Vous êtes sur la page 1sur 8

05/01/2019 Bolsonaro inaugura o presidencialismo de assombração, diz Renato Lessa - 05/01/2019 - Ilustríssima - Folha

Bolsonaro inaugura o presidencialismo de


assombração, diz Renato Lessa
Para autor, linguagem do novo governo indica aversão ao contraditório, à mediação
e à liberdade

5.jan.2019 às 6h00

Renato Lessa

[RESUMO]  Para autor, novo governo se estrutura a partir de uma


linguagem, dotada de formas próprias de classificação das coisas, com
quatro núcleos: rejeição ao contraditório
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/negacao-da-ciencia-ganha-forca-em-nacionalismo-que-une-esquerda-

e-direita.shtml), horror à mediação (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/11/fenomeno-da-pos-


verdade-transforma-os-consensos-ja-estabelecidos.shtml), atitude antiglobalista e desprezo pela
liberdade política e cultural (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/11/eleicao-de-bolsonaro-
marca-fim-da-nova-republica-diz-historiadora.shtml) experimentada pelo país nos últimos 30

anos.

 
Comoventes os esforços da cobertura televisiva da posse de Jair Messias
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/bolsonaro-foi-a-agulha-que-estourou-a-minha-bolha-diz-

escritor.shtml)Bolsonaro (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/bolsonaro-foi-a-agulha-que-estourou-

a-minha-bolha-diz-escritor.shtml).
Fez-se de tudo para isolar nas falas neopresidenciais
resíduos civilizatórios mínimos.

Houve mesmo quem destacasse como sinal de alento positivo o juramento


do empossado, de compromisso com a salvaguarda da Constituição
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/12/espirito-da-constituicao-de-1988-esta-se-degradando-escreve-

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/bolsonaro-inaugura-o-presidencialismo-de-assombracao-diz-renato-lessa.shtml 1/8
05/01/2019 Bolsonaro inaugura o presidencialismo de assombração, diz Renato Lessa - 05/01/2019 - Ilustríssima - Folha

professor.shtml),
em esquecimento de que se trata de texto de leitura e declinação
compulsórias, segundo as regras do ritual de entronização. Em ato
performático complementar e, no mínimo, ambíguo, o vice-presidente, ao
tomar posse, declamou a mesma peça como quem dirigia à tropa uma ordem
unida.

Cada um escuta o que quer. Nada a fazer a respeito. Há quem enfatize, ao


ouvir o empossado, a vocalização dos lugares comuns de respeito à
Constituição e de "governar para todos". Mas em época de hipervalorização
do "novo", parece mais apropriado destacar o inaudito: a plena vigência de
uma ideologia de combate ao "viés ideológico". Supor que se trate de má-fé,
pelo evidente contraditório da expressão, talvez seja conceder aos
defensores da novidade generosa hipótese de natureza cognitiva. 

Parece haver entre eles crença inamovível de que só há "viés ideológico" nas
palavras e nos atos dos "inimigos da pátria". Uma vez denunciado e afastado
esse viés, a verdade e a realidade emergiriam de forma límpida, para que o
Brasil "se reencontre consigo mesmo", tal como posto pelo novo chanceler.

Descreve-se, assim, o trajeto da consciência alienada, a que busca fora dos


termos da realidade o significado de todas as coisas. O reencontro com a
pátria repõe natureza objetiva da realidade, com o consequente imperativo
de um governo de técnicos.

Cada um escuta o que quer; assim é se lhe parece. Tal como nos ensinou o
sábio Pirandello. Mas nada do que se diz, em princípio, pode ser tomado
como inconsequente.

Se digo que "amo a humanidade", desse ato genérico de fala nada pode ser
diretamente inferido em termos práticos. É um daqueles sentimentos
oceânicos, cujas consequências são indeterminadas. Mas, se envio a meu
vizinho uma ameaça de morte, compreendo que seja prudente que vá à
polícia dar parte da ameaça.

Esse é o limite do relativismo: o arco de consequências "expectáveis" —como


bem dizem os portugueses— de nossos atos de fala. Em termos diretos, há

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/bolsonaro-inaugura-o-presidencialismo-de-assombracao-diz-renato-lessa.shtml 2/8
05/01/2019 Bolsonaro inaugura o presidencialismo de assombração, diz Renato Lessa - 05/01/2019 - Ilustríssima - Folha

atos de fala com relação aos quais é imperativo que se vasculhe o âmbito de
suas consequências possíveis.

Sem a intenção de estabelecer qualquer analogia entre regimes políticos, é o


caso de lembrar de Victor Klemperer, um professor alemão de literatura
românica, e de sua obra-prima a respeito da linguagem praticada pelos
donos do poder na Alemanha entre 1933 e 1945 ("A Língua do Terceiro
Reich", de 1947, foi publicada entre nós em 2009 pela editora Contraponto).

Judeu e exilado em seu próprio país, Klemperer observou de modo fino a


medida em que o vocabulário e a linguagem dos nazistas configuravam uma
experiência com a realidade do mundo. A análise da linguagem torna-se,
dessa forma, essencial à compreensão do experimento histórico e cultural.

Em termos filosóficos, a relação entre linguagem e formas de vida viria a ser


consagrada pelo filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein em suas
"Investigações Filosóficas", publicadas postumamente em 1953.

Como disse, não parto de qualquer analogia entre regimes políticos. O que
aqui iniciamos, há menos de uma semana e a crer nos mantras de celebração
de novidades, é um inédito experimento de presidencialismo de
assombração. Algo que começa a ser estruturado como linguagem, dotada de
formas próprias de classificação das coisas.

A meu juízo, e de modo não exaustivo, a linguagem do presidencialismo de


assombração comporta quatro núcleos, dos quais o primeiro aparece como
premissa maior. São eles, pela ordem: o Paradigma da Ponta da Praia (PPP); o
Paradigma do Horror à Mediação (PHM); o Paradigma Patriótico (PP); e o
Paradigma Antimodernismo (PAM).

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/bolsonaro-inaugura-o-presidencialismo-de-assombracao-diz-renato-lessa.shtml 3/8
05/01/2019 Bolsonaro inaugura o presidencialismo de assombração, diz Renato Lessa - 05/01/2019 - Ilustríssima - Folha

O presidente da república Jair Bolsonaro (PSL), posa em foto oficial com os ministros, no
Palácio do Planalto, em Brasília. - Eduardo Anizelli/Folhapress

O PPP —elemento antigo, implícito e estruturante da visão de mundo


presidencial— foi apresentado ao país de modo brutal a poucos dias da
eleição de outubro passado. Trata-se de alusão a lugar de "desova" de
cadáveres de opositores políticos à ditadura e expressão corrente entre os
tipos mais duros dos porões daquele regime.

O então candidato prometeu a seguidores enviar a esquerda "para a Ponta da


Praia", facultando, é verdade, as menos incanceláveis alternativas da prisão e
do exílio. O PPP é elemento cognitivo e operacional de uma visão
eliminacionista da política, pela qual o corpo político é percebido como
unitário, mantidas as rígidas distinções entre cores: verde-amarelo e
vermelho; rosa e azul.

A figura do "inimigo da pátria" retorna, indicando o não pertencimento da


esquerda e dos desajustados ao conjunto da nação. Nossa extrema direita,
embora cognitivamente preparada para tal, parece não odiar o imigrante.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/bolsonaro-inaugura-o-presidencialismo-de-assombracao-diz-renato-lessa.shtml 4/8
05/01/2019 Bolsonaro inaugura o presidencialismo de assombração, diz Renato Lessa - 05/01/2019 - Ilustríssima - Folha

Mas rejeita o estranho, que começa a ser configurado na forma de um


inimigo objetivo, o operador do tal "viés ideológico".

O PHM, Paradigma de Horror à Mediação, foi reiterado, durante a


diplomação dos eleitos, por meio de exortação ao poder popular. Elemento
cultural estruturante da campanha, fez-se acompanhar de uma celebração
dos valores e dos instintos pré-políticos.

O componente de abstração necessário à política desfaz-se em prol de um


elogio da autenticidade. Os modos de expressão devem relevar de
substâncias verdadeiras e impulsos autênticos, livres da ação de mecanismos
de contenção.

É compreensível, nessa chave, o horror ao "politicamente correto", o que


indica o quanto do combate cultural incide sobre o campo da verdade.
Libertos das restrição do "correto", podemos nos sentir livres para dar vazão
aos termos de nossos preconceitos e, se calhar, passarmos ao ato.

O tratamento conferido à imprensa durante a posse presidencial só pode ser


entendido à luz do PHM, assim como os atos de hostilidade a veículos
específicos e de elogio aos aplicativos de comunicação instintiva e imediata.

O PHM traz consigo a repulsa da representação e a necessária identificação


com um Chefe, por vezes teologicamente descrito. Enquanto o vínculo —
botânico ou não— com a divindade pode ser facilmente debitado na ordem
da alucinação, o desconforto com a representação possui âncora material.

Com efeito, se o Chefe pode ser eleito diretamente, pela expressão


majoritária do voto, a representação é, dado o princípio da
proporcionalidade, fragmentada. Disto resulta que, a despeito dos déficits
representativos do sistema, a representação política é um limite físico
interposto à vontade do Chefe que encarna a vontade geral.

O recurso a "bancadas temáticas" nada tem de "moderno": é tão somente o


delírio do regresso a um mundo anterior à emergência do sistema partidário,
sustentado na pretensão de definir quais são os "temas" verdadeiros a levar
em conta, de modo não partidário e sem "viés ideológico".

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/bolsonaro-inaugura-o-presidencialismo-de-assombracao-diz-renato-lessa.shtml 5/8
05/01/2019 Bolsonaro inaugura o presidencialismo de assombração, diz Renato Lessa - 05/01/2019 - Ilustríssima - Folha

O antiglobalismo, inscrito no PP (Paradigma Patriótico), é mais que doutrina


aplicável ao campo das relações internacionais. Ele decorre de uma oposição
moral entre o local/nacional e o global, pela qual os valores positivos
encontram-se no primeiro par. É, ainda, a crença básica e propiciadora de
todas as guerras conhecidas.

O "globalismo"—ou universalismo— exige abstração; implica suplementação


imaginativa capaz de vislumbrar uma humanidade comum, para além de
imperativos pragmáticos. É esse núcleo do globalismo/universalismo que
parece estar sob foco, já que se está a configurar uma outra modalidade um
tanto escalena, composta por curiosa associação global de países
antiglobalistas.

Mas o ponto essencial é de outra natureza. O antiglobalismo do chanceler


Ernesto Araújo (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/12/ernesto-araujo-foi-de-diplomata-discreto-a-
critico-ferrenho-do-marxismo.shtml), em nada heterodoxo com relação ao que reza o PPP,

indica a primazia do local: da família, do "oikos", da cena doméstica, das


associações primárias e verdadeiras, conducentes à nossa reunião no âmbito
da pátria. São esses núcleos identitários "naturais" que nos distinguiriam e
que, portanto, são incanceláveis.

Jean-Paul Sartre, em novela luminosa, "A Infância de um Chefe", descreveu o


processo de "cura" de um jovem desenraizado —que nada sabia de si, de suas
vontades e do mundo em geral—, por meio de sua conversão à família, à
terra, à pátria. Um elemento essencial e ativo do processo foi representado
pelo antissemitismo: a repulsa aos judeus foi condição necessária à
descoberta de si do personagem Lucien Fleurier como um sujeito enraizado. 

O que ali se manifesta é o estereótipo, generalizado a partir dos processos de


emancipação do judeus, do judeu como "desenraizado", como incapaz de
dissolver-se na massa do "volk", como estranho ao pertencimento nacional.
Foi essa a perspectiva que esteve presente na condenação do também
capitão Dreyfuss e que constitui um dos elementos mais fundos do
antissemitismo moderno e contemporâneo.

A estrutura cognitiva do argumento antiglobalista é antissemita, ainda que


seus propugnadores digam —e creiam— que não o são. O argumento exige

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/bolsonaro-inaugura-o-presidencialismo-de-assombracao-diz-renato-lessa.shtml 6/8
05/01/2019 Bolsonaro inaugura o presidencialismo de assombração, diz Renato Lessa - 05/01/2019 - Ilustríssima - Folha

bodes expiatórios, matéria, para dizer o mínimo, não estranha ao campo do


antissemitismo.

Por fim, há o aspecto antimodernista do experimento do Presidencialismo


de Assombração. Com efeito, o PAM —Paradigma Antimodernista—, ao
reintroduzir a dimensão teológica no campo político, tal como evidencia a
associação entre a eleição presidencial e atos providenciais, vincula-nos a
uma experiência de mundo inimiga do duplo, da ironia, da cultura do
absurdo e das vantagens cognitivas do espírito de contradição. 

Ainda que tenha havido modernistas sisudos, a estética do humor e da


distorção foram fundamentais no espírito do modernismo, sob cuja égide
temos vivido, de algum modo, há cerca de um século.

Por diferentes caminhos, o espírito modernista configurou nossa experiência


de país. Por vezes com ímpeto renovador reduzido, tal como o fizeram notar
Mário de Andrade, em revisão crítica do movimento feita nos anos 1940, e
Antonio Candido quando mencionou a "rotinização do modernismo". 

Mesmo com tais reservas, é contra tal pano de fundo que o PAM, tal como
Nêmesis, pretende reinventar o país e, de modo mais direto, desfazer os
efeitos dos últimos 30 anos, se calhar, os de maior liberdade política e
cultural vividos pelo país.

O Presidencialismo de Assombração é o elemento operador do governo civil-


militar ora implantado, decorrente da eleição de 2018. 

Possui —ou assim quer nos fazer crer— reservas de ímpeto, ancoradas em
valores potencialmente letais ao modo pelo qual praticamos a democracia.
Contém, dessa forma, elementos de inovação, que exigirão energias
interpretativas renovadas. Não é brincadeira, a coisa.

Renato Lessa é professor associado de filosofia política da PUC-Rio e pesquisador associado


do Centro Roland Mousnier, da Universidade de Paris 4-Sorbonne.

ENDEREÇO DA PÁGINA

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/bolsonaro-inaugura-o-presidencialismo-de-assombracao-diz-renato-lessa.shtml 7/8
05/01/2019 Bolsonaro inaugura o presidencialismo de assombração, diz Renato Lessa - 05/01/2019 - Ilustríssima - Folha

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/bolsonaro-inaugura-o-
presidencialismo-de-assombracao-diz-renato-lessa.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/bolsonaro-inaugura-o-presidencialismo-de-assombracao-diz-renato-lessa.shtml 8/8

Vous aimerez peut-être aussi