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Síntese da teoria da comparticipação criminosa

1 A teoria da comparticipação criminosa, que distingue entre autores e


participantes no crime, é uma teoria dos tipos de crime dolosos. No
âmbito dos crimes por negligência vigora o conceito unitário de autor,
segundo o qual é autor todo aquele que contribui causalmente para a
realização do facto mediante a violação de um dever objectivo de
cuidado (para maior desenvolvimento, cfr. Conceição Valdágua, Início da
Tentativa do Co-autor, 2ª ed., 1993, pgs. 18 ss.; Figueiredo Dias, Direito Penal,
Sumários e notas das Lições ao 1º ano do Curso Complementar de Ciências Jurídicas
da Faculdade de Direito, Coimbra, 1976, ).

No nosso ordenamento jurídico-penal o conceito unitário de autor não é


aplicável aos crimes dolosos, no âmbito dos quais importa distinguir os
autores (art. 26º, 1ª, 2ª e 3ª proposições, respectivamente autor directo
ou imediato, autor mediato e co-autor) dos participantes (instigadores e
cumplices, art. 26º, 4ª proposição e art. 27º, respectivamente), cuja
responsabilidade está sujeita ao princípio da acessoriedade limitada.
Isto significa que o autor tem que, pelo menos, dolosamente dar início à
execução de um facto típico e ilícito para que os participantes nesse facto
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possam ser punidos - como resulta da conjugação da 4ª proposição do


art. 26º e do art. 27º com o art. 29º ( cfr., sobre a acessoriedade da participação,
Conceição Valdágua, ob. cit., pgs. 21 s., 39 s. e 103 ss.; Figueiredo Dias, ob. cit., p.
81 s.; Teresa Beleza, Direito Penal, 2º vol., A.A.F.D.L., 1983, ps. 478 ss.), sendo

de notar que o art. 27º, nº 2, contempla uma atenuação especial


obrigatória da pena para a cumplicidade. Caso fique apenas na forma
tentada o facto em que o cúmplice participa este beneficiará de uma
dupla atenuação especial obrigatória da pena: a atenuação especial
obrigatória relativa à cumplicidade e a relativa à tentativa , como resulta
da conjugação dos arts. 23º, nº 2, e 27º, n. 2 ( cfr. Conceição Valdágua, ob.
cit., pgs. 21s., 29, 39 e 42).

Por razões idênticas é também de recusar a aplicabilidade no direito


penal português do conceito extensivo de autor que, tal como o conceito
unitário, parte da causalidade e apenas se distingue dele por admitir que,
na Parte Geral dos Códigos Penais, se restrinja o âmbito da autoria
excluindo dela casos de participação no crime ( cfr. Conceição Valdágua, ob.
cit, pgs. 18 s., n. 6 e p. 37).

O nosso Código Penal consagra um conceito restritivo de autor,


segundo o qual a autoria é sempre aferida pela realização do tipo legal de
crime e a participação (instigação e cumplicidade) só é punível por força
da extensão dos tipos da Parte Especial, uma vez que os participantes
não realizam actos de execução do tipo (cfr. Conceição Valdágua, ob. cit.,
pgs. 18 s., n. 6).
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2 Sobre a distinção entre autoria e participação surgiram, ao longo da


história do Direito Penal, várias teorias, de entre as quais cumpre
destacar as seguintes:

2.1 A teoria formal objectiva, segundo a qual autor é todo aquele que
leva a cabo ou executa, por si mesmo, total ou parcialmente a conduta
descrita no tipo legal de crime (cfr. Conceição Valdágua, ob. cit., pgs. 16, n. 3,
61, 135, n.311; Figueiredo Dias, ob. cit, p. 44 s.; Teresa Beleza, ob. cit., p. 430).

Esta teoria é insatisfatória porque, exigindo que o autor execute por si


mesmo o crime, não explica a autoria mediata (na qual o autor mediato
não realiza por si mesmo a conduta típica) nem explica muitos casos de
co-autoria em que algum(s) co-autor(es) também não realiza(m), por si
mesmo(s), a conduta descrita no tipo legal de crime. De acordo com esta
teoria não seria co-autor do homicídio, por exemplo, aquele que segura
a vítima para que outro lhe espete o punhal no coração, nem aquele que
desvia a atenção da vítima para que outro lhe ponha na bebida um
veneno mortal, uma vez que, em nenhum destes exemplos o agente
realiza por si mesmo a conduta típica.

2.2 A teoria subjectiva que parte da ideia de que não é possível distinguir
entre autores e participantes recorrendo a critérios objectivos, porque é
igual a relevância causal dos contributos de todos eles. Por isso utiliza
um critério subjectivo de acordo com o qual é autor quem actua com
animus auctoris (quem quer o crime como seu) e participante quem
actua com animus socii (quem só quer participar no crime de outrem)
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(cfr. Conceição Valdágua, ob. cit., pgs. 53, n.65, 134 s., n.310; Figueiredo Dias, ob.
cit., ps. 45 s.; Teresa Beleza, ob. cit., ps. 432 ss.).

Esta teoria é inaceitável porque leva ao absurdo de, em determinadas


situações, punir como cúmplice quem executa por si mesmo o crime e
como autor quem apenas auxilia o autor a executar o facto. Foi o que
aconteceu no famoso "caso Stachynskj", em que um tribunal alemão
condenou apenas como cumplice um espião russo que, a soldo da União
Soviética, matou dois conterrâneos seus, exilados na Alemanha. O
tribunal considerou que o espião era apenas cumplice porque não tinha
querido o crime como seu, mas sim como de outrem, ou seja, só tinha
actuado com “animus socii”. "Autora" do crime seria a União Soviética,
apenas porque o tinha querido como seu (“animus auctoris”). Do mesmo
modo no chamado "caso da banheira", em que uma mulher, que deu à luz
um filho ilegítimo, para ocultar a desonra, pediu a sua irmã que afogasse
a criança na banheira, o tribunal condenou a mãe como autora, por ter
“animus auctoris” e a tia, que afogou a criança, foi condenada como
cúmplice, por ter “animus socii”.

2.3 A teoria material objectiva que supõe haver uma diferença na


causalidade dos contributos dos autores e dos participantes, a qual se
determinaria por recurso à formula de Farinacio: auxiliator causam dans
e auxiliator causam non dans. Assim, seria autor quem dá causa
essencial e participante quem não dá causa essencial ( cfr. Conceição
Valdágua, ob. cit., pg. 135, n. 311; Figueiredo Dias, ob. cit., ps. 47 ss.; Teresa
Beleza, ob. cit., ps. 432 ss.).
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Esta teoria é também de rejeitar porque erige em fundamento e critério


da autoria a causalidade necessária, que depende apenas do acaso, e vem
a punir actos meramente preparatórios como actos de execução do crime,
violando, assim, o princípio da legalidade. Ela faz depender a
qualificação do agente, como autor ou como cúmplice, da conduta de
outras pessoas. Assim, se, por exemplo, um farmacêutico vende a uma
mulher um abortivo, (o exemplo é dado por Figueiredo Dias, ob. cit., p.
49), ele será autor ou cúmplice do aborto consoante haja ou não outro
farmacêutico que esteja disposto a vender o mesmo abortivo. De igual
modo, quem empresta uma caneta para a falsificação de um documento
será autor ou cúmplice da falsificação consoante haja ou não outra
pessoa disposta a prestar o mesmo contributo para o facto.

2.4 A teoria do domínio do facto, hoje absolutamente dominante, diz que é


autor quem tem o domínio do facto, isto é, quem tem nas mãos o poder
de fazer gorar a execução do crime (que designamos por domínio
negativo do facto) ou de a fazer prosseguir até à consumação (a que
chamamos domínio positivo do facto). (cfr. Conceição Valdágua, ob. cit., ps.
68 ss., 133 ss., 145 ss., 162 s.)

Segundo Roxin, a quem se deve o desenvolvimento da teoria do domínio


do facto, este pode manifestar-se por três formas, que correspondem às
três modalidades de autoria (cfr. Conceição Valdágua, ob. cit., pgs. 68 ss.):

a) domínio da acção, característico da autoria singular, em que o autor


domina a execução do crime através do domínio da sua própria acção;
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b) domínio da vontade do executor, característico da autoria mediata, em


que o autor mediato domina a execução do crime através do domínio da
vontade do executor do facto;

c) domínio funcional do facto, característico da co-autoria, em que cada


co-autor domina a execução do facto através do domínio do seu próprio
contributo para o facto.

A teoria do domínio do facto pode ser, realmente, um bom instrumento


para nos auxiliar na distinção entre autores e participantes. No entanto,
para que seja respeitada a referência do conceito de autor ao tipo legal de
crime, como exige um conceito restritivo de autor, e não se viole o
princípio da tipicidade (decorrente, como se sabe, do princípio da
legalidade), é necessário que o agente exerça(1) o domínio positivo(1)
do facto típico(2). Não basta, a nosso ver, para fundamentar a autoria, a
simples detenção do domínio do facto nem o exercício do domínio
negativo do facto. Quem tem o domínio do facto mas não chega a
exercê-lo positivamente, dando, pelo menos, início à execução do crime,
não chega a ser autor de nenhum crime ( cfr. Conceição Valdágua, ob. cit., ps.
147 ss.).

(1) Exemplo: A quer matar B, espera-o em determinado local pronto a


disparar uma arma de fogo sobre ele. No entanto, no momento em que B
passa A decide não o matar. Neste caso A detinha o domínio positivo e
negativo do facto típico de homicídio (o poder de matar ou não matar),
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mas não exerceu o domínio positivo e por isso não pode ser autor do
homicídio de B.

(2) Quem empresta uma pistola ou vende um veneno para a prática de


um homicídio ou quem nada faz para impedir um furto que sabe que se
vai cometer, tem o domínio do facto que pratica (empréstimo, ou não, da
pistola; venda, ou não, do veneno; impedimento, ou não, do furto), mas
não tem o domínio da execução do facto típico de homicídio nem do
furto respectivamente. O facto típico só começa com o início da sua
execução, a qual não pode antecipar-se para aquém dos limites da alínea
c) do art. 22º.

2.5 Convém, desde já, notar que o critério do domínio do facto só vale para
fundamentar a autoria nos chamados crimes de domínio, ou seja,
naqueles crimes que podem ser realizados por qualquer pessoa. Nos
crimes de violação de dever (crimes específicos próprios e impróprios,
entre os quais se incluem as omissões impuras ou impróprias) o que
fundamenta a autoria é, precisamente, a violação de um dever especial
pela pessoa sobre a qual ele impende. No entanto, a nosso ver (ao
contrário do que sustenta Roxin e a maioria da Doutrina que o segue),
não basta a violação do dever: é necessário que a violação do dever se dê
pela forma descrita no tipo legal de crime ( em sentido semelhante se
pronuncia Stratenwerth).
(Sobre a teoria do domínio do facto cfr. ainda, na nossa Doutrina, Figueiredo Dias,
ob. cit., ps. 50 ss.; Teresa Beleza, ob. cit., ps. 439 ss.).
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3 Autoria singular (art. 26º, 1ª proposição)

A aplicação do critério do domínio do facto a esta forma de autoria não


levanta problemas de maior: quem executar o facto, por si mesmo (art.
26º, 1ª proposição) tem o domínio do facto através do domínio da sua
própria acção. A execução do facto inicia-se apenas no momento em que
se verifique alguma das situações previstas nas alíneas a), b) ou c) do nº
2 do art. 22º). O domínio de actos preparatórios (v.g. planear o crime,
planeá-lo, comprar a arma, etc.), como se disse já, não pode
fundamentar a autoria, a não ser que os actos preparatórios estejam,
excepcionalmente, eles mesmos, incriminados, pois, nesse caso, a
execução de tais actos será execução de actos típicos do crime em causa.

4 Autoria mediata (art. 26º, 2ª proposição)

4.1 Nesta forma de autoria o domínio do facto caracteriza-se pelo domínio


da execução através do domínio da vontade do executor do facto. Quem
executa materialmente o facto não tem, em regra, o domínio dele, porque
a sua vontade é dominada pelo "homem de trás", o autor mediato, que se
serve do executor como de um instrumento. A responsabilidade pelo
facto doloso realizado pelo "homem da frente" é, nestes casos,
transposta pela Ordem Jurídica para o autor mediato. De acordo com a 2ª
proposição do art. 26º, o homem de trás executa o facto mediatamente,
isto é, por intermédio de outra pessoa cuja vontade aquele domina (cfr.
ConceiçãoValdágua, ob.cit., pgs. 68 s., 105, n.272, 114 s., 126 s.; idem, “Figura
central, aliciamento e autoria Mediata”, in: Estudos em Homenagem a Cunha
Rodrigues, vol I, Coimbra, 2001, ps. 917ss.; idem, “Autoria mediata em virtude do
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domínio da organização ou autoria mediata em virtude da subordinação voluntária do


executor à decisão do agente mediato?”, in: Liber Discipulorum para Jorge de
Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, ps. 651ss; Figueiredo Dias, ob. cit., ps. 60 ss.;

Teresa Beleza, o. cit., ps. 452 ss.).

4.2 É o domínio do facto pelo "homem de trás", através do domínio da


vontade do executor, que permite distinguir a autoria mediata da
instigação, pois o instigador não tem o domínio do facto porque não
domina a vontade do executor (instigado). O instigador determina,
convence, uma pessoa à prática do facto típico, cria nela a vontade
criminosa mas essa pessoa tem perfeito domínio da sua vontade; executa o
facto dolosa e livremente sem qualquer dependência do instigador.
Portanto, o instigador cria no instigado a vontade de cometer o crime
deixando-lhe nas mãos o poder de o executar ou não, ou seja, o domínio
do facto. O instigador não tem o domínio do facto, pois o instigado é
senhor de uma vontade livre e esclarecida, tem pleno domínio da sua
vontade e, por isso, pode decidir livremente executar, ou não executar, o
crime. Na autoria mediata, pelo contrário, o executor não tem uma
vontade livre e esclarecida); não pode decidir livremente praticar, ou não
praticar, o crime.

4.3 O domínio da vontade do executor por parte do autor mediato pode


verificar-se (segundo Roxin e a doutrina dominante) em três situações:

a) erro do executor (que exclua o dolo ou a culpa);

b) coacção do executor (que exclui a culpa);


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c) alta fungibilidade do executor no âmbito de aparelhos organizados de


poder (que só abrange os casos que não possam incluir-se em a) ou b)).

Diz Roxin que, em qualquer das três constelações referidas, o executor


não está em situação de opor eficazmente ao desígnio criminoso do
autor mediato uma vontade livre e esclarecida, uma decisão
responsável.

Os casos de inimputabilidade não têm, segundo Roxin, autonomia,


porque são recondutíveis aos casos de erro (que afasta o dolo ou a culpa)
e/ou aos casos de coacção (que afasta a culpa). Trata-se de hipóteses de
limitações no plano da apreensão do pleno sentido do facto ilícito, no
plano da formação da vontade, ou em ambos os planos. Esta ideia de
Roxin só parcialmente nos parece verdadeira. É que, pode perfeitamente
acontecer que o inimputável apreenda plenamente o sentido do facto
ilícito e também não esteja em erro nem sob coacção e, no entanto, quem
o convence a cometer o facto continua a ser autor mediato (como, de
resto, admite Roxin), uma vez que a lei considera o inimputável incapaz
de culpa. Por isso, partindo das formas de aparecimento da autoria
mediata admitidas por Roxin e pela Doutrina dominante, talvez fosse
mais correcto estabelecer que a autoria mediata se verifica em casos de:

1) - exclusão do dolo do executor (por erro);


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2) - exclusão da culpa do executor (por erro que exclua a culpa


ou por outra causa de exclusão da culpa);
3)- alta fungibilidade do executor no âmbito de aparelhos
organizados de poder, (constelação que, como veremos
infra, deverá, em nosso entender, ser substituída por outra
mais abrangente que designaremos de subordinação
voluntária do executor à decisão do agente mediato).

4.4 Exemplos de autoria mediata por indução ou aproveitamento de erro do


executor que afasta o dolo:

a) Erro sobre o tipo


1. Durante uma caçada A diz a B, outro caçador, que dispare
imediatamente sobre uns arbustos, para matar um veado que lá se
encontra, porque a sua espingarda encravou. A viu perfeitamente que era
o seu inimigo C quem se encontrava atrás dos arbustos e quis matá-lo
utilizando B. Este, acreditando no que A lhe diz, dispara e mata C .

A é autor mediato do crime de homícido doloso executado por B, uma


vez que o induziu em erro sobre o facto típico (erro sobre o objecto) que,
nos termos do art. 16º, nº1, 1ª parte exclui o dolo. B poderá,
eventualmente, ser punido por homicídio por negligência, caso se prove
que violou o dever objectivo de cuidado e que tinha o poder (individual)
de o observar (art.16º, nº 3).
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2. A, com intenção de furtar a mala de X, pede a B que lha vá buscar,


convencendo-o de que a mala lhe pertence e se esquecera ali dela. A é
autor mediato do crime de furto porque induziu B em erro sobre o facto
típico (erro sobre elementos normativos do tipo - carácter alheio da
coisa- art. 16º, nº 1, 2ª parte) e, por isso, domina o facto através do
domínio da vontade de B.

b) Erro sobre elementos objectivos de uma causa de exclusão da


ilicitude

A, querendo matar X, convence B, inimigo de X, que este anda armado


e só espera uma boa oportunidade para o matar. B, acreditando na
história de A, que era falsa, mune-se também de uma arma para a
hipótese de ter que se defender de X. Em dado momento, B, ao passar
num lugar ermo, vê X aproximar-se dele e meter a mão ao bolso, pensa
que X vai puxar pela arma para o matar e dispara sobre ele matando-o. A
é autor mediato do homicídio executado por B, uma vez que o induziu
em erro que lhe afasta o dolo (erro sobre elementos objectivos da
legítima defesa, art. 16º, nº 2, 1ª parte, que remete para a consequência
jurídica do nº1) e, por isso, domina a vontade de B. B poderá,
eventualmente, ser punido por homicídio por negligência, caso se prove
que violou o dever objectivo de cuidado na avaliação da situação de
perigo e que tinha o poder (individual) de o observar.

c) Erro sobre elementos objectivos de uma causa de exclusão da


culpa
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A, fugindo a uma perseguição policial, entra num veículo conduzido por


B e, apontando-lhe uma arma descarregada à cabeça, ordena-lhe que siga
rapidamente e atropele o polícia que lhes barra a passagem ameaçando-o
de lhe disparar a arma na cabeça, caso ele não obedeça. B,
desconhecendo que a arma está descarregada e receando ser morto por
A, atropela o polícia, matando-o.

A é autor mediato do homicídio do polícia, uma vez que induziu B em


erro sobre elementos objectivos do estado de necessidade desculpante,
previsto no art. 35º (a situação de perigo para a sua vida não existia,
dado que a arma estava descarregada), erro esse que, nos termos do art.
16º, nº 2, 2ª parte (que remete, quanto à consequência jurídica, para o nº
1 do mesmo art.), exclui o dolo. A tem, portanto, o domínio do facto
(homicídio do polícia) através do domínio da vontade de B, que
fundamenta a sua autoria mediata por homicídio qualificado (art. 132º,
nº 2, alíneas e) e h)).

A regra do art. 16º, nº 3, que ressalva a punibilidade da negligência nos


termos gerais, não tem aplicabilidade ao caso em análise por falta da
violação do dever objectivo de cuidado na avaliação da situação de
perigo, por parte de B, na medida em que nem o mais cuidadoso dos
homens se poderia aperceber que a arma estava descarregada.
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4.5 Além das situações de exclusão do dolo do autor material, a autoria


mediata pode verificar-se também, como vimos supra, por falta de culpa
do executor, que pode ser devida a inimputabilidade, a erro desculpável
sobre a proibição ou a qualquer outra causa de exclusão da culpa
existente no executor e aproveitada pelo agente mediato ou a que este dê
origem.

Vejamos alguns exemplos de autoria mediata por utilização de um


executor que age sem culpa:

a) Inimputabilidade do executor do facto

A convence B, menor de 16 anos (ou um doente mental), a subtrair


determinado objecto.

A é autor mediato do furto praticado por B que, sendo inimputável (em


razão da idade ou de anomalia psíquica) é, como sabemos, incapaz de
culpa. O domínio do facto cabe ao A que utiliza para a prática do crime
uma pessoa que não pode por ele ser responsabilizada, por não possuir a
necessária capacidade para avaliar a ilicitude dos seus actos (como
acontece no caso da inimputabilidade em razão de anomalia psíquica) ou
porque a lei presume que a não tem (como acontece em alguns casos de
inimputabilidade em razão da idade).

b) Coacção exercida pelo agente mediato sobre o executor que o


coloca em estado de necessidade subjectivo ou aproveitamento
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pelo agente mediato de uma situação de estado de necessidade


subjectivo já existente

1. A coage B, sob a ameaça de uma arma de fogo, a incendiar uma casa.

A é autor mediato do incêndio (art. 272º, nº 1, alínea a), conjugado com


o art. 26º, 2ª proposição), porquanto, utilizando coacção sobre B (art.
155º), coloca-o em estado de necessidade subjectivo que lhe afasta a
culpa (art. 35º), tendo, assim, o domínio do facto através do domínio da
vontade de B.

2. A, alpinista, querendo ver morto o alpinista C, aproveita o facto de ver


a corda do alpinista B prestes a partir e promete atirar-lhe uma corda se
ele cortar a corda do alpinista C. B, para evitar a sua própria morte, corta
a corda de C, que cai e morre.

A é autor mediato do crime de homicídio de C (art. 131º conjugado com


o art. 26ª, 2ª parte) porque, mediante coacção (art. 155º), se aproveitou
do estado de necessidade subjectivo em que se encontrava B, tendo,
portanto o domínio do facto através do domínio da vontade de B.

c) Erro não censurável sobre a ilicitude por parte do executor,


criado ou aproveitado pelo homem de trás

A, alemão, de férias em Portugal, trava conhecimento com B que, por ter


sofrido um grande desgosto, pretende suicidar-se e lhe pede que o
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auxilie nesse acto. Embora o auxílio ao suicídio não seja punível na


Alemanha, A, receando que em Portugal vigorassem leis diferentes,
recusa-se a prestar-lhe auxílio. Porém, C, advogado, inimigo de B,
convence A de que em Portugal o auxílio ao suicídio, quando prestado
por nacionais de um país em que ele não constitui crime, também não é
crime em Portugal. A, convencido de que está a praticar um acto lícito
auxilia B a suicidar-se.

C é autor mediato do crime de incitamento ou ajuda ao suicídio (art.


135º) porque induziu A em erro não censurável sobre a ilicitude, o que
lhe afasta a culpa (art. 17º, nº 1). Desse modo, C tem o domínio do facto
através do domínio da vontade A, praticando o facto por intermédio
deste (art. 26º, 2ª proposição).

4.6 Quanto aos casos de autoria mediata por plena fungibilidade do


instrumento no âmbito de aparelhos organizados de poder, também
designada na doutrina por autoria mediata em virtude do domínio da
organização, entende a Doutrina, seguindo Roxin, que, dentro de
aparelhos de poder organizado, os chefes são autores mediatos dos
crimes praticados pelos seus subordinados, porque estes são plenamente
fungíveis, dado que podem ser, a todo o momento, substituídos por
outros, caso se recusem a cumprir a ordem para praticar o crime.

Segundo Roxin, esta forma de autoria mediata só tem autonomia quando


o autor imediato não está em erro nem sob coacção e pressupõe a
verificação cumulativa de três requisitos:
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a) um aparelho organizado de poder com rígida estrutura hierárquica;


b) a fungibilidade efectiva do executor;
c) o funcionamento do aparelho organizado de poder, como um todo, à
margem do ordenamento jurídico.
Assim, o autor imediato, sem estar em erro ou sob coacção, tem que
executar uma ordem ilícita que constitui crime, a qual lhe foi dada por
um seu superior hierárquico, e os agentes têm que estar integrados num
aparelho organizado de poder que funciona como um todo à margem do
direito, pelo menos no caso concreto. Verificando-se estes pressupostos
estará garantida a plena fungibilidade do executor que é, no entender de
Roxin, o verdadeiro fundamento desta forma de autoria mediata.

Diz Roxin que a fungibilidade decorre do "automatismo" com que as


ordens são cumpridas dentro do aparelho organizado de poder com
rígida estrutura hierárquica e funcionando à margem do ordenamento
jurídico. O superior hierárquico que ordena a prática do crime sabe que a
ordem será cumprida por algum dos seus subordinados, pois mesmo que
um se recuse a cumpri-la, logo outro tomará o seu lugar, sem que isso
afecte a execução do plano global. É essa situação que, segundo o
referido Autor, confere ao agente mediato o domínio do facto através do
domínio da vontade do executor do facto e, portanto, a qualidade de
autor mediato.

Roxin acentua que, na forma de autoria mediata que estamos a analisar, o


executor é apenas uma rodinha da engrenagem constituída pelo aparelho
organizado de poder, mas entende que ele tem também o domínio do
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facto, na modalidade de domínio da acção, e, consequentemente, é


também autor (imediato) do facto que pratica. Trata-se de situações de
autoria mediata em que existem, portanto, dois (ou mais) autores dolosos
do mesmo crime: um autor mediato por detrás de um autor imediato
com pleno domínio da sua acção e por ela plenamente responsável . São
os casos que a Doutrina designa de “autor por detrás do autor” (“Täter
hinter dem Täter”).

Como exemplo de casos enquadráveis na referida constelação, podem


ser indicados os crimes praticados na Alemanha pelas SS durante o
nazismo, na Argentina durante a ditadura militar, em Portugal, pela
PIDE, durante o regime fascista, os crimes praticados pelas Mafias, os
crimes praticados no âmbito de organizações terroristas, ou outras de
poder armado.

4.7 A doutrina de Roxin, sobre a autoria mediata por força do domínio da


organização, tem sido alvo de críticas por parte de alguns penalistas,
alguns dos quais sustentam existir, nas situações em análise, co-autoria
entre o(s) agente(s) mediato(s) e o(s) executor(es), outros instigação por
parte do agente mediato. Roxin tem, no entanto, respondido a essas
críticas em termos que, na sua maior parte, se nos afiguram
convincentes, sobretudo quando visam demonstrar que não é aceitável
atribuir a qualidade de co-autor, nem a de instigador, ao agente mediato,
que utiliza o seu domínio da organização para fazer cumprir ordens de
conteúdo criminoso.
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4.7.1 A co-autoria entre o agente da retaguarda e o executor (solução sufragada


por Baumann/Weber, Jakobs, Jescheck/Weigend, Muñoz Conde, entre outros), é de

rejeitar por três razões que Roxin aduz e que são, todas elas, válidas
também em face do nosso direito, dado o disposto no art. 26º, 3ª
proposição, do Código Penal .

Na verdade, e em primeiro lugar, não existe entre o agente mediato e o


executor o acordo, que é essencial à co-autoria, como elemento unificador
dos contributos dos diversos co-autores .

Em segundo lugar, falta também qualquer intervenção do agente da


retaguarda na fase da execução, o que impede que ele seja considerado co-
autor.

Finalmente, a atribuição da qualidade de co-autores ao agente mediato, que


dá a ordem, e ao executor, que cumpre essa ordem, é incompatível com a
estrutura “horizontal” da co-autoria (que contrasta com a estrutura “vertical”
da autoria mediata).

4.7.2 A solução que consiste em atribuir a qualidade de (mero) instigador ao


agente da retaguarda, que domina uma organização e se serve dela para fazer
cumprir pelos seus subordinados uma ordem de conteúdo criminoso
(defendida, entre outros, por Herzberg, Rotsch, e Renzikowski ), também não
convence. Esta tese não tem na devida conta a diferença existente entre, por
um lado, o instigador, que determina outrem a cometer um crime, mas é
forçado a deixar ao instigado a decisão final sobre a prática do facto, e, por
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outro lado, o agente mediato, que emite uma ordem de conteúdo criminoso
no âmbito de um aparelho organizado de poder que ele domina, bem
sabendo que pode confiar em que os seus subordinados porão inteiramente
nas mãos dele a derradeira decisão sobre a prática do facto, executando-o ou
não, consoante a ordem for mantida ou revogada.

Roxin diz, a este respeito: “ Quando Hitler ou Estaline mandavam matar os


seus opositores, isso era obra sua (embora não só sua). A afirmação de que
deixavam aos seus subordinados a decisão sobre se os factos ordenados
seriam executados contraria princípios sensatos de imputação social,
histórica e até jurídica.”

Aos argumentos já aduzidos, contra a solução que consiste em se atribuir ao


agente da retaguarda a qualidade de instigador, acresce que, no direito penal
português (ao invés do que acontece no direito penal alemão), não é punível
a instigação em cadeia (Cfr., desenvolvidamente, João Raposo, “A punibilidade das
situações de ‘instigação em cadeia’”, in: O Direito, ano 133 (2001); sinteticamente,
Conceição Valdágua, “Figura central... cit., p. 935). Ora, em regra, o agente

mediato, nas situações que estamos a considerar, não dirige a ordem de


conteúdo criminoso directamente a quem vai executar o facto, mas sim a um
imediato subordinado, em termos de provocar neste e noutro(s) membro(s)
da organização, em conformidade com a respectiva escala hierárquica em
sentido descendente, sucessivos comportamentos injuntivos, que vão
culminar na ordem de execução, dirigida ao último elo da cadeia. Trata-se,
em suma, de situações que, na sua grande maioria, constituiriam casos
típicos de instigação em cadeia.
53

Assim, a atribuição da qualidade de instigador ao agente mediato, que


domina um aparelho organizado de poder e se serve dele para fazer cumprir
ordens de conteúdo criminoso, provocaria, em face do direito português
vigente, largas zonas de impunidade, de que beneficiariam os agentes com
comportamentos semelhantes aos que tiveram Hitler, Estaline, Eichmann,
Himmler ou Honecker e muitos outros.

4.8. De quanto fica exposto decorre já que a solução proposta por Roxin para as
situações em referência (autoria mediata do agente da retaguarda, por força
do domínio da organização, e autoria imediata do executor, por praticar o
facto por suas próprias mãos) tem um fundo incontornável de razoabilidade
e é de preferir às soluções concorrentes, que consideram o agente mediato
co-autor ou instigador do executor.

Cremos, porém, que a justificação da atribuição da autoria mediata a quem


tem o domínio da organização e se serve desse domínio para fazer cumprir
ordens de conteúdo criminoso não reside, como pretende para Roxin, na
fungibilidade do executor, proporcionada pelo automatismo próprio de uma
organização com as características que ele aponta.

4.8.1 Uma das primeiras objecções contra a doutrina do domínio da organização


(apresentada por F.- C. Schroeder, já há várias dezenas de anos, e retomada,
recentemente, pelo mesmo autor, com a adesão de Ambos e Freund)
consiste em que não há, para Roxin, fungibilidade do executor, quando a
execução do crime requerer conhecimentos ou aptidões especiais, que a
generalidade dos membros do aparelho organizado de poder não possua.
54

É certo que, como diz Ambos, em regra, o aparelho organizado de poder


disporá de um número de “especialistas” suficiente para assegurar a
fungibilidade do executor. Mas, mas como também nota Ambos, no campo
da macro-criminalidade, um aparelho estadual repressivo já não pode,
actualmente, prescindir de executores com conhecimentos ou aptidões
especiais e observa que, há relatos recentes de casos de criminalidade
organizada ocorridos na América do Sul, com várias referências à utilização
de técnicas de tortura cuja aplicação não estava ao alcance de qualquer
membro da organização. E acrescenta, que, de qualquer modo, a
fungibilidade do executor tem, na doutrina de Roxin, uma validade absoluta
e é insubstituível, como fundamento da autoria mediata do agente da
retaguarda, daí decorrendo que, para rebater essa doutrina, bastará
demonstrar a existência de um simples caso de autoria mediata do agente da
retaguarda, por força de um aparelho organizado de poder, em que não haja
fungibilidade do executor.

4.8.2 Respondendo a estas críticas, Roxin sustenta que, sempre que falta a
fungibilidade do executor, o agente da retaguarda não poderá ser autor
mediato, mas sim, apenas, instigador: “Quando os serviços secretos de um
regime criminoso ou o director de uma organização terrorista escolhem para
uma operação uma pessoa que é a única que dispõe do ‘know-how’
necessário para a execução ou a única que tem acesso à vítima, não há
autoria mediata, mas sim instigação, enquanto os agentes da retaguarda não
se tornarem autores mediatos através de coacção por eles exercida”.
(“Mittelbare Täterschaft kraft Organisationsherrschaft”, in: Colóquio Internacional de
Direito Penal: “Criminalidade Organizada, Universidade Lusíada (ed.),” (policopiado),
55

Lisboa 2002, p. 7. Há tradução portuguesa, sem notas de pé de página, de João CURADO


NEVES, cuja leitura se recomenda).

No entender de Roxin, a objecção em apreço demonstra apenas que o


domínio da organização não é uma receita universal, com validade em todos
os casos possíveis, independentemente dos pressupostos concretos
existentes. Trata-se, diz ele, de uma figura jurídica que exclui somente em
regra, mas não em todos os casos, a possibilidade de co-autoria e instigação,
no âmbito de aparelhos organizados de poder ( cfr. “Mittelbare Täterschaft ...”,
cit., p.8)

4.8.3 Como resulta da exposição que fizemos, supra, do conteúdo essencial da


doutrina de Roxin, supomos que Ambos tem razão, ao pôr em relevo que,
para aquela doutrina, é irrenunciável a fungibilidade do executor, como
fundamento da autoria mediata do agente da retaguarda. Roxin, por sua vez,
é inteiramente coerente, ao responder que, nos casos de não existência de
fungibilidade do executor, o agente da retaguarda não poderá ser autor
mediato por força do domínio da organização, mas sim, apenas, instigador.
Esta resposta de Roxin à objecção contra a sua doutrina afigura-se-nos
inatacável, no plano lógico.

Mas, no plano axiológico, a posição de Roxin só seria convincente se ele


tornasse, pelo menos, plausível, a desigualdade de tratamento do agente
mediato, nos casos que ele entende serem de autoria mediata por força do
domínio da organização, por um lado, e nos casos da falta de fungibilidade
do executor (dentro do âmbito do aparelho organizado de poder), por outro.
Para isso, porém, Roxin teria de demonstrar, por exemplo, que, quando
56

exista no aparelho organizado de poder um só executor possível para


determinadas operações “especiais” e esse executor cumpra regularmente as
ordens de conteúdo criminoso que lhe são dadas, executando tais operações,
o agente mediato, do qual as ditas ordens emanam, não tem a qualidade de
figura central do acontecimento criminoso, por falta de fungibilidade do
executor – qualidade essa que Roxin seguramente lhe atribuiria, se o
aparelho dispusesse de uma pluralidade de executores com capacidade para
a operação em causa -. Roxin, em suma, teria de demonstrar que, enquanto
na última hipótese mencionada o agente mediato executa o facto “por
intermédio de outrem” (no sentido do § 25 do Strafgesetzbuch alemão e do
art. 26º do Código Penal português), isso já não acontece quando apenas um
dos membros da organização tem as aptidões necessárias para a execução do
facto criminoso.

Não vemos como seja possível fundamentar em termos aceitáveis esta


diferença de tratamento do agente da retaguarda, à qual leva necessariamente
a doutrina do domínio da organização, como bem reconheceu Roxin, ao
responder, como responde, à objecção agora em apreço.

4.8.4 Mas as coisas também não seriam diferentes, se o único especialista


disponível, em vez de estar integrado na organização dominada pelo agente
mediato, se encontrasse fora dessa organização e interviesse apenas de
tempos a tempos, em operações de determinado tipo, remuneradas caso a
caso pela organização, com base em acordos pontuais propostos por ela ao
executor “independente”, por ordem do mesmo agente mediato. Na verdade,
não se descortinam razões válidas para que o agente mediato, em relação a
57

estas operações executadas por um free-lancer especializado, que actua a


soldo da organização e por iniciativa dele, homem de trás, deixe de ser
considerado autor mediato e passe a ser tratado como simples instigador.

4.8.5 De resto, recorde-se, a atribuição da qualidade de mero instigador levaria,


em regra, nos casos referidos nos nºs. 4.8.3 e 4.8.4, supra, à impunidade do
agente da retaguarda, uma vez que, numa organização criminosa
normalmente entre o executor e a pessoa de que emana a ordem interpõem-
se várias outras pessoas e a instigação à instigação não é punível no nosso
direito.

4.9 Das considerações precedentes resulta, em relação às situações que


constituem o campo de aplicação da doutrina do domínio da organização,
que, por um lado, merece concordância a solução, sufragada por Roxin e,
entre nós por Figueiredo Dias, de atribuir a qualidade de autor mediato ao
agente da retaguarda (bem como a de autor imediato ao executor, que pratica
o crime por suas próprias mãos), mas, por outro lado, diversamente do
sustentado por estes penalistas, a autoria mediata do agente da retaguarda
não se funda na fungibilidade do executor e não pressupõe, sequer, que o
executor seja membro do aparelho organizado de poder e esteja subordinado
ao agente mediato (cfr. os nºs. 4.8 a 4.8.5, supra).

Em face disto, impõe-se colocar a questão da justificação da autoria mediata


do agente da retaguarda, nas situações em referência. Mas a resposta a esta
questão implica alguns esclarecimentos prévios.
58

4.9.1 Quando uma pessoa, dolosamente, incute noutra a resolução de praticar um


determinado facto punível, em cuja execução a primeira não quer tomar
parte, pode verificar-se uma das duas situações seguintes:

a) da actuação do agente mediato sobre o agente imediato decorre,


expressa ou concludentemente, que, ao tomar a resolução criminosa, que
foi determinada ou co-determinada por aquela actuação, o agente
imediato aceitou não executar o facto punível, no caso de o agente da
retaguarda vir depois a comunicar-lhe que já não quer que esse facto seja
praticado. Nesta medida, portanto, verifica-se aqui uma subordinação
voluntária do agente imediato a uma eventual decisão posterior do
agente mediato;

b) da actuação do agente da retaguarda sobre o agente imediato não


decorre que, ao tomar a resolução criminosa, que foi determinada ou co-
determinada por aquela actuação, o agente imediato aceitou fazer
depender a execução do facto da inexistência de uma posterior mudança
de desígnio do agente da retaguarda. Aqui, portanto, não se verifica
qualquer subordinação voluntária do agente imediato a uma
eventual decisão posterior do agente mediato.

4.9.2 A situação indicada na alínea a) do nº 4.9.1, supra, verifica-se, por exemplo,


quando há um acordo, ajuste ou pacto criminoso, no qual o agente da
retaguarda se compromete a realizar determinada prestação, de coisa ou de
facto, e, em contrapartida, o agente imediato se obriga ao cometimento do
crime (Cfr., sobre o acordo, ajuste ou pacto criminoso, como modalidade de aliciamento,
Conceição Valdágua, “Figura central ...”, cit, p. 935 s.)
59

Para se apreender em que consiste aqui a subordinação voluntária do agente


imediato à decisão do agente mediato, há que partir do pressuposto de que o
acordo criminoso (ou a motivação criada por esse acordo no agente
imediato) é, designadamente no momento decisivo do início da execução
do crime, determinante ou co-determinante da resolução criminosa do
agente imediato. Não se verificando este pressuposto, está de antemão
afastada a hipótese de o agente da retaguarda ser responsabilizado
criminalmente, quer como autor mediato, quer como instigador de qualquer
facto doloso praticado pelo agente imediato.

Ora, à luz deste pressuposto, há que reconhecer que o agente imediato, ao


executar o facto punível, já não estará a ser determinado ou co-determinado
pelo acordo criminoso, se, antes do início da execução, o agente da
retaguarda, com o qual ele celebrou esse acordo, lhe tiver comunicado que já
não deseja que o crime seja praticado. Na verdade, ao celebrar com o agente
mediato um acordo criminoso, o agente imediato está forçosamente a aceitar
- pelo menos de forma concludente - que não executará o facto punível, que
é objecto do acordo, se o agente mediato lhe vier a comunicar mais tarde,
mas atempadamente, que mudou de desígnio e já não pretende que seja
cometido o crime.

Situação idêntica se verifica por exemplo, no caso de a actuação do agente


da retaguarda sobre o agente imediato se configurar como uma ordem para
o cometimento do crime. Efectivamente, parece-nos claro que quem se
arroga competência para dirigir a outra pessoa uma determinada injunção
60

está a arrogar-se, pelo menos de forma concludente, competência para


revogar depois, eventualmente, essa injunção, ou emitir uma ordem de sinal
contrário. E também é claro que quem acata uma ordem para cometer um
crime e toma, portanto, a resolução criminosa para obedecer à ordem, está,
do mesmo passo, a manifestar, pelo menos de forma concludente, que
acatará uma eventual ordem posterior de sinal contrário, proveniente da
mesma pessoa, se tiver atempadamente conhecimento dela. Também aqui é
visível a subordinação voluntária do agente imediato à decisão do agente
mediato, nos termos atrás referidos.

4.9.3 A situação contemplada na alínea b) do nº 4.9.1, supra, verifica-se em todos


os casos restantes, que são aqueles em que o agente mediato, dolosamente,
provoca a resolução criminosa do agente imediato através de incitamento ao
cometimento do crime (“Mata-o !”), recomendação ou conselho nesse
sentido (“Deves matá-lo, se não queres que ele testemunhe contra ti e te faça
passar o resto na vida na cadeia !”), ou qualquer outra forma de actuação
(“Devias envergonhar-te de deixar com vida esse homem que enxovalhou
publicamente a tua honra!”), desde que dela não resulte, expressa ou
concludentemente, que o agente imediato se compromete a não executar o
facto punível, no caso de o agente da retaguarda vir a mudar de desígnio a
esse respeito.

4.10. A subordinação voluntária do executor à decisão do agente mediato, que se


verifica nas situações contempladas na alínea a) do nº 4.9.1 e no nº 4.9.2,
supra, confere ao referido agente mediato o domínio do facto, pois, embora
61

não lhe garanta que o crime será cometido - o que, aliás, também não
acontece em nenhuma das outras situações de domínio do facto pelo agente
da retaguarda - , coloca-lhe nas mãos o poder de planear e dirigir, em larga
medida, o processo causal. Trata-se de uma forma de domínio do facto que,
na terminologia de Roxin, poderia ser denominada “domínio da vontade”,
paralelamente ao que acontece nos casos de coacção exercida sobre o
executor ou erro do executor e, em nosso entender, deveria substituir, no
sistema de Roxin, o “domínio da vontade em virtude do domínio da
organização”, pois abrange, além de outros, todos os casos a que esta
categoria roxiniana se aplica.

Por ter o domínio do facto, o agente da retaguarda, nas referidas situações de


subordinação voluntária do agente imediato à decisão daquele, executa o
facto “por intermédio de outrem”, no sentido do art. 26º do Código Penal (e
do § 25, nº 1, do Strafgesetzbuch alemão). É, portanto, autor mediato, sem
prejuízo de o agente imediato ser, nas ditas situações, também autor –
imediato - do facto punível, uma vez que executa o facto punível “por si
mesmo”, no sentido dos mencionados preceitos legais.

Nos casos contemplados na alínea b) do nº 4.91, bem como no nº 4.9.3,


supra, o agente mediato não tem o domínio do facto e não o executa “por
intermédio de outrem” , no sentido do art 26º do Código Penal (e do § 25, nº
1, do Strafgesetzbuch alemão). Nestas situações , o agente mediato apenas
determina, dolosamente, outra pessoa à prática do facto e só é punível se
houver execução ou começo de execução (art. 26º do Código Penal),
devendo ser tido em conta, na apreciação da sua eventual responsabilidade
62

criminal, que, no nosso direito, não é punível a instigação à instigação.


Trata-se, não de um autor mediato, mas sim de um instigador, cuja
responsabilidade penal está sujeita às regras da acessoriedade.

4.11. A diferença de tratamento jurídico-penal dos casos em que o executor se


subordina voluntariamente à decisão do agente mediato, por um lado, e
daqueles em que não há essa subordinação voluntária do executor, por outro
lado, foi já defendida, com larga fundamentação, por Puppe, há cerca de
duas décadas, e sufragada posteriormente por Jakobs, no seu Tratado.

Estes penalistas, porém, não relacionam a subordinação voluntária do


executor à decisão do agente da retaguarda com o domínio do facto por este,
nem atribuem a autoria mediata ao agente da retaguarda, nos casos em que
tal subordinação se verifica. Sustentam, sim, que nesses casos – e só neles –
o agente mediato é instigador. A subordinação voluntária do executor à
decisão do agente mediato é, para aqueles Autores, o fundamento e o critério
delimitador do âmbito da instigação. Relegam, em suma, para o âmbito da
cumplicidade todas as restantes situações (recomendação, conselho,
incitamento, etc.) em que o agente mediato, dolosamente, determina o
agente imediato a executar o facto punível, sem que este aceite fazer
depender a execução desse facto da manutenção do desígnio do agente da
retaguarda.

Tal entendimento não pode aceitar-se. Na verdade não se descortina qualquer


razão válida para se deixar de punir o agente da retaguarda como instigador,
63

quando ele, dolosamente e depois de uma actuação porventura demorada e


insistente sobre o agente imediato, determina este à prática de um facto
punível, vindo este facto depois a ser realmente executado pelo agente
imediato, em consequência daquela actuação do agente da retaguarda. Os
preceitos que descrevem e punem a instigação, quer no direito penal alemão
quer no direito penal português, não exigem (nem, por razões de política
criminal, seria razoável que exigissem) uma subordinação, voluntária ou
involuntária, do executor – autor imediato do crime – a uma eventual
decisão do instigador. De resto, tanto no direito penal alemão como no
português , o instigador não é autor, mas simples participante (Cfr., quanto ao
problema da qualificação do instigador como autor ou como participante,
ConceiçãoValdágua, “Figura central ...”, cit., p. 918 ss., n. (8) e bibliografia aí indicada).

Bem se compreende, por isso, que esta posição de Puppe e Jakobs não tenha
encontrado acolhimento na literatura jurídico-penal alemã.

4.12. Passaremos agora a analisar algumas objecções que poderão ser aduzidas
contra a nossa posição, enunciada nos nºs 4.9.1 a 4.9.2 e 4.10, supra.

4.12.1 Poderá ser-nos oposto o argumento de que, nas situações em que


sustentamos haver domínio do facto do agente da retaguarda, esse domínio
do facto assenta numa “vinculação” voluntária do executor, que,
precisamente por depender da vontade unilateral da pessoa “vinculada”, não
constitui verdadeira vinculação. Mutatis mutandis, este é um dos argumentos
opostos por ROXIN à posição de Puppe e de Jakobs.
64

O argumento não procede, porque não tem em conta uma particularidade das
situações que temos em vista, para a qual já atrás apontámos e que iremos
agora pôr em destaque.

Nas situações a que chamamos de subordinação voluntária do executor à


decisão do agente mediato, depende da vontade livre do executor tomar ou
não a resolução criminosa que o agente da retaguarda lhe procura incutir –
e, por isso mesmo, é que o executor pode ser um autor (imediato)
plenamente responsável , sem prejuízo de poder ter, atrás de si, um autor
(mediato) também plenamente responsável. Mas, nas situações em
referência (por exemplo, no caso da ordem de conteúdo criminoso ou no
caso do pacto criminoso), já não depende exclusivamente da vontade do
executor manter ou não essa resolução criminosa, nomeadamente no
momento decisivo do início da execução.

Efectivamente, a resolução criminosa, que o agente mediato incute no agente


imediato, é aquela, e só aquela, que é determinada ou co-determinada pela
actuação concreta do agente da retaguarda sobre o agente imediato. Se, no
momento decisivo do início da prática do facto punível, o agente imediato já
não está a ser determinado ou, pelo menos, co-determinado, por nenhum
motivo que o agente mediato nele tenha incutido, mas sim, exclusivamente,
por motivo(s) alheio(s) à actuação do agente da retaguarda, não poderá
dizer-se que o agente imediato manteve até esse momento a resolução
criminosa inicial, nem, portanto, que o cometimento do crime constitui a
execução dessa resolução criminosa. Tratar-se-á então da execução de outra
65

resolução criminosa, posteriormente tomada pelo agente imediato


(porventura após ter abandonado a resolução criminosa inicial).

Ora, é isto mesmo que acontece nos casos de ordem de conteúdo criminoso
ou pacto criminoso, quando, depois de tomada a resolução pelo agente
imediato, no sentido de acatar a ordem ou cumprir o pacto, o agente da
retaguarda comunica atempadamente ao agente imediato que já não deseja o
cometimento do crime e o agente imediato, apesar disso, executa o facto
punível.

Em suma: o agente da retaguarda, nos casos em que lhe reconhecemos o


domínio do facto e a autoria mediata – e só nestes – pode impedir, através de
uma decisão unilateral sua, que o agente imediato mantenha a resolução
criminosa inicial. O carácter voluntário da subordinação do agente imediato
à decisão do agente da retaguarda, nas situações que temos em vista, não
exclui, portanto, que o agente imediato fique verdadeiramente vinculado
perante o agente mediato, no que respeita à possibilidade ou impossibilidade
de manutenção da resolução criminosa inicial.

4.12.2 Stein e Roxin contrapuseram, respectivamente, a Puppe, ou a Puppe e


Jakobs, cuja posição ficou referida no nº 4.11, supra, a objecção de que estes
excluem do âmbito da instigação e relegam para o campo da cumplicidade
(psíquica) precisamente aqueles casos em que o comportamento do agente
mediato é especialmente perigoso, ou seja, os casos em que ele não pode,
normalmente, travar o curso dos acontecimentos, depois de ter desencadeado
a resolução criminosa do agente imediato. Será esta objecção, mutatis
66

mutandis, procedente contra a posição aqui defendida, enunciada no nº 4.10,


supra ?

Independentemente de a objecção em apreço dever ou não considerar-se


pertinente quando dirigida contra Puppe e Jakobs - questão de que não
vamos ocupar-nos -, ela não procede contra a nossa posição, porque não se
pode, na delimitação da autoria em face da participação criminosa, aceitar
como critério orientador a maior ou menor perigosidade do comportamento
do agente. É esta, de resto, a opinião do próprio Roxin, que entende, com
razão, tratar-se aqui de uma consequência forçosa do seu ponto de partida
metodológico, segundo o qual o autor é, ao nível da acção, a figura central
do acontecimento penalmente relevante e não necessariamente o agente com
um comportamento comparativamente mais perigoso.

A definição legal do art. 26º do Código Penal (“executar o facto ... por
intermédio de outrem”) apoia, sem dúvida, a atribuição da qualidade de
figura central, no sentido apontado, ao agente da retaguarda, sempre que -
mas apenas quando - o agente imediato se subordina à decisão dele,
involuntariamente (devido a coacção ou erro) ou voluntariamente (nos
restantes casos de autoria mediata).

4.13. Deixámos propositadamente para o fim a análise de um outro argumento


que poderá ser aduzido contra a nossa posição: o de que ela leva a um
indevido alargamento do âmbito da autoria mediata.
67

Antes, porém, de entrarmos na apreciação crítica deste argumento, importa


começar por esclarecer que , além das duas situações que apresentámos - a
ordem de conteúdo criminoso e o acordo, ajuste ou pacto criminoso (cfr. a
alínea a) do nº 4.9.1, bem como o nº 4.9.2, supra) - outras existem que, em
nosso entender, envolvem igualmente a subordinação voluntária do executor
à decisão do agente da retaguarda, em termos de que resultam, para este, o
domínio do facto e a posição de autor mediato, no sentido por nós apontado.

4.13.1 É o que acontece nos casos em que o agente mediato faz ao agente
imediato o pedido de que este pratique determinado facto punível.

Quando, depois de o autor imediato tomar a resolução criminosa,


determinado pelo pedido feito pelo agente mediato, este muda o seu desígnio
e comunica, atempadamente, ao homem da frente que retira o pedido
anterior (e, porventura, que até lhe faz um pedido de sinal contrário, ou seja,
no sentido de não ser praticado o facto punível), e se, apesar disso, o agente
imediato vier a executar mais tarde o facto punível, ele não estará, no
momento decisivo do início da execução, a ser ainda determinado pelo
pedido inicial do agente da retaguarda. Aplicar-se-ão então, mutatis
mutandis, as considerações feitas nos nºs 4.9.2. e 4.12.1, supra.

4.13.2 Há também subordinação voluntária do agente imediato à decisão do


agente mediato nos casos em que este provoca a resolução criminosa
daquele através de promessa, ou seja, através de um compromisso unilateral,
assumido pelo agente da retaguarda perante o agente imediato, de, se este
executar o facto punível, aquele lhe proporcionar uma determinada
68

prestação, de coisa ou de facto, que o agente da retaguarda sabe, ou supõe


saber, ser pretendida pelo agente imediato. (Cfr., sobre a promessa, como forma
de aliciamento ao crime, CONCEIÇÃO VALDÁGUA, “Figura central ...”, cit., p. 936).

É claro que se, numa situação como esta, o agente imediato cometer o crime
depois de o agente da retaguarda lhe ter comunicado que retira a promessa,
não será já a promessa a determinar ou co-determinar o agente imediato, no
momento decisivo do início da execução do crime. Valem também aqui,
portanto, “mutatis mutandis”, as considerações feitas no nºs 4.9.2 e 4.11.1,
supra.

4.13.3 Finalmente, afigura-se-nos ainda defensável a existência de uma


subordinação voluntária do executor à decisão do agente mediato nos casos,
certamente não muito frequentes, em que a actuação do agente da retaguarda
sobre o agente imediato, para provocar neste a resolução criminosa, assume
a forma de dádiva.

No entanto, e sem prejuízo de uma reflexão posterior mais demorada poder


conduzir-nos a outro resultado, hesitamos em reconhecer autonomia à dádiva
perante outras formas de aliciamento ao crime, nomeadamente o pacto
criminoso ou o pedido, consoante o beneficiário da dádiva a aceite e se
comprometa, em contrapartida dela, a executar o crime, ou se limite a aceitar
a dádiva sem assumir tal compromisso(Cfr., sobre a dádiva, como forma de
aliciamento ao crime, Conceição Valdágua, “Figura central ...”, cit., p. 936).
69

4.14. A indicação, que fazemos, das formas de actuação do homem da retaguarda


que, em nosso entender, geram ou podem gerar situações de autoria mediata
fundada na subordinação voluntária do homem da frente à decisão do agente
da retaguarda - o acordo (ajuste ou pacto), a ordem, o pedido, a promessa e,
eventualmente, a dádiva - não pretende ser exaustiva, mas abrange decerto a
larguíssima maioria daquelas situações. É em face de tais situações, geradas
pelas mencionadas formas de actuação do agente da retaguarda, que vamos
analisar a objecção de indevido alargamento do âmbito da autoria mediata.

4.14.1 A objecção improcede, manifestamente, em todos os casos em que o


agente imediato realiza, total ou parcialmente, o tipo legal de crime,
determinado ou co-determinado pelo pacto que celebrou com o agente da
retaguarda, ou por uma ordem (ou uma promessa ou um pedido) deste. Em
tais casos, com efeito, a nossa posição levará, fundamentalmente, a punir
como autor mediato um agente que segundo a doutrina dominante, também
deveria ser punido (e com aplicação da mesma moldura penal), embora
como instigador. Apenas não será assim nos casos de actuação em cadeia de
vários agentes mediatos, na medida em que a instigação à instigação não é
punível no direito português. Em tais casos a responsabilidade criminal dos
agentes da retaguarda poderá depender da sua qualificação como autores
mediatos ou como instigadores. Isto, porém, como já acentuámos, não pode
considerar-se objecção procedente contra a nossa posição; pelo contrário,
milita a favor dela, porquanto representa a confirmação de que é a ideia que
sustentamos, e não a doutrina dominante, a que merece preferência, como
critério de delimitação da autoria mediata perante a instigação.
70

4.14.2 Quando o agente imediato não chega a executar, nem sequer parcialmente,
o crime pretendido pelo homem da retaguarda, então sim, parece, pelo
menos à primeira vista, ter alguma plausibilidade a objecção em apreço,
segundo a qual a nossa posição levará a um alargamento indevido da
responsabilidade criminal do agente mediato. Efectivamente, para quem
entenda que, nos casos em que não existe execução, total ou parcial, do
crime pelo autor imediato, o agente da retaguarda poderá tornar-se punível
por autoria mediata tentada – embora, face ao nosso ordenamento jurídico-
penal, não possa ser punido por tentativa de instigação ( Ao contrário do que
propunha EDUARDO CORREIA, no art. 31º. do seu Código Penal, Projecto da Parte
Geral, 1963. Cfr. Conceição Valdágua, Início da Tentativa...cit., p. 21) -, a posição

que defendemos quanto às hipóteses de pacto criminoso, ordem, pedido ou


promessa de conteúdo criminoso pode, de facto, levar a atribuir à
responsabilidade criminal do agente da retaguarda um âmbito
comparativamente maior do que aquele que decorre da aplicação da doutrina
dominante. Isto, todavia, só será relevante para quem sustente, quanto ao
início da tentativa do autor mediato, alguma das teses que admitem que a
tentativa pode começar, em regra, antes de o agente imediato praticar
qualquer acto de execução, entendimento que, no seu conteúdo essencial,
nos parece de rejeitar(Sobre a nossa posição relativamente ao início da tentativa do
autor mediato, cfr.Conceição Valdágua, “Figura Central ...” cit, p.933 ss.).

Bem vistas as coisas, essa diferença de soluções a que pode conduzir, por um
lado, a nossa posição e, por outro, a doutrina dominante, não fundamenta,
porém, qualquer objecção procedente contra aquilo que atrás expusemos,
antes o reforça. Na verdade, nos casos de pacto criminoso, ordem, pedido ou
71

promessa de conteúdo criminoso, nos quais, como vimos, há domínio do


facto pelo agente da retaguarda, em virtude da subordinação voluntária do
executor à decisão daquele, a impunidade da tentativa do agente mediato
constitui uma lacuna. Essa lacuna é evidente sobretudo nas hipóteses de
pacto criminoso e ordem de conteúdo criminoso, mas revela-se também com
suficiente nitidez nos restantes casos que temos em vista.

Resta-nos acentuar que a posição que defendemos não conduz à punição –


injustificada – de tentativas, manifestamente condenadas ao insucesso, de
levar outrem, por exemplo, através de um pedido ou de uma promessa, a
cometer um crime: pense-se na hipótese de alguém pedir a um
desconhecido, que encontra na rua, para matar determinado político, ou
prometer a uma pessoa, à qual acaba de ser apresentado, que lhe pagará um
almoço em troca da falsificação de um documento. Em casos como estes, a
delimitação do âmbito de punição do agente mediato decorrerá, no direito
penal português, do disposto no nº. 3 do art. 23º. do Código Penal, que vale
tanto para o autor imediato como para o autor mediato.

4.15 Início da tentativa do autor mediato

4.15.1 Relativamente à questão de saber em que momento se inicia a tentativa do


autor mediato, são várias as posições doutrinárias que se contrapõem.

Para uma parte da Doutrina (Baumann, Baumann/Weber, Bockelmann/Volk, Jakobs


e Schilling) a tentativa do autor mediato começa logo com a acção de

instrumentalização sobre o executor.


72

Outros autores (Dreher/Tröndle, Herzberg, J. Meyer, Puppe, Roxin, Rudolphi,


Schönke/Schröder/Eser e Wessels) entendem que a fase da tentativa se inicia

para o autor mediato com a perda de controlo sobre o instrumento, porque,


nessa altura, o autor mediato larga das mãos o domínio do facto.

Um outro sector da Doutrina (Blei, Busch, Kolrausch/Lange, Mezger, Welzel)


sustenta que a tentativa pode começar para o autor mediato logo com a
acção de instrumentalização do executor, se este actua de boa fé (sem
dolo). Mas se o executor actua de má fé (com dolo) a tentativa só começa
com o início da execução pelo instrumento.

Outra parte da Doutrina (Frank, Hegler, v. Hippel, Eb. Schimdt, Kühl, Küper,
Kadel, Vogler, Maurach/Gössel/Zipf, Stratenwerth) entende que a tentativa do

autor mediato só começa com o início da execução pelo instrumento,


porque o comportamento do autor mediato e do instrumento deve ser visto
como uma "acção total", uma vez que o autor mediato executa através da
pessoa do instrumento.
(Para maior desenvolvimento sobre as actuais posições doutrinárias acerca do início da
tentativa do autor mediato, cfr. o nosso estudo "Figura Central, cit., p. 933 ss.)

4.15.2 Posição adoptada


Como já antes referimos, para fundamentar a autoria não basta deter o
domínio do facto; é necessário, além disso, que o agente exerça o domínio
sobre o facto típico, no sentido contrário aos preceitos penais. Ora, o facto
típico só começa com o primeiro acto de execução do tipo, que não pode
73

antecipar-se para aquém do limite da alínea c) do art. 22º, nº 2. Sendo


assim, a tentativa do autor mediato tanto pode começar logo com a acção
de instrumentalização do executor, como pode começar só com a acção do
instrumentalizado. É certo que, como dizem os defensores da posição
referida em último lugar, os comportamentos do autor mediato e do
instrumento devem ser vistos como uma "acção global", pois a lei diz que o
autor mediato executa "por intermédio de outrem". Mas, a meu ver, ao
contrário do que sustenta essa parte da Doutrina, o facto de os
comportamentos do autor mediato e do instrumento deverem ser
considerados como uma "acção global", não implica que a execução só
comece com os actos do instrumento; pelo contrário, se é uma "acção
global", dela fazem parte os actos do autor mediato e do instrumento,
podendo qualquer deles dar início à execução, desde que sejam
enquadráveis em alguma das alíneas do art. 22º, nº 2. Assim, se a acção do
autor mediato for já de natureza a fazer esperar que, nos termos do plano
criminoso, se lhe sigam imediatamente actos das espécies indicadas nas
alíneas a) e/ou b) do art. 22º, nº 2, então a fase da execução terá sido
iniciada pelo autor mediato, nos termos do art. 22º, nº 2, c) e continuará
através do instrumento. Se a acção do autor mediato não puder ser
enquadrada, pelo menos, na alínea c) do art. 22º, nº 2, então a tentativa só
começará com o início da execução pelo instrumento.

Vejamos alguns exemplos:


1) Alteremos ligeiramente o exemplo que já demos atrás em que A quer
matar B numa caçada e no momento em que o vê escondido por uns
arbustos diz a C, que tem a sua espingarda em posição de disparar:
74

"dispara imediatamente sobre a peça de caça que está atrás daqueles


arbustos". C, acreditando que atrás dos arbustos se encontrava um
animal, como lhe dissera A, dispara e mata B.

Nesta hipótese, a execução do homicídio, em autoria mediata de A por


intermédio de C, iniciou-se logo com a indução de C em erro, uma
vez que, tendo em atenção o plano do agente, esse acto, segundo a
experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis é de natureza
a fazer esperar que se lhe siga imediatamente um tiro de C sobre B.
Assim, A, nos termos da línea c) do nº 2 do art. 22º, deu início à
execução do homicídio logo com a actuação sobre o instrumento, pelo
que, se o crime tivesse sido interrompido nesse momento, ele já
poderia ser punido como autor mediato da tentativa de homicídio (pela
conjugação do art. 131º, com a 2ª proposição do art. 26º e com a
alínea c) do nº 2 do art. 22º).

2) A quer matar B e, para isso, durante a execução de uma peça teatral


troca o punhal, com que o actor principal, C, deve fingir matar B, por
um punhal verdadeiro, aparentemente igual ao outro. C,
desconhecendo a troca dos punhais, mata B.

Admitindo que, nesta hipótese, A trocou o punhal imediatamente


antes de C o utilizar, a solução seria idêntica à da hipótese 1), uma
vez que, tendo em consideração o plano do agente, o punhal vai ser
cravado em B imediatamente a seguir ao acto de troca realizado
por A. Assim sendo, nos termos do art. 22º, nº 2, alínea c), conjugado
75

com o art. 131 e com a 2ª proposição do art. 26º, A deu início à


execução do homicídio ( que prosseguiu por intermédio de C). Se
após a troca dos punhais A tivesse sido descoberto poderia ser
punido por tentativa de homicídio.

3) A monta um explosivo numa casa que funcionará quando se tocar a


campainha. À hora que quer fazer explodir o engenho, A manda uma
criança, que ali se encontra a brincar, carregar na campainha em troca
de um brinquedo.

Trata-se novamente uma hipótese idêntica às anteriores. Nos termos


da alínea c) do art. 22º, nº 2, a execução começa quando A manda a
criança carregar na campainha, pois é já um acto que, tendo em
consideração o plano do agente e salvo circunstâncias imprevisíveis,
é de natureza a fazer esperar que se lhe siga imediatamente um acto
previsto na alínea b) do art. 22º, nº 2, ou seja, um acto adequado a
provocar a explosão.

Em hipóteses como as referidas, já há tentativa para o autor mediato


com a acção de instrumentalização do executor, uma vez que aquele
dá início à execução nos termos do art. 22º, nº 2, alínea c), que
prossegue por intermédio do executor. No caso de aos actos de
instrumentalização realizados pelo autor mediato não se seguirem
imediatamente actos do instrumento enquadráveis nas alíneas a) e/ou
b) do art. 22º, nº 2, então a execução só poderá ser iniciada pelo
76

instrumento e, portanto, só nesse momento se iniciará a tentativa para


o autor mediato.
(Mais fundamentadamente cfr. o nosso "Figura Central..., cit., p. 933 ss. nº. 8,
especialmente nota 42).

5 Co-autoria (art. 26ª, 3ª proposição)

5.1 Segundo o art. 26º, 3ª proposição, é co-autor de um crime quem “tomar


parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou
outros”.

Do referido art. retira-se que são elementos fundamentais da co-


autoria:

a) Uma intervenção directa na execução do facto (tomar parte directa


na sua execução);

b) Um acordo ou decisão conjunta sobre o plano de execução do


facto, que inclui a divisão de tarefas entre os co-autores (por acordo
ou juntamente com outro ou outros);

c) O domínio funcional do facto, o que significa que o co-autor domina


o facto através do domínio da sua função no plano. Por isso se designa o
domínio do facto na co-autoria por domínio funcional. Este elemento da
co-autoria retira-se da exigência, feita no art. 26º, 3ª parte, de que os co-
77

autores tomem parte directa na execução nos termos de um acordo entre


eles.

5.2 Relativamente à exigência de que o co-autor intervenha directamente


na execução do crime, a Doutrina ainda dominante e a jurisprudência
alemãs entendem que não é imprescindível à punição de um agente como
co-autor que ele tome parte directa na execução do crime; basta que ele
participe na fase dos actos preparatórios. E é curioso notar que, mesmo
alguns penalistas que criticam essa tese punem como co-autor o
“cérebro do grupo”, mesmo quando ele apenas participa na fase dos
actos preparatórios, elaborando o plano e distribuindo as tarefas pelos
restantes comparticipantes.

O nosso legislador, conhecedor da controvérsia existente na Doutrina


alemã, quis deixar claro no art. 26º que o co-autor tem sempre que tomar
parte directa na execução do crime. O entendimento de que a actuação
do co-autor pode verificar-se apenas na fase dos actos preparatórios não
tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal e traduzir-se-ia,
portanto, num recurso à analogia para alargar a incriminação, o que,
como sabemos, é proibido pelo princípio nullum crimen nulla poena
sine lege. Isto é tanto mais importante que se diga, quanto é certo que a
nossa jurisprudência, com base numa interpretação incorrecta da teoria
do domínio do facto, várias vezes condenou como co-autoras pessoas
que só tomaram parte em actos preparatórios, violando, portanto, o
princípio da legalidade (por exemplo, considerando co-autores da
falsificação de uma carta de condução, o falsificador, o interessado na
78

carta de condução falsa e os intermediários que forneceram ao


falsificador os elementos biográficos a inserir na carta e lhe entregaram o
preço combinado para a falsificação - Ac. STJ de 18-7-84, BMJ 339, p.
297; no mesmo sentido Ac. STJ de 14-11-84, BMJ 341, p. 202).

5.2 Quanto ao segundo elemento da co-autoria (acordo ou actuação


conjunta), a redacção do art. 26º é infeliz, pois pode inculcar a ideia de
que a execução se materializa no acordo. É claro que não é admissível
tal interpretação, pois ela significaria, por um lado, antecipar a
execução para o momento do acordo e considera-lo um acto de
execução que de modo algum se enquadra no art. 22º e, por outro lado,
punir em termos gerais o pacto criminoso que não é punível na nossa
lei (constava do art. 31º do Projecto de Eduardo Correia, mas mereceu
severas críticas de Gomes da Silva, logo na Comissão Revisora, e de
Figueiredo Dias, acabando por ser eliminado).

A expressão “toma parte directa na sua execução, por acordo” não


pode significar, portanto, que o acordo já constitui execução, mas tão só
que o agente toma parte directa na execução em conformidade com
um acordo (cfr. ConceiçãoValdágua, Início da Tentativa do Coautor..., cit., p.
122 ss.).

5.2.1 Que significado deve atribuir-se à disjuntiva “ou”, constante do art.


26º, 3ª proposição?

No Projecto de Eduardo Correia ( art. 27º, nº 2) exigia-se que o co-autor


executasse o crime imediatamente, por acordo “e” conjuntamente com
79

outro ou outros, tendo a Comissão Revisora aprovado por unanimidade


uma redação idêntica em que continuou a constar a expressão tomar
parte imediata na ... execução (do crime), por acordo “e”
conjuntamente com outro ou outros. No entanto, a copulativa “e” foi
substituida pela disjuntiva “ou”, que consta do actual texto legal, sem
que para isso fosse dada qualquer explicacão.

A meu ver a substituição do “e” pelo “ou” tem o sentido de esclarecer


que, ao contrário do que vinha defendendo a jurisprudência portuguesa,
na vigência do C.P. anterior, não é necessário um acordo prévio para a
existência de co-autoria; basta uma consciência recíproca de
colaboração entre os executores do facto, que existirá se os vários
agentes estiverem a executar o crime “juntamente” uns com os outros.
Que não é inútil a substituição da copulativa “e” pela alternativa “ou”
mostra-o o facto de, ainda hoje, Maia Gonçalves continuar a exigir,
como elemento da co-autoria, um acordo prévio entre os vários co-
autores (Para desenvolvimento da argumentação e exemplificação da mesma, cfr.
Conceição Valdágua, Início da Tentativa do Co-autor, cit., p. 124 ss.).

5.2.2 É importante acentuar que nenhuma das expressões “acordo” ou


“juntamente” é compatível com uma visão atomística da co-autoria,
segundo a qual a co-autoria se reduziria a uma mera adição de
contributos de várias pessoas cujo resultado final seria o facto típico.
Quer o “acordo”, quer o “juntamente” pressupõem a verificação de algo
que unifique no plano subjectivo os contributos executivos dos vários
co-autores. De contrário seria inútil toda a segunda parte da 3ª
proposição do art. 26º- “por acordo ou juntamente”-, pois da primeira
80

parte - “toma parte directa na ... execução”- consta já a exigência de


realização do tipo (execução) pelos vários co-autores e o carácter
parcelar do contributo de cada um deles (toma parte directa).

Assim, não haverá co-autoria, mas sim autorias paralelas se, por
exemplo, A e B decidem matar C, sem nenhum deles saber da intenção
do outro. Cada um deles, sem conhecimento do outro, coloca numa
bebida a tomar pela vítima, uma quantidade de veneno que julga
suficiente para matar. Prova-se, no entanto, que qualquer das doses,
isoladamente, era insuficiente para matar C, e que só adicionadas podem
produzir o resultado. Ambos serão puníveis como autores paralelos de
tentativa de homicídio e não como co-autores do crime consumado,
porque não existia entre eles nada que unificasse no plano subjectivo o
contributo de cada um deles para a execução do facto. Nem actuaram por
“acordo” nem “juntamente” um com o outro, como exige,
alternativamente, a terceira proposição do art. 26º( cfr. Conceição Valdágua,
Início da Tentativa do Co-autor,. cit., p. 124 ss.).

Do mesmo modo, não haverá co-autoria, se, no exemplo dado acima, B,


sabendo que A vertera na bebida a tomar por C uma dose de veneno que
A erradamente considera suficiente para matar, resolve colaborar no
plano criminoso de A e, sem conhecimento deste, junta na mesma bebida
a porção que falta para o veneno produzir a morte de C. Trata-se,
novamente de autorias paralelas, devendo A ser punido como autor
singular de uma tentativa de homicídio e B como autor singular de
homicído qualificado consumado (art. 132º, nº2, al. f)). A e B não são
81

co-autores porque não acordaram na execução do facto nem actuaram


juntamente um com o outro, uma vez que A desconhecia a colaboração
de B no seu facto, não podendo, por isso, dizer-se que actuou juntamente
com ele (cfr. Conceição Valdágua, Início da Tentativa do Co-autor, cit., p. 126 ss.,
prestando atenção aos exemplos dados e à solução deles).

5.2.3 É o acordo sobre o plano de execução do facto, que inclui a divisão


de tarefas, que limita a co-autoria. Por isso, na co-autoria sucessiva, que
se verifica quando um ou alguns dos co-autores entram na execução de
um plano criminoso já iniciado por outros, os que entram posteriormente
só são responsáveis por aquilo que se passa depois da sua entrada, uma
vez que não houve acordo sobre os actos praticados anteriormente. Há,
nesse caso, um novo plano, com uma nova divisão de tarefas e é só por
esse plano, em que acordaram, que os co-autores sucessivos são
responsáveis.

Exemplo: A e B resolvem assaltar um armazém de pronto a vestir, mas


durante a execução do assalto chegam à conclusão de que não
conseguem levar tudo sozinhos. Telefonam a C convidando-o a
colaborar com eles e C aceita. C só é co-autor do crime ou crimes que
acordou praticar com A e B. Se, por hipótese, antes da entrada de C, A
e B tiverem matado o guarda do armazém para lá poderem entrar, só eles
serão co-autores desse homicídio, uma vez que sobre esse acto não havia
acordo de C.
82

5.2.4 Dado que os co-autores só podem ser responsabilizados pelo plano em


que acordaram, o excesso de um co-autor não pode ser imputado aos
restantes, mas apenas àquele que se excedeu em relação ao plano em
que todos acordaram.

Exemplo: A, B e C decidem assaltar uma vivenda. Distribuem tarefas


entre si de modo que A e B subtraem os objectos que se encontram no
rés do chão e C subtrai os objectos que se encontrem no 1º. andar. C
encontra no 1º. andar uma jovem e viola-a. A violação da jovem não
estava prevista no plano sobre o qual todos acordaram. É um excesso de
C em relação ao plano e só C responderá por esse excesso.

5.3 Quanto ao terceiro elemento da co-autoria, o domínio funcional do


facto, é ele que permite distinguir o co-autor do cúmplice, pois o
cúmplice também pode participar no acordo e desempenhar uma tarefa
durante a fase de execução do crime, mas não tem o domínio funcional
do facto.

O cúmplice também tem o domínio positivo e negativo do seu


contributo, mas este não lhe dá o domínio funcional do facto, pois ele, ao
contrário do co-autor, não tem nas mãos o poder de fazer gorar a
consumação do crime através da simples omissão do seu contributo,
uma vez que esse contributo não é indispensável, não é essencial, à
realização do crime.
83

O co-autor, pelo contrário, presta, nos termos do plano, um contributo


essencial, indispensável à realização do plano criminoso e, precisamente
por causa dessa indispensabilidade da sua tarefa ele pode fazer gorar a
consumação do crime pela simples omissão dessa tarefa; ele tem nas
mãos o poder de impedir a consumação do facto não prestando o seu
contributo e de permitir o avanço da execução através da prestação da
sua tarefa. Ele tem o (con)domínio do facto através do domínio da sua
função, como atrás se disse. (Desenvolvidamente, Conceição Valdágua, Início
da Tentativa do Co-autor, cit., p. 133 a 138, 145 a 154, 68 a 74).

5.3.1 Note-se, no entanto, que, ao contrário do que supõe a Doutrina


dominante na Alemanha, o co-autor não tem - a não ser que seja o
primeiro a actuar - um domínio negativo sobre toda a execução, porque
ele não tem o domínio dos contributos dos seus companheiros; estes são
senhores de uma vontade livre e esclarecida. A parte do facto realizada
antes da prestação do contributo de um co-autor não é por ele dominada,
nem mesmo negativamente (cfr. Conceição Valdágua, Início da Tentativa do
Co-autor, cit., p. 147 a 153).

5.3.2 A importância do contributo do co-autor para a realização do plano


criminoso, afere-se de uma perspectiva ex-ante, nos termos do plano. Se
nos termos do plano o contributo era indispensável à realização desse
plano, é indiferente, para a qualificação do agente como co-autor, que
durante a execução do crime esse contributo se venha a mostrar
dispensável. Assim, por exemplo, a tarefa de vigiar tanto pode
fundamentar a co-autoria, se for indispensável à realização do plano,
como pode fundamentar apenas a cumplicidade, se não for essencial à
84

realização do plano criminoso. E se no momento da elaboração do plano


os co-autores consideraram indispensável a tarefa de vigiar, mesmo que
durante a execução do crime ela se venha a mostrar dispensável, porque
ninguém, ao contrário do que eles supunham, passou no local, isso não
afecta a responsabilidade do vigia como co-autor. Do mesmo modo, se
nos termos do plano criminoso era indispensável a tarefa de abrir o cofre
que eles pretendiam assaltar, o agente que aceita realizar essa tarefa será
co-autor, mesmo que no momento de prestar o seu contributo se
verifique que ele era dispensável, porque, afinal, o cofre estava aberto.

É importante não confundir a questão acabada de referir com a não


prestação do contributo. Aquele que aceita vir a prestar um contributo
essencial para a realização do plano criminoso mas, por qualquer razão,
não chega a prestá-lo, não pode ser co-autor, uma vez que não tomou
parte directa na execução do crime, nem exerceu o domínio funcional do
facto. Mas se um agente aceita prestar um contributo essencial à
realização do plano e o realiza, ele é co-autor, mesmo que durante a
execução desse contributo se mostre que ele podia ter sido dispensado,
porque não era essencial à realização do crime planeado. Nestes casos o
agente participa directamente na execução, conforme acordou com os
outros, e exerce o domínio funcional do facto, sendo, por isso, co-autor
do facto.

5.4 Co-autoria aditiva. Esta figura foi introduzida na discussão científica


por Herzberg. Este autor dá como exemplo de co-autoria aditiva a
seguinte hipótese: 20 conspiradores disparam simultaneamente sobre um
85

político para tornar mais provável o sucesso do plano criminoso comum.


A autópsia revela que a vítima foi atingida mortalmente apenas por
algumas balas; outras não acertaram. Não é possível provar quais os
agentes que dispararam as balas que atingiram a vítima.

Diz Herzberg que, na referida hipótese, se trata de uma forma de co-


autoria não enquadrável na teoria do domínio funcional do facto.
Contrariamente, Jakobs e Rudolphi entendem, a meu ver com razão, que
neste caso, ou noutros semelhantes, não há nenhuma co-autoria, mas sim
autorias paralelas que, por dificuldades de prova, alguns autores
pretendem transformar em co-autoria.

Na verdade, no exemplo dos 20 conspiradores, cada um dos agentes tem


um pleno domínio sobre o facto e não um domínio funcional do facto;
nenhum deles pode fazer gorar a consumação do facto pela simples
omissão do seu contributo, pois cada um deles realiza integralmente a
execução, não presta apenas um contributo para ela. Mas, além do
domínio funcional do facto, falta outro elemento da co-autoria que é o
“tomar parte directa na execução do crime”. Cada conspirador realiza,
por si só, plenamente a execução do crime de homícídio, não realiza
apenas uma parte da execução, como é pressuposto da co-autoria. Trata-
se, pois, de autorias paralelas. Cada um dos 20 conspiradores é autor do
crime de homicídio consumado, caso se prove que a bala que disparou
produziu o resultado. Se não for possível provar quais os agentes que
produziram o resultado ele não poderá ser objectivamente imputado a
86

nenhum deles (in dubium pro reo), pelo que, todos responderão apenas
por tentativa.

5.5 Co-autoria alternativa ou cooperação alternativa. Esta figura foi


introduzida na discussão científica por Rudolphi que dá o seguinte
exemplo: A e B acordam entre eles matar C. Como a vítima costuma
passar, ora pela rua X, ora pela rua Y, combinam que A esperará C na
rua X e B esperá-lo-à na rua Y. A vítima passou nesse dia pela rua X,
onde foi morta por A.

Contra a ideia, defendida por Roxin e Bloy, de que, na hipótese supra


referida, A e B são co-autores, diz Rudolphi, a meu ver com razão, que
só A é autor do crime de homicídio porque só ele o executou e, portanto,
só ele exerceu o domínio do facto. Na verdade, B não chegou a praticar
qualquer acto de execução do crime, pelo que, apenas poderá ser punido
como cúmplice moral por ter fortalecido a vontade de A, através do
acordo.

5.6 O dolo do co-autor tem que abranger a consumação, caso contrário ele
será um mero agente provocador.

Exemplo: A acorda com B participar com ele num assalto. No entanto A


não quer a consumação do crime, mas tão só que B seja apanhado pela
polícia que, para o efeito, informa. A não será co-autor, nem cúmplice,
uma vez que não tem dolo de consumação do crime. É apenas agente
provocador não punível.
87

5.7 Início da tentativa do co-autor

Sobre esta matéria remete-se para Conceição Valdágua, Início da Tentativa


do Co-autor, cit., ps. 103 a 184 que, aliás, são importantes não só para a
questão do início da tentativa do co-autor, mas para a comparticipação
criminosa em geral e em especial para a co-autoria e para tentativa.
Indico aqui, no entanto, alguns tópicos de orientação sobre a sobre a matéria.

1. No caso de o crime realizado em co-autoria não se consumar importa


determinar se todos os agentes, ou apenas alguns, são co-autores da
tentativa.

Para determinar em que momento se inicia a tentativa para os co-autores


existem, fundamentalmente 2 teorias:

- a solução global, segundo a qual o início da tentativa se verifica em


simultâneo para todos os agentes a partir do momento em que um
deles comece a prestar o seu contributo;

- a solução individual, segundo a qual o início da tentativa em casos


de co-autoria se determina individualmente para cada um dos agentes,
em função do início da prestação do seu contributo.

2. A solução global é de rejeitar, desde logo no seu fundamento, que é a


imputação recíproca de condutas alheias: imputa-se a tentativa realizada por
88

um dos agentes a todos os outros que não chegaram a fazer nada, pelo
simples facto de terem acordado vir a fazer.

Roxin, que era um defensor da solução global, até à publicação de um artigo


que publiquei na Alemanha, defendendo a solução individual, dizia que “a
ideia de que alguém pode ser punido como co-autor por aquilo que outro
responsavelmente fez é bizarra e incompatível com o princípio da culpa”.
Por isso, embora ele durante muito tempo tivesse defendido a solução
global, fazia-o com fundamento em que o co-autor tendo o condomínio de
todo o facto participa em cada acto individual dos outros como contitular do
domínio. Nessa medida, dizia Roxin, aquele que ainda não actuou tem nas
mãos o curso dos acontecimentos, como os outros que actuaram.

Mas Roxin, apesar de apresentar um fundamento diferente para a solução


global, tal como os restantes defensores desta teoria era inconsequente,
porque para o facto consumado exigia a participação directa do co-autor na
execução e se o facto ficava na forma tentada, bastava-se com a participação
no acordo. Por isso, a solução global que ele defendia levava às mesmas
consequências que a solução global com fundamento na imputação de
condutas alheias.

A solução global, além de violar o princípio da culpa, deve ser rejeitada


também por outras razões:
89

1- Leva a contradições no plano valorativo, porque se um não chega a actuar


e o facto se consuma não é punido e se o facto fica na forma tentada é
punido;

2- Viola o princípio da legalidade, pois basta-se com a participação no


acordo (que é um acto preparatório), quando o artº 26 exige a participação
directa na execução;

3- Atribui ao acordo uma relevância que lhe não cabe, dado que este é um
acto preparatório que, nos termos do art. 21º em princípio não é punível,
podendo apenas fundamentar a punição pelo art. 27º. Também por aqui a
solução global viola o princípio da legalidade.

4- Provoca desigualdade no campo da desistência porque faz antecipar o


momento da desistência. Quem ainda nada fez deverá conseguir a
impunidade como co-autor pela simples omissão do seu contributo, embora
deva ser punido por cumplicidade, se não tiver uma actividade contra-
operante, por força do art. 27º conjugado com o artº 25 que regula a
desistência em casos de comparticipação.

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