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PERIODISMO LORIGUENSE:

A VOZ DOS EXPATRIADOS DAS SERRAS NA PLANÍCIE AMAZÔNICA


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GERALDO SÁ PEIXOTO PINHEIRO*

A Vila de Loriga, situada nas encostas da Serra da Estrela, Portugal, está, hoje, fartamente
referenciada no universo virtual da Internet através de várias comunidades e redes sociais
de relacionamentos, como homepages, blogs, links, perfazendo muitas dezenas de páginas
oficiais ou não que incluem, segundo consta em alguns casos, “os melhores sites da terra de
Viriato”. Na maioria dessas páginas eletrônicas, em geral direcionadas para saciar a
curiosidade turística daqueles que são atraídos pelo paisagismo da região, é possível
encontrar um conjunto relativamente variado de informações históricas, algumas das quais
sobre a e/imigração loriguense para o Brasil no final do século XIX e início do século XX,
notadamente sobre aqueles que se dirigiram para as cidades amazônicas de Manaus e Belém
do Pará. Em que pese o caráter um tanto arbitrário dessas informações, na maior parte das
vezes episódicas, fragmentadas, quase nada revelando de denso sobre dimensões concretas
dos processos históricos que envolveram e/ou foram protagonizadas por migrantes
loriguenses, elas guardam a sua importância relativa e devem ser louvadas pelo grande

* Professor da Universidade Federal do Amazonas. Doutor em História pela Universidade do Porto.

Fronteiras do Tempo: Revista de Estudos Amazônicos, nº 4, 2013, p. 107-138.


Geraldo Sá Peixoto Pinheiro

esforço que representam para manterem viva uma determinada memória. Da mesma forma,
esse tipo de informação também está presente em alguns jornais da chamada imprensa
regional, como por exemplo, os periódicos Garganta de Loriga, um informativo regional da
Serra da Estrela, e Portas da Estrela, de Seia1.
Na verdade, o processo migratório de lorigenses no final do século XIX e início do
século XX ainda não recebeu a atenção merecida dos historiadores, permanecendo uma
grande lacuna na produção acadêmica de base historiográfica, não obstante a força relativa
que esse processo exerceu em termos de fluxo e refluxo migratório, com inegável
importância para os estudos históricos e etno-históricos sobre interações sociais e
identitárias nas cidades planiciárias de Manaus e Belém, e sobre os desdobramentos que o
mesmo provocou na vida econômica, política, sociocultural e paisagistica da própria Vila de
Loriga, na época, uma típica e acanhada aldeia portuguesa.
Das poucas tentativas conhecidas, ressalta-se o artigo do escritor e jornalista
loriguense Eugênio Leitão de Brito, residente na cidade de Belém do Pará, que, preocupado
em publicizar alguns aspectos históricos que marcaram a emigração dos compatrícios nas
cidades de Manaus e Belém, antes e depois da crise da borracha, reuniu determinadas
considerações sobre “Os Loriguenses na Amazónia”, pelas quais evidencia, também, a sua
importância, mesmo que a expressividade desse processo migratório ainda não tenha sido
devidamente quantificada em termos demográficos. Por ele, fica-se sabendo que:

Nos fins do século passado e nas primeiras décadas do actual, Manáos e Belém,
108 eram as duas localidades que possuíam a maior população loriguense depois da
terrra natal. Durante muito tempo, estas cidades foram os destinos de quase todos
os rapazes que ao atingir a idade de trabalho, não conseguiam colocação na
industria local ainda um tanto absoleta, enquanto a agricultura era pouco
tentadora, porque não tinha grandes possibilidades em terrenos pobres e muito
acidentados. Daí, a emigração contínua para o norte do Brasil que tinha ligação
marítima de navios mistos de nacionalidade inglesa, portuguesa, alemã, brasileira
e, em certa época, até italiana. As capitais dos Estados Pará e Amazonas, foram as
cidades de maior importância econômica do país, no período áureo da borracha
também chamada de “ouro negro”, que chegou a constituir o terceiro produto de
exportação, logo a seguir ao café e ao açucar, no total do país. 2

Para além destas conclusões de Eugênio Leitão de Brito, outro forte indício que
sugere um acentuado grau de importância sobre a diáspora loriguense na Amazônia é a
grande quantidade de jornais que um pequeno grupo de loriguenses letrados criou e tentou
manter nas cidades de Belém e Manaus, com o objetivo de fortalecerem suas redes de
solidariedade e afetividade grupal, como elemento importante de promoção social entre os

1 No Garganta de Loriga, são exemplos as edições de abril de 2000, com a matéria “Loriga e Brasil: A propósito das
comemorações dos 500 anos da descoberta da terra de Vera Cruz”; de junho, com o artigo de Adelino Manuel M. de
Pina, “Emigração e um Alerta”, e o artigo de António Conde, “Se não forem eles (os loriguenses) a tomar a iniciativa,
nada feito!”; julho, com os artigos “Emigração esse fenômeno”, de Adelino Manuel de Pina, e “Como vejo Loriga”,
simplesmente assinando por Maria e a notícia sobre a “Festa de N. S. da Guia: A grande festa de verão em Loriga”;
outubro, com a notícia da “Comenda de Mérito para o insigne loriguense Eugénio Leitão de Brito”. No Portas da
Estrela, edição de 15 de agosto de 1981, com o artigo sobre “Os Loriguenses na Amazônia” de Eugênio Leitão de
Brito.
2 Eugênio Leitão de Brito. “Os Loriguenses na Amazônia”. In: Portas da Estrela. Seia, 15 ago. 1981.

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patrícios residentes naquelas cidades, que também reclamam o trabalho historiográfico


neste campo particular de estudos.
Tudo indica, como já foi observado no capítulo sobre os jornais editados pela colônia
portuguesa em Belém do Pará, que a primeira experiência periodística lorigeunse foi
realizada no início do século XX, com a publicação no dia 27 de outubro de 1901 do jornal O
Patriota, redigido por António Fernandes Mendes e sob alegada responsabilidade da
“mocidade loriguense”. Apesar de terem circulado onze números d’O Patriota entre os anos
de 1901 e 1902, não foi possível localizar um único exemplar deste jornal nos acervos dos
principais centros documentais brasileiros e portugueses, inclusive na própria cidade de
Loriga3. Dessa forma, todas as informações disponíveis sobre a sua existência são oriundas
das fontes secundárias, notadamente o já citado catálogo organizado por Manoel Barata.
Neste, é possível perceber-se, ainda, que, mesmo tendo sido um jornal impresso nas
dependências tipográficas do Diário Oficial do Estado do Pará, tudo leva a crer que se trata
de um tipo de periódico dirigido exclusivamente para a colônia loriguense residente naquela
cidade e com um programa editorial acentuadamente “bairrista”, razão pela qual ostentava
em todas as primeiras páginas das suas edições, o pequeno dístico: “O’ nossa terra
querida,/O’ terra de nossos paes”, versos extraídos de um poema que informam ser da
autoria do “Dr. Trindade Coelho”. No início do ano de 1901, coincidentemente ou não, é
também editado o primeiro jornal em Loriga, no dia 2 de fevereiro, com o título A Estrella
D’Alva. A iniciativa vinha da parte de dois loriguenses, Antônio Mendes Lages (redator
principal), e José Fernandes Carreira (editor responsável). 109
Através de uma informação inserida no catálogo de João Batista Faria e Souza, sabe-
se, também, que no dia 26 de setembro de 1905 foi lançado, em Manaus, mais uma iniciativa
jornalística dos loriguenses com a publicação do número único do jornal Loriga Literraria.
Um pouco antes do lançamento do Loriga Litteraria, já havia sido editado no dia 6 de agosto,
também em Manaus, o número único do jornal 6 de Agosto, alusivo à principal efeméride de
Loriga. Mesmo que estes dois jornais não tenham sido localizados, é possível perceber
através de outras fontes que, neste ano de 1905, a grande maioria de loriguenses já se
encontrava vivendo uma fase bastante promissora de suas vidas nas cidades de Manaus e
Belém, tendo alguns, inclusive, reunido consideráveis fortunas, como disse Eugênio Leitão de
Brito em seu artigo acima referenciado.

A colónia loriguense em Manaus, foi muito florescente naquele período, quando


diversos dos seus componentes alcançaram situações económicas desafogadas e
muito contribuiram para o progresso de nossa terra, quer construíndo boas casas
residenciais para a época, quer promovendo a realização de diversos
melhoramentos públicos. O mais importante, foi, sem dúvida, o abastecimento de
água à Vila, através da construção de magníficos fontenários, em bairros
diferentes, os quais ostentam placas de mármore a lembrar a posteridade que
foram legados pela “Colónia Loriguense de Manaus – anos de 1905-1909”.

3 A pesquisa em Loriga foi realizada em meados de outubro de 2000, quando contei com os prestimosos auxílios dos
loriguenses Joaquim Gonçalves Brito e Alvaro Pinto Assunção. Na oportunidade, foi importante o apoio institucional
recebido pelo presidente e pelo tesoureiro da Junta da Freguesia, respectivamente José Manoel Almeida Pinto e Luís
Manoel Pereira Fernandes.

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Além dessas particularidades, outro dado importante é que, do ponto de vista da


organização formal entre os loriguenses, a Comissão de Melhoramentos em Loriga, por eles
criada no início do século XX na capital amazonense com a finalidade de promover o
desenvolvimento econômico e uma série de melhoramentos urbanos na terra natal, já
apresentava, em 1905, crescente vitalidade financeira, com significativo volume de recursos
então reunidos através das diversar doações específicas que os loriguenses faziam para
executarem as mais váriadas iniciativas do gênero. Neste particular, a leitura de alguns
balanços da “Comissão Central da Colonia Loriguense em Manáos” não deixam dúvidas que a
referida organização já contabilizava, naquele ano, recursos cada vez mais crescentes e os
valores arrecadados continuavam sendo transferidos periodicamente para Loriga sem
maiores dificuldades.4 Não resta dúvida de que estas remessas representavam uma
importante contribuição para a economia interna de Loriga, possibilitando significativas
transformações no seu espaço urbano. Um bom exemplo é que, ainda, no correr do ano de
1905, os valores para a compra da tão almeijada “Cruz de Prata” e da “Caldeirinha” para o
Santíssimo Sacramento da igreja de Nossa Senhora da Guia já estavam totalizados, mesmo
que só tenham sido remetidos posteriormente pelos loriguenses de Belém do Pará.
Depreende-se, por essa doumentação, que a riqueza auferida por alguns loriguenses,
em geral fortemente comprometidos com os ideais de progressos e desenvolvimento
econômico, motivava novas iniciativas. Em Manaus, avançavam favoravelmente as
subscrições para a construção das fontes e canalização da água. No campo do jornalismo,
110 surge, em 1º de agosto de 1906, o número único do O Loriguense, de propriedade do
loriguense Abílio Freitas de Azevedo, e editado com a colaboração dos patrícios José Luiz
Monteiro e Afonso Duarte, na condição de redatores principais. Por outro lado, Mateus de
Moura Galvão, Joaquim Gomes de Pina, Augusto Luís Mendes e Antônio Cabral já haviam
reunido recursos para a criação da Banda de Música, festivamente inaugurada em Loriga um
ano depois, no dia 1º de julho de 1906.5 Em 1907, sob a influência de Jeremias Pina, é criado,
em Manaus, o “Grupo Premio Escolar Loriguense”, com o objetivo de estimular e prestar
auxílio aos jovens estudantes loriguenses, “concedendo annualmente premios vantajosos aos
alunos que frequentam as escolas de Loriga, que mais distincção obtenham nos exames e
fornecendo livros aos alunos pobres”. Tinha como sócios honorários Jeremias Pina, João
Marques da Fonseca, então professor aposentado, Pedro d’Almeida e Emilia Augusta,
professor e professora em exercício, além do Dr. Monoel da Motta Veiga Casal, subinspetor
escolar. Eram seus sócios contribuintes em Manaus: Emygdio Alves Nunes de Pina, Antonio
Ambrosio Pina, José Ambrosio de Pina, Abílio Diogo Gouveia, Abílio Pinto Martins, Joaquim
de Pina Monteiro, Antonio Duarte dos Santos, Alfredo de Moura Frade, João de Moura Pina,

4 Cópias de algumas destas atas e balanços da Comissão Central da Colônia Loriguense em Manaus, foram
gentilmente cedidas por Eugênio Leitão de Brito.
5 A Banda de Música, posteriormente, Sociedade Recreativa e Musical Loriguense, foi fundada em 1º de julho de

1906, por Mateus de Moura Galvão, Joaquim Gomes de Pina, Augusto Luís Mendes e Antônio Cabral. O instrumental,
no valor de 456 mil reis, adquirido por subscrição que se fez entre os loriguenses residentes nas duas capitais
amazônicas. Os primeiros ensaios, sob a regência do espanhol João Martinez, foram feitos na casa de Joaquim Gomes
de Pina, também responsável pela compra do primeiro fardamento. Cf. Boletim da Sociedade Recreativa e Musical
Loriguense. Vouzela, 16 fev. 1992.

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José Martins de Pina, Albano de Mello, José Pinto Matheus, João de Moura Pina, e em Belém
do Pará: Manoel Nunes Ferreira, Antonio Diogo Gouveia, José Fernandes Maurício, Augusto
Simões Carril, Antonio Aparício Martins, Alexandre de Moura Galvão, Antonio de Moura
Lemos, Manoel dos Santos Silva, Antonio Duarte Pina e João de Moura Pina. 6
Não resta dúvida que a euforia da economia da borracha na Amazônia contagiava as
ações filantrópicas e patriótica de vários loriguenses e neles refletia, quer individualmente
ou em grupo, quer indistintamente entre ricos ou pobres, como sintetizou Eugênio Leitão de
Brito.

Foi um grupo de Loriguenses do Pará quem custeou a construção do belíssimo


coreto de pedra e ferro que existe no Largo de Nossa Senhora da Guia, assim como
também foram os conterrâneos aqui residentes que ofereceram o artístico altar de
mármore que guarnece a capela da Padroeira dos Emigrantes. Deve-se também,
aos loriguenses de Belém, a oferta à Igreja paroquial, da belíssima Cruz de Prata,
trabalho do famoso escultor Teixeira Lopes. A colónia desta cidade, também
contribuiu para o fornecimento da luz elétrica ao torrão natal, cujo contrato com a
Hidrelétrica da Serra da Estrela, criada pelo génio empreendedor de Marques da
Silva, foi assinado pelos conterrâneos Augusto Luís Mendes, José Mendonça Cabral
e Augusto Moura Galvão, loriguenses residentes no Pará, naquela altura
eventualmente em Loriga num período de férias. 7

Voltando para o campo das experiencias jornalísticas dos loriguenses na Amazonia,


cinco anos depois da publicaçao d’O Patriota, e ainda em contexto de visível efervecencia
economica na cidade de Belem, outro “Orgao da Mocidade Loriguense (...) surge no
amphitheatro das lides jornalisticas”, no dia 28 de outubro de 1906, com o título Echos de 111
Loriga e o subtítulo “Orgao da Colonia Loriguense no Para”, sob a responsabilidade de
Jeremias Pina, seu redator principal, e a colaboraçao de Jose Lopes de Brito e Serafim da
Mota, dentre outros. 8 Com uma plataforma editorial bem definida, o jornal se propoe ter “por
missao o combate aos desregramentos das cousas de Loriga”, alem de afirmar em seus
objetivos programaticos que:

Combatera os erros passados, os presentes e os que advierem no futuro, e pugnara


pelo levantamento de ideas na vanguarda do progresso local.
Estara sempre a frente dos humildes e dos opprimidos e sustentara no seu posto
de honra, na polemica, a derrocada dos que forem contra a missao que ora
emprehende.
E por isso, os “ECHOS DE LORIGA” abraça a todos os loriguenses que o receberem
com effusao d’alma, ao incetar, hoje, uma missao arriscada e difficil de contentar a
todos.

Uma das características que ressalta no Echos de Loriga e que ele vem formatado em
dimensoes de um pequeno tabloide, com quatro colunas e quatro paginas, trazendo varias
materias escritas por diferentes colaboradores patrícios, incluindo espaço na ultima pagina
para a publicaçao de um “folhetim”. Surpreende tambem neste jornal a coerencia de

6 A Voz de Loriga. Manaus, 5 jun. 1909.


7 Eugênio Leitão de Brito. “Os Loriguenses na Amazônia”. In: Portas da Estrela. Seia, 15 ago. 1981.
8 O jornal Echos de Loriga não se encontra referenciado em nenhum dos catálogos e instrumentos de pesquisa

compulsados e seu acesso só foi possível através de uma fotocópia precária, em papel “A 4”, gentilmente oferecida
pelo loriguense Eugênio Leitão de Brito.

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princípios que permeia todo o seu conteudo editorial, inclusive quando comparado com os
objetivos propostos, a sugerir que ele vem a publico como fruto da indignaçao de um grupo
de imigrantes loriguenses que se diz expressar, a partir “da alma patriotica dos nobres
loriguenses que mourejam n’estas plagas Equatoriaes do Brazil”, contra alguns patrícios de
alem-mar que ousam qualificar impiedosamente de “homens arbitrarios”, expressao do
“azarrague da hipocrisia e da politica nefasta” ou, quando nao, pela expressao indignada de
“homens grandes de Loriga, que a todo tranze procuram um tropesso ao progresso originado
pelos Loriguenses que mourejam no Brazil”, segundo consta, pela grave razao de manterem
“sempre a opressao do povo de Loriga que galga as ameias d’um povo martyrisado e
humilde”.
No centro de todas estas críticas apresentadas pelo periodico, esta o vigario da vila,
tido pelos editores do Echos de Loriga como um dos fortes símbolos do conservadorismo e da
resistencia aos projetos de modernizaçao entao protagonizados pelos loriguenses residentes
na Amazonia, que, de alguns anos antes, haviam se lançado na luta para “que sejam ali
introduzidos os aperfeiçoamentos que a arte e a thecnica moderna aconselham”, enquanto
“um attestado vivo de patriotismo”. A principal divergencia que ora apontavam, nao era mais
ditada pelas posiçoes contrarias que o paroco manifestou em relaçao a criaçao da banda de
musica e da construçao do coreto na praça da igreja de Nossa Senhora da Guia. O fato novo,
agora, era pelo controle da fanfarra que ele passou a exercer de forma tal que “com sua
MUSICA, foi desorganisando a musica”, expulsou o maestro e manietou o diretor da banda,
112 razao pela qual ter atraído a “revolta patriotica” de Jeremias Pina que se achava
inconformado com os acontecimentos e com pleno direito de contestar-lhe publicamente:

Ademiramos, e o director ceder aos deseijos do vigario de Loriga.


O director sabe milhor do que nos, que se Loriga possue uma musica, deve-se a sua
iniciativa, e o vigario de Loriga foi o primeiro dos homens grandes a refurtar -se a
esse emprehendimento.
Portanto, ao director competia ser mais conciso n’esse caso, e nao permitir a
espulsao do mestre da musica por forma tao violenta.

Por outro lado, a “missão arriscada e difícil de contentar a todos”, a qual Jeremias
Pina temia enquanto redator do Echos de Loriga exigia algum tipo de moderação retórica não
só da sua parte, mas também dos demais colaboradores patrícios preocupados com um
possível isolamento que eventualmente determinasse o insucesso do jornal. Na verdade,
tudo leva a crer que havia uma nítida zona de discórdia, uma verdadeira competição entre
loriguenses daquém e dalém-mar que colocava em causa a unidade de um sentimento de
solidariedade partilhado entre os patrícios, principalmente quando as questões resvalavam
para o campo da política da cultura e das ideologias sociais em curso, em especial aquelas
que diziam respeito às obrigações e deveres patrióticos de ambos os lados para com a terra
natal.9 Neste caso, o próprio Jeremias Pina torna-se prudente ao escrever um artigo incisivo
sobre “O valor dos homens”, criticando a falta de compromisso e responsabilidade sociais

9Para uma compreensão do atual debate do estudo da cultura como política e da etnicidade como dimensão que se
vincula às ideologias sociais e aos nacionalismos, é sugestivo o artigo de Katherine Verdery sobre “Etnicidade,
Nacionalismo e a Formação do Estado”. (VERMEULEN; GOVERS, 2003: 44-74).

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daqueles que em nada “tem concorrido para a desopressão de um povo esmagado ao poder
dos homens ricos e do triste destino que lhes traçaram”, censura que compensa com um
contraponto um tanto gongórico feito para enaltecer as ações solitárias de algumas
personalidades do porte de Joaquim Gomes de Pina, um dos principais idealizadores da
banda de música, pessoa que, em seu entender, era uma “alma nobre e exemplar”,
característica típica de “homem que a labuta na vida pelos seus e os outros é o ideal que
abraça, é de um coração extremoso e bemfazejo e de uma alma diamantina e grandiosa”. De
igual forma, também, procedeu o seu confrade José Lopes de Brito em seu artigo de primeira
página enaltecendo a determinante influência dos loriguenses residentes na Amazônia no
que diz respeito às grandes transformações que estavam se processando nos últimos anos
em Loriga. Usando o clássico diapasão de “dar a Cesar o que é de Cesar” e “justiça a quem
entendermos que a mereça”, destaca as ações que estão sendo realizadas por diversos
loriguenses, fossem eles “humildes anônimos”, “humanitario capitalista”, ou “benemérito e
abastado proprietario”, a exemplo de João Marques da Fonseca, Augusto Luiz Mendes, os
irmãos Leitões, Abilio Luiz de Brito Freire e de Emilio Mendes dos Reis. Este último, tido
como “padrão de gloria”, porque “todos os pobres lhe reconhecem a grandeza d’alma”. Para
além destes destacados “exemplos de patriotismo”, José Lopes Brito reconhece que a grande
participação fica mesmo por conta dos “humildes e anônimos” loriguenses, mais
especificadamente daqueles:

(...) filhos de Loriga, com especialidade os que rezidem no Brazil, [que] têm
concorrido de um modo extraordinário para que sejam ali introduzidos os 113
aperfeiçoamentos que a arte e a técnica moderna aconselham. É assim que,
divididos em pequenos grupos, já conseguiram erigir, na praça de N. Senhora da
Guia, um soberbo pavilhão destinado á musica em épocas de festa. E enquanto uns
se ocupavam com esta obra que é um attestado vivo de patriotismo, outros
cotisaram-se entre si e ofereceram uma valiosa e belíssima cruz de prata com
incrustrações de oiro, á igreja de Santa Maria Maior – padroeira de Loriga; na
opinião das artistas não há, a não ser na capital portugueza uma cruz que possa
fazer paralelo com aquela.
Agora promove-se uma subscripção cujo resultado será aplicado á canalização de
agua para abastecimento da população. Projectam levantar pelo menos quatro
magnificos chafarizes nos logares mais concorridos da villa, o que constituirá um
dos mais importantes melhoramentos que se podiam imaginar.
Junte-se a tudo isto a abertura da estrada de rodagem que brevemente será
entregue ao trafego publico, e que vae ligar-se á estrada real que passa em Cea e
ahi temos nós um recanto de Portugal onde qualquer viajante poderá passar uma
boa temporada, rodeado de todas as comodidades.

Tudo indica que o Echos de Loriga não tenha ultrapassado o seu primeiro número,
frustrando, de alguma forma, as expectativas de Jeremias Pina e de seus poucos
colaboradores. Fica claro, também, que as tentativas de politizar o envolvimento e a forte
solidariedade dos loriguenses em relação aos melhoramentos urbanos e outros aspectos
ligados ao processo de modernização que estavam em curso na pequena Loriga, eram um
tema difícil e de pouca adesão para uma grande maioria dos imigrantes “exilados das Serras”.
Neste sentido, o dado relevante é que a zona de tensão no seio de alguns loriguenses não era
em nada desprezível, notadamente entre os que pretendiam colaborar financeiramente na
modernização da sua pequena vila de forma desinteressada, enquanto consciência do

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simples dever patriótico e àqueles que se queriam politicamente engajado em todas as ações
que resultavam, ou se desdobravam dessas mesmas contribuições. Seja como for, o resultado
foi que o jornal Echos de Loriga, ao invés de aglutinar a solidariedade entre os “filhos de
Loriga” e promovê-los socialmente, acabou por provocar uma verdadeira celeuma,
agravando pequenas e grandes divergências que, em certo sentido, determinaram o seu
próprio fim, como relembrou, anos mais tarde, o próprio Jeremias Pina ao fazer um balanço
da sua experiência e do esforço intelectual que alguns loriguenses tentaram desenvolver no
campo das letras para editarem vários jornais em Belém e Manaus10.
No curto interstício de dois anos, entre 1907 e 1908, a voz dos “Expatriados das
Serras”, como gostava de ressaltar Jeremias Pina, deixa de ser ouvida através dos seus meios
de imprensa. Mas esta situação não se prolonga por muito tempo e vem a ser revertida
quando Jeremias Pina se transfere definitivamente para Manaus e de lá lança o número único
do jornal A Voz de Loriga, no dia 5 de junho de 1909, como “Orgão da Colonia Loriguense em
Manáos”, e com uma plataforma editorial que não deixa de ser esperançosa para os seus
objetivos.

Vê a luz da publicidade, cheio de ufania, sobranceiro e altvo, na grande senda que


teve por principio Guttemberg, o grande inspirador da mais nobre e altivalente
missão – a imprensa – o jornal que serve de epigraphe a estas linhas.
Inspirado em bases solidas, moralista, e na saudade dos filhos de Loriga pelo berço
muito seu amado, que labutam quotidianamente nesta terra hospitaleira do Brasil.
A Voz de Loriga vem juntar-se ao numero desses periódicos inspirados no
patriotismo dos Loriguenses expatriados da sua terra abençoada, que entre os
114 loiros da gloria vão abrindo a estrada clarividente da consagração da posteridade.
A missão que ora desempenha A Voz de Loriga é o dever cívico e moral que os
Loriguenses tem para os seus Alem Atlantico, mostrando-lhes que só pela
comunhão das letras podemos destruir essa densa obscuridade em que Loriga tem
permanecido, provindo dessa comunhão civilizadora o grande destino do nosso
berço, regenerando a sociedade Loriguense e mostrando a mocidade inteligente o
caminho da instrucção, do dever, da verdade e do direito.
De há muito que apontamos a estrada por onde havemos de caminhar para a senda
civilizadora do espirito Loriguense. E se essa tem sido a nossa missão por entre os
abrolhos de um caminho calcinado de sacrifícios, tentando reduzir ao
desaparecimento um rosário de conceitos creados por espíritos perniciosos à
cultura instructiva de um povo inteligente desde o berço, não menos honrosa é
hoje a nossa tarefa, fazendo sahir um jornal moralizador, encarnação viva da sua
alma grandiosa, onde germina a essência da virtude ao par das grandes ideias.
E por isso, A Voz de Loriga, que vem mostrar mais uma vez o quanto pode a
iniciativa dos filhos de Loriga no Brasil, num programma de moralidade e
regeneração, cumprimenta a todos os Loriguenses e suas gentis conterrâneas,
esperando que a recebam como uma das estrelas fulgurantes do nosso porvir
moral, intelectual e material.

Este programa pode transparecer à primeira vista que Jeremias Pina retorna às lides
jornalísticas menos rancoroso e muito pouco afeito às polêmicas que lhe haviam
caracterizado anos antes nas páginas do Echos de Loriga. Na verdade, ele é uma tradução
parcial dos seus objetivos e deve ser lido com reservas pela natureza com que se reveste este
número único d’A Voz de Loriga: uma iniciativa momentosa, preocupada em divulgar os

10 A Voz de Loriga. Manaus, 6 jun. 1909.

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feitos “heroicos” da colônia loriguense em Manaus, enquanto expressão do “patriotismo dos


Loriguenses expatriados da sua terra abençoada”, assim como o ideário patriótico de
Jeremias Pina, o seu principal ideólogo.

Jornal A Voz de Loriga


(Manaus, 05 de Junho de 1909)

115

Fonte: Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas.

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Com a exceção de dois pequenos artigos, um sobre a “Illuminação Publica em


Loriga”, e o outro sobre o “Grupo Premio Escolar Loriguense” assinados por Albino Diogo de
Gouveia; do poema de Gomes de Amorim, transcrito do Echo Luzitano, de 8 de maio de 1908,
e de uma pequena “Nota Interessante” de tonalidade humorística, escrita por Maria
Pranchiata, todas as demais matérias divulgadas nas oito páginas d’A Voz de Loriga, são da
própria autoria de Jeremias Pina, que insistia dizer, em várias oportunidade, tê-las escritas
com palavras de forte entusiasmo para “poder triumphalmente calar o espirito de todos”,
com a ressalva típica de um jornalista que se pretende neutro e imparcial diante dos fatos,
que a sua “pena será a espada da Justiça, recta e impoluta, dando elogios a quem os merecer
e condemnando aos que da verdade se tenham divorciado”, ou como rediz alhures sobre a
natureza dos seus próprios escritos: “Escrevemos desapaixonadamente, não vizando ferir
este ou aqulle; damos a Cesar o que é de Cesar, pesando na balança da Justiça o proceder de
cada um: o bem e o mal na Justiça encontra a recompensa que merece”.
Deste modo, fazendo valer sua coerência de princípios declaradamente ancorados
nas virtudes dos valores morais e espirituais, Jeremias Pina se mantêm autêntico como antes
fora nas páginas do Echos de Loriga, acreditando sempre que as virtudes desses seus valores
constituíam uma arma eficaz no combate à obscuridade e ao atraso intelectual entre os
patrícios. Arma poderosa que também encontrou para viabilizar o seu grande sonho de tudo
se fazer através da “comunhão das letras”, das “grandes ideias”, da “instrucção” e da “cultura
116 instructivas”, enquanto condição necessária para promover o progresso e a prosperidade
econômica da sua terra natal, em seu sentido mais amplo possível.

A missão que ora desempenha A Voz de Loriga é o dever cívico e moral que os
Loriguenses tem para os seus Alem Atlantico, mostrando-lhes que só pela
comunhão das letras podemos destruir essa densa obscuridade em que Loriga tem
permanecido, provindo dessa comunhão civilizadora o grande destino do nosso
berço, regenerando a sociedade Loriguense e mostrando a mocidade inteligente o
caminho da instrucção, do dever, da verdade e do direito.

Esta era uma das suas principais preocupações, reiterada por várias vezes
simplesmente por acreditar que nada de materialmente consistente e duradouro poderia ser
feito à margem das “grandes ideias” e da “educação intelectual”:

Os grandes empreendimentos são o produto das grandes idéas. Quando se levam a


cabo, idealizados em doutrinas jorradas por espiritos inexgottaveis de radiação
pelo progresso que nos chama ao grande aperfeiçoamento, tem-se cumprido com o
grande dever de trabalharmos pelo levantamento moral e civico, ao par desse
grande factor que forma o baluarte estavel do nosso adiantamento civilizador, a
educação intelectual junto ao esforço material.

Valores morais e princípios cívicos que obviamente não são exclusivamente seus,
muito menos uma criação espontânea e original que usa para ornar a missão ou o
“programma de moralidade e regeneração” que propõe para o jornal. São valores que fazem
parte do seu contemporâneo histórico, influenciando profundamente o ideário uma pequena
minoria de portugueses letrados de além-mar que, através deles, nutriam seus sonhos e

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ideais de vida, em geral revelados por suas próprias penas.11 Mais ainda, se os traços da
ideologia que sustentam os sonhos e desejos civilizacionais de Jeremias Pina estão marcados
por ideias e valores morais que contagiavam muitos dos homens de letras em Portugal da
sua época, os seus conceitos de pátria e patriotismo não se faziam diferentes dos
denominadores comuns que diziam das ligações afetivas dos migrantes portugueses com a
terra natal e com o dever cívico para com as suas origens. Daí por que: “A aldeia distante
torna-se ponto de referência emocional, ganhando uma representação imaginária que a
identifique e caracterize, por via da adopção de um conjunto de símbolos distintivos”, como
realçou Maria Beatriz Rocha-Trindade no seu artigo “As micropátrias no interior português”,
na parte que faz alusão à força histórica que, ao longo dos séculos, vem definindo o conceito
de pátria entre os portugueses no contexto das suas migrações internacionais e internas.
(ROCHA-TRINDADE, 1987: 726).
Por outro lado, se A Voz de Loriga elucida dimensões ideológicas do idealismo de
Jeremias Pina, como suposto “interprete do sentir d’uma colônia”, o jornal não deixa por
menos em esclarecimentos sobre aspectos nebulosos e pouco conhecidos da vida associativa
entre os loriguenses de Manaus e Belém. Segundo palavras do próprio Jeremias Pina,
naquela altura, a maioria dos loriguenses, ao contrário de uma minoria formada por
“espíritos pessimistas, divorciados do progresso da nossa terra”, não concordava com a
ineficiência e o descaso do poder público em Loriga e, muito particularmente, com aqueles
“homens envolvidos n’essa politica nefasta que os tem levado a ocupar cargos na Camara
Municipal de Cea”, verdadeiros “parasitas que vivem da censura aos indiscutivelmente 117
dignos da consagração da posteridade”. Esta cáustica conclusão que resulta do seu indignado
fervor crítico em relação ao mandonismo político local, não guarda correspondência quando
o assunto político transcende os limites do paroquialismo loriguense, ou quando o problema
brota de determinadas discórdias e divergências no seio da colônia loriguense. Neste último
caso, Jeremias Pina mostra-se compreensivo, e com apelos para considerações um tanto
filosóficas, entendendo-as como simples frutos naturais do que chama de “ciumes
patrioticos” entre os conterrâneos.

Quasi sempre acontece surgir a discordia entre corporações, concorrendo muitas


vezes para a sua dissolução. E se dissermos que entre esta corporação, depois de
concluidos os trabalhos apareceu a divergencia com suas garras de hyena, não
iremos desmoralisar os homens e as coisas.
A discordia tem o seu valor moral na base em que é fundamentada. E se alguma
alteração de espirito houve na grande obra dos Loriguense em Manáos, é certo que
isso provinha do ciume patriotico dos mesmos. E tal o entusiasmo de patriotismo
que existe entre os filhos de Loriga, que um podendo concorrer só para a grande
idéa, evita que outro passe por essas decepções que a cada passo se encontram.

Quanto à vida política em Portugal, Jeremias Pina mostrava-se muito pouco


engajado, para não se dizer reticente ou apático. Até o lançamento d’A Voz de Loriga, pouco
se observa nesse sentido. No mais, o que se sabia é que Jeremias Pina era um crítico até então
reservado da monarquia portuguesa, defensor moderado dos ideais democráticos desde a

11Para uma compreensão sintética e mais alargada desses valores entre mulheres e homens, ricos e pobres, é
oportuno referenciar o artigo de Susana Serpa SILVA (2011: 382-427).

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infância, e que sempre evitava fazer proselitismo sobre política partidária, ao ponto de
ridicularizar certos patrícios que, em Belém do Pará, outra coisa não sabiam fazer. No seu
artigo intitulado “Balança da Justiça”, editado neste mesmo número da Voz de Loriga, mas
escrito em fins de janeiro quando se encontrava debilitado no leito do Hospital Português do
Pará, clarifica sua posição político-partidária. Com o objetivo de aclarar controvérsias sobre
a tragédia do Terreiro do Paço, que um ano antes havia prostrado morto o rei de Portugal e
seu filho princepe herdeiro, resolve “dizer alguma coisa sobre a politica portugueza, dando a
Cesar o que é de Cesar, para cujo fim escolhi a balança da Justiça onde se deve pesar os
pecados de todos”.

Não precisamos entrar em detalhes minuciosos dos acontecimentos que


precederam ao fim tragico dos monarcas, porque eles todos já foram
exteriorizados, pela imprensa, mesmo deturpados; e o que mais de ridiculo se tem
alegado n’esta terra de Santa Cruz, é a contenda de monarchistas e republicanos
portugueses, empreendidas nas columnas da imprensa local.
Uns e outros têm dito muito para nada dizerem, chegando a descer à valla dos
improperios atirando às faces uns dos outros o calão de chacal, sahindo fôra da
orbita que tem por lemma a lucta honrosa do jornalismo, para externar idéas.
Todos falam com uma pontinha de paixão e se deixam dominar por pensamentos
cegos, e oh! Deus o que não se tem dito pelas duas partes em litigio, coisas de fazer
corar um frade.
Não sei se estes homens discutem convictos as suas idéas, ou se representam um
papel mal ensaiado, apenas para se apresentarem no publico.
Nutro as idéas democraticas desde os meus verdes anos. Mas, até hoje, nunca
alguem me viu envolvido n’essas discussões banaes em que Patria e a pessoa nada
118 têm a lucrar.

Além de democrata e idealista, Jeremias Pina foi um visionário. Ardoroso defensor


da ideia de que Loriga foi o berço natal do grande Viriato, “o redemptor da Luzitania”, “o
grande pastor e guerreiro que destroçou as grandes legiões dos exercitos romanos”, sempre
que possível, não perdia a oportunidade para celebrá-lo como tal. Em Belém do Pará, por
mais de uma vez, escreveu artigos nas páginas do Echos Lusitano, “dando Viriato como filho
de Loriga”, e não podia ser diferente agora, no justo momento que editava A Voz de Loriga.
“Viriatho – O Tragico: onde foi o seu berço” é o título que usa em seu artigo para contraditar
o historiador Braz Garcia de Mascarenha, que “dá Viriatho como filho de Vizeu”, usurpando a
glória dos loriguenses. Mesmo que evoque em favor dos seus argumentos “annaes da historia
Patria” e as conclusões de Teófilo Braga, “essa grande mentalidade hodierna”, para quem
“Viriatho existiu em Loriga, sendo o julgador das cousas ou questões que entre os povos
circumvizinhos se davam”, o grande objetivo de Jeremias Pina, era sensibilizar os
conterrâneos para que fosse construída uma estátua na sua terra com a finalidade “de
immortalisar o nome de Viriatho como filho de Loriga”.

E nós, filhos de Loriga, temos já inspirada a idéa de immortalisar o nome de


Viriatho como filho de Loriga, erigindo-lhe um monumento n’uma das praças
publicas, d’aquella pedra tosca, “dura e informe”, para perpetuar mais o nome do
grande heroe e que nas nossas veias corre o sangue azul que o enalteceu.
Para isso, levanto o apelo aos loriguenses residentes no Brasil, ficando certo de que
a idéa concebida ha muito, será mais uma pagina a ouro archivada nos annaes dos
seus grandes feitos, tendo como recompensa as bênçãos da sagraçõ posterita.

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O apelo ao mito histórico de uma origem comum, nobre e heroica, que Jeremias Pina
tão bem manipulava, impedia que o conteúdo cultural da identidade étnica dos loriguenses
se fragmentasse ou se dissolvesse por força do exílio, além de possibilitar uma maior e mais
ampliada galvanização na solidariedade grupal, na coesão intraétnica e nos sentimentos de
pertencimento com a terra natal12. Dessa forma, não surpreende o êxito imediato que este
tipo de campanha alcançou, refletido positivamente nas subscrições para esta nova
finalidade que totalizava nada menos do que 145 contos de réis no próprio dia do seu
lançamento. Uma contribuição toda ela vinda de forma espontânea da parte de catorze
compatrícios, dentre eles: Manoel Jesus de Pina, Augusto Mendes de Gouvêa, Carlos Lopes de
Brito, Antonio Luiz M. Pina Jorge, Jeremias Pina, José Alves Nunes de Pina, Augusto Moura
Pina, Antonio Pina Pires, João Luiz Moura Pina, Manuel Moura Pina, Antonio L. M. Pina,
Antonio M. Cabral, Alfredo M. Frade e José L. C. Moura.
Os feitos do passado recente ou remoto, individuais ou coletivos, consagrados pela
memória histórica ou na expectativa da “sagração posterita”, foram também poderosamente
manipulados na construção retórica dos vários artigos que Jeremias Pina escreveu e fez
publicar nas páginas d’A Voz de Loriga. “Agua e Luz” não foge à regra, quando, através dele,
conclama os conterrâneos para mais um novo e necessário empreendimento. A transcrição
deste artigo na íntegra é oportuna por revelar não só facetas dessa estratégia, mas também o
modo de agir colocado em prática por certas lideranças loriguenses com o objetivo de
angariarem os recursos necessários para as transformações que estavam promovendo, ou
pretendiam promover em Loriga. 119
Entre os melhoramentos levados a efeito em Loriga, pela colonia Loriguense em
Manáos, destaca-se até hoje a canalização de aguas para abastecimento publico.
Outro está concebido de mais trabalho e dinheiro, cujo virá perpetuar os esforços
dos seus iniciadores e concorrentes pelos melhoramentos de que estão dotando o
seu berço. Esse melhoramento é a illuminação publica, á força de energia electrica,
que muito virá embellezar o ditoso berço de Viriatho.
Sendo um dos melhoramentos de que Loriga mais se recente, os seus
propugnadores já teem em mãos uma fabulosa quantia para tal fim, cujo é o
accrescimo da importância do abastecimento d’agua ao publico e seus sobejos do
mesmo liquido, vendidos a diversos para as regas da cultura agricola.
E já que o trabalho das fontes está concluido, seria de summa utilidade que os
iniciadores dos melhoramentos extinguissem a comissão que ainda existe, das
fontes, convocando uma reunião da colonia para assentar definitivamente as bases
fundamentaes para a iluminação publica.
D’esta forma chegariamos aos fins mais em breve, fazendo um estudo acurado
sobre o assumpto, facilitando aos concorrentes o meio de irem entrando com as
suas quotas, sem prejuízo à sua bolsa.
Pois que, muitos que as suas condições monetarias não admitem dispender de uma
importancia em desacordo com o seu rendimento, de uma só vez, farão-n’o por
tantas quotas se veja que o possa fazer, resultando d’isto chegar-se ao fim
satisfatorio e sem grandes dificuldades.

12Anthony Smith, incluí o exílio como um dos acontecimentos que pode promover a alteração cultural no conteúdo
das identidades e das comunidades étnicas: “Entre os acontecimentos típicos que originam alterações profundas no
conteúdo cultural de tal identidade, incluem-se a guerra, as conquistas, o exílio e a escravização, a influência de
imigrantes e a conversão religiosa”. (SMITH, 1997: 42).

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A quantia existente para tal fim não é de todo insignificante e com mais um pouco
de esforço e boa vontade teremos chegado á conclusão de tão dignificante
empreendimento.
Nunca faltou coragem e patriotismo a qualquer iniciativa posta em pratica pelos
filhos de Loriga. E d’esta se espera um desempenho cabal, que satisfaça as nossas
aspirações de patriotismo e amor ao berço, ficando crente que jamais um
Loriguense se refutará a prestar o seu auxilio a obra que tanto enaltecem a quem
as pratica, esquecendo ressentimentos que porventura possam separar uns de
outros e que em nada se prendem e tem com o beneficiamento que o nosso amado
berço necessita.
De todos espero uma união inquebrantavel para obra tão meritória, e do intimo de
minha alma os estreito a todos n’um amplexo de fraternidade e igualdade, para a
unificação d’um só pensamento, para nossa honra e do berço querido e amado.

No mesmo diapasão, segue o longo balanço que Jeremias Pina escreve sobre as
realizações dos loriguenses em Manaus. Marcado por um discurso subjetivo, um tanto
prolixo e repetitivo se comparado com o acima exposto, reafirmando palavras de louvores à
organização associativa e à solidariedade entre os patrícios, destaca, com alguns poucos
dados factuais o que resultava do “esforço intelectual e material” realizados pelos
conterrâneos.

E para atestar a preponderancia dos filhos de Loriga, residentes no Pará e Manáos,


sobre as coisas de Loriga, bastará fazer menção do seu esforço intelectual e
material. Entre eles se destacam, nas letras, diversos periódicos que fizeram
publicar, como seguem abaixo:
O 6 de Agosto, Loriga Litteraria, O Loriguense e o presente – A Voz de Loriga, em
Manáos, e o Echos de Loriga e O Patriota, no Pará.
120 Entre estes, detacou-se o Echos de Loriga, que combateu com denodo os
desregramentos em Loriga, levantando uma celeuma infernal, cujo foi suspenso e
em breve ressurgirá.
Entre o seu esforço material, destaca-se o serviço de canalização de aguas,
possuindo a villa quatro soberbos e magnificos chafarizes, disseminando-se por
diversos largos alguns postes fontenarios.
O trabalho que este melhoramento ao berço deu á comissão central, não se pode
imaginar: só um amor ferrenho, como o das pessoas que compunham a dita
comissão, podia arrostar com tantas humilhações e sacrificios.

No bojo desse relatório, faz questão de destacar o papel de relevo no conjunto dessas
iniciativas desempenhado por Manuel Jesus de Pina, Joaquim Ambrosio de Pina e Augusto
Mendes de Gouveia e, com grande ênfase, para a importante colaboração dos “laboriosos e
rudes trabalhadores”.

Não deixaremos de fazer mensão aos donos das olarias e seus trabalhadores.
Loriguenses que habitam a margem esquerda do “Rio Negro” [leia-se Manaus].
Todos foram de um sentimento patriotico indestructivel, pois que sem o auxilio
d’esses laboriosos e rudes trabalhadores, que amassam o barro e fazem o tijolo que
o diabo compra e não paga, não se teria conseguido o empreendimento conseguido
em Loriga.

Pelo conjunto destas informações, depreende-se que a existência de uma


solidariedade geral entre os loriguenses era suficientemente capaz de construir poderosos
elos entre sujeitos e classes sociais, atributos que ao lado do mito da origem comum e de
memórias históricas partilhadas, como propõe Anthony Smith, eram indispensáveis na

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formação de uma típica comunidade étnica, ou diaspórica. 13 Por outro lado, mesmo que estes
dados não sejam apresentados nas páginas d’A Voz de Loriga de maneira suficientes para a
construção das genealogias familiares, eles não deixam de sugerir a existência entre os
loriguenses de Manaus e Belém de uma poderosa interligação de laços familiares, formando
verdadeiras “superfamílias” que, no fundo, assumiam a liderança do movimento, reservando
a Jeremias Pina a condição de “guardião da tradição” e da mobilização vernácula necessária
para tal fim14.
Funções que Jeremias Pina esteve a cumprir exemplarmente em todos os momentos
que encontrou condições de exercê-las enquanto intelectual e homem de letras, quer quando
fazia em suas polêmicas, arvorado em pretensa condição de suprema magistratura, dando “a
Cesar o que é de Cesar, pesando na balança da Justiça o proceder de cada um”; quer em seus
apelos morais e cívicos para cobrar e/ou enaltecer a união entre todos os compatrícios. Alem
disso, não lhe faltava sensibilidade para construir narrativas sobre a sua Loriga distante,
“verdadeiro paraizo de sonhos dourados”, “terra amada” que supunha, de maneira
messiânica, ser “predestinada a um grande destino”. Seu artigo “O Sentimentalismo” é uma
peça documental exemplar de como, a partir das suas aparentes desmedidas subjetivações e
elocubrações poéticas, procurou conferir sentido concreto às suas representações sobre sua
terra de origem e, como tal, o artigo deve ser visto não como invenção ou puro devaneio
intelectual, antes, porém, como mais uma estratégia de mobilização comunitária colocada em
prática por Jeremias Pina, muito próximo da compreensão de Anthony Smith sobre o papel
do intelectual no âmbito das etnias “laterais”, e bem mais de acordo com o que Benedict 121
Anderson chamou de uma “comunidade imaginada”, cuja definição já foi avançada em nota
do primeiro capítulo.

É majestosa, poetica, cheia de vida, paz e tranquilidade, no seu labor quotidiano,


essa villa granitica, sem esthetica, que se chama Loriga, desde Viriato – O Tragico.
Envolvida, no roda-pé, n’um manto de uma vegetação luxuriante, levanta-se
soberba, no seu thono altivo, com suas casas apinhadas, a saudar a primavera, a
vinte e dois de Março de todos os anos.
Tudo é maravilhoso, tudo é alegria, emquanto ao desabrochar as flores no campo e
ao chilrear das andorinhas, as donzelas vão de cântaro á fonte umas, outras se
disseminam pelos campos, a lavrar as terras, entre canticos sonoros que nos dá a
ideia de que habitamos um verdadeiro paraizo.
Tudo é viver e não morrer para quem junto a essas castas e ingenuas almas
compartilha desses sentimentos.
E quando o murmurio d’um regalo de agua chrystalina corre no areal, matizado de
juncos e salgueiros, uma voz Divinal echoa alem no oiteiro:
Ai que aroma brotam as flores.
Ai que alegria ver os milharaes!
Oh rapazes galantes da terra
Porque não dançais, dançais, dançais.

13 Smith (1997: 36) define como sendo seis, os atributos principais que são partilhados no interior de uma
comunidade étnica, a saber: “Um nome próprio colectivo; um mito de linhagem comum; memórias históricas
partilhadas; um ou mais elementos diferenciadores de cultura comum; associação a uma terra natal específica; um
sentimento de solidariedade em sectores significativos da população”.
14 Smith analisa a importância do papel dos intelectuais na mobilização vernácula no âmbito das etnias “laterais”.

(Ibidem: 83 a 90).

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Do outro lado, uma voz vibrante, toda nupcial, que parece vir do infinito, baixando
sobre a terra, rumoreja aos ouvidos:
As donzelas são mui puras,
Como as flores da primavera!
O poder da pedra d’Era
Faz prodigios ás criaturas,
D’ella depende a minha sorte,
N’este valle de penar! penar!
Na vida até á morte.
Só quero amar! amar!
Entre as vozes poéticas d’estas almas puras, os rapazes, entregues aos seus
afazeres quotidianos, uns de sachar ao hombro em demanda do seu pomar, outros
repenicando canções na flata, dando-lhes umas notas amorosas, lá vão elleseleso
coração bafejante, com o pensamento preocupado com o que ha de ser a sua
companheira no amor conjugal.
Loriga foi predestinada a um grande destino, porque a indole do seu povo é a
encarnação viva do sentimentalismo; lá estão os velhos, os moços, para atestar o
que é formação psichologica d’esse grande povo.
Á todas as horas, muito principalmente ao sahir e por do sol, nos caminhos das
herdades, se cruzam velhos, moços e donzelas, numa conversação ingênua, de
verdadeiros philosophos.
Operarios de nove fabricas movidas por possantes rodas, á força d’agua, artistas de
todas as esferas, camponezes e camponezas e tudo mais que compõe a alta roda de
Loriga – a elite – lá se encontram nos seus misteres de um viver fraternal, e aos
domingos e dias santos se cruzam e fazem grupos que se destacam aqui e ali,
formamdo um conjunto todo de harmonia, com que retribuindo á prodiga
majestade do seu infinito firmamento, os belos dias de uma primavera em flôr,
enebriando-os com a aragem subtil, aromatica, acalentadora e fortificante.
É um verdadeiro paraizo de sonhos dourados! D’um lado ouve-se o acorde
122 sentimentalista d’uma guitarra, do outro a nota alegre d’uma viola, penetrando ao
mesmo tempo, em nossa alma adormecida n’aquelle conjunto harmonioso, o vibrar
melancolico d’um violão, que gemebundo executa um fado sepulchral.
.................................................................................................................
Não é só nisto que encarna a alma meiga e gentil d’este povo apaixonado que versa
o sentimentalismo do seu viver. N’este viver santo, fraternal, que alenta os
desiludidos d’uma existencia calcinada de espinhos, junto a um cruzeiro
antiquissimo, já denegrido pelo rugir das tempestades, que batem d’encontro aos
seus braços de conforto aos religiosos do logar, alguns rapazes estacionam ali,
versando ao desafio:
..........................................................................................................
Aqui está o sentimentalismo da alma Loriguense. Simples, ingenua, caracteristica
na poesia popular com que minoram os momentos de tristeza, não deixa de ser
bello, sublime, para os que causticados pelas peripecias d’uma vida martyr, que se
perde no turbilhão de vicios dos grandes centros populosos, se chega a envolver a
aquelle horizonte vivificante, encarnação viva das mais puras almas, longe da
corrupção que degrada e aniquila até morrer.

No dia 5 de Junho de 1910, precisamente um ano depois do lançamento da edição


única do jornal A Voz de Loriga, circula nas agitadas ruas da cidade de Manaus, o primeiro
número do jornal O Povo de Loriga, sob a direção do incansável e destemido combatente
Jeremias Pina, enquanto um jornal mensal, segundo consta, “concebido com ardor pelos
filhos das serras expatriados do seu berço querido”. Dessa forma, Jeremias Pina realiza, na
capital amazonense, o seu grande sonho, anunciado um ano antes nas páginas d’A Voz de
Loriga, de reeditar em Manaus o Echos de Loriga, uma experiência frustada que feneceu no
nascedouro vítima das incompreensões de patrícios e de alguns dos seus próprios

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compatrícios residentes em Belém do Pará. É muito provável que, por esse motivo, o futuro
d’O Povo de Loriga, enquanto “Orgam da Colonia Loriguense em Manáos”, seja anunciado
logo no primeiro número como incerto e imprevisível, razão pela qual entendeu o seu
redator-chefe ser oportuno advertir e orientar de imediato os seus leitores em caso de um
eventual insucesso em relação ao novo jornal:

Não tendo nós resolvido ainda sobre a continuada circulação d’este jornal,
pedimos aos interessados o obsequio de entenderem-se com o nosso conterraneo
e amigo, sr. Antonio Ambrosio Pina, ou remeterem suas correspondencias para a
caixa no Correia, n. 528.

Se a incerteza quanto ao futuro do jornal O Povo de Loriga era um fato assumido por
Jeremias Pina e seus colaboradores, o mesmo não se pode dizer em relação ao seu lema,
princípios e objetivos. Pautados pela mesma filosofia que orientou o Echos de Loriga na
cidade de Belém, a única “novidade” é que essa nova iniciativa não se faz por ato solitário ou
vontade própria do seu redator, pois, segundo consta, vem lastreada pela íntima comunhão
de interesses com “a mocidade loriguense [que] de há muito vem empregando o seu esforço
e sacrifício para a verdadeira regeneração dos seus costumes”, em constante luta contra a
corrupção dos valores morais, “a degradação e oppressão que por formas diversas
apparecem dia a dia n’essa sociedade humana em que os dogmas ou seitas de todas as
naturezas lançam as suas garras de anniquillamento e obstrução”. Princípios em que
Jeremias Pina reiterava insistentemente em todas as oportunidades que se fazia necessário
conclamar pelas responsabilidades sociais e patrióticas dos conterrâneos efetivamente 123
comprometidos com o futuro “d’esse pedaço da comunhão portugueza, d’essa particula de
terra em que nasceu o grande Viriato, que deu principio a historia gloriosa de nossa Patria”.
Seu idealismo persistente retorna desta feita com bastante ênfase na sua grande ideia
utópica de que “Loriga se prepara para destaque nos grandes feitos, esperando de futuro
elevar-se a estrella fulgurante nos destinos da liberdade da Patria e do livre pensamento”.
Uma utopia cuja legitimidade e autoridade de dizer vêm da força representativa dos feitos
loriguenses desterrados em “paragens longínquas” de além-mar, e que tudo fazem em
benefício da promoção e do “progresso do seu berço querido”.

É d’estas paragens longínquas onde com afan os filhos de Loriga se


entregam, sob um clima tropical, ás luctas da vida moral e material que, saudosos e
offegantes pelo progresso do seu berço querido, levantam altivos o grito da
instrucção, estimulando os seus irmãos de Loriga, que d´alli nunca se arredaram, a
proseguir n´essa tarefa gandiosa que há tempo incetaram, levar a instrucção aos
espiritos envoltos nas densas trevas d´essa grassa ignorancia.

No realce deste dever cívico e patriótico dos autodenominados “expatriados das


serras”, que se materializam “na sua tarefa altruistica” de tudo fazerem pelo “torrão
abençoado onde receberam a primeira luz da vida, onde creanças se dedicaram aos
brinquedos infantis, recebendo os ternos carinhos da mãe extremosa”, transparece os traços
de uma identificação básica que, segundo Jeremias Pina, se afiguram como o verdadeiro
símbolo que mais caracteriza o vir a ser dos loriguenses na Amazônia e os distengue dos
demais patrícios.

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Geraldo Sá Peixoto Pinheiro

Distinguindo-se entre tantas colónias que se disseminam pelo Brazil, pela sua
grandeza d’alma na pratica do Bem, nas causas que pedem o cumprimento sagrado
do dever, elles, estes moços em que brota todo o fervor d’um patriotismo que
dignifica, procuram dar ao seu berço o que a descuração de quem os representa
nos poderes competentes, negam dar-lhe.

Um traço distintivo que não remete obviamente para uma identidade essencial entre
os loriguenses, mas construído e habilmente manipulado por Jeremias Pina como um dos
elementos preferidos para legitimar e colocar em prática a sua ação social. Estratagema
usual percebido por sociólogos contemporâneos para realçarem o complexo jogo identitário
entre grupos étnicos no decurso de suas interações sociais, cuja finalidade é “exprimir a
solidariedade ou a distância social, ou para as vantagens imediatas que o ator espera obter
pela apresentação de uma identidade étnica”, em precisas e determinadas circunstâncias em
que a ênfase identitária se faz imprescindível nesse jogo, segundo os argumentos que
Poutignat e Streiff-Fenart utilizam para conceituarem a própria noção de saliência ou realce
entre grupos étnicos e comunidades imigrantes.

Ela exprime a idéia de que a identidade é um modo de identificação em meio a


possíveis outros; ela não remete a uma essência que se possua, mas a um conjunto
de recursos disponíveis para a ação social. De acordo com as situações ele se coloca
e as pessoas com quem interage, um indivíduo poderá assumir uma ou outra das
identidades que lhes são disponíveis, pois o contexto particular no qual ele se
encontra determina as identidades e as fidelidades apropriadas num dado
momento. (POUTIGNAR; STREIFF-FENART, 1997: 168 e 167).
124
Neste aspecto, a ação de Jeremias Pina foi exemplar, principalmente quando se fazia
através dos seus próprios empreendimentos jornalísticos, na permanente e necessária
vigilância que sempre procurou manter contra a incúria dos maus políticos e
administradores do “amado torrão”. Particularidade que não deixa dúvidas na sua histórica
luta contra os desvios da Filarmônica e do poder constitido em sua terra natal, e que não
poderiam faltar nas páginas do primeiro número do Povo de Loriga, um típico jornal de autor
único igual aos anteriores que fundou, persistindo numa tendência um tanto defasada para a
sua época, não obstante ter sido uma prática peculiar nas primeiras décadas do século XIX,
quando dos primórdios da imprensa no Brasil. O simulácro da contemporaneidade vinha
pela agressividade das suas críticas em defesa da terra natal.

Os homens de quem queremos fallar são os que a si tomaram a vara da politica


local, ha longos annos, que, valha-nos a verdade, têm-se feito umas figuras de cêra,
servindo apenas para darem echo n’uma exposição de ceramica. Porque, convictos
da nossa missão de pequenos chronistas, a nossa confrontação dá em cheio, pois,
que papel desempenham essas figuras de cêra?

Evidentemente que Jeremias Pina não era uma voz isolada e pouco representativa
entre os seus patrícios loriguenses. Enquanto sujeito que atua em campo social específico,
com ações concretas e conscientes que orientam sua forma de existência e de pertencimento,
torna-se num indivíduo importante, muito próximo daqueles imigrantes “com um
posicionamento central e que mantém um elevado nível de contactos com a terra natal,
funcionando como nódulo de intersecção de um circuito por onde passam informação,

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recursos e identidade”15. Por outro lado, sua posição social de destaque, reforçada por outros
fatores convergentes, a exemplo de encarnar na sua discursividade uma história comum de
desterro, integrar na sua prática quotidiana postura de uma linhagem familiar que havia
reunido prestígio e fortuna no país de acolhimento, faziam-lhe uma personalidade de relevo
dentro e fora de seu grupo de pertencimento, como integrante de uma rede social bem mais
vasta16. E se não bastassem estes atributos sobre sua personalidade, a sua condição de
letrado e homem de imprensa aumentava ainda mais a sua proeminência social, conferindo-
lhe prerrogativas de porta-voz da colônia, com legitimidade suficiente para advogar em
defesa das causas coletivas. E O Povo de Loriga, nome que emprestou para este seu novo
jornal, veio ao encontro de seus anseios que, diga-se de passagem, não eram exclusivamente
seus como aparentemente pode transparecer, mas compartilhado por um conjunto
significativo de loriguenses residentes em Manaus e Belém. Agora, a contundência das suas
palavras não podia ser confundida com os Echos de Loriga ou com A Voz de Loriga, mas por
um outro nome carregado por uma abstração bem mais poderosa: O Povo de Loriga. E será
em nome deste “povo” que Jeremias Pina fará a justificação para suas mais diversas e
radicais críticas.

Se assim o fazemos, é porque nos assiste o direito de defendermos os interesses do


povo, tornando-nos advogados d’uma causa nobre, altruistica, fazendo os semi-
deuses dos destinos d’um povo infeliz, enveredar pelo caminho da redempção, ou
do contrario recolherem-se ao silêncio da sua pequenez, deixando de apregoar
pelas trombetas do seu porta-voz, um prestigio iniquo, ôco, sem paginas nos
annaes dos homens que trabalham n’um terreno firme e não falso. 125
Assim, quer em seu nome, ou em nome do Povo de Loriga, suas críticas não eram
passíveis de serem submetidas à prova, seja qual fosse a circunstância; escritas em prosa ou
em versos, em sátiras ou ironías, elas eram autoproclamadas como a própria expressão da
verdade e da justiça. E em tudo encontrava motivos e pretextos. Em seu artigo sobre a morte
de Francisco Ferrer “O Martyr do Bem”, revela uma estreita afinidade com o pensador
anarquista catalão, “martyr da justiça, da liberdade e do bem”, “morto às mãos de Affonso
XIII”, “crime perpetrado dentro das muralhas sepulchaes do forte-cemiterio e immundo de
Montjuich”, em 13 de outubro de 1909, simplesmente por apregoar um projeto de educação
libertária, “por semear a instrucção, levando a luz da redempção á juventude dos dois sexos,
apontando-lhe o caminho da independencia, da consciencia livre, do direito e da justiça,
ensinando-os a amar e confraternizar na escola da egualdade”. De igual forma como

15 Para uma compreensão do conceito de campo social transnacional enquanto “conjunto encadeado de múltipl as
redes de relações sociais através das quais se trocam, organizam e transformam, de forma desigual, ideias, práticas e
recursos”, com a consequente distinção entre formas de existência e formas de pertença, cf.: LEVITT e SCHILLER,
(2010: 35).
16 Neste particular, Jorge Fernandes Alves sugere o uso analítico da noção de “rede”, alertando que: “Isto implica

que, ao nível metodológico, se desça ao nível do emigrante e do grupo familiar para seguir trajectórias e
dependências, se restrinja o espaço de análise para a intensificar e delinear relações mais complexas, sem deixar de
articular os resultados assim obtidos com os factores estruturais e históricos, pois não podemos esquecer a
dimensão económica ou, por exemplo, o simples facto de que é a construção da nação e da sua linha de fronteira que,
em última instância, define a emigração, afinal um movimento entre dois espaços de referência”. (ALVES, 1998: 413-
424).

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Francisco Ferrer, comungava com ideais antimonarquicos e anticlericais. Para ele, “O rei é o
mal, a vergonha, o opprobio e dagradação de um povo”, em contraposição ao cidadão que “é
o bem, a piedade, a benevolencia e o salvador d’uma Patria. Porque com uma só bala, faz voar
os miolos d’um rei, resgatando a Patria ás mãos do verdugo”. Mesmo que lamente a ausência
desse ato patriótico e heroico, não deixa de conjecturar sobre o que brevemente irá
acontecer com as monarquias portuguesa e espanhola, quando diz:
A natureza está muda. Assiste calada ao baquear das instituições corruptas da
Peninsula Eberica. A Hespanha estorce-se em convulsões fatidicas ás mãos de
Affonso XIII, e Portugal agonisa desde o despotismo de Carlos I”.

Na sua perceção, havia fatos novos, uma nova conjuntura que se esboçava com o
entendimento que tinha da proximidade da completa derrocada da mornaquia em Portugal,
“uma questão de tempo”, então timidamente profetizada nas páginas do Echos de Loriga, em
meados de 1909, mas agora, um ano depois, de forma resoluta e incisiva. Por outro lado, a
emergência de uma intensa mobilização republicana em Manaus e Loriga, assegurava-lhe a
certeza de se tratar de um momento especial, oportuno e adequado para aprofundar o seu
radicalismo e avançar destemido com o seu ideário. Em Manaus, mesmo sem filiação
político-partidária, fez-se solidário com os republicanos patrícios, divulgando
entusiasmadamente a notícia de que eles haviam enviado uma corajosa mensagem de
solidariedade ao lider dos republicanos em Portugal, deputado Afonso Costa:

A mensagem verberava inergica repulsa aos monarchistas que n’esta hora de


126 incertesas para a Patria e se teem arvorado em degradantes parasitas e tyrannos
do povo portugues, e inaltecia a maneira como o deputado republicano combateu
tenasmente o negocio Hinton que locupletava as algibeiras dos ladroes do trabalho
do povo, gatunos esses que vivem abrigados á sombra da monarchia e das gentes
do palacio das necessidades.
A mensagem assignada por 60 republicanos, terminava por protestar o voto de
solidariedade dos signatarios, na proxima implantação da Republica.
A alma portuguesa vibra enthusiasta pela sua independencia democratica, em
todos os recantos do mundo em que se encontra.
Ainda bem que a alma Luza é a mesma dos tempos idos em que as estrophes do
wate echoavam ao toar dos canhoes e de:
“A’s armas e os barões assignalados”. 17

Por outro lado, a condenação em Portugal do jornalista França Borges, repudiada


pelos republicanos portugueses residentes em Manaus aumentava ainda mais a sua
indignação contra o regime monárquico. O pequeno telegrama que dirigiram ao jornal
lisboeta O Mundo condenando o ato é transcrito: “Mundo, Lisboa. Republicanos portuguezes
protestam injusta condemnação França Borges saudam defensor sua attitude”. Epsódio que
Jeremias Pina logo transforma em matéria que explora num longo artigo planfletário, contra
a “nefasta monarchia” que “ha de rolar ao sorvedouro dos exgotos putrefactos”, junto com
“esses esbirros que se dizem juizes, orgam da Justiça, e que se atholdam simplesmente a
servir de instrumentos criminoso d’um sceptro ja no seu fatal eclipse, são apenas, com

17 “Noticiario”. In: O Povo de Loriga. Manaus, 18 Jul. 1910, p. 3-4.

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vergonha o dizemos, liberticidas e patricidas”18. E avança para espicaçar com mais revolta a
monarquia e as suas instituições jurídicas formais:

Agora mesmo acabam de mostrar ao Universo, que contamina a sede de desgraças


e miserias, pois, os juizes que julgaram o grande marthyr da liberdade do povo
portuguez, o pujante jornalista França Borges, esses juizes, repito, sem respeito á
toga que se diz a encarnação da justiça, calcaram e rasgaram a lei, e não obstante
privarem e amôrdaçarem o deffensor do réo, não o deixando entrar em
esclarecimentos de deffeza conforme é facultativa por Lei, auctoaram este como
insultador ao tribunal e sentenciaram á condemnação monstruosa o réo que não
teve deffesa nem tribunal legalmente constituido.

Por fim, reitera sua convicção em relação ao breve fim da agonizante monarquia em
Portugal: “Esta monstruosidade da Monarchia é da ultima hora. Mas daqui á ultima hora da
Monarchia – dessa réles rameira que arrastou á prostituição esse infeliz Portugal – não dista,
um decenio de mezes”.
Outra notícia lisonjeira que lhe havia enchido de entusiasmo e orgulho foi a criação
em Loriga do Club Recreativo Luzo Brasileiro, no dia 12 de junho passado, tendo à frente da
sua fundação um número expressivo de membros da colônia loriguense no Pará e Manaus,
que lá se encontravam. Diz a notícia:

O club tem por presidente o distincto professor do sexo masculino n’aquella villa,
sr. Pedro d’Almeida, o qual, no momento da inauguração aliciou, por espaço de
uma hora, em oração brilhantissima, os resultados beneficos que aos povos traz o
conjunto de edeas pela esphera associativa, enaltecendo os sentimentos dos
loriguenses repatriados quando se trata de emprehendimentos nobres e 127
altruisticos no levantamento benefico d’um povo por muito tempo vilipendiado e
opprimido, negando-lhes os tiranos e sectarios do poder e do dinheiro, a moral e
rejovenecimento progressivo. 19

Bem mais que o discurso prolixo e laudatório do presidente Pedro d’Almeida,


obviamente que reescrito e realçado por palavras do próprio Jeremias Pina para compor a
notícia do evento, contava para ele a força do delírio e da agitação popular manifestos em
passeata pública pelas ruas de Loriga.
Apos o incerramento da sessão, que teve por fim a inauguração e posse dos
membros de directoria, o ilemento associativo e uma massa de duas mil pessoas,
aproximadamente, tendo á frente a briosa banda da Philarmonica Loriguense,
percorreran as principaes ruas da villa, erguendo vivas inthusiastas aos membros
em evidencia n’aquelle meio, ás colonias loriguenses no Pará e Manáos, e no
Brazil. 20

Doravante, a natureza tinha voz, já não mais se via calado “o baquear das instituições
corruptas”, com o povo nas ruas para manifestar seus sentimentos, provavelmente um bom
sinal percebido por Jeremias Pina para investir na radicalização dos ânimos. E não havia
melhor espaço para fazê-lo do que através das próprias páginas d’O Povo de Loriga. E o
melhor pretexto para dar vasão ao seu anticlericalismo, um tanto contido nas experiências
anteriores, era avançar seus ataques de maneira radical e irreverente contra os jesuítas, uma

18 O Povo de Loriga. Manaus, 20 Ago. 1910, p. 3.


19 O Povo de Loriga. Manaus, 18 Jul. 1910.
20 Idem.

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ordem religiosa que nutria particular ódio mortal pela sua forte presença “nefasta” na
“realeza-clerical”, e “perniciosa” influência que exercia na própria vila de Loriga. No artigo
que escreveu sobre “O martyr do bem”, uma homenagem póstuma a Francisco Ferrer, deu
início aos seus ataques contra os “sectarios de Loyola”, concebidos como membros de uma
“seita sem dignidade e sem brio, vampiros da honra, do dinheiro, da liberdade e da vida
preciosa dos apostolos do bem e da livre consciencia, do direito e da justiça, das crenças
positivas e da tranquilidade da familia”21. Em seu artigo “Almas Podres”, escrito “com
esmagador despreso” no segundo número do Povo de Loriga, volta a atacar “os Loyolas das
trevas inacessiveis do Terreiro do Fundo”, “os Torquemadas que infelismente Loriga viu
nascer”, com o objetivo de alertar os conterrâneos sobre o perigo que representam “os
irmãos da seita Negra, miseraveis instrumentos da decadencia dessa pobre patria”.

Essas féras que ahi vedes, queridos conterraneos, jamais tiveram a noção da
consciencia que todos os bons possuem e poem em pratica.
Entregaram-se aos infames sectarios da tal Companhia de Jesus, fingindo que são
bons, para se acobertarem dos males que teem e continuam a espalhar. São esses
jesuitas degredados ao mais torpe despreso dos caracteres altivos, irregulaveis
poltrões de batina que querem amesquinhar pessoas de bem que valem mais pela
sua vida moral do que seu ouro e beatices. Ernegumenos ferozes onde o odio
armou a tenda, e o perdão jamais teve guarida. 22
Sua luta contra o jesuitismo não conhece trégua. Dizendo-se acusado de maçon, sob
a ameaça permanente da excomunhão e vítima “após tantas luctas ardilosas” em torno do
seu nome, defende-se com um artigo que dá o título: “Padre que prevarica”. Na verdade, um
128 libelo contra o páraco de Loriga, no qual Jeremias Pina se mostra mais destemido e insolente.

Quem de ha longo tempo vem residindo em Loriga, não será difícil encontrar a
qualquer hora do dia ou da noite, um typo baixo, acaçapado, rosto deslavado ao
poder de uma navalha e ás mãos do barbeiro, aliado á desfaçatez e cynismo que o
caracteriza, ao alto da cabeça corôa de presbytero, com cartola posta ao de leve e
provocadora ao mais tranquiberno gaiato, bengala em attitude de senhoril que
poderá quebrar as proprias costellas de seu dono, emfim, ao seu todo um
verdadeiro manequim para gaudio de sua propria presunção.
É um padre marôto, vadio, notivago que agora apresenta-se na téla escorado a uma
esquina, esperando a penitente que ha pouco foi ao confessionario lavar a alma por
ter faltado á honra precisa com o almoço ao marido, para attender a outros
mesteres do lar domestico, e d’aqui a pouco é um sacerdote que na egreja
apresenta uma cara beatifica e de santo, mas a um dominuns-Vobiscum, enganando
a fé do crente que o ouve, furta uma piscadela d’olho á amante, que n’um logar
certo da egreja com olhar afogueado lhe assiste a todos os movimentos.
.................................................................................................................
Esse padre é um verdadeiro rebento do mal, e vae mostrando com suas doutrinas
falsas e ôcas, bebidas nos casarões sacros da cella e do confessionario, que o povo
deve preparar-se para espulsal-o do seu seio, pois não é raro vêl-o rodeado das
beatificas e santas mulheres, a toda hora do dia e da noite, mulheres estas que se
deixam imbuir ás suas doutrinas lamorosas, sem pejo á sua honra de mãe e
esposas.
O Monsenhor glutão que desavergonhadamente se lança no atascadeiro do
lupanar, vae ver com a sua lambarisse se põe o olho nú, e das suas lambisgoias. 23

21 O Povo de Loriga. Manaus, 5 Jun. 1910.


22 O Povo de Loriga. Manaus, 18 Jul. 1910.
23 O Povo de Loriga. Manaus, 3 Ago. 1910.

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Crítico ferrenho do clericalismo e das instituições clericais, Jeremias Pina não era um
ateu na acepção precisa da palavra. Vez por outra, quando inquirido sobre a razão das suas
críticas aos jesuítas, gostava de responder taxativamente, e aproveitava da oportunidade
para reafirmar a sua devoção por Deus e Jesus, de forma sublime e muito particular. Disse ele
certa vez:

Não sei odiar. Sei castigar os maus, os despotas com esmagador despreso.
É assim que vos trato porque mereceis muito mais desdem.
Conheceis Deus? Conheceis o Martyr do Golgotha? Não! Pautae a vida pelos actos do Nazareno
e tereis alcançado o conhecimento de Deus. Deus é a consciencia pura e limpida. Deus é a
virtude personificada no bem geral e na caridade espontanea! 24

Jeremias Pina também não era um anarquista ou libertário como tantos outros
gráficos, tipógrafos e jornalistas patrícios foram. Acreditava nos poderes constituídos e nos
homens públicos de uma forma tal que estampou em toda a primeira página do segundo
número do Povo de Loriga uma enorme gravura do senador pelo estado do Amazonas, Jorge
de Moraes, com os seguintes dizeres:

É com palmas e applausos que os homens se elevam.


E vós, povo amazonense, que sabeis retribuir com enthusiasmo de vossa alma viril,
com palmas e applausos e manifestação espontanea, aos homens que trabalham
para elevar bem alto o vosso nome, estou certo que sabereis cumprir com o vosso
dever, estreitando em vossos braços, na hora opportuna, a estrella fulgurante e
esperançosa de vossos destinos, no povir, o integerrimo deffensor de vossa causa.
– O sr. senador Jorge de Moares. 129

Seu longo artigo como “homenagem d’O Povo de Loriga” pela data do aniversário do
senador Jorge de Moraes ocupa nada menos do que três das cinco colunas de toda a segunda
página, e vem todo ele ornado por uma sucessão de palavras de louvores, realçando traços
de sua carreira profissional enquanto médico e da sua trajetória política recente, escritos
como expressão do que considera “o dever indeclinavel de nossa admiração aos seus dotes
indistructiveis como honesto, virtuoso e parlamentar, caracter insinuante, e finalmente
interregimo deffensor das causas d’este infeliz povo que tantas vezes tem sido victima da
ignomia dos mandões que nasceram para destruir e não edificar”. Não menos laudatório é o
artigo que compõe e publica na mesma página para noticiar a passagem do aniversário do
então governador do estado do Amazonas, Antônio Bittencourt, transcorrido no dia 23 de
julho.
Suas manifestações de elogio para com determinados políticos do estado do
Amazonas era uma manifestação inequívoca de que Jeremias Pina, mesmo na sua condição
de imigrante português, se achava com pleno direito de interagir politicamente e manter-se
integrado no país de acolhimento, como de fato também fizeram vários de seus
conterrâneos, uns até mesmo de forma estrondosa e populista, como se depreende desta
pequena notícia:
Apezar do exmo. sr. dr. Jorge de Moraes achar-se ausente d’esta capital, os seus
admiradores não se esquecem da data do seu anniversario natalicio, e por isso,

24 O Povo de Loriga. Manaus, 18 Jul. 1910.

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hoje, os srs. Pina & Ferreira, da casa commercial A Brasileira, farão grandes
demonstrações de apreço ao ilustre senador.
A casa commercial A Brasileira, está hoje sobebamente ingalanada, tendo na
fachada principal uma extensa facha de pano de linho, na qual se divisa, em letras
salientes, o seguinte:
“Dr. Jorge de Moraes.
Salvé 18 de Julho”.
A noite o edificio será illuminado a bações venesianos e demais conjuntos de forma
a caracterisar uma illuminação dos costumes do minho, e entre as manifestações
de apreço ao ilustre parlamentar, será distribuida esportulas aos pobres. 25

Vale ressaltar que, imiscuir-se na vida política do país de acolhimento, não se torna
para o imigrante uma prática deslocada ou aberrante, mas parte de um jogo de interações
entre formas complexas de existência e pertença em contextos de campos sociais
transnacionais26. Isto é, essa dupla ligação com a terra natal, e o novo espaço de acolhimento
não caracteriza fenômenos diametralmente opostos ou excludentes, quando muito, variações
de sentidos e na intensidade do ritmo das oscilações entre um lugar e outro, ou seja:

Se as relações e as práticas sociais transfronteiriças em que os indivíduos se


envolvem constituem uma característica regular da sua vida quotidiana, então
revelam uma forma transnacional de existência. Quando as pessoas o reconhecem
explicitamente e realçam os elementos transnacionais que fazem parte de si, então
também estão a expressar uma forma transnacional de pertença. Evidentemente,
estas duas experiências nem sempre se encontram associadas. (LEVITT e
SCHILLER, 2010: 38).

130 No rastro desse entendimento, fica evidente que um segmento expressivo de


loriguenses ao participar de forma ativa da vida política em Manaus e Belém, nada mais
estava a fazer do que o uso de um jogo no qual a integração política nessas duas cidades lhe
conferia status e tornava mais fácil gerir formas de mobilização suficientemente capazes
para intervirem com sucesso na própria vida política da sua terra natal, até então fortemente
marcada por uma profunda assimetria entre poder político e poder econômico que os
marginalizava. Dentre outros, o artigo “Nós e eles” que Jeremias Pina escreve para o terceiro
número d’O Povo de Loriga dá a dimensão exata da instabilidade política vivida em Loriga,
desse clima de marginalização entre aqueles que lançados na aventura da árvore das patacas
conseguiram angariar fortuna e prestígio, quando em relação comparativa com os
“marechais representativos junto às instituições e idéas politicas que nos regem” 27.
Participação política que Jeremias Pina reivindica e entende como possível desde que seu
apelo seja ouvido pelos “homens de Loriga que se julgam colocados nas aras de Chefes”:

25 O Povo de Loriga. Manaus, 18 Jul. 1910.


26 O conceito de campos sociais transnacionais é de Levitt e Shiller que o distingue da noção de campo social
nacional restrito: “definimos campo social como um conjunto encadeado de múltiplas redes de relações sociais
através das quais se trocam, organizam e transformam, de forma desigual, ideias, práticas e recursos. Os campos
sociais são multidimensionais, envolvem interacções estruturadas, com formatos, profundidades e amplitudes
diferenciadas, que na teoria social são distinguidas pelos termos organização, instituição, e movimento social. As
fronteiras nacionais não são necessariamente contíguas aos limites dos campos sociais. Os campos sociais nacionais
são aqueles que se encontram confinados às fronteiras nacionais, ao passo que os campos sociais transnacionais
ligam actores por vias de relações transfronteiriças, que podem ser directas ou indirectas”. (LEVITT e SCHILLER,
2010: 35).
27 O Povo de Loriga. Manaus, 3 Ago. 1910.

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É pois chegada a ocasião dos homens de Loriga que se julgam colocados nas aras
de Chefes, mostrarem que são qualquer cousa, trabalharem pela instalação da luz
electrica ao poder do seu ouro ou de sua influencia politica perante os poderes da
nação, e dado isso, mostrarão que pensão já d’outra forma, compenetraram-se dos
deveres a cumprir, e depois, aqui nos encontrarão prontos com a nossa
colaboração em tudo que for útil ao berço, a si e a todos que vivam na orbita que
nos diz respeito.

Mas quem são concretamente esses “nós” loriguenses até então alijados da
participação política em seu torrão natal? Para o caso específico dos loriguenses em Manaus,
o jornal O Povo de Loriga oferece indicações importantes que permitem perceber algumas
características sobre o perfil sócioeconômico desses “expatriados das Serras”.

Entre os loriguenses que quotidianamente moirejam n’esta florescente capital, se


destacam entre elles um grande numero que se dedicam a um mister trabalhoso,
encongruento, penoso, que assim mostram cabalmente o quanto o loriguense é
forte para as luctas insanas da vida, procurando, com todo o esforço e sacrificio,
não olhando ás peripecias que um certo numero de trabalhadores acarreta, os
meios de subsistencia e integridade moral.
Queremos nos referir aos oleiros, na margem opposta a esta capital, onde alli se
encontram esses grandes factores que produzem o tijollo que dia a dia vão
servindo para a remodelação d’esta capital, levantando aqui e além de vastos,
muito vastos, soberbos e magníficos palacios.
...........................................................................................................
As olarias, no seu todo, são de propriedade de loriguenses, admittindo para seus
serviços conterraneos nosso e de outros povos limitrophes a Loriga, tratando-os
com carinho e facilitando-lhe os meios de auferirem grandes proventos. 131
Entre esses abnegados proprietarios existe uma cordialidade indistructivel, um élo
forte e inquebrantavel que causa inveja aos mais affectos á união d’um povo e
d’uma classe,
O sr. Joaquim Pina Pires, conhecido por Joaquim Velho, vulto proeminente entre a
colonia e a classe, é uma alma que possue os mais nobres sentimentos, e de um tino
incomparavel para o ramo da industria de que vimos tratando. Proprietario da
olaria Fazenda, o sr. Joaquim Pina, que tem alcançado grandes meios de fortuna, é
o decano dos proprietarios oleiros d’esta grande industria amazonense.
Egual mensão temos a fazer dos srs. Francisco Duarte dos Santos, Antonio de
Britto, Joaquim Pina Monteiro, Joaquim Monteiro e Antonio Gomes Leitão, os quaes
bem merecem a apologia de todas as pessôas que possúem um coração justiceiro e
bem formado.
Já esquecia mais alguns dos que pertencem á classe, que são o sr. José Gomes
Apparicio e Antonio Mendes Cabral.

Por outras informações dispersas nas secções “Vida intima” e “Noticiarios”,


depreende-se que além destes principais proprietários de olarias de Manaus, muitos outros
loriguenses amealharam suas pequenas e grandes fortunas em atividades comerciais
embrenhados pelos principais rios da Bacia Amazônica. No rio Negro, por exemplo, atuavam
vários loriguenses, como Armando Lopes de Brito e Plácido Duarte Pina, este último
emigrado em meados do século XIX, e mantendo o seu comércio na ilha de Ábada, nas
proximidades de Santa Isabel, cidade em que Alberto Duarte Pina Reis mantinha também um
florescente comércio. No rio Madeira, João Duarte dos Santos, filho de Albino Duarte dos
Santos, antigo proprietário de olaria na região do Cacau-Pirera, na margem direita do rio
Negro, do outro lado da cidade de Manaus, onde estava concentrada a totalidade das olarias

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dos loriguenses. No rio Solimões, José Mendes Cabral era um afortunado comerciante. No
distante rio Juruá, na fronteira brasileira com o Peru, Abílio Duarte Pina Reis tinha um
importante estabelecimento comercial na cidade de Remate de Males.
Nessas mesmas colunas, há informações importantes dando conta que havia aguns
loriguenses trabalhando como empregados no comércio. Fato também importante é que as
transações comerciais eram preferencialmente realizadas entre os próprios loriguenses,
como, por exemplo, nestas duas pequenas notícias:

O sr. Abilio Duarte dos Santos, nosso amigo e conterraneo, adquiriu por compra o
carro de gelo de propriedade do nosso conterraneo sr. Antonio Mendes Cabral.
**
O sr. Antonio Mendes Cabral comprou a olaria que pertencia ao sr. Abilio Duarte
dos Santos, a qual tinha sido comprada, ha pouco tempo, ao sr. Joaquim Pina
Monteiro.

Outras informações sobre as atividades comerciais entre os loriguenses de Manaus


podem ser percebidas nos anúncios publicitários divulgados sempre nas últimas páginas do
jornal O Povo de Loriga, a exemplo da mercearia “A Brasileira”, de Pina & Ferreira; da
“Mercearia Parada Campelo”, de Pina & Gouveia; do “Café Manduca”, de Brito e Pina; além
das mercearias “Moura & Pina”, “A Loriguense”, “Mercearia a Democrata”, até anúncios do
pequeno estabelecimento comercial de J. Pinto Mateus, no quarto número um do mercado
municipal.
Numa visão de conjunto destas informações sobre as atividades sócioeconômicas
132
dos loriguenses, tudo indica ser defensável a hipótese de que eles, em Manaus, tenham se
estruturado a partir de um complexo jogo de relações familiares tipicamente patriarcais,
além de se constituírem numa verdadeira minoria comerciante, historicamente
compreensível28, e na justa forma que este conceito vem sendo pensado e explicado por
antropólogos contemporâneos.

O que devemos entender por minorias comerciantes? Não devemos pensar que se
trata de minorias que vivem exclusivamente do comércio; se interpretássemos o
termo num sentido tão restrito, provavelmente nunca teriam existido minorias
comerciantes. Entende-se por minorias comerciantes aquelas para as quais o
comércio constitui uma actividade económica dominante, o que implica que uma
parte relativamente grande do grupo étnico viva do comércio, que este
desempenhe uma função importante na construção da imagem do grupo, tanto
para o exterior como para o interior da própria minoria, e que essa atctividade
tenha uma influência importante na cultura do grupo. Faz pouco sentido traçar
fronteiras rígidas impondo, por exemplo, o requisito de que uma dada
percentagem do grupo étnico tenha que estar activa no comércio para poder ser
designada como minoria comerciante. No modo como aplico o termo, há, por
conseguinte, exemplos mais e menos óbvios. (VERMEULEN, 2001: 109).

É muito provável que o jornal O Povo de Loriga não tenha ultrapassado os seus
quatro números iniciais, e tenha sido interrompido bruscamente e pela mesma razão que

28As relações dos loriguenses com as atividades comerciais são históricas e remontam a meados do século XIX,
quando muitos deles – chamados de cartagenos – andavam pelo país afora vendendo peças de lã feitas à mão,
principalmente em regiões do Norte de Portugal.

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levou ao fracasso o Echos de Loriga, em Belém. Seja como for, com o fim d’O Povo de Loriga,
com ele também se encerra um interessante capítulo da história da imprensa loriguense na
Amazônia. Desaparecidos do cenário jornalístico por mais de uma década, os loriguenses só
reaparecem através da sistemática colaboração que Joaquim Mendes Simão e Francisco
Mendes Campos emprestam ao Jornal Lusitano e A Colónia, como vimos, editados por
Godinho Ferreira, na cidade de Belém, durante a década de 1920. O primeiro deles, Joaquim
Mendes Simão, era provavelmente nascido em Fontão, Serra da Estrela, no final do século
XIX e emigrado de lá muito jovem e sem qualquer escolaridade. Em Belém, viveu vida
humilde como empregado comercial, depois vendedor ambulante de frutas até tornar-se
proprietário de uma pequena mercearia no Mercado de Ferro da cidade. Autodidata, com
acentuado pendor para as letras, em especial para a poesia, participou de todas as
associações portuguesas no Pará, chegando, inclusive, a exercer em algumas delas funções
diretivas. (BRITO, 2000: 198-199).
Nas páginas do jornal A Colônia, Mendes Simão experimentou um profundo
desconforto. Primeiro, quando foi acusado indevidamente de ter sido o autor das críticas
contra o jornal A Voz de Loriga29, e ter que exigir a publicação de nota esclarecedora:

“Em Tempo” – Propalando-se, insistentemente, caber-me a mim a paternidade de


um desaguisadi artiguete dado a publicidade em o último número deste jornal, sob
o título “Na péle dos outros”, em o qual se fazem referéncias menos airosas a
determinadas pessoas de Loriga, previno aos que me julgam ser eu capaz de
escrever tamanho amontoado de sandices, que minha pessoa é inteiramente
avessa a exibições dessa natureza, mormente quando for para ferir 133
suscetibilidades de quem quer que seja.
Publicação que me pertença, tenho por habito nunca furtar-me é responsabilidade
de assiná-la com o meu nome próprio, ou pseudônimo bem conhecido (Joaquim
Mendes Simão – JMS).

Posteriormente, quando identificou a autoria, teve que travar uma acirrada polêmica
com o conterrâneo Albano Fernandes Gomes que havia usado o pseudônimo de “Vu Fangue”
para denegrir o corpo redacional do jornal A Voz de Loriga. A partir de então, Mendes Simão
começa a enviar diretamente de Belém as suas colaborações para o jornal “A Voz” que acata e
publica na íntegra a sua resposta contra o conterrâneo Albano Fernandes Gomes. A partir
daí, o jornal passa a publicar outras colaborações de Mendes Simão, em especial alguns dos
seus sonetos. O poema “Canção do Exílio” era um tipo de colaboração potencialmente
problemática para ser publicada facilmente nos jornais da colônia portuguesa editados por
Godinho Ferreira, pelo inconveniente, na altura, de realçar as dores da partida, as agruras
vividas “em terra estranha”, ou redizerem sobre as dores da saudade da terra natal e da
infelicidade “de quem a Pátria não espera”. Uma representação dos seus sentimentos e

29 A Voz de Loriga foi um jornal bimensal efêmero fundado na pequena povoação de Loriga, na Serra da Estrela,
Portugal, em 11 de maio de 1924, tendo como diretor e editor Antonio Cabral Leitão e como redatores Joaquim de
Moura Simão Junior e Carlos Fernandes dos Santos. Tinha por subtítulo: “Defensor e Propagandista de Loriga e
Serra da Estrela”, com uma linha editorial assumidamente bairrista. Seu principal objetivo era “pugnar pelos
interesses de Loriga, combatendo, louvando e incitando estes e aqueles, tornando-nos assim algo dignos desta nossa
querida terra”. O jornal teve larga aceitação na cidade de Belém do Pará, tendo como representante (delegado) e um
de seus principais propagadores o comerciante e também loriguense José de Brito Crisostomo.

Fronteiras do Tempo, nº 4, 2013.


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daqueles outros loriguenses que tomavam a consciência que o sonho em busca da “árvore
das patacas” era completamente inatingível.

Canção do Exilio

São quinze anos depois! e ainda o pranto,


Hoje, a inundar meus olhos, como então,
A partida revejo com espanto
E sinto a mesma dor no coração!
Ah! como tempo passa!... Entretanto,
As maguas que cruciam não se vão!
Saudades, dores, pertinaz quebranto,
Meu pobre peito alanceando estão!
O que mais me tortura e intristece,
É ver que o tempo passa de era a era
Sem que possa rever quem me estremece...
Ai! Triste de quem no exilio anda penando,
Infeliz de quem a Pátria não espera
E em terra estranha sempre vai ficando!

J. M. Simão

Com Francisco Mendes Campos, a situação não foi diferente. Personalidade de


destaque entre os portugueses residentes no Pará, nascido na Vila de Loriga, em 1901,
emigrou para Belém um pouco antes de 1920, logo se dedicando ao magistério como
professor de português e contabilidade. Ainda segundo o seu biógrafo, foi “assíduo
134 colaborador do Jornal Lusitano e A Colônia, com artigos patrióticos sempre em defesa de
portugueses que eram vítimas de ataques e perseguições de uma minoria dotada de
xenofobia”.30 Ao lado de J. M. Simão, foi também um dos arautos de uma portugalidade
castiça e aldeã.
Um tanto descontente com os rumos do jornal A Colónia, editado pelo patrício
Godinho Ferreira, fez-se também um entusiasmado colaborador do jornal A Voz de Loriga,
granjeando simpatia e muito prestígio entre os membros do seu corpo editorial. Agraciado
pelo teor dos seus artigos, foi convidado para manter naquele periódico uma coluna
permanente que intitulou de “Cartas para Loriga”. Na verdade, Mendes Campos soube tirar
partido dessa situação e apostou fortemente num eventual efeito bumerang para as suas
colaborações. O seu primeiro artigo na sua coluna, estampado na primeira página do quarto
número da “A Voz”, mais do que um simples pleito de gratidão aos fundadores do jornal a
quem dedica “toda a expressão do meu sentir, e todos os liames da minha amizade e da
minha gratidão”, é a reafirmação de um patriotismo que ele faz revestido pela evocação de
um amor extremado por sua aldeia natal:

E é dentro dos limites desse amor pátrio, que eu idolatro e venero a nossa Loriga
de ontem, de hoje, de sempre, onde ficaram os meus primeiros sonhos e as minhas
primeiras ilusões, onde aprendi a amar-vos e a querer-vos com o estremoso
carinho de irmão. Eu vos bendigo e vos louvo, a vós que trabalhais na cruzada do

30 O descontentamento de Mendes Campos do Jornal Lusitano é progressivo. A edição de 30 de setembro de 1923


lança uma nota de pesar comunicando, a pedido, o afastamento de Mendes Campos da condição de secretário do
jornal.

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seu esplendor, que a quereis grande, imensa, inimitável, - essa Loriga que para nós
tem crepúsculos de oiro, auroras de alegria, noites silenciosas de luar majestoso,
lindo olhares, fisionomia esbelta que sedusem como o canto das sereias. E como é
belo evocar, nas sombras tristes de uma saudade que jamais se estinguirá, todas
essas reminiscencias que só o espírito de quem dela se ausenta, á aventura, para
correr, mundo em fóra, atrás dos desenganos, fatais, impressionantes, só esse
espirito é capaz de sentir uma lagrima ardente, emocionante, onde se espelhem
desgostos e tambem alegrias, sofridas e sentidas sob o azul do firmamento, ou
entre as quatro paredes de um gabinete de trabalho.31

Diante de tão expressiva manifestação de Mendes Campos, e consciente da aceitação


do jornal em terras brasileiras, o jornal A Voz de Loriga dedica o seu editorial seguinte “Aos
nossos conterraneos no Brazil”, com apelos para “que a congregação dos filhos de Loriga,
seja um bloco compacto e inexpugnavel, que não trepide ante algum obstaculo”. Apelos esses
que o jornal fazia questão de dizer que era pela consciência de “quão grande é o ‘bairrismo’
desses sobremodo dignos filhos deste caminho da Serra da Estrela, que afrontando
impávidos todos os perigos, daqui se vão em demanda, não exclusivamente do seu progresso,
mas tambem do da terra que lhes serviu de berço” 32. Manifestações idênticas vão se
sucederem ao longo das edições seguintes, algumas das quais, em caráter pedagogico a
evocar feitos pretéritos da História de Portugal, vazados numa compreensão de típica
epopéia expansionista sem a qual seria difícil pugnar por um efetivo patriotismo. Assim, fez
Pedro de Almeida, professor de primeiras letras de Loriga, em seu longo e prolixo artigo-
homenagem dedicado “Às Colonias de Alem-Mar; Pará e Manaus”, condensando fatos
históricos, epopeias de Viriato à Vasco da Gama, de heróis santos e heróis mártires à célebre 135
Diu e Isabel da Madeira que segundo ele “resumem numa só palavra – patriotismo”. Tudo
para dizer, ao final, “Salve, saudosas e honradas Colônias loriguenses do Pará e Manaus”. 33
Enquanto espaço que se propunha de plena liberdade para os irmãos distantes, A
Voz de Loriga não se furtava em receber colaborações que dessem ênfase para a coesão
étnica, o sentimento de unidade e solidariedade entre os loriguenses. As vozes dos seus
“irmãos” emigrados eram acolhidas indistintamente, mesmo aquelas que se faziam nas bases
das desilusões, da falta de perspectivas futuras e manifestamente na contramão dos mitos
ainda em voga da “árvore das patacas” e do Brasil como “terra da promissão”. Neste
particular, Mendes Campos se manifesta desiludido e escreve um artigo com conselhos
dedicados a uma imaginária jovem mãe loriguense que se vê confrontada pelo desejo dos
filhos que relutam em emigrar para o Brasil guiados por sonhos de ambição e por ideias de
riqueza. Seus conselhos são incisivos e dramáticos, forjados na sua curta experiência de
imigrante no contexto de uma cidade que atravessa um período de forte recessão econômica,
de fome e penúria e, como tal, muito pouco hospitaleira para com aqueles que nela aportam
em busca de melhores condições de vida.

Diga a seus filhos, minha senhora, que vir para o Brazil, é, nada menos, do que vir
amargar a crueldade do destino; passar noites em claro evocando as doces

31 A Voz de Loriga. Loriga, 22 Jun. 1924.


32 A Voz de Loriga. Loriga, Jul. 1924.
33 A Voz de Loriga. Loriga, 14 Set. 1924.

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imagens que cultuamos como santas, sentir a alma despedaçar-se ao contacto de


golpes certeiros da sorte avara; chorar lagrimas de sangue e verter gotas fel;
percorrer com duras e ásperas tiranias o calvario da vida; sentir em sonhos
sobresaltados o declinar daquela que [ilegível]; enfim, vir para o Brazil, deixar a
patria, equivale a fugir de tudo aquilo que nos anima e nos consola, nos encanta e
nos seduz.34

Em contato com uma realidade em que expressões do cosmopolitismo da Belle


Époque belenense ainda sobreviviam fortemente, o jovem Mendes Campos não deixa de
manifestar aos seus conterrâneos de além-mar o seu desconforto com determinadas
dimensões dos tempos modernos que lhes apavoravam. Um desses estranhamentos que teve
com elementos da modernidade foi o que chamou em “Cartas para Loriga” de “Os progressos
do feminismo”, tidos por ele como “aberrações da ordem natural”, “verdadeiras anomalias”,
“convenções bárbaras nascendo de um profundo desequilibrio mental, em prejuiso das
gerações futuras”.35 Ao pedir o apoio das mulheres loriguenses contra “esse avanço da nossa
malfadada civilização” por entender que elas sempre souberam respeitar “a sagrada gloria
das tradições”, avança numa explicação que dá a medida exata do seu conservadorismo e da
dificuldade para com as alteridades que se reconfiguram em outros espaços para além dos
restritos à sua aldeia natal:

É que eu pertenço ao numero daqueles que atribuem á mulher o fundo moral de


educação positiva do lar. Arrancar a mulher do lar, trasê-la para as tribunas dos
congressos, dar-lhe entrada nas academias, receber-lhes a profissão de fé como
advogadas e medicas, permitir-lhes os segredos e os conhecimentos da arte
136 econômica e financeira, atirá-las, sem piedade, ás carteiras das repartições para
fasê-las alheias ao preparo dos filhos, - inegavelmente é um ato de barbaridade que
se não pode admitir e, muito menos, compreender. 36

Suas críticas indignadas não ficam somente contra a inserção das mulheres no
mundo do trabalho, alcançam também as novas imagens que elas passam a adotar no espaço
público, dentre os quais, destaca temeroso o “recentissimo uso da bengala, profanando as
mãos setinosas e aveludadas das meninas”, ou a prática do “corte traiçoeira dos cabelos,
pautados á ‘la garçone’, um desdouro abominável”. E conclui: “Sentiu-se a invasão da
epidemia e o que se vê è uma detestavel promiscuidade, que não permite distinções”.
Segundo Maria Helena Santana, quando a moda do cabelo curto à la garçonne ou
joãozinho aportou em Portugal no início do século XX, esse tipo de ousadia, então
característica que singularizava as meninas rebeldes da época, também foi fortemente
criticado pelos segmentos conservadores da sociedade, principalmente àqueles ligados à
igreja católica que entendiam tratar-se de uma prática nociva, um verdadeiro atentado
contra a decência feminina. (Cf. SANTANA, 2011: 428-452). Assim, não é estranho que um

34 A Voz de Loriga. Loriga, 28 Set. 1924.


35 Já foi afirmado anteriormente, quando em análise sobre o comportamento de determinados poveiros, que a Belle
Époque em Manaus e Belém sempre provocou sentimentos ambíguos e contraditórios no imigrante português. Ao
agir no interior desse processo de modernização – quer pela forma como nela se insere, quer na percepção/reação
que dela resulta – esboça comportamentos que vão da aceitação incondicional e deslumbrada da modernidade ao
estranhamento reacionário e conservador.
36 A Voz de Loriga. Loriga, (17), Fev. 1925.

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ano antes de Mendes Campos lançar em Loriga a sua campanha contra a moda feminina
cosmopolita que observava indignado em Belém do Pará, o jornal português A Batalha, numa
edição de 1924, tece também comentários pouco elogiosos ao novo look da mulher moderna.
(SANTANA, 2011: 444).
A derrocada da economia gumífera na Amazônia impôs o retorno de muitos
loriguenses, e o modelo de organização tipicamente patriarcal, fundado em complexas
alianças familiares que havia por décadas cimentado o sentimento de coesão e solidariedade
grupal entre eles, foi abruptamente desmantelado. Jeremias Pina, um de seus principais
porta-vozes, perde visibilidade no cenário jornalístico com o fim dos seus jornais. Joaquim
Mendes Simão e Francisco Mendes Campos, não encontram mais sobrevida na imprensa com
o término do jornal A Voz de Loriga (1925) e do jornal A Colónia, em 1927.
Dez anos mais tarde, em 1937, os loriguenses residentes em Belém do Pará
somavam um pouco mais de uma centena, um percentual insignificante se comparado com
os milhares do período áureo da borracha na Amazônia. Mesmo assim, conseguiram criar,
naquele ano, o Centro Loriguense, sob a presidência do infatigável Joaquim Mendes Simão,
como organização afirmativa de solidariedade e pertencimento com as suas origens. Mas os
tempos são outros. E a “voz dos expatriados das Serras” que outrora reverberava
publicamente pelas iniciativas de Jeremias Pina, fica doravante restrita em confabulações
íntimas que não ultrapassam aqueles limites. Quando muito, e vez por outra, ecoa para além
dele através da pena solitária do compatrício Eugênio Leitão de Brito, que manteve por
várias décadas sua colaboração nos jornais diários Folha do Norte e O Liberal, mas com 137
temática ampla versando “sobre assuntos da vida de Portugal”. (BRITO, 2000: 147-148).

Referências:

ALVES, Jorge Fernandes - Perspectivas sobre a emigração - os estudos locais e regionais. Actas das
Segundas Jornadas de História Local, Fafe, Câmara Municipal, 1998, p. 413-424.
BRITO, Eugênio Leitão de. Os Portugueses no Grão Pará. Belém: Conselho da Comunidade Luso-
Brasileira do Pará, 2000.
LEVITT, Peggy e SCHILLER, Nina Glick. “Conceptualizar a Simultaneidade: Uma visão da sociedade
assente no conceito de campo social transnacional”. In MARQUES, M. Margarida. Estado-Nação e
Migrações Internacionais, Lisboa, Livros Horizontes, 2010, pp. 27/61.
MATTOSO, José (Dir.) História da Vida Privada em Portugal, volume sobre “A Época Contemporânea”,
organizado por Irene Vaquinhas, Circulo de leitores e Temas e Debates, 2011, pp. 382/427.
SILVA, Susana Serpa. “Sonhos e ideais de vida. Sonhos privados/sonhos globais”. In MATTOSO, José
(Dir.) História da Vida Privada em Portugal. Vol.: A Época Contemporânea. Lisboa: Circulo de
leitores e Temas e Debates, 2011, p. 382-427. (Volume organizado por Irene Vaquinhas).
POUTIGNAR, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade - Seguido de Grupos Étnicos
e suas Fronteiras, de Fredrik Barth. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.
SANTANA, Maria Helena. “Estética e aparência”, in VAQUINHAS, Irene (coord.). História da Vida Privada
em Portugal: a época contemporânea. Lisboa: Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2011, p. 428-
452. (Col. Dirigida por José Mattoso).
SMITH, Anthony. A Identidade Nacional. Lisboa: Gradiva, 1997.
ROCHA-TRINDADE, Maria Beatriz. “As micropátrias no interior português”. Análise Social, vol. XXIII,
(98), 1987 - 4º, 721-732.
VERMEULEN, Hans e GOVERS, Cora. Antropologia da Etnicidade: para além de “Ethnic Groups and
Boundaries”. Lisboa: Fim de Século, 2003.

Fronteiras do Tempo, nº 4, 2013.


Geraldo Sá Peixoto Pinheiro

VERMUELEM, Hans. Imigração, Integração e a Dimensão Política da Cultura. Lisboa: Edições Colibri,
2001.
VERMEULEN, Hans. “Minorias comerciantes: uma introdução”. Obra citada, p. 109.

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