Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Vicente Ferreira Pastinha deu a vida pela capoeira angola, mas não foi reconhecido no
Brasil.
Um sábio tão genial não deveria ter acabado daquele jeito. Mas o fim trágico de Vicente
Ferreira Pastinha, o mestre Pastinha, revela de que forma o Brasil trata a sua memória.
Não era um homem das letras, é verdade, mas foi uma espécie de guardião de uma
cultura ancestral. A capoeira angola, que defendeu com uma abnegação religiosa, era o
seu principal cabedal. Por ela, divulgou o Brasil na África, ganhou fama e espaço em
jornais. Contudo, como um mártir incógnito de negros escravos como sua mãe, morreu
doente, cego e na miséria, sem ver o seu trabalho reconhecido no país.
Época de ouro
Exaltado por Jorge Amado e Caetano Veloso, Pastinha tem período áureo e chega ao
ápice em viagem à África
Posaram para foto nas escadas do avião. À frente, um senhor elegante, satisfeito e
sorridente. Nos degraus seguintes, logo abaixo, um time respeitável de nomes
excêntricos: José Gato, João Grande, Camafeu de Oxóssi, Gildo Alfinete e Roberto
Satanás. Reunido às pressas, o grupo partiria para a mais importante empreitada da
história da capoeira. Completaram a delegação de artistas e intelectuais brasileiros em
viagem inédita à África. Desfalcado de João Pequeno, o conjunto regido por Pastinha
representaria a Bahia em evento de afirmação da negritude. O outro lado do oceano
estava em festa.
Na capital do Senegal, Dakar, realizava-se o 1º Festival Mundial de Arte Negra. O ano é
1966 e os africanos conheceram a capoeira do Brasil na sua época de ouro. Ao carimbar
seu primeiro passaporte, Pastinha tornaria realidade desejo antigo. Tinha vontade de
mostrar para descendentes dos seus ancestrais o que havia feito de sua cultura. Sensação
semelhante a que viveu o ousado Ruy Barbosa ao pendurar tabuleta com os dizeres “dá-
se aula de inglês”, em plena Londres. “Eles gostaram do que viram. Fizemos uma
apresentação de gala”, assegura um dos membros da comissão, Gildo Alfinete. Era
capoeira afro-brasileira para africano ver.
O feito ganhou os jornais, virou música escrita pelo próprio Pastinha, entoada nas rodas
de capoeira, gravada na voz de Caetano Veloso: “Pastinha já foi à África, pra mostrar
capoeira do Brasil”, cantou Caetano, em Triste Bahia, como que lamentando a
passagem de um período que não mais poderia voltar. Antes, Pastinha e sua trupe já
haviam levado a arte da capoeira para Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro.
Colocaram 40 mil pessoas no ginásio Maracananzinho. “Os capoeiristas do centro
angola se exibiram no Aeroporto Santos Dumont. Pastinha, com seus 60 anos, lidera os
bambas da capoeira...”, noticiou o Diário Carioca, de 10 de abril de 1959.
Era o apogeu, tempos áureos para mestre Pastinha e sua academia, transformada em
passagem obrigatória para turistas que visitavam a Salvador dos anos 60. Desprendido,
sem amontoar bens materiais, Pastinha tinha fama de artista, era intelectual do povo,
célebre “vadio”. Sem nenhum tipo de formação acadêmica, transitou entre intelectuais,
jornalistas e políticos da época. Impunha respeito em qualquer meio. “Trouxe para a
capoeira referências de fora. Se comunicava com o mundo exterior. Apesar de ortodoxo
na estética, não se fechava no seu mundo”, analisa o pesquisador Frede Abreu.
Alimento cultural
“De repente um salto, uma volta sobre si mesmo, o pé solto no ar, o corpo leve, um
passo de balé, cadê o adversário? Quem teve a aventura de ver mestre Pastinha na roda
da capoeira, quem assistiu ao maravilhoso espetáculo de sua luta, quem o viu diante dos
berimbaus a comandar seus alunos, teve o privilégio de conhecer o capoeirista perfeito,
o primeiro, sem segundo”. Pastinha e Jorge Amado conversavam por horas e horas, nas
janelas dos casarões do Pelourinho ou na casa do escritor, no Rio Vermelho. Zélia
Gattai chegou a registrar em fotografia alguns desses encontros.
Pastinha teve estudo deficiente, cursou apenas alfabetização, mas compensava com a
sabedoria. A própria postura era de intelectual. “Um gentleman, homem fino”, atesta
Gildo Alfinete. Poderia discutir sobre qualquer assunto, com qualquer um que o
interpelasse. Estudiosos do mais alto gabarito iam à sua procura. Outros, chama a
atenção Ângelo Decânio, realizavam trabalhos irresponsáveis servindo-se do seu nome.
“Pastinha foi utilizado por muita gente inescrupulosa como alavanca social. Isso
desgastava o mestre, que era desprovido de ambições políticas”.
Segredos do berimbau
A música de Pastinha também seria motivo de estudos, dessa vez através da etno-
musicóloga Emília Biancardi. Em 1962, a pesquisadora visitou Pastinha com comissão
inteira de alunos do projeto Viva Bahia, primeiro grupo de estudos folclóricos do
estado. “Queria que meus alunos aprendessem os segredos do berimbau, a musicalidade
da capoeira”. O mestre ensinou com gosto, mas foi além. “Logo nas primeiras aulas já
estava na roda, ensinando capoeira”, revela. Não atrapalharia a pesquisa direcionada à
música. Emília Biancardi chegou à conclusão de que Pastinha também era excelente
compositor de ladainhas e tocador de berimbau, ao contrário do que diziam alguns.
“Tocava de forma tradicional, sem floreios. Não era um virtuoso como Canjiquinha ou
Waldemar. Seu berimbau era intimista e sentimental”, define a etno-musicóloga. Era a
forma de adequar o som do instrumento ao jogo. Ambos deveriam estar em perfeita
consonância. “Capoeira e música eram indissociáveis para Pastinha. Um era o corpo, o
outro o espírito”. Ingênuo, também não era capaz de dissociar a camaradagem dos
negócios. Não cobrava nada por sábias informações ou pela própria imagem, em
fotografias. “Houve quem chupasse a laranja e deixasse o bagaço”, acusa Emília
Biancardi. Solícito, o mestre atendia a todos, posava sem saber que era explorado, como
nas escadas do avião, satisfeito e sorridente.
Filósofo da capoeira
Pastinha escreveu sobre a necessidade de lutar pela nação, criticou a postura omissa dos
políticos, reconheceu sua própria pequenez diante da grandiosidade de Deus. “Ê maior é
Deus, maior é Deus, pequeno sou eu”. Não se considerava católico, nem do candomblé,
mas tinha discurso carregado de religiosidade, quase messiânico. “A capoeira entre as
lutas é a mais amável. Deus designou que fosse pura e bela. Devemos esquecer os
hábitos duvidosos. Temos que aprender a guardar bem as entradas de Satanás”.
História viva
As páginas dos manuscritos são também uma espécie de diário, a história viva do
Centro Esportivo de Capoeira Angola e da saga dos angoleiros na Bahia. Pastinha fala
de um início difícil e de conflitos políticos que por pouco não condenaram a capoeira
tradicional à extinção. Detalha as intrigas internas que tinha que administrar. Trata das
mortes de Amorzinho e Aberrê, que fizeram-no hesitar na continuidade do ousado
projeto, até a festejada inauguração do centro, em 1949. “As primeiras camisas foram
feitas no Bigode (Brotas), em cores preto e amarelo”, relata Pastinha.
Alguns dos amigos e discípulos ficaram com a herança filosófica de Pastinha, quando
da sua morte. A coletânea de manuscritos avulsos foram parar nas mãos do artista
plástico Carybé, posteriormente doados a Decânio. O “caderno albo” pertenceu ao
deputado Wilson Lins. “Impressionante como ambos continuam atuais. Os escritos de
mestre Pastinha são uma prova de que os saberes populares não podem ser considerados
menos importantes que os saberes científicos”, opina o educador Pedro Abib. Ainda há
outros documentos escritos à mão pelo mestre. No seu acervo, Gildo Alfinete guarda,
além de manuscritos, uma enorme lona com caligrafia de Pastinha, a qual era estendida
na academia.
De próprio punho, o mestre também fez pinturas em tela. Nos quadros, assim como nos
desenhos, utilizou a capoeira para expressar seu tino pelas artes plásticas. O único
trabalho que deixou devidamente editado foi um livreto intitulado Capoeira Angola,
com publicação em 1964. Dedica os primeiros capítulos à ética e à formação moral do
capoeirista. Depois, surpreendentemente, transforma o livro em verdadeiro manual de
golpes. Através de fotografias, demonstra cada um dos mecanismos de ataque e defesa
da capoeira. Antes, porém, faz uma ressalva. “Não tive a pretensão de descrever a
capoeira em suas minúcias, nem fazer capoeiritas com a simples leitura”.
Sementes de Pastinha
O mestre sabia que capoeira se aprende jogando, e com o estudo da sua filosofia.
Exatamente como fazem alguns dos seus discípulos, a maior herança filosófica de
Pastinha. “Os meus discípulos zelam por mim. Os olhos deles são os meus”. Aos 86
anos, João Pequeno parece impregnado dos seus preceitos. A ponto de ter sido
agraciado com o nome do mestre: “João Pequeno de Pastinha”. Pequeno forma dupla de
guardiões da capoeira angola com João Grande, do qual Pastinha ficaria orgulhoso se
estivesse vivo. Grande alçou vôo alto, aos 76 anos, mora em Nova York, nos Estados
Unidos, onde cobra US$15 por hora-aula aos seus mais de 100 alunos.
Saiu da lavoura, em Itagi, para ser premiado Doutor Honoris Causa pela Universidade
Upsala College, de Nova Jersey. Não deixa o hábito de mascar cravos e usar a peculiar
boina. “Quanto aos discípulos, ele acertou em cheio. João Pequeno e João Grande
levaram pra frente o seu projeto de vida. São, de fato, os caras que amam a capoeira, as
sementes de Pastinha”, aposta Frede Abreu. “A cultura popular é dinâmica. Mas
existem muitos sinais da tradição ainda presentes nas formas de transmissão daqueles
saberes, que os dois joões mantêm nas suas escolas”, complementa Pedro Abib.
Aqueles saberes iam da mais pura sabedoria popular às mais complexas e abstratas
noções. “Qual o golpe mais importante da capoeira?”, perguntou uma jornalista. Era a
deixa para resposta irônica. “A carreira. Se não pode enfrentar o adversário, corra”.
Curiosa versatilidade de idéias. Escrevia muito e falava pouco, mas quando se fazia
ouvir a voz mansa e arrastada, disparava pérolas. “Você tem uma boca e duas orelhas. É
pra ouvir mais e falar menos”. Bebia na cultura popular para brincar com as palavras.
Assim deixou sua herança. “O grande filósofo da capoeira. Não teve outro, não tem,
nem vai ter”, profetiza Frede Abreu.
Mestre sacerdote
-Tem jeito não, Pastinha... É você mesmo que vai tomar conta disso aqui...
- Há muito que eu esperava para lhe entregar essa capoeira para o senhor mestrar...
Sabiam de sua inteligência. Eram mestres da antiga Gengibirra, ponto de encontro dos
maiores capoeiristas de Salvador nas primeiras décadas do século passado. Amorzinho,
Maré, Noronha, Aberrê, Livino e tantos outros reconheceram à sua frente não apenas
um transmissor de ensinamentos práticos, mas um homem de avançada sabedoria, capaz
de conduzir os destinos da capoeira angola, tirando-a da marginalidade. “Eles viram em
Pastinha um sujeito de visão. Por isso entregaram a ele a missão de reerguer uma prática
que andava esquecida”, explica o pesquisador Frede Abreu, idealizador do Instituto Jair
Moura, o maior acervo de capoeira do mundo.
Durante as quatro décadas que esteve à frente do Centro Esportivo de Capoeira Angola
(Ceca), academia que funcionou por 18 anos no Largo do Pelourinho, número 19,
Pastinha procedeu como autêntico “velho mestre”. O termo refere-se aos fundadores da
tradição afro-baiana de praticar capoeira, a exemplo dos que se reuniam na Gengibirra,
no bairro da Liberdade. “Naquele tempo para ser mestre na arte da capoeira tinha que
ser artista na vida”, escreve Frede Abreu em um dos seus artigos. Pastinha não só
seguiria esse preceito à risca como o tornou patente para os seus seguidores.
Sem negar as tradições, criou nova forma de ensino. Adaptou à sua pedagogia
características de esporte. Lhe deu, literalmente, nova roupagem. Seus alunos usavam
uma espécie de “hábito” com as cores amarela e preta, em homenagem ao clube do
coração, o Ypiranga. Deveriam estar com as vestimentas impecáveis. Pastinha não
tolerava o desleixo. “O jogo precisa ser jogado sem sujar a roupa, sem tocar o corpo no
chão”, aconselhava. Assim instituiu verdadeiros dogmas, criou preceitos, pregou
obediência quase cega às regras. Era a resposta à capoeira regional, criada por mestre
Bimba.
A gênese de eterna rivalidade se deu quando Pastinha tornou os angoleiros
reconhecidos, assim como Bimba fez com os regionais. “Regional e angola, cisões na
capoeira, problema de difícil solução. Melhor gingar, passar pra outro parágrafo...”,
ironizou o antropólogo Antônio Liberac, no livro Bimba, Pastinha e Besouro de
Mangangá, que desvenda a vida dos três maiores nomes da capoeira na Bahia. O
terceiro capítulo dedicado a Pastinha revela a trajetória de um homem que mudou os
rumos da capoeira angola, tendo rompido com os capoeiristas desordeiros que
aterrorizavam a antiga Salvador.
Sua academia ganhou notoriedade, virou centro de grande reputação. Passou a ser
freqüentada por intelectuais, políticos e artistas. A fama não o fez acumular riquezas,
nem representaram a quebra com os antigos valores. Ao contrário, as rodas organizadas
por Pastinha se mantiveram como um ritual, quase como um culto. “Era um místico.
Vivia a capoeira com intensidade e realizava a sua própria interpretação daquele
universo”, observa o artista plástico Mário Cravo, visitante assíduo.
“Ocê não pode brigar com aquele menino, aquele menino é mais ativo que ocê, aquele
menino é malandro. O tempo que você perde empinando raia vem aqui que eu vou te
ensinar capoeira”, incitou. A partir dali não deixaria mais de lutar, nem quando a polícia
importunava as rodas no meio da rua, conforme descreve antiga matéria do jornal A
Tarde. “Nos tempos de jovem, em que a mocidade freqüentava o famoso Campo da
Pólvora, Vicente Pastinha fechou o tempo muitas vezes, pondo por terra vários policiais
de uma só vez”. Era a prova de que se tratava também de exímio capoeirista, apesar da
estatura diminuta: 1,56m.
“Dos antigos, não tinha nenhum pra pular na frente dele”, garante mestre João Pequeno,
89 anos, seu mais velho discípulo. “Na hora da precisão fazia miserê com as pernas”,
relata mestre João Grande, 76 anos, que junto com Pequeno leva à frente seus
ensinamentos. O próprio Pastinha desafiava. “Ninguém ainda me botou no chão e nem
ainda vai botar”. Salteou os adversários mas não conseguiu contragolpear os dois
derrames cerebrais, acompanhados da cegueira. Em 1966, na histórica viagem à África,
daria seu último suspiro glorioso. Mostrou a capoeira do Brasil para os africanos.
Tateando no escuro
Pastinha ficou cego e teve o mesmo final trágico da maioria dos ‘velhos mestres’
Esquivou-se com peculiar malícia, como que tentando livrar-se de golpe mortal. Foi em
vão. Em toda a sua trajetória seria o único ataque a que não teria defesa. Acertou-o em
cheio.
- Pastinha, que é que tá sentindo?
Definitivamente não estava. Vivia em quarto escuro, sujo, sombrio. Enxergava apenas o
negrume. Duro golpe de deslealdade havia lhe deixado cego. É verdade que dois
derrames cerebrais subtraíram sua visão, talvez resultado das baforadas de cigarro,
companheiro inseparável. Mas nada perturbaria tanto seus sentidos que a traiçoeira
infidelidade, tão devastadora quanto o “furo nos olhos”. Sem maiores explicações, em
1973, tiraram-lhe seu maior bem, o Centro Esportivo de Capoeira Angola.
Seria “despejo” temporário, uma simples reforma nas dependências do velho casarão.
Como a própria cegueira, porém, foi definitiva. A academia se transformaria em
restaurante, o Senac, no Largo do Pelourinho. O espaço não alimentaria culturalmente
baianos e turistas, como fazia o centro de Pastinha. O mestre havia perdido sua maior
fonte de renda. Segundo jornais da época, sequer recebeu indenização e alguns dos
pertences que deixou no local teriam sido extraviados. “Quadros pintados por ele,
livros, registros da academia, cartas, bandeiras, móveis em jacarandá, desapareceram
apesar de ter ficado sob a guarda dos responsáveis pela desapropriação”, escreveu A
República.
“A saída do Pelourinho foi trágica. Nos enganaram. Disseram que seria por uns dias”,
testemunha Jaime Martins dos Santos, o mestre Curió, em depoimento no documentário
Pastinha: uma vida pela capoeira, de Antônio Muricy. A transferência para cortiço
pequeno e sem estrutura, na Ladeira do Ferrão, também conhecida como Ladeira do
Mijo, era o princípio do declínio. Pastinha não havia acumulado capital para superar a
crise. Já empobrecido, ficou em estado de penúria. Durante certo tempo ocultaria a
mágoa. Depois, quebraria o silêncio. “Nada vejo. Nada, absolutamente nada. Trevas,
trevas. Estou na miséria”, revelou.
Revolta e amargura
Provaria isso cego. “Sem enxergar, jogava no tato”, testemunha o mestre Boca Rica. Em
visita a Salvador, o jornalista Roberto Freire se surpreenderia com aquele velhote, que
em vez de bengala branca usava a intuição para continuar superando adversários. “Ele
lutava cego. Os alunos mantinham distância e pensei que fosse respeito. Até que um
deles me disse: ‘Se a gente chegar mais perto, leva’”, narra Freire. Participaria de rodas
de capoeira até quando suportasse. Impossibilitado de andar, recolheria-se aos precários
aposentos, pondo-se apenas a pensar como um rabino.
Sábio, até o final dos seus dias, Pastinha filosofou sobre a particular decadência.
Desenvolveu reflexão sobre o próprio infortúnio. Em matéria do jornal A Tarde, com
subtítulo “Tateando no Escuro”, o mestre tenta explicar a tragédia em que havia se
enterrado. “Engraçada a vida. A fama chegou para mim (...) No princípio sentia uma
vaidade e pensava: formidável, todos falam de mim, um mulatinho filho de escravo.
Terrível é descobrir que tudo isso é falso. A única coisa real foi a capoeira”,
Ajuda de custo
Mas Pastinha sabia que poderia contar com alguns dos seus. O escritor Jorge Amado
interveio junto ao então governador Antonio Carlos Magalhães para que o mestre
recebesse ajuda de custo de 300 cruzeiros e pensão vitalícia por “serviços prestados ao
turismo”. “Mestre Pastinha merece ter uma situação excepcional na Bahia. Trata-se de
um grande mestre da nossa cultura popular e deveria ser amparado pelos poderes
públicos e pela população. É o guardião de preciosidade da nossa cultura, a capoeira
angola”, alertou Jorge Amado.
Ainda que não devolvessem sua academia, Pastinha reivindicava reconhecimento.
Queria que o governo Luiz Viana Filho o apoiasse no projeto de tornar sua capoeira um
referencial para o turismo em Salvador”. Não foi atendido. “Solicitei ao governador um
auxílio para restaurar a academia. Até agora, porém, apenas promessas”. O socorro viria
de outras partes. Artistas como Moraes Moreira chegaram a realizar shows beneficentes
para arrecadar fundos. O próprio Bimba teria feito apresentação em prol de Pastinha.
“João Pequeno e João Grande também foram solidários na medida do possível. A
verdade é que a maioria dos seus alunos não tinha condições”, explica Frede Abreu.
Asilado, não ficaria em paz. A fama faria com que sua figura continuasse tão cultuada
quanto explorada. “Vem gente aqui tirar fotos dele e vender por 700 cruzeiros”,
denunciou Romélia. Terminaria, assim, definhando em cima de uma cama, sem dentes,
com os olhos revirados e servindo de modelo. Em 13 de novembro de 1981, morre aos
92 anos. Há controvérsias sobre quem teria custeado o enterro no cemitério do Campo
Santo. A viúva dizia que foi ela, com o dinheiro do acarajé. Alguns sugerem que foi a
prefeitura. Certo é que o grande mestre sacerdote, que fez da roda de capoeira teatro,
mostrou sua arte afro-brasileira para os africanos e filosofou com a cultura popular,
terminou cego, pobre e famoso. Morreu como mártir, tateando no escuro.
Tradição reinventada
As gravações em película são de 1949. O filme de Alceu Maynard não tem mais do que
15 minutos, mas é uma das raríssimas gravações em que Pastinha aparece em ação. Ali
a brutalidade já havia sido banida das rodas do mestre. O estilo Pastinha é lento,
cadenciado, sem que necessariamente seja preciso atingir o adversário. “Tem que fazer
que vai e não vai quando menos se espera”, sugeria. Pensou a capoeira para que fosse
aceita por todos, sem exceção. “É pra homem, menino e mulher. Só não joga quem não
quer”. Na roda em que Pastinha era o mestre, quase tudo não passava de representação,
era brincadeira controladamente arriscada.
Para tanto foi preciso voltar no tempo, reinventar antiga tradição. Como guardião dos
segredos de angola apresentava sua capoeira como original, pura, fruto da experiência
africana e escrava no Brasil. Buscou traços primitivos nos rituais religiosos dos
candomblés, nas danças dos ancestrais e até nos movimentos dos bichos. “Nessas
práticas estariam a essência da capoeira. Com elas teria ganhado movimentos lúdicos e
de defesa”, aposta o antropólogo Antônio Liberac. Ao adequar os ritos africanos às
regras do jogo, criou modelo único e inovador.
Faceta marginal
O resgate do passado significou a quebra dos laços com a rua. Pastinha consegue tirar a
capoeira da desorganização e termina por romper culturalmente com sua faceta
marginal, vinculada ao crime. “Eu sei que tudo isso é mancha suja na história da
capoeira. Mas um revólver tem culpa dos crimes que pratica?”, questiona. Eram tempos
de arruaça e diversão. “Nas primeiras décadas do século passado, a capoeira estava
entre a ordem e a desordem, a violência e a festa”, analisa Adriana Albert Dias, autora
de Mandinga, manha e malícia, livro que reconstitui o cotidiano dos capoeiristas entre
1910 e 1925.
Quando jovem, tais contradições são vivenciadas de perto pelo próprio Pastinha. Por
“vadiagem”, o nome do mestre foi parar algumas vezes nas fichas policiais. Não andava
desprevenido. Usava faca de dois cortes na cintura e pequena foice no cabo do berimbau
para se proteger das ações da polícia, geralmente iniciadas por pura provocação. “Se
estava numa vadiação, num grupo com o berimbau na mão, eles passavam e entendiam
de tomar. Aí inflamava, né? Tive algumas vezes a polícia encima de mim. Bati alguma
vez em polícia desabusado, mas em defesa de minha moral e do meu corpo”.
A saída seria realizar as rodas em locais fechados, longe dos olhos das autoridades.
Pastinha tinha planos audaciosos para fazer da capoeira prática reconhecida e
valorizada. Chegou a criar algumas academias de treinamento, ainda sem estrutura.
Somente com o convite da Gengibirra pôde realizar seu maior sonho, a fundação do
Centro Esportivo de Capoeira Angola (Ceca), em Brotas, mais tarde transferido para o
Pelourinho. “Dentro da academia seu ensino foi fundamentado na valorização da cultura
afro-brasileira e em princípios éticos bem diferentes do que se aprendia nos tempos dos
valentões”, compara o capoeirista e doutor em educação pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) Pedro Abib.
Hierarquias complexas
Pastinha cria regras para o jogo e proíbe golpes traiçoeiros, como o dedo nos olhos, a
cabeçada solta e a meia-lua baixa. Elabora hierarquias complexas para que a capoeira
seja praticada de forma desportiva. “Deu ao centro mestre de campo, mestre de canto,
mestre de bateria, mestre de treinos, contramestre, arquivista...”, enumera Ângelo
Decânio Filho, estudioso dos seus manuscritos. “O próprio uniforme preto e amarelo,
inspirado nas cores do Ypiranga, representou mudança voltada para os princípios
acadêmicos. Mestre Pastinha não consentia que se jogasse descalço e sem camisa em
sua academia”, confirma trecho do livro de Liberac. Em 1952, redige-se o primeiro
estatuto do Ceca.
Duelo de titãs
Fala-se, inclusive, numa carta de Pastinha, enviada a Bimba, convidando-o para visitar a
academia. O mestre nunca se fez presente, mas teria enviado alguns regionais. “Eles iam
vadiar com a gente, sim. Ezequiel, Itapuã, Camisa Roxa, eram todos da capoeira
regional”, recorda mestre João Grande, seguidor de Pastinha. Apesar das ponderações,
as “alfinetadas” permanecem até hoje, principalmente nas palavras do angoleiro Gildo
Lemos Couto, o Gildo Alfinete. “Bimba usou a capoeira para transformá-la numa outra
coisa. Como alguém vai roubar sua mulher e você vai gostar?”, polemiza.
Ao esgueirar-se pelos dois ambientes, Ângelo Decânio Filho parece encontrar o cerne
da questão. “A discussão se mantém porque Bimba é a face belicosa e guerreira.
Pastinha é o exercício da habilidade, onde se mostra ao adversário que pode atingi-lo,
mas não o faz”. De fato, Bimba voa sobre o oponente, tira o corpo do chão em ataque
certeiro. Pastinha atua, finge-se bêbado, faz da roda teatro, representa personagem em
jogo lento, não menos fulminante. Traz à memória aquelas imagens em que aparece no
filme de 1949, com ginga inconfundível, num nostálgico preto-e-branco.
Alexandre Lyrio-alyrio@correiodabahia.com.br
A capoeira é amorosa, não é perversa. É um hábito cortês que criamos dentro de nós,
uma coisa vagabunda. (Mestre Pastinha)
Sobre a ética no jogo
Sobre a ética no jogo
"Não deve ser aplicado e nem forçar o seu companheiro para obter recursos é erros
gravissimo, esta sujeito o fiscal suspender o jogo."
Fontes:
Angelo A. Decanio Filho. Manuscritos e desenhos de Mestre Pastinha.
Angelo A. Decanio Filho. A herança de Pastinha. 2 ed. 1997.
Sobre o jogo
Sobre o jogo
... "e a capoeira vem amofinando-se quando no passado ela era violenta, muitos mestres,
e outros nos chamavam atensão, quando não estava no ritimo, esplicava com decencia, e
dava-nos educação dentro do esporte da capoeira, esta é arazão que todos que vieram do
passado tem jogo de corpo e ritimo."
"Porque dizem que a capoeira não tem glopés? Se a capoeira não tem golpes? Os
caboclos, não lutavam, os nagôs não idealisavam no batuque, na dança do candobre, o
batuque é luta, o candobre é para da volta no corpo, que eles diziam, ginga meu fio, pra
dibra das garras do agressor. e o restos não é mais com migo."
..."pode ser visto do melhor professor ou instrutor, é e é perigosa, não é falcificada, para
iludir, é ativos, é mais gingada, é mais manhosa, muita artimanha, ensina sentar-se,
encoslar-se. se for possive ele deita-se, para poder aplicar o serteiro; bem poucos sabe
ensinar, eu falo, eu sei, porque tive bom mestre, e eu não enventei; eu vi e achei bom, e
aprendi no circo de cadeiras, para aprender o jogo de dentro..."
"É dever de todos capoeiristas, não é defeito não saber cantar; mais é defeito não saber
responder, pelo meno o côro. É probido na bateria pessôas que não respondem ao côro."
"Porque cantam com inredo? inprovizado? É para quando chegar na roda pesôas que é
estranha, ou mestre, o improviso adverte a roda se deve ou não continuá, ou anima-se."
"Em todas rodas, ou grupos de capoeira coloca-se uma moeda no centro da arena, os
dois camaradas vão disputar para apanha-lo com os lábios em primeiro lugar."
"Porque trena-se apanhar a moeda com a boca? Não é com interesse na moeda qui tem
valor Dinheiro, é para na hora de aperto, aplica-se o truque, e o agressor, vai, ou não, na
onda."
Fontes:
Angelo A. Decanio Filho. Manuscritos e desenhos de Mestre Pastinha.
Angelo A. Decanio Filho. A herança de Pastinha. 2 ed. 1997.
Sobre o pensamento
Sobre o pensamento
"O bom capoeirista espera, o ambicioso agita-se e precipita-se, o famoso o povo lhe
diz."
Fontes:
Angelo A. Decanio Filho. Manuscritos e desenhos de Mestre Pastinha.
Angelo A. Decanio Filho. A herança de Pastinha. 2 ed. 1997.
Sobre os deveres
Sobre os deveres do capoeirista
"O bom capoeirista nunca se exalta procura sempre estar calmo para poder reflitir com
percisão e acerto; não discute com seus camaradas ou alunos, não touma o jogo sem ser
sua vez; para não aborrecer os companheiros e dai surgir uma rixa; ensinar aos seus
alunos - sem procurar fazer exibição de modo agresivo nem apresentar-se de modo
discortez..."
"... não devemos procurar ficar isolado, porque nada podemos fazer; é muito certo o
trocado popular que diz: a união faz a força..."
"E, vocês do futuro, firme por amôr ao esporte mais tambem pelo seu cavalheirismo
esportivo. É uma recomendação para o respeito as regras e aos regulamentos escritos;
Um apelo para que procedamos correto e decentemente os aspectos de nossa vida na
sociedade; um apelo que sendo atendido estamos sujeito a obter justa vantagem em
qualquer ciscunstancia."
"Não queiram a prender a capoeira para valentia, mais sim, para a defeza de sua
intregridade fisica, pois um dia, pode ter necessidade de usa-la para sua defeza. Cuja
defeza é contra a qualquer agressor, que venha-lhe ao encontro com navalha, faca, foice
e outras armas."
..."para ser bom, é perciso ser completo no fundamento do teu esporte; quando uma
pessoa te pedir uma esplicação não responder coisas que não pode ser bem, fere sua
ação porficional. todos tem direito de ensinar, porem não de desvalorisar quem ja está a
visto do publico..."
..."é dever de construir para os infantius uma personalidade -- digna de admiração, não
devem faltar as regras da disciplina, civilidade, do respeito às atenções, a bôa
disposição, o bôm humor, a solidariedade, a lealdade, e o amor a verdade; estes são os
alicerces que darão estabilidade à estrutura moral do ser..."
..."cada capoeiristas responde pelo que é do seu dever, sabendo as responsabilidade com
elas o dever, aumentam o crescimento do seu saber: o amigo antes de associa-se, não
compromeita a produzir, mais do que permita sua capacidade; dentro de suas
possibilidades, não vacile, em prometer sem reservas, deve ser ao seu alcance fazer; dai
vem a razão de ser privinido, e estar sempre vigilante, sempre alerta, sempre atento em
seus deveres, sempre convicto de cumprir ao centro, academia, e ao seu negocio
particula."
Fontes:
Angelo A. Decanio Filho. Manuscritos e desenhos de Mestre Pastinha.
Angelo A. Decanio Filho. A herança de Pastinha. 2 ed. 1997.
Sobre os mestres
Sobre os mestres
"Não é permitido, por mestre nenhum, se ele mestre for conhecedor das regras da
capoeira, não consentir jogar em roda, ou grupo sem fiscal, se não tem como pode ter
controle, quem ajuda o campo?"
"Todos os mestres tem por dever fazer ciente que é falta usar as
mãos no seu adversario; se não fizer assim, não prova ser
mestre, os que tem educação prova a sua decensia jogando com
seu camarada e não procura conquista para enporcalhar seu
companheiro, já é tempo de compreender, ajudar do seu esporte,
é a judar a moralisar; levantar a capoeira, que já estava
decrecendo."
..."é o controle do jogo que protege aqueles que o praticam para que não discambe
exesso do vale tudo note bem, estou falando em cintido de demonstração, e não de
desafio, porque sempre traz consequencias as vezes desastrosas; tira toda a beleza e o
brilho da capoeira, e o capoeirista perde a sua capacidade por falta de explicação."
Fontes:
Angelo A. Decanio Filho. Manuscritos e desenhos de Mestre Pastinha.
Angelo A. Decanio Filho. A herança de Pastinha. 2 ed. 1997
"Eu ti digo, comecei a educar-me nesse jogo, por força de vontade, e não foi com trez
meses, ou com menos, porque o tempo é muito pouco, poristo é que eu pinoteio, salto,
tenho agilidade, tenho manhas, jogo no corpo, dibre para me livra do agressor, sirvo-me
dos pés, da cabeça ..."
"Em cada Districtos tinha um mestre para ensinar e nos dias de festa, era de regras,
prestar contas, mostra os alunos, mostra coisa nova, truques, inrêdos, enprovisado, e o
mestre em geral, classificavam com uma argola, era o premio, era de grande valor,
prova de mericimento... "
"E o meu mestre bôm, eu aprendi na rua da laranjeiro, e lesionei na rua Sta. Izabel em
1910 a 1912, quando eu abandonei a capoeira, e voltei, em 1941, para organizar o
Centro de capoeira o 1o na Bahia. Na escola de Aprendiz Marinheiro da Bahia eu era o
110, e lecionei os meus camaradas de 1902 a 1909,..."
Fontes:
Angelo A. Decanio Filho. Manuscritos e desenhos de Mestre
Pastinha.
Angelo A. Decanio Filho. A herança de Pastinha. 2 ed. 1997.
"A capoeira é a segunda luta? Porque a primeira é a dos caboclos, e os africanos juntou-
se com a dança, partes do batuque e parte do candombrê, procuraram sua modalidade."
"Em cada freguizia um africano com uma responsabilidade de ensinar, para fazer dela
sua arma contra o seu perseguidor..."
..."a capoeira de acordo a falta dos africanos, a capoeira foi escasiando-se, porque, era,
natural que os mestres recuram, e ficou deminuida, e muitos outros foram espalhando-
se, enquanto ela escurasada, e tomou, São Feliz, Cachoeira, Santo Amaro..."
Fontes:
Angelo A. Decanio Filho. Manuscritos e desenhos de Mestre Pastinha.