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conhecimento histórico
Jacson Schwengber1
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A análise desses documentos evidencia a impossibilidade de uma visada progressista e linear da história
intelectual. A todo o momento os enunciados operam numa dinâmica de inovações e retomadas. A
referida obra de Loyola, por exemplo, indica um processo novo de construção da subjetividade individual,
ao mesmo tempo seu título, Exercícios Espirituais, faz remissão aos exercitatio animi de Agostinho de
Hipona (354-430).
escrito por Descartes ecoa essa tradição de normas e controles: Regulae ad directionem
ingenii (Regras para a direção do espírito [mente]3). Além do termo regra, a expressão
“direção do espírito” faz lembrar o posto de diretores espirituais que existia nos
colégios jesuítas.
Não vou refazer, aqui, os passos do método cartesiano que, embora sintéticos,
exigiriam mais espaço do que disponho no momento. Somente enunciarei a conclusão
que Descartes chega em suas Meditações sobre Filosofia Primeira, onde sustenta que o
“eu” pensante se opõe e é independente da natureza corpórea. Mais: o corpo não é
necessário para o pensamento (DESCARTES, 2004). Esse argumento já havia sido
desenvolvimento de ideias no seu Tratado do Método, publicado quatro anos antes, em
1637.
É do Discurso do Método que indico aqui algumas passagens. Mais
especificamente são excertos da Quarta parte, onde Descartes escreveu: “(…) porque
nossos sentidos às vezes nos enganam, quis supor que não havia coisa alguma que fosse
tal como eles nos levam a imaginar” (DESCARTES, 2001, p.37). Logo, o corpo
(enquanto matéria fisiológica) não é fonte segura de saber. Desse ponto estabelece o
princípio fundamental de uma filosofia primeira (metafísica):
(…) julgando que eu era tão sujeito ao erro quanto qualquer outro, rejeitei como falsas
todas as razões que antes tomara como demonstrações (…) Mas logo depois atentei
que, enquanto queria pensar assim que tudo era falso, era necessariamente preciso que
eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade — penso, logo
existo — era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos
cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que podia admiti-la sem escrúpulo
como o primeiro princípio da filosofia que buscava (DESCARTES, 2001, p.38).
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Esse texto só foi publicado no ano de 1701, 51 anos depois da morte de Descartes.
Para retomar. A única certeza que a razão pode chegar de forma segura é a
certeza racional e individual da existência do próprio eu pensante. Dessa forma, a
história, que para Descartes era fonte de muitas lições, não poderia, no entanto, ser
entendida como um saber científico4. O saber histórico tem por base o relato de terceiros
(os testemunhos). É doxa, opinião, não é episteme, conhecimento. Na perspectiva de
Descartes, a leitura da história, assim como a experiência das viagens, era fonte de
ensinamentos. Contudo, o conhecimento do passado não dispunha fundamentos sólidos
como causas primeiras. Dessa forma, não tinha bases metafísicas que o credenciassem
como ciência. Então, não seria despropositado considerar Descartes como um dos
responsáveis pela permanência de elementos metafísicos na historiografia
contemporânea já que ele nem mesmo colocava a história como ciência?
É lugar-comum que o pensamento cartesiano é anti-histórico. No entanto, como
foi destacado muitas décadas atrás por Collingwood, Descartes não se preocupou com a
crítica erudita, mas contribui para as condições de sua fundamentação epistemológica
— ainda que talvez de forma involuntária. A posição de Descartes na construção do
conhecimento histórico é ambígua, pois, “ao dizer que as narrativas históricas exageram
e distorcem o passado, Descartes propunha um critério que podia servir para criticar
essas narrativas, critérios que poderiam (re)descobrir a verdade que essas narrativas
escondiam ou deformavam” (COLLINGWOOD, 1972, p.104).
No século XVII, a crítica histórica mobilizava critérios de avaliação da
veracidade dos textos, das testemunhas e, com contribuição (voluntária ou involuntária)
de Descartes, a crítica também passou a se perguntar sobre a legitimidade do sujeito do
conhecimento. Com base na teorização filosófica sobre as causas primeiras, a crítica
histórica debateu quanto a legitimidade do indivíduo que faz perguntas aos vestígios do
passado (e não só a respeito do estatuto material desses vestígios). Colocando nos
termos do debate que fazemos hoje, essa foi uma discussão sobre a subjetividade do
4
Existe uma compreensão difusa de que Descartes privilegia as ciências naturais e exatas em relação as
humanidades. Mas se avaliarmo sua definição estrita de ciência que ele elaborou, só atendem aos seus
critérios a metafísica, a matemática pura e a geometria. As ditas “ciências duras” coma física, biologia,
química também não seriam ciências. A própria medicina, com seu background empírico e experimental
ficava de fora dos parâmetros científicos cartesianos. Porém, isso não significava que todas essas áreas do
conhecimento e as humanidades não fossem saberes válidos e fundamentados, tanto que Descartes
dedicou-se ao estudo da anatomia. Para um estudo sobre como a teorização metafísica ajudou no processo
de autonomia das ciências da natureza em relação a teologia ver (FORLIN, 2011). A contribuição de
Descartes para a crítica histórica será debatida em seguida.
pesquisador — e que nos termos do século XVII europeu se apresentou na forma de
questionamentos a respeito da parcialidade e o ponto de vista daquele que escreve.
Pierre Bayle (16547-1706) é um caso exemplar dessa resposta crítica ao desafio
cartesiano. Ele retoma as condições subjetivas para que seja possível alcançar uma
verdade histórica. Para tanto, não é suficiente recolher os testemunhos através do crivo
de uma crítica filológica vigilante, o próprio crítico tem que se colocar como objeto da
crítica. Isso, no caso de Bayle, implicava numa desconfiança de si mesmo, não muito
diferente dos exercícios de humildade do cristão que deve bater no peito e se reconhecer
como pecador (Lucas 18:13).
Tirando o acento cristão, que foi mascarado pelo caráter laicizante da
epistemologia contemporânea, essa relativização do sujeito do conhecimento nos soa
familiar. Mas não exageremos a contemporaneidade desses debates, seus termos estão
marcados pelo vocabulário e critérios da época. As premissas que definem o sujeito do
conhecimento bayleano partem de uma perspectiva masculina, mas que se pensava
universal. O mesmo vale para Descartes. Sobre isso, o sociólogo porto-riquenho Ramón
Grosfoguel diz que Descartes não é aquele que iniciou a tradição do pensamento
ocidental moderno, mas aquele que deu início a tradição do pensamento ocidental
masculino (GROSFOGUEL, 2016).
De um lado temos o intelecto, cuja substância se define como imaterial e que é
fundamento da certeza filosófica. Do outro, temos o corpo pensado como máquina e
enquanto tal é objeto da matemática e da mecânica. Distante da ética podemos supor o
quanto essas bases teóricas, senão são suficientes para serem tomadas como causa, pelo
menos deram suporte a lógicas de domínio político. Um domínio de poder e de saber
que coloca em funcionamento todo um conjunto de dispositivos que silenciam as
dimensões do desejo e da dor que os corpos podem expressar. Quanto a essa
objetificação epistemológica que produz apagamentos e dominação, para Dussel “e ssa
máquina pura”, que é o corpo na definição cartesiana 5:
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No já mencionado artigo de Enéias Forlin, fica claro que essa é uma leitura bastante reducionista da
teoria cartesiana. Como destaca Forlin, em Descartes as concepções sobre a relação entre intelecto e a
fisiologia corporal eram bem mais matizadas e complexas, principalmente como Descartes tratou o tema
no seu último tratado escrito em vida, As paixões da alma (Les Passions de l’âme). Mesmo no Discurso
do Método e no Meditações sobre a Filosofia Primeira, a dicotomia corpo/mente é antes uma estratégia
explicativa do que uma divisão categórica (FORLIN, 2011). Ao mesmo tempo, a interpretação de Dussel
faz sentido, uma vez que de fato a recepção das teorias cartesianas foram utilizadas como justificação de
um conjunto de políticas de dominação operadas no binarismo da oposição corpo e alma. Dussel também
tem razão ao destacar que o sujeito da enunciação cartesiano se pretende universal.
...não irá assinalar a sua cor de pele nem a sua raça (evidentemente, Descartes só
pensa a partir da raça branca) nem obviamente o seu sexo (também só pensa a partir
do sexo masculino), que são de um europeu (não descreve nem se refere a um corpo
colonial, de um índio, de um escravo africano ou de um asiático). A indeterminação
quantitativa de toda a qualidade também será o início de todas as abstrações ilusórias
do ‘ponto zero’ da subjetividade filosófica moderna e da constituição do corpo como
mercadoria quantificável com um preço (como acontece no sistema da escravidão ou
no do salário no capitalismo) (DUSSEL, 2013, p. 295).
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Adotei a tradução desses trechos feitas por Álvaro Cabral em (CASSIRER, 1994). Para consultar os
textos no original basta seguir as referências em parênteses que seguem as citações abaixo.
Nessas passagens e em outras, Bayle faz a defesa de uma objetividade do exame
crítico como fundamento de uma história verdadeira. Em linhas gerais, ser objetivo para
Bayle significava aspirar a um conhecimento que não deixe qualquer traço do sujeito
conhecedor (um ponto de observação sem observador). Isso implica apagar o corpo,
apagamento teórico mas também material e prático. A figura do historiador criada por
Bayle leva ao aniquilamento de sua própria individualidade para que os outros entrem
em cena e possam tomar a palavra. Ele terá portanto que se obstinar contra si mesmo,
fazer calar suas preferências, “embaralhar sua própria perspectiva para lhe substituir
uma geometria ficticiamente universal” (FOUCAULT, 2015, p.289).
O sujeito da crítica construído por Bayle tem relação com a construção do
sujeito cartesiano. Descartes apaga o corpo em nome da metafísica e Bayle em nome da
crítica. Como excluem o corpo do âmbito da epistemologia, não indicam a cor da pele
desse historiador ideal, mas obviamente pensam-o a partir da perspectiva de indivíduos
brancos. Não indicam o sexo, mas todos os pressupostos desse sujeito são premissas
marcadamente masculinas. Descartes propôs a universalidade de sua abordagem; Bayle
propôs uma perspectiva cosmopolita, mas nada indica que um ou outro tenham pensado
também do ponto de vista de corpos coloniais ou subalternizados. Nesse ponto me
inspiro nas críticas decoloniais do filósofo argentino Enrique Dussel, em especial seu
artigo Reflexões Anticartesianas, já citado aqui. Suas proposições podem ser estendidas
para pensar também a historiografia de verniz cartesiano e suas ressonâncias na
institucionalização universitária da disciplina história.
Os contextos historiográficos do período moderno e contemporâneo são
diferentes entre si. Porém, um traço comum pode ser estabelecido entre eles: o
apagamento do corpo. Nesse espectro de longa duração o corpo foi construído como o
outro do conhecimento, ou melhor, como o seu avesso porque é, ao mesmo tempo, lugar
não conhecido e lugar de não conhecimento. A estreita relação estabelecida entre aquilo
que se entende como ciência e o ideal de objetividade tem importante papel nesse
processo de apagamento.
Para além de sua idealização teórica, a objetividade se desdobra em gestos,
técnicas e hábitos. Diferentes técnicas de si e dispositivos de subjetivação são
mobilizados. Sensibilidades são produzidas através de treinos e repetições diárias
(espécies de exercícios espirituais, como os mencionados acima). A objetividade emerge
de procedimentos de asceticismo metodológico, apresentando-se como uma virtude
epistêmica (DASTON; GALISON, 2007). Já o corpo é colocado no outro extremo,
como não saber e como vício.
A escolha da palavra virtude para falar de epistemologia não é acidental. Como
se sabe do vocabulário da filosofia moral, o contrário da virtude é o vício. Antes mesmo
da emergência da história ciência no período contemporâneo, esse par de valores era
mobilizado na chave da história mestra da vida. Nesse dualismo esquemático coloca-se
a virtude como atributos do espírito e do intelecto. Sendo espírito e intelecto
metodologicamente expurgados de qualquer contaminação corpórea que os pudesse
comprometer. No outro espectro do saber o corpo é colocado como lugar/fonte dos
vícios — espirituais (no medievo) e epistêmicos (na modernidade). Por isso, o corpo
tem quer ser anulado para se chegar a verdade (seja da fé seja da ciência). Procedendo
dessa forma, o historiador pretende “ter apagado do seu próprio saber todos os traços do
querer (…) A objetividade do historiador é a interversão das relações do querer no saber
(...) o historiador pertence à família dos ascetas” (FOUCAULT, 2015, p.290).
As raízes do efeito que, hoje, nossos corpos produzem na escrita da história e os
efeitos que a história que produzimos produz sobre os corpos em parte está nessa
dispersão de objetos heterogêneos: o claustro medieval, as regras e exercícios
espirituais/mentais, os métodos e as críticas modernas. Minha hipótese, que ainda está
sendo desenvolvida, é que o estudo de inícios do período moderno (séculos XVI e
XVII) dialoga com muitos dos pressupostos que vieram a constituir a história disciplina.
Dessa forma, parte do passado da história disciplinar acadêmica, com a emergência da
crítica e da verdade como seus fundamentos, encontra-se em momentos diversos
anteriores a própria formação disciplinar e acadêmia dos séculos XIX e XX.
Bibliografia:
BAYLE, Pierre. Dictionaire Historique et Critique. Amsterdam, Leiden, Haya,
Utrecht, 1740.
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Ed. Unicamp, 1994 [1932].
COLLINGWOOD, R. G. A Ideia de História. Lisboa: Presença, 1972 [1942].
DASTON, Lorraine; GALISON, Peter. Objectivity. New York: Zone Books, 2007.
DESCARTES, René. Meditações sobre filosofia primeira. Campinas: ed. Unicamp,
2004 [1641].
________________. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2001 [1637].
DUSSEL, Enrique. Meditações anticartesianas sobre a origem do discurso filosófico da
modernidade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula.
Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2013.
FORLIN, Enéias. A concepção cartesiana do sujeito: a alma e animal racional.
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FOUCAULT, Michel. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de
Pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades
ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do
longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, v. 31, número 1, janeiro/abril de 2016.
LOYOLA, Ignácio de. Obras Completas. Madrid: Biblioteca de autores cristianos,
1963.