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A Vila de Loriga, situada nas encostas da Serra da Estrela, Portugal, está, hoje, fartamente
referenciada no universo virtual da Internet através de várias comunidades e redes sociais
de relacionamentos, como homepages, blogs, links, perfazendo muitas dezenas de páginas
oficiais ou não que incluem, segundo consta em alguns casos, “os melhores sites da terra de
Viriato”. Na maioria dessas páginas eletrônicas, em geral direcionadas para saciar a
curiosidade turística daqueles que são atraídos pelo paisagismo da região, é possível
encontrar um conjunto relativamente variado de informações históricas, algumas das quais
sobre a e/imigração loriguense para o Brasil no final do século XIX e início do século XX,
notadamente sobre aqueles que se dirigiram para as cidades amazônicas de Manaus e Belém
do Pará. Em que pese o caráter um tanto arbitrário dessas informações, na maior parte das
vezes episódicas, fragmentadas, quase nada revelando de denso sobre dimensões concretas
dos processos históricos que envolveram e/ou foram protagonizadas por migrantes
loriguenses, elas guardam a sua importância relativa e devem ser louvadas pelo grande
esforço que representam para manterem viva uma determinada memória. Da mesma forma,
esse tipo de informação também está presente em alguns jornais da chamada imprensa
regional, como por exemplo, os periódicos Garganta de Loriga, um informativo regional da
Serra da Estrela, e Portas da Estrela, de Seia1.
Na verdade, o processo migratório de lorigenses no final do século XIX e início do
século XX ainda não recebeu a atenção merecida dos historiadores, permanecendo uma
grande lacuna na produção acadêmica de base historiográfica, não obstante a força relativa
que esse processo exerceu em termos de fluxo e refluxo migratório, com inegável
importância para os estudos históricos e etno-históricos sobre interações sociais e
identitárias nas cidades planiciárias de Manaus e Belém, e sobre os desdobramentos que o
mesmo provocou na vida econômica, política, sociocultural e paisagistica da própria Vila de
Loriga, na época, uma típica e acanhada aldeia portuguesa.
Das poucas tentativas conhecidas, ressalta-se o artigo do escritor e jornalista
loriguense Eugênio Leitão de Brito, residente na cidade de Belém do Pará, que, preocupado
em publicizar alguns aspectos históricos que marcaram a emigração dos compatrícios nas
cidades de Manaus e Belém, antes e depois da crise da borracha, reuniu determinadas
considerações sobre “Os Loriguenses na Amazónia”, pelas quais evidencia, também, a sua
importância, mesmo que a expressividade desse processo migratório ainda não tenha sido
devidamente quantificada em termos demográficos. Por ele, fica-se sabendo que:
Nos fins do século passado e nas primeiras décadas do actual, Manáos e Belém,
108 eram as duas localidades que possuíam a maior população loriguense depois da
terrra natal. Durante muito tempo, estas cidades foram os destinos de quase todos
os rapazes que ao atingir a idade de trabalho, não conseguiam colocação na
industria local ainda um tanto absoleta, enquanto a agricultura era pouco
tentadora, porque não tinha grandes possibilidades em terrenos pobres e muito
acidentados. Daí, a emigração contínua para o norte do Brasil que tinha ligação
marítima de navios mistos de nacionalidade inglesa, portuguesa, alemã, brasileira
e, em certa época, até italiana. As capitais dos Estados Pará e Amazonas, foram as
cidades de maior importância econômica do país, no período áureo da borracha
também chamada de “ouro negro”, que chegou a constituir o terceiro produto de
exportação, logo a seguir ao café e ao açucar, no total do país. 2
Para além destas conclusões de Eugênio Leitão de Brito, outro forte indício que
sugere um acentuado grau de importância sobre a diáspora loriguense na Amazônia é a
grande quantidade de jornais que um pequeno grupo de loriguenses letrados criou e tentou
manter nas cidades de Belém e Manaus, com o objetivo de fortalecerem suas redes de
solidariedade e afetividade grupal, como elemento importante de promoção social entre os
1 No Garganta de Loriga, são exemplos as edições de abril de 2000, com a matéria “Loriga e Brasil: A propósito das
comemorações dos 500 anos da descoberta da terra de Vera Cruz”; de junho, com o artigo de Adelino Manuel M. de
Pina, “Emigração e um Alerta”, e o artigo de António Conde, “Se não forem eles (os loriguenses) a tomar a iniciativa,
nada feito!”; julho, com os artigos “Emigração esse fenômeno”, de Adelino Manuel de Pina, e “Como vejo Loriga”,
simplesmente assinando por Maria e a notícia sobre a “Festa de N. S. da Guia: A grande festa de verão em Loriga”;
outubro, com a notícia da “Comenda de Mérito para o insigne loriguense Eugénio Leitão de Brito”. No Portas da
Estrela, edição de 15 de agosto de 1981, com o artigo sobre “Os Loriguenses na Amazônia” de Eugênio Leitão de
Brito.
2 Eugênio Leitão de Brito. “Os Loriguenses na Amazônia”. In: Portas da Estrela. Seia, 15 ago. 1981.
3 A pesquisa em Loriga foi realizada em meados de outubro de 2000, quando contei com os prestimosos auxílios dos
loriguenses Joaquim Gonçalves Brito e Alvaro Pinto Assunção. Na oportunidade, foi importante o apoio institucional
recebido pelo presidente e pelo tesoureiro da Junta da Freguesia, respectivamente José Manoel Almeida Pinto e Luís
Manoel Pereira Fernandes.
4 Cópias de algumas destas atas e balanços da Comissão Central da Colônia Loriguense em Manaus, foram
gentilmente cedidas por Eugênio Leitão de Brito.
5 A Banda de Música, posteriormente, Sociedade Recreativa e Musical Loriguense, foi fundada em 1º de julho de
1906, por Mateus de Moura Galvão, Joaquim Gomes de Pina, Augusto Luís Mendes e Antônio Cabral. O instrumental,
no valor de 456 mil reis, adquirido por subscrição que se fez entre os loriguenses residentes nas duas capitais
amazônicas. Os primeiros ensaios, sob a regência do espanhol João Martinez, foram feitos na casa de Joaquim Gomes
de Pina, também responsável pela compra do primeiro fardamento. Cf. Boletim da Sociedade Recreativa e Musical
Loriguense. Vouzela, 16 fev. 1992.
José Martins de Pina, Albano de Mello, José Pinto Matheus, João de Moura Pina, e em Belém
do Pará: Manoel Nunes Ferreira, Antonio Diogo Gouveia, José Fernandes Maurício, Augusto
Simões Carril, Antonio Aparício Martins, Alexandre de Moura Galvão, Antonio de Moura
Lemos, Manoel dos Santos Silva, Antonio Duarte Pina e João de Moura Pina. 6
Não resta dúvida que a euforia da economia da borracha na Amazônia contagiava as
ações filantrópicas e patriótica de vários loriguenses e neles refletia, quer individualmente
ou em grupo, quer indistintamente entre ricos ou pobres, como sintetizou Eugênio Leitão de
Brito.
Uma das características que ressalta no Echos de Loriga e que ele vem formatado em
dimensoes de um pequeno tabloide, com quatro colunas e quatro paginas, trazendo varias
materias escritas por diferentes colaboradores patrícios, incluindo espaço na ultima pagina
para a publicaçao de um “folhetim”. Surpreende tambem neste jornal a coerencia de
compulsados e seu acesso só foi possível através de uma fotocópia precária, em papel “A 4”, gentilmente oferecida
pelo loriguense Eugênio Leitão de Brito.
princípios que permeia todo o seu conteudo editorial, inclusive quando comparado com os
objetivos propostos, a sugerir que ele vem a publico como fruto da indignaçao de um grupo
de imigrantes loriguenses que se diz expressar, a partir “da alma patriotica dos nobres
loriguenses que mourejam n’estas plagas Equatoriaes do Brazil”, contra alguns patrícios de
alem-mar que ousam qualificar impiedosamente de “homens arbitrarios”, expressao do
“azarrague da hipocrisia e da politica nefasta” ou, quando nao, pela expressao indignada de
“homens grandes de Loriga, que a todo tranze procuram um tropesso ao progresso originado
pelos Loriguenses que mourejam no Brazil”, segundo consta, pela grave razao de manterem
“sempre a opressao do povo de Loriga que galga as ameias d’um povo martyrisado e
humilde”.
No centro de todas estas críticas apresentadas pelo periodico, esta o vigario da vila,
tido pelos editores do Echos de Loriga como um dos fortes símbolos do conservadorismo e da
resistencia aos projetos de modernizaçao entao protagonizados pelos loriguenses residentes
na Amazonia, que, de alguns anos antes, haviam se lançado na luta para “que sejam ali
introduzidos os aperfeiçoamentos que a arte e a thecnica moderna aconselham”, enquanto
“um attestado vivo de patriotismo”. A principal divergencia que ora apontavam, nao era mais
ditada pelas posiçoes contrarias que o paroco manifestou em relaçao a criaçao da banda de
musica e da construçao do coreto na praça da igreja de Nossa Senhora da Guia. O fato novo,
agora, era pelo controle da fanfarra que ele passou a exercer de forma tal que “com sua
MUSICA, foi desorganisando a musica”, expulsou o maestro e manietou o diretor da banda,
112 razao pela qual ter atraído a “revolta patriotica” de Jeremias Pina que se achava
inconformado com os acontecimentos e com pleno direito de contestar-lhe publicamente:
Por outro lado, a “missão arriscada e difícil de contentar a todos”, a qual Jeremias
Pina temia enquanto redator do Echos de Loriga exigia algum tipo de moderação retórica não
só da sua parte, mas também dos demais colaboradores patrícios preocupados com um
possível isolamento que eventualmente determinasse o insucesso do jornal. Na verdade,
tudo leva a crer que havia uma nítida zona de discórdia, uma verdadeira competição entre
loriguenses daquém e dalém-mar que colocava em causa a unidade de um sentimento de
solidariedade partilhado entre os patrícios, principalmente quando as questões resvalavam
para o campo da política da cultura e das ideologias sociais em curso, em especial aquelas
que diziam respeito às obrigações e deveres patrióticos de ambos os lados para com a terra
natal.9 Neste caso, o próprio Jeremias Pina torna-se prudente ao escrever um artigo incisivo
sobre “O valor dos homens”, criticando a falta de compromisso e responsabilidade sociais
9Para uma compreensão do atual debate do estudo da cultura como política e da etnicidade como dimensão que se
vincula às ideologias sociais e aos nacionalismos, é sugestivo o artigo de Katherine Verdery sobre “Etnicidade,
Nacionalismo e a Formação do Estado”. (VERMEULEN; GOVERS, 2003: 44-74).
daqueles que em nada “tem concorrido para a desopressão de um povo esmagado ao poder
dos homens ricos e do triste destino que lhes traçaram”, censura que compensa com um
contraponto um tanto gongórico feito para enaltecer as ações solitárias de algumas
personalidades do porte de Joaquim Gomes de Pina, um dos principais idealizadores da
banda de música, pessoa que, em seu entender, era uma “alma nobre e exemplar”,
característica típica de “homem que a labuta na vida pelos seus e os outros é o ideal que
abraça, é de um coração extremoso e bemfazejo e de uma alma diamantina e grandiosa”. De
igual forma, também, procedeu o seu confrade José Lopes de Brito em seu artigo de primeira
página enaltecendo a determinante influência dos loriguenses residentes na Amazônia no
que diz respeito às grandes transformações que estavam se processando nos últimos anos
em Loriga. Usando o clássico diapasão de “dar a Cesar o que é de Cesar” e “justiça a quem
entendermos que a mereça”, destaca as ações que estão sendo realizadas por diversos
loriguenses, fossem eles “humildes anônimos”, “humanitario capitalista”, ou “benemérito e
abastado proprietario”, a exemplo de João Marques da Fonseca, Augusto Luiz Mendes, os
irmãos Leitões, Abilio Luiz de Brito Freire e de Emilio Mendes dos Reis. Este último, tido
como “padrão de gloria”, porque “todos os pobres lhe reconhecem a grandeza d’alma”. Para
além destes destacados “exemplos de patriotismo”, José Lopes Brito reconhece que a grande
participação fica mesmo por conta dos “humildes e anônimos” loriguenses, mais
especificadamente daqueles:
(...) filhos de Loriga, com especialidade os que rezidem no Brazil, [que] têm
concorrido de um modo extraordinário para que sejam ali introduzidos os 113
aperfeiçoamentos que a arte e a técnica moderna aconselham. É assim que,
divididos em pequenos grupos, já conseguiram erigir, na praça de N. Senhora da
Guia, um soberbo pavilhão destinado á musica em épocas de festa. E enquanto uns
se ocupavam com esta obra que é um attestado vivo de patriotismo, outros
cotisaram-se entre si e ofereceram uma valiosa e belíssima cruz de prata com
incrustrações de oiro, á igreja de Santa Maria Maior – padroeira de Loriga; na
opinião das artistas não há, a não ser na capital portugueza uma cruz que possa
fazer paralelo com aquela.
Agora promove-se uma subscripção cujo resultado será aplicado á canalização de
agua para abastecimento da população. Projectam levantar pelo menos quatro
magnificos chafarizes nos logares mais concorridos da villa, o que constituirá um
dos mais importantes melhoramentos que se podiam imaginar.
Junte-se a tudo isto a abertura da estrada de rodagem que brevemente será
entregue ao trafego publico, e que vae ligar-se á estrada real que passa em Cea e
ahi temos nós um recanto de Portugal onde qualquer viajante poderá passar uma
boa temporada, rodeado de todas as comodidades.
Tudo indica que o Echos de Loriga não tenha ultrapassado o seu primeiro número,
frustrando, de alguma forma, as expectativas de Jeremias Pina e de seus poucos
colaboradores. Fica claro, também, que as tentativas de politizar o envolvimento e a forte
solidariedade dos loriguenses em relação aos melhoramentos urbanos e outros aspectos
ligados ao processo de modernização que estavam em curso na pequena Loriga, eram um
tema difícil e de pouca adesão para uma grande maioria dos imigrantes “exilados das Serras”.
Neste sentido, o dado relevante é que a zona de tensão no seio de alguns loriguenses não era
em nada desprezível, notadamente entre os que pretendiam colaborar financeiramente na
modernização da sua pequena vila de forma desinteressada, enquanto consciência do
simples dever patriótico e àqueles que se queriam politicamente engajado em todas as ações
que resultavam, ou se desdobravam dessas mesmas contribuições. Seja como for, o resultado
foi que o jornal Echos de Loriga, ao invés de aglutinar a solidariedade entre os “filhos de
Loriga” e promovê-los socialmente, acabou por provocar uma verdadeira celeuma,
agravando pequenas e grandes divergências que, em certo sentido, determinaram o seu
próprio fim, como relembrou, anos mais tarde, o próprio Jeremias Pina ao fazer um balanço
da sua experiência e do esforço intelectual que alguns loriguenses tentaram desenvolver no
campo das letras para editarem vários jornais em Belém e Manaus10.
No curto interstício de dois anos, entre 1907 e 1908, a voz dos “Expatriados das
Serras”, como gostava de ressaltar Jeremias Pina, deixa de ser ouvida através dos seus meios
de imprensa. Mas esta situação não se prolonga por muito tempo e vem a ser revertida
quando Jeremias Pina se transfere definitivamente para Manaus e de lá lança o número único
do jornal A Voz de Loriga, no dia 5 de junho de 1909, como “Orgão da Colonia Loriguense em
Manáos”, e com uma plataforma editorial que não deixa de ser esperançosa para os seus
objetivos.
Este programa pode transparecer à primeira vista que Jeremias Pina retorna às lides
jornalísticas menos rancoroso e muito pouco afeito às polêmicas que lhe haviam
caracterizado anos antes nas páginas do Echos de Loriga. Na verdade, ele é uma tradução
parcial dos seus objetivos e deve ser lido com reservas pela natureza com que se reveste este
número único d’A Voz de Loriga: uma iniciativa momentosa, preocupada em divulgar os
115
A missão que ora desempenha A Voz de Loriga é o dever cívico e moral que os
Loriguenses tem para os seus Alem Atlantico, mostrando-lhes que só pela
comunhão das letras podemos destruir essa densa obscuridade em que Loriga tem
permanecido, provindo dessa comunhão civilizadora o grande destino do nosso
berço, regenerando a sociedade Loriguense e mostrando a mocidade inteligente o
caminho da instrucção, do dever, da verdade e do direito.
Esta era uma das suas principais preocupações, reiterada por várias vezes
simplesmente por acreditar que nada de materialmente consistente e duradouro poderia ser
feito à margem das “grandes ideias” e da “educação intelectual”:
Valores morais e princípios cívicos que obviamente não são exclusivamente seus,
muito menos uma criação espontânea e original que usa para ornar a missão ou o
“programma de moralidade e regeneração” que propõe para o jornal. São valores que fazem
parte do seu contemporâneo histórico, influenciando profundamente o ideário uma pequena
minoria de portugueses letrados de além-mar que, através deles, nutriam seus sonhos e
ideais de vida, em geral revelados por suas próprias penas.11 Mais ainda, se os traços da
ideologia que sustentam os sonhos e desejos civilizacionais de Jeremias Pina estão marcados
por ideias e valores morais que contagiavam muitos dos homens de letras em Portugal da
sua época, os seus conceitos de pátria e patriotismo não se faziam diferentes dos
denominadores comuns que diziam das ligações afetivas dos migrantes portugueses com a
terra natal e com o dever cívico para com as suas origens. Daí por que: “A aldeia distante
torna-se ponto de referência emocional, ganhando uma representação imaginária que a
identifique e caracterize, por via da adopção de um conjunto de símbolos distintivos”, como
realçou Maria Beatriz Rocha-Trindade no seu artigo “As micropátrias no interior português”,
na parte que faz alusão à força histórica que, ao longo dos séculos, vem definindo o conceito
de pátria entre os portugueses no contexto das suas migrações internacionais e internas.
(ROCHA-TRINDADE, 1987: 726).
Por outro lado, se A Voz de Loriga elucida dimensões ideológicas do idealismo de
Jeremias Pina, como suposto “interprete do sentir d’uma colônia”, o jornal não deixa por
menos em esclarecimentos sobre aspectos nebulosos e pouco conhecidos da vida associativa
entre os loriguenses de Manaus e Belém. Segundo palavras do próprio Jeremias Pina,
naquela altura, a maioria dos loriguenses, ao contrário de uma minoria formada por
“espíritos pessimistas, divorciados do progresso da nossa terra”, não concordava com a
ineficiência e o descaso do poder público em Loriga e, muito particularmente, com aqueles
“homens envolvidos n’essa politica nefasta que os tem levado a ocupar cargos na Camara
Municipal de Cea”, verdadeiros “parasitas que vivem da censura aos indiscutivelmente 117
dignos da consagração da posteridade”. Esta cáustica conclusão que resulta do seu indignado
fervor crítico em relação ao mandonismo político local, não guarda correspondência quando
o assunto político transcende os limites do paroquialismo loriguense, ou quando o problema
brota de determinadas discórdias e divergências no seio da colônia loriguense. Neste último
caso, Jeremias Pina mostra-se compreensivo, e com apelos para considerações um tanto
filosóficas, entendendo-as como simples frutos naturais do que chama de “ciumes
patrioticos” entre os conterrâneos.
11Para uma compreensão sintética e mais alargada desses valores entre mulheres e homens, ricos e pobres, é
oportuno referenciar o artigo de Susana Serpa SILVA (2011: 382-427).
infância, e que sempre evitava fazer proselitismo sobre política partidária, ao ponto de
ridicularizar certos patrícios que, em Belém do Pará, outra coisa não sabiam fazer. No seu
artigo intitulado “Balança da Justiça”, editado neste mesmo número da Voz de Loriga, mas
escrito em fins de janeiro quando se encontrava debilitado no leito do Hospital Português do
Pará, clarifica sua posição político-partidária. Com o objetivo de aclarar controvérsias sobre
a tragédia do Terreiro do Paço, que um ano antes havia prostrado morto o rei de Portugal e
seu filho princepe herdeiro, resolve “dizer alguma coisa sobre a politica portugueza, dando a
Cesar o que é de Cesar, para cujo fim escolhi a balança da Justiça onde se deve pesar os
pecados de todos”.
O apelo ao mito histórico de uma origem comum, nobre e heroica, que Jeremias Pina
tão bem manipulava, impedia que o conteúdo cultural da identidade étnica dos loriguenses
se fragmentasse ou se dissolvesse por força do exílio, além de possibilitar uma maior e mais
ampliada galvanização na solidariedade grupal, na coesão intraétnica e nos sentimentos de
pertencimento com a terra natal12. Dessa forma, não surpreende o êxito imediato que este
tipo de campanha alcançou, refletido positivamente nas subscrições para esta nova
finalidade que totalizava nada menos do que 145 contos de réis no próprio dia do seu
lançamento. Uma contribuição toda ela vinda de forma espontânea da parte de catorze
compatrícios, dentre eles: Manoel Jesus de Pina, Augusto Mendes de Gouvêa, Carlos Lopes de
Brito, Antonio Luiz M. Pina Jorge, Jeremias Pina, José Alves Nunes de Pina, Augusto Moura
Pina, Antonio Pina Pires, João Luiz Moura Pina, Manuel Moura Pina, Antonio L. M. Pina,
Antonio M. Cabral, Alfredo M. Frade e José L. C. Moura.
Os feitos do passado recente ou remoto, individuais ou coletivos, consagrados pela
memória histórica ou na expectativa da “sagração posterita”, foram também poderosamente
manipulados na construção retórica dos vários artigos que Jeremias Pina escreveu e fez
publicar nas páginas d’A Voz de Loriga. “Agua e Luz” não foge à regra, quando, através dele,
conclama os conterrâneos para mais um novo e necessário empreendimento. A transcrição
deste artigo na íntegra é oportuna por revelar não só facetas dessa estratégia, mas também o
modo de agir colocado em prática por certas lideranças loriguenses com o objetivo de
angariarem os recursos necessários para as transformações que estavam promovendo, ou
pretendiam promover em Loriga. 119
Entre os melhoramentos levados a efeito em Loriga, pela colonia Loriguense em
Manáos, destaca-se até hoje a canalização de aguas para abastecimento publico.
Outro está concebido de mais trabalho e dinheiro, cujo virá perpetuar os esforços
dos seus iniciadores e concorrentes pelos melhoramentos de que estão dotando o
seu berço. Esse melhoramento é a illuminação publica, á força de energia electrica,
que muito virá embellezar o ditoso berço de Viriatho.
Sendo um dos melhoramentos de que Loriga mais se recente, os seus
propugnadores já teem em mãos uma fabulosa quantia para tal fim, cujo é o
accrescimo da importância do abastecimento d’agua ao publico e seus sobejos do
mesmo liquido, vendidos a diversos para as regas da cultura agricola.
E já que o trabalho das fontes está concluido, seria de summa utilidade que os
iniciadores dos melhoramentos extinguissem a comissão que ainda existe, das
fontes, convocando uma reunião da colonia para assentar definitivamente as bases
fundamentaes para a iluminação publica.
D’esta forma chegariamos aos fins mais em breve, fazendo um estudo acurado
sobre o assumpto, facilitando aos concorrentes o meio de irem entrando com as
suas quotas, sem prejuízo à sua bolsa.
Pois que, muitos que as suas condições monetarias não admitem dispender de uma
importancia em desacordo com o seu rendimento, de uma só vez, farão-n’o por
tantas quotas se veja que o possa fazer, resultando d’isto chegar-se ao fim
satisfatorio e sem grandes dificuldades.
12Anthony Smith, incluí o exílio como um dos acontecimentos que pode promover a alteração cultural no conteúdo
das identidades e das comunidades étnicas: “Entre os acontecimentos típicos que originam alterações profundas no
conteúdo cultural de tal identidade, incluem-se a guerra, as conquistas, o exílio e a escravização, a influência de
imigrantes e a conversão religiosa”. (SMITH, 1997: 42).
A quantia existente para tal fim não é de todo insignificante e com mais um pouco
de esforço e boa vontade teremos chegado á conclusão de tão dignificante
empreendimento.
Nunca faltou coragem e patriotismo a qualquer iniciativa posta em pratica pelos
filhos de Loriga. E d’esta se espera um desempenho cabal, que satisfaça as nossas
aspirações de patriotismo e amor ao berço, ficando crente que jamais um
Loriguense se refutará a prestar o seu auxilio a obra que tanto enaltecem a quem
as pratica, esquecendo ressentimentos que porventura possam separar uns de
outros e que em nada se prendem e tem com o beneficiamento que o nosso amado
berço necessita.
De todos espero uma união inquebrantavel para obra tão meritória, e do intimo de
minha alma os estreito a todos n’um amplexo de fraternidade e igualdade, para a
unificação d’um só pensamento, para nossa honra e do berço querido e amado.
No mesmo diapasão, segue o longo balanço que Jeremias Pina escreve sobre as
realizações dos loriguenses em Manaus. Marcado por um discurso subjetivo, um tanto
prolixo e repetitivo se comparado com o acima exposto, reafirmando palavras de louvores à
organização associativa e à solidariedade entre os patrícios, destaca, com alguns poucos
dados factuais o que resultava do “esforço intelectual e material” realizados pelos
conterrâneos.
No bojo desse relatório, faz questão de destacar o papel de relevo no conjunto dessas
iniciativas desempenhado por Manuel Jesus de Pina, Joaquim Ambrosio de Pina e Augusto
Mendes de Gouveia e, com grande ênfase, para a importante colaboração dos “laboriosos e
rudes trabalhadores”.
Não deixaremos de fazer mensão aos donos das olarias e seus trabalhadores.
Loriguenses que habitam a margem esquerda do “Rio Negro” [leia-se Manaus].
Todos foram de um sentimento patriotico indestructivel, pois que sem o auxilio
d’esses laboriosos e rudes trabalhadores, que amassam o barro e fazem o tijolo que
o diabo compra e não paga, não se teria conseguido o empreendimento conseguido
em Loriga.
formação de uma típica comunidade étnica, ou diaspórica. 13 Por outro lado, mesmo que estes
dados não sejam apresentados nas páginas d’A Voz de Loriga de maneira suficientes para a
construção das genealogias familiares, eles não deixam de sugerir a existência entre os
loriguenses de Manaus e Belém de uma poderosa interligação de laços familiares, formando
verdadeiras “superfamílias” que, no fundo, assumiam a liderança do movimento, reservando
a Jeremias Pina a condição de “guardião da tradição” e da mobilização vernácula necessária
para tal fim14.
Funções que Jeremias Pina esteve a cumprir exemplarmente em todos os momentos
que encontrou condições de exercê-las enquanto intelectual e homem de letras, quer quando
fazia em suas polêmicas, arvorado em pretensa condição de suprema magistratura, dando “a
Cesar o que é de Cesar, pesando na balança da Justiça o proceder de cada um”; quer em seus
apelos morais e cívicos para cobrar e/ou enaltecer a união entre todos os compatrícios. Alem
disso, não lhe faltava sensibilidade para construir narrativas sobre a sua Loriga distante,
“verdadeiro paraizo de sonhos dourados”, “terra amada” que supunha, de maneira
messiânica, ser “predestinada a um grande destino”. Seu artigo “O Sentimentalismo” é uma
peça documental exemplar de como, a partir das suas aparentes desmedidas subjetivações e
elocubrações poéticas, procurou conferir sentido concreto às suas representações sobre sua
terra de origem e, como tal, o artigo deve ser visto não como invenção ou puro devaneio
intelectual, antes, porém, como mais uma estratégia de mobilização comunitária colocada em
prática por Jeremias Pina, muito próximo da compreensão de Anthony Smith sobre o papel
do intelectual no âmbito das etnias “laterais”, e bem mais de acordo com o que Benedict 121
Anderson chamou de uma “comunidade imaginada”, cuja definição já foi avançada em nota
do primeiro capítulo.
13 Smith (1997: 36) define como sendo seis, os atributos principais que são partilhados no interior de uma
comunidade étnica, a saber: “Um nome próprio colectivo; um mito de linhagem comum; memórias históricas
partilhadas; um ou mais elementos diferenciadores de cultura comum; associação a uma terra natal específica; um
sentimento de solidariedade em sectores significativos da população”.
14 Smith analisa a importância do papel dos intelectuais na mobilização vernácula no âmbito das etnias “laterais”.
(Ibidem: 83 a 90).
Do outro lado, uma voz vibrante, toda nupcial, que parece vir do infinito, baixando
sobre a terra, rumoreja aos ouvidos:
As donzelas são mui puras,
Como as flores da primavera!
O poder da pedra d’Era
Faz prodigios ás criaturas,
D’ella depende a minha sorte,
N’este valle de penar! penar!
Na vida até á morte.
Só quero amar! amar!
Entre as vozes poéticas d’estas almas puras, os rapazes, entregues aos seus
afazeres quotidianos, uns de sachar ao hombro em demanda do seu pomar, outros
repenicando canções na flata, dando-lhes umas notas amorosas, lá vão elleseleso
coração bafejante, com o pensamento preocupado com o que ha de ser a sua
companheira no amor conjugal.
Loriga foi predestinada a um grande destino, porque a indole do seu povo é a
encarnação viva do sentimentalismo; lá estão os velhos, os moços, para atestar o
que é formação psichologica d’esse grande povo.
Á todas as horas, muito principalmente ao sahir e por do sol, nos caminhos das
herdades, se cruzam velhos, moços e donzelas, numa conversação ingênua, de
verdadeiros philosophos.
Operarios de nove fabricas movidas por possantes rodas, á força d’agua, artistas de
todas as esferas, camponezes e camponezas e tudo mais que compõe a alta roda de
Loriga – a elite – lá se encontram nos seus misteres de um viver fraternal, e aos
domingos e dias santos se cruzam e fazem grupos que se destacam aqui e ali,
formamdo um conjunto todo de harmonia, com que retribuindo á prodiga
majestade do seu infinito firmamento, os belos dias de uma primavera em flôr,
enebriando-os com a aragem subtil, aromatica, acalentadora e fortificante.
É um verdadeiro paraizo de sonhos dourados! D’um lado ouve-se o acorde
122 sentimentalista d’uma guitarra, do outro a nota alegre d’uma viola, penetrando ao
mesmo tempo, em nossa alma adormecida n’aquelle conjunto harmonioso, o vibrar
melancolico d’um violão, que gemebundo executa um fado sepulchral.
.................................................................................................................
Não é só nisto que encarna a alma meiga e gentil d’este povo apaixonado que versa
o sentimentalismo do seu viver. N’este viver santo, fraternal, que alenta os
desiludidos d’uma existencia calcinada de espinhos, junto a um cruzeiro
antiquissimo, já denegrido pelo rugir das tempestades, que batem d’encontro aos
seus braços de conforto aos religiosos do logar, alguns rapazes estacionam ali,
versando ao desafio:
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Aqui está o sentimentalismo da alma Loriguense. Simples, ingenua, caracteristica
na poesia popular com que minoram os momentos de tristeza, não deixa de ser
bello, sublime, para os que causticados pelas peripecias d’uma vida martyr, que se
perde no turbilhão de vicios dos grandes centros populosos, se chega a envolver a
aquelle horizonte vivificante, encarnação viva das mais puras almas, longe da
corrupção que degrada e aniquila até morrer.
compatrícios residentes em Belém do Pará. É muito provável que, por esse motivo, o futuro
d’O Povo de Loriga, enquanto “Orgam da Colonia Loriguense em Manáos”, seja anunciado
logo no primeiro número como incerto e imprevisível, razão pela qual entendeu o seu
redator-chefe ser oportuno advertir e orientar de imediato os seus leitores em caso de um
eventual insucesso em relação ao novo jornal:
Não tendo nós resolvido ainda sobre a continuada circulação d’este jornal,
pedimos aos interessados o obsequio de entenderem-se com o nosso conterraneo
e amigo, sr. Antonio Ambrosio Pina, ou remeterem suas correspondencias para a
caixa no Correia, n. 528.
Se a incerteza quanto ao futuro do jornal O Povo de Loriga era um fato assumido por
Jeremias Pina e seus colaboradores, o mesmo não se pode dizer em relação ao seu lema,
princípios e objetivos. Pautados pela mesma filosofia que orientou o Echos de Loriga na
cidade de Belém, a única “novidade” é que essa nova iniciativa não se faz por ato solitário ou
vontade própria do seu redator, pois, segundo consta, vem lastreada pela íntima comunhão
de interesses com “a mocidade loriguense [que] de há muito vem empregando o seu esforço
e sacrifício para a verdadeira regeneração dos seus costumes”, em constante luta contra a
corrupção dos valores morais, “a degradação e oppressão que por formas diversas
apparecem dia a dia n’essa sociedade humana em que os dogmas ou seitas de todas as
naturezas lançam as suas garras de anniquillamento e obstrução”. Princípios em que
Jeremias Pina reiterava insistentemente em todas as oportunidades que se fazia necessário
conclamar pelas responsabilidades sociais e patrióticas dos conterrâneos efetivamente 123
comprometidos com o futuro “d’esse pedaço da comunhão portugueza, d’essa particula de
terra em que nasceu o grande Viriato, que deu principio a historia gloriosa de nossa Patria”.
Seu idealismo persistente retorna desta feita com bastante ênfase na sua grande ideia
utópica de que “Loriga se prepara para destaque nos grandes feitos, esperando de futuro
elevar-se a estrella fulgurante nos destinos da liberdade da Patria e do livre pensamento”.
Uma utopia cuja legitimidade e autoridade de dizer vêm da força representativa dos feitos
loriguenses desterrados em “paragens longínquas” de além-mar, e que tudo fazem em
benefício da promoção e do “progresso do seu berço querido”.
Distinguindo-se entre tantas colónias que se disseminam pelo Brazil, pela sua
grandeza d’alma na pratica do Bem, nas causas que pedem o cumprimento sagrado
do dever, elles, estes moços em que brota todo o fervor d’um patriotismo que
dignifica, procuram dar ao seu berço o que a descuração de quem os representa
nos poderes competentes, negam dar-lhe.
Um traço distintivo que não remete obviamente para uma identidade essencial entre
os loriguenses, mas construído e habilmente manipulado por Jeremias Pina como um dos
elementos preferidos para legitimar e colocar em prática a sua ação social. Estratagema
usual percebido por sociólogos contemporâneos para realçarem o complexo jogo identitário
entre grupos étnicos no decurso de suas interações sociais, cuja finalidade é “exprimir a
solidariedade ou a distância social, ou para as vantagens imediatas que o ator espera obter
pela apresentação de uma identidade étnica”, em precisas e determinadas circunstâncias em
que a ênfase identitária se faz imprescindível nesse jogo, segundo os argumentos que
Poutignat e Streiff-Fenart utilizam para conceituarem a própria noção de saliência ou realce
entre grupos étnicos e comunidades imigrantes.
Evidentemente que Jeremias Pina não era uma voz isolada e pouco representativa
entre os seus patrícios loriguenses. Enquanto sujeito que atua em campo social específico,
com ações concretas e conscientes que orientam sua forma de existência e de pertencimento,
torna-se num indivíduo importante, muito próximo daqueles imigrantes “com um
posicionamento central e que mantém um elevado nível de contactos com a terra natal,
funcionando como nódulo de intersecção de um circuito por onde passam informação,
recursos e identidade”15. Por outro lado, sua posição social de destaque, reforçada por outros
fatores convergentes, a exemplo de encarnar na sua discursividade uma história comum de
desterro, integrar na sua prática quotidiana postura de uma linhagem familiar que havia
reunido prestígio e fortuna no país de acolhimento, faziam-lhe uma personalidade de relevo
dentro e fora de seu grupo de pertencimento, como integrante de uma rede social bem mais
vasta16. E se não bastassem estes atributos sobre sua personalidade, a sua condição de
letrado e homem de imprensa aumentava ainda mais a sua proeminência social, conferindo-
lhe prerrogativas de porta-voz da colônia, com legitimidade suficiente para advogar em
defesa das causas coletivas. E O Povo de Loriga, nome que emprestou para este seu novo
jornal, veio ao encontro de seus anseios que, diga-se de passagem, não eram exclusivamente
seus como aparentemente pode transparecer, mas compartilhado por um conjunto
significativo de loriguenses residentes em Manaus e Belém. Agora, a contundência das suas
palavras não podia ser confundida com os Echos de Loriga ou com A Voz de Loriga, mas por
um outro nome carregado por uma abstração bem mais poderosa: O Povo de Loriga. E será
em nome deste “povo” que Jeremias Pina fará a justificação para suas mais diversas e
radicais críticas.
15 Para uma compreensão do conceito de campo social transnacional enquanto “conjunto encadeado de múltipl as
redes de relações sociais através das quais se trocam, organizam e transformam, de forma desigual, ideias, práticas e
recursos”, com a consequente distinção entre formas de existência e formas de pertença, cf.: LEVITT e SCHILLER,
(2010: 35).
16 Neste particular, Jorge Fernandes Alves sugere o uso analítico da noção de “rede”, alertando que: “Isto implica
que, ao nível metodológico, se desça ao nível do emigrante e do grupo familiar para seguir trajectórias e
dependências, se restrinja o espaço de análise para a intensificar e delinear relações mais complexas, sem deixar de
articular os resultados assim obtidos com os factores estruturais e históricos, pois não podemos esquecer a
dimensão económica ou, por exemplo, o simples facto de que é a construção da nação e da sua linha de fronteira que,
em última instância, define a emigração, afinal um movimento entre dois espaços de referência”. (ALVES, 1998: 413-
424).
Francisco Ferrer, comungava com ideais antimonarquicos e anticlericais. Para ele, “O rei é o
mal, a vergonha, o opprobio e dagradação de um povo”, em contraposição ao cidadão que “é
o bem, a piedade, a benevolencia e o salvador d’uma Patria. Porque com uma só bala, faz voar
os miolos d’um rei, resgatando a Patria ás mãos do verdugo”. Mesmo que lamente a ausência
desse ato patriótico e heroico, não deixa de conjecturar sobre o que brevemente irá
acontecer com as monarquias portuguesa e espanhola, quando diz:
A natureza está muda. Assiste calada ao baquear das instituições corruptas da
Peninsula Eberica. A Hespanha estorce-se em convulsões fatidicas ás mãos de
Affonso XIII, e Portugal agonisa desde o despotismo de Carlos I”.
Na sua perceção, havia fatos novos, uma nova conjuntura que se esboçava com o
entendimento que tinha da proximidade da completa derrocada da mornaquia em Portugal,
“uma questão de tempo”, então timidamente profetizada nas páginas do Echos de Loriga, em
meados de 1909, mas agora, um ano depois, de forma resoluta e incisiva. Por outro lado, a
emergência de uma intensa mobilização republicana em Manaus e Loriga, assegurava-lhe a
certeza de se tratar de um momento especial, oportuno e adequado para aprofundar o seu
radicalismo e avançar destemido com o seu ideário. Em Manaus, mesmo sem filiação
político-partidária, fez-se solidário com os republicanos patrícios, divulgando
entusiasmadamente a notícia de que eles haviam enviado uma corajosa mensagem de
solidariedade ao lider dos republicanos em Portugal, deputado Afonso Costa:
vergonha o dizemos, liberticidas e patricidas”18. E avança para espicaçar com mais revolta a
monarquia e as suas instituições jurídicas formais:
Por fim, reitera sua convicção em relação ao breve fim da agonizante monarquia em
Portugal: “Esta monstruosidade da Monarchia é da ultima hora. Mas daqui á ultima hora da
Monarchia – dessa réles rameira que arrastou á prostituição esse infeliz Portugal – não dista,
um decenio de mezes”.
Outra notícia lisonjeira que lhe havia enchido de entusiasmo e orgulho foi a criação
em Loriga do Club Recreativo Luzo Brasileiro, no dia 12 de junho passado, tendo à frente da
sua fundação um número expressivo de membros da colônia loriguense no Pará e Manaus,
que lá se encontravam. Diz a notícia:
O club tem por presidente o distincto professor do sexo masculino n’aquella villa,
sr. Pedro d’Almeida, o qual, no momento da inauguração aliciou, por espaço de
uma hora, em oração brilhantissima, os resultados beneficos que aos povos traz o
conjunto de edeas pela esphera associativa, enaltecendo os sentimentos dos
loriguenses repatriados quando se trata de emprehendimentos nobres e 127
altruisticos no levantamento benefico d’um povo por muito tempo vilipendiado e
opprimido, negando-lhes os tiranos e sectarios do poder e do dinheiro, a moral e
rejovenecimento progressivo. 19
Doravante, a natureza tinha voz, já não mais se via calado “o baquear das instituições
corruptas”, com o povo nas ruas para manifestar seus sentimentos, provavelmente um bom
sinal percebido por Jeremias Pina para investir na radicalização dos ânimos. E não havia
melhor espaço para fazê-lo do que através das próprias páginas d’O Povo de Loriga. E o
melhor pretexto para dar vasão ao seu anticlericalismo, um tanto contido nas experiências
anteriores, era avançar seus ataques de maneira radical e irreverente contra os jesuítas, uma
ordem religiosa que nutria particular ódio mortal pela sua forte presença “nefasta” na
“realeza-clerical”, e “perniciosa” influência que exercia na própria vila de Loriga. No artigo
que escreveu sobre “O martyr do bem”, uma homenagem póstuma a Francisco Ferrer, deu
início aos seus ataques contra os “sectarios de Loyola”, concebidos como membros de uma
“seita sem dignidade e sem brio, vampiros da honra, do dinheiro, da liberdade e da vida
preciosa dos apostolos do bem e da livre consciencia, do direito e da justiça, das crenças
positivas e da tranquilidade da familia”21. Em seu artigo “Almas Podres”, escrito “com
esmagador despreso” no segundo número do Povo de Loriga, volta a atacar “os Loyolas das
trevas inacessiveis do Terreiro do Fundo”, “os Torquemadas que infelismente Loriga viu
nascer”, com o objetivo de alertar os conterrâneos sobre o perigo que representam “os
irmãos da seita Negra, miseraveis instrumentos da decadencia dessa pobre patria”.
Essas féras que ahi vedes, queridos conterraneos, jamais tiveram a noção da
consciencia que todos os bons possuem e poem em pratica.
Entregaram-se aos infames sectarios da tal Companhia de Jesus, fingindo que são
bons, para se acobertarem dos males que teem e continuam a espalhar. São esses
jesuitas degredados ao mais torpe despreso dos caracteres altivos, irregulaveis
poltrões de batina que querem amesquinhar pessoas de bem que valem mais pela
sua vida moral do que seu ouro e beatices. Ernegumenos ferozes onde o odio
armou a tenda, e o perdão jamais teve guarida. 22
Sua luta contra o jesuitismo não conhece trégua. Dizendo-se acusado de maçon, sob
a ameaça permanente da excomunhão e vítima “após tantas luctas ardilosas” em torno do
seu nome, defende-se com um artigo que dá o título: “Padre que prevarica”. Na verdade, um
128 libelo contra o páraco de Loriga, no qual Jeremias Pina se mostra mais destemido e insolente.
Quem de ha longo tempo vem residindo em Loriga, não será difícil encontrar a
qualquer hora do dia ou da noite, um typo baixo, acaçapado, rosto deslavado ao
poder de uma navalha e ás mãos do barbeiro, aliado á desfaçatez e cynismo que o
caracteriza, ao alto da cabeça corôa de presbytero, com cartola posta ao de leve e
provocadora ao mais tranquiberno gaiato, bengala em attitude de senhoril que
poderá quebrar as proprias costellas de seu dono, emfim, ao seu todo um
verdadeiro manequim para gaudio de sua propria presunção.
É um padre marôto, vadio, notivago que agora apresenta-se na téla escorado a uma
esquina, esperando a penitente que ha pouco foi ao confessionario lavar a alma por
ter faltado á honra precisa com o almoço ao marido, para attender a outros
mesteres do lar domestico, e d’aqui a pouco é um sacerdote que na egreja
apresenta uma cara beatifica e de santo, mas a um dominuns-Vobiscum, enganando
a fé do crente que o ouve, furta uma piscadela d’olho á amante, que n’um logar
certo da egreja com olhar afogueado lhe assiste a todos os movimentos.
.................................................................................................................
Esse padre é um verdadeiro rebento do mal, e vae mostrando com suas doutrinas
falsas e ôcas, bebidas nos casarões sacros da cella e do confessionario, que o povo
deve preparar-se para espulsal-o do seu seio, pois não é raro vêl-o rodeado das
beatificas e santas mulheres, a toda hora do dia e da noite, mulheres estas que se
deixam imbuir ás suas doutrinas lamorosas, sem pejo á sua honra de mãe e
esposas.
O Monsenhor glutão que desavergonhadamente se lança no atascadeiro do
lupanar, vae ver com a sua lambarisse se põe o olho nú, e das suas lambisgoias. 23
Crítico ferrenho do clericalismo e das instituições clericais, Jeremias Pina não era um
ateu na acepção precisa da palavra. Vez por outra, quando inquirido sobre a razão das suas
críticas aos jesuítas, gostava de responder taxativamente, e aproveitava da oportunidade
para reafirmar a sua devoção por Deus e Jesus, de forma sublime e muito particular. Disse ele
certa vez:
Não sei odiar. Sei castigar os maus, os despotas com esmagador despreso.
É assim que vos trato porque mereceis muito mais desdem.
Conheceis Deus? Conheceis o Martyr do Golgotha? Não! Pautae a vida pelos actos do Nazareno
e tereis alcançado o conhecimento de Deus. Deus é a consciencia pura e limpida. Deus é a
virtude personificada no bem geral e na caridade espontanea! 24
Jeremias Pina também não era um anarquista ou libertário como tantos outros
gráficos, tipógrafos e jornalistas patrícios foram. Acreditava nos poderes constituídos e nos
homens públicos de uma forma tal que estampou em toda a primeira página do segundo
número do Povo de Loriga uma enorme gravura do senador pelo estado do Amazonas, Jorge
de Moraes, com os seguintes dizeres:
Seu longo artigo como “homenagem d’O Povo de Loriga” pela data do aniversário do
senador Jorge de Moraes ocupa nada menos do que três das cinco colunas de toda a segunda
página, e vem todo ele ornado por uma sucessão de palavras de louvores, realçando traços
de sua carreira profissional enquanto médico e da sua trajetória política recente, escritos
como expressão do que considera “o dever indeclinavel de nossa admiração aos seus dotes
indistructiveis como honesto, virtuoso e parlamentar, caracter insinuante, e finalmente
interregimo deffensor das causas d’este infeliz povo que tantas vezes tem sido victima da
ignomia dos mandões que nasceram para destruir e não edificar”. Não menos laudatório é o
artigo que compõe e publica na mesma página para noticiar a passagem do aniversário do
então governador do estado do Amazonas, Antônio Bittencourt, transcorrido no dia 23 de
julho.
Suas manifestações de elogio para com determinados políticos do estado do
Amazonas era uma manifestação inequívoca de que Jeremias Pina, mesmo na sua condição
de imigrante português, se achava com pleno direito de interagir politicamente e manter-se
integrado no país de acolhimento, como de fato também fizeram vários de seus
conterrâneos, uns até mesmo de forma estrondosa e populista, como se depreende desta
pequena notícia:
Apezar do exmo. sr. dr. Jorge de Moraes achar-se ausente d’esta capital, os seus
admiradores não se esquecem da data do seu anniversario natalicio, e por isso,
hoje, os srs. Pina & Ferreira, da casa commercial A Brasileira, farão grandes
demonstrações de apreço ao ilustre senador.
A casa commercial A Brasileira, está hoje sobebamente ingalanada, tendo na
fachada principal uma extensa facha de pano de linho, na qual se divisa, em letras
salientes, o seguinte:
“Dr. Jorge de Moraes.
Salvé 18 de Julho”.
A noite o edificio será illuminado a bações venesianos e demais conjuntos de forma
a caracterisar uma illuminação dos costumes do minho, e entre as manifestações
de apreço ao ilustre parlamentar, será distribuida esportulas aos pobres. 25
Vale ressaltar que, imiscuir-se na vida política do país de acolhimento, não se torna
para o imigrante uma prática deslocada ou aberrante, mas parte de um jogo de interações
entre formas complexas de existência e pertença em contextos de campos sociais
transnacionais26. Isto é, essa dupla ligação com a terra natal, e o novo espaço de acolhimento
não caracteriza fenômenos diametralmente opostos ou excludentes, quando muito, variações
de sentidos e na intensidade do ritmo das oscilações entre um lugar e outro, ou seja:
É pois chegada a ocasião dos homens de Loriga que se julgam colocados nas aras
de Chefes, mostrarem que são qualquer cousa, trabalharem pela instalação da luz
electrica ao poder do seu ouro ou de sua influencia politica perante os poderes da
nação, e dado isso, mostrarão que pensão já d’outra forma, compenetraram-se dos
deveres a cumprir, e depois, aqui nos encontrarão prontos com a nossa
colaboração em tudo que for útil ao berço, a si e a todos que vivam na orbita que
nos diz respeito.
Mas quem são concretamente esses “nós” loriguenses até então alijados da
participação política em seu torrão natal? Para o caso específico dos loriguenses em Manaus,
o jornal O Povo de Loriga oferece indicações importantes que permitem perceber algumas
características sobre o perfil sócioeconômico desses “expatriados das Serras”.
dos loriguenses. No rio Solimões, José Mendes Cabral era um afortunado comerciante. No
distante rio Juruá, na fronteira brasileira com o Peru, Abílio Duarte Pina Reis tinha um
importante estabelecimento comercial na cidade de Remate de Males.
Nessas mesmas colunas, há informações importantes dando conta que havia aguns
loriguenses trabalhando como empregados no comércio. Fato também importante é que as
transações comerciais eram preferencialmente realizadas entre os próprios loriguenses,
como, por exemplo, nestas duas pequenas notícias:
O sr. Abilio Duarte dos Santos, nosso amigo e conterraneo, adquiriu por compra o
carro de gelo de propriedade do nosso conterraneo sr. Antonio Mendes Cabral.
**
O sr. Antonio Mendes Cabral comprou a olaria que pertencia ao sr. Abilio Duarte
dos Santos, a qual tinha sido comprada, ha pouco tempo, ao sr. Joaquim Pina
Monteiro.
O que devemos entender por minorias comerciantes? Não devemos pensar que se
trata de minorias que vivem exclusivamente do comércio; se interpretássemos o
termo num sentido tão restrito, provavelmente nunca teriam existido minorias
comerciantes. Entende-se por minorias comerciantes aquelas para as quais o
comércio constitui uma actividade económica dominante, o que implica que uma
parte relativamente grande do grupo étnico viva do comércio, que este
desempenhe uma função importante na construção da imagem do grupo, tanto
para o exterior como para o interior da própria minoria, e que essa atctividade
tenha uma influência importante na cultura do grupo. Faz pouco sentido traçar
fronteiras rígidas impondo, por exemplo, o requisito de que uma dada
percentagem do grupo étnico tenha que estar activa no comércio para poder ser
designada como minoria comerciante. No modo como aplico o termo, há, por
conseguinte, exemplos mais e menos óbvios. (VERMEULEN, 2001: 109).
É muito provável que o jornal O Povo de Loriga não tenha ultrapassado os seus
quatro números iniciais, e tenha sido interrompido bruscamente e pela mesma razão que
28As relações dos loriguenses com as atividades comerciais são históricas e remontam a meados do século XIX,
quando muitos deles – chamados de cartagenos – andavam pelo país afora vendendo peças de lã feitas à mão,
principalmente em regiões do Norte de Portugal.
levou ao fracasso o Echos de Loriga, em Belém. Seja como for, com o fim d’O Povo de Loriga,
com ele também se encerra um interessante capítulo da história da imprensa loriguense na
Amazônia. Desaparecidos do cenário jornalístico por mais de uma década, os loriguenses só
reaparecem através da sistemática colaboração que Joaquim Mendes Simão e Francisco
Mendes Campos emprestam ao Jornal Lusitano e A Colónia, como vimos, editados por
Godinho Ferreira, na cidade de Belém, durante a década de 1920. O primeiro deles, Joaquim
Mendes Simão, era provavelmente nascido em Fontão, Serra da Estrela, no final do século
XIX e emigrado de lá muito jovem e sem qualquer escolaridade. Em Belém, viveu vida
humilde como empregado comercial, depois vendedor ambulante de frutas até tornar-se
proprietário de uma pequena mercearia no Mercado de Ferro da cidade. Autodidata, com
acentuado pendor para as letras, em especial para a poesia, participou de todas as
associações portuguesas no Pará, chegando, inclusive, a exercer em algumas delas funções
diretivas. (BRITO, 2000: 198-199).
Nas páginas do jornal A Colônia, Mendes Simão experimentou um profundo
desconforto. Primeiro, quando foi acusado indevidamente de ter sido o autor das críticas
contra o jornal A Voz de Loriga29, e ter que exigir a publicação de nota esclarecedora:
Posteriormente, quando identificou a autoria, teve que travar uma acirrada polêmica
com o conterrâneo Albano Fernandes Gomes que havia usado o pseudônimo de “Vu Fangue”
para denegrir o corpo redacional do jornal A Voz de Loriga. A partir de então, Mendes Simão
começa a enviar diretamente de Belém as suas colaborações para o jornal “A Voz” que acata e
publica na íntegra a sua resposta contra o conterrâneo Albano Fernandes Gomes. A partir
daí, o jornal passa a publicar outras colaborações de Mendes Simão, em especial alguns dos
seus sonetos. O poema “Canção do Exílio” era um tipo de colaboração potencialmente
problemática para ser publicada facilmente nos jornais da colônia portuguesa editados por
Godinho Ferreira, pelo inconveniente, na altura, de realçar as dores da partida, as agruras
vividas “em terra estranha”, ou redizerem sobre as dores da saudade da terra natal e da
infelicidade “de quem a Pátria não espera”. Uma representação dos seus sentimentos e
29 A Voz de Loriga foi um jornal bimensal efêmero fundado na pequena povoação de Loriga, na Serra da Estrela,
Portugal, em 11 de maio de 1924, tendo como diretor e editor Antonio Cabral Leitão e como redatores Joaquim de
Moura Simão Junior e Carlos Fernandes dos Santos. Tinha por subtítulo: “Defensor e Propagandista de Loriga e
Serra da Estrela”, com uma linha editorial assumidamente bairrista. Seu principal objetivo era “pugnar pelos
interesses de Loriga, combatendo, louvando e incitando estes e aqueles, tornando-nos assim algo dignos desta nossa
querida terra”. O jornal teve larga aceitação na cidade de Belém do Pará, tendo como representante (delegado) e um
de seus principais propagadores o comerciante e também loriguense José de Brito Crisostomo.
daqueles outros loriguenses que tomavam a consciência que o sonho em busca da “árvore
das patacas” era completamente inatingível.
Canção do Exilio
J. M. Simão
E é dentro dos limites desse amor pátrio, que eu idolatro e venero a nossa Loriga
de ontem, de hoje, de sempre, onde ficaram os meus primeiros sonhos e as minhas
primeiras ilusões, onde aprendi a amar-vos e a querer-vos com o estremoso
carinho de irmão. Eu vos bendigo e vos louvo, a vós que trabalhais na cruzada do
seu esplendor, que a quereis grande, imensa, inimitável, - essa Loriga que para nós
tem crepúsculos de oiro, auroras de alegria, noites silenciosas de luar majestoso,
lindo olhares, fisionomia esbelta que sedusem como o canto das sereias. E como é
belo evocar, nas sombras tristes de uma saudade que jamais se estinguirá, todas
essas reminiscencias que só o espírito de quem dela se ausenta, á aventura, para
correr, mundo em fóra, atrás dos desenganos, fatais, impressionantes, só esse
espirito é capaz de sentir uma lagrima ardente, emocionante, onde se espelhem
desgostos e tambem alegrias, sofridas e sentidas sob o azul do firmamento, ou
entre as quatro paredes de um gabinete de trabalho.31
Diga a seus filhos, minha senhora, que vir para o Brazil, é, nada menos, do que vir
amargar a crueldade do destino; passar noites em claro evocando as doces
Suas críticas indignadas não ficam somente contra a inserção das mulheres no
mundo do trabalho, alcançam também as novas imagens que elas passam a adotar no espaço
público, dentre os quais, destaca temeroso o “recentissimo uso da bengala, profanando as
mãos setinosas e aveludadas das meninas”, ou a prática do “corte traiçoeira dos cabelos,
pautados á ‘la garçone’, um desdouro abominável”. E conclui: “Sentiu-se a invasão da
epidemia e o que se vê è uma detestavel promiscuidade, que não permite distinções”.
Segundo Maria Helena Santana, quando a moda do cabelo curto à la garçonne ou
joãozinho aportou em Portugal no início do século XX, esse tipo de ousadia, então
característica que singularizava as meninas rebeldes da época, também foi fortemente
criticado pelos segmentos conservadores da sociedade, principalmente àqueles ligados à
igreja católica que entendiam tratar-se de uma prática nociva, um verdadeiro atentado
contra a decência feminina. (Cf. SANTANA, 2011: 428-452). Assim, não é estranho que um
ano antes de Mendes Campos lançar em Loriga a sua campanha contra a moda feminina
cosmopolita que observava indignado em Belém do Pará, o jornal português A Batalha, numa
edição de 1924, tece também comentários pouco elogiosos ao novo look da mulher moderna.
(SANTANA, 2011: 444).
A derrocada da economia gumífera na Amazônia impôs o retorno de muitos
loriguenses, e o modelo de organização tipicamente patriarcal, fundado em complexas
alianças familiares que havia por décadas cimentado o sentimento de coesão e solidariedade
grupal entre eles, foi abruptamente desmantelado. Jeremias Pina, um de seus principais
porta-vozes, perde visibilidade no cenário jornalístico com o fim dos seus jornais. Joaquim
Mendes Simão e Francisco Mendes Campos, não encontram mais sobrevida na imprensa com
o término do jornal A Voz de Loriga (1925) e do jornal A Colónia, em 1927.
Dez anos mais tarde, em 1937, os loriguenses residentes em Belém do Pará
somavam um pouco mais de uma centena, um percentual insignificante se comparado com
os milhares do período áureo da borracha na Amazônia. Mesmo assim, conseguiram criar,
naquele ano, o Centro Loriguense, sob a presidência do infatigável Joaquim Mendes Simão,
como organização afirmativa de solidariedade e pertencimento com as suas origens. Mas os
tempos são outros. E a “voz dos expatriados das Serras” que outrora reverberava
publicamente pelas iniciativas de Jeremias Pina, fica doravante restrita em confabulações
íntimas que não ultrapassam aqueles limites. Quando muito, e vez por outra, ecoa para além
dele através da pena solitária do compatrício Eugênio Leitão de Brito, que manteve por
várias décadas sua colaboração nos jornais diários Folha do Norte e O Liberal, mas com 137
temática ampla versando “sobre assuntos da vida de Portugal”. (BRITO, 2000: 147-148).
Referências:
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Segundas Jornadas de História Local, Fafe, Câmara Municipal, 1998, p. 413-424.
BRITO, Eugênio Leitão de. Os Portugueses no Grão Pará. Belém: Conselho da Comunidade Luso-
Brasileira do Pará, 2000.
LEVITT, Peggy e SCHILLER, Nina Glick. “Conceptualizar a Simultaneidade: Uma visão da sociedade
assente no conceito de campo social transnacional”. In MARQUES, M. Margarida. Estado-Nação e
Migrações Internacionais, Lisboa, Livros Horizontes, 2010, pp. 27/61.
MATTOSO, José (Dir.) História da Vida Privada em Portugal, volume sobre “A Época Contemporânea”,
organizado por Irene Vaquinhas, Circulo de leitores e Temas e Debates, 2011, pp. 382/427.
SILVA, Susana Serpa. “Sonhos e ideais de vida. Sonhos privados/sonhos globais”. In MATTOSO, José
(Dir.) História da Vida Privada em Portugal. Vol.: A Época Contemporânea. Lisboa: Circulo de
leitores e Temas e Debates, 2011, p. 382-427. (Volume organizado por Irene Vaquinhas).
POUTIGNAR, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade - Seguido de Grupos Étnicos
e suas Fronteiras, de Fredrik Barth. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.
SANTANA, Maria Helena. “Estética e aparência”, in VAQUINHAS, Irene (coord.). História da Vida Privada
em Portugal: a época contemporânea. Lisboa: Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2011, p. 428-
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VERMEULEN, Hans e GOVERS, Cora. Antropologia da Etnicidade: para além de “Ethnic Groups and
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138