores em campo”. “Legal
• Picaretagem essa idéia dos onze”, o Luiz dizia,
Em 1985, veio o Abacaxi — “só que esse conto aí está com 60
inclusive, vão sair, agora, pela Com- páginas, muito grande, e nem cara
panhia das Letras, esses dois livros, de conto tem”. O Luiz é um bara-
o Tanto faz seguido do Abacaxi, to. “Isso está com cara de romance
no mesmo volume. E o Abacaxi inacabado”, ele dizia. E eu: “Então
foi uma picaretagem. O dono da tá”. Mas pensei: “O que vou fazer
L&PM, o Ivan Pinheiro Machado, com esse romance inacabado?”.
um amor de pessoa, ficou fã do Vou acabar. Sentei e comecei a es-
Tanto faz e me disse: “Seu segun- crever. Algo muito importante, e
do livro vai sair por aqui”. E me deu que as pessoas esquecem de men-
uma mesadinha durante seis meses, cionar em debates literários, tem
uma coisa tipo um pau e meio, nem a ver com as condições objetivas
chegava a dois paus, mas para mim para um cara escrever. O cara tem
quebrava o maior galho. Eu tinha que ter tempo e cabeça. E eu tive.
largado meu trabalho na Fundap Por sorte. Devo isso ao Mario Pra-
(Fundação do Desenvolvimento ta, com quem já tinha feito duas
Administrativo), vivia só de frilas e novelas, e que me chamou para fa-
morava com dois amigos, uma me- zer uma terceira (Bang-Bang). Em
nina e um cara. A gente repartia um 2004, fui contratado pela Globo
foto: matheus dias
apartamento e meus gastos eram por um belo salário — para os meus
muito baixos. Com o equivalente padrões. Não havia muito trabalho
a um pau e oitocentos eu resolvia a fazer. Quer dizer, havia picos de
Acho que devo ter lido o Manuel filho de um devastador ecológico. lido minha carta —, fiquei vermelho, meu mês — não era casado, não trabalho, uma ou outra semana em
Antônio de Almeida primeiro. Me- E era muito território, muita terra e ela também. E a gente acabou ten- tinha filhos. Então, recebi essa gra- que a gente trabalhava muito. Isso
mórias de um sargento de milí- e muita madeira. Meu pai chegou do um namorinho, de ir ao cinema na durante seis meses e, evidente- antes de a novela estrear, pois fi-
cias é um livro delicioso que, a cada a ter dois barcos, dois rebocado- no sábado. Comecei a escrever car- mente, não escrevi porra nenhuma. camos trabalhando um ano antes
três, quatro anos, eu releio, e até o res no Rio Paraná. Eles desciam tas para ela sem parar, todo dia uma Quando os seis meses acabaram, disso e, às vezes, havia 15 dias sem
reli agora há pouco, na Flip, onde com as chatas vazias, instalavam carta, e o Paulinho, o meu amigo, o Ivan me perguntou: “E o livro?”. nada que fazer. E aí eu tinha as cha-
participei de uma mesa em que os por lá serrarias móveis, cortavam era quem as levava para ela. Um dia, Pois é. Peguei e fui para Mauá, me madas condições ideais: uma idéia
autores liam um trecho dos livros a madeira em toras, às vezes já em a Rosemary com 11 anos, eu com 12, enfiei numa pousadinha barata na cabeça, grana no bolso e tempo
que fizeram suas cabeças. (...) O tábuas, as embarcavam nas chatas, a mãe dela achou as cartas. A meni- com uma máquina de escrever e em disponível. E mandei bala. Quan-
texto do Manuel Antônio de Almei- e o rebocador subia o Paraná até na tinha começado a ir mal na esco- 15 dias fiz o livro todo (faz mímica e do a novela estreou e começou a
da tinha o mesmo figurino do Pedro Presidente Epitácio, pegava a So- la, e eu também, estava na primei- barulho de digitação). Depois, vol- esquentar, quando entrou naque-
Malasartes, e também dos meus rocabana e ia até São Paulo. ra série do ginásio e tomei pau em tei, trabalhei outros 15 dias, dei uma le ritmo industrial, eu estava num
personagens. É aquele tipo malan- tudo, menos em português. Eu não ajeitadinha no texto e o mandei para time de quatro, cinco roteiristas e
dro que está sempre oscilando entre • Televisão, sabia nada, só sabia dois mais dois, o Ivan. Outro dia, relendo o livro tinha uma cota de oito a doze pági-
a ordem e a desordem, sempre den- televisão, televisão só pensava na Rosemary e passava para dar uma mexidinha nele, achei nas para produzir por dia, coisa que
tro e à margem da sociedade. Um Meu pai não lia nada. Dormia as aulas escrevendo para ela. Pois um monte de coisas ruins. Pen- eu tirava de letra. E continuava me
cara livre, que faz o que quiser, que lendo jornal. Minha mãe, que era a mãe da Rosemary achou aquelas sei: “Mas por que ficou tão ruim?”. sobrando tempo. Quando a novela
se relaciona com pessoas engraça- normalista e se formou professora cartas e falou: “Porra, minha filha tá Porque eu estava querendo encher acabou, fui despedido, recebi uma
das, que arranja amores fortuitos e primária, é que gostava de ler. Ela sendo seduzida por um sujeito de 20 lingüiça. Naquela primeira redação, indenização e fiquei dois anos sem
noturnos, sempre com essa coisa da era justamente aquele personagem anos!”. E ficou puta! “Porra, que qué que fiz em 15 dias, o livro ficou com fazer nada! Só escrevia! Até gosta-
exploração da noite, a noite como do século 19 que sabia o suficien- isso, quem é esse cara, pô?”. E a Ro- umas 70 páginas. E falei: “Pô, esse ria de fazer isso de novo. Inclusive,
outro universo. Tem o universo do te para poder ler um romancinho. semary: “Não, é só um garoto de 12 livro não vai parar em pé, tenho depois vou passar meu chapéu e vo-
dia, que é o universo da produção e Mas, quando chegou a televisão, anos”. “Quero ver esse menino, que- que encher mais lingüiça!”. E en- cês façam uma contribuição. Para a
da ordem, e o da noite, que é o uni- ela parou de comprar livros. Era ro que ele venha aqui!” Aí, a Rose- chi mais um pouquinho. Ficou com continuação do Pornopopéia.
verso do delírio, do sonho, do dese- televisão, televisão, televisão; e eu mary me ligou e disse: “Minha mãe 85. “Não, tá ruim ainda, tenho que
jo, da sacanagem, da bebida, da far- adorava a televisão também. Via quer que você vá lá, entendeu?”. E passar de cem.” Daquelas enchidas • Guerra contra todos
ra. (...) Sempre tive essa paixão pela direto. Só que a televisão era um eu fui, eu e o Paulinho, eu com o uni- de lingüiça, algumas eram até meio Isso foi fundamental. Eu só
vida noturna, boêmia, uma espécie canal só, dois canais, depois de 15 forminho do Caetano de Campos, graciosas, mas a maior parte era só fazia isso, cara. Trabalhava todo
de pátria onde as regras que valem anos, três. Eu via desenho anima- ele com o uniforminho do Luís de isso mesmo, encheção de lingüiça. dia. Fim de semana, férias. Com a
de dia ali não valem mais. Ou seja, do, depois começaram a pintar as Camões. Fomos lá encontrar a mãe Agora estou dando uma revisada no minha mulher, com as meninas —
na noite, você basicamente pode fa- novelas. Minha mãe parou de ler, da Rosemary, que era cabeleirei- Abacaxi. Não tenho o menor pu- tenho três filhas. Mas eu não queria
zer o que quiser ou puder fazer. mas ainda lia revistas, a Claudia... ra, e tinha um salão. Eu tremendo. dor. Estou vivo, o texto está vivo, vai saber: eram férias para elas, para
Então, vim de um meio muito pou- Quando a mulher abriu a porta e me ser reeditado, vou mexer nele. mim era sentar e escrever. Eu acor-
• Brás Cubas e a Bíblia co literário, muito pouco culto, o viu, começou a rir: “Pô, é você que é dava às cinco e meia, às seis da ma-
Quando li o Brás Cubas, fa- que não acho nem bom, nem ruim. o Romeu, o grande sedutor que es- • Trauma nhã, todo dia, já com a cabeça fun-
lei: “Putz, isso é do caralho! É o que creve aquelas cartas?”. Um moleque Aí fiquei 17 anos sem publicar. cionando. Acordava e escrevia. Mas
quero ler pro resto da vida!”. Aquele • Narcisismo primário magérrimo, cheio de espinhas! Não Meu primeiro livro me deu pro- chegou um momento ali, sobretudo
estilo dubitativo, aquela ironia e, ao Li Memórias de um sar- era nada parecido com aquele terrí- blemas em casa, familiares. Meus quando a grana acabou, em que a
mesmo tempo, uma absoluta maes- gento de milícias e Memórias vel sedutor que ia deflorar a filhinha pais ficaram indignados, porque o Marta (Garcia, editora da Compa-
tria na escrita. Uma coisa cativante póstumas de Brás Cubas certa- dela. Aquela foi uma das minhas Tanto faz falava de sexo e drogas. nhia das Letras), minha mulher,
e extremamente bem-feita, de você mente por causa de um professor. primeiras leitoras. Me levou tão a Quando percebi que meu persona- falou: “Bom, e agora, como é que é?
não conseguir largar. Devo ter lido Até me lembro de um professor de sério quanto o crítico do JB: “Tem gem era um personagem de ficção, Não vai pegar um trabalhinho?”. Eu
o Memórias póstumas umas 20 redação que eu adorava, e que me que prender esse cara!”. Eu, um pe- tomei a liberdade de fazê-lo falar falei: “É, vou”. Mas não ia. E aí me
vezes, e até mais. Virou uma espécie adorava também. Ele adorava mi- dófilo seduzindo a sua filha. sobre sua família com total des- ofereciam tradução para fazer e eu
de Bíblia para mim. Quando come- nhas redações e eu adorava escre- façatez. Mas, se o crítico marxista não fazia. Me ofereciam roteiro para
cei a escrever o Tanto faz, quan- ver redações, com aquele narcisis- • Fudeu que estudou na Europa achava que escrever, eu torcia para não dar cer-
do percebi que dali estava saindo mo bem primário. Eu escrevia para Quando voltei da França para aquele personagem era eu, imagina to e não dava. Eu só queria acabar
um livro, parei e reli o Memórias o cara gostar e vir me elogiar. Eu o Brasil, trabalhei mais uns seis minha mãe e meu pai, um comer- aquela porra daquele livro que não
póstumas. Eu estava em Paris e queria um retorno, queria que ele meses no Tanto faz, revisando o ciante de madeira. O cara ficou acabava. O desgraçado não acaba-
pedi para uma namorada me man- lesse e dissesse: “Porra!”. que já tinha escrito, e saí com ele puto da vida, depois ficou doente, e va! Botei na cabeça: “Só vou acabar
dar o livro. Quando ele chegou ao pelas editoras. Três toparam, só morreu logo em seguida. Talvez isso quando terminar”. Tautologia bási-
Correio, fui buscá-lo, ansioso, e já o • Pedófilo que duas não tiveram mais nenhu- tenha me traumatizado um pouco. ca e ponto final. E falei: “Ó, nega, se-
li no metrô, e o continuei lendo na- Aos 12 anos de idade, tive mi- ma atitude em relação ao livro. E, Mas também nessa época comecei a gura a onda aí”. E ela ficou puta da
quela mesma noite, e disse: “É isso, nha primeira namorada palpável. de repente, a editora mais bacana escrever profissionalmente. Conhe- vida, começou a achar que eu estava
quero escrever isso”. Eu estudava no Caetano de Campos, dos anos 80, a Brasiliense, ia lan- ci o (Mário) Prata e fui escrever no- louco: “Isso aí é uma loucura, como
um velho colégio público, e morava çar a coleção Cantadas Literárias, vela com ele (Helena, na Manchete, é que um homem da sua idade, com
• Devastador no Butantã. Lá tinha uma linha de e o Luiz Schwarcz — que era o meu inspirada em Machado de Assis). filhas, sem grana, fica aí sentado,
Se eu pudesse, pularia essa ônibus elétrico. O ponto final era editor e hoje é dono da Companhia Comecei a escrever em revista, vi- das seis da manhã à meia-noite, es-
pergunta, mas vamos lá. Meu pai quase na esquina da minha casa. O das Letras — me disse: “Porra, você rei frila, passava o tempo todo es- crevendo essa porcaria?”. De vez em
era um comerciário, um guarda- ônibus subia a Augusta inteira e pa- vai estar na Cantadas Literárias!”. crevendo. E tentava também fazer quando, ela dava uma espiada e —
livros, nome que se dava aos con- rava na porta do Caetano de Campos. Genial, porque meu livro saiu na literatura, escrevia pedaços de coi- “iiihhhh, putz!”. Ficou preocupada,
tadores, e trabalhava numa firma Na volta — eu estudava de manhã —, editora de maior prestígio da épo- sas que aproveitaria só mais tarde. falou: “Pô, vai num psicólogo, vai
de madeira. Depois, ele foi “pogre- subia uma menina com o uniformi- ca, numa coleção extremamente Até no Pornopopéia tem coisas conversar com alguém”. E eu falei:
dindo”. “Pogrediu”, “pogrediu” um nho do colégio Luís de Camões, a prestigiosa. Ela tinha sido inaugu- desse baú, que peguei dali e achei “Fuck”. E acabou. Ela acabou gostan-
pouquinho, e acabou abrindo um Rosemary, que ia à tarde para a es- rada por um livro de uns italianos que podia ajambrar dentro daquela do do livro. Mas tem uma coisa herói-
escritório particular de corretagem cola. Meu melhor amigo, que estu- (Marco L. Radice e Lidia Rivera) história. Então não fiquei sem es- ca nesse negócio de escrever. Porque,
de madeira. Ele se associava a fa- dava lá e na mesma classe que ela, chamado Porcos com asas. Era a crever, fiquei sem publicar, porque às vezes, aquilo vira uma guerra sua
zendeiros do norte do Paraná e de virou o nosso go-between. Ousei, história de uns adolescentes, filhos não conseguia acabar nada. Escre- contra tudo e contra todos. E se não
Mato Grosso (do Sul), na fronteira um dia, escrever uma cartinha para de ativistas políticos, que saindo de via um conto e ele não chegava até for assim não sai, cara.
do Paraguai, que derrubavam ma- a menina. Ela ficou extremamente casa descobriram o sexo e as drogas. o fim. Começava um romance e ele
deira para botar gado. Comprava tocada e escreveu uma cartinha de Fez um puta sucesso. E meu livro, ia até a metade. Eu estava muito
madeira a preço de banana, foi um volta. No ônibus, quando a reencon- o segundo da coleção, vendeu feito disperso, foi uma época de muita Edição:
grande devastador ecológico. Sou trei — eu já sabendo que ela tinha pão quente, pegando carona no pri- loucura, de muita bebida e tal. Luís Henrique Pellanda
OUTUBRO de 2010

14 :: a literatura na poltrona : : josé castello

Wilson Bueno e a arte da diferença


Um desafio aos donos da verdade e aos homens de coração gelado

A
Arnaldo Alves

morte abominável do es- sava de desconfiar do mundo. Creio que nos afastamos, con-
critor Wilson Bueno, as- Há dois anos, o jornalista sigo pensar agora, não só pelos de-
sassinado em seu quarto Rogério Pereira me escalou para sencontros intelectuais, ou pela in-
com um golpe de faca no entrevistar Wilson Bueno no Paiol compatibilidade de estilos. Por isso
pescoço, para além do que tem de Literário. Ficamos sozinhos, por também. Mas nos afastamos, sobre-
hediondo, me leva a refletir sobre algum tempo, nos camarins. O tudo, porque faltaram palavras que
a impotência das palavras. Em um tema era inevitável. “Por que nos nomeassem a estranheza que sentí-
mundo cada vez mais brutal e dog- afastamos?”, Wilson, aflito, me per- amos um diante do outro. Afastar-
mático, ela me faz pensar, ainda, guntou. “O que aconteceu?” Sen- se e silenciar é, nessas situações, a
na potência interminável das dife- tindo no peito a insuficiência das forma mais delicada de estar junto.
renças e da tolerância. palavras, que me faltavam como Dois amigos andam lado a lado pela
Wilson foi um homem que o ar, a única resposta que me veio mesma estrada. Não se olham, não
viveu para as palavras, que apos- foi: “Não preciso dizer, você sabe o se falam, nada querem um do outro.
tou tudo nelas. Graças às palavras, que  foi”. A verdade é que eu tam- Mas não se abandonam.
quando me mudei para Curitiba bém não sabia. E sabia que ele não Em algumas coisas, provavel-
no início dos anos 1990, nós nos sabia. Mas era assim. Éramos dois mente, fomos parecidos demais,
aproximamos. “Tenho um amigo homens detidos em seus limites  e e isso é também perturbador. Na
que você precisa conhecer”, me precisávamos aceitar isso.  Doía, maior parte delas, não suporta-
dis­­se, certa vez, a escritora Hilda mas estávamos ali, juntos. mos o que víamos de inesperado
Hilst. “Ele é uma dessas pessoas Tivemos desencontros graves no outro. Preferíamos, por isso,
sem travas na língua, para quem no plano intelectual. Nossas visões nos admirar de longe, como faze-
as palavras são tudo.” de mundo nem sempre combina- mos com as grandes telas e com as
Eu acabava de chegar a Curi- vam. Wilson cultivou amizades imensas paisagens.
tiba, andava arredio. Ainda insisti que eu não apreciava. Tinha um Nos camarins do Teatro Paiol,
com Hilda: “Será que vale mesmo temperamento sensível, dado a me faltaram palavras para lhe dizer
a pena?”. Ela respondeu com uma grandes franquezas, enquanto sou o que agora tento escrever. Só conse-
frase que jamais esqueci e que me um cara mais quieto que, na dúvi- gui exclamar: “Deixa para lá!”. Não
bastou: “Wilson me obriga sem- da, prefere o silêncio. São muitas queria magoá-lo. Ele não queria me
pre a lembrar que não sei quem as diferenças que eu poderia re- magoar. Creio que nos afastamos
sou. Não me deixa esquecer que cordar. Em vez de falar contra nós porque, muitas vezes, as diferenças
sou humana”. dois, elas nos enriqueceram. se tornam mesmo dolorosas. Nem
Tanto Hilda, como Wilson, Para Wilson, a vida era uma por isso elas deixam de ser aquilo
nunca esconderam seu desprezo aventura, que quanto mais agitada que o humano tem de mais belo.
pela hipocrisia, pelas máscaras e e imprevisível fosse, mais atraente Com Wilson aprendi, sobre-
pelas verdades prontas. Isso lhes se tornava. Foi um homem apai- tudo, a arte do respeito. Muitos, em
custou, sempre, injustas incompre- xonado pelo novo e pelo susto — o Curitiba, com o coração gelado e in-
ensões. Hilda vivia em Campinas e que se expressou, de forma admi- tolerante, o condenaram com o des-
nós nos  víamos pouco, o que, de rável, em sua literatura. Entre seus prezo e a indiferença. Com sua vida
certa forma, nos protegeu. A proxi- livros, o que mais admiro é  Mar e sua literatura, Wilson, ao contrá-
midade com Wilson, se ser­­viu para paraguayo, a novela de 1992, rio, reafirmou que só o amor às dife-
nos aproximar, serviu também pa­­ escrita em impecável portunhol — renças faz de nós, de fato, homens.
ra nos afastar. celebração vigorosa da mestiçagem Sejam quais forem os motivos
O amor pela literatura e pelas e da fraternidade. que o levaram a praticar o crime,
longas conversas — o apego às pala- Sempre o respeitei em suas creio que seu assassino tentou ma-
vras — nos aproximou. A impossibi- escolhas e suas decisões — o que tar, antes de tudo, o que não conse-
lidade de expressar e nomear nos- não significa dizer que me sen- guia tolerar. Tentou matar o que não
sas divergências — o fracasso das tisse obrigado a apreciá-las, ou a aceitava. O que era incapaz de com-
palavras — nos distanciou. A ami- adotá-las. Se nossas divergências preender. Não matou, porém, sua
zade foi tão bela quanto a distância. nos afastaram, elas jamais se con- literatura, que agora fica como um
Existem muitas formas de admirar verteram em desprezo, ou em ódio. desafio feroz aos donos da verdade e
uma pessoa. Hoje consigo entender, Com Wilson aprendi que é possível aos homens de coração gelado.
talvez, o que, há poucas semanas, divergir, muitas vezes é preciso se
falando de mim com um amigo, ele afastar, mas nem por isso o res-
disse: “Quanto menos nos vemos, peito e a admiração diminuem. Ao
mais próximos estamos”. contrário: crescem. NOTA
O avanço dos anos tornou Creio que ele sentia o mesmo O texto Wilson Bueno e a arte da
mais claro, de fato, o desacordo en- por mim — uma mistura de afeto e diferença foi publicado no blog A
tre nossos estilos de vida e nossos incômodo. Sentia, enfim, as marcas literatura na poltrona, mantido por
temperamentos. Sutilezas, talvez daquilo que Hilda Hilst chamou de José Castello, colunista do caderno
tolices mesmo, que as palavras não humano, ou seja, impulsos antagô- Prosa & Verso, no site do jornal
chegam a capturar, nos afastaram. nicos embutidos em uma mesma O Globo: www.oglobo.com.br/
Sempre continuei, porém, a res- alma. Seja quem foi que o matou, blogs/literatura. A republicação no
peitá-lo. E a admirar sua postura por certo desejou matar esse para- Rascunho faz parte de um acordo
inquieta de homem que não se can- doxo. Não o suportou. entre os dois veículos.

DEPOIMENTO

Um reencontro
: : Renato Bittencourt Gomes tins pela primeira vez, pois foi por esse tempo que conheci Reencontrei o livro; reencontrei, depois de 30 anos e
Curitiba – PR André Seffrin, outro leitor de bibliotecas. Influenciado por por telefone, minha prima Beatriz Gomes Nadal, diretora
André, em 1987 me propus a ler aquele livro “gigante pela da editora; e reencontrei o Brasil. Porque é do nosso país

T
alvez hoje eles sejam poucos, mas ainda há ho- própria natureza”. Não cheguei à metade do primeiro volu- que se trata. Nas noites, madrugadas e fins de semana em
mens que não lêem livros: lêem bibliotecas. O me: estava nos meus 20 anos, havia outras urgências. Mas que fui avançando lentamente pelo texto, fui vendo como
crítico Wilson Martins (1921-2010) era desses. ainda assim essa primeira e tosca tentativa já me fez querer o autor aborda, mais que a história da nossa inteligência
Ele testemunhou, “em tempo real”, a produção perceber alguma coisa. Lembro de escrever ao André — ele e mais que os literatos, a nossa história. Ele trata de leis
escrita brasileira a partir dos anos 1940 e ainda foi em já no Rio de Janeiro, começando sua carreira de crítico de (que não cumprimos, em um fetiche muito nosso), a in-
busca dos primórdios, registrando o nosso legado ano a literatura — contando minhas impressões de leitura e ele serção do kardecismo, a inserção da homeopatia, figuras
ano, pesando a contribuição de cada autor e cada livro respondendo que sim, Wilson Martins era leitor de Claude históricas. Por exemplo, antes de merecer uma biografia
para a constituição da História da inteligência brasi- Lévi-Strauss e também seu tradutor. Porém, a vida veio e campeã de vendas e ir para as telas de cinema, o barão
leira. Esse é o título do seu monumental ensaio em sete levou a História da inteligência brasileira, deixando de Mauá já era detidamente considerado. E há o longo
volumes, painel que inicia declarando limpidamente que no seu lugar outras leituras, as longas horas nos bares, as diálogo com Gilberto Freyre, grande intérprete do Brasil,
“A história da inteligência brasileira começa em 1550, sucessivas paixões, as tentativas de escrita e uma vida pro- assim como o professor Wilson Martins.
quando o padre Leonardo Nunes inicia os estudos rudi- fissional mambembe que só aos poucos foi para seu rumo Fazendo a atualização ortográfica, também foi
mentares de latim no Colégio dos Meninos de Jesus, em verdadeiro (isso levou mais de dez anos). Com os olhos de possível corrigir pequenos anacronismos involuntários
São Vicente.” Desde a primeira linha o autor se mostra hoje, vejo que já era evidente que meu caminho só podia (como “século passado” para o 19, já que o livro foi escri-
atento à influência da religião e da estrutura educacio- ser a palavra — sua produção, o ensino de algumas de suas to quando o 19 era o século passado), pequenos deslizes
nal sobre a nossa inteligência, assim como também es- manhas e principalmente a revisão de textos. como afirmar que frei Caneca era franciscano (em obra
teve atento à estrutura jurídica, econômica, política etc., Foi assim que em 2009, duas décadas depois, reen- dessa envergadura, ocorrem esses problemas mínimos,
seguindo seu próprio ensinamento: quem entende só de contrei o livro de Wilson Martins: um telefonema dizia cabendo a uma revisão atenta perceber). E pude apren-
literatura, não entende nem de literatura. estar sendo preparada uma nova edição e, indicado por der muito. Não apenas pelo número de páginas, esse é
Já são quase 35 anos da sua primeira edição e agora a Miguel Sanches Neto, eu poderia ser o revisor. A emprei- um dos grandes livros do Brasil. Na maré montante de
Editora UEPG traz mais uma vez esse livro que poucos le- tada era imensa, mas aceitei. Com o meu trabalho fixo, publicações, na maioria descartáveis, História da in-
ram e, nas suas 4 mil páginas, é um resumo de bibliotecas. em horário comercial, meu tempo é escasso, mas aceitei. teligência brasileira é para ser lido. Há mais de 30
Já deve estar pelos 25 anos que ouvi o nome Wilson Mar- Só podia aceitar. anos ele é assim.
outubro de 2010

:: ruído branco : : Luiz bras 15

Crítica é cara ou coroa


O equívoco de acreditar que o livro tem uma essência oculta, intrínseca, perene, que precisa ser atacada ou defendida

L
ivros são propostas de ci- está representado na linguagem, no redores das universidades: a letra exatamente o que a etiqueta pós- claro que racionalmente as pesso-
vilização. Cada livro publi- temperamento e na densidade do das canções de Caetano Veloso. O humanista quer dizer. Mas, se a as preferem a luz e o equilíbrio às
cado é, antes de tudo, uma livro em questão. Um tipo de civili- tipo de civilização que o concretis- mudança — qualquer mudança — é trevas e ao desequilíbrio. Mas, na
atitude política. Por isso zação que ainda não existe e precisa mo propõe não é o tipo de civiliza- sempre algo muito assustador, por hora agá, o brilho profundo da es-
boa parte da crítica literária parece ser construído. Ou que existiu no ção que Tolentino admirava. Tam- que a maioria das pessoas escolhe curidão é mais sedutor, atrai mais.
tão desnorteada, tão inconsistente. passado e precisa ser recuperado. pouco é o tipo de civilização que ele o assustador, o aterrador, em vez Vai entender o bicho humano...
Estou falando da crítica que acredi- Ou que está existindo neste exato admirava esse tipo tão contempo- do conforto do já conhecido? Por mais que todas as pessoas
ta que um livro possa ser intrinse- momento e precisa ser defendido a râneo, tão atual, que leva certas ex- Álvaro Lins, ao rejeitar o ro- afirmem que amam o livro de papel,
camente bom ou ruim. Essa visão qualquer custo de outros potenciais pressões artísticas populares para mance de estréia de Clarice Lispector, que jamais conseguirão viver sem
restritiva não condiz com os fatos. projetos de civilização. dentro dos gabinetes eruditos. Por rejeitava o estranhamento, a obscu- esse objeto centenário, sem o cheiro
Lá na década de 30 do século Para o jovem Antonio Candi- isso ele esbravejou. ridade, a incerteza. Wilson Martins, e a textura de suas páginas, em pou-
passado, o jovem crítico Antonio do o modelo de mundo proposto O contra-ataque veio rapida- ao rejeitar o romance de Guimarães co tempo o livro eletrônico domina-
Candido analisou Perto do co- por Perto do coração selvagem mente. Muitos foram os escritores, Rosa, também rejeitava o disforme, rá o mundo. Uma força irracional e
ração selvagem e concluiu que era o melhor. Para o não tão jovem professores e compositores que re- o esquisito, o desarmônico. Bruno irresistível impulsiona a tecnologia e
se tratava de um bom romance de Álvaro Lins era o pior. Com o pas- vidaram com igual violência. Uma Tolentino, idem. Para este, a misci- a ciência. Ninguém pode deter esse
estréia. Já o não tão jovem crítico sar das décadas, forças sociais, eco- década e meia depois desse com- genação artística espalha impurezas. fluxo. E por irracional entendam:
Álvaro Lins disse o contrário: que o nômicas e políticas incontroláveis bate, penso que o modelo de civi- Ele via um colorido imoral na mis- imprevisível. Não dá pra saber pra
livro da jovem Clarice Lispector era e aleatórias deram a vitória ao ro- lização desejado por Tolentino está tura erótica de elementos da cultura onde irá. Diferente do que Einstein
uma experiência muito mal-sucedi- mance da jovem Clarice Lispector. perdendo terreno para o modelo popular com elementos da cultura pensava, o universo joga dados. De
da. Incomodou-o a forma fragmen- E tempos depois ao romance do ve- proposto pelos concretistas e pela erudita. Perdeu a partida porque, pra previsível na natureza e na cultura,
tária do romance, o narrador vo- terano Guimarães Rosa. alta cúpula de nossa MPB. O cara seu azar, o pós-humanismo parece apenas o imprevisível.
lúvel e subjetivo, a onipresença do Isso não significa que Álva- ou coroa é implacável. ser exatamente isto: miscigenação. Voltando ao ponto de parti-
fluxo de consciência e a substituição ro Lins e Wilson Martins estavam Exemplos contemporâneos: Hoje a biologia está se mistu- da: livros são propostas de civili-
do tempo cronológico pelo tempo errados, que o juízo emitido por Jerônimo Teixeira rejeitando Con- rando com a cibernética, o raciona- zação. Cada livro publicado é, an-
psicológico. Aborreceu-o tudo o que ambos “estava em desacordo com a tos negreiros de Marcelino Frei- lismo ocidental está comungando tes de tudo, uma atitude política.
agradou a Antonio Candido. realidade observada” (sentido pri- re e O paraíso é bem bacana com a intuição oriental, a alta cul- E crítica literária é cara ou coroa,
Em meados da década de 50 meiro do vocábulo errado). Signifi- de André Sant’Anna, Alcir Pécora tura está copulando vigorosamente num mundo definido pelo acaso.
do século passado, o crítico Wilson ca apenas que ambos perderam no rejeitando Do fundo do poço se com a baixa cultura, gerando cria- Ao elogiar ou condenar um livro,
Martins analisou Grande sertão: cara ou coroa, ao jogarem com ou- vê a lua de Joca Reiners Terron e turas incomuns. o crítico não está dizendo aos seus
veredas e concluiu que se tratava de tros críticos. A sorte decidiu que o A arte de produzir efeito sem leitores o que o livro é. Ele não está
um equívoco ficcional, uma obra que modelo hegemônico de mundo e de causa de Lourenço Mutarelli... O assustador revelando sua essência oculta, sim-
logo perderia o fôlego e morreria. cultura seria o modelo que eles não Razões emocionais e irracio- A pergunta feita aí em cima não plesmente porque não há essência
Incomodou-o a linguagem enviesa- aprovavam. Podia ter sido o contrá- nais parecem mover as pessoas. As é meramente retórica. Eu realmente oculta a ser revelada, nunca há. O
da do jagunço narrador, os neologis- rio. Tudo é acaso, probabilidade. letradas e as iletradas. Mesmo os não sei por que as pessoas escolhem crítico está, na verdade, defenden-
mos poéticos, a mitologia sertaneja e modelos de civilização mais equi- o assustador, o aterrador, em vez do do ou atacando o tipo de civiliza-
a teologia bruta. Aborreceu-o tudo o Implacável librados e consistentes nunca per- conforto do já conhecido. Sei apenas ção que o livro propõe.
que agradou a outros críticos. Em meados da década de 90, o maneceram intactos por mais de que os modelos culturais que triunfa- O primeiro equívoco de um
Quando você, eu, todos os poeta Bruno Tolentino iniciou uma cem anos. Como a vida biológica, ram no século passado e continuam crítico é crer que os livros têm uma
leitores e todos os críticos dizemos guerra feroz contra os concretistas as civilizações também nascem, coordenando a civilização foram os essência oculta, intrínseca, perene,
“este livro é excelente”, na verdade e os compositores mais celebrados atingem o apogeu e morrem. modelos do estranho e do disforme. que precisa ser atacada ou defendi-
estamos dizendo “este livro legitima da MPB: Caetano Veloso e Chico Neste exato momento, os A arte degenerada, como diziam os da. Nunca têm. O segundo equívo-
o tipo de mundo no qual eu quero Buarque. Incomodava-o principal- valores humanistas estão sendo nazistas. O classicismo foi forçado co, o maior deles, é acreditar que
viver”. Então, falar bem do livro em mente as traduções e toda a poéti- substituídos pelos pós-humanis- a recuar para um plano secundário. seu ataque ou sua defesa fará dife-
questão, promovê-lo, fazer com que ca dos irmãos Campos. Irritava-o tas, sem que haja qualquer garan- Venceu o maneirismo (Curtius). O rença a favor ou contra o tipo de ci-
seja lido por muita gente e passe a os romances de Chico Buarque e tia de que tudo vai melhorar (ou grotesco romântico (Bakhtin). vilização proposto pelo livro. Nun-
integrar o cânone literário, tudo as teses acadêmicas a respeito do piorar). Principalmente porque, As leis do desejo parecem ser ca faz. A probabilidade é sempre de
isso se torna uma missão política. que ele, Tolentino, considerava um dentro e fora das instituições pú- mais vigorosas do que as da razão, cinqüenta por cento para o sim e
O tipo de civilização que nos agrada tema pouco refinado para os cor- blicas e privadas, pouca gente sabe porque continuam vencendo. É para o não. Um cara ou coroa.

:: breve resenha : :

A viúva errante Consolação


Betty Milan
Record
168 págs.

lação àqueles que marcaram a histó- destituída de valores, deserta e en- o romance Consolação, embora Consolação é um desses textos.
:: Cida Sepulveda ria da literatura brasileira, entre os tulhada de imagens/stories. não haja mergulho profundo nas Porque se trata de uma lamenta-
Campinas – SP quais, Mário e Oswald de Andrade. Mas o texto de Betty Milan questões humanas, ainda que a ção em duas culturas, a francesa e
A intensa intertextualidade não toca em tais questões; ocupa- morte figure em posição privile- a brasileira”.

C
onsolação é um ro- com o pensamento e as obras des- se em evocar o que afeta de ime- giada no texto. Não há texto para essa conclu-
mance leve, embora tra- ses autores é uma demonstração diato: a violência urbana, a misé- Isso se dá porque o drama são. A simples citação de um casa-
te da questão da euta- de que a força desses artistas ainda ria, o subproduto humano, além, da narradora soa artificial. Ela não mento entre duas pessoas de origens
násia e da cidade de São age sobre nós, hoje envolvidos em claro, de reverenciar os modernis- consegue nos absorver com seus diferentes e a existência de um filho
Paulo, violenta e irrespirável. tramas dominadas pelo individu- tas. E o faz com elegância. Busca devaneios, teses, conclusões. In- não garantem a retratação do tema.
Narrativa fluida, em primeira alismo exacerbado, pelas práticas nas ruas a verdade brasileira, in- clusive, a relação que ela tem com Frases de efeito traçando
pessoa. A narradora é uma brasi- mercenárias que esmagam a arte. clusive a beleza: o filho é muito inconsistente do possibilidades existenciais não são
leira casada com um francês. Ela Como bem coloca Almandrade: Rua central. Entre os euca- ponto de vista afetivo, ainda que suficientes para refletir a complexi-
fica viúva, volta para o Brasil para O público consome qualquer liptos uma quaresmeira. Depois do ela afirme o contrário. dade das interações culturais, prin-
visitar a família e deixa o filho na coisa. Na condição contemporâ- roxo tropical, o ocre de uma capela O romance apenas contorna cipalmente quando se tratar de re-
França, mas fala com ele por celu- nea de articulação social, a arte foi redonda. “Os casebres de açafrão prováveis dramas, mas não os po- lações afetivas profundas.
lar. Seu primeiro destino é o cemi- reduzida a acessório, como mostra e de ocre nos verdes da favela, sob tencializa. A viúva errante parece O leitor ficará com a impres-
tério da Consolação, onde pretende mais esta Bienal, de aproximação o azul cabralino, são fatos estéti- não sentir o sofrimento que relata. são de que a busca da narradora não
visitar o túmulo do pai. das pessoas com a cidade. Uma ci- cos.” Manifesto pau-brasil. O autor Isso gera um vazio entre a super- passa de uma curta e voluptuosa
No percurso, antes e depois dade da especulação imobiliária e está enterrado aqui... Oswald. Mas ficialidade das palavras e o fundo viagem pelos temas instigantes que
de sair do cemitério, observa e se da economia do metro quadrado, onde? Mário de Andrade também que as alimenta. Uma distorção afloram no processo de criação.
choca com a São Paulo caótica, mas com uma arquitetura sem poesia, está... Nunca vi os túmulos. Será entre planos vitais que estruturam É inegável, porém, o esforço e
também percebe valores anônimos esvaziada de sentido, ameaçada que alguém visita? O Cemitério da uma obra artística. a coragem da autora em trafegar por
diluídos na multidão. No cemitério, por todos os tipos de violências e Consolação não é o Père Lachaise... No posfácio, Michèle Sarde tempos e cenários, verdadeiros arqué-
busca as raízes de nossa história e medos. Medo até de consumir o Filosofia, psicologia, ima- afirma: “Se é que os textos bicul- tipos das artes brasileiras, sem perder
cultura. Há um saudosismo em re- que não está na moda. Uma cidade gens, são elementos que compõem turais existem, como os bilíngües, a elegância e o desejo estético.
OUTUBRO de 2010

16 :: atrás da estante : : Claudia Lage

Palavras na brisa noturna


Nas ruas de Londres, a autora enfrenta um ladrão para salvar os manuscritos de seu livro

N
o livro As boas mu- dessa história, ou à história dentro Xinran apertou a bolsa contra o publicar aquele livro. Um livro que
lheres da China, da da história: Xinran saiu uma noite peito, trêmula com a própria co- falava da experiência desoladora,
escritora e jornalista de uma aula, e entrou numa rua ragem. Naquela tarde, antes de ir muitas vezes trágica, de mulheres
chinesa Xinran, há, londrina deserta e escura. para a Universidade de Londres, que viviam sob o totalitarismo po-
entre tantas histórias impressio- Como fazem a maioria das onde lecionava, pôs dentro de sua lítico, que era, como se imaginava,
nantes, uma que começa antes do pessoas ao se depararem com o bolsa o único original de seu livro devastador sobre as relações hu-
livro, que atravessa as páginas e silêncio e a solidão à espreita, ela As boas mulheres da China. manas. Estupros consentidos pelo
inicia em uma rua londrina deser- apressou o passo. Quando se apro- Havia escrito o livro à mão, e, por poder militar, violência doméstica,
ta e escura, com a própria autora. ximou da esquina, que dava para isso, não tinha cópias. O fato é que casamentos forçados, aprisiona-
É uma história dentro da história: uma rua mais movimentada, vol- carregava na bolsa o seu manuscri- mentos, torturas, entre outros ca-
Xinram mora em Londres desde tou a andar mais tranqüilamente, to único e solitário, com o intuito sos calamitosos que se somavam à
1997, quando saiu da China por certa de que o perigo terminara. de rever algumas passagens na bi- própria história pessoal de Xinran,
uma missão de sobrevivência lite- Por um instante, chegou a pensar blioteca da universidade. Quando igualmente triste. No segundo em
rária. Em seu país natal, seria im- na sua infância na China, onde seus compreendeu que estava sendo que reagiu, pensava no imenso
possível publicar o livro que dese- pais foram presos durante a Revo- assaltada, agiu por instinto, como esforço emocional que teria para
java escrever baseado em relatos lução Cultural. Afastada da família, devem fazer os animais ao defen- escrever tudo novamente. Fo-
de mulheres chinesas vítimas de ela e o irmão passaram a viver em der suas crias. A sorte dela é que o ram dois anos dando corpo e voz
abusos, repressões e violências um quartel da Guarda Vermelha. homem não estava realmente ar- a mulheres que muitas vezes não
diversas. Aliás, não era somente Lembrou das noites em que ouvia mado, como anunciava. Ou a sua entendiam o próprio sofrimento,
impossível publicar aquelas his- outras crianças serem espancadas fúria ao defender a bolsa, de certa que, muitas vezes, eram vítimas
tórias, como também falar sobre no quarto ao lado, enquanto o seu forma, o desarmou. sem o saber. A escrita do livro ti-
elas. Xinram fora proibida pelo corpo tremia de pavor e frio, certo Um dos policiais se aproxi- nha sido uma experiência profun-
governo de comentá-las em seu de que em breve seria a sua vez. Ao mou de Xinran, impressionado por da e dolorida para Xinran. Sim-
controverso programa de rádio, chegar à rua movimentada de Lon- sua reação. Não entendia por que plesmente, não poderia passar por
em Pequim, Palavras na brisa dres, pensou nas várias faces que ela havia arriscado a vida por uma ela de novo. Mas, não havia saída,
noturna. O programa era um sus- tem o medo. A que a aterrorizava bolsa. Xinran então falou de seu li- porque, do mesmo modo, aquele
surro em meio à pesada escuri- quando menina, a que a fazia agora vro, impressionando mais ainda o livro simplesmente tinha que exis-
dão que cobria e escondia a vida cruzar com passos rápidos as ruas policial. Um livro é mais importan- tir. “Xinran, você deve escrever
de tantas mulheres chinesas. Em londrinas. Mas foi exatamente no te do que a sua vida?, ele retrucou. sobre isso”, lhe dissera antes um
uma China que iniciava a abertura instante que seu corpo desarmava, Olhava-a como se fosse uma louca, velho amigo chinês, “escrever cria
ao Ocidente, as tragédias perma- que sua mente experimentava um sem noção do peso e da medida de uma espécie de repositório, abre
neciam silenciadas. breve alívio, que seu coração acal- po que tentava chutar o ladrão, que cada coisa. Mas não era a questão espaços internos que nos ajudam
Há quem diga que, para um mava como uma criança tranqüila e era fortemente chutada, que grita- de ser mais importante, Xinran a conciliar pensamentos e senti-
escritor, ter uma história para con- segura, que sentiu um baque na ca- va, que pessoas se aproximavam, sabia. Como, entretanto, explicar mentos. Se você não escrever, essas
tar e ser, de alguma forma, impos- beça, e a próxima imagem que viu que o homem era cercado, a polícia ao policial? No instante em que histórias vão sufocar o seu coração,
sibilitado disso, equivale à senten- foi a de si mesma caída no chão. chegava, e enfim o rendiam. reagiu, não era uma mulher de um asfixiá-lo até a morte”. Como en-
ça de morte. E Xinran não tinha Era um assalto, compreen- Quando se levantou, ajudada metro e sessenta que enfrentava tão explicar ao policial que, entre
apenas uma, mas muitas histórias. deu, e instintivamente segurou por alguém, olhou para o assaltan- um homem de quase dois metros. as duas mortes, a que lhe oferecia
Londres surgiu então como espe- com força a sua bolsa, iniciando te que entrava no carro da polícia. Naquele instante, não era isso que o assaltante era a que, instintiva-
rança e resistência. Lá, encontrou uma inusitada luta com o homem Era um homem de quase dois me- contava. Enquanto chutava o ho- mente, menos a assustava? Deve
editora para As boas mulheres que a assaltava. Mãos fortes a sa- tros, corpulento, olhar surpreso mem e era chutada por ele, tinha ter sido esse o seu sentimento ao
da China, mas antes de a jornalis- cudiam, tentavam arrancar a bolsa e enfurecido. Aquele homem não apenas um pensamento. Talvez resistir ao assalto e ao segurar a
ta chinesa assinar o contrato e en- que ela escondia sob seu corpo, vi- esperava de uma mulher tão pe- fosse mais um sentimento. Havia bolsa, como se estivesse nela, e não
tregar o original, voltamos ao início rando-se de costas, ao mesmo tem- quena uma resistência tão grande. deixado a China para escrever e em si mesma, a sua vida.
OUTUBRO de 2010

18

O artista quando jovem


Em Retratos imorais, Ronaldo Correia de Brito publica contos de uma fase em que ainda se buscava

BARBARA WAGNER/Divulgação
O autor
RONALDO CORREIA :: Marcos Pasche tar e depois socorrem a vítima. A
DE BRITO Rio de Janeiro - RJ cada plantão experimenta o do-
loroso impasse de restituir a vida

É
Nasceu em Saboeiro (CE),
uma ação típica dos li- a um assassino, mal conseguindo
em 1950. É médico e escritor,
teratos rejeitar seus pri- disfarçar o desejo de que os bandi-
autor dos livros Faca,
Galiléia, A noite e os dias, meiros escritos, mesmo dos não sobrevivam.
O pavão misterioso e O os publicados, sob a ale-
livro dos homens. Também gação de que a ingenuidade dos E precisamente o que falta ao
é dramaturgo, e escreveu exercícios literários iniciais destoa texto de abertura do livro, aparece
as peças Baile do menino da estética que se vai construindo solidamente em Catana. Aqui, os
Deus, Bandeira de São João e com o passar do tempo, à custa nervos dos personagens pulsam,
Arlequim. Atualmente, assina de muita leitura, reescrita e auto- ainda que em silêncio, na medida
uma coluna semanal na revista
crítica. Há, no Brasil, muitos ca- em que o contato direto com o ban-
Terra Magazine, no Portal
sos conhecidos, como o de Autran dido, metonímia da criminalidade
Terra. Vive em Recife (PE).
Dourado, que nunca lançou em li- urbana, acende-lhes a sirene ver-
vro os contos que publicava sema- melha de seus dramas particula-
nalmente em O Estado de Minas, res: é a revolta por conta do filho
ainda antes dos 20 anos, e como o viciado; é a indelével lembrança de
de Ferreira Gullar, que não inseriu quem foi assaltado e viu a compa-
nas edições de sua poesia completa nheira ser estuprada; é a necessi-
Um pouco acima do chão, seu dade de proteger a filha, abando-
marco de estreia, de 1949. nando tudo e levando-a para fora
No entanto, com Retratos da cidade, ao lado do apego ao
imorais, seu novo volume de con- patrimônio construído por longos
tos, Ronaldo Correia de Brito faz anos de esforço; é a vontade de en-
um movimento inverso: após al- contrar o sossego na serra pacífica
cançar espaço entre nossos maio- e orvalhada da infância. É, enfim,
res prosadores (talvez o reconhe- a angústia de viver a mortificação
Retratos imorais cimento que vem tendo ainda não dos centros urbanos que iguala
Ronaldo Correia de Brito seja o mais justo, mas o fato é que sem irmanar os personagens tão
Objetiva sua obra o situa entre os melhores), próximos e tão distantes, barbari-
184 págs. o cearense traz ao público textos de zados em plena civilização.
uma fase em que ainda se formava O outro conto positivamen-
como escritor, entre o final da dé- te destacável é o que dá nome ao
cada de 70 e o início da de 80 (cabe livro: Homem folheia álbum de
dizer que o autor nasceu em 1950). retratos imorais. Em mais uma
O leitor familiarizado com as ambientação no espaço de um hos-
Trecho
páginas densas de Faca, O livro pital, o texto é protagonizado por


Retratos imorais
dos homens e Galiléia vai per- Claudiney Silva, meliante traído e
ceber em Retratos imorais um baleado por seus comparsas de pe-
nítido desnível, visto que o autor dá quenos delitos, e também abando-
passos vacilantes ao buscar sua voz
O livro não compromete a bibliografia nado por seus familiares. Claudi-
Meu nome é Claudiney literária entre a temática da bruta- de Ronaldo Correia de Brito, mas, ney é o protótipo do homem mais
Silva. Num álbum de lidade escancarada e a da ambigüi- comumente absorvido pela vida

fotografias que hoje


dade humorística, entre a concisão ressalvando alguns lances de alto nível, sem lei: é de origem pobre, negro
discursiva e a descrição detalhista, e membro de uma família comple-
folheio horrorizado, entre a linearidade narrativa e a também não a engrandece. tamente desregulada. No hospital,
apareço abraçando uma disposição fragmentária de vozes, e surgem-lhe lembranças amargas
entre a abordagem mais restrita do conforme revê as páginas de um
menina. É minha filha.
Recife (cidade onde Ronaldo mora aparecem simultaneamente como também trabalhou com filmes) álbum de fotografias:
Não a vejo há bastante há anos) e a mais ampla do Ociden- indícios do escritor por se formar e uns goles de bebida, começam
e pela conta dos dias te, geográfica e culturalmente fa- e do escritor já formado (embora a dançar e finalizam suas pelejas A foto de família feliz, com
lando, expandindo-se aos Estados algumas buscas sejam ininterrup- abraçadas, num enlace romântico. o filhinho nos braços da mãe e do
imagino-a próxima dos
Unidos (aliás, esta dicotomia do lo- tas). Uma particularidade cons- pai ao lado, nenhum fotógrafo ba-
dez anos. Numa outra cal e do universal é por vezes falsa, tante e interessante da obra de A golpes de lâmina teu para mim pelo simples motivo
foto visto uma bermuda e o autor a resolve muito bem). Ronaldo é o amálgama que funde Ao lado dessas fragilidades, de que não houve esse instantâneo
O livro não chega a compro- o sertão e outras partes do mundo espalham-se pelo livro fagulhas de em minha vida. A mãe, prostituta
jeans, estou sem camisa
meter a bibliografia edificada até num plano simbólico, alicerçado aspectos que vieram a se tornar ca- desde os quinze anos (...). O pai
e a musculatura do corpo então, mas, ressalvando alguns pela rudeza humana e pela ubiqüi- racterísticas vigorosas da obra de surgia do nada, bêbado e trazen-
sobressai. Reconheço lances de alto nível (deve-se dizer dade da morte (algo de que Gali- Ronaldo Correia de Brito. O mais do um saco de feira. Não marcava
sem modéstia o quanto que há também textos atuais), ele léia é grande exemplo). Em Duas identitário deles, do qual o autor data nem hora de chegar.
também não a engrandece neste mulheres em preto e branco isso se tornou mestre, é a linguagem
eu era um rapaz bonito momento de maturidade, servindo se dá pela ligação das personagens concisa e seca, recurso estilístico a Todo o amargor das lembran-
e talvez por isso nunca mais como fonte de comparação — em questão a algumas personagens brotar no chão gretado deste uni- ças e a consciência do abandono
me faltasse mulher. Na a fim de que vejamos o quanto evo- da tragédia grega, numa indicação verso ficcional – “Em águas poucas conduzem Claudiney a reflexões
luiu o autor — do que como obra de que qualquer esquina de Recife de ano seco”, diz o conto Romeiros que o aproximam da crença reli-
foto em que meu rosto
independente na sua unidade. é um palco dos dramas humanos: com sacos plásticos. O alcance da giosa que, por sua vez, o aproxima
não aparece, cortada nas “Fedra-Sandra implorava: Que precisão verbal insere Ronaldo na da regeneração e da aceitação do
pernas e um pouco acima Texto-síntese deus poderá vir em meu socorro”. distinta linhagem dos autores nor- estado das coisas. Mas o principal
O primeiro conto é uma forte Além disso, parece ser a freqüência destinos associados pela contenção mérito de Ronaldo é, aqui, mani-
do umbigo, uso calção de
ilustração de Retratos imorais, de referências médicas mais um discursiva, e, a exemplo de Graci- festar pelo viés do questionamento
banho azul bem colado. por uma série de aspectos que nele aspecto de um artista, por jovem liano Ramos e João Cabral de Melo uma crítica que parte do conjunto
Acredito que o fotógrafo se fazem presentes direta ou indi- que era, de horizontes ainda não Neto, o autor de Faca extrai das — “Não possuímos senso de cole-
retamente. Duas mulheres em pre- muito alargados, por isso extrain- pedras e das fendas uma cortante tividade. Nossas atitudes são in-
não desejou registrar
to e branco narra uma conflituosa do de seu ofício ordinário (Ronal- poeticidade, talhada a golpes de dividuais: assaltamos, matamos,
o que se avoluma logo situação envolvendo duas amigas, do é médico) episódios a serem lâmina: “Há solenidade na ruína”, quebramos telefones públicos,
à frente do púbis, mas as médicas Sandra e Letícia. Por recontados no plano literário. No diz o fragmento que é um parágra- roubamos lençóis das enferma-
descobrir que Sandra teve um caso texto em questão, a medicina já fo inteiro do citado Duas mulheres rias, deixamos torneiras abertas,
as várias tatuagens na
com seu marido, Letícia a mantém se evidencia por serem médicas as em preto e branco. não damos descarga nas privadas.
coxa direita: uma caótica como refém, espancando-a e ame- personagens, evidência esta que se Na esteira das virtudes de Vinganças aleatórias e sem cons-
combinação de monstros açando-a de morte constantemen- estende por vários contos do livro Retratos imorais, deve-se des- ciência. Contra quem?” — para se
chineses, um palhaço te. Nisso o texto revela, a um só (que conta inclusive com relatos tacar dois feitos notáveis, dignos alojar, feito bala, no íntimo do par-
tempo, um item expressivo da es- pessoais do autor). das melhores páginas de seu autor. ticular: “Você teria aceitado a Pa-
de circo e dois rostos crita de Ronaldo Correia de Brito No entanto (evoco uma ex- O primeiro deles é Catana, uma lavra se não estivesse na condição
que as pessoas — a abordagem da ferocidade hu- pressão de Manoel de Barros), tem trama finamente elaborada e ten- de inválido?”, pergunta um médico
imaginam ser Jesus. mana — e a maneira como esse fa- mais presença no conto justamente samente desenrolada. Quatro pro- a Claudiney. Em ambas as passa-
tor o situa, em alguma medida, no aquilo que lhe falta: por relatar um fissionais estão envolvidos numa gens, o cortante realismo aprofun-
panorama da literatura brasileira episódio de ambientação dramá- cirurgia de alto risco, tentando sal- da a densidade literária que se pre-
contemporânea, principalmente tica, no qual Letícia, ao fundo, se var a vida de um bandido. Além do tende auscultadora do homem.
por afastá-lo de uma tendência sente duplamente traída (porque ofício, os dois cirurgiões, a aneste- Os outros contos do livro reve-
corriqueira, de caráter abstrato. Sandra tem com ela vínculos afe- sista e a instrumentadora têm em zam-se entre claudicantes e de fir-
Por todo o texto espalham-se os tivos também), há uma carência comum o desejo de evadirem-se de mes passos, mas sem que nenhum
golpes da rispidez, seja pelo pris- muito grande nas personagens da suas realidades e o dilema causado deles chegue a ser desprezível ou
ma do vocabulário — “Caralho, só tensão psicológica que daria mais por estarem entre o cumprimento gratuito. Mesmo nos momentos de
nos faltava essa!” —, pelo das ima- legitimidade ao relato. As reações do dever e a possibilidade de inter- menor força, Retratos imorais
gens — “Vou destruir sua beleza. mudam de forma automática, e as romper a vida de um criminoso: exibe a vocação de Ronaldo Correia
Seis balas causam estrago num mulheres que ocupavam a posição de Brito para fazer da literatura
rosto” —, ou pelo da captação das de vítima espancada e algoz arma- As chances de salvá-lo são uma fotografia das diversas faces
marcas do tempo presente: “Um do, em poucos minutos, após a au- mínimas, a qualquer momento po- do real, as quais se formam e de-
pivete do sinal atirou num homem. dição de uma trilha sonora de cine- derá sofrer nova parada cardíaca. formam pelo seu fio de corte seco,
Acho que está morto”. ma internacional (outra referência O primeiro cirurgião sente raiva amolado nas fendas e nas pedras
Outros elementos do conto a ser destacada, visto que Ronaldo dos policiais que atiram para ma- dos sertões nossos de cada dia.
outubro de 2010

19

Um mau caminho
Migração de microcontos de Heloisa Seixas do jornal para o livro desfavorece o conjunto

:: Márcia Lígia Guidin Heloisa Seixas já incorreu nesse Em A penitência das flores,
São Paulo – SP perigo — ao qual, é claro, todos os um homem vende flores de mesa
cronistas que reúnem em volume em mesa. Por meio de clichês, a

R
euniões de crônicas, con- seus textos estão sujeitos. Não me narradora o descreve: “com a leve-
tos, minicontos ou mi- pareceu, porém, que o tédio fosse za de um bailarino”; “havia em sua
crocontos — como os tão corrosivo como o sinto agora fala uma cadência, uma música —
queiramos classificar neste “segundo” volume de contos como se recitasse”; “É uma conde-
hoje — trazem a vantagem para o mínimos. Seriam estes os contos/ nação que impôs a si mesmo”.
leitor da degustação das várias to- crônicas que sobraram, portan- Por que penitência?, pergun-
A autora nalidades, temas, humores e até ex- to “repescados”? Repetem-se nes- ta-se o leitor, lembrado do título.
HELOISA SEIXAS Contos mais
perimentações estilísticas criadas ta nova obra não contos menores que mínimos Uma personagem também pergun-
Nasceu no Rio de Janeiro pelo autor que os reuniu em volu- (como sugere o título “mais que Heloisa Seixas ta qual seria o crime: “— Ele matou
(RJ), em 1952. Formou-se em me. Se o conjunto foi obtido a partir mínimos”), mas a mesma complei- Tinta Negra a mulher que amava”.
jornalismo pela Universidade da escolha e seleção de colunas re- ção de estruturas narrativas e os 96 págs. Dos títulos, sempre óbvios, ao
Federal Fluminense, a UFF e, gulares de jornal, como ocorre com mesmos temas: a abordagem do fe- final, os demais contos mínimos vão
além de escritora, é tradutora. este Contos mais que mínimos, minino — tema central da escrito- perdendo forças na última frase:
Estreou como ficcionista em de Heloisa Seixas — publicados an- ra —, a solidão, assombrações, me-
1995, com o livro de contos tes na Folha de S. Paulo —, acres- mórias, amores desfeitos e morte. O tango é a música perfeita
Pente de Vênus: histórias
cente-se a interessante investigação Heloisa é boa escritora de para quem vai matar ou morrer
do amor assombrado.
Também é autora de A
do leitor sobre “como” foi o mo- modo geral; creio, porém, que seus (Um tango de Piazzolla);
porta, Diário de Perséfone, mento exato de vida do escritor na- contos “literários” são mais bem Ora, por que não deixar a surpre-
Pérolas absolutas e O quela semana ou quinzena, naquele pensados, mais livres (claro!), por- sa para o leitor com a colocação No tempo em que me é reser-
lugar escuro, entre outros dia em que escreveu sua coluna. tanto, e de maior qualidade que arbitrária dos temas? Quando se vado, ele é completamente meu. A
títulos. Vive no Rio, onde Todos os momentos, que já estes pequenos textos reunidos. lê uma das partes, com textos de amiga sabia por que ela falava as-
hoje se dedica também à estiveram fracionados ao longo do Deste desafio, já usado por outros mesmo tema, estrutura semelhan- sim. Era amante de um homem ca-
dramaturgia. tempo da publicação passam a figu- escritores e colunistas, mais como te e mesma extensão, como não sado (Mais do que qualquer outro).
rar num todo mais coeso e sólido, o exercício, me parece, a escritora enjoar e passar adiante?
que ajuda a determinar o estilo e a fala logo no prefácio: Embora vários dos textos se- Na segunda parte da obra, A
personalidade de quem escreve. Ex- jam interessantes, além da orga- marca da solidão, ainda narrada
plico melhor: o que se lê de um jor- Contos mínimos é o título do nização enfadonha, o leitor tem de na terceira pessoa, a mesma estru-
ro, reunido em volume, ganha boas espaço assinado por mim no jor- deglutir um projeto gráfico muito tura se repete, como se repetem os
Trecho possibilidades comparativas inter- nal Folha de S. Paulo, antes da re- ruim, cheio de fios e linhas ema- lugares-comuns:
Contos mais textuais, pode revelar estruturas vista Domingo do Jornal do Bra- ranhados que se querem mostrar


que mínimos
preferidas, desvelar temas recorren- sil, somando quase dez anos de como design, mas não passam de O nome do bar era quase um
tes e ganha mais facilmente a virtual coluna literária. rabiscos para atrapalhar a leitu- presságio: Bofetada (Uma bofeta-
adesão do leitor. E isso é bom. Duas vezes por semana, eu ra. Ilustrações? Parece haver mais da na noite).
Há, em contrapartida, uma me via diante do desafio de escre- ilustrações que textos, e são mui-
Guardou o segredo como grande desvantagem em coletas ver contos — ou talvez crônicas — to ruins, infelizmente; além disso, Na terceira parte, já escapan-
de textos de jornal — que não afe- num espaço tão pequeno que na o projeto de miolo e capa parecem do das questões do feminino, que
se fosse um diamante, no
tou o leitor, quando este fez a leitu- tela do meu computador equivalia não combinar entre si. muitas vezes lembram textos de
fundo de uma caixa de ra diária, semanal ou quinzenal de a apenas seis linhas e meia. O que isto tem a ver com a obra Clarice Lispector, a primeira pessoa
veludo negro. E, um após seu escritor preferido no jornal: o e sua suposta qualidade? Tudo, pois biográfica está mais bem integrada,
tédio. No volume de textos reuni- Pois é. Para jornal, textos as- a edição, mesmo que não pretenda, pois lida com o tema O escritor e o
outro, amontoando-se,
dos, esse tédio se instala e, às ve- sim curtos funcionam como oásis sugere oportunismo editorial: de tão homem. Neste trecho da obra, He-
sedimentando-se, os anos zes, pode gerar inquietação: o lei- para o leitor; num volume, trans- rala (96 páginas em formato quase loisa fala de outros autores e reflete
se passaram. (...) tor pula páginas, não relê nada formam-se apenas em reunião do- de bolso), parece necessitar de efei- sobre as próprias questões artísti-
(pois vai encontrar mais do mes- cumental do que se produziu ao tos e enfeites para o leitor incauto cas, que assombram o escritor:
Num turbilhão, a paixão
mo) ou, pior, fecha o livro. longo do tempo, sujeitos aos ris- adquirir “mais um” volume de He-
que sentia pela vida É, infelizmente, o que ocorre cos de rejeição. loisa Seixas. Já tínhamos Contos Escrever é um ato de soli-
inteira desprendeu-se do neste novo livro de Heloisa Seixas. mínimos, agora vamos a Contos dão absoluta e assim deveria per-
fundo de veludo negro Diferentemente do que diz esta Muita ordem mais que mínimos. O leitor fiel manecer. A leitura corrompe, des-
(boa) escritora na contracapa da A despeito de ser um volume de Seixas se sente desamparado. virtua. Talvez o livro já comece a
e explodiu, em todas as obra, “Vivemos um conto mínimo”, com apenas 96 páginas, Contos Na primeira parte, A morte morrer nas mãos do primeiro lei-
direções, enchendo o o leitor, deparando com muitos mais que mínimos se divide em dos amantes, a autora reuniu pe- tor (A leveza, ainda).
mundo, a atmosfera, a “contos mínimos”, página após pá- cinco partes, a fim de ordenar os quenos textos, quase sempre em
gina, sente-se numa avalanche de textos por temas. Para alertar o terceira pessoa — ficcionais, por- Assim, no volume todo não
humanidade inteira, com
pequenas histórias (ou relatos, ou leitor? Para organizar melhor? Di- tanto —, que falam de amores, fe- encontro propriamente origina-
seu veneno. Agora, letal. impressões ou pequenas crônicas), fícil saber se a decisão partiu da minino e morte. Ocorre que todas lidade nas reflexões, nas criações
(Caixa de Pandora) que cansam e desvalorizam o que, escritora, mas não fez bem para as estruturas são iguais: o leitor ficcionais nem na estrutura estilís-
gota a gota, no jornal dá tão certo e a obra, pois essas poucas páginas depara com uma pequena histó- tica da autora. É claro, relevem-se
traz à fidelidade vários leitores. vêm divididas em cinco ambicio- ria cujo desfecho se resolve somen- as necessidades trazidas da mídia
No primeiro volume de textos sas temáticas: A morte dos aman- te na linha final. Há uma busca impressa, de absorver textos leves,
selecionados de sua coluna para a tes, A marca da solidão, O escritor da autora pelo fim inusitado, pela com títulos chamativos. Mas este
revista de domingo do Jornal do e o homem, Impressões e fantas- chamada rasteira no leitor; mas, na não é, certamente, um dos bons li-
Brasil, Contos mínimos (2001), mas e Duas pontas de um só fio. maioria das vezes, o fim é óbvio. vros de Heloisa Seixas.
outubro de 2010

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Os vivos e os mortos
Em romances interligados e pródigos em simbolismos, William Kennedy reconstrói a Albany dos tempos da Depressão

Sérgio Flaksman/Divulgação

Como Hemingway, William


Kennedy tem alma de repórter
tanto quanto de artista.

:: Sergio Vilas-Boas local Times Union. Os mortos se erguem de seus desgraçada da minha vida”. filme de Babenco), ex-prostitutas
São Paulo – SP No prefácio desse livro o au- mundos e dialogam com a consci- À medida que conhecemos a como Sandra e outros losers como
tor fala de si mesmo como “uma ência remorsal de Francis Phelan. condição do personagem, nos per- Helen Archer, cantora e pianista

A
obra de William Kenne- pessoa cuja imaginação se fundiu a Afloram-se seus “pecados”, um a guntamos se ele é um náufrago da de talento que também acabou nas
dy, assim como, talvez, um lugar único, no qual se encon- um, na forma de histórias paralelas Grande Depressão ou uma criatura ruas. “Como é que alguém apren-
a de qualquer autor, tram todos os elementos que um que se intercalam e interpenetram, ocupada mais com seus (supostos) de a fazer uma coisa tão bem, e por
vivo ou morto, é a sua homem necessita para alimentar fazendo com que o tempo do ro- pecados do que com sua pobreza. que isso não faz a menor diferen-
memória, e a sua memória é um sua alma”. Mas o que realmente mance gire em espiral. O intuito de Ambos, o romance e o filme diri- ça?”, o autor questiona.
lugar. Diferentemente da Macon- sustenta os romances O grande Kennedy (em princípio) é provocar gido por Hector Babenco em 1987 Francis e Helen perambulam
do de Gabriel García Márquez e da jogo de Billy Phelan e Ironwe- um enfrentamento existencial, pois (com Jack Nicholson e Meryl Stre- pela cidade sem certeza de onde irão
Yoknapatawpha de William Faulk- ed, ambos publicados no Brasil o sujeito é o que ele recorda. “Al- ep nos papéis principais), são per- se abrigar do frio intenso. Francis
ner, os personagens de Kennedy pela Cosac Naify, não é a historici- gumas coisas eu quis aprender. E turbadores. “Você é muito cruel era o grande amor de Helen, que ti-
povoam uma cidade que existe no dade, e sim a fronteira tênue e per- algumas coisas fiz sem ter precisa- consigo mesmo”, diz a a mulher de vera uma vida inteira de decepções
mundo real: Albany, terra natal do meável entre a vida e a morte. do aprender. E antes eu nem queria Francis, Annie. “Que diabo, eu sou com seus amantes. Despojada de
escritor, que esteve no Brasil em saber como eram”, Francis pensa. cruel com tudo e todos”, ele rebate. esperanças, rejeitada pela família
agosto para a Flip. Capital do Esta- O passado que não passa Em meio a narrações onis- por beber demais e andar com más
do de Nova York, Albany tem hoje Ironweed (a palavra signifi- cientes surgem fusões entre passa- No rumo do sol companhias, ela é uma veterana
cem mil habitantes e fica a uma ca, literalmente, “erva de ferro”) é do e presente, alternando pontos Ironweed foi rejeitado por dos “tempos de ouro” que nunca
hora e meia da Big Apple. uma asfixiante expiação na Albany de vista, como nesta passagem sur- uma dúzia de editoras até contar retornam, supondo que tenham
Não se trata, definitivamente, corrupta de 1938. A epígrafe é sinto- preendente, que desvia do essen- com a inestimável ajuda de Saul havido. “Ele conheceu Helen num
de uma metrópole com cores literá- mática: “A singrar melhor água eis cial para o hiperessencial: “Mas, Bellow, Nobel de Literatura e ídolo bar de Nova York, e quando desco-
rias firmes. Não se assemelha à Lon- que o batel do meu engenho segue, então, na esquina da Columbia de Kennedy. Uma das alegações foi briram que eram ambos de Albany
dres de Eliot, nem à Dublin de Joyce, a vela inflada, deixando atrás o péla- com a Broadway, a rua mudou de “quem vai a essa altura se interes- o amor fez uma curva ascendente e
nem à Chicago de Saul Bellow; tam- go cruel” (Purgatório de Dante). As aspecto: ficou volátil com a raiva sar pela história de gente ferrada, tomou o rumo do sol.”
pouco inspira o anonimato e a soli- primeiras linhas do romance, idem: dos grevistas, que fizeram o bonde um bando de losers (no sentido Numa passagem de puro re-
dão como Los Angeles e Tóquio. Ao “Subindo a alameda cheia de curvas parar entre dois lençóis em cha- americano do termo)?”. Na épo- finamento literário, Kennedy lança
contrário: na Albany deste ficcionis- do cemitério de Saint Agnes na ca- mas”. A polícia investe contra a ca em que o romance foi lançado, um olhar compassivo sobre Helen
ta descendente de irlandeses os per- çamba do velho caminhão descon- multidão. Francis atira uma pedra no início dos anos 1980, Kennedy durante a “canja” dela no Gaiola
sonagens se conhecem e se reconhe- juntado, Francis Phelan percebeu contra a cabine do bonde e acerta não era uma celebridade das letras, Dourada, saloon “que imitava com
cem conforme os laços familiares, as que os mortos, mais que os vivos, a cabeça do motorneiro fura-greve, embora houvesse publicado Legs ironia os pubs da Bowery de qua-
alianças políticas, os segredos e os organizam-se em territórios”. que se apaga. Para sempre? (1975) e O grande jogo de Billy renta anos antes”. Ela canta “He’s
esquemas de sobrevivência. Francis caminha pelo cemi- Adiante, de carona num vagão Phelan (1978), os dois primeiros me pal”. “Mas se sente... está cer-
Nos sete romances do chama- tério onde abrirá covas por um dia de carga em movimento, ele tenta dos sete do Ciclo de Albany. to, vá lá, ela se sente... como uma
do Ciclo de Albany, o poder é uma para ganhar uns trocados. Vem-lhe ajudar a subir no trem um rapaz Em O grande jogo... nos moça envolvida por uma confusão
energia que se autojustifica. Os aos ombros o peso da lembrança de em fuga, contra quem os policiais deparamos com a desgraça do per- particular, pois sente a irrupção si-
políticos e chefões locais usam seu que seu filho Gerald está enterrado atiravam: “...quase consigo segu- sonagem-título, um jovem jogador multânea da alegria e da tristeza, e
triunfo como moeda de troca. Con- ali há 22 anos: o bebê Gerald de 13 rar o rapaz quando bang bang eles de pôquer e bilhar extremamente não sabe dizer qual das duas irá do-
trolam a imprensa e exploram uma dias que o pai deixara escorregar acertam um tiro nas costas dele e habilidoso que se recusa a servir de miná-la nos momentos seguintes.”
lealdade quase feudal. Aos pobres e acidentalmente para fora da fral- fim da história”. Outro fantasma informante do seqüestro do filho Algumas pessoas desconhe-
obscuros resta o voto utilitário “não da no trágico episódio que o levara a vir tirar satisfações, eclipsando de um político poderoso de Albany. cidas a aplaudiram educadamente,
obrigatório”. Francis Phelan, por a abandonar a família e tornar-se desconfortos e inconveniências. Os Ironweed, terceiro da série, en- mas a maioria a encarou com uma
exemplo, protagonista de Ironwe- um vagabundo, uma criatura des- encontros verbais de Francis com foca o pai de Billy, Francis Phelan, expressão entediada. Kennedy,
ed, orgulha-se por ter aparecido prendida, mas com um demolidor os mortos enfatizam que o passado ex-jogador de beisebol nos tempos então, vocaliza o sentimento do
vinte vezes para votar ao longo da sentimento de culpa. não é o que passou, mas sim uma em que esse esporte não garantia a “amante inconstante” de Helen”:
vida, embora o ato não tenha tido carga; e o fardo de Francis está im- eternidade. As tramas dos roman- “Helen, você parece um passarinho
nenhum efeito prático nela. Não tinha como revelar tudo pregnado de cristianismos. ces do Ciclo de Albany transcorrem quando o sol aparece por alguns
Como Hemingway, Kennedy que o trouxera até ali. Para isso, Kennedy retrata-o como mais ou menos na mesma época e instantes. Helen, você é um pas-
tem alma de repórter tanto quanto precisaria recapitular não só todos membro de uma sociedade permis- com o mesmo pano de fundo, mas sarinho alvoroçado pela luz do sol.
de artista. Estuda os cenários his- os seus pecados mas ainda quase siva na qual o catolicismo irlandês com vivências diversificadas. Mas o que será de você quando o
tóricos de seus livros com escrupu- todos os seus sonhos fugitivos e de- conflita com o metodismo dos pas- Francis Phelan é tudo em sol de puser de novo?”
losa exatidão. Reverencia nomes de caídos, todos os seus movimentos tores principais de Albany. Francis Ironweed: o corpo e a alma; o he- Ao final desta ótima cena (no
ruas, fábricas, comércios e lendas aleatórios através do país de um está na direção de lugar nenhum, rói e o anti-herói; a confusão e o re- livro como no filme), Helen fecha
vivas. Em Ó, Albany (1983), rara lado para o outro, todos os seus fisicamente falando, mas sua cons- ferencial. Em torno dele gravita um os olhos e sente as lágrimas abrindo
obra dele de não-ficção, mesclou retornos àquela cidade só para ciência segue o curso das justifica- bando de gente que não sabe dife- caminho à força. Recobra a “pers-
pesquisa, memorialismo, vivências tornar a ir embora sem jamais vir tivas inúteis e das aleatoriedades renciar um dia do outro. Há beber- pectiva” de que nada havia muda-
de infância e juventude e a sua ex- vê-la, jamais vir vê-los, sem nunca incontornáveis: “Nunca sei o moti- rões como Rudy (estupendamente do. Ela era subserviente a Francis.
periência como repórter do diário entender por que não vinha. vo de eu ter feito coisa nenhuma na interpretado por Tom Waits no Foi ela que, devido a essa mesma
outubro de 2010

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O autor
subserviência, perpetuara a relação fiz nada, nunca fui nada.” Decorre Segundo o acadêmico Bren- WILLIAM KENNEDY
que ele mantinha com ela. “Quan- daí um imperativo técnico: a voz dan O’Donell, autor do ensaio Fran-
tas vezes ela se afastara dele? Deze- autoral de Kennedy tem de mover- cis Phelan in purgatory: William Escritor, roteirista e jornalista,
nas e mais dezenas. Quantas vezes, se através das particularidades dos Kennedy’s Catholic imagination in nasceu em Albany (EUA),
sempre sabendo onde ele estaria, discursos de Francis, que se vê re- Ironweed, “a principal diferença em 1928. É autor dos livros
Ironweed (pela qual ganhou
ela tinha voltado? As mesmas deze- fletido nos coadjuvantes, os quais, entre as almas do Inferno de Dan-
o prêmio Pulitzer), O grande
nas, menos a de agora.” por sua vez, solidários, refletem-no. te e as do Purgatório é que as que
jogo de Billy Phelan, Legs,
O que Helen tinha em comum Francis já havia retornado a estão no purgatório conhecem a si Very old bones e vários
com Francis? Ambos foram alvo Albany antes, em 1934. Revisitara mesmas a fim de serem amadas e outros, e escreveu o roteiro
de desprezo de suas mães, escreve o bairro de sua infância na Colonie Ironweed perdoadas. Esse conhecimento não do filme Cotton Club, de
Kennedy, num raro lugar-comum, Street na ocasião do funeral de sua William Kennedy as alivia do sofrimento decorrente Francis Ford Coppola.
insinuando uma relação de causa e mãe, quando foi terminantemente Trad.: Sérgio Flaksman de seus pecados, mas transforma
efeito para o sistema de dependência rejeitado por Sarah, sua irmã. Este Cosac Naify inteiramente seu significado, que
que sustenta os dois. “Francis não episódio é mencionado en passant 272 págs. vai da maldição à benção”.
esmolou nas ruas por Helen quando em Ironweed. Mas parece claro que O sofrimento está intima-
Trecho
ela ficou doente em 1933? Ora, ele Kennedy quis mostrar Sarah como mente conectado com a trajetória


O grande jogo Ironweed
jamais tinha pedido esmolas, nem uma espécie de guardiã dos valores de Billy Phelan dessas almas. O sofrimento que, no
para si mesmo, antes disso. Se Fran- católicos irlandeses, aquela que im- William Kennedy Inferno, poderia ser experimentado
Trad.: Sérgio Flaksman
cis pôde transformar-se em mendigo prime a moral. (Kennedy, aliás, cos- como punição pura, torna-se expia-
Cosac Naify
por amor, por que Helen não pode tuma se referir ao “catolicismo irlan- tório, um meio de purificação atra-
344 págs.
abdicar pelo mesmo motivo?” dês” como “catolicismo puritano”.) vés do qual a alma segue o curso do “Quando jogam sujeira na
Para os padrões de distração Noutro de seus vários retor- amor até a sua fonte original. “No minha cara, ninguém pode
concentrada e desinteresse pela nos, ele viveu por várias semanas purgatório, os orgulhosos não são
fazer pouco de mim, é só
transcendência desta nossa era com Helen em “regime marital” capazes sequer de olhar no rosto
digital, o drama de Francis e He- num apartamento na Hamilton de Dante, mas, apesar de suas pe- isso que eu não deixo”,
len pode soar deprimente demais. Street, trabalhando como mecâni- sadas cargas, um certo movimento disse Francis. “Posso ir
Mas Kennedy demonstra uma co- co e usando uma barba longa como os transporta”, escreve Brendan.
sofrer no inferno, se o
esão humanística incomum, o que disfarce, pois tinha medo de ser profundos, é um aspecto desorien- “O principal padrão do pur-
atenua o tétrico impacto das tra- acusado de assassinato. Mas ele tador de Ironweed. Primeiro por- gatório — lembrança e penitência inferno existir, mas ainda
gédias pessoais dos personagens. nunca havia ido até o túmulo de que Kennedy minimizou o potencial — abençoa o esquecimento dos tenho músculos e sangue
Até mesmo a maneira como Helen Gerald antes daquela manhã ge- notável da personagem (Billy é o pecados e, por último, reflete uma
e não desisti de nada.
escolhe morrer (metódica e solita- lada de Halloween. “Ora bolas, é “Grande Billy” no outro livro, mas noção de eternidade: por exemplo,
riamente num quarto de pensão), tudo verdade. Qualquer porra que em Ironweed ele funciona apenas beber da água do Eunoé, rio que Nunca vi um vagabundo
além de reforçar a singularidade da você for capaz de imaginar é verda- como um “anjo da anunciação”). restaura a memória apagada pelo dizer nada contra Francis.
personagem, reverbera não como de”, diz o personagem. Segundo porque o silêncio de Rio Letes na Divina Comédia.
E é melhor mesmo que
tragédia, mas como um momento Em retrospecto, então, o Annie cria uma expectativa de retor- Isto propicia a estrutura básica do
(finalmente alcançado) de paz. “fato” do casual encontro de Fran- no dele ao lar, ou seja, de um final trânsito espiritual de Francis à me- não falem mesmo nada,
cis com seu filho Billy é de crucial conformista tipicamente puritano. dida que ele tenta, à sua maneira os desgraçados. Todos
“Catolicismo puritano” importância. Billy diz ao pai que Felizmente, não é o caso. Na verda- mundana, purificar-se. Muito da uns filhos da puta, todos
Os cenários sombrios (vagões Annie nunca contou a ninguém que de, o silêncio de Annie acaba forçan- atividade do protagonista, aliás,
e galpões abandonados, abrigos o marido deixara o bebê cair num do Francis a reavaliar a imagem que envolverá purificação — fisicamen- pobres almas miseráveis
imundos, ruas e bares decadentes) dia de abril de 1916. “Para ninguém. ele tem de si mesmo, de sua história te, emocionalmente e espiritual- esperando ir para o céu,
sugerem que há muito mais que Nunca. Nem Billy, nem Peg [filha e de seus relacionamentos malucos. mente —, até o reencontro com a andando por aí enquanto
fracasso e sucesso na fogueira em de Francis], nem os irmãos ou as Talvez por isso ele se refira repeti- família”, analisa Brendan.
a neve cai, dormindo em
que Francis, Helen e Rudy estão irmãs dela. Não consigo imaginar damente ao passado em termos de Duas cenas de purificação
sendo queimados. O próprio Fran- uma mulher passar por tudo isso “coisas que aconteceram lá atrás”. simbólica — uma na casa de Jack casas vazias, com as calças
cis foi descrito como “uma apari- sem contar nada para ninguém”, Esse hiperdesenvolvido sen- e Clara e outra no banheiro da caindo do corpo (....)’
ção” por sua mulher Annie em O Francis diz a Helen num diálogo tido de culpa presente no livro, que casa de Annie — estabeleceriam
grande jogo de Billy Phelan. nada fortuito. Esse dado, além de envolve estruturas e imperativos conexões entre a “sujeira” física
“Jesus”, Annie diz para Billy e Peg alterar a perspectiva do romance, morais literariamente formidáveis, de Francis e seu estado de espíri- Trecho
O grande jogo


assim que Billy lhe conta que viu leva Francis a encarar Annie. é uma das marcas positivas da obra to. Esse processo de purificação, na de Billy Phelan
Francis na cidade, “nunca pensei de Kennedy. Em sua visão de mun- visão de estudiosos da influência
que ele voltaria e assombraria vo- “Você foi uma mulher dife- do há uma percepção (ou talvez do cristianismo na obra de William
cês dois de novo”. Não por acaso a rente das outras, Annie. Muito di- “insinuação”) evidente de que so- Kennedy, é o que rompe os laços
narrativa começa numa manhã do ferente das outras.” mos responsáveis por tudo e temos de Francis com Helen e Rudy (não
dia de Halloween, numa clara alu- “O que eu ia ganhar falando de viver conforme a nossa consci- há problema em dizer que ambos Billy encheu a banheira
são a bruxas e fantasmas. disso? Era uma história passada e ência, com todas as perdas e danos morrem) e às duas décadas que com a água mais quente
Dois “fatos” compelem o va- acabada. Não foi mais culpa sua implicadas. Seus personagens não Francis passou na estrada.
que as suas hemorróidas
gabundo Francis a romper com o do que minha. Não foi culpa de são atormentados por ocorrências Uma dúvida, porém, cerca
estado voluntário de amnésia a que ninguém.” inquestionáveis, mas sim por “situ- Ironweed (livro e filme) desde conseguiam agüentar,
vinha se submetendo: seu encontro “Não sei como lhe agradecer ações criadas” (por eles próprios). sempre: Francis, afinal, volta para agora que estavam
casual com Billy; e a análise de lápi- por isso. É uma coisa que nenhum “Um imperativo moral com- a sua família ou apenas vislumbra
atacando de novo. Precisa
des que empreende no cemitério de agradecimento pode estar à al- peliu Francis todos aqueles anos, de essa possibilidade ao perder-se
Saint Agnes no começo do livro. Este tura. É uma coisa que eu nem sei modo que ele vem e vai a Albany; e novamente pelo mundo? Críticos fazer algum exercício, Billy.
último nos remete ao peregrino de mesmo...” ainda assim nunca ia até a casa de e resenhistas parecem divididos a Três banhos por dia com a
Dante, para quem a compreensão da “Não se incomode com isso”, sua família. E vemos em Very old respeito. Mas talvez essa questão
água mais quente possível,
finitude é questão de perplexidade. disse ela. “Já passou. Venha, senta bones [outro romance do Ciclo de não tenha a importância que lhe foi
Mas o tema central deste ro- aqui e me conte por que você final- Albany] que havia comparecido ao dada. O “fato” é que Kennedy refor- disse o médico, o suor
mance vencedor do Prêmio Pulitzer mente resolveu vir nos visitar.” funeral de sua mãe e estava pronto çou a sua competência narrativa ao sempre brotando na testa
na categoria ficção é a culpa, mais para, talvez, enfrentar Annie, mas premeditar o final (ele certamente de Billy enquanto enchia
que qualquer outra coisa, embora A purificação simbólica não conseguiu. Passam-se anos até raciocinou a respeito antes de con-
toque também em compaixão, re- Que Annie não tenha nunca ele encontrar o filho Billy Phelan, que cluir o romance e o roteiro do filme a banheira com a mais
denção, piedade e perdão, necessa- culpado nem denunciado Francis, lhe dá o sinal de que ‘está na hora’. É dirigido por Babenco), tornando a quente das águas quentes.
riamente. A culpa é tudo que resta a ou que ela tenha guardado segredo o purgatório. O livro se baseia nisso. pequena Albany dos vagabundos Será que esse tal de Billy
Francis. “Se ela desaparecer, é por- por 22 anos sobre aquela morte aci- O purgatório de Francis é o de Dan- um lugar mais universal do que
tem dinheiro?
que nunca signifiquei nada, nunca dental causadora de sofrimentos tão te”, Kennedy declarou em entrevista. poderíamos imaginar.

:: breve resenha : :
Beethoven era

Lamentável e constrangedor
1/16 negro
Nadine Gordimer
Trad.: Beth Vieira
Companhia das Letras
168 págs.

:: Luiz Horácio prêmios Nobel (o de Nadine — nin- Agora tem branco querendo conto constrangedor, Solitária: Resumo da ópera: Beetho-
Porto Alegre – RS guém me convence do contrário — ser negro. Meu começo é a ingestão… ven era 1/16 negro é um livro de
por razões políticas). A mim, essa O segredo é o mesmo. Posso ter sido ingerida numa fo- contos em que o apartheid está em

R
epresentar o real e o ima- literatura não comove. O conto traz a sinfonia da de- lha de alface, ou numa iguaria primeiro plano. Do mesmo modo
ginado. Isso é literatura. Beethoven era 1/16 negro, sordem social africana. Um pro- de carne crua moída que atende, que a escravidão no Brasil não teve
E as literaturas africanas livro de contos da prezadíssima Na- fessor universitário londrino viaja acho eu, pelo nome de steak tarta- seu final com a assinatura da lei, e
não se cansam de repre- dine Gordimer, é de uma irregula- a uma cidade sul-africana em bus- re… Às vezes, durante minha lon- o preconceito, contra os pobres de
sentar o papel de críticas do real. ridade invejável. Apresenta contos ca de eventuais parentes. Seu bi- ga estada ali, havia a descida de todas as cores, é cada vez mais visí-
Violência e miséria dão o tom. Haja primorosos e alguns constrangedo- savô explorara minas de diamante algum líquido poderoso que se es- vel, na África do Sul o fim do regime
paciência para encarar o mesmo res. Mas tão constrangedores que o em Kimberley e, agora, o professor pichava prazerosamente por todo racista deixou negros e brancos se
cenário, as mesmas personagens, leitor não acredita que sejam todos voa em busca de sua porção negra. meu comprimento… Ondulando, perguntando: “E então eu venho de
o figurino surrado. No entanto, não da mesma autora. Larga o livro e se O leitor se verá frente ao vaivém estou partindo num elemento que onde? O que é mesmo tudo isso?”.
se pode desfazer da imaginação dos perde elucubrando metáforas que, da vida do bisavô do professor. também o faz, estou partindo para (Agora sim, com interrogação.)
escritores africanos. Nisso eles são quem sabe numa releitura, consigam Este se depara com o enigma in- onde essa vastidão líquida pode- Quase encerro sem citar ou-
bons, o problema é a repetição. Ora justificar aquele texto lamentável. ventado por ele mesmo na tenta- rosa vai — a natureza imbuiu em tro momento extremamente desa-
a natureza — quando não é a seca, Na categoria “conto primoro- tiva de tentar ser um pouco negro: mim o conhecimento de que tudo gradável, primário do livro de Gor-
é a chuva no papel de algoz —, ora so”, aquele que empresta nome ao “E então eu venho de onde. O que se move para algum lugar — e tal- dimer. O conto Gregor apresenta
o ocidental a invadir seu território livro. O apresentador de um pro- é mesmo tudo isso” (no livro, sem vez lá, onde essa força chegar, um uma barata como protagonista.
e sua cultura. Nesse passo tenta se grama radiofônico de música clás- interrogação). de meus ovos (todas temos um es- Nadine busca seu momento Ka-
mover a literatura africana, sem sica anuncia: “Beethoven era 1/16 Por que esse conto é primo- toque dentro de nós, ainda que se- fka e chega a Clarice Lispector —
sair do lugar, indecisa entre o ma- negro”. Pronto. É dada a largada à roso? Porque é repleto de sim- jamos sozinhas e nossa fertilização a Clarice e a todo o tédio que essa
ravilhoso, o fantástico e o real. Mas corrida de africanos em busca de bolismo, de criatividade, um vôo um segredo) encontre uma mosca enigmática e incensada autora de
nunca negando a imaginação. E a uma identidade. suave da imaginação sobre um transmissora que pouse numa fo- A paixão segundo G. H. conse-
massa de seus adoradores é imen- Houve tempo em que tinha continente contraditório. lha de alface ou num belo pedaço gue desfiar. Inimitável. Lamentar
sa: os africanos acumulam três negro querendo ser branco. Mas é chegado o momento do de carne de um steak tartare. ou não? Eis a questão.
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Bukowski puro e
sem gelo
Osvalter

Coletânea reúne contos e ensaios ainda inéditos em livro

: : José Renato Salatiel


Santos – SP

D
epois de receber mais
uma carta rejeitando seus
contos “sujos” (um pouco
mais longa e ambígua que
o normal), Bukowski vaga pelas ruas
pensando na tediosa literatura ame-
O autor ricana e em como se livrar da atual
CHARLES BUKOWSKI mulher. De volta à pensão em que
Nasceu em Andernach, na mora, encontra amigos bêbados jo-
Alemanha, a 16 de agosto gando cartas com o editor da revista
de 1920, filho de um soldado que recusou seus escritos. Após uma
americano e de uma jovem briga, ele salva o editor e o leva até
camponesa alemã. Aos a casa de sua amante, onde ouvem
três anos, migrou para música clássica, se divertem com um
os Estados Unidos com a gato e comem alguns sanduíches. Há
família, onde viveu quase
uma tentativa de chantagem sexual
que exclusivamente em
Los Angeles. Publicou seu
por parte da garota, até que descobre
primeiro conto em 1944, aos que tudo não passou de um grande
24 anos, e aos 35 começou engano. O que fazer? Voltar para a
a publicar poesias. Teve pensão correndo para ver se sobrou
diversos subempregos para um pouco de vinho barato.
sobrevier, até passar 14 anos Para leitores acostumados com
nos Correios. Neste período, suas histórias cheias de sacanagens,
publicou contos na imprensa bom humor, brigas, escatologias e
alternativa americana, em
depravações de toda espécie, esse
jornais como Open City e
primeiro conto que Charles Buko-
Nola Express. Foi casado e
teve uma filha, mas a maior wski publicou aos 24 anos, Conse- sua cela. O texto passa uma acen- os acadêmicos e os críticos (essas de incitar e excitar num momento
parte de sua vida adulta qüências de uma longa carta de re- tuada visão melancólica e existen- duas últimas classes estão entre as em que não havia realmente muita
foi marcada por relações jeição (1944), assim como a maioria cialista (oriunda da leitura dos rus- que mais gostava de espezinhar). coisa acontecendo”) e Antonin Ar-
amorosas fugazes e pelo dos textos reunidos em Pedaços sos, segundo o editor do livro) que, Mais do que uma resposta aos que o taud, de quem parece gostar mais
abuso de álcool. Na literatura, de um caderno manchado de em seus escritos da maturidade, chamavam de indecente, misógino da condição de “alternativo” do
ficou conhecido como vinho, é um reencontro com o ve- permaneceria em segundo plano. e nazista, é um texto em que ele se que propriamente de seus escritos,
outsider por seus contos lho safado. Ele nos lembra que escri- Outro conto que chama atenção alinha inteiramente à melhor tradi- entre outros. Bukowski também
obscenos com linguagem
ta tediosa e rebuscada é dispensável é justamente o último escrito por ção de defesa das liberdades indivi- foi um dos primeiros a apreciar
chula em que retratava a
para se fazer boa literatura. Claro Bukowski, intitulado O outro. A duais que formaram a democracia William Ginsberg (“a força mais
vida dos losers. Também foi
considerado um precursor
que, entre os inéditos, nem tudo história traz uma trama detetivesca americana, herança de Thoureau e vivaz da poesia americana desde
dos beatniks. Publicou mais tem a qualidade, por exemplo, de e onírica em torno do tema do du- Whitman. Senão, confiramos a se- Walt [Whitman].”). Outras refe-
de 45 livros de poesia e prosa, Crônica de um amor louco ou plo, explorado (com mais destreza) guinte passagem (hilária) em que rências, nem sempre elogiáveis,
entre eles seis romances. de romances como Mulheres ou por autores como Wilde, Poe, Ste- questiona a revolução apregoada são Céline, Mailer, Updike, Chee-
Morreu de pneumonia na Factótum. Mas, em contrapartida, venson, Borges e Hoffmann, entre por hippies esquerdistas: “Será que ver, Tosltói e Faulkner (“uma das
Califórnia, no dia 9 de março o livro traz ensaios curiosos e textos outros. Outra novidade, em se tra- não me colocarão para cortar cana? maiores e mais vis farsas de nossa
de 1994, aos 73 anos. emocionantes de um dos mais fa- tando de Bukowski. Isso me deixaria chateado. Por época, amplamente aceito”).
mosos escritores da contracultura. Em termos de escrita, Peda- acaso construirão novas fábricas? Eu conheço o mestre, o mais
Além dos contos, pelos quais ços de um caderno manchado de Passei minha vida inteira fugindo comovente texto da coletânea,
o leitor brasileiro mais conhece vinho, texto que dá título ao livro, é de fábricas. (...) Deixariam que eu mostra Bukowski, um escritor que
Bukowski, Pedaços... reúne arti- o mais curioso da obra. Nele há um ficasse largado em parques e cubí- detestava o convívio com a maioria
gos que o autor escreveu para revis- desconcertante conjunto de diva- culos bebendo vinho, sonhando, das pessoas, que vivia se degradan-
tas alternativas, como resenhas e os gações que mistura prosa e poesia me sentido bem tranqüilo?”. do e buscava a solidão para escre-
textos da coluna Notas de um velho — o Bukowski poeta, aliás, é quase Os títulos, como o leitor deve ver, encontrando seu ídolo, mo-
safado. Tudo destilado no subjeti- um desconhecido entre os leitores ter notado, são geniais. Bukowski ribundo, numa cama de hospital,
vismo, no sarcasmo e no estilo di- brasileiros, não fosse outra cole- tinha uma capacidade de síntese ad- cego e com as pernas amputadas.
reto e simples, sobretudo simples, tânea lançada há sete anos, Os 25 mirável, um texto quase jornalístico, Há uma surpreendente relação
que caracterizam sua obra. melhores poemas de Charles ainda que mais próximo da vertente quase paternal, catártica, no jeito
Pedaços de um Conhecido como escritor mar- Bukowski, editado pela Bertrand “gonzo”. O apelo à composição en- de Bukowski lidar com John Bante
caderno manchado
de vinho ginal ou outsider muito antes dos Brasil. Outras histórias divertidís- xuta e objetiva está, por exemplo, em — obviamente John Fante. O texto
Charles Bukowski beatniks entrarem em cena, Buko- simas que merecem a leitura são A Um ensaio errante sobre a poética conta como Fante/Bante foi tirado
Trad.: Pedro Gonzaga wski fez de si mesmo seu melhor noite em que ninguém acreditou e a vida visceral escrito ao longo de do ostracismo por Bukowski, na
L&PM personagem. O escritor bêbado e que eu era Allen Ginsberg, com o seis cervejas (grandes) — “Para que época já um escritor de renome.
304 págs. miserável que vive entre apostas escritor fugindo de outros bêbados escrever um romance se é possível Completam o livro as Notas de
em corridas de cavalos, prostitutas, durante uma briga; a da brochada dizer o mesmo em dez linhas?” — um velho safado, colunas semanais
porres intermináveis e a convivên- diante um bizarro objeto religioso com o que Borges concordaria, e em que o autor escrevia para o jornal un-
Trecho cia com outros losers dos subúrbios em O cristo prateado de Santa Fé; Treinamento básico — “Quanto mais derground Open City, onde falava de


Pedaços de um...
de Los Angeles. Ele foi um dos pri- e a de um ménage em Malhação. compacto e menor você se tornar, qualquer coisa, até sobre a arte de di-
meiros autores a transportar para a menor a chance de errar ou de men- rigir bêbado (!), e também publicava
literatura americana esse submun- Hippies tir. Os gênios são aqueles capazes relatos autobiográficos, como Con-
do com uma linguagem acessível O que mais surpreende na co- de dizer algo profundo de maneira fissões de um velho safado e Notas
(“eu era compreendido por prosti- letânea, entretanto, são os ensaios simples”. Para isso, diz ele, seria ne- sobre a vida de um poeta idoso. Há
Nos dias em que me tutas de Kansas City e professores “políticos” e literários. Que se pese cessário ter a experiência certa, o que artigos inusitados e quase dispensá-
de Harvard”), repleta de palavreado a falta de argumentação coerente, não significa, necessariamente, viver veis, como uma improvável cober-
considerava um gênio
chulo e cenas pornográficas que ir- impessoalidade, idéias originais ou como um vagabundo a maior parte tura de um show dos Rolling Stones
e passava fome e ritaram o establishment da época. beleza estilística — lembrem-se, é do tempo. Exemplos: “Não há como (Jaggernauta), feita por um autor
ninguém me publicava eu Depois de viver de inúmeros Bukowski, não Edmund Wilson ou escrever sem viver a vida e escrever o que detestava rock, e um breve ma-
subempregos, passar fome e quase Susan Sontag —, os leitores menos tempo todo não é viver” (Sobre a ma- nual sobre como apostar em corridas
costumava gastar muito
morrer de tanto beber (e consumir exigentes e um pouco mais atentos temática da respiração e do estilo); de cavalos (Escolhendo cavalos),
mais tempo em bibliotecas drogas lícitas e ilícitas), Bukowski irão achar, por trás do persona- e “A linguagem da escrita de um ho- prática esportiva que estava para
do que faço agora. Era uma conseguiu finalmente trocar um gem, um escritor absolutamente mem vem de onde ele vive e de como Bukowski como as touradas para He-
trabalho medíocre nos Correios por consciente de sua técnica, seu lugar vive” (Treinamento básico). mingway ou o boxe para Cortázar.
beleza pegar uma mesa
um salário regular para viver de e alcance na literatura e na histó- Pedaços... pode ser, ainda,
vazia onde o sol incidia seus escritos, aos 50 anos de idade. ria americana. Em nenhuma outra Literatura uma boa porta de entrada para o
através da janela e sentir o A partir de então publicou romances obra publicada de Bukowski no Essa proximidade com o fa- universo do velho safado. A capa-
como Cartas na rua (1971), Fac- país tem-se essa perspectiva. lar comum das pessoas ordinárias, cidade de rir da própria desgraça
sol no meu pescoço e na
tótum (1975), Mulheres (1978) e Deveríamos queimar o rabo com as quais conviveu a vida toda, e o ritmo narrativo são os grandes
minha nuca e nas minhas Misto quente (1982). Corriam os do Tio Sam? é um texto atualís- é também o ponto de sua crítica trunfos de Bukowski. Por essa ca-
mãos e então não me anos 1970 quando foi acolhido pela simo, de uma sobriedade ímpar, à literatura americana e critério pacidade de divertir e a facilidade
sentia tão mal com o fato academia para dar palestras e leitu- mesmo tendo sido escrito, como para sua admiração por escritores de contar histórias de modo casu-
ras, função na qual se sentia muito eram os textos de Bukowski, acom- de estilos semelhantes que o an- al (sem falar no erotismo), ele é
de todos os livros serem pouco à vontade — mesmo bêbado. panhado por altas doses de vinho tecederam, como Ernest Hemin- também um excelente autor para
monótonos em suas capas Em Pedaços..., além do pri- (de preferência), cerveja ou uísque. gway e John Fante. adolescentes que busquem desco-
laranja e verdes e azuis meiro conto já citado, podemos Neste breve ensaio, ele defende sua Pedaços... traz resenhas so- brir o prazer da leitura, antes que
ler 20 tanques de Kasseldown, de literatura e o individualismo contra bre Ezra Pound (“Pound foi para a o hábito de ler seja definitivamen-
espalhados por ali como
1946, sobre os pensamentos de um o patrulhamento ideológico, o puri- poesia o que Hemingway foi para te enterrado na escola. O primeiro
objetos de escárnio. homem aguardando a execução em tanismo americano, o macartismo, a prosa: ambos tinham um jeito porre ninguém esquece.
outubro de 2010

23

Fora da torre de marfim


Eu acuso!, de Émile Zola, é marco na história da participação ativa de intelectuais nas questões sociais de seu tempo

:: Patricia Peterle silêncio, à espera do meu processo ciar as ilegalidades e o abuso de po- e interesses artísticos que tendem a entendida no século 20. Postura
Florianópolis – SC e das conseqüências que viriam. der cometidos pelas autoridades. se distanciar do cotidiano; na reali- paradigmática a de Zola que será
Zola, escritor respeitado, não in- dade, ele, exatamente por ser escri- lembrada por tantos outros escri-

J
’accuse! é um texto po- Se o título de um dos textos tervém por meio de sua produção tor, tem responsabilidades e passa tores, filósofos e pensadores que
lêmico, que testemunha da coletânea é J’Accuse!, essa ex- literária, contudo não deixa de ex- a intervir na res publica. A forma refletiram sobre o complexo papel
um momento efervescen- pressão vai tomando cada vez mais pressar a perplexidade e a inquieta- com a qual essa intervenção é feita, do intelectual e sua relação com a
te vivenciado pela socieda- corpo e forma, à medida que Zola ção relativas ao acontecimento que no caso de Zola e de muitos outros, sociedade. Jean-Paul Sartre, com
de francesa do final do século 19. reconstrói a história do caso, dan- chamou a atenção de toda a França é o trabalho com a palavra. As be- a literatura engagè, Norberto Bob-
Émile Zola, escritor já legitima- do a sua versão dos fatos. Há um e, também, da Europa. las letras, claro, mas que também bio, Edward Said, Pierre Bourdier
do e conhecido fora da França, foi trabalho sofisticado de leitura de Sem dúvida, o evento marcou podem ser usadas de modo sofis- são só alguns exemplos daqueles
um daqueles intelectuais que saí- documentos, decodificação, sele- um novo traço no perfil da figura ticado para recriar situações, de- que retomam a experiência de Zola
ram do cadinho “confortável”, no ção e ressemantização. Uma ex- do intelectual e do homem de letras nunciar, descortinar. Um uso da para poder construir os seus dis-
seu caso a literatura, para intervir pressão significativa que ganha nessa passagem do século 19 para o linguagem e das imagens, cujo ob- cursos no século 20.
no aceso debate gerado pelo affai- ainda mais força na última parte do 20, além de trazer à luz as feições jetivo maior é o questionamento e Refletir sobre essa figura ao
re Dreyfus. Carta aberta endereça- artigo-carta, quando ela é repetida de um indivíduo que trabalha em o conhecimento. A idéia da litera- longo do século passado é também
da ao presidente da França, Felix propositalmente, como uma espé- um âmbito diferente daquele social tura como conhecimento sem o de- dar conta de uma série de mudan-
Fauré, é considerada por Jean-De- cie de refrão, que produz até um e político, mas que faz uso da sua trimento dessa arte. O artista-es- ças e transformações que aconte-
nis Bredin um marco fundamen- ritmo cadenciado, ao iniciar oito legitimidade, de seu sucesso e de critor que se coloca comprometido ceram no sistema social, cultural e
tal na história do jornalismo. Com parágrafos consecutivos. sua fama em outros meios, como a com o “dever da verdade”. político e, em relação ao indivíduo,
apenas 4 mil palavras, ela pode literatura ou as artes, para defender A busca pela verdade permeia na esfera do público e do privado.
ser vista como uma “obra-prima”, Conseqüências publicamente uma idéia. A imagem esses artigos e move o escritor a Como coloca Bourdieu:
seja pelo resultado literário atingi- As conseqüências também emblemática, deixada em 1898 e ci- tomar certos posicionamentos. A
do, seja pelos debates públicos que não foram poucas. A partir desse tada por muitos que tentaram defi- presença dessa busca fica clara nas O J’accuse! é o auge e a con-
conseguiu gerar e produzir. artigo Zola é julgado algumas vezes nir e teorizar sobre o intelectual no últimas linhas de J’Accuse!: “Mi- sumação de um processo coletivo
O jornal L’Aurore, ao publi- e recebe duas grandes condenações. século 20, é a de Émile Zola. nha questão é somente uma, a da de emancipação que progressiva-
car esse artigo na primeira pági- Como se sabe, é nesse momento que O texto de Zola é uma con- luz, em nome da humanidade que mente se foi cumprindo no campo
na, vendeu rapidamente todos os Zola exila-se na Inglaterra, onde fi- testação e denúncia da manipula- tanto sofreu e que tem direito à fe- de produção cultural: enquanto,
exemplares do dia 13 de janeiro cará por quase um ano. Em 1899, ção de informações que envolviam licidade. Meu protesto inflamado ruptura profética com a ordem
de 1898, acendendo ainda mais as no dia 3 de junho, é comunicada a o oficial do exército francês Alfred não é senão o grito da minha alma. estabelecida, reafirma, contra to-
discussões sobre o caso. A partir da revisão do processo e Zola regres- Dreyfus. O que está posto é que a Que ousem, portanto, levar-me ao das as razões de Estado, a irre-
releitura do affaire feita por Zola, sa à França. No retorno, novamen- imagem tida, até então, do deposi- tribunal, e que o inquérito se rea- dutibilidade dos valores de ver-
vários artistas e intelectuais pro- te nas páginas de L’Aurore, publica tário de uma cultura, um guardião lize em plena luz!”. Luz, claridade, dade e de justiça, e, no mesmo
nunciaram-se publicamente. Tal um novo artigo intitulado Justice, das tradições ou a de um legisla- uma visão mais limpa e translúci- ato, a independência dos guardi-
atitude, tomada por um escritor motivado pela reabertura do pro- dor, para usar a expressão de Zyg- da, é isso que clama Zola. ões desses valores em relação às
que sai da esfera do literário-cultu- cesso. Outro texto famoso desse pe- munt Bauman, não é mais suficien- O affaire Dreyfus é, certa- normas da política (as do patrio-
ral para “intrometer-se” na do so- ríodo, cujo título é também emble- te. A imagem idealizada e “utópica” mente, o mais famoso e polêmico tismo, por exemplo), e às imposi-
cial e político, teve como resultado mático, é La Vérité en marche, que do escritor envolto na sua imagina- erro judiciário de todos os tempos ções da vida econômica.
o Manifeste des Intellectuelles, pu- também faz parte e integra o título ção e isolado, “fechado” em sua tor- da justiça francesa, que provocou
blicado em 14 de janeiro de 1898, dessa publicação. re de marfim, agora dá lugar a uma uma crise em todos os setores da Uma polêmica que não deixou
assinado por muitos homens de Diante da querela francesa nova perspectiva em relação àquilo sociedade, mas é importante res- de ter conseqüências no campo po-
cultura, como Anatole France, Ge- ou do affaire immortelle, como o que está ao seu redor. Com efeito, saltar que é nesse conturbado am- lítico, obviamente, mas que também
orges Courteline, Octave Mirabeau, denominou Marcel Proust, Émile a posição do homem de letras so- biente que se trata, pela primeira marcou as relações entre literatura
Claude Monet e Marcel Proust. Zola foi um dos primeiros homens fre mudanças radicais. O escritor vez, da idéia de intelectual, da for- e história e o papel do escritor como
Sem dúvida, J’accuse! (Eu de letras a se pronunciar e denun- não está mais isolado nas matérias ma como essa categoria passa a ser um produtor de significados.
acuso!), que dá título ao livro re-
cém-lançado pela L&PM, é seu tex-
to central, mas o volume é compos-
Reprodução
to por outros escritos produzidos e
O autor
relacionados ao affaire. De fato, é Émile Zola
o próprio Zola que, no prefácio de
1901 à edição francesa, reprodu- Nasceu em Paris, na França,
zido nesse volume, com tradução em 1840. Antes de se
consagrar como escritor,
de Paulo Neves, chama a atenção
trabalhou na editora Hachette
para o fato de essa coletânea não
e como jornalista, atividade
pretender ser uma história do pro- que nunca abandonou.
cesso contra o oficial judeu fran- É considerado um dos
cês, apesar de os artigos terem sido representantes máximos
escritos em momentos diferentes do naturalismo. Depois de
e trazerem o signo das tensões da Therese Raquin (1867), ele
época. É, sim, uma contribuição, tinha como projeto literário
um testemunho de quem presen- um ciclo de romances,
ciou aquele clima, as discussões re- Les Rougon-Macquart,
para retratar as várias
lacionadas ao caso, e teve um en-
camadas da sociedade, e
volvimento motivado pela injustiça dessa idéia foram muitas
que estava sendo cometida. as obras publicadas, como
Diz Zola, nesse prefácio: “E Nana (1880), ambientado
gostaria unicamente de dar minha nos espaços burgueses, e
contribuição a esse dossiê, deixar Germinal (1885), centrado
meu testemunho, dizer o que sou- nas lutas sociais e pela
be, o que vi e ouvi, desde o ângu- vida numa comunidade de
lo do caso no qual atuei”. A idéia de mineiros. Morreu em 1902.
testemunho é ainda reforçada pelo
fato de o autor, ao reunir os textos
para a publicação em forma de li-
vro, não ter alterado, modificado
ou revisto, de forma consciente, ne-
nhum dos artigos. Outro aspecto é a
ordem cronológica respeitada no li-
vro, que segue a mesma da primei-
ra circulação na imprensa francesa.
Além disso, cada texto apresenta,
abaixo do título, um pequeno pa-
rágrafo explicativo que o contextu-
aliza, o que pode facilitar o entendi- J’accuse! (Eu acuso!)
mento do leitor. Eis um exemplo: Émile Zola
Trad.: Paulo Neves
L’Aurore já havia tomado L&PM
partido com uma independência 176 págs.
e uma coragem admiráveis, e na-
turalmente me dirigi a ele. Depois
desse dia, esse jornal tornou-se
para mim o asilo, a tribuna de li-
berdade e de verdade na qual pude
dizer tudo. Conservo por seu dire-
tor, o Sr. Ernest Vaughan, uma
grande gratidão. Depois da publi-
cação no L’Aurore com seus trezen-
tos mil exemplares e dos processos
judiciários que se seguiram, a bro-
chura mesma permaneceu na grá- Émile Zola: discussão
fica. Pois logo após o ato que decidi para além dos limites
e realizei, acreditei dever guardar da literatura.
setembro de 2010

25
OUTUBRO de 2010

26 :: fora de seqüência : : fernando monteiro

E para que ser poeta Segunda e última parte do poema


em tempos de penúria? INICIADO no Rascunho 125

A pergunta de Piva — essa fissura — Mas voltei a perguntar: “E o que é OF? É inglês?”
revela meramente o que ela revela, Ela disse: “Não! É Orides Fontela. Circulo de Leituras
pois o cão do derradeiro livro Orides Fontela”...
não produziria um ganido,
ao latir para tímpanos blindados Então, eu aceitei ir “recitar poemas”,
pela incultura. isto é, aceitei viajar sem ganhar um centavo,
com um propósito “nobre”, “cultural” (essas merdas)
É claro que faltavam conforto, vinhos embora a própria Orides houvesse escrito belamente:
e rosas,
sendo parcas as rendas do herdeiro Viajar
de antigas terras sumidas mas não
com roseirais na bruma. para
E poucos os meios (mais do que os fins)
para os longos fins de semana, viajar
o garoto da banca de revistas, mas sem
a importada edição dos inéditos onde
de Pier Paolo Pasolini.
sem rota sem ciclo sem círculo
Tudo tão verdadeiro quanto distante sem finalidade possível.
da essência de outras penúrias
entre esquinas de garoas Como eu poderia cobrar alguns trocados
e galerias de arte em vernissages de um Círculo de Leitores tocando
cujo rumor de cálices noturnos a memória tristíssima da poeta mais pobre do mundo?
chega aos guardadores de carros
como a música do paraíso Orides Fontela foi despejada,
de inalcançáveis perdizes. ficou sem lugar para morar
Rettamozo
e teve que se alojar de qualquer jeito
Para que ser poeta em tempos assim? na Casa do Estudante,
na mesma Avenida São João que você conhecia tão
Quando Piva faleceu (e faz pouco tempo), bem,
todos evitaram cuidadosamente meu poeta (alguma vez chegou a ver Orides
a simplicidade desconcertante recolhendo algum bichano transido de frio
da interrogação relativa entre uma delicatessen e um hotel para lúmpens?)...
aos Tempos de Penúria
Intelectual, Esse convite foi na semana em que você morreu, Piva,
Moral, Ele aceitou pisar ao contrário eu estava comovido e a lembrança da pobre Orides
Social, na sarjeta cuspida pelos mendigos, veio destroçar ainda mais a minha resolução de cobrar
Sexual, entre seringas e camisinhas usadas pra viajar com rota e para um Círculo liso,
Musical, por trás de fumaças das pamonhas com a finalidade de ler partes do Anna Akhmátova
Teatral, cozidas para os nordestinos ou qualquer outra excrescência de tempos de penúria
Poetal, da São João dos antigos cinemas (para que ler poesia?), de maneira que eu propus:
Caricatural... pornôs reforçados por sexo ao vivo. “Eu aceito, mas vou para falar sobre o Roberto Piva”.
virando uma exposição no MASP,
um patrocínio da Lei Rouanet, Era o puro desespero que Piva via Ela: “Quem?”
uma loucura domesticada, no palco e na platéia de mãos sujas Eu: “Piva, o poeta que acaba de morrer.”
uma homenagem ao terraço Itália, de esperma e gosmenta casca de milho Ela: “Era seu amigo?”
uma retrospectiva de metrô dedicada ao Bardi no chão das salas vinte e quatro horas Eu: “Não”.
e esquecida dos Flávios da família patrícia sem limpeza, Ela: “E por que o senhor quer falar sobre ele?”
da Casa do Caralho pichado até vir uma mulher com o uniforme de serviço Eu: “Porque um dos seus últimos versos não me sai da
no monumento àquela revolução a fim de suportar a imundície removida com pá, cabeça”.
Constitucionalista (com “C” grande) porém sem a luva de uso “uma por vez” Ela: “É tão bonito assim?”
que é um caso de São Paulo, de recomendação da Saúde Púbica. Eu: “Versos não precisam ser bonitos. Versos precisam
como Jânio Quadros, ser verdadeiros.”
os Mutantes, Roberto Piva estava pobre e triste, Ela: “Diga ele”.
os irmãos Campos porém a pergunta que ele deixou Eu: “Diga-o”.
e Hebe Camargo. feita para a Indiferença, Ela: “Eu não sei qual verso é esse que não sai da cabeça
dirigida ao Tédio, do senhor.”
Tudo isso está saindo assim destinada à Morte (e fim), Eu: “Eu sei.”
para dizer que Piva começou não dizia respeito somente à conta bancária Ela: “Então, diga”.
quando das edições de Massao de movimento certamente ridículo Eu: “E para que ser poeta em tempos de penúria?”
(por favor, não deixem morrer o Editor, sem que ele para o critério dos cheques especiais regulados
ouça o “Ohno!” sendo chamado entre os nomes funda- pela central de algum banco centralíssimo É claro que eu terminei indo lá,
mentais da fé clara na poesia, numa época de treva), na Paulista ou no antigo Viaduto do Chá no Centro de Leituras Orides Fontela,
os livros despontando da Oscar Freire sem meias xícaras de medidas e falei sobre Orides e sobre Roberto,
entre aguardente e rara consolação contra o comércio de artigos de plástico ambos pobres e doentes e grandes poetas
de um Piva no meio dos pífios dos miseráveis que comoviam o poeta, que São Paulo ignorou de diferentes maneiras,
entre poetas lançados assim mesmo uma vez que as lágrimas de Roberto autorizando o Brasil a ignorá-los também.
(o samurai não usava a katana, raramente eram para si mesmo,
mas longos cabelos de Mifune a cara amassada no espelho Porque, realmente, não há nenhuma razão
e o olho de receber uma Hilda Hilst implacável da queda dos cabelos para se ser poeta em tempos de penúria
com todas as honras). também nos travesseiros feita da não-percepção do muito que depende
ligeiramente azedos de um “carrinho de bebê vermelho ao sol”
Hilda! Era instigante encontrar pessoas estranhas da longa noite sozinho, ou qualquer outra banalidade aparente
nos bares, moças de botinas, atores que não dormiam, sem beleza. voltando num sonho leve como avencas
atrizes que fumavam demais, na sombra do perdido paraíso da infância
gente saudável do modo mais incorretamente político Tenho uma história para contar, ainda. de vagalumes presos.
possível entre invernos e repressões,
notícias vagas de espiões De certo modo, é uma história sobre Piva e eu, Eles estavam já apagados, Piva,
e manifestos da classe unida que nunca nos conhecemos em São Paulo na palma envelhecida de Parkinson e saliva,
para terminar em separação, ou no Recife ou em outro lugar qualquer cansaço e mais “os anos sem emoção” (...)
“Diretas Já!” deste país de bienais e flips, flops e flups.
e outros gritos que vulgarizam poemas São Paulo desaparecera por detrás da juventude
ditos longos (e pré-ditos), elegantes, Acontece que alguém de um “Círculo de Leitores OF” da geração de Robertos confiados
essas porras de novo, (assim mesmo) resolveu me convidar para ler (de modos diversos) na aventura da vida
e Piva e a prova de que nada muda fragmentos de Vi uma foto de Anna Akhmátova a trair pelo menos os Pivas (e as Orides).
— quando no fundo se deseja e eu perguntei se pagavam,
a mudança de Lampedusa, e a moça do outro lado da linha Não há mais poemas nos muros de eleições sem inspi-
de Salina para Salina. [num mau poema, isso quer dizer telefone] ração.
respondeu que “ofereciam passagem e hospedagem”, Não há mais inspiração para seja o que for que ainda
Fui mal, nessa tentativa de síntese. mas cachê não. não tenha sido traído
Sou ruim, quando se trata de ver de longe ao menos por distração (concedido seja o beneplácito da
e de perto ao mesmo tempo. Pagamentos eram para a sala, dúvida sobre a determinação de algumas traições).
para “o rapaz do som”, “a companhia de eletricidade”,
Finjam que não leram, a “gráfica dos cartazes” e tudo o mais, “E para que ser poeta em tempos de penúria?”
e recomecemos dos escândalos paulistanos menos para o poeta convidado para recitar poemas
que sempre terminam bem absorvidos ou que raio fosse (digo eu). Você perguntou tão francamente
pela capital grande demais para se assustar que ninguém poderia prestar muita atenção,
com uma arenga de artista. Irritado, eu emendei: “Dizer poesia”. meu poeta pronto para morrer desse lamento,
Ela disse: “Pois é. Não há dinheiro para isso.” além da doença e da orfandade de si,
Roberto Piva, apesar disso, Eu disse: “Eu já entendi. Mas você devia ter dito DIZER Orfeu perguntando “para quê”?...
bem que tentou, POESIA,
enquanto seus amigos agora respiram, em vez de recitar poemas.” E todos fazendo como se a pergunta
afinal saudosos, aliviadamente, Ela disse: “Hein?” não fosse com ninguém,
na neblina. Eu desisti. além do próprio poeta Piva.
outubro de 2010

27

luis bravo
Tradução: Ronaldo Cagiano

O estalido 4
a carne ardente
é uma estrela atravessando o nervo o coração ardente, a ardente carne do coração
o ardente coração feito carne
o estalido não é ouvido (que coisa quer aquele que quer aquilo que deseja?)
é pressentido, como o relâmpago:
queda do raio, sua trajetória 5
como faíscas que se incrustam eu quero estar
entre o coração e o estômago e não estar
ao mesmo tempo.
o estalido é uma marca indelével como uma corda que ao soar
quando a estrela cai a teus pés arrebenta
e tu com ela:
6
“levarás anos para escalar a cratera o delicado desmaio das horas
retornar do humus sagrado entre brasas se disputa:
e a cada tormenta o prazer ou a peste
o céu te cruzará o peito com suas estalactites de nácar”
7
o estalido é essa voz que vem de ti, no estalido
— uma estrela atravessando o nervo — o presente se esconde atrás de uma fina película
a que terás que obedecer pode abandonar-se pela força centrípeta do redemoinho
às cegas: linha elétrica da fé.
— a trituradora do paradoxo está no centro —

(Derivações) serás devorado até o território desconhecido: buraco negro,


troca de pele, capricho da química dos corpos.
1
o estalido é uma evidência da qual não poderás livrar-se
uma vez exercida sua ação propiciatória

2 LUIS BRAVO
são múltiplos os estalidos espelhados na superfície É poeta, jornalista, crítico e ensaísta. Nasceu
só a profundeza pode demover a dúvida em Montevidéu (Uruguai), em 1957. Participa
de diversas antologias. Publicou os livros
3 Claraboya sos la luna (1985), Lluvia (1988),
que coisa quer aquele que quer aquilo que deseja? La sombra es el arco (1996), Árbol veloz
quer o fluído incessante daquilo que ao ser, será pedra? (1998), Liquen (2003) e Tarja (2004).
outubro de 2010

28

Um erro
Trecho inédito do novo romance
de Cristovão Tezza

emocional
ilustrações: marco jacobsen
outubro de 2010

29

C
ometi um erro emocio- abstração) e no fato de ele ser tão do mundo como um idiota inimpu-
nal, Beatriz se imaginou autista que sequer teve a gentileza tável — Eu sou um idiota inimputá-
contando à amiga dois de olhar em torno e dizer algo como vel, ele sempre gostou de dizer, sor-
dias depois — foi o que “que ótimo esse seu apartamento”, rindo, sem men­tir completamente,
ele disse assim que abri a porta, o ou pelo menos ir até a janela e dizer a criança balbuciando o que foi que
tom de voz neutro, alguém que pa- “bela vista você tem daqui”, ou algo eu fiz diante de uma fera com um
recia falar de uma avaliação da Bol- como (ela lembrou de um amigo advogado — e Beatriz.
sa, avançando sem me olhar como mineiro) “Curitiba parece Belo Ho- Beatriz — ainda sem saber
se já conhecesse o apartamento, rizonte, só que sem morros. Você já afinal qual era a sua tarefa, ou o
dando dois, três, quatro passos até foi a Belo Hori­zonte?”, ou então fa- seu papel, naquele entreato — leu
a pequena mesa adiante em que es- zer alguma pergunta gentil antes de duas, três, quatro — leu de novo a
barrou por acaso, de­positando ali o pen­sar nele mesmo, talvez “aqui é o quarta linha, a letra indócil —, cin-
vinho com a mão direita e a pasta centro da cidade?”, já que ele não é co linhas, e co­meçou a sorrir: isso
de textos com a esquerda (e ela se de Curitiba, está só de passagem, ou aqui é muito bom, ela pensou, um
viu desarmada no meio de três si- ainda, apenas para ser cortês, “que segun­do esquecida do resto, uma
nais contraditórios, o erro, o vinho, bonita essa cópia do Klimt, está no imagem violenta suavizada pelo es-
o texto, mais a espécie de in­vasão mun­do inteiro e a gente nunca can- panto da própria descoberta e por
de alguém que está à vontade — o sa de olhar, aquelas figuras doura- uma sensação de desam­paro, ela
que ela havia sonha­do, Beatriz te- das se beijando como num mosai- pensou, quase decidiu dizer em voz
ria de confessar à amiga, e ambas co bizantino pagão”. Em vez disso, alta, mas era cedo — e foi adiante,
achariam graça da idéia — à von- declarou-se apaixonado, confessou com medo de que o texto caísse da
tade, mas não do modo correto) e que isso era um erro — um erro altura em que se colocava logo na
Bea­triz fechou a porta devagar com “emocional”, mas teria sido mesmo primeira frase, o que, pare­ce, co-
um sorriso de quem se vê imersa na essa a palavra?!, tão, não sei, inade- meçou a acontecer já no segundo
ironia, e isso é bom; e se virou para quada, ela tentou se lembrar (para parágrafo: Quando ela pensou isso
escutar o resto, agora vendo-o com contar com exatidão a Doralice, — por que ele não tira isso aqui, e
as mãos livres, a silhueta contra a que certamente daria uma risada a mão tateia a mesa atrás de um lá-
luz, os braços brevemente desam- saborosa), talvez se confundindo pis imaginário para sugerir ao vivo,
parados daquele homem magro: com um título de auto-ajuda com con­cretamente, o risco no papel, eu
— Eu me apaixonei por você. que esbarrou de relance ontem no nasci para viver assim com esse ho-
Isso acontece, ela pensou em balcão da livraria —, e Donetti pen- mem (ela e Doralice rindo, Beatriz
responder, a esgrima instan­tânea sava somente nele mesmo. Com um imaginou a cena), e ao mesmo tem-
de alguém que entra num jogo di- toque de vergonha, quem sabe: po intrometeu-se a idéia de que ela
fícil mas saboroso, mas não disse, — Dê uma olhada — e ofere- gosta de literatura pesada, de becos
o gesto lento ainda lá atrás abrindo ceu a folha amarela, sem er­guer os sem saída, de agressões surdas, de
a porta para um erro emocional, e olhos. Em seguida, as mãos — as aporias, incomunicabilidades exas-
ela de novo sorriu defensivamente mãos dele, ela per­cebeu enfim com perantes e gaguejantes — mas só
em silêncio daquele provável mal- nitidez, ontem o restaurante era na literatura, na vida ela quer final
entendido, tentando colo­car o bre- uma pe­numbra só, as mãos tinham feliz, na vida ela quer casar (como
ve evento de três segundos num um toque operário, dedos grossos, num sonho campestre de um livro
quadro que lhe desse um sentido a pele morena manchada, pêlos no de Jane Austen), na vida ela quer
seguro, mas era impossível, porque dorso — as mãos dele avançaram se sentir bem e se sentir amada, na
agora, como se ela não existisse, ao saca-rolhas e ao vinho. vida ela quer a doce sensação de
ou (corrigiu-se) como se a reação Ele não tocou mais no assun- permanência — a doce sen­sação
dela fosse para ele um dado com- to? — a amiga irá perguntar. Talvez de permanência — ela sussurrou,
pletamente irrelevante nesse mo- eu o tenha inibido com o meu silên- será que isso é bom?, ainda tatean-
mento, um “não estou interessado cio. Beatriz pegou a folha, e apesar do o lápis imaginário temendo num
no que você pensa a respeito disso, de uma insidiosa má vontade que décimo de segundo que a sua mão
o problema é meu” — e ele suspi- de repente ameaçou crescer na sua encontrasse a mão dele também
rou, puxou uma cadeira, sentou-se, alma contra aquele homem difícil, per­dida sobre a mesa, e enfim olhou
abriu a pasta e, alguém que não ha­ ou, ela reavaliou, apenas esquisito para o escritor que justa­mente esta-
via dito o que havia dito, de novo (você sabe que não gosto de situa- va com os olhos pregados nela, os
olhou para ela: ções inseguras, ela diria mais uma olhos do Prêmio Jabuti de Litera-
— Vamos conversar sobre o vez à amiga), tão extraordinário tura pregados nos olhos dela como
nosso trabalho? por escrito e aparentemente tão es- um adoles­cente esperando a nota
Uma cena com um toque de túpido ao vivo, um teatro literário da professora, como se perguntas-
teatro, ela avaliou, como quem ambulante (o que há duas noites, se ao sussurro que ouviu O que foi
põe uma moldura nesses três se- é verdade, parecia engraçado, mas que você disse? — e assim se fitaram
gundos, pendura-os na parede, e agora —), apesar disso sen­tiu uma também por segundos, tempo sufi-
assim encerra o que não tem so- emoção especial tocando aquela ciente para que ele avaliasse a cor
lução. Uma homenagem que ele página: estou diante de um origi- dos olhos dela, mais claros do que
me faz, uma homenagem gratuita, nal manuscrito de Paulo Antônio lhe parece­ram ontem à noite, um
ela in­terpretou, quase com vergo- Donetti da Silva, o nome completo misto de azul e verde com estrias
nha. Soterrada pela timidez, pre­ de Paulo Donetti, um dos mais im- em castanho e com o mesmo fio de
feriu não dizer nada, cuidando de portantes escritores brasileiros da frieza que ele pressentia mes­mo no
manter a sombra do sorriso no virada do século XXI (talvez o mais escuro, alguém que por um instante
rosto para que ele interpretasse o importante, ela pensou em frisar se afasta do fluxo da vida para ava-
seu silêncio do modo certo, isto é, diante de uma audiência imaginá- liar e só então volta ao rio do tempo;
não como uma reação a uma in- ria mas desistiu da idéia porque e sentiu o breve impacto da beleza,
vasão agressiva de sua vida — na iria parecer antes um auto-elogio desviando o olhar, perdido. Er­gueu
noite anterior acontecera apenas que um retrato dele), fato que nem de novo os olhos, como se enver-
um jantar civilizado a três, a sin- a evidente de­cadência de seus dois gonhado da covardia, para vê-la de
cera admiração pelo bom escritor, últimos livros conseguia empanar, novo entretida na folha amarela,
um certo derramamento dele que ela ressalvou para a platéia — e de- acompanhan­do cada palavra deci-
ela atribuiu ao exagero do vi­nho, cifrou o título — Uma mulher difí- frada com um mover de lábios (ela
dentro da medida do aceitável, ne- cil —, escrito abaixo de um título está feliz com o que lê, ele pensou,
nhum vexame, e a proposta quase anterior riscado por uma cortante, otimista), e os lábios como que con-
casual, de fim de noite, para que quase furiosa linha horizontal (A trariavam os olhos, muito bem de-
ela o ajudas­se em alguma coisa que mulher da Babilô­nia); e, no mo- senhados, o perímetro feito a lápis
Beatriz não entendeu mas aceitou mento em que ele entregava uma de ponta fina e, parece, mais verme-
imediatamente, porque seria afinal segunda folha amarela, finalmente lhos e cheios do que a pele clara do
manter contato com um escritor levantou os olhos para Beatriz, tal- rosto parecia prometer, todas aque-
que se admira: e de tão poucos e vez pela certeza de que ela estaria las delicadas ranhuras verticais,
ralos sinais (o tele­fonema esquisito olhando para o papel, e não para dois belos gomos plenos de sumo —
de manhã cedo, aquela mal disfar- ele; e Donetti sentiu um sopro de como se houvesse a sombra de uma
çada afli­ção de quem dormiu mal), fraqueza física, alguém submetido índia nesse DNA, ele sonhou, e em
ele agora irrompe abrupto em sua durante muitas horas a uma tensão outro décimo vertiginoso de segun- CRISTOVÃO TEZZA
casa dizendo-se apaixonado, sem se- inexplicável, ou apenas explicável do pensou na mestiçagem brasileira Nasceu em Lages (Santa Catarina),
quer olhar para ela — que ele mesmo pelo óbvio, a decisão de não viajar e dele próprio e nos perigos de es- mas na infância mudou-se
interpretasse o silêncio dela, Beatriz de volta a São Paulo, de pagar mais crever uma tese, não uma ficção, o para Curitiba, onde vive até
seguiu planejando, enquanto procu- uma ou duas diárias caras no hotel, narrador totalitário (Cássio dizendo hoje, dedicando-se à literatura.
rava o saca-rolhas na gaveta da cozi- misturada com o desejo incerto, a ele, ontem mesmo, certamente Considerado um dos mais
nha, onde desta vez não estava, não na verdade maluco, de viver nes- irritado pela invasão sobre, quem importantes autores brasileiros
como uma recusa da paixão (e sor- sa cidade por um tempo (preciso sabe, a Beatriz que ele imaginava contemporâneos, publicou uma
riu da idéia, paixões não se recusam de um lugar para ficar, e ele olhou pro­priedade sua: No romance A dezena de romances, entre eles
— apenas explodem e sobrevivem em torno num lapso invasivo), so- foto do espelho você se livrou disso, Trapo, O fantasma da infância,
independentemente da ação dos en­ frendo ainda a irritação na verdade o que deixava implícito o quanto ele Aventuras provisórias (Prêmio
volvidos), mas como um precavido e mesquinha contra Cássio (ele ti­nha estava imerso nes­sa catequese de, a Petrobrás de Literatura - 1987),
cuidadoso e sensato pé-atrás. perfeita consciência de que Cássio essa altura, terceira mão — mas eu Breve espaço entre cor e sombra
— Desta vez estava no lugar não era exatamente uma má pes- sou mulato, ele diria, defensivo); e (Prêmio Machado de Assis/Biblioteca
certo — ela disse, pegando o saca- soa; era apenas um concorrente dos lábios subiu ao nariz que, assim Nacional de melhor romance de
rolhas do porta-chaves da parede e com uma história comum, aquele de frente, pouco se revelava, mas 1998), A suavidade do vento,
colocando-o na mesa diante dele; laço afetivo e literário de alguns a altura (imaginou-se estenden- Juliano Pavollini, Uma noite em
em seguida, abriu a pequena crista- anos antes que os afastara para do uma pequena régua e tirando Curitiba, O fotógrafo (prêmios da
leira para tirar dois cálices, um para sempre), remoendo as três críticas a medida, das so­brancelhas até os Academia Brasileira de Letras, Jabuti
ela, um para ele, que, pasta aberta, nega­tivas ao seu livro recém-lan- lábios, e calculando uma proporção e Bravo!) e O filho eterno, que
fin­gia ler com atenção um manus- çado (uma delas violenta, daque­ de Bot­ticelli) é perfeita, e desviou a recebeu os mais importantes prêmios
crito — manuscrito mesmo, ela se le outro filho da puta de quem ele cabeça lentamente para dese­nhar o literários brasileiros de 2008 (São
surpreendeu, linhas criptográficas, gostaria imensamente de esquecer perfil, como quem vai tirar uma fo- Paulo de Literatura de melhor livro do
riscadas, rasuradas, numa folha o nome), além dos resíduos da úl- tografia, torcendo para que Beatriz ano, Jabuti, Portugal Telecom, Bravo!,
amarela, e ela pensou simultane- tima mulher, enca­rapitada no alto não se movesse, mas ela rompeu APCA e Zaffari & Bourbon) e já foi
amente na beleza gráfica daquele de um ódio contra ele cujas razões súbita a película da imagem com publicado em sete países. O romance
caos (imaginou uma moldura e a ele não conseguia atinar, sentindo um sorriso amplo: Um erro emocional será publicado
página avul­sa na parede, como uma a absurda desproporção das coisas — Você não vai abrir o vinho? em outubro pela Record.
outubro de 2010

:: HQ : : ramon muniz 31
outubro de 2010

32 :: quase-diário : : Affonso Romano de Sant’Anna

Pajelança, Ruschi, Raoni, Sapaim


A crônica que mobilizou o País na tentativa de salvar a vida de um dos mais importantes naturalistas brasileiros

Reprodução

16.01.1986 chi. Durante três dias houve sessões Depois fomos para o jardim, e
Publico crônica Ruschi: crôni- de pajelança para extrair o veneno cada um num banco, conversamos.
ca de uma morte anunciada, reto- dos sapos do corpo dele. A imprensa Assentou-se também Acrocoro —
mando o tema de uma reportagem presente. Notícia nos jornais america- semi-índia, estudante de antropolo-
de domingo no JB, onde se dizia que nos e europeus. Já no primeiro dia sai gia em Belém. Raoni lembrou como
ele estava para morrer, por ter reco- do corpo de Ruschi uma substância virou pajé. É coisa recente. Um dia
lhido com as mãos 30 sapos vene- verde-amarela, que diziam os pajés, uma cobra lhe mordeu. Quando isso
nosos na Amazônia. É uma crônica era o veneno dos sapos. Os pajés fu- sucedeu, ele saiu de seu corpo, aí
emocionada que teve uma resposta mavam, cobriam-se de urucum, pas- pegou um pedaço de pau e matou a
imediata. (Eu dizia que não podiam savam as mãos tirando do corpo dele cobra. Depois ele voltou ao seu cor-
deixar Augusto Ruschi morrer e a substância, que chegou a ser vista po, retornou à aldeia e aí um pajé o
que os índios que o viram pegar os pelos jornalistas e fotógrafos. curou. Mamaé — o espírito — queria
sapos deveriam saber como curá-lo). Três dias de fumo, extração que ele fosse pajé. Sapaim diz que
Telefonam-me homeopatas co­­ do mal e banho de ervas, e Ruschi foi ele quem fez de Raoni um pajé.
mo Reinaldo Collor e Orlando é dado como curado. Pararam as Sapaim conta que quando
Fernandes dizendo que têm cura hemorragias no nariz, pararam as menino não gostava de pajés. Ti-
para o mal. Telefona Jordão Perei- dores e começou a sonhar. nha horror de fumaça. Um dia ou-
ra, que dirige o Jardim Botânico e Eu deveria ter ido assistir, viu a voz de Mamaé chamando-o,
disse que vai encaminhar ao Sarney mas por uma estranha timidez não ordenando que fosse pajé, mas
pedido para tomar providência. Ca- me mobilizei. resistia. Resultado: caiu doente.
pitão Sérgio Machado, o “Sérgio Domingo, na reportagem fi- Ficou vários dias péssimo. Os pa-
Macaco” (aquele do PARA-SAR — nal sobre processo de cura, Luis jés então se reuniram e um deles
Esquadrão Aeroterrestre de Salva- Orlando Carneiro, da sucursal comunicou-lhe que ele devia ser
mento), querendo informações para do JB, fez uma crônica dizendo que pajé. Fizeram a cerimônia da fuma-
colocar em função os conhecimentos tudo começou com meu texto, etc. ça (idêntica a que fez com Ruschi)
dos pajés da região. Agora Aluisio Ontem à tarde fui à casa do Ca- . O pajé tirou da perna dele o mal,
Pimenta (Ministro da Cultura) pitão Sérgio (Macaco) Ribeiro para a doença. Mostrou-lhe a substân-
para dizer que entrou em contato um jantar onde havia funcionários cia retirada, soprou em cima, ela
com o Ministro da Saúde e ambos da Funai e do Ministério do Interior, desapareceu. Exatamente como
vão colocar uma junta médica e tudo para conhecer os dois pajés. Entrei, ocorreu com Ruschi.
mais à disposição de Ruschi. estavam todos em torno de uma Pergunto-lhe o que fazer se
Telefona-me agora Marcus mesa onde se comiam vários tipos eu quisesse ser pajé. Dizem que é
Villaça, de Brasília, dizendo que de carne. Raoni comia com aque- só eu ir lá no Xingu e fazer a ini-
vinha de avião com o presidente le adereço nos lábios. Viu quando ciação. Perguntam-me (entre con-
Sarney, quando leu o artigo sobre entrei, mas depois que me assentei vidando e desafiando): — Você
Ruschi. O presidente Sarney tam- continuou comendo de cabeça baixa agüenta? Digo: — Agüento.
bém o leu e mandou o Ministro do os pedaços de galinha. Ele e Sapaim. A idéia me fascina e apavora.
Interior entrar em contato com a Não pareciam tomar conhecimento A noite vem chegando, os
Funai para achar a erva necessária à de minha pessoa, e a rigor o capitão índios têm que receber um telefo-
cura de Ruschi. Sérgio não lhes explicou direito. nema do Tucumã (o grande chefe).
Contudo, depois fomos ao No portão nos despedimos. E o ca-
27.01.1986 Três dias de fumo, extração do mal e banho quarto do Sérgio para autografar pitão Sérgio durante algum tempo
O episódio Ruschi dominou a meu livro, e ali Sapaim viu o retra- continuou a narrar as fabulosas
manchete dos rádios e jornais toda a de ervas, e Ruschi é dado como curado. to de sua filha (que morreu no colo aventuras de quem viveu na flores-
semana. O governo trouxe para o Rio de Sérgio ao tempo em que Sérgio ta ao tempo do PARA-SAR.
os pajés Raoni e Sapaim e também Pararam as hemorragias no nariz, pararam pulou de pára-quedas entre os txu-
o Ruschi. Encontraram-se no Parque caramaes para evitar uma guerra * Augusto Ruschi morreu
da Cidade, onde mora o sogro de Rus- as dores e começou a sonhar. com os índios tucanos). em 3 de junho de 1986.

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