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Um corpus descarnado: sensibilidades, corpo e objetividade na produção do

conhecimento histórico
Jacson Schwengber1

RESUMO: A proposta desta comunicação é fazer uma genealogia da emergência das


categorias de crítica e de objetividade na modernidade, bem como a relação desses
conceitos com o corpo e com a escrita da história. O recorte cronológico escolhido
como ponto de partida é o início da Idade Moderna europeia. Argumento que esse
momento foi fundamental na estruturação de um corpus (de textos e de normas)
historiográfico que permanece como referência canônica. No entanto, esse é um
caminho entre outros possíveis. Para além de sua idealização teórica, será avaliado
como a objetividade se desdobra em gestos, técnicas e hábitos. Sensibilidades são
produzidas através de treinos e repetições diárias (espécies de exercícios espirituais). A
objetividade emerge de procedimentos de asceticismo metodológico, apresentando-se
como uma virtude epistêmica. Já o corpo é posto no outro extremo, como não saber e
como vício.
Palavras-chave: objetividade, crítica, corpo.
************
A proposta da comunicação foi realizar algumas considerações sobre a
emergência da noção de verdade como elemento central e estruturador do discurso
histórico moderno. A partir desse tópico, procurou-se descrever quais as consequências
teóricas e práticas que um dado discurso historiográfico que se quis verdadeiro — em
especial aquele de matriz cartesiana — produziu sobre a própria materialidade vital dos
sujeitos. Tratou-se, portanto, a partir de um estudo de caso, da relação do corpo com a
escrita da história — o corpo entendido tanto em termos fisiológicos (com sua
materialidade orgânica e funções vitais) como metafísicos (teórico-epistemológicos).
O recorte cronológico escolhido como ponto de partida é o início da Idade
Moderna europeia. Argumento que esse momento foi fundamental na estruturação de
um corpus (de textos e de normas) historiográfico que permanece como referência
canônica da disciplina, pelo menos nos espaços culturais ocidentalizados. Porém, o
caráter disciplinar da escrita contemporânea da história não ocupará o centro da análise.
1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, bolsista CNPq. E-mail:
jacsonhist@gamail.com
Trato de um momento anterior a consolidação acadêmica e disciplinar da história na
virada do século XIX para o XX. Contudo, os tópicos que aqui serão abordados
produzem ressonâncias no debate contemporâneo a respeito da epistemologia do saber
histórico. Inclusive, meu ponto de partida para pensar a relação entre verdade, corpo e
historiografia foi a leitura de um texto escrito nas últimas décadas do século passado.
Trata-se de Nietzsche, a genealogia, a história, de Michel Foucault. Nesse texto
Foucault esboçou um projeto que consiste em separar o estudo do passado de seus
pressupostos metafísicos. Mas que metafísica seria essa? Como ela adentrou o campo
do saber histórico e que efeitos tem isso sobre o corpo?
Foucault dirigia sua crítica ao que chamava de história tradicional, a qual
entendia estar identificada com um tipo de historicismo. Porém, um nome anterior ao
contexto do historicismo oitocentista, nome que não é citado por Foucault nesse texto,
mas sobre o qual poderíamos dirigir praticamente todas as críticas ali contidas, é o nome
de Descartes. Principalmente quando Foucault de maneira sarcástica se refere ao que ele
chama de historiadores tradicionais como pertencentes a “espécie dos metafísicos”
(FOUCAULT, 2015, p.287).
Metafísica aqui não é entendida como algo esotérico ou supraterreno, mas no
sentido filosófico restrito de busca pelas causas primeiras. Tanto no Discurso do
Método (1637) quanto no Meditações sobre filosofia primeira (1641), Descartes operou
uma divisão entre corpo e mente, tratando-os como duas substâncias autônomas e
independentes, pelo menos para a análise teórica.
Essa divisão corpo e mente não é uma invenção de Descartes, trata-se de uma
ideia anterior ao período moderno. O que Descartes nomeia como “pensamento” era
aquilo que tradicionalmente se chamava “alma” ou “espírito”. A concepção de que a
alma/mente/espírito é de natureza imaterial, não extensiva e puramente inteligível,
remete a tradição aristotélico-tomista (FORLIN, 2011, p.138). Antes ainda de Tomas de
Aquino ou Aristóteles, em Timeu e no livro V da República, textos atribuídos a Platão,
encontram-se sugestões de que a natureza da alma e da matéria são substâncias distintas.
O que tem de diferente na divisão corpo e alma feito por Descartes é que ela está
voltada para a fundamentação e fundação de um sujeito do conhecimento; e é esse
sujeito do saber que sustenta um discurso de verdade. Ele opera uma individuação do
sujeito. Também esse processo de individuação possui registros que são anteriores à
Descartes. A formação escolar católica pós Concílio de Trento (1545-1563) seguiu um
modelo extremamente metódico. O Ratio Studiorum, que regrava o ensino jesuítico
desde o final do século XVI, já era um manual que estava conforme parâmetros hoje
tidos como modernos. No sistema de ensino inaciano, no qual Descartes recebeu sua
formação: “cada jesuíta constituía uma subjetividade singular, independente, moderna,
sem cantos nem orações no coro de uma comunidade como era o caso dos monges
beneditinos medievais, realizando diariamente um ‘exame de consciência’ individual”
(DUSSEL, 2013, p.290).
Em 1538, Inácio de Loyola (fundador da ordem dos jesuítas) falava “do
examinar a consciência com aquele modo das linhas” (LOYOLA, 1963, 2042). O que
seria esse ao “modo das linhas”? Num caderno reservar uma linha para cada dia e nessa
linha registrar as faltas cometidas. Esse exame deveria ser realizado diariamente em três
momentos distintos: de manhã ao levantar-se, depois do meio-dia e à noite (DUSSEL,
2013, p.571). Loyola estabeleceu como norma que os membros de sua congregação se
dedicassem cotidianamente ao exame de suas consciências. Importante ressaltar, mais
uma vez, que Descartes foi formado numa escola que seguia tal diretriz. Assim, apesar
da negação feita no Discurso do Método, é de se supor que ele tenha se apropriado de
alguns dos fundamentos de seus mestres na formulação de seu sistema filosófico.
A teoria do conhecimento que individua o sujeito, é um produto da
modernidade. Mas a ideia de regra tem duração mais remota. A imposição de regras
para controlar o corpo e assim guiar a mente, possui raízes profundas na cultura cristã.
No século VI, por exemplo, foi estabelecido os Regula Benedict (Regras de São Bento).
Regras elaboradas inicialmente para uso exclusivo da ordem beneditina, mas depois elas
foram adaptadas e utilizadas por muitas outras comunidades religiosas — uma das
regras mestras era o ora et labora (reza e trabalha). Esses exercícios de controle do
corpo se multiplicaram nos ambientes monacais durante a Idade Média.
No século XVI, temos as Regras de São Inácio de Loyola, já mencionadas.
Também já foi sugerido que as Regras de Santo Inácio foram seguidas por Descartes
durante sua formação numa escola jesuítica. Não por acaso, o título do primeiro tratado

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A análise desses documentos evidencia a impossibilidade de uma visada progressista e linear da história
intelectual. A todo o momento os enunciados operam numa dinâmica de inovações e retomadas. A
referida obra de Loyola, por exemplo, indica um processo novo de construção da subjetividade individual,
ao mesmo tempo seu título, Exercícios Espirituais, faz remissão aos exercitatio animi de Agostinho de
Hipona (354-430).
escrito por Descartes ecoa essa tradição de normas e controles: Regulae ad directionem
ingenii (Regras para a direção do espírito [mente]3). Além do termo regra, a expressão
“direção do espírito” faz lembrar o posto de diretores espirituais que existia nos
colégios jesuítas.
Não vou refazer, aqui, os passos do método cartesiano que, embora sintéticos,
exigiriam mais espaço do que disponho no momento. Somente enunciarei a conclusão
que Descartes chega em suas Meditações sobre Filosofia Primeira, onde sustenta que o
“eu” pensante se opõe e é independente da natureza corpórea. Mais: o corpo não é
necessário para o pensamento (DESCARTES, 2004). Esse argumento já havia sido
desenvolvimento de ideias no seu Tratado do Método, publicado quatro anos antes, em
1637.
É do Discurso do Método que indico aqui algumas passagens. Mais
especificamente são excertos da Quarta parte, onde Descartes escreveu: “(…) porque
nossos sentidos às vezes nos enganam, quis supor que não havia coisa alguma que fosse
tal como eles nos levam a imaginar” (DESCARTES, 2001, p.37). Logo, o corpo
(enquanto matéria fisiológica) não é fonte segura de saber. Desse ponto estabelece o
princípio fundamental de uma filosofia primeira (metafísica):
(…) julgando que eu era tão sujeito ao erro quanto qualquer outro, rejeitei como falsas
todas as razões que antes tomara como demonstrações (…) Mas logo depois atentei
que, enquanto queria pensar assim que tudo era falso, era necessariamente preciso que
eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade — penso, logo
existo — era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos
cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que podia admiti-la sem escrúpulo
como o primeiro princípio da filosofia que buscava (DESCARTES, 2001, p.38).

Daí fica questão: o que é isso que existo?


Depois, examinando atentamente o que eu era e vendo que podia fingir que não tinha
nenhum corpo e que não havia nenhum mundo, nem lugar algum onde eu existisse,
mas que nem por isso podia fingir que não existia; e que, pelo contrário, pelo próprio
fato de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, decorria muito
evidentemente e muito certamente que eu existia (…) por isso reconheci que eu era
uma substância, cuja única essência ou natureza é pensar, e que, para existir, não
necessita de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De sorte que
este eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até
mais fácil de conhecer que ele, e, mesmo se o corpo não existisse, ela não deixaria de
ser tudo o que é (DESCARTES, 2001, p.38 e 39) [Grifos meus].
Em resumo: reconhece através do seu exame de consciência que a natureza
inteligente é distinta da natureza corporal (DESCARTES, 2001, p. 41).

3
Esse texto só foi publicado no ano de 1701, 51 anos depois da morte de Descartes.
Para retomar. A única certeza que a razão pode chegar de forma segura é a
certeza racional e individual da existência do próprio eu pensante. Dessa forma, a
história, que para Descartes era fonte de muitas lições, não poderia, no entanto, ser
entendida como um saber científico4. O saber histórico tem por base o relato de terceiros
(os testemunhos). É doxa, opinião, não é episteme, conhecimento. Na perspectiva de
Descartes, a leitura da história, assim como a experiência das viagens, era fonte de
ensinamentos. Contudo, o conhecimento do passado não dispunha fundamentos sólidos
como causas primeiras. Dessa forma, não tinha bases metafísicas que o credenciassem
como ciência. Então, não seria despropositado considerar Descartes como um dos
responsáveis pela permanência de elementos metafísicos na historiografia
contemporânea já que ele nem mesmo colocava a história como ciência?
É lugar-comum que o pensamento cartesiano é anti-histórico. No entanto, como
foi destacado muitas décadas atrás por Collingwood, Descartes não se preocupou com a
crítica erudita, mas contribui para as condições de sua fundamentação epistemológica
— ainda que talvez de forma involuntária. A posição de Descartes na construção do
conhecimento histórico é ambígua, pois, “ao dizer que as narrativas históricas exageram
e distorcem o passado, Descartes propunha um critério que podia servir para criticar
essas narrativas, critérios que poderiam (re)descobrir a verdade que essas narrativas
escondiam ou deformavam” (COLLINGWOOD, 1972, p.104).
No século XVII, a crítica histórica mobilizava critérios de avaliação da
veracidade dos textos, das testemunhas e, com contribuição (voluntária ou involuntária)
de Descartes, a crítica também passou a se perguntar sobre a legitimidade do sujeito do
conhecimento. Com base na teorização filosófica sobre as causas primeiras, a crítica
histórica debateu quanto a legitimidade do indivíduo que faz perguntas aos vestígios do
passado (e não só a respeito do estatuto material desses vestígios). Colocando nos
termos do debate que fazemos hoje, essa foi uma discussão sobre a subjetividade do

4
Existe uma compreensão difusa de que Descartes privilegia as ciências naturais e exatas em relação as
humanidades. Mas se avaliarmo sua definição estrita de ciência que ele elaborou, só atendem aos seus
critérios a metafísica, a matemática pura e a geometria. As ditas “ciências duras” coma física, biologia,
química também não seriam ciências. A própria medicina, com seu background empírico e experimental
ficava de fora dos parâmetros científicos cartesianos. Porém, isso não significava que todas essas áreas do
conhecimento e as humanidades não fossem saberes válidos e fundamentados, tanto que Descartes
dedicou-se ao estudo da anatomia. Para um estudo sobre como a teorização metafísica ajudou no processo
de autonomia das ciências da natureza em relação a teologia ver (FORLIN, 2011). A contribuição de
Descartes para a crítica histórica será debatida em seguida.
pesquisador — e que nos termos do século XVII europeu se apresentou na forma de
questionamentos a respeito da parcialidade e o ponto de vista daquele que escreve.
Pierre Bayle (16547-1706) é um caso exemplar dessa resposta crítica ao desafio
cartesiano. Ele retoma as condições subjetivas para que seja possível alcançar uma
verdade histórica. Para tanto, não é suficiente recolher os testemunhos através do crivo
de uma crítica filológica vigilante, o próprio crítico tem que se colocar como objeto da
crítica. Isso, no caso de Bayle, implicava numa desconfiança de si mesmo, não muito
diferente dos exercícios de humildade do cristão que deve bater no peito e se reconhecer
como pecador (Lucas 18:13).
Tirando o acento cristão, que foi mascarado pelo caráter laicizante da
epistemologia contemporânea, essa relativização do sujeito do conhecimento nos soa
familiar. Mas não exageremos a contemporaneidade desses debates, seus termos estão
marcados pelo vocabulário e critérios da época. As premissas que definem o sujeito do
conhecimento bayleano partem de uma perspectiva masculina, mas que se pensava
universal. O mesmo vale para Descartes. Sobre isso, o sociólogo porto-riquenho Ramón
Grosfoguel diz que Descartes não é aquele que iniciou a tradição do pensamento
ocidental moderno, mas aquele que deu início a tradição do pensamento ocidental
masculino (GROSFOGUEL, 2016).
De um lado temos o intelecto, cuja substância se define como imaterial e que é
fundamento da certeza filosófica. Do outro, temos o corpo pensado como máquina e
enquanto tal é objeto da matemática e da mecânica. Distante da ética podemos supor o
quanto essas bases teóricas, senão são suficientes para serem tomadas como causa, pelo
menos deram suporte a lógicas de domínio político. Um domínio de poder e de saber
que coloca em funcionamento todo um conjunto de dispositivos que silenciam as
dimensões do desejo e da dor que os corpos podem expressar. Quanto a essa
objetificação epistemológica que produz apagamentos e dominação, para Dussel “e ssa
máquina pura”, que é o corpo na definição cartesiana 5:

5
No já mencionado artigo de Enéias Forlin, fica claro que essa é uma leitura bastante reducionista da
teoria cartesiana. Como destaca Forlin, em Descartes as concepções sobre a relação entre intelecto e a
fisiologia corporal eram bem mais matizadas e complexas, principalmente como Descartes tratou o tema
no seu último tratado escrito em vida, As paixões da alma (Les Passions de l’âme). Mesmo no Discurso
do Método e no Meditações sobre a Filosofia Primeira, a dicotomia corpo/mente é antes uma estratégia
explicativa do que uma divisão categórica (FORLIN, 2011). Ao mesmo tempo, a interpretação de Dussel
faz sentido, uma vez que de fato a recepção das teorias cartesianas foram utilizadas como justificação de
um conjunto de políticas de dominação operadas no binarismo da oposição corpo e alma. Dussel também
tem razão ao destacar que o sujeito da enunciação cartesiano se pretende universal.
...não irá assinalar a sua cor de pele nem a sua raça (evidentemente, Descartes só
pensa a partir da raça branca) nem obviamente o seu sexo (também só pensa a partir
do sexo masculino), que são de um europeu (não descreve nem se refere a um corpo
colonial, de um índio, de um escravo africano ou de um asiático). A indeterminação
quantitativa de toda a qualidade também será o início de todas as abstrações ilusórias
do ‘ponto zero’ da subjetividade filosófica moderna e da constituição do corpo como
mercadoria quantificável com um preço (como acontece no sistema da escravidão ou
no do salário no capitalismo) (DUSSEL, 2013, p. 295).

Para finalizar, caberia ver exemplos de construções do sujeito do saber histórico


onde esse processo de apagamento da dimensão fisiológica e material dos corpos teve
lugar. As próximas duas passagens6 são longas, mas elucidativas sobre o que foi dito até
aqui. No Dicionário Histórico e Crítico (1696) Pierre Bayle escreveu:
Conheço pessoas que desejariam Histórias da Reforma que não tivessem sido
compostas nem por um Católico Romano, nem por um Protestante. Eles imaginam que
o interesse de partido e o zelo por sua própria causa, e ainda mais a raiva pela outra
religião, levam um escritor a exagerar, ou a suprimir, ou enfraquecer, ou a dissimular
as coisas conforme elas possam servir ou prejudicar a honra de seu partido… seria
bom aconselhar a um huguenote zeloso de jamais empreender nem a História do
Calvinismo, nem aquela do Luteranismo, nem aquela do Édito de Nantes, nem alguma
outra dessa natureza. Você tem o coração ressentido, deveríamos lhe dizer...você nos
daria não uma História, mas textos de um advogado (BAYLE, Remond, rem. D, 1740).

Todos os que conhecem as leis da História estarão de acordo em que um historiador, se


quiser cumprir fielmente suas funções, deve despojar-se do espírito de adulação e do
espírito de maledicência (…) colocar-se o mais possível na posição de um estoico, a
quem nenhuma paixão agita. Insensível a todo o resto, só deve estar atento para os
interesses da verdade, sacrificando a essa o ressentimento de uma injúria, a lembrança
de um benefício e até mesmo o amor da pátria. Deve esquecer que está num certo país,
que foi instruído numa certa comunhão, que é devedor de gratidão a este ou àquele,
que tais e tais são seus progenitores ou seus amigos. Um historiador, enquanto no
exercício de sua função, é como Melquisedeque, sem pai, sem mãe e sem genealogia.
Se lhe perguntarem donde veio, deverá responder: não sou francês, nem alemão, nem
inglês ou espanhol; sou habitante do mundo; não estou a serviço do imperador, nem do
rei da França, mas somente a serviço da verdade; essa é a minha única rainha, só a ela
prestei juramento de obediência (Usson, rem. F, 1740).

A verdade por definição tem que estar livre de qualquer condicionamento


particular. Dessa forma, uma dentre as soluções encontradas foi conferir ao sujeito do
conhecimento histórico esse caráter de observador livre de qualquer condicionamento
particular. A figura do historiador, destituída de corporeidade e fora do tempo e do
espaço, vai conferir certeza metafísica ao objeto incerto que são os testemunhos da
história.

6
Adotei a tradução desses trechos feitas por Álvaro Cabral em (CASSIRER, 1994). Para consultar os
textos no original basta seguir as referências em parênteses que seguem as citações abaixo.
Nessas passagens e em outras, Bayle faz a defesa de uma objetividade do exame
crítico como fundamento de uma história verdadeira. Em linhas gerais, ser objetivo para
Bayle significava aspirar a um conhecimento que não deixe qualquer traço do sujeito
conhecedor (um ponto de observação sem observador). Isso implica apagar o corpo,
apagamento teórico mas também material e prático. A figura do historiador criada por
Bayle leva ao aniquilamento de sua própria individualidade para que os outros entrem
em cena e possam tomar a palavra. Ele terá portanto que se obstinar contra si mesmo,
fazer calar suas preferências, “embaralhar sua própria perspectiva para lhe substituir
uma geometria ficticiamente universal” (FOUCAULT, 2015, p.289).
O sujeito da crítica construído por Bayle tem relação com a construção do
sujeito cartesiano. Descartes apaga o corpo em nome da metafísica e Bayle em nome da
crítica. Como excluem o corpo do âmbito da epistemologia, não indicam a cor da pele
desse historiador ideal, mas obviamente pensam-o a partir da perspectiva de indivíduos
brancos. Não indicam o sexo, mas todos os pressupostos desse sujeito são premissas
marcadamente masculinas. Descartes propôs a universalidade de sua abordagem; Bayle
propôs uma perspectiva cosmopolita, mas nada indica que um ou outro tenham pensado
também do ponto de vista de corpos coloniais ou subalternizados. Nesse ponto me
inspiro nas críticas decoloniais do filósofo argentino Enrique Dussel, em especial seu
artigo Reflexões Anticartesianas, já citado aqui. Suas proposições podem ser estendidas
para pensar também a historiografia de verniz cartesiano e suas ressonâncias na
institucionalização universitária da disciplina história.
Os contextos historiográficos do período moderno e contemporâneo são
diferentes entre si. Porém, um traço comum pode ser estabelecido entre eles: o
apagamento do corpo. Nesse espectro de longa duração o corpo foi construído como o
outro do conhecimento, ou melhor, como o seu avesso porque é, ao mesmo tempo, lugar
não conhecido e lugar de não conhecimento. A estreita relação estabelecida entre aquilo
que se entende como ciência e o ideal de objetividade tem importante papel nesse
processo de apagamento.
Para além de sua idealização teórica, a objetividade se desdobra em gestos,
técnicas e hábitos. Diferentes técnicas de si e dispositivos de subjetivação são
mobilizados. Sensibilidades são produzidas através de treinos e repetições diárias
(espécies de exercícios espirituais, como os mencionados acima). A objetividade emerge
de procedimentos de asceticismo metodológico, apresentando-se como uma virtude
epistêmica (DASTON; GALISON, 2007). Já o corpo é colocado no outro extremo,
como não saber e como vício.
A escolha da palavra virtude para falar de epistemologia não é acidental. Como
se sabe do vocabulário da filosofia moral, o contrário da virtude é o vício. Antes mesmo
da emergência da história ciência no período contemporâneo, esse par de valores era
mobilizado na chave da história mestra da vida. Nesse dualismo esquemático coloca-se
a virtude como atributos do espírito e do intelecto. Sendo espírito e intelecto
metodologicamente expurgados de qualquer contaminação corpórea que os pudesse
comprometer. No outro espectro do saber o corpo é colocado como lugar/fonte dos
vícios — espirituais (no medievo) e epistêmicos (na modernidade). Por isso, o corpo
tem quer ser anulado para se chegar a verdade (seja da fé seja da ciência). Procedendo
dessa forma, o historiador pretende “ter apagado do seu próprio saber todos os traços do
querer (…) A objetividade do historiador é a interversão das relações do querer no saber
(...) o historiador pertence à família dos ascetas” (FOUCAULT, 2015, p.290).
As raízes do efeito que, hoje, nossos corpos produzem na escrita da história e os
efeitos que a história que produzimos produz sobre os corpos em parte está nessa
dispersão de objetos heterogêneos: o claustro medieval, as regras e exercícios
espirituais/mentais, os métodos e as críticas modernas. Minha hipótese, que ainda está
sendo desenvolvida, é que o estudo de inícios do período moderno (séculos XVI e
XVII) dialoga com muitos dos pressupostos que vieram a constituir a história disciplina.
Dessa forma, parte do passado da história disciplinar acadêmica, com a emergência da
crítica e da verdade como seus fundamentos, encontra-se em momentos diversos
anteriores a própria formação disciplinar e acadêmia dos séculos XIX e XX.

Bibliografia:
BAYLE, Pierre. Dictionaire Historique et Critique. Amsterdam, Leiden, Haya,
Utrecht, 1740.
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Ed. Unicamp, 1994 [1932].
COLLINGWOOD, R. G. A Ideia de História. Lisboa: Presença, 1972 [1942].
DASTON, Lorraine; GALISON, Peter. Objectivity. New York: Zone Books, 2007.
DESCARTES, René. Meditações sobre filosofia primeira. Campinas: ed. Unicamp,
2004 [1641].
________________. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2001 [1637].
DUSSEL, Enrique. Meditações anticartesianas sobre a origem do discurso filosófico da
modernidade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula.
Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2013.
FORLIN, Enéias. A concepção cartesiana do sujeito: a alma e animal racional.
Educação e Filosofia, v.25, N. Especial, p. 135-166, 2011.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de
Pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades
ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do
longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, v. 31, número 1, janeiro/abril de 2016.
LOYOLA, Ignácio de. Obras Completas. Madrid: Biblioteca de autores cristianos,
1963.

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