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JANUS 2014

3.3 • Metamorfoses da violência

Velhas ou novas guerras, eis a questão (I) Rita Duarte

A década de 1990 apresentou várias incógnitas que a autora também designa por ‘novas guerras’ cia organizada deixou de ser localizada, assumiu
aos cientistas de relações internacionais. Com o –, e que utilizamos aqui para apresentar melhor contornos regionais, e “envolve uma miríade de
clima de desanuviamento que se gerou com o este conceito. No seu livro “New and old Wars – ligações transnacionais, nas quais a distinção en-
fim da Guerra Fria, os primeiros tempos foram organized violence in a global era” (primeira edi- tre interno e externo, entre agressão (ataque do
de optimismo, com a esperança depositada numa ção de 1999 e segunda de 2006), Kaldor analisa exterior) e repressão (ataque de dentro do país),
Organização das Nações Unidas que se esperava a forma como decorriam os conflitos existentes, ou mesmo entre local e global, são difíceis de
mais interventiva e menos refém das estratégias bem como a forma como com eles lidava a comu- identificar”.
do mundo bipolar que acompanharam a sua exis- nidade internacional7. Kaldor realça também que a consciencialização
tência até então. A intervenção no Iraque de 1991 Para que surja ou decorra uma ‘nova guerra’, dos Estados, durante a Guerra-Fria, em como es-
pareceu ser um sinal dessa colaboração interna- Kaldor destaca a necessidade da existência de um tes já não podem fazer a guerra individualmente,
cional. Contudo, este optimismo rapidamente se contexto próprio: o contraste com o pensamento levou à “transnacionalização do monopólio legí-
desvaneceu com o agravamento dos conflitos na dominante e prevalecente durante a Guerra Fria timo do uso da violência organizada [para organi-
Somália (em 1993 registou-se o assassínio de 43 sobre o próprio conceito de guerra; característi- zações regionais e internacionais]” e isto, quando
capacetes azuis da UNOSOM), na Bósnia (1992- cas específicas no conflito, conjunturas nacionais aliado ao enfraquecimento do Estado a nível in-
1995) ou o genocídio do Ruanda (1994). e internacionais particulares; e uma vasta rede terno e à consequente privatização da violência,
A violência extrema que se registou nestes confli- global de relações, de pendor económico, ideo- contribuiu igualmente para o aparecimento das
tos levou alguns académicos a identificar caracte- lógico ou outro. Nenhum destes factores poderá ‘‘novas guerras’’.
rísticas e contornos nos conflitos pós-Guerra Fria ser considerado isoladamente como causa de
como sendo distintos das características e con- uma ‘nova guerra’ e é a interacção destes factores Objectivos, métodos e financiamento
tornos dos conflitos decorridos nos últimos cem que materializa este novo tipo de conflitualidade das ‘‘novas guerras’’
anos. É em sequência destas análises que surge como uma ‘nova guerra’. Para Kaldor uma ‘nova guerra’ pode ser caracte-
a designação de ‘‘novas guerras’’, tendo Donald rizada segundo os seus i) objectivos, ii) métodos
Snow, em 1996 (citado por Edward Newman), O que é uma ‘nova guerra’? de guerra e iii) formas de financiamento.
sido um dos primeiros a referir que “a principal Em termos genéricos, Kaldor distingue as ‘novas No que diz respeito aos objectivos, Kaldor afirma
diferença entre os sistemas internacionais da guerras’ das anteriores porque as diferenças en- que nas ‘novas guerras’ os objectivos dos seus ac-
Guerra Fria e do pós-Guerra Fria era o padrão de tre “guerra (geralmente definida como violência tores passaram a ser as políticas de ‘identidade’,
violência que se tinha desenvolvido no sistema entre Estados ou grupos organizados por moti- em contraposição às políticas de ‘ideias’ (que en-
pós-Guerra Fria”1. vos políticos), crime organizado (violência con- globam um processo de construção de socieda-
Sendo recentes, as ‘novas guerras’ têm também duzida por grupos de organização privada, com de, próprias das guerras de Clausewitz). Ou seja,
sido designadas como ‘guerras da pós-moderni- objectivos privados, normalmente o lucro finan- as reivindicações de poder estatal são feitas com
dade’, ‘conflitos de baixa intensidade’, ‘guerras ceiro) e violação massiva de direitos humanos base numa identidade particular, étnica, racial ou
privatizadas ou guerras informais’2, mas também (geralmente por parte dos Estados ou por grupos religiosa – que designa como “rótulos”, baseados
conflitos ‘contemporâneos’, ‘modernos’3 ou politicamente organizados contra indivíduos)”, na dicotomia ‘nós’ e os ‘outros’ – geralmente
‘guerras degeneradas’4. Entre os teóricos defen- deixaram de ser tão definidas. voltadas para um passado glorioso, real ou que
sores das ‘novas guerras’, há igualmente algumas Ao utilizar o termo ‘guerra’, Kaldor tem o intuito gostariam que tivesse acontecido (caso de socie-
diferenças, consoante a tónica incida mais sobre de realçar o pendor político do uso da violên- dades colonizadas que viram interrompido um
o financiamento dos conflito ou sobre o contexto cia nos conflitos actuais; e com o termo ‘novo’ processo de evolução próprio).
envolvente. Mark Duffield, por exemplo, define refere-se ao contraste com o conceito de guerra
as ‘novas guerras’ “como uma forma de guerra tal como foi identificado por Clausewitz. Esse
em rede”, que “não são territoriais nem estatais”: conceito, predominante desde o século XVIII,
“guerras que utilizam redes cada vez mais priva- serviu para “a construção do Estado moderno ter-
tizadas com actores estatais e não-estatais, que ritorial, centralizado, racional e hierarquicamente
[...] as diferenças entre guerra
actuam para além das competências convencio- ordenado”. Neste cenário os Estados eram os úni- [...], crime organizado [...]
nais de governos definidos territorialmente” e cos actores, “detinham o monopólio legítimo do e violação massiva de direitos
que “atenuam as distinções entre pessoas, exér- uso da violência organizada” e eram motivados humanos [...], deixaram de ser
citos e governos”5. por “um fim politicamente definido: o interesse
tão definidas.
Para outros teóricos, a ênfase dos conflitos do Estado”, o que, segundo a autora, não se veri-
actuais é dada à motivação dos actores, que se fica nos actuais conflitos.
dividem entre actores que reivindicam direitos Além disso, e à semelhança da maioria dos au-
políticos e pretendem diminuir sentimentos de tores das ‘novas guerras’, Kaldor refere que no A segunda característica é o método utilizado
ressentimento colectivo, e actores movidos por novo contexto de pós-Guerra Fria os conflitos para fazer a guerra, com padrões de violência
pura ganância privada6. intraestatais diminuíram e, em contrapartida, elevados e em que os efeitos secundários das
Entre diferentes ênfases e diferentes abordagens, os conflitos interestatais aumentaram significati- anteriores guerras, as vítimas civis, se tornaram
Mary Kaldor, professora de Global Governance vamente. Neste contexto, Mary Kaldor utiliza o no alvo principal dos actores bélicos. Segundo
na London School of Economics, apresentou conceito ‘nova guerra’ por não considerar apro- Kaldor, em vez do confronto militar convencio-
uma estrutura bastante delineada sobre a sua vi- priado a designação de ‘guerra civil’, ‘guerra in- nal directo, utilizam-se técnicas de guerrilha e
são relativa ao “novo tipo de violência organizada terna’ ou ‘conflito de baixa intensidade’ ao falar de contra-insurgência para controlar o território
que se desenvolveu” na época pós-Guerra Fria – destas ‘novas guerras’: esta nova forma de violên- politicamente. Contudo, nas ‘novas guerras’, o

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entre aqueles que participam nas redes transna-
Diáspora, incluindo Ajuda humanitária, Governos estrangeiros, incluindo
trabalhadores migrantes ONGs e OIGs Estados vizinhos, Estados “protectores”, cionais e aqueles que são excluídos dos proces-
p.e.: antigas forças colonialistas, sos globais e estão ligados às localidades (apesar
superpotências, Estados islâmicos
Armas, Remessas de influenciados por esses processos)”. E este
dinheiro, etc.
novo tipo de guerra tem de ser compreendido à
luz desta desarticulação global.
“Impostos”
Lucros “Direitos Neste pequeno ensaio, entre estas três caracte-
repatriados aduneiros” rísticas destacaríamos a ligação que Kaldor iden-
tifica da globalização com a nova economia de
Negócios, p.e.:
petróleo, diamantes, Pessoas comuns Governos guerra, que literalmente a autora designa como
drogas, etc. “economia de guerra globalizada” e na qual se
verifica a forte dependência dos recursos exter-
Saque Saque nos. No contexto economicamente fragilizado
Dinheiro
para já descrito, o autofinanciamento das unidades
segurança Mercado negro Mercado negro combatentes inclui, além das formas referidas, as
remessas de emigrantes às famílias, ajuda da di-
áspora, ‘impostos’ cobrados às ONGs, apoio dos
Grupos Mercado Unidades de autodefesa Mercado Exércitos governos vizinhos ou comércio ilegal de recur-
Paramilitares negro negro regulares
Armas, sos naturais – diamantes, ouro, petróleo –, bem
dinheiro, etc. como tráfico humano.
Fluxo de recursos nas ‘novas guerras’. Fonte: KALDOR, Mary (2006) — New & old wars – organized violence in O apoio externo desta “economia globalizada in-
a global era. Polity Press, Cambridge.
formal” surge sob diversas formas, a que Kaldor
chama ‘fluxos externos’, proveniente principal-
controlo da população é feito através do “medo e A existência em abundância de recursos naturais mente da ajuda humanitária e remessas de emi-
do ódio”, em vez, como diz a autora, das técnicas em alguns Estados, Estados esses muitas vezes grantes e que “são integradas numa economia
utilizadas por Che Guevara e Mao Tse Tung de sem condições para garantir a segurança e con- local e regional baseada na transferência de bens
conquistar “corações e mentes”. A criação e ma- trolo na totalidade do território nacional, cria a e comércio ilegal”. No gráfico que se apresenta
nutenção de um ambiente de insegurança, feito oportunidade para o aumento do comércio ilegal são visíveis as ramificações financeiras desta cir-
agora de forma deliberada e racional através de dos seus recursos naturais. culação global de que fala a autora.
técnicas de intimidação política, económica ou As ‘novas guerras’ surgem assim em países eco- Esta teoria das ‘novas guerras’ não é consensual e
psicológica – incluindo uma nova táctica, a da nómica e socialmente fragilizados, com baixa a validade do seu contributo para a compreensão
limpeza étnica – é utilizado pelas facções bélicas produtividade e altas taxas de desemprego. Com dos conflitos contemporâneos tem dado origem
das ‘novas guerras’ como meio de controlo social. o despoletar do conflito e a destruição das estru- a debate no mundo académico. Para Kaldor, a
De acordo com Kaldor, este facto é comprovado turas produtivas e comerciais nacionais, aliado à importância de identificar a violência organizada
pelas estatísticas: no início do século XX a maior diminuição de dividendos dos impostos e às con- contemporânea como sendo ou não uma ‘nova
percentagem de vítimas eram militares: aproxi- sequências inerentes da competitividade global, guerra’ é crucial e prende-se com a necessidade
madamente de 85 a 90%; em finais da década de os grupos combatentes tendem a autofinanciar- de alterar a forma como os académicos interpre-
1990, cerca de 80% das vítimas em conflitos eram -se. Para isso, num contexto de crescente aumen- tam e analisam os conflitos. Dela irá depender a
civis. Além disso, o aumento da violência contra to da economia informal, os grupos combatentes tomada de decisão política e consequente resolu-
civis reflecte-se também no número de pessoas utilizam métodos como a pilhagem, extorsão, to- ção – ou prolongamento – dos conflitos.n
deslocadas e refugiadas, que aumentou igual- mada de reféns, criação de postos de controlo,
mente de forma significativa nas últimas décadas. ‘impostos de guerra’, diversas formas de comér-
Kaldor identifica ainda outro elemento nesta cio ilegal, entre outros. Tal como já referido, nas
alteração do padrão da violência, que é o apa- ‘novas guerras’, o objectivo das facções é a per-
recimento de uma grande variedade de grupos petuação do clima de ódio, medo e insegurança
combatentes. A perda de legitimidade estatal – e não a vitória militar e assim mantêm o controlo
nomeadamente do já referido monopólio do uso sobre as fontes de recursos. Além disso, as partes
legítimo da violência organizada – dilui as dife- beligerantes têm consciência que num clima de
renças entre combatentes públicos e privados, paz serão criminalizadas pelas suas actividades
e entre soldados e polícias (como legítimos de- ilegais.
tentores de armas) e combatentes e criminosos. Notas
Os novos grupos de actores caracterizam-se por A globalização e as ‘novas guerras’
1 NEWMAN, Edward (2004) — The ‘New Wars’ Debate: A Histori-
serem autónomos e descentralizados, públicos e Para a autora estas três principais características
cal Perpective is Needed. SAGE Publications, PRIO.
privados, estatais e não estatais (ou ainda, mistura estão inevitavelmente associadas ao contexto 2 MOURA, Tatiana (2004) — Novíssimas guerras, novíssimas pa-

de ambos): Forças Armadas regulares ou unida- internacional e à influência da globalização nos zes. Desafios conceptuais e políticos. Núcleo para a Paz, CES
des dissidentes descontentes; senhores da guer- teatros locais. O actual contexto internacional – Universidade de Coimbra. Em linha: http://www.ces.uc.pt/
publicacoes/oficina/ficheiros/214.pdf/.
ra, grupos paramilitares; grupos terroristas; uni- permite uma interconectividade global veloz em 3 NEWMAN, op cit.
dades de autodefesa; mercenários estrangeiros… todas as áreas – política, económica, militar, civil, 4 KALDOR, Mary (2013) — “In Defence of New Wars”. Stability:

A última característica identificada por esta auto- tecnológica, cultural –, e desconstrói as divisões International Journal of Security and Development. 2(1): 4,
ra consiste na alteração da economia de guerra. culturais e socioeconómicas que definem os pa- pp 1-16, DOI: http://dx.doi.org/10.5334/sta.at.
5 MOURA, op cit.
Com o fim do sistema bipolar e o consequente drões das políticas que caracterizam o período 6 KALY VAS, Stathis N., (2001) — “‘New’ and ‘Old’ Civil Wars: a va-

desaparecimento das ajudas financeiras interna- moderno. Desta forma as fronteiras existentes lid distinction?”. World Politics. Volume 54, Number 1, October
cionais a Estados ou a movimentos rebeldes, os em todas as esferas esmorecem: público/privado, 2001, pp 99-118 (article), The John Hopkins University Press
DOI: 10.1353/wp.2001.0022.
actores nestes conflitos tiveram de encontrar fon- estatal/não-estatal, formal/informal, interno/ex- 7 Este texto é elaborado com base na segunda edição do livro. Ver
tes de financiamento alternativas e o lucro – ou a terno, local/global. Como consequência, cria-se KALDOR, Mary (2006) — New & old wars – organized violence
ganância – passa a ser a sua principal motivação. um contexto de “dissonância cultural crescente in a global era. Polity Press, Cambridge. (tradução da autora)

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