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Nº 530 | Ano XVIII | 16/10/2018

Missões
Jesuíticas
Mundos que se revelam e se transformam
Carlos D. Paz
Alexandre Coello de La Rosa
Guilherme Galhegos Felippe
María Salinas
Erneldo Schallenberger
María Elena Imolesi
Célia Tavares
Miguel de Asúa
Norberto Levinton
Aliocha Maldavsky
Helenize Serres

Leia também
■ Idelber Avelar
EDITORIAL

Missões jesuíticas. Mundos que


se revelam e se transformam

“ A
s missões certamente foram um ponto de História Latino-americana na Universidad de
encontro mútuo entre práticas e saberes Buenos Aires, Argentina, analisa como a iden-
próprios dos nativos e dos evangelizado- tidade moderna vai sendo forjada na experiên-
res.” É assim que Carlos Paz, doutor em His- cia missioneira.
tória pela Universidad Nacional del Centro de la A historiadora Célia Tavares, da UERJ, ana-
Provincia de Buenos Aires, na Argentina, define lisa as particularidades e consequências das
a experiência do contato de jesuítas, associados ações dos jesuítas nas primeiras incursões na
às monarquias católicas ibéricas, com popula- Índia. Miguel de Asúa, professor de História
ções indígenas no espaço da redução, também do Instituto de Pesquisa de Ciências e Engenha-
chamado missão. ria Ambiental na Universidade de San Martin,
Historiadores destacam que é preciso romper na Argentina, aborda a experiência missioneira
com a máxima de que as ações da Companhia como fonte para pensar as ciências médicas e
de Jesus estavam necessariamente associadas à naturais no contexto histórico.
imposição do cristianismo e das lógicas tempo-
O arquiteto Norberto Levinton, doutor
rais europeias. Para eles é preciso levar em conta
em História e pesquisador na Universidad del
as transformações que ambas as culturas sofre-
Salvador, na Argentina, estuda como as edifi-
ram a partir das suas relações. Esta é a proposta
2 das Jornadas Internacionais sobre as Missões
cações e organizações espaciais das missões
revelam mais do que uma supremacia de um
Jesuíticas, que acontecem, em sua XVII edição,
povo sobre outro. Aliocha Maldavsky, dou-
na Unisinos – Campus São Leopoldo, nos dias
tora em História, observa que a ação de jesuí-
22 a 25 de outubro. A presente edição da IHU
tas não é algo uniforme e generalizado, assim
On-Line debate esse tema.
como as relações que vão estabelecer com o
Alexandre Coello de La Rosa, professor da poder temporal e populações nativas. Heleni-
Universitat Pompeu Fabra - UPF, de Barcelona, ze Serres, doutora em História pela Unisinos,
Espanha, analisa as missões como um empre- detalha descobertas de sua pesquisa sobre as
endimento que dá origem ao que mais tarde vai chamadas estâncias missioneiras.
se definir como globalização. Guilherme Ga-
Também pode ser lida a entrevista de Idelber
lhegos Felippe, doutor em História pela Uni-
Avelar, professor da Tulane University, em
sinos, descreve as transformações que ocorrem
New Orleans, EUA, analisando a conjuntura po-
a partir do momento da colonização, que coloca
lítica pós-eleitoral.
duas culturas distintas frente a frente no espaço
de missão. A todas e a todos uma boa leitura e uma exce-
lente semana.
Os escritos de membros da Companhia de Je-
sus sempre foram fontes para a pesquisa his-
toriográfica, embora muito questionados pela
parcialidade. María Salinas, professora na
Facultad de Humanidades da Universidad Na-
cional del Nordeste, na Argentina, retoma esse
debate e propõe a necessidade de voltar a esses
materiais com outros olhares. Erneldo Schal-
lenberger, professor da Unioeste, entende que
do encontro entre jesuítas e índios emergem no-
vos estatutos sociais.
A Companhia de Jesus também está inscrita Ruínas da Igreja
São Miguel Arcanjo,
no contexto das transformações que vão ocor-
em São Miguel das
rer na transição do Medievo para a Moderni- Missões/RS | Foto:
dade. María Elena Imolesi, professora de Maira Dill

16 DE OUTUBRO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Agenda
8 ■ Idelber Avelar: “A nova direita é mais ideológica que a fisiológica dos Jucás e Eunícios”
12 ■ Tema de capa | Carlos D. Paz: A missão jesuítica: as complexas relações que vão além da
expansão do cristianismo
20 ■ Tema de capa | Alexandre Coello de La Rosa: A experiência jesuítica num empreendimento
de globalização
27 ■ Tema de capa | Guilherme Felippe: “Os outros” que se tocam na experiência de missão
31 ■ Tema de capa | María Salinas: A escrita jesuítica desvela narrativas da história
da América colonial

36 Tema de capa | Erneldo Schallenberger: Processos migratórios dos séculos XVI e XVII
promovem novos estatutos sociais

41 Tema de capa | María Elena Imolesi: As ações missioneiras e a formação da identidade
moderna

48 Tema de capa | Célia Tavares: A “hinduização” do cristianismo na experiência missioneira
no Oriente

54 Tema de capa | Miguel de Asúa: A história natural e da ciência como valor missionário
59 ■ Tema de capa | Norberto Levinton: Da mistura de dois mundos, emerge a arquitetura
missioneira 3
63 ■ Tema de capa | Aliocha Maldavsky: A multiplicidade política nas missões da Companhia
de Jesus
67 ■ Tema de capa | Helenize Serres: Estâncias missioneiras como horizonte de relações
72 ■ Publicações | Andrea Grillo: O pontificado de Francisco e o laicato na missão da Igreja hoje.
Avanços e impasses da “parrésia eclesial”

75 Outras edições

Diretor de Redação Fachin, Cristina Guerini, Evlyn Zilch,


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to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Revisão Instituto Humanitas Unisinos - IHU
publicação pode ser acessada às segun- Carla Bigliardi
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conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Atualização diária do sítio Gerente Administrativo: Jacinto Schneider
Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia (jacintos@unisinos.br)

EDIÇÃO 530
TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana.

“A democracia está ameaçada no Brasil.


Conseguiremos salvá-la?”
“Ao se sentirem desamparadas e não atendidas pelo sistema em vigor,
muita gente se sentiu atraída e seduzida por propostas alternativas con-
servadoras.”
Daniel Aarão Reis é graduado e mestre em História e doutor em História Social. Professor da UFF.
Disponível em https://bit.ly/2RIv1IH.

É possível reduzir as desigualdades em


tempo de crise
“Os 10% mais ricos ganham muito mais que a média e, além disso, ainda
têm rendas muito desiguais entre si, o que não acontece entre os mais pobres.”
Carlos Corseuil é doutor em Economia e técnico de planejamento e pesquisa do Ipea. Marcos
Hecksher é assessor especializado do Ipea e doutorando em População, Território e Estatísticas
Públicas. Disponível em https://bit.ly/2OSxW30.

4 Eleições 2018 e a economia. Um cenário


nada animador. “O maior desafio é político”
“A onda antissistema que foi capitalizada pelo Bolsonaro carrega consi-
go uma agenda econômica ultraliberal que não tem nenhuma chance de
ter êxito em uma economia com as características da brasileira.”
Marcelo Manzano é doutor em Desenvolvimento Econômico e mestre em Economia Social e do
Trabalho. Disponível em https://bit.ly/2yswDOf.

Eleições 2018. A radicalização da polarização


política no Brasil
Para avaliar os impactos e os significados desta eleição, a IHU On-Line
ouviu uma série de especialistas para analisar o primeiro turno de 2018.
Entrevistados: Roberto Romano, Clemente Ganz Lúcio, Ivo Lesbaupin, Rudá Ricci, Bruno Cava,
Adriano Pilatti, Acauam Oliveira e Moysés Pinto Neto. Disponível em https://bit.ly/2ytT19T .

O cenário político desolador, a antipolítica


das redes e a performance das candidaturas
“O sentimento geral é de que nenhuma candidatura atual é capaz de res-
ponder às demandas urgentes do seu tempo, de aparente esgotamento de
ideias políticas radicais.”
Acauam Oliveira é graduado em Letras, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada e dou-
tor em Literatura Brasileira. É professor da UPE. Disponível em https://bit.ly/2NBpu3t.

16 DE OUTUBRO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Cuidado, somos “Há um desejo de ver Está explodindo uma


perigosos! a ditadura como uma bomba que ninguém
utopia”. Entrevista com quis ver. Entrevista com
Lilia Schwarcz Vladimir Safatle

“A minha história é a histó- A antropóloga e escritora Os posicionamentos de Jair


ria de centenas de milhares Lilia Schwarcz já escreveu Bolsonaro (PSL) sobre pautas
de brasileiros. É possível que vários livros sobre a histó- identitárias, como os direitos
parte deles estejam contami- ria de seu país e, neles, não das mulheres e LGBTs, domi-
nados pelo temor, afeto que há tantas pasagens tão car- naram o debate eleitoral no
reverbera o ódio de um pro- regadas de tensão e signifi- primeiro turno e atraíram
jeto político covarde e auto- cado como as eleições que se o foco das atenções interna-
ritário. A todos estes, meu realizam neste domingo. cionais. Na leitura do filósofo
amor, minha tristeza e mi- Entrevista de Tom C. Avendaño, Vladimir Safatle, professor
nha absoluta solidariedade.” publicada por El País, reproduzida nas da Universidade de São Paulo
Artigo de Ricardo Machado, jornalista
Notícias do Dia do IHU, em 8-10-2018, (USP), as declarações são uti-
disponível em http://bit.ly/2CF39RB.
e doutorando em Comunicação, pu- lizadas pelo candidato a partir
blicado no sítio do IHU em 10-10-2018, de um cálculo estratégico para
disponível em http://bit.ly/2yl07hx.
esvaziar a discussão política.
A entrevista é de João Soares, publica-
da por Deustsche Welle, reproduzida
nas Notícias do Dia do IHU, em 5
8-10-2018, disponível em http://bit.
ly/2C9Z8DI.

Kim convida o papa, “Líderes responsáveis Frei Betto: “Vejo paralelo


Santa Sé não comenta. não têm o direito de entre o momento atual
Coreia está no centro da se isentar diante da e a eleição de Hitler na
diplomacia vaticana insanidade de Bolsonaro” Alemanha”

O “ditador” Kim Jong-un quer Fernando Limongi não es- Em entrevista à Pública,
se encontrar com o papa Fran- conde a angústia com o resul- o frade dominicano e escri-
cisco e não vê a hora de rece- tado do primeiro turno das tor afirma que Bolsonaro é
bê-lo “calorosamente”. Mais eleições. Para ele, a vitória de resultado da omissão do ju-
um movimento surpreendente Jair Bolsonaro joga o país no diciário que permitiu a “lei
do líder norte-coreano, neto de escuro, e aqueles que o apoiam esdrúxula da anistia recí-
Kim Il-Sung, que extirpou os estão minimizando riscos ex- proca” e que o PT “não cui-
católicos do país. O porta-voz tremamente perigosos que o dou de promover a alfabeti-
vaticano, Greg Burke, decla- candidato do PSL trará caso zação política do povo”.
rou que a audiência ocorrerá vença o segundo turno. Li- A entrevista foi publicada por Agência
no dia seguinte a uma missa mongi se mostrou chocado Pública em11-10-2018 e reproduzida
solene que o cardeal secretário com a neutralidade assumida pelo sítio do IHU em 13-10-2018, dis-
ponível em http://bit.ly/2Eq3N79.
de Estado, Pietro Parolin, cele- por grandes lideranças como
brará em São Pedro pela paz o ex-presidente Fernando
na península coreana. Henrique Cardoso.
Reportagem de Maria Antonietta Calabrò, Reportagem de Carla Jiménez, publi-
publicada em L’HuffingtonPost.it, reprodu- cada por El País, reproduzida nas Notí-
zida nas Notícias do Dia do IHU, em 10-10- cias do Dia do IHU, em 11-10-2018,
2018, disponível em http://bit.ly/2Pp2shT. disponível em http://bit.ly/2ORCkPS.

EDIÇÃO 530
AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

Oficina de Plantas Oficina de Excel Dinâmica


Medicinais – Parte III avançado para análise macroeconômica
e sistematização brasileira 2003-2017.
de dados Crise e perspectivas

17/out 17/out 18/out


Horário Horário Horário
12h30 15h às 17h 17h30 às 19h
Ministrante Ministrante Conferencista
Profa. MS Denise Schnorr Prof. MS Renato Luiz Ro- Prof. Dr. Fernando Maccari
– Unisinos mera Carlson – Unisinos Lara – Unisinos
Local Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala de Informática – Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Prédio B09, sala 8 Companheiros – IHU
Unisinos Campus Unisinos Campus Unisinos Campus
São Leopoldo São Leopoldo São Leopoldo

6
No tempo das Roda de conversa Política fiscal
catástrofes. sobre alimentação e trajetória
Apresentação da obra orgânica e as macroeconômica
de Isabelle Stengers legislações dos brasileira no período
agrotóxicos de 2003 a 2017

23/set 24/out 24/out


Horário Horário Horário
19h30 às 22h 13h às 14h 19h30 às 22h
Conferencista Participante Conferencista
MS Ricardo Machado – Marcelo Fernandes Ritter – Prof. Dr. Manuel Pires –
Unisinos Emater IBRE/FGV
Local Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Companheiros – IHU Companheiros – IHU
Unisinos Campus Unisinos Campus Unisinos Campus
São Leopoldo São Leopoldo São Leopoldo

16 DE OUTUBRO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

As mulheres transexuais Trajetória A 4ª Revolução


e a adequada execução macroeconômica industrial e a ciber(in)
da pena privativa de brasileira 2003-2017 e segurança
liberdade nas unidades as políticas de ciência,
prisionais tecnologia e inovação

25/out 29/out 31/out


Horário Horário Horário
17h30 às 19h 19h30 às 22h 19h30 às 22h
Conferencista Conferencista Conferencista
Bel. Monique Costa Prof. Dr. João Alberto de Prof. Dr. Carlos Affonso
Machado Negri – IPEA Souza – Instituto de
Tecnologia e Sociedade
Local Local do Rio – ITS Rio
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Companheiros – IHU Local
Unisinos Campus Unisinos Campus Sala Ignacio Ellacuría e
São Leopoldo São Leopoldo Companheiros – IHU
Unisinos Campus
São Leopoldo

EDIÇÃO 530
ENTREVISTA

“A nova direita é mais ideológica que


a fisiológica dos Jucás e Eunícios”
Idelber Avelar analisa a conjuntura política nacional
depois do segundo turno das eleições de 2018
Patricia Facchin

A
pesar de o PT ter eleito a maior Essa nova direita, adverte, não pode ser
bancada na Câmara dos Depu- explicada somente pelo antipetismo,
tados, “isso não significa muito porque os “motivadores reais que os
quando são 30 partidos representados acompanham são o sentimento antis-
e a maior bancada é pouco mais de 10% sistêmico, o punitivismo e o afã anticor-
do total”, diz Idelber Avelar à IHU On rupção. Eu diria que essa nova direita,
-Line ao analisar o resultado das elei- mais que ter a cara de Bolsonaro, en-
ções deste ano. Na avaliação dele, o controu em Bolsonaro uma espécie de
partido sofreu “todas as grandes derro- significante vazio no qual se expressar”.
tas simbólicas” que poderia ter sofrido, Além da nova direita, quem surpreen-
a exemplo da não eleição da ex-presi- deu nesta eleição foi a candidatura de
dente Dilma, de Suplicy, de Fernando Ciro Gomes, que se propôs como uma
Pimentel e de Lindberg Farias. alternativa à esquerda. Ao avaliar o per-
8
Mas não foi somente o PT quem per- centual de votos recebido por Ciro, Idel-
deu no último pleito. O mesmo acon- ber esclarece que a “pergunta que se im-
teceu com a “direita que capitaneou o põe, portanto, não é por que Ciro Gomes
impeachment”, como Magno Malta, não conseguiu ser uma alternativa, e sim
Romero Jucá, Edison Lobão, Garibaldi como é possível que ele tenha chegado a
Alves, Eunício Oliveira, Cássio Cunha tantos votos. A razão pela qual ele não
Lima, que foram “varridos” do Con- conseguiu ser alternativa é premissa da
gresso, afirma na entrevista a seguir, conversa: o maior líder político da his-
concedida por e-mail. tória do país e o maior partido da atua-
lidade, cinco vezes superior a qualquer
A direita que saiu vitoriosa das elei-
outro em preferências do eleitor, decidi-
ções, menciona, “é bem mais ideológi- ram destruí-lo, bloqueá-lo, impedir que
ca que a direita fisiológica dos Jucás e ele chegasse ao segundo turno, como
Eunícios”. A antiga direita, compara, fizeram com Marina em 2014 — só que
“era uma espécie de fiadora do pacto com a articulação de bastidores em vez
peemedebista e atuava dentro do go- de difamação pesada”.
verno indistintamente, sob tucanos e
petistas”, enquanto a nova direita “não Idelber Avelar é professor de Teoria
é uma coalizão de caciques oligárqui- Literária e Estudos Culturais na Tula-
cos locais. É uma direita enraizada na ne University, em New Orleans, EUA, e
população, composta de pastores, mi- doutor em Estudos Espanhóis e Latino
litares, donos de terras e classe média -Americanos pela Duke University.
urbana, e articulada pelo WhatsApp”. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que Ciro Idelber Avelar – Acredito que ceis. Boicotado por Lula, que implo-
Gomes não conseguiu ser uma Ciro Gomes fez uma campanha no- diu a aliança que ele havia tentado
alternativa à esquerda? tável, em circunstâncias muito difí- construir com o PSB, atacado pela

16 DE OUTUBRO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

“Está enterrada, evidentemente,


qualquer possibilidade de
que Geraldo Alckmin volte
a postular a Presidência”

centro-direita tucana, que bloqueou vável que sobreviva na condição eleições de 2018. Elegeu a maior
suas vias de acesso ao centrão fisio- de partido médio a pequeno, como bancada, mas isso não significa
lógico, Ciro percorreu o país, defen- grife para quatrocentões paulistas muito quando são 30 partidos re-
deu seu projeto — tomando amplas e para a velha classe dominante presentados e a maior bancada é
liberdades com os números e com mineira. Certamente ele já não será pouco mais de 10% do total. Todas
alguns fatos, é verdade — e chegou o que foi entre 1994 e 2014, ou seja, as grandes derrotas simbólicas que
a quase 13% dos votos praticamente líder de um polo de centro-direita o PT poderia sofrer nesta eleição,
sozinho. Nesse sentido, o contraste que se opõe nacionalmente ao polo ele sofreu. A ex-presidente Dilma
com Marina não poderia ser mais de centro-esquerda capitaneado Rousseff passou pelo vexame de
nítido. Marina começou com um pelo PT. Essa estrutura, essa di- ficar em quarto lugar contra nuli-
patamar de 20% dos votos, atingido cotomia, ruiu. Se Doria vencer em dades na eleição para o Senado em
duas vezes, e na condição de líder São Paulo, é possível que ele de- Minas. Suplicy liderou toda a corri-
de um movimento. Mesmo assim, bande e imploda o partido de vez. da e também ficou de fora em São
derreteu até 1%. Se perder, aí certamente as raposas Paulo. O governador mais impor- 9
tucanas observarão o quadro antes tante que tinham, Fernando Pimen-
A pergunta que se impõe, portan-
de tomar decisões. tel, não chegou sequer ao segundo
to, não é por que Ciro Gomes não
turno, e o Senador líder da “re-
conseguiu ser uma alternativa, e Em Minas, se vencer Anastasia,
sistência” contra o impeachment,
sim como é possível que ele tenha mantém-se um arranjo já antigo
entre a classe dominante local, a Lindberg Farias, também ficou de
chegado a tantos votos. A razão pela
casta política e o Judiciário, arran- fora. O PT concorreu a Governador
qual ele não conseguiu ser alternati-
va é premissa da conversa: o maior jo relativamente intocado pela Lava com nulidades nos dois principais
líder político da história do país e o Jato. Está enterrada, evidentemen- estados da federação, sendo que no
maior partido da atualidade, cinco te, qualquer possibilidade de que Rio de Janeiro foi explícita laranja
vezes superior a qualquer outro em Geraldo Alckmin volte a postular a das oligarquias políticas para im-
preferências do eleitor, decidiram Presidência. Se com o latifúndio te- pedir que o PSOL tivesse chance de
destruí-lo, bloqueá-lo, impedir que levisivo, a crise petista e a carência vencer. No Rio Grande do Sul, que
ele chegasse ao segundo turno, como de líderes que caracterizaram 2018 já foi bastião seu, ele já claramente
fizeram com Marina em 2014 — só ele não conseguiu, não vai conse- não disputa poder há algum tempo,
que com a articulação de bastidores guir nunca. colapso consolidado este ano. Con-
em vez de difamação pesada. Sozi- quistou alguns palácios estaduais
nho, Ciro resistiu bravamente e teve importantes no Nordeste, mas no
uma votação respeitável. Ele sai des- IHU On-Line – O senhor já dis- Ceará, por exemplo, a vitória não é
sa eleição maior do que entrou. se que a esquerda sofreu “uma petista por si, ela é de um laranja
derrota acachapante” nas ur- dos Ferreira Gomes. De grande e
nas e que “a direita fisiológica importante, resta só a Bahia mes-
IHU On-Line – Qual tende a que capitaneou o impeachment mo como bastião petista.
ser o futuro do PSDB depois da também perdeu”. O que essas
No entanto, a direita que capita-
baixíssima votação de Alckmin? perdas significam? Um novo
neou o impeachment também per-
quadro político começa a se de-
Idelber Avelar – Depende do que deu: Magno Malta, Romero Jucá,
senhar a partir desta eleição?
acontecer em São Paulo e Minas Ge- Edison Lobão, Garibaldi Alves, Euní-
rais, por certo, o que já é alegórico da Idelber Avelar – Discordo de cio Oliveira, Cássio Cunha Lima,
condição anacrônica, à la República analistas sofisticados como Marcos foram todos varridos. Algumas
Velha, do partido. O PSDB sai bem Nobre que creem que o PT “sobre- derrotas aí são marcantes simboli-
encolhido, obviamente, mas é pro- viveu excepcionalmente bem” às camente. Um pastor com histórico

EDIÇÃO 530
ENTREVISTA

homofóbico, Magno Malta, perdeu composta de pastores, militares, Eu diria que essa nova direita, mais
a vaga no Senado para um homem donos de terras e classe média ur- que ter a cara de Bolsonaro, encon-
gay assumido, casado e com filhos. bana, e articulada pelo WhatsApp. trou em Bolsonaro uma espécie de
Romero Jucá foi abatido um par de A natureza da relação que se esta- significante vazio no qual se expres-
anos depois de participar, com Ser- belecerá entre essa nova direita e o sar. Ele nada tem de externo ao sis-
gio Machado, da profecia do “gran- Executivo federal é coisa que ainda tema político nem de impoluta alma
de acordo nacional, com o Supremo, se verá, claro. Caso vença mesmo anticorrupta, claro, mas encontrou-
com tudo”. O acordão não parece ter Bolsonaro, ela se alinhará com ele se — por motivos circunstanciais
lhe servido de muito, o que não dei- automaticamente nas pautas com- durante o processo de impeach-
xa de ser um vexame emblemático portamentais, punitivistas, antidi- ment — em posição de expressar
em um ano em que Roraima elegeu reitos reprodutivos e anti-LGBT, esses anseios.
sua primeira parlamentar indígena. que não são pautas que eles pos-
Em suma, a oligarquia peemedebista sam abandonar sem custo político.
que capitaneou o país no processo de Nas pautas de austeridade econô- IHU On-Line – Alguns ana-
impeachment foi derrotada também. mica que Bolsonaro terá neces- listas afirmam que Bolsonaro
sariamente que passar se vencer, tem adotado as mesmas es-
essa nova direita oferecerá bolsões tratégias de Trump nos EUA,

“Desaparece- de resistência que virão natural-


mente das corporações que repre-
especialmente em relação a
sua forma de se posicionar via
ram as super- sentam. Essa resistência elevará o
valor da propina, já que o cenário
redes sociais, estabelecendo
uma comunicação direta com
bancadas de agora está muito mais pulverizado. seu eleitorado, sem a edição
da mídia. Percebe similarida-
90 a 100 depu- IHU On-Line – A que o senhor
des entre as estratégias dele e
de Trump?
tados que PT, atribui o crescimento da nova
direita? Ela pode ser explicada Idelber Avelar – Nesse aspecto
10
PSDB e MDB pelo antipetismo ou há outras
razões que a explicam? Essa
há similaridades, sim. Nos dois ca-
sos há uma apropriação de pautas
chegaram a nova direita tem a “cara” de
Bolsonaro ou ele representa a
da esquerda, advindas da crítica a —
e às vezes da obsessão persecutória
ter em algum “direita fisiológica”? e paranoica com — os meios de co-
municação de massas. Mote cons-
momento” Idelber Avelar – O crescimen-
to da nova direita é, em grande
tante no trumpismo e no bolsona-
rismo é a certeza de que a imprensa
parte, produto do antipetismo,
mas isso não é dizer muito. Essa é está esquerdizada e persegue seu
uma formulação tautológica, por- candidato. O bolsonarismo também
IHU On-Line – Num dos seus tem com o trumpismo a semelhança
que a nova direita se define, em
comentários sobre o resultado de basear-se em um ativismo rela-
grande parte, pelo próprio antipe-
das eleições, o senhor disse que tismo. Mas ela não se define pelo tivamente espontâneo, enraizado
“venceu uma nova direita”. O antipetismo no sentido em que na população e expressando-se em
que caracteriza essa nova direi- os intelectuais petistas mais obe- plataformas digitais.
ta e em que aspectos ela se dife- dientes e rasteiros o entendem, ou Em outros aspectos, há diferen-
rencia do que o senhor chama seja, como reação das elites frente ças importantes que se pontuar.
de a direita fisiológica? aos avanços democráticos dos go- Trump é um entertainer que se
Idelber Avelar – A direita que vernos do PT. Essa tem sido uma colocou em condições de vencer
venceu as eleições é bem mais ide- mistificação com a qual o petismo as primárias Republicanas e as
ológica que a direita fisiológica explica diversos fenômenos do eleições gerais exatamente porque
dos Jucás e Eunícios. Essa antiga campo político dos últimos anos mesmo os meios de comunicação
direita era uma espécie de fiadora de forma unilateral. que não lhe eram simpáticos lhe
do pacto peemedebista e atuava Essa reação, assim como o próprio deram bastante tempo de tela, por
dentro do governo indistintamen- racismo, a misoginia e a homofobia, puro interesse comercial. Bolso-
te, sob tucanos e petistas. A nova encontram morada nessa nova di- naro não é um comunicador: fala
direita é outra coisa, já emerge reita, mas somente quando ela já se mal e não usa a forma comício
como antipetista e, ao contrário da legitimou pelo antipetismo. Os mo- como Trump. Mas creio que po-
outra, não é uma coalizão de ca- tivadores reais que os acompanham dem ser comparados, sim, como
ciques oligárquicos locais. É uma são o sentimento antissistêmico, o duas expressões da articulação da
direita enraizada na população, punitivismo e o afã anticorrupção. nova direita via redes sociais.

16 DE OUTUBRO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

IHU On-Line – Como o senhor IHU On-Line – Quais são os independência ante o petismo — já
analisa o novo quadro que irá desafios políticos da esquerda, que Haddad só se elege, por defini-
compor o Congresso? da velha direita e da nova direi- ção, se transcender o petismo — e de
ta daqui para frente? muita, intensa e pesada oposição de
Idelber Avelar – A Câmara ficou
uma direita bolsonarista que não vai
curiosa. Desapareceram as super- Idelber Avelar – É curioso que
desaparecer da noite para o dia. É
bancadas de 90 a 100 deputados você diferencie nova e velha direita,
um cenário de bastante instabilida-
que PT, PSDB e MDB chegaram a mas não uma nova e velha esquerda.
de, mas ainda é mais previsível que
ter em algum momento. A atual le- Você tem razão: toda a esquerda tem
o cenário de um governo Bolsona-
gislatura tem 11 partidos médios (de sido velha, quem se renovou foi a di-
ro, que ninguém realmente pode ter
25 a 60 deputados), 19 partidos pe- reita. A velha direita vai sobreviver
certeza do que será.
quenos (de 1 a 25 deputados) e ne- numa boa, esparramada por rincões
nhum partido grande. É uma gosma regionais e vivendo do sistema polí- Ao mesmo tempo em que seria ra-
de fisiologismo que vai tornar im- tico, como sempre; talvez não man- zoável esperar que a tendência nor-
possível a vida de quem quer que tenha seu papel reitor no parlamen- mal a que o eleito se mova na direção
seja o Presidente. Com uma pulve- to, mas está longe de ter morrido. O do centro se imponha em algum mo-
rização assim, evidentemente, sobe desafio político da nova direita, caso mento, ainda assim seria um perío-
o valor da propina. vença as eleições, vai ser governar o do de intensos ataques aos direitos
A bancada ruralista teve algumas país sem lançá-lo completamente ao humanos, às garantias jurídicas e a
perdas, mas a bancada da bala se caos. O desafio da esquerda continua setores mais vulneráveis da socieda-
multiplicou com a eleição de milita- sendo o de sempre: superar o petis- de. Considerando que Bolsonaro, ao
res e delegados. Desapareceu o papel mo, fazer a autocrítica da narrativa contrário de Trump, não tem talento
magisterial do MDB, mas permane- do golpe, reativar alguma possibi- político de líder, e considerando que
ce por se ver se o arranjo descrito lidade de estar nas ruas, conversar o Brasil tem instituições democráti-
por Marcos Nobre com o nome de com a população de forma menos cas bem mais jovens e frágeis que as
peemedebismo desapareceu mes- arrogante e entender os anseios de que atualmente mantêm o sistema
mo. No peemedebismo, o sistema uma faixa mais ampla do Brasil do político dos EUA funcionando ape-
funciona com a produção de super- que a sua tradicional base sindical e sar de Trump, o cenário é bem assus- 11
maiorias legislativas através de um acadêmica. tador e terrorífico. Creio que se trata
jogo de chantagens e vetos a portas de uma eleição entre o certamente
fechadas, que esconde os antagonis- ruim e o possivelmente catastrófico.
IHU On-Line – O que se pode
mos políticos, levando-os para salas
esperar de um próximo gover-
fechadas. É possível que os princi-
no Haddad ou Bolsonaro? IHU On-Line – Deseja acres-
pais antagonismos do sistema políti-
centar algo?
co brasileiro já estejam exacerbados Idelber Avelar – De Haddad,
demais a ponto de implodir o arran- caso aconteça o que parece imprová- Idelber Avelar – Uma saudação
jo peemedebista. É o que há que se vel, pode-se esperar um governo de a todos os anarquistas e trotskistas
ver na próxima legislatura. responsabilidade fiscal, de relativa que se posicionaram.■

Leia mais
- O cálculo caudilhesco e a falta de projetos para o país. Entrevista especial com Idelber
Avelar, publicada nas Notícias do Dia de 08-08-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU, disponível em http://bit.ly/2QScvws.
- Eleição de Trump expressa o ressentimento racializado e de classe nos EUA. Entrevista
especial com Idelber Avelar, publicada nas Notícias do Dia de 10-11-2016, no sítio do Insti-
tuto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2ExViY2.
- A crise política e o balanço da devastação. Entrevista especial com Idelber Avelar, pu-
blicada nas Notícias do Dia de 08-04-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2CkxgwG.
- Eleições 2018. A radicalização da polarização política no Brasil. Algumas análises. En-
trevistas especiais, publicadas publicada nas Notícias do Dia de 08-10-2018, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2Ck02gQ.

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

A missão jesuítica: as complexas


relações que vão além da
expansão do cristianismo
Carlos D. Paz | Tradução: Henrique Denis Lucas

“ A
s missões certamente foram um ponto de encontro
mútuo entre práticas e saberes próprios dos nativos
e dos evangelizadores. Tratou-se de um processo so-
cial, em constante retroalimentação - embora nem sempre
de maneira notável à primeira vista -, onde as populações
nativas tiveram um papel protagonista na forma como os
jesuítas elaboraram conhecimentos sobre eles. Foram os
próprios nativos que, por meio de expressões de uma polí-
tica que reagia à invasão evangelizadora, condicionaram a
forma em que a Companhia de Jesus escreveu sobre eles”,
escreve Carlos Paz. E acrescenta: “para os próprios jesuítas,
as missões eram muito mais do que uma simples expansão
do cristianismo. As missões supunham um desafio por si
12 só e para aqueles que, com o passar dos anos, exerciam seu
ministério cheios de dúvidas, retomando dessa forma aque-
le ‘segundo momento’ em que suas escolhas os devolviam à
profundidade da confirmação de suas vocações jesuítas, as
missões foram uma experiência que marcou significativa-
mente suas vidas”.
Carlos D. Paz é argentino, doutor em História pela Uni-
versidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Ai-
res, na Argentina. Realizou pós-doutorado em Sociologia,
no Brasil, pesquisando os modos guaranis de administra-
ção da alteridade. Atualmente, pesquisa as transformações
cosmopolíticas dos grupos chaquenhos e a construção e cir-
culação de uma ideia de barbárie realizada pela Companhia
de Jesus. Ainda está desenvolvendo uma investigação, com
Eliane Fleck, da Unisinos, sobre a censura de obras jesuítas.
Eis o artigo.

Definir uma missão jesuíta é uma tarefa simples em comparação com o grande esforço des-
pendido para esclarecê-la. Para podermos refletir sobre as missões, devemos primeiramente
considerar as mesmas como: A) um sistema de organização social de uma complexidade dife-
rente daquela existente entre os nativos americanos antes da chegada da Companhia de Jesus à
América; B) como uma forma de governo das vontades, que impunha certa hierarquização que
alterava as posições sociais no mundo indígena – as mesmas que eram definidas sociologica-
mente pela dinâmica social; C) um complexo emaranhado econômico implantado pela Ordem
Inaciana na América e no resto do mundo. Era um projeto de transformação das bases sociais,
políticas, ideológicas e simbólicas, que com diversos graus de sucesso, tentou-se aplicar em di-
ferentes partes do globo.
O correto, na América, é falar em reduções. Isto é, o que conhecemos como missões é o resul-
tado da política de concentração de grupos populacionais que possuíam padrões de mobilidade

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“Definir uma missão jesuíta é uma tarefa


simples em comparação com o grande
esforço despendido para esclarecê-la”

sazonal de complexidade variável, chegando a quase alcançar o status de uma autarquia econô-
mica. Uma mobilidade sobre um território extenso que definia espacialidades, entendendo-as
como formas sociais de relacionamento e aproveitamento do território e dos bens que o próprio
território era capaz de prover para suprir as necessidades daqueles que o transitavam.
A Companhia de Jesus tentava reduzir os grupos, no sentido de aglutinar a população, em um
território que já poderia ser delimitado e representado posteriormente por meio de uma razão
gráfica que proporcionaria sustento a uma cartografia encarregada de disponibilizar informa-
ções necessárias para o controle dos territórios, os espaços e as populações. Junto a isso, bus-
cava-se inserir naquele conjunto de indivíduos um personagem central, que fosse oficializado
como cacique, e que ordenasse e controlasse a vontade daqueles ali reduzidos, e que também
atuasse como subordinado – ou pelo menos era isso o que se pretendia originalmente.
Deste modo, as reduções supõem uma transformação radical nos modos nativos de existên-
cia. Estabelecer-se em um lugar, com fronteiras parcialmente definidas e que constantemen- 13
te tinha tentativas de tomada de controle por distintos meios, afetou os ciclos de mobilidade
sazonal – que permitiam satisfazer as necessidades econômicas, sociais, políticas e simbólicas
da população – e, com isso, os nativos começaram a experimentar de maneira lenta, gradual e
progressiva algumas mudanças em suas formas de relação e organização, tanto social quanto
política. Junto a isso, o que houve foi que essa mesma concentração de população necessitava
de um personagem que funcionasse como um comissário das vontades de todos que residissem
“dentro” das reduções, para os propósitos administrativos exigidos pela Companhia de Jesus e
pela administração espanhola e portuguesa. Antes das reduções, diferentes povos indígenas per-
mitiam que alguns sujeitos, conhecidos como cabeças, conduzissem, temporariamente, algumas
ações políticas. A transformação radical que tinha de ser imposta, ou que ao menos tentou-se
levar adiante, é que a pessoa escolhida como cacique cumprisse esta função em tempo integral,
ou seja, mesmo quando não houvesse nenhum evento específico que reivindicasse a centraliza-
ção do processo de tomada de decisão. Indubitavelmente, essa foi uma mudança significativa na
vida dos nativos que gerou muitas discrepâncias entre aqueles que, antes das reduções, possuí-
am cotas de prestígio, mas que não concordaram com o cargo de caciques e foram colocados em
uma posição subordinada.
Cada redução era autônoma, possuía sua própria organização social e econômica, e todas ti-
nham como objetivo abrigar indivíduos que se reconhecessem como participantes de um mes-
mo grupo étnico – uma nação, na forma em que se referiam a uma população parcialmente
homogênea, naqueles tempos. Então, as reduções se articulavam entre si por meio de uma rede
de estradas que tentavam fixar um novo traçado sobre o território. As missões ajudavam-se
mutuamente para lidar com as adversidades econômicas ou para conter ocasionais inimigos.
Esta função de cordão fronteiriço, articulado entre si por meio da circulação de distintos bens, é
o que, sem dúvida, pode definir as missões como um espaço de transformação social ao mesmo
tempo que demonstra uma clara funcionalidade política.

Missão, além da religião, envolve questões políticas e culturais


As missões jesuíticas são associadas, certamente de maneira quase mecânica e reducionista, à
atividade evangélica desenvolvida por “corajosos” missionários entre os distintos grupos nativos
do continente. Essa ideia forte, para além dos avanços que a historiografia especializada pode

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

oferecer em termos de desvendar a lógica interna dos diferentes grupos que aceitaram a insta-
lação das reduções em seus territórios, baseia-se, estimo, na eficácia simbólica que possuem
os filmes A missão1, Hábito Negro2, assim como, recentemente e em menor medida, Silêncio3,
outro filme cult. O que o público observa nesses filmes é a postura evangélica encarnada por um
sacerdote que realiza ações que colocam sua própria integridade em risco por conta da salvação
da comunidade que tenta aproximar-se do rebanho cristão4.
Sem dúvida, a postura missionária tinha como finalidade promover a cristianização das popu-
lações com as quais se tinha contato – ainda que, na verdade, para fazer uma avaliação justa,
temos de fazer referência à ideia de ocidentalização –, mas o religioso não foi o único aspecto
pelo qual as missões se destacaram na América, assim como no resto do ecúmeno. As missões
certamente foram um ponto de encontro mútuo entre práticas e saberes próprios dos nativos e
dos evangelizadores. Tratou-se de um processo social, em constante retroalimentação – embora
nem sempre de maneira notável à primeira vista –, onde as populações nativas tiveram um pa-
pel protagonista na forma como os jesuítas elaboraram conhecimentos sobre eles. Foram os pró-
prios nativos que, por meio de expressões de uma política que reagia à invasão evangelizadora,
condicionaram a forma em que a Companhia de Jesus escreveu sobre eles. É bem verdade que
a Ordem tinha regras claras para a confecção desse texto que mostrava5 – e também encobria
– a realidade nativa. Mas foram os próprios indígenas que habilmente permitiam aos padres o
acesso ao conhecimento que lhes interessava ser divulgado, manipulavam medos e/ou as expec-
tativas dos inacianos ou, então, geravam divergências entre estes e as autoridades coloniais, a
fim de obter maiores rendimentos ao negociar aspectos de seu interesse.
É por isso que a política e a cultura nativa sobrevivem nos diversos escritos que foram rea-
lizados por inúmeros membros da Companhia de Jesus e, como um aspecto necessário a ser
ponderado, não apenas naqueles que dão conta “exclusivamente” de algum grupo étnico em
particular. É impossível não reconhecer que as etnografias culturais, redigidas durante a expe-
riência reducional ou naquelas já formuladas em Exílio, estejam repletas de uma quantidade
14 incomensurável de dados: fórmulas de expressão sobre o mundo natural – um mundo em que os
nativos deveriam ser realocados, na tentativa de fugir de questões próprias da correção política
daquele momento; conceitos e preconceitos sobre a realidade americana; debates intelectuais
e até difamações, manifestadas pelos próprios sacerdotes do passado, sobre formas filosóficas
típicas dos ameríndios.
Todas as declarações contidas nesses escritos precisam ser lidas novamente e não apenas com
o auxílio de expressões teóricas, por exemplo, do célebre Michel de Certeau6, mas também é

1 A missão (1986), dirigido por Roland Joffé. Duração: 125 minutos. Vencedor do Oscar de melhor filme. O filme aborda os problemas gerados pelo Tra-
tado de Limites de 1750 e como foi que a política europeia se manifestou entre os Guaranis no momento em que estes foram forçados a abandonar os
territórios onde haviam erguido as reduções. O interesse por A missão como testemunho das missões jesuítas não é novidade, assim como tampouco é
novidade discutir a eficácia simbólica deste filme. Uma primeira aproximação pode ser encontrada em James S. Saeger (1995) “The Mission and Historical
Missions: Film and the writing of history” The Americas; Vol. 51; N. 3; pp. 393-415. Embora o objetivo de Saeger seja o de concentrar-se na descrição de
alguns tópicos que não concordam com a história missionária Guarani, a importância do texto está no ponderamento da capacidade referencial deste
filme. (Nota do autor)
2 Hábito Negro (1991), dirigido por Bruce Beresford. Duração: 101 minutos. Narra as ações de um padre jesuíta entre grupos indígenas no Canadá. Um
filme com talvez menos promoção do que A missão e Silêncio, mas também muito sugestivo para refletir sobre os estereótipos que são construídos
sobre a ação missionária jesuíta. (Nota do autor)
3 Silêncio (2017), dirigido por Martin Scorsese. Duração: 2 horas e 42 minutos. Indicado a vários prêmios, Silêncio narra o “resgate” de um sacerdote, o
Padre Ferreira, S. J., que parou de dar notícias sobre o Japão, perturbado por uma guerra de unificação, onde os cristãos eram perseguidos e martirizados.
Lá, no centro da cena, replicando alguns tópicos próprios da escrita inaciana, estão localizados dois jovens missionários. Garpe, S. J., e Rodrigues, S. J.,
são aqueles que se lançam na busca por Ferreira, seu mestre, que é suspeito de ter apostatado. Um dado relevante é que este filme possui uma versão
japonesa anterior, de 1971, baseada no mesmo livro, que difere nas imagens que transmite ao espectador e em como constrói sentidos. Sem dúvida, um
aspecto que não é menor e sobre o qual temos alguns pontos de precisão. O “silêncio” de Deus diante da voz dos historiadores. Possibilidades heurísticas
em torno da História Pública. Congresso Internacional de Estudos Históricos Latino-Americanos - II CI-EHILA. Historiografias: Temas, desafios e perspecti-
vas. 13, 14 e 15 de setembro de 2017. UNISINOS. São Leopoldo. 15 de setembro de 2017: em colaboração com Artur Barcelos (FURG). (Nota do autor)
4 Há outro filme recente que retrata outros aspectos da vida dos jesuítas, neste caso, na China. Trata-se de Le Portrait Interdit (2017). Dirigido por Charles
de Meaux. Duração: 1 hora e 43 minutos. Um filme que explora a vida de Jean-Denis Attiret como pintor na Corte do Imperador Quinlong, em meados
do século XVIII, e explora o seu encontro com uma jovem imperatriz no âmbito da relação entre duas pessoas de mundos culturais muito diferentes,
com posições sociais totalmente distintas e que estão ligadas por meio de gestos e olhares silenciosos. Além da história narrada, o que é interessante
aqui é como o filme se apresenta, quase da mesma forma que em Silêncio, com disputas pelo controle e o uso que é feito das imagens, o que reflete o
contraste entre duas epistemologias. Esse é um aspecto sobre o qual é necessário retornar mais de uma vez para tentar desvendar o fascínio que essas
produções cinematográficas produzem. (Nota do autor)
5 Martin Morales, S. J., é quem propõe que a escrita jesuíta, por seu caráter inerente, é “uma escritura para mostrar e encobrir”, dados os procedimentos
que a própria prática da escrita ordena a partir da seleção das informações que são transmitidas, assim como nas formas em que elas são transmitidas
por meio de um sistema de cartas que prioriza níveis de informação em função do leitor que as receberá. A este respeito, consultar Morales, Martín, S.J.
(Ed.) (2005) A mis manos han llegado. Cartas de los Padres Generales a la antigua Provincia del Paraguay. (1608-1639). Vol I, Madrid-Roma: Universidade
Pontifícia Comillas; Institutum Historicum Societatis Iesus. (Nota do autor)
6 Michel de Certeau (1925-1986): foi um historiador, jesuíta e erudito francês que se dedicou ao estudo da psicanálise, filosofia, e ciências sociais.
Intelectual jesuíta é autor de inúmeras obras fundamentais sobre a religião, a história e o misticismo dos séculos XVI e XVII. O IHU publica regularmente
textos sobre Certau. Entre eles, Michel De Certeau, o pensador jesuíta citado pelo papa no seu discurso sobre a liberdade religiosa, publicada nas Notícias
do Dia de 28-9-2015, disponível em http://bit.ly/2elkzm7; Há 30 anos, a morte do jesuíta francês Michel De Certeau, “excitateur de la pensée”, publicado
nas Notícias do Dia de 11-1-2016, disponível em http://bit.ly/2eciMRY; e De Certeau, um “sujeito de inquietação verdadeira”, publicado nas Notícias do
Dia de 12-1-2016, disponível em http://bit.ly/2e0GBjw. (Nota da IHU On-Line)

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preciso concentrar-se em um verdadeiro exercício de historie régressive7, sobre as proposições


que os indígenas colocaram diante dos olhos de seus evangelizadores. Isto se deve ao fato de que
cada um deles – missionários e indígenas – avaliava constantemente as ações de seus outros
com o claro interesse de obter a maior quantidade de benefícios quanto fossem possíveis, em
função do que lhes interessava. Nesse processo de interação entre as perspectivas, não devemos
esquecer a historicidade da cultura e a forma em que os indígenas modificavam os seus próprios
traços culturais, que precisavam ser reorganizados para assim poder exercer uma accomodatio
ainda maior do que aquele que alguns estudos sugerem ser possuída pelos jesuítas como fórmu-
la para alcançar o sucesso em seus empreendimentos reducionistas.
A vivacidade do pensamento político ameríndio, possível de ser abordada a partir da mitologia,
da arte verbal, do grafismo, de suas noções cosmológicas, das formas parentais e dos ciclos de
vingança, bem como pelos diferentes rituais que retratavam sua sociabilidade e socialização, são
ângulos dos quais o sujeito se reposiciona frente a sua própria história. Os nativos confrontavam
ativamente as tentativas de aculturação promovidas pelos sacerdotes, que eram auxiliados, em
alguns casos, por outros dispositivos de poder coloniais, tentando conter os ânimos indígenas.
A Companhia de Jesus, por outro lado, como instituição, empenhava-se em fornecer respostas
para as tribulações que seus membros experimentavam entre os indígenas. Para este auxílio,
compunham-se escritos que tentavam inspirar os sacerdotes acerca de alguns pontos-chave,
para que, a partir da espiritualidade inaciana, fossem alcançados bons governos por parte da-
queles que atuavam de forma missionária. Junto a isso, e com o objetivo de alargar a base so-
cial necessária para a ampliação do alcance da empresa reducional, buscou-se incentivar, por
meio da escrita etnológica, novas vontades missionárias em Colégios e institutos de formação
europeus. Vontades que eram traduzidas em novos jesuítas chegando ao continente. Portanto,
mantendo a lógica de ler aquela forma de “escrever para mostrar”, formas ultrapassadas, em seu
ritmo, em como conceber os indígenas e suas ações.
Para os próprios jesuítas, as missões eram muito mais do que uma simples expansão do cris- 15
tianismo. As missões supunham um desafio por si só, e para aqueles que, com o passar dos anos,
exerciam seu ministério cheios de dúvidas, retomando dessa forma aquele “segundo momento”
em que suas escolhas os devolviam à profundidade da confirmação de suas vocações jesuítas,
as missões foram uma experiência que marcou significativamente suas vidas. Em descrições
variadas, especialmente naquelas redigidas após a Expulsão, encontramos traços de nostalgia
pelo tempo compartilhado na América, bem como momentos de desentendimento que nos dão
indícios sutis sobre o que aconteceu durante a experiência reducional e como essas experiências
eram reformuladas posteriormente pela escrita que deveria ser enviada aos Superiores.
Tudo isso é o que permite a releitura desse corpo documental impresso. No entanto, as mis-
sões, os indígenas e os missionários vão muito além dos espaços que a escrita publicada permite
conhecer. Pesquisas recentes estão mostrando que é extremamente importante prestar atenção
às obras que não foram publicadas ou que não foram traduzidas do latim para as línguas româ-
nicas. Essas leituras, sem dúvida, trarão uma maior complexidade à problemática das missões
jesuíticas e, inclusive, nos permitirão explorar com novo ânimo os aspectos que – da mesma
forma que o binômio espiritualidade-imagem – esperam por perguntas que façam voltar a flo-
rescer aqueles mundos que tanto chamaram a atenção de alguns círculos intelectuais europeus,
e, a partir desta afirmação, o que se impõe é a necessidade de nos perguntarmos como a História
das Missões Jesuíticas foi lida pelo mundo não europeu.

Estudos sobre Missões Jesuíticas


As Jornadas Internacionais sobre as Missões Jesuíticas8 é um evento acadêmico, já de longa

7 A ideia da história regressiva pertence a Marc Bloch e aparece em sua Les caractères originaux de l’histoire rurale française, Paris, 1931. Este célebre
historiador faz referência a um método de estudo do passado que consiste em abordar um objeto de estudo usando um princípio de comparação,
começando do mais recente ao mais antigo, concebendo a ideia de que a situação tardia – a mais atual e perto de nós – conserva traços possíveis de
serem interpretados como ações de dinâmicas passadas. Prestando a máxima atenção para não criar anacronismos e menos ainda sucumbindo a um
criacionismo de realidades que não aconteceram. Portanto, para alcançar resultados significativos de pesquisa utilizando deste método, é necessário ter
um vasto conhecimento da realidade que está sendo abordada. (Nota do autor)
8 Missões Jesuíticas ou Reduções Jesuíticas: simplificação da expressão Território dos Sete Povos das Missões, que designa a região situada a noro-
este do atual estado do Rio Grande do Sul, na atual fronteira entre o Brasil e a Argentina, a leste do vale do Rio Uruguai. As missões jesuíticas tiveram
grande importância histórica para todo o Brasil. O Tratado de Madrid estabeleceu limites entre territórios espanhóis e portugueses, e os Sete Povos
das Missões passaram a pertencer à Espanha, o que obrigaria os índios a mudarem-se para a outra banda do rio Uruguai. Esse foi um dos motivos que
determinaram a Guerra Guaranítica, uma guerra que colocou os jesuítas, aliados aos índios Guaranis, contra os exércitos dos países ibéricos, marco da
derrocada das povoações missioneiras. No Seminário Internacional A Globalização e os Jesuítas: origens, história e impactos, realizado em setembro de
2006 na Unisinos, os sete povos foram tema de inúmeros minicursos e oficinas. Mais informações sobre as missões jesuíticas podem ser obtidas nas

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TEMA DE CAPA

data na América do Sul, e com uma ampla projeção internacional. Um espaço pioneiro de dis-
cussão em seu gênero, criado por Arno Alvarez Kern9, Bartomeu Melià10, Ernesto J. A. Maeder11
(†) e Erneldo Schallenberger12. Concebido como um momento para a discussão sobre os aspectos
mais relevantes da evangelização levada adiante com as populações guaranis, teve sua primeira
edição em 1984 em Resistência (província de Chaco, na Argentina) e desde então vem se de-
senvolvendo bianualmente, de forma rotativa entre Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia e Chile.
Nas reuniões de trabalho, várias Universidades desses países receberam um grande número de
pesquisadores que, com o passar do tempo, formaram sólidos grupos de trabalho. A agenda de traba-
lho das primeiras edições contemplava, de maneira ampla, o que se conhece na historiografia como o
guarani-missioneiro. Uma aliança entre eles gerou a sociedade indígena e foi considerada como um
modelo por toda uma historiografia que orientou, em grande parte, pesquisas em outras áreas, em-
bora sempre vinculada ao Guarani ou tomando-os como objeto de investigação que trazia resultados
com as quais diferentes modelos de análise poderiam ser confrontados. Apenas alguns dos tópicos
abordados nesses encontros: as discussões sobre o caráter da pintura missioneira; a arquitetura e o
que refletem as construções que ainda sobrevivem; padrões demográficos; a evolução dos cacicados;
a Guerra Guaranítica; a administração de estabelecimentos jesuítas, como estâncias, Colégios e o
papel dos escravos; as missões de Chaco, dos Pampas e de Chiquitos; a escrita etnológica da Compa-
nhia de Jesus e a redação das Histórias Gerais; a música e imprensa nas missões; o papel do conheci-
mento médico-botânico como campo de disputa entre nativos e sacerdotes; a questão ritual indígena
e como ela se adaptou, transformou e sobreviveu através dos Cabildos indígenas; o papel das milícias
guaranis; questões de etnobotânica e a escrita desenvolvida pelos indígenas reduzidos e a leitura que
eles também faziam sobre a documentação escrita sobre eles mesmos, em meados do século XVIII.
Sem dúvida, esse é um corpus de conhecimento mais do que relevante.
Longe de o guarani esgotar sua capacidade de gerar pesquisas inéditas – e cabe ser mencio-
nado aqui que o evento é uma oportunidade única para discutir avanços da pesquisa em um
clima de camaradagem por demais afável e, certamente, despojado de certas formalidades aca-
16 dêmicas, dando lugar à convivência de aclamados pesquisadores com aqueles que acabaram de
iniciar sua jornada –, o desenvolvimento dos inúmeros debates que iam surgindo e o crescente
interesse pelas Jornadas atraíram pesquisadores que auscultam o passado de outras porções do
mundo, o que gerou lentamente um interesse notável pela natureza global do projeto jesuíta –
interesse auxiliado, obviamente, pela ativação das redes pessoais que explicam a orientação que
a conferência tomou. É assim que chegamos ao leitmotiv que orienta a presente edição.

Embaixada política e mediação cultural em um cenário mundial


Esta nova edição das Jornadas continua com a discussão de um problema que vem sendo de-
senvolvido desde, pelo menos, a edição de 2006, realizada na PUCRS e que, posteriormente, em

edições da IHU On-Line 156, de 19 de setembro de 2005, intitulada Essa terra tem dono, nós a recebemos de Deus e de São Miguel, e 186, de 26 de junho
de 2006, Jesuítas. Quem são? Confira no site do IHU: em 17-9-2006, a entrevista A música nos sete povos das missões, com Décio Andriotti; em 3-8-2006,
os historiadores Beatriz Franzen e Alcy Cheuiche concederam os seguintes depoimentos, respectivamente, Em absoluto posso aceitar a tese de que uma
teocracia estava se formando nas missões jesuíticas e Jornal Nacional das Missões Guaranis: entre tapas e beijos. Outras entrevistas importantes foram
concedidas pelo irmão Antonio Cechin em 23-2-2007, sob o título A utopia da terra sem males, e por Edison Hüttner, O retorno do repicar do Sino de São
Miguel, em 22-4-2006. (Nota da IHU On-Line)
9 Arno Alvarez Kern (1940): gaúcho licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, com mestrado em História na
PUC-RS e doutorado em Arqueologia na École de Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Professor aposentado da UFRGS, atualmente é professor
do Programa de Pós-graduação em História da PUCRS. Especialista internacionalmente reconhecido em história das missões jesuíticas na região oeste
do Rio Grande do Sul, é também autor de Utopias e Missões Jesuíticas (Editora da UFRGS, 1994) e Antecedentes Indígenas (Editora da UFRGS, 1994).
Leia também a entrevista Entre povos e paisagens: a diversidade da missão nas Américas, publicada nas Notícias do Dia, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos - IHU, disponível em http://bit.ly/1sr3EO4. (Nota da IHU On-Line)
10 Bartomeu Melià: jesuíta espanhol Bartolomeu Melià, pesquisador do Centro de Estudos Paraguaios Antonio Guasch e do Instituto de Estudos
Humanísticos e Filosóficos. Sempre se dedicou ao estudo da língua guarani e à cultura paraguaia. Doutor em ciências religiosas pela Universidade
de Estrasburgo, acompanhou e conviveu com os indígenas Guarani, Kaigangue e Enawené-nawé, no Paraguai e no Brasil. É membro da Comissão
Nacional de Bilinguismo, da Academia Paraguaia da Língua Espanhola e da Academia Paraguaia de História. Entre suas publicações, citamos El don,
la venganza y otras formas de economia (Assunção: Cepag, 2004). Confira a entrevista As missões jesuíticas nos sete povos das missões, concedida por
Melià à edição 196 da Revista IHU On-Line, de 18-9-2006, disponível em http://migre.me/vMqU. Na noite de 26-10-2010 Meliá profere a conferência A
cosmologia indígena e a religião cristã: encontros e desencontros de universos simbólicos, dentro da programação do XII Simpósio Internacional IHU – A
Experiência Missioneira: território, cultura e identidade. Confira a programação completa do evento em http://migre.me/vMs5. Confira, na edição 331,
uma entrevista com Meliá, intitulada “A história de um guarani é a história de suas palavras”, disponível em http://migre.me/MqPH. Confira, ainda, o
Perfil de Melià, publicado em http://migre.me/2pf5p. (Nota da IHU On-Line)
11 Ernesto Maeder: historiador argentino, falecido em 2015. Foi membro do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas – Conicet, da
Argentina, e da Academia Nacional da História. É designado acadêmico correspondente na Província do Chaco pela Academia Nacional de Educação,
membro titular da Junta de Estudos Históricos do Chaco, presidente do Comitê Argentino de Ciências Históricas (2002-2005), e integrante da Comissão
Assessora em Ciência e Tecnologia da Secretaria Geral de Ciência e Técnica da Universidade Nacional do Nordeste - UNNE. Concentrou sua atenção nas
missões jesuíticas do período colonial, particularmente as da costa do Paraná e do Grande Chaco (Nota da IHU On-Line)
12 Erneldo Schallenberger: doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com pós-doutorado em História, Cultura e
Poder pela Universidade Federal do Paraná. Atualmente é professor sênior da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, da qual foi Reitor. É docente e
orienta nos programas de pós-graduação em Ciências Sociais e Desenvolvimento Regional e Agronegócio. Suas pesquisas versam sobre missões jesuí-
tico-guaranis; migrações, fronteiras e identidades, cooperativismo e desenvolvimento regional. (Nota da IHU On-Line)

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2008, em Buenos Aires, tornou-se mais intensa. A natureza global do projeto jesuíta é inegável
e evidentemente é um ponto que necessita ser discutido em profundidade e por vários ângulos.
Este ano o lema que organiza as discussões é A ação global da Companhia de Jesus: embai-
xada política e mediação cultural em um cenário mundial. O que pretendemos discutir não é
mais apenas como essa ação global foi construída – como os sacerdotes e toda a estrutura da
Companhia de Jesus se lançou sobre o mundo. O interesse desta edição das Jornadas está foca-
do em uma questão que, embora pareça muito específica, na verdade, como o resto dos estudos
missionários em si, é uma desculpa metodológica para melhor desvendar as atitudes dos agentes
– considerando aqui os sacerdotes e os nativos – cumprindo um papel de intermediários entre
sociedades distintas que se relacionavam entre si por meio de embaixadores que carregavam
consigo suas formas culturais como referência sobre o sim , assim como a categorização daque-
les considerados como outros.
Um exemplo claro desta questão global e o papel dos embaixadores culturais são encontrados
nos Pampas, em meados do século XVIII. José Cardiel13, S. J., em sua Carta Relação, assinada
em Buenos Aires em 20 de dezembro de 1747 e dirigida a seu “amado mestre”, Pedro Antonio
de Calatayud14 – que então encontrava-se em Valladolid –, fez um relato dos pormenores que
ocorriam nas latitudes nas quais realizava seu trabalho apostólico. No entanto, e além da riqueza
da descrição de caráter etnológico feita por ele, o notável é como ele fornece chaves para que, a
partir da Espanha e da própria Companhia de Jesus, as lógicas nativas fossem compreendidas,
assim como sobre de que maneira a postura política dos hispano-crioulos influenciavam as po-
líticas que estavam sendo desenvolvidas. Cardiel, então, é o embaixador que torna possível des-
vendar o funcionamento das redes políticas aqui na América e, é claro, quem tem o ofício como
mediador dos interesses da Companhia de Jesus em solo americano. Este papel de Cardiel ainda
não está suficientemente explorado, assim como nem mesmo em seus outros companheiros.
Dentro deste conjunto de ações, de ilustres missionários como Cardiel, devemos então situar
a prática do ofício como embaixador político e mediador cultural com a clara intenção de infor- 17
mar sobre um personagem como Calatayud, que se destacou por seu trabalho de produção de
textos doutrinários orientados a, por exemplo, acompanhar a “prática da vida doce e racional do
cristão” [1782], assim como um “modo fácil e prático de fazer uma confissão” [1762]. A pergunta
que devemos fazer, e que em mais de uma ocasião deve estar presente nos diferentes Simpósios
e Mesas-Redondas que compõem esta edição das Jornadas, é o quanto dessa escrita jesuítica
produzida na América, ou em qualquer uma das posses ultramarinas da Europa, encontra-se
em tratados e escritos doutrinais? Até que ponto a espiritualidade inaciana tomou nota das for-
mas locais de espiritualidade e fez uma reacomodação da maneira pela qual deveria abordá-las?
Como a informação provida dos confins do ecúmeno se transformou, pela própria ação da es-
crita jesuíta, em imagens consolidadas que compunham e nutriam a formação daqueles que
mais tarde solicitariam sua passagem para a América, por exemplo? Como um pequeno exemplo
sobre a força inercial dessas imagens e sua ampla aceitação na Europa, podemos constatar que
as imagens criadas pela escrita da Companhia de Jesus possuíam tal vigor que o próprio Júlio
Verne15, em sua obra Os Filhos do Capitão Grant, no volume dedicado à América, reproduz de
maneira quase textual o que um dos membros da Ordem iria esboçar sobre os Pampas e seus
habitantes. Aspectos que, ainda hoje, certamente de maneira bastante ingênua, discutem uma
historiografia preocupada com os indígenas que aceitaram se reduzir nos Pampas, em meados
do século XVIII.
Creio que pensar sobre como essa intertextualidade é composta e, obviamente, tentar susten-
tar nossas proposições com exemplos claros da vida reducional, pode ajudar-nos a percorrer
novos rumos de pesquisa, mas sem perder de vista a realidade americana e como as reduções
da Província Jesuítica do Paraguai – missões que excedem o que é meramente guarani – são
na verdade uma lente vigorosa de observação que nos permite questionar outras experiências
missionárias, inclusive aquelas missões realizadas por outras ordens e em outras regiões do im-

13 José Cardiel (1704-1782): jesuíta espanhol, naturalista, geógrafo e cartógrafo, a quem se devem as relações entre flora, fauna e etnografia no Rio da
Prata, na Argentina, bem como a mapas precisos de diversas partes do Paraguai. (Nota da IHU On-Line)
14 Pedro de Calatayud (1689-1773): foi um pregador e escritor jesuíta espanhol. Ele completou seus estudos em Pamplona e as universidades de Alcalá
e Salamanca. Ele ensinou retórica e filosofia no Colégio Jesuíta de Medina del Campo e Sagrada Escritura na Universidade de Valladolid (entre 1725 e
1728). A partir de 1733 ele viajou muito da Espanha em missões, espalhando a devoção do Sagrado Coração de Jesus. Já um homem velho, ele teve que
deixar a Espanha devido à expulsão dos jesuítas em 1767. (Nota IHU On-Line)
15 Júlio Verne (1828-1905): escritor francês considerado por críticos literários como o precursor do gênero de ficção científica. Em seus livros fez pre-
dições sobre o aparecimento de novos avanços científicos, como os submarinos, máquinas voadoras e viagem à Lua. Entre suas obras mais famosas,
destacamos, Vinte mil léguas submarinas, escrito em 1870. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

pério espanhol, como foi o caso das missões erguidas pelos franciscanos para grupos Apache, no
longínquo Texas do século XVIII. Os jesuítas não foram apenas os embaixadores e mediadores
entre as populações locais e a administração imperial, mas também eram objeto de considerável
interesse para os savants (cientistas) daquela época, assim como os membros de outras ordens
que disputavam com os jesuítas a construção de, por exemplo, uma nova ordem científica que
claramente se manifestava na escrita e em diferentes publicações impressas que tinham de cum-
prir certas normas para ver a luz de um maneira que excedesse o clandestino. Um ponto que
também requer mais explorações. Como mencionamos, nem tudo o que foi escrito foi publicado
e até mesmo alguns jesuítas foram expulsos da Ordem pelo teor de seus escritos.16

Repensar caminhos
As missões jesuíticas, além de um campo de pesquisa já consolidado, são uma excelente descul-
pa metodológica para pensar o tempo presente e, acima de tudo, le temps à venir da disciplina
histórica tal e como a conhecemos. Em uma publicação recente, Serge Gruzinski17 (2018 [2015]),
quando se refere a Para que serve a História, lança uma sentença por demais correta. Ele afirma
que “os debates entre historiadores, por mais indispensáveis que sigam sendo, frequentemente
discutem mais a redefinição de territórios e antigas reservas do que atacam as rotinas acadêmi-
cas”. Nesse sentido, as Jornadas marcharam, durante os últimos anos, pelo caminho do questio-
namento de determinadas rotinas acadêmicas.
Nas últimas edições, foi proposto afastar-se um pouco da questão fundadora que animava a
conferência, mas sem deixar de lado, é claro, o problema nodal do qual pensamos a problemáti-
ca central. Já não podemos apenas discutir o Guarani ou a postura evangélica construída com e
para eles. Por isso, as Jornadas têm albergado em sua discussão outras áreas onde o experimen-
to social jesuíta foi realizado. Foram incorporados para discussão os espaços do norte do México
e da Pimería. Da mesma forma, a área do Pacífico, bem como os debates sobre a China e o Japão.
Talvez algo que ainda precise ser acrescentado com maior força seja o modo em que a Compa-
18 nhia de Jesus dialogava com um interlocutor muito difícil de evitar tanto no passado quanto no
presente. Aqui refiro-me ao Islã como força política e base filosófica que ganha visibilidade e
presença no atual mundo europeu, mobilizando debates sobre a condição das pessoas. Debates
que já tiveram expressões notáveis durante o período colonial.
Aqui, por exemplo, é onde os estudos sobre os processos sociais que ocorreram com os nativos
americanos podem nos dar pistas sobre como nos relacionarmos com um outro que, a partir de
uma percepção nitidamente ocidental, reforça todos os nossos preconceitos sobre aquele que
consideramos estranho, alheio, disruptivo de uma condição de mesmice que necessita certa-
mente ser revista de maneira urgente e, mais ainda, atual. É neste ponto quando, por mais para-
doxal que pareça, devemos então refletir novamente sobre o caso Guarani e como ele foi pensado
nas primeiras edições das Jornadas. Por que eu levanto essa questão? Porque considero que a
História – e para ser justo na afirmação devemos fazer referência aos historiadores – deve fugir
das ‘novidades’ e de certos temas à la mode. Não é uma afirmação atrasada. É o oposto. Deve-se
pensar seriamente sobre os fundamentos que deram origem a essa relação concomitante entre
jesuítas e guaranis para, a partir desse ponto, identificar como se constituiu uma historiografia
e como é que essas bases ainda sobrevivem na forma como pensamos determinadas problemá-
ticas sociais.
Acredito aqui que a problemática da “etnia” não parou de crescer em intensidade e visibilidade
em quase todos os debates políticos atuais que propõem o étnico – fazendo referência a uma
origem e condição comuns, sem se distanciar da clássica categorização de ethnos – como quase
definitivo das ações dos sujeitos. O que não está sendo discutido intensamente é o que essa et-
nicidade significa e que valor ela possui na intencionalidade da escrita, que reflete um momento
particular de uma relação social. Se revisarmos então as primeiras abordagens sobre os guaranis
temos de encontrar ainda muitas chaves para entender o futuro da disciplina, assim como dos
sujeitos que dão musculatura à História.

16 Um caso interessante é o de Bernardo Ybáñez Echavarri, um religioso que foi expulso da Companhia de Jesus em 1757, quando trabalhava na Co-
missão de Demarcação de Fronteiras, por conta do teor de seus escritos. A este respeito, consultar o trabalho minucioso de reconstrução do sucesso
realizado por Eduardo Neumann “Nem V. Ex. ignora que não tive uma caneta ociosa”: A polêmica produção escrita de um jesuíta durante o tratado de
limites - Revista de Estudos de Cultura. N. 5, 2016; págs. 35-48. Universidade Federal de Sergipe. Núcleo de Estudos da Cultura. (Nota do autor)
17 Serge Gruzinski (1949) historiador francês especializado em questões latino-americanas. Pertencente ao grupo de historiadores que pratica a chama-
da história das mentalidades. É arquivista, paleógrafo e doutor em História. Seus estudos versam sobre a imagem mestiça e o ingresso na modernidade
do México. Nos últimos anos, realiza pesquisas sobre o Brasil e o Império Português. (Nota da IHU On-Line)

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Todos, ainda a partir de uma visão extremamente presentista, onde o imediatismo parece reger
a urgência de uma tomada de posicionamento, temos noções históricas sobre nós mesmos que
não são ingênuas em si próprias. No entanto, o que ainda precisa ser incorporado em maior me-
dida ao debate acadêmico “fora dos muros” são as lógicas não ocidentais de situar-se no mundo
e diante dele. Ou seja, algumas dessas lógicas estão sendo divulgadas, como por exemplo, a pro-
posta cosmopolítica, as ontologias nativas e o perspectivismo ameríndio como posicionamento
filosófico, mas, apesar disso, ainda existem poucas pesquisas que propõem investigar o passado,
e já não mais apenas os ameríndios, partindo dessas correntes de pensamento e tomando-as
como formas internalizadas e complexas de olhar o mundo, de refletir sobre o mesmo. A circu-
lação de objetos e ideias, proclamada pela corrente da história global, não implica uma adoção
acrítica dos mesmos e muito menos sem uma clara intencionalidade histórica com vistas ao
futuro de quem adota este ou aquele objeto, inserindo-o em uma matriz cognitiva que tenta
conjurar o devir. Pensemos em como a estrutura mitológica ameríndia possuía um lugar para
incorporar alteridades radicais.
Não esqueçamos de que o discernimento é um dos pilares da formação e prática jesuíta. Prati-
quemos um pouco disso. Embora não possamos encontrar a presença dessas filosofias à primei-
ra vista, não podemos presumir que elas não estejam presentes nas ações empreendidas pelos
missionários, ainda que, é claro, habilmente disfarçadas pela internalização das Instruções18
para a escrita que regia as formas de registro dos eventos que seriam considerados notáveis e,
portanto, plausíveis de serem mostrados. Da mesma forma em que as políticas nativas consegui-
ram travestir-se, até quase tornarem-se muito difíceis de identificar claramente pelos sacerdotes
– e talvez por isso se refira quase sem mudanças notáveis a algumas práticas comunais ao longo
dos séculos XVII e XVIII – as atuais políticas de alguns grupos considerados marginais – ou
marginalizados – têm uma dinâmica semelhante.
Dentro desse processo de transformação, não devemos apenas identificar as mudanças como
uma forma de questionar as formas de organização que se pretendiam impor sobre eles, mas
talvez devêssemos estar atentos ao fato de que essas expressões estejam direcionadas para o seu 19
próprio coletivo e a estrutura de dominação seja utilizada para seu próprio benefício sob uma
forma de linguagem que só podemos identificar, mas, como alguns jesuítas de antigamente,
não dominar mais do que rudimentarmente e, portanto, intuir os riscos que isso implica. É por
isso que os estudos sobre as missões jesuíticas ainda têm muito a oferecer. Vamos pensar em
tudo o que supomos conhecer de uma cotidianidade nativa, que só conhecemos por referências
indiretas. ■

18 As instruções correspondem a João de Polanco, S. J., que foi secretário de Inácio de Loyola. Polanco foi quem escreveu as Regras acerca do Escrever
para os da Companhia (1547) lançando as bases sobre como e o que escrever, para conseguir uma melhor comunicação da administração das vontades
e das realizações alcançadas nas missões, por mais remotas que estas fossem. Instruções que possuíam uma profunda vocação de controlar a informação
que podia ser disponibilizada, cuidando para que os aspectos sensíveis não fossem conhecidos pelos detratores da Companhia de Jesus. (Nota do autor)

Leia mais
- Silêncio - Cinema e sua relação com a História Pública. O reconhecimento da plurali-
dade das formas de ação dos sujeitos. Entrevista especial com Carlos Paz, publicada nas
Notícias do Dia de 9-9-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, disponível em
http://bit.ly/2Iyno3s.

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A experiência jesuítica num


empreendimento de globalização
Alexandre Coello de La Rosa analisa a constituição da missão que
vai ligar o Novo Mundo ao Oriente num projeto global de profusão
cultural, mas sob as lógicas europeias
João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas

P
ara o historiador Alexandre Co- tecnológicos, econômicos e culturais,
ello de La Rosa, é claro o propó- começa muito antes e não é necessaria-
sito que leva os jesuítas a se lan- mente um produto dos ‘ocidentais’”.
çarem pelo mundo: a expansão da fé Coello ainda propõe, a partir dessa
católica. Entretanto, a experiência que ideia de movimentação de povos, uma
passam a vivenciar vai também trans- reflexão acerca da chamada crise mi-
formar esse objetivo. Com isso, não gratória que vivemos atualmente. “Os
vão só atuar como propagadores da povos sempre se mudaram para outros
fé cristã, mas da ideia de um ecume- lugares distantes, e, portanto, a migra-
nismo cristão. “Ao mesmo tempo, sua ção não deveria ser considerada como
presença permitiu-lhes que também se um ‘mal’”, analisa. “O problema de fun-
tornassem agentes políticos, econômi- do não é a migração per se, mas o ra-
cos e territoriais em um ‘mundo pací- cismo e a discriminação de povos extra-
20 fico’ de grande diversidade e dispersão
comunitários que vivem em condições
territorial”, acrescenta. Para o pesqui-
infra-humanas, afligidos pela fome,
sador, essa é uma experiência do que
perseguição e guerras”, aponta.
chamamos hoje de globalização, tra-
zendo novos mundos para as lógicas Alexandre Coello de La Rosa é
europeias. “O projeto missionário da doutor em História pela SUNY at Stony
Companhia de Jesus na Ásia-Pacífico Brook, de Nova York, Estados Unidos,
só pode ser entendido se for situado professor titular do Departamento de
no âmbito das fronteiras globais do Humanidades da Universitat Pompeu
mundo hispânico. Dinâmicas de evan- Fabra - UPF, de Barcelona, Espanha.
gelização em que as fronteiras não se- Também é coeditor da revista Illes i Im-
jam consideradas regiões ‘periféricas’, peris (Ilhas e Impérios, Departamento
ou seja, passivas e subordinadas, mas de Humanidades, UPF) e coordena o
como agentes ativos na transformação mestrado em Estudos da Ásia-Pací-
de culturas”, analisa. fico em um contexto global, também
Na entrevista, concedida por e-mail da UPF. Entre suas publicações mais
à IHU On-Line, Coello vai analisar recentes, destacamos History of the
as movimentações da Companhia de Marianas by Fathers Luis de Morales,
Jesus não só na América, mas também SJ & Charles Le Gobien, SJ (Mangi-
pelo Oriente, ao longo dos séculos. Para lao, Guam: Micronesian Area Research
ele, esse processo configura uma expe- Center & University of Guam, 2016),
riência de relação inter-religiosa, mas Jesuits at the Margins: Missions and
cheia de resistências e conflitos. “O diá- Missionaries in the Marianas (London
logo inter-religioso foi muito difícil, es- & New York, Routledge, 2016) e Elogio
pecialmente no Japão”, pontua. Ainda a la antropologìa histórica: enfoques,
assim, destaca que esse processo revela métodos y aplicaciones al estudio del
que “a chamada globalização, proposta poder y el colonialismo (Zaragoza &
como um fenômeno do último terço do UOC, 2016).
século XX, impulsionado por fatores Confira a entrevista.

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“Os jesuítas implantaram


modelos de socialização
forçada que tinham de ser
aceitos pelos nativos”

IHU On-Line – Como defines como na China e no Japão, não ape- IHU On-Line – Como você en-
a ideia de missão para os jesu- nas como missionários, mas como tende as resistências e associa-
ítas? Quais são as principais embaixadores de suas respectivas ções que ocorrem no espaço de
questões quando há uso do tra- nações – Portugal, Espanha – com o mediação cultural das missões?
balho em uma missão? objetivo de evangelizá-los “de cima”.
Alexandre Coello de La Rosa
Seguindo o modelo de Acosta2, China
Alexandre Coello de La Rosa – Não tenho certeza de que as mis-
e Japão eram sociedades tão sofisti-
– Acredito que a missão estava mui- sões sejam espaços de mediação
cadas quanto as europeias, exceto que
to relacionada com a famosa frase cultural. Os jesuítas implantaram
não eram cristãs. Por essa razão, os je-
“Totus mundus nostra habitat fit” modelos de socialização forçada
suítas deviam acomodar-se, como di-
(nosso lugar é o mundo), pronuncia- que tinham de ser aceitos pelos na-
ria Joan-Pau Rubiés3, para não serem
da pelo vigário apostólico da Com- tivos. Não há dúvida de que houve
rejeitados. Em alguns casos, como Ro-
panhia de Jesus, Jerônimo Nadal1, resistência a esses modelos – fami-
berto de Nobilli4, na Índia, ou Mateo
na qual reconhecia sem equívocos liares, políticos, religiosos –, mas a 21
Ricci5, na China, os jesuítas adotaram
o avanço inexorável do cristianismo Companhia desenvolveu uma pro-
as vestimentas locais para conseguir
como parte de um processo de ex- paganda que muitas vezes apresen-
uma melhor adaptação.
pansão missionário pelas diferentes tava as missões como lugares onde
nações do planeta. os nativos eram felizes. A Missão
2 José de Acosta (1539-1600): jesuíta, poeta, cosmógrafo
(1986), o famoso filme de Roland
Estudos recentes analisaram a e historiador espanhol que foi para o Peru em 1571. Na
América, Acosta fundou várias faculdades, entre elas as Joffé6, representa os jesuítas como
missão jesuítica como uma resposta de Arequipa, Potosí, Chuquisaca, Panamá e La Paz, mas
enfrentou considerável oposição do vice-rei Toledo. Seus heróis na defesa dos nativos. A rea-
aos desafios globais com os quais o deveres oficiais obrigavam-no a investigar pessoalmente
lidade, como sabemos, nem sempre
cristianismo foi confrontado. Neste um território muito extenso, de modo que adquirisse um
conhecimento prático da vasta província e de seus habi- foi tão idílica. Os jesuítas tiveram
sentido, o termo “missão” tem sido tantes indígenas. (Nota da IHU On-Line)
3 Joan-Pau Rubiés: historiador graduado na Universida- escravos em suas reduções, obtendo
entendido não apenas como uma de de Barcelona (1987), PhD pela Universidade de Cam- grandes benefícios de suas fazendas
jornada de jesuítas, sós ou em grupo, bridge, pesquisador no Queen’s College, em Cambridge, e
Jean Monnet Fellow no Instituto Universitário Europeu em vinícolas e açucareiras. Nem sem-
enviados pelo papa ou pelo padre ge- Florença. Professor de História Moderna na Universidade
de Reading e integrante do Departamento de História In- pre houve confronto entre os impé-
ral da Ordem, para a América, África ternacional da London School of Economics and Political rios espanhóis e portugueses, como
ou Ásia, mas como um empreendi- Science. Atualmente, ele lidera um projeto de pesquisa
sobre etnografias, missões religiosas e encontros culturais representam Jeremy Irons e Ro-
mento a serviço da propagação da fé no início do mundo moderno. (Nota da IHU On-Line)
4 Roberto de Nobili (1577-1656): foi um missionário je- bert de Niro, mas havia, sim, uma
que acarretou na dispersão de seus suíta italiano que chegou à Índia em 1605. Ele é lembrado colaboração mútua bem ativa em
membros (peregrinatio) por todo o e admirado por sua vontade de adotar os costumes in-
dianos de vestir, comer e estilo de vida. Seu objetivo foi prol do seu desenvolvimento. Isso
mundo. mostrar que a fé cristã poderia ser vivida de uma maneira
não inteiramente ligada aos valores culturais europeus.
não significa, evidentemente, que
(Nota da IHU On-Line) houvesse uma postura subservien-
5 Matteo Ricci [Mateus Ricci] (1552-1610): missioná-
IHU On-Line – A missão jesuí- rio que viveu já em sua época os princípios básicos do te entre ambos, da mesma forma
Vaticano II, especialmente a inculturação e o diálogo in-
tica pode ser vista como uma ter-religioso. Depois de estudar direito em Roma, entrou
que tampouco os nativos estiveram
espécie de embaixada? Por na Companhia de Jesus, em 1571. Durante sua formação, dispostos a colaborar com os reli-
interessou-se também por várias matérias científicas,
quê? como matemática, cosmologia e astronomia. Em 1577, giosos. Houve muitas divergências,
pediu para ser enviado às missões no Leste da Ásia e, em nem sempre registradas nas fontes
24 de março de 1578, embarcava em Lisboa, chegando a
Alexandre Coello de La Rosa – Goa, capital das Índias Portuguesas, em 13 de setembro jesuítas.
Em alguns casos, os jesuítas chegaram do mesmo ano. Alguns meses depois, foi destinado para
Macau, a fim de preparar sua entrada na China. Confira a
às cortes de sociedades sofisticadas, entrevista realizada pela IHU On-Line com Nicolas Stan-
daert, intitulada O “caminho chinês”. A contribuição da Chi-
na para o mundo, disponível em http://bit.ly/ihu281008. 6 Roland Joffé (1945): cineasta franco-britânico de ori-
1 Jerônimo Nadal (1507-1580): foi um sacerdote jesuíta Confira a edição especial da IHU On-Line intitulada gem judaica, especialmente notável por seus filmes The
espanhol, colaborador de Santo Inácio de Loyola que aju- Matteo Ricci no Império do Meio. Sob o signo da amiza- Killing Fields (Oscar de melhor filme de 1985) e The Mis-
dou na promulgação das Constituições da Companhia de de, publicada em 18-10-2010, disponível em http://bit.ly/ sion (Palma de Ouro de 1986, em Cannes). (Nota da IHU
Jesus. (Nota da IHU On-Line) ihuon347. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

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TEMA DE CAPA

IHU On-Line – Muitas vezes, Aranda11, Horacio de Vecchi12 e o ir- os territórios já existentes, atuando
as ações dos jesuítas são redu- mão coadjutor Diego de Montalbán como pontos de referência para as
zidas ao espectro religioso. Por foram martirizados em Arauco. Ao periferias imperiais.
que, especialmente nas mis- contrário dos Mapuche13, o espírito
Em 1643, quatro navios holandeses
sões, essas ações podem ser pacífico dos Huilliche14 justifica o
comandados por Hendrick Brouwer
interpretadas como um projeto êxito da missão circular15 marítima,
(1581-1643)18 desembarcaram em
geopolítico? E em que consistia permitindo reforçar a presença es-
Carelmapu, sede do governador de
esse projeto? panhola no Chile meridional e evitar
Chiloé, e incendiaram a vila, matan-
a interferência de potências estran-
Alexandre Coello de La Rosa do o governador don Andrés Muñoz
geiras na retaguarda do império. A
– Os jesuítas foram os líderes do de Herrera e uma grande parte dos
região de Chiloé foi considerada,
Concílio de Trento7, que represen- soldados. Seu objetivo era o de per-
segundo Rodrigo Moreno Jeria16,
tou uma reforma católica sem pre- seguir as possessões espanholas no
como a periferia mais pobre e isola-
cedentes que abarcou a Europa e sul e estabelecer uma colônia per-
da do reino do Chile. Apesar disso,
os territórios ultramarinos. Esta manente no estratégico povoado de
em 1617, os superiores jesuítas ga-
expansão levou a Companhia à li- Valdivia, que serviria para futuras
rantiram a presença permanente de
derança do projeto missionário até incursões nas costas do Pacífico. As
religiosos no arquipélago. Se desde
que, no dia 22 de junho de 1622, o perdas materiais foram altas, mas
a sua fundação, o governo chileno
papa Gregório XV8 fundou a Sagra- segundo Moreno Jeria, a atuação
pertencia à província jesuíta do Pa-
da Congregação para a Evangeliza- dos jesuítas em defesa da região re-
raguai-Tucumán, em 1625 tornou-se
ção dos Povos9 – mais conhecida forçou seu prestígio, assim como a
vice-Província dependente do Peru,
como Propaganda Fide –, centra- necessidade de manter sua presença
devido às guerras da Araucanía.
lizando a ação missionária a partir nas fronteiras meridionais do impé-
Depois de consolidar as atividades
de Roma. No entanto, as missões je- rio hispânico.
pastorais na Ilha Grande, os jesuí-
suíticas localizavam-se em espaços
tas estenderam suas atividades ao
periféricos, distantes dos centros Pós-conquista
arquipélago dos Payos ou Chonos
populacionais, como as conhecidas
e às Ilhas Guaitecas17. No entanto, Em 1668, quando a fase de conquis-
22 reduções guaranis do Paraguai, ou
a prioridade não era descobrir no- ta havia terminado, a Companhia de
as missões de Chiloé10, em que um
vos assentamentos, mas consolidar Jesus decidiu fundar uma missão
componente geoestratégico sempre
esteve presente. permanente nas ilhas Marianas. Seu
11 Martín de Aranda Valdivia (1560-1612): jesuíta chi-
leno, morreu assassinado em Elicura junto com outros
fundador, o jesuíta Diego Luis de
Em novembro de 1608, a Coroa religiosos no contexto da Guerra Arauco. Sua morte e a San Vitores (1627-1672)19, veio para
Espanhola viu com bons olhos a che- de seus colegas foi interpretada do ponto de vista católico
a ilha de Guahan (ou Guam), estabe-
como um “martírio” e serviu como um argumento contra
gada dos primeiros jesuítas ao Forte a estratégia da “guerra defensiva” que foi dirigido pelos lecendo seu centro de operações no
jesuítas no Chile, liderado por Luis de Valdivia, que buscou
Carelmapu, localizado na costa norte priorizar a “conquista espiritual” dos mapuches (convertê povoado de Hagåtña (ou San Ignacio
do Canal de Chacao, na província de -los ao catolicismo) em uma guerra aberta, que até então
de Agaña). Suas motivações foram
não produzia grandes resultados. (Nota da IHU On-Line)
Chiloé. Em 1612 os padres Martin de 12 Horacio de Vecchi: jesuíta assassinado em 14 de sempre espirituais: as ilhas Maria-
dezembro de 1612, juntamente com Martín de Aranda
e Diego de Montalbán em Elicura. Vecchi é um dos pri- nas não tinham ouro nem prata,
meiros jesuítas a empreender o desafio de evangelizar os
indígenas da região de Araucanía, no Chile. Originário de
especiarias ou outras riquezas pre-
Siena - educado na Toscana -, nasceu em 1578, pertence ciosas, mas, apesar disso, os jesuítas
a uma família abastada e é um homem culto, tendo es-
7 Concílio de Trento: realizado de 1545 a 1563, foi o tudado Direito Civil, Direito Sagrado e Teologia. (Nota da quiseram permanecer lá. O arqui-
19º concílio ecumênico. Foi convocado pelo papa Paulo IHU On-Line)
III para assegurar a unidade da fé (sagrada escritura his- 13 Mapuche (na língua mapudungun, gente da terra): são
pélago constituía uma plataforma
tórica) e a disciplina eclesiástica, no contexto da Reforma um povo indígena da região centro-sul do Chile e do su- incomparável para alcançar outros
da Igreja Católica e a reação à divisão então vivida na doeste da Argentina. São conhecidos também como arau-
Europa devido à Reforma Protestante, razão pela qual é canos. (Nota da IHU On-Line) objetivos (econômicos, espirituais)
denominado como Concílio da Contrarreforma. (Nota da
IHU On-Line)
14 Huilliche: é um grupo étnico do Chile, pertencente à
cultura Mapuche. Vivem em vales montanhosos em uma
mais ambiciosos. E sobretudo, re-
8 Papa Gregório XV (1554-1623): nascido Alessandro Lu- área ao sul do rio Toltén e arquipélago de Chiloé, ao sul do presentou um território de grande
dovisi, foi eleito papa em 9 de fevereiro de 1621 e gover- Chile. Esse povo logo se espalhou pela Argentina. (Nota
nou a Igreja Católica até a sua morte. Fundou a Congrega- da IHU On-Line) valor estratégico para a rota do ga-
ção da Propagação da Fé, que era um comitê de Cardeais 15 Missões volantes, ou circulares: estilo de missão po-
para supervisionar a propagação do Cristianismo pelos pular feita na Europa, também chamada missão romana
missionários enviados para países não cristãos. (Nota da que consistia em ao menos dois padres saírem pelas pe- 18 Hendrik Brouwer (1581-1643): foi um navegador e
IHU On-Line) riferias da cidade indo às vilas próximas e de média dis- explorador neerlandês. Entre 1632 e 1636 foi governador-
9 Congregação para a Evangelização dos Povos (Con- tância para fazer uma pregação, normalmente em tom de geral das Índias Orientais Neerlandesas. Da sua juventude
gregatio pro Gentium Evangelizatione): é um dicastério da Quaresma. Consistia em uma semana ou 15 dias, na qual pouco se sabe, é provável que tenha visitado Espanha e
Cúria Romana, ocupa-se das questões referentes à propa- se faziam catequese, sacramentos e uma espécie de reti- Portugal a serviço de um comerciante de Amsterdã. Em
gação da fé católica no mundo inteiro. Está sediada no Pa- ro quaresmal. Isto foi, grosso modo, aplicado também em 1611 Brouwer descobriu a rota de Brouwer, itinerário ma-
lazzo di Propaganda Fide, na Piazza di Spagna, em Roma. vilas da América espanhola e Portuguesa. (Nota da IHU rítimo que liga o sul da África a Java e diminui considera-
(Nota da IHU On-Line) On-Line) velmente o tempo de viagem, aproveitando a força dos
10 Chiloé: é um arquipélago ao sul do Chile. Além de um 16 Rodrigo Moreno Jeria: historiador, integrante da Aca- ventos na faixa de latitude conhecida como Quarentas
grande número de ilhas de menor tamanho, compreende demia Chilena de História, doutor em História da Améri- Rugidores. (Nota da IHU On-Line)
a Ilha Grande de Chiloé, a quinta em tamanho da Amé- ca, Universidade de Sevilha, 2006, com a tese “Os jesuítas 19 Diego Luis de San Vitores (1627-1672): foi um mis-
rica do Sul (depois da Terra do Fogo e as ilhas brasilei- em Chiloé: Missão, governo e economia 1608-1768”. Suas sionário jesuíta espanhol que fundou a primeira igreja
ras de Marajó, Bananal e Tupinambarana). O arquipélago pesquisas versam sobre História e Sociedade nas Améri- católica na ilha de Guam. Ele é responsável por esta-
tem uma população de cerca de 150 mil pessoas, e uma cas, Igreja e Cultura. (Nota da IHU On-Line) belecer a presença cristã nas Ilhas Marianas. Ele é uma
superfície de 9.181 km². Administrativamente pertence à 17 Arquipélago das Guaitecas: é um arquipélago no mu- figura controversa para alguns hoje, devido ao seu con-
Província de Chiloé, com exceção das Ilhas Desertores, que nicípio de Guaitecas, província de Aisén, Chile. (Nota da flito com o líder indígena Chamorro Mata’pang. (Nota
pertencem à província de Palena. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) da IHU On-Line)

16 DE OUTUBRO | 2018
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leão Manila-Acapulco, uma linha nos, oferecendo-lhes as doutrinas vier24 é considerado o grande
regular do “Caminho das Filipinas”, de Huarochirí21 (1569) e Santiago apóstolo do Oriente. Sua incur-
que conectava desde 1593 o arquipé- del Cercado22 (1570). Mas a sua de- são pelo Oriente influencia a
lago filipino e o vice-reinado da Nova terminação em que aceitassem ou- criação do conceito de missão
Espanha por meio de duas embarca- tras tantas doutrinas causou muitas jesuítica? Por quê? Como sua
ções anuais de 300 toneladas, carre- dissensões no seio da ordem, cujos experiência é atualizada em ou-
gadas de mercadorias orientais, em estatutos priorizavam outros meios tras missões?
troca de quantidades significativas para a evangelização dos nativos. A
Alexandre Coello de La Rosa
de prata lavrada que permitiu asse- Companhia não era uma ordem mo-
– Claramente, a figura de Francisco
gurar o controle espanhol naquelas nolítica a serviço da Coroa, mas o
Xavier é fundamental para o imagi-
distantes terras. vice-rei Toledo pensava o contrário.
nário missionário, especialmente na
Finalmente, os jesuítas acabaram Ásia. Os fundadores da Companhia
O papel dos jesuítas
aceitando algumas paróquias em de Jesus, Inácio de Loyola25 e Fran-
Os jesuítas atuaram com o propósi- perpetuidade (o Cercado, em Lima, cisco Xavier, eram espanhóis. Mas o
to fundamental de propagar os valo- 1568, e Juli, 1576), aplicando os mo- segundo foi especialmente reveren-
res do ecumenismo cristão, mas, ao delos reducionais em outros espaços ciado pelos jesuítas portugueses, es-
mesmo tempo, sua presença permi- mais distantes, tais como o Paraguai, pecialmente em Goa26, pelas incur-
tiu-lhes que também se tornassem e especialmente nas áreas de frontei- sões feitas em regiões de influência
agentes políticos, econômicos e ter- ra, como no norte do vice-reinado da portuguesa – Índia, Japão.
ritoriais em um “mundo pacífico” de Nova Espanha (Sinaloa), no Chile,
Neste sentido, Francisco Xavier,
grande diversidade e dispersão terri- assim como as Filipinas e as Ilhas
que não foi martirizado, tornou-se
torial. Enquanto a historiografia tra- Marianas. Nem sempre houve coin-
o pai das missões, não apenas no
dicional analisou esses espaços apa- cidência e dependência das particu-
Japão, mas também nas Filipinas,
rentemente marginais, localizados laridades geográficas, econômicas e
onde teve alguns imitadores, como
na periferia do império hispânico, a políticas das regiões a serem evange-
o padre Francesco Mastrilli27, mis-
partir de abordagens deterministas lizadas.
sionário e mártir no Japão (1639), e
baseadas na dicotomia “centro” vs. Ilhas Marianas, onde seu fundador, 23
“periferia”, que priorizavam dema- o padre Diego Luis de San Vitores,
IHU On-Line – Depois de Pau-
siadamente os fatores geográficos morreu pelas mãos da violência Cha-
lo de Tarso23, Francisco Xa-
(seu isolamento e marginalidade morro (1672).
“periféricos”), econômicos (sua po-
breza e escassez de recursos mine-
21 Huarochirí: província do Peru localizada na região de
rais) ou demográficos (sua escassa Lima. Sua capital é a cidade de Matucana. (Nota da IHU
população), considero que o projeto On-Line) 24 Francisco Xavier (1506-1552): missionário cristão es-
22 El Cercado: município da República Dominicana per- panhol e apóstolo das Índias, um dos pioneiros e cofun-
missionário da Companhia de Jesus tencente à província de San Juan. Inclui, além da capital, dador da Companhia de Jesus. Morreu na China, onde se
na Ásia-Pacífico só pode ser entendi- dois distritos municipais: Nuevo Brazil e Batista. (Nota da preparava para cristianizar essa vasta região. Foi canoniza-
IHU On-Line) do pelo papa Urbano VIII. Leia também Francisco Xavier:
do se for situado no âmbito das fron- 23 Paulo de Tarso (3-66 d.C.): nascido em Tarso, na Cilí- o aventureiro de Deus. Entrevista especial com o jornalista
cia, hoje Turquia, era originariamente chamado de Saulo. espanhol Pedro Miguel Lamet no sítio do IHU, disponível
teiras globais do mundo hispânico. Entretanto, é mais conhecido como São Paulo, o Apóstolo. em http://bit.ly/2OcQ7Rq. (Nota da IHU On-Line)
Dinâmicas de evangelização em que É considerado por muitos cristãos como o mais impor-
tante discípulo de Jesus e, depois de Jesus, a figura mais
25 Inácio de Loyola (1491-1556): fundador da Companhia
de Jesus, a Ordem dos Jesuítas, cuja missão é o serviço
as fronteiras não sejam considera- importante no desenvolvimento do Cristianismo nascen- da fé, a promoção da justiça, o diálogo inter-religioso e
te. Paulo de Tarso é um apóstolo diferente dos demais. cultural. A Ordem teve grande importância na Reforma
das regiões “periféricas”, ou seja, Primeiro porque, ao contrário dos outros, não conheceu Católica do século XVI. Atualmente a Companhia de Jesus
passivas e subordinadas, mas como Jesus pessoalmente. Antes de sua conversão, se dedicava é a maior Ordem religiosa católica no mundo. Para saber
à perseguição dos primeiros discípulos de Jesus na região mais sobre Loyola, acesse a edição 186 da IHU On-Line,
agentes ativos na transformação de de Jerusalém. Em uma dessas missões, quando se dirigia disponível em http://bit.ly/1IBwk2U. Foi canonizado em 12
a Damasco, teve uma visão de Jesus envolto numa gran- de março de 1622 pelo papa Gregório XV. Festeja-se seu
culturas. de luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três dias dia em 31 de julho. (Nota da IHU On-Line)
por Ananias, que o batizou como cristão. A partir deste 26 Goa: é um estado da Índia. Situa-se entre Maharashtra
encontro, Paulo começou a pregar o Cristianismo. Ele era a norte e Karnataka a leste e sul, na costa do Mar da Ará-
um homem culto, frequentou uma escola em Jerusalém, bia, a cerca de 400 km ao sul de Bombaim. É o menor dos
IHU On-Line – Como pode- fez carreira no Templo (era fariseu), onde foi sacerdote. estados indianos em território e quarto menor em popula-
Era educado em duas culturas: a grega e a judaica. Paulo ção, e o mais rico em PIB per capita da Índia. A sua língua
mos compreender a relação en- fez muito pela difusão do Cristianismo entre os gentios e oficial é o concani, mas ainda existem pessoas neste esta-
é considerado uma das principais fontes da doutrina da do que falam português, devido ao domínio de Portugal
tre jesuítas e a Coroa, especial- Igreja. As suas Epístolas formam uma seção fundamental na região por mais de 400 anos. Goa, a partir de 1510, foi
mente na América Espanhola? do Novo Testamento. Afirma-se que foi ele quem verda- a capital do Estado Português da Índia, tendo sido inte-
deiramente transformou o cristianismo em uma nova reli- grada à Índia após ser tomada pelo exército indiano em
gião, superando a anterior condição de seita do Judaísmo. 1961 derrotando as exíguas forças militares portuguesas
Alexandre Coello de La Rosa A IHU On-Line 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao presentes. (Nota da IHU On-Line)
– No Peru, o vice-rei dom Fran- tema Paulo de Tarso e a contemporaneidade, disponível 27 Marcello Francesco Mastrilli (1603-1637): foi um
em http://bit.ly/ihuon175, assim como a edição 286, de missionário jesuíta italiano que foi martirizado no Japão
cisco Toledo20 (1568-1580) tentou 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua relevância atual, dispo- no Monte Unzen durante o Xogunato Tokugawa, que
nível em https://goo.gl/bKZcM0. Também são dedicadas baniu o cristianismo em 1614. Depois de navegar para o
converter os jesuítas em paroquia- ao religioso a edição 32 dos Cadernos IHU em formação, Japão para encontrar e possivelmente reconverter o fa-
Paulo de Tarso desafia a Igreja de hoje a um novo senti- moso apóstata Cristóvão Ferreira, que foi para o Japão e
do de realidade, disponível em http://bit.ly/ihuem32, e ali renunciou à sua fé, foi preso assim que saiu do navio.
a edição 55 dos Cadernos Teologia Pública, São Paulo Depois de três dias de tortura no poço de Nagasaki, ele
20 Francisco Álvarez de Toledo (1515-1584): foi um contra as mulheres? Afirmação e declínio da mulher cristã foi decapitado. Uma pintura de sua morte, Martírio de São
nobre e militar espanhol, vice-rei do Peru.(Nota da IHU no século I, disponível em http://bit.ly/ihuteo55. (Nota da Marcelo Mastrilli (1664), foi feita por Antonio Maria Vas-
On-Line) IHU On-Line) sallo. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – O que a expe- Manila, e outros, executados, assim que são as que conheço melhor, são
riência dos jesuítas no Oriente como seus assistentes. Em 1622, territórios eminentemente católicos.
revela sobre o diálogo inter-re- houve novas execuções, e em 1627, Isto ocorre devido à contínua pre-
ligioso? o papa procedeu à beatificação de sença de ordens religiosas – a cha-
três jesuítas (Paulo Miki, João Goto mada “freilocracia” – onde não havia
Alexandre Coello de La Rosa
e Diego Kisai) que morreram mar- presença civil. Por essa razão, o ca-
– O diálogo inter-religioso foi muito
tirizados em Nagasaki (Japão), em tolicismo contemplou-se como uma
difícil, especialmente no Japão. No
1597. Em 1639, o Japão finalmente ponte para estabelecer relações com
dia 5 de fevereiro de 1597, em Na-
se fechou para os missionários his- a Europa.
gasaki, morreram 26 cristãos, entre
pânicos, embora tenham ocorrido Da mesma forma, o catolicismo
eles seis frades franciscanos descal-
novas chegadas e mártires até 1640, também serviu para reforçar a iden-
ços (o comissário Pedro Bautista e
entre os quais o ilustre Francesco tidade coletiva. Apenas para exem-
cinco irmãos de hábito), três jesuítas
Mastrilli. Devido ao fechamento da plificar. Em 2000, Pedro Calung-
japoneses (Paulo Miki28 e seus dois
fronteira japonesa, os jesuítas volta- sod30, assistente filipino de Diego
catequistas, João Goto e Santiago
ram sua atenção para outros espaços Luis de San Vitores, foi canonizado.
Kisai), e 17 leigos nascidos no Japão.
missionários, como o sul das Fili- Enquanto o jesuíta espanhol foi be-
Dez anos antes, o imperador Toyoto-
pinas e Marianas, onde conquista e atificado em 1985, sua canonização
mi Hideyoshi29 havia banido o cris-
evangelização voltaram a se conjugar segue pendente. Assim, o papa João
tianismo, mas autorizou o francis-
em um espaço fronteiriço de grande Paulo II31 decidiu priorizar a canoni-
cano frei Pedro Bautista e seus três
interesse para a coroa espanhola. zação de Calungsod para reforçar o
companheiros a estabelecerem sua
missão em Kyoto. catolicismo filipino e, portanto, o de
toda a Ásia.
No entanto, foi a chegada forçada
do galeão espanhol “San Felipe” à
“Os jesuítas
costa do Japão – onde ficou encalha-
do, carregado de soldados, armas,
foram os líderes IHU On-Line – Como essas
experiências da Companhia
24 munições e mercadorias – o que
desencadeou os acontecimentos. O
do Concílio de de Jesus dos séculos XVI ao
XIX foram se transformando e
imperador apreendeu o navio e apri- Trento, que constituindo a missão jesuítica
de hoje?
sionou os religiosos, a quem decidiu
executar. Ordenou que cortassem a representou Alexandre Coello de La Rosa
uma reforma
orelha esquerda deles e, depois de
– Após a expulsão dos jesuítas em
fazê-los caminhar em pleno inver-
1767 (nas Filipinas, em 1769) e sua
no, expostos aos insultos e humilha-
ções do povo, ele os aprisionou. Mas católica sem posterior dissolução, a Companhia
de Jesus sobreviveu, ironicamente,
seu destino foi muito mais sinistro.
O taikó Hideyoshi decidiu crucifi- precedentes em um país que não era católico: a
Rússia branca, oferecendo proteção
cá-los por persistirem na pregação
do evangelho, enquanto os fiéis se
que abarcou a seus religiosos, que trabalharam
como professores e conselheiros
apressavam em tirar “algo das rou-
pas dos santos”.
a Europa e culturais. Posteriormente, a Com-

os territórios
panhia foi restaurada e teve que se
Posteriormente, em 1614, os im- reinventar em um contexto ilumi-
peradores japoneses continuaram
as perseguições e muitos religiosos ultramarinos” 30 Pedro Calungsod (1654-1672): foi um catequista lei-
go, mártir católico das Filipinas, assassinado em 1672 em
– especialmente franciscanos e je- Guam pelo chefe chamorro Mata’pang, que se opunha aos
batismos que faziam os missionários sob a liderança do
suítas – foram exilados em Macau, sacerdote jesuíta espanhol Diego Luis de San Vitores, que
também foi assassinado no mesmo evento. Pedro tinha
18 anos e alegadamente teria batizado a filha do chefe
28 Paulo Miki: foi um religioso jesuíta e um dos mártires IHU On-Line – Atualmente, chamorro contra a vontade deste. (Nota da IHU On-Line)
do Japão, filho de um renomado militar, membro de uma 31 Papa João Paulo II (1920-2005): Sumo Pontífice da
família samurai da província de Harima, foi catequista, in- uma ação de missionários em Igreja Católica Apostólica Romana e soberano da Cidade
gressou na Companhia de Jesus ordenando-se sacerdo-
te, e ficou conhecido como excelente pregador e orador.
países orientais, como a China, do Vaticano de 16 de outubro de 1978 até sua morte. Teve
o terceiro maior pontificado documentado da história,
(Nota da IHU On-Line) o Japão, a Índia, pode ser vis- reinando por 26 anos, depois dos papas São Pedro, que
29 Toyotomi Hideyoshi (1536 1598): foi um daimiô do reinou por cerca de 37 anos, e Pio IX, que reinou por 31
Período Sengoku que unificou o Japão. Ele sucedeu seu ta como um caminho para uma anos. Foi o único Papa eslavo e polaco até a sua morte,
antigo senhor feudal, Oda Nobunaga, e trouxe um fim e o primeiro Papa não italiano desde o neerlandês papa
ao Período Sengoku. O período de seu governo é mui-
conexão com o Ocidente? Adriano VI em 1522. João Paulo II foi aclamado como um
tas vezes chamado de período Azuchi-Momoyama. Dessa dos líderes mais influentes do século XX. Com um pon-
fase originou-se um certo número de heranças culturais, Alexandre Coello de La Rosa tificado de perfil conservador e centralizador, teve papel
incluindo a restrição de que apenas os membros da classe fundamental para o fim do comunismo na Polônia e talvez
dos samurais poderiam portar armas. Hideyoshi é consi- – Cada um desses países tem dife- em toda a Europa, bem como significante na melhora das
derado como o segundo “grande unificador” do Japão, rentes particularidades históricas. relações da Igreja Católica com o judaísmo, Islã, Igreja Or-
após Oda Nobunaga e antes de Ieyasu Tokugawa. (Nota todoxa, religiões orientais e a Comunhão Anglicana. (Nota
da IHU On-Line) As ilhas Filipinas – e as Marianas – da IHU On-Line)

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nista de grande desconfiança e, por jesuítas enviados para a América – 2015), Sweetness and Power: the
que não dizê-lo, desdém, para com o especialmente aqueles que saíram Place of Sugar in Modern History
trabalho eclesiástico e missionário. da escola jesuíta de Sant Cugat de (A doçura e o poder: o lugar do açú-
Vallès, em Barcelona – tinham o ob- car na História Moderna, Penguin,
Na América, a Companhia conti-
jetivo de lutar contra o comunismo. 1985, em tradução livre), a literatu-
nuou prestando serviços para co-
No final das contas, foram os jesuítas ra das ciências sociais já estabele-
lonizar o “Oriente”, como é o caso
os que “se converteram” em homens ceu aqui as vulgatas sobre a noção
do Equador, onde o presidente Ga-
de esquerda – alguns inclusive per- de globalização, e o texto de Enseng
briel García Moreno32 (1861-1865;
deram suas vidas – em defesa dos Ho, The Graves of Tarim: Genealo-
1869-1875) recorreu aos jesuítas
mais pobres. Essa transformação gy and Mobility across the Indian
para construir seu “povo católico”.
espiritual – que também contou com Ocean (As sepulturas de Tarim:
Em outros lugares mais distantes,
ilustres mártires, como Luis “Lucho” genealogia e mobilidade no Oceano
como na Guiné e Fernão do Pó33, os
Espinal35, assassinado pela ditadura Índico, Universidade da Califórnia,
jesuítas também cuidaram das mis-
boliviana de Hugo Banzer36 – teve 2006, em tradução livre), é repleto
sões, ainda que com menor êxito. No
um profundo impacto sobre o cato- de conceitos difundidos na acade-
entanto, foi em meados do século
licismo da Teologia da Libertação37. mia como hibridação ou cosmopoli-
XIX, após seu retorno às Filipinas,
tismo. Este tipo de trabalho mostra
quando os jesuítas regressaram às
que a chamada globalização, pro-
missões fronteiriças de Mindanau e
posta como um fenômeno do último
Joló, que há tempos ambicionavam,
tentando evangelizar novamente os
“O diálogo terço do século XX, impulsionado

inter-religioso
por fatores tecnológicos, econômi-
nativos islâmicos.
cos e culturais, começa muito antes
Nesse sentido, eu diria que, após a
expulsão, a Companhia sempre ten- foi muito difícil, e não é necessariamente um produto
dos “ocidentais”, tal e como critica-
tou justificar sua razão (missionária)
de estar no mundo. Já no século XX, especialmente ria Jack Goody39 em seu O roubo da
história (Contexto, 2008).
depois do Concílio Vaticano II34, os
no Japão” Neste sentido, os povos sempre se 25
mudaram para outros lugares dis-
32 Gabriel Gregorio Fernando José María García y Mo-
tantes, e, portanto, a migração não
reno y Morán de Buitrón (1821-1875): foi um político deveria ser considerada como um
equatoriano que foi duas vezes Presidente de seu país
(1859-1865 e 1869-1875) e foi assassinado durante o se- IHU On-Line – De que forma “mal”, mas como algo inerente ao ser
gundo mandato, depois de ser eleito para o terceiro. Ele é humano. O problema de fundo não
notável por seu conservadorismo, extremamente católico, a experiência dos jesuítas no
mais a sua luta antimaçônica e por sua rivalidade contra
trabalho missionário pode nos é a migração per se, mas o racismo
um magnata da época Eloy Alfaro. Sob sua administração,
o Equador se tornou o líder nos campos das ciências e alta inspirar a outras interpreta- e a discriminação de povos extraco-
educação na América Latina. Além disso, Garcia Moreno
ções acerca da crise migratória, munitários que vivem em condições
desenvolveu a economia e a agricultura do país. (Nota da
IHU On-Line)
vista como um dos grandes ma- infra-humanas, afligidos pela fome,
33 Fernão do Pó: foi um navegador e explorador portu-
guês do século XV. Pela tradição, é o primeiro europeu, les do nosso tempo? perseguição e guerras. Em 2013, es-
provavelmente em 1472, a chegar às ilhas do Golfo da treou Elysium, um filme metafórico
Guiné, como a ilha de Bioko, que em tempos coloniais
denominava-se Fernando Pó, parte da Guiné Equatorial. Alexandre Coello de La Rosa de Neil Blomkamp40 que ilustra, no
Chegou também à foz do rio Wouri, a que chamou de Rio – Diferentemente da época do tra- futuro, um mundo onde os ricos se
dos Camarões que depois deu o nome ao atual estado
africano dos Camarões. (Nota da IHU On-Line) balho de Sidney W. Mintz38 (1922- deslocam para uma estação espa-
34 Concílio Vaticano II: convocado no dia 11-11-1962
pelo papa João XXIII. Ocorreram quatro sessões, uma em cial – Elysium – onde vivem con-
cada ano. Seu encerramento deu-se a 8-12-1965, pelo 35 Luis Espinal Camps: poeta, jornalista, cineasta e padre
papa Paulo VI. A revisão proposta por este Concílio estava jesuíta. Nascido na Espanha em 1932 e assassinado por
fortavelmente enquanto o resto da
centrada na visão da Igreja como uma congregação de fé, um grupo de paramilitares em março de 1980 durante o população vive em um planeta Terra
substituindo a concepção hierárquica do Concílio anterior, clima de tensão prévio ao golpe de Estado do ditador Luis
que declarara a infalibilidade papal. As transformações Garzía Meza. (Nota da IHU On-Line) devastado e superpovoado. Rhodes,
que introduziu foram no sentido da democratização dos 36 Hugo Banzer Suárez (1926-2002): general e político uma espécie de ministra da antimi-
ritos, como a missa rezada em vernáculo, aproximando boliviano, presidente da República por duas vezes (21 de
a Igreja dos fiéis dos diferentes países. Este Concílio en- agosto de 1971 a 21 de julho de 1978 e de 6 de agosto de gração, promove leis que garantem o
controu resistência dos setores conservadores da Igreja, 1997 a 7 de agosto de 2001). Nasceu no povoado de Con-
defensores da hierarquia e do dogma estrito, e seus fru- cepción, na província de Ñuflo de Chávez, departamento luxuoso modo de vida dos habitantes
tos foram, aos poucos, esvaziados, retornando a Igreja à de Santa Cruz, na Bolívia, e faleceu em Santa Cruz de la da estação espacial.
estrutura rígida preconizada pelo Concílio Vaticano I. A Sierra, província de Andrés Ibáñez, departamento de Santa
revista IHU On-Line publicou na edição 297 o tema de Cruz. (Nota da IHU On-Line)
capa Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II, de 15-6-2009, 37 Teologia da Libertação: escola teológica desenvolvida
disponível em https://goo.gl/GVTuEO, bem como a edição depois do Concílio Vaticano II. Surge na América Latina, logo social americano, que se tornou conhecido através
401, de 3-9-2012, intitulada Concílio Vaticano II. 50 anos a partir da opção pelos pobres, e se espalha por todo o de seus estudos na América Latina e no Caribe. (Nota da
depois, disponível em https://goo.gl/5IsnsM, e a edição mundo. O teólogo peruano Gustavo Gutiérrez é um dos IHU On-Line)
425, de 1-7-2013, intitulada O Concílio Vaticano II como primeiros que propõe esta teologia. A teologia da liberta- 39 John (Jack) Rankine Goody (1919-2015): foi um
evento dialógico. Um olhar a partir de Mikhail Bakhtin e ção tem um impacto decisivo em muitos países do mun- cientista social e antropólogo britânico e professor da
seu Círculo, disponível em https://goo.gl/8MDxOM. Em do. Sobre o tema confira a edição 214 da IHU On-Line, Universidade de Cambridge, eleito membro da Academia
2015, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU promoveu o de 2-4-2007, intitulada Teologia da libertação, disponível Britânica em 1976 e da Academia Nacional de Ciências dos
colóquio O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja para download em http://bit.ly/bsMG96. Leia, também, EUA. (Nota da IHU On-Line)
no contexto das transformações tecnocientíficas e sociocul- a edição 404 da IHU On-Line, de 5-10-2012, intitulada 40 Neil Blomkamp (1979): é um diretor sul-africano que
turais da contemporaneidade. As repercussões do evento Congresso Continental de Teologia. Concílio Vaticano II e ficou famoso após dirigir o filme Distrito 9 indicado a 4
podem ser conferidas na revista IHU On-Line 466, de 1-6- Teologia da Libertação em debate, disponível em http://bit. Óscares. Ele também trabalhou em vários episódios de
2015, disponível em https://goo.gl/LiJPrZ. (Nota da IHU ly/SSYVTO. (Nota da IHU On-Line) várias séries de televisão norte-americanas. (Nota da IHU
On-Line) 38 Sidney Wilfred Mintz (1922-2015): foi um antropó- On-Line)

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

Apesar disso, os habitantes da Alexandre Coello de La Rosa Existem também projetos missio-
Terra tentam alcançar Elysium de – Vejo que os jesuítas seguem muito nários, como o Seminário Micro-
todas as formas, onde as doenças ativos nas questões educacionais, ge- nésio, da ilha de Pohnpei (Estados
são curadas, e a fome e a pobreza renciando colégios e universidades Federados da Micronésia), onde os
parecem não existir. Para os imi- em todo o mundo, mas também es- primeiros jesuítas chegaram no sé-
grantes latinos que tentam chegar tão envolvidos em questões empre- culo XVII. Lá, nas ilhas Marianas e
aos Estados Unidos, aqueles que sariais, seguindo o espírito do magis Carolinas, trabalha o padre Fran-
fogem da Síria ou os imigrantes ex- inaciano: cada pessoa deve dar o seu cis X. Hezel, jesuíta e intelectual do
tracomunitários de Magrebe e da melhor. Isso implica em questões mundo colonial espanhol, que prefa-
África Central, a Europa é, sem dú- que, aparentemente, poderiam pa- ciou meu livro, Jesuits at the Mar-
vida, esse Elysium ao qual querem recer contraditórias, porque dar “o gins: Missions and Missionaries in
chegar. A igreja e, é claro, os je- melhor” de si mesmo pode ser, por the Marianas (1668-1769) (Jesuítas
suítas, deveriam refletir sobre seu um lado, combater a injustiça e a po- nas Margens: Missões e Missionários
compromisso com os mais pobres. breza latino-americanas a ponto de nas Marianas (1668-1769), Routled-
Os seres humanos têm os mesmos pegar em armas – como aconteceu ge, 2016, em tradução livre).■
direitos para alcançar os níveis mí- com alguns jesuítas na Bolívia –, e,
nimos de bem-estar, venham de por outro, trabalhar como consultor em 2008, fez negócios no ramo de investimentos de capi-
tal de venda em renda fixa, negociação, gestão de inves-
onde vierem. financeiro na Lehman Brothers Hol- timento. Seu negociante principal era o tesouro america-
no no mercado de valores mobiliários. As suas principais
dings Inc.41, se necessário... filiais incluíam Lehman Brothers Inc., Neuberger Berman
Inc., Aurora Loan Services, Inc., SIB Mortgage Corpora-
tion, Lehman Brothers Bank, FSB, Eagle Energy Partners,
IHU On-Line – Como você vê 41 Lehman Brothers Holdings Inc: foi um banco de in- e o Grupo Crossroads. A sede mundial da empresa estava
as ações dos jesuítas no mundo vestimento e provedor de outros serviços financeiros, com
atuação global, sediado em Nova Iorque. Era uma empre-
em Nova Iorque, com sedes em Londres e Tóquio, bem
como escritórios localizados em todo o mundo. (Nota da
hoje? sa global de serviços financeiros que, até declarar falência IHU On-Line)

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“Os outros” que se tocam na


experiência de missão
Guilherme Felippe observa as transformações que
ocorrem a partir do momento da colonização, que
coloca duas culturas distintas frente a frente
João Vitor Santos

A
s ações da Companhia de Je- nas e cobrar de um passado europeu
sus nas missões estão entre as imperialista a ‘derrocada cultural’ dos
muitas experiências de aproxi- índios”, aponta. Isso porque, seja pela
mação de europeus, costumeiramente imagem de vítima que se tem por cau-
vistos no papel de colonizadores, com sa dos extermínios de índios, seja pela
indígenas, quase sempre vistos como visão de que eles aceitaram a conquis-
os colonizados. Entretanto, o histo- ta europeia, se retira dessas popula-
riador Guilherme Galhegos Felippe ções a possibilidade de participarem
chama atenção para a virada dessas da História. “As pessoas em geral
lógicas. “A primeira coisa que me vem notam muito mais as mudanças que
à mente é que o outro são sempre dois. ocorrem nos outros do que em si – e
Há o índio imaginado, construído e se estendermos esta visão para a his-
registrado pelos padres que estão em tória, que se depara com populações
missão, assim como há o missionário indígenas aderindo ao uso de armas 27
que é observado, interpretado e in- de fogo, à escrita ou, mais recente-
corporado pelos indígenas”, observa. mente, às tecnologias como a antena
Por essa lógica, é possível acreditar parabólica ou o celular, as transfor-
que há, sim, imposição de um sobre mações parecem muito maiores do
o outro, mas também há transforma- que são”, pontua, ao indicar que não
ções a partir desses contatos. “Não é se olha como se dá a mudança do ou-
raro, desde os registros do padre An- tro lado. Para o pesquisador, “pensar
tônio Ruiz de Montoya, de 1639, en- em um protagonismo indígena hoje
contrar relatos de indígenas pratican- em dia é ter que superar estas visões”.
do ‘desbatismos’ ou batismos ao seu Afinal, isso vai impactar na própria
modo, sem a supervisão dos padres. relação que estabelecemos hoje com
A historiografia não pode mais igno- todas as populações indígenas, com o
rar que, assim como havia os índios seu passado e com o nosso também.
do Montoya, que foram observados e Guilherme Galhegos Felippe
descritos por ele, havia o Montoya dos possui graduação em licenciatura e
índios”, acrescenta. mestrado em História, ambos pela
Na entrevista concedida por e-mail Pontifícia Universidade Católica do
à IHU On-Line, Felippe detalha os Rio Grande do Sul - PUCRS, e douto-
desafios de conceber uma outra his- rado em História pela Universidade do
toriografia que não tome o índio só Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Seu
como vítima, mas como protagonista foco de pesquisa é História e Etno-his-
de um momento de transformações. tória indígena. Atualmente, cumpre
“Deve sempre estar em alerta para estágio de Pós-Doutorado (PNPD/
não se ver encerrada em uma narra- Capes) na PUCRS. Entre suas publica-
tiva que acabe contribuindo para um ções mais recentes, destacamos o livro,
discurso mea culpa, como ocorreu do qual é um dos organizadores, De-
em meados do século passado, com bates sobre a questão indígena (Porto
toda uma enxurrada de estudos mais Alegre: Edipucrs, 2018).
preocupados em vitimizar os indíge- Confira a entrevista.

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – Quais os maio- coitados que ou devem ser protegidos periência com o trato da documenta-
res desafios para a constituição e tutelados por nós, ou eliminados do ção dos arquivos e darei mais aten-
da história indígena hoje? plano de progresso nacional. Qualquer ção às evidências históricas. Mas isto
uma dessas visões geralmente resulta não impede que a Etno-história seja
Guilherme Galhegos Felippe
em políticas públicas inadequadas ou uma rica contribuição aos estudos
– Se estivermos falando da produ-
em hostilidades. que se proponham a investigar lar-
ção intelectual que pensa as relações
gas temporalidades ou alterações,
dos (e com os) indígenas no passa-
adaptações, ressignificações e res-
do, acredito que os desafios giram IHU On-Line – Quais as dis- truturações das relações culturais de
em torno de fazer, ensinar e divul- tinções entre História e Etno um povo.
gar uma história que não os exclua -história indígena?
ou que reproduza preconceitos e
ignorância. Pode parecer contradi- Guilherme Galhegos Felippe
IHU On-Line – É recorrente a
tório pontuar que as adversidades – Parece-me que a diferença entre
afirmação de que os coloniza-
de uma história indígena sejam anu- elas está tanto no objetivo que o es- dores, seja pela ação da espada
lar o indígena de sua narrativa, mas tudo quer alcançar, como na meto- ou da cruz, destituíram e trans-
infelizmente não é. Mesmo a pro- dologia pretendida. Se formos para o formaram a cultura de povos
dução acadêmica, que se alça como campo político, da ação, acredito que originários, transformando a
autoridade no que diz respeito ao ambas possam ser instrumentos im- forma de vida indígena. Você
pensar e refletir sob o rigorismo do portantes – mas, de novo, cada uma concorda com essa afirmação?
método científico, deve sempre estar à sua forma. Levando ao pé da letra, A transformação se deu real-
em alerta para não se ver encerrada História indígena é a disciplina que mente só de um lado?
em uma narrativa que acabe contri- investiga, por meio das evidências
buindo para um discurso mea culpa, documentais produzidas no passa- Guilherme Galhegos Felippe
como ocorreu em meados do sécu- do, as relações estabelecidas entre – Concordo na parte da transforma-
lo passado (e que ainda reverbera), os grupos indígenas e as sociedades ção. Todo contato, principalmente
com toda uma enxurrada de estudos envolventes. Como estas evidências que se deu ou dá de forma intensa e
geralmente são produzidas pelos não duradoura, altera aspectos substan-
28 mais preocupados em vitimizar os
ciais não só da vida das populações
indígenas e cobrar de um passado indígenas, esta é uma história que
europeu imperialista a “derrocada necessita de aportes teóricos de suas em jogo, como também provoca mu-
cultural” dos índios. vizinhas, como a Antropologia. De danças no que diz respeito à ontolo-
qualquer forma, o seu objetivo me gia destas sociedades. Se a língua de
E se formos tratar sobre a história parece muito claro: compreender um uma população, sejam os espanhóis
indígena que é exportada para o cur- contexto, seja em micro ou macroa- do período da conquista ou os Guara-
rículo escolar, a situação se torna mais nálise, que explica um conjunto de ni das reduções jesuíticas, passa a ter
preocupante. Como em todas as ma- que adaptar novos termos e ajustar
situações envolvendo grupos ou indi-
térias, há uma defasagem entre o que conceitos devido ao contato e conví-
víduos indígenas que tenham atuado
se produz nas universidades e o que se vio com o outro, é porque muitas coi-
como mediadores ou protagonistas.
ensina aos alunos nas escolas. Mas, no sas anteriores a isto já se alteraram
que diz respeito ao conhecimento so- Já a Etno-história indígena, por ter para que o conjunto das pessoas que
bre populações nativas, a defasagem a Etnologia em seu DNA, permite ao formam determinado grupo possam
vem acompanhada de muita ignorân- pesquisador uma abrangência tem- continuar entendendo-se.
cia. E não é preciosismo acadêmico, poral que não se restringe ao passa-
do, possibilitando o estudo de grupos Sendo assim, as transformações
como se eu achasse que os alunos de-
indígenas contemporâneos. Talvez que ocorreram não se restringiram
vessem ler os mesmos artigos e livros
mais como um método do que como apenas à cultura ou costumes dos
que circulam no meio científico. A
índios. Mas é inegável que estas mu-
questão aqui é a reprodução do senso uma disciplina em si, a Etno-história
danças ganharam mais atenção não
comum dentro das escolas, na forma- permite que os dados coletados em
só da historiografia, como do próprio
ção dos estudantes, que chegarão à trabalho de campo sejam analisados
imaginário popular. Seja devido à
vida adulta com a imagem de que o juntamente com os dados fornecidos
imagem vitimizadora que se cons-
índio é um ser que vive no passado e pela pesquisa em arquivos.
truiu sobre os nativos terem sido ex-
cuja sobrevivência depende de man-
Não há uma hierarquia preestabe- terminados, destruídos, massacrados
ter-se neste passado.
lecida aqui, como se os dados dos e aculturados pelos invasores, seja
Infelizmente, o que se ensina nas es- etnógrafos fossem mais confiáveis pela também rasteira visão de que
colas ainda está muito atrelado a um ou que as informações documentais os índios se deixaram absorver pela
evolucionismo do século XIX que, iro- fossem mais valiosas: tudo depen- conquista e colonização, o resultado é
nicamente, anda de mãos dadas com de da formação do pesquisador. Se o mesmo: os índios deixaram de ser
um relativismo cultural, em que “eles”, eu sou um historiador de formação índios em algum momento da histó-
os “não civilizados”, são uns pobres e carreira, é claro que terei mais ex- ria. As pessoas em geral notam muito

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mais as mudanças que ocorrem nos relatos pós-Expulsão da Companhia plos do envolvimento que os índios
outros do que em si – e se estender- de Jesus, produzidos em situação de tiveram com estes imbróglios das
mos esta visão para a história, que exílio, permitiram-se registrar com fronteiras coloniais.
se depara com populações indígenas menos amarras as experiências que
aderindo ao uso de armas de fogo, à tiveram com os nativos, inclusive,
escrita ou, mais recentemente, às tec- dando-lhes razão em algumas situ- IHU On-Line – Quais trans-
nologias como a antena parabólica ou ações que, nos relatos do início do formações o contato entre je-
o celular, as transformações parecem processo reducional no século XVII, suítas e indígenas legou ao
muito maiores do que são. eram completamente diferentes. cristianismo? Especialmente,
como os sacramentos e a pró-
pria concepção de pecado se
IHU On-Line – O que a experi- IHU On-Line – Qual sua lei- modificam nessa sobreposição
ência de missão jesuítica incita tura sobre os conflitos entre de culturas?
a pensar acerca do contato com europeus e indígenas, especial-
Guilherme Galhegos Felippe
o outro? mente nas regiões de fronteira,
– No contexto do contato e do con-
na América Colonial? O que, de
Guilherme Galhegos Felippe vívio entre os índios e os jesuítas nas
fato, estava em disputa?
– A primeira coisa que me vem à reduções, muito da liturgia, dos usos
mente é que o outro, nesta sua per- Guilherme Galhegos Felippe – de termos e conceitos e de práticas
gunta, são sempre dois. Há o índio Em se tratando de fronteiras, esse era sacramentais que estavam consoli-
imaginado, construído e registrado um conflito que só fazia sentido para dadas pela experiência na Europa e
pelos padres que estão em missão, os europeus. Os índios, me parece, aprovadas pelo Concílio de Trento4
assim como há o missionário que é não estavam nem um pouco preocu- ocorrido em meados do século XVI
observado, interpretado e incorpo- pados em assegurar delimitações en- tiveram que sofrer mudanças. Quan-
rado (como aliado ou inimigo, mas tre uma região e outra, nem dispostos do colocados em prática, os sacra-
incorporado) pelos indígenas. Pare- a lutar por espaços que foram pensa- mentos, por exemplo, tiveram de ser
ce-me que esta é a lição mais básica dos e organizados pelos conquista- administrados a toda uma popula-
que se deveria ter para começar a dores e colonizadores. Se estiveram ção que não só desconhecia a essên-
pensar historicamente a experiência envolvidos nestes conflitos, não foi cia deste tipo de intervenção, como 29
missionária seja onde for. por um interesse político como dese- apropriava-se deles para os seus
javam os europeus, nem pelo objetivo próprios interesses e fins.
E mesmo que apenas um dos lados
da posse da terra em termos como
tenha podido registrar massivamen- Não é raro, desde os registros do
propunha a diplomacia moderna.
te esta experiência, como mais ou padre Antônio Ruiz de Montoya5, de
menos foi o caso das missões jesuí- Para os europeus, a disputa ocor- 1639, encontrar relatos de indígenas
ticas em toda a América colonial, a ria por motivos já bem conhecidos, praticando “desbatismos” ou batis-
escrita nunca é a expressão da obser- como questões políticas, econômi- mos ao seu modo, sem a supervisão
vação omissa, ela sempre se envolve cas, diplomáticas... Geralmente, dos padres. A historiografia não pode
de alguma forma, em algum grau. E problemas de poder. De qualquer mais ignorar que, assim como havia
isto, ao contrário de ser um proble- forma, dava-se muita importância os índios do Montoya, que foram
ma, é justamente o que deixa tudo ao estar lá, ter a posse da terra era observados e descritos por ele, havia
mais interessante: o pesquisador fazer-se presente nela e, por isso, o Montoya dos índios – que, infeliz-
pode investigar estes momentos em manter gente nas fronteiras era fun- mente, não sobreviveu em registros,
que a escrita jesuítica deixa apare- damental. E aí entravam os índios.
cer os resíduos da perturbação que o Muitas reduções, principalmente
contato provocou no autor do relato. no lado espanhol, guarneciam esses região dos Sete Povos das Missões se recusaram a
abandonar a região e se mudar para o outro lado
limites territoriais e a história da do Rio Uruguai, os conflitos tiveram início e se es-
É o que eu e o professor e pesqui- tenderam até 1756. Para saber mais, leia a edição
Colônia do Sacramento2 ou a Guerra 348 da IHU On-Line, de 25-10-2010, A experiên-
sador argentino Carlos Paz1 estamos cia missioneira: território, cultura e identidade, dis-
Guaranítica (1753-1756)3 são exem-
desenvolvendo com o nome de escri- ponível em http://bit.ly/ihuon348. Veja também o
livro A experiência missioneira: território, cultura
ta afetada, ao observarmos que mui- e identidade (São Leopoldo: Casa Leiria, 2012).
2 Colônia do Sacramento: é uma cidade do Uru- (Nota da IHU On-Line)
tos jesuítas, principalmente em seus guai, capital do departamento de Colônia. Tem 4 Concílio de Trento: realizado de 1545 a 1563,
origem na antiga cidade de Colônia do Santíssimo foi o 19º concílio ecumênico. Foi convocado pelo
Sacramento, fundada em 22 de janeiro de 1680 Papa Paulo III para assegurar a unidade da fé (sa-
1 Carlos D. Paz: argentino, doutor em História por Manuel Lobo, então Governador da Capitania grada escritura histórica) e a disciplina eclesiásti-
pela Universidad Nacional del Centro de la Pro- Real do Rio de Janeiro, a mando do Império Por- ca, no contexto da Reforma da Igreja Católica e a
vincia de Buenos Aires, na Argentina. Realizou tuguês no século XVII. A área onde localiza-se a reação à divisão então vivida na Europa devido à
pós-doutorado em Sociologia, no Brasil, pesqui- fundação portuguesa faz parte do Centro Históri- Reforma Protestante, razão pela qual é denomi-
sando os modos guaranis de administração da co, reconhecido pela Unesco como Patrimônio da nado como Concílio da Contrarreforma. (Nota da
alteridade. Atualmente, pesquisa as transforma- Humanidade. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)
ções cosmopolíticas dos grupos chaquenhos e a 3 Guerra Guaranítica: conjunto de conflitos vio- 5 Antonio Ruiz de Montoya (1585-1652): foi um
construção e circulação de uma ideia de barbárie lentos que envolveram índios Guarani e tropas sacerdote jesuíta, missioneiro e escritor peruano.
realizada pela Companhia de Jesus. Nessa edição, espanholas e portuguesas. O embate se deu após Dedicou grande parte de sua vida ao trabalho
ele assina artigo em que reflete sobre o conceito a assinatura do Tratado de Madri, em 1750, que com as tribos indígenas guaranis. Sua obra tratou
de missão para a Companhia de Jesus. (Nota da estabelecia outros limites para as terras de Portu- de temas espirituais e da gramática guarani. (Nota
IHU On-Line) gal e Espanha. Como os Guarani que habitavam a da IHU On-Line)

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

mas que talvez possa ser percebido Daí que, pela Constituição de 1988, que está entranhada no senso co-
nos próprios registros do Montoya. as Terras Indígenas são, antes de mum. E por isso é mais fácil vender
Parece confuso, mas é só observar qualquer coisa, propriedade da notícias sensacionalistas ou ensinar
como confissões, batismos, extrema União, que dá aos povos indígenas a conteúdos desatualizados, pois in-
-unções, missas e os textos de cate- permissão para as habitar e utilizar felizmente este tipo de informação
quese tiveram que se adaptar quando para suas atividades. Esta foi uma tem fácil aceitação por uma opinião
postos em prática entre os índios. forma de tentar encontrada pelo Es- pública que desde sempre viu os po-
tado para sanar um problema de dí- vos originários como atrasados ou
vida histórica com os povos originá- empecilhos ao desenvolvimento.
IHU On-Line – Que relações rios tentando diminuir ao máximo
podemos estabelecer entre a Por consequência, indígenas só apa-
possível conflitos com proprietários
inabilidade de reconhecer o recem nas manchetes dos jornais, em
de terra ou a sociedade envolvente.
passado de povos originários e reportagens na TV, em tema de músi-
Mas sabemos que não diminui.
as resistências a demarcações cas ou em alegorias de escolas de sam-
Os conflitos giram em torno da len- ba representando o que há de mais
de terras indígenas hoje?
tidão nas demarcações e homologa- atrasado e estagnado no país – ou
Guilherme Galhegos Felippe ção das Terras, da não aceitação, por tomados por um caráter romantizado
– Na nossa sociedade, dá-se muita parte de produtores rurais, de que e irreal como se o seu estar na mo-
importância para a posse efetiva da a expansão do desmatamento para dernidade fosse um erro anacrônico.
propriedade. Se você tem uma terra soja ou gado tem como limitadores Pensar em um protagonismo indígena
e pode provar com documentos que as reservas indígenas e esta inabili- hoje em dia é ter que superar estas vi-
ela é sua, o Estado irá garantir o seu dade em reconhecer os índios como sões, porque a representatividade in-
direito à propriedade. É um siste- habitantes primevos deste território. dígena em iniciativas políticas, ações
ma que funciona muito bem, pois governamentais ou posicionamento
garante o uso do direito e das leis social é completamente ineficiente
para assegurar que nada de errado IHU On-Line – Quais os maiores
ou nula – e não por um desinteresse
aconteça. Mas falha quando envol- desafios para o reconhecimento
deles, que cada vez mais estão fazen-
do protagonismo indígena hoje?
30 vemos os povos originários. O sen- do cursos superiores para, depois de
tido de posse e propriedade passa a Guilherme Galhegos Felippe formados, voltarem às suas aldeias
ter um caráter quase abstrato, pois – Certamente são desafios relacio- e poderem atuar como advogados,
depende do consentimento de todas nados à péssima educação formal agentes da saúde, professores... É um
as partes para que se regularizem oferecida nas escolas e à grande problema quase que exclusivamente
terras e se permita o uso delas pe- quantidade de informações falsas ou nosso, de um preconceito “congêni-
las populações que, historicamente, tendenciosas que circulam rapida- to” da nossa sociedade, que nunca vai
estavam lá antes de qualquer não mente, pois fazem eco a uma visão admitir representantes indígenas em
indígena chegar. preconceituosa e discriminatória altos cargos políticos, por exemplo.■

16 DE OUTUBRO | 2018
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A escrita jesuítica desvela narrativas


da história da América colonial
María Salinas analisa documentos produzidos pela Companhia como
importantes fontes com outros olhares que permitem novas descobertas
João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas

Q
uem estuda o período colonial que qualquer documento que venha de
não pode abrir mão de ter en- diferentes atores coloniais neste con-
tre suas fontes de consulta e texto”, pontua. E desafia: “o trabalho
pesquisa documentos produzidos pelos do historiador implica transitar pelo
padres jesuítas. Mais do que relatos de processo de crítica da fonte e valorizar
ações em missões, focadas na conver- os dados e contribuições que oferecem
são, esses registros vão relevando mo- os ditos documentos”.
dos de vida tanto na américa espanhola A professora também destaca que
quanto na portuguesa. “Os documentos muito ainda há para se conhecer sobre
jesuítas, os escritos produzidos não só
esse período, e as recentes abordagens
pelos missionários, mas também pelos
multidisciplinares têm contribuído. Por
estudiosos da Companhia, são relevan-
isso, defende que “é necessário conti-
tes como fontes históricas que contri-
nuar com a revalorização da história 31
buem para os estudos do período colo-
missioneira, conscientizando os gover-
nial americano”, enfatiza a historiadora
nos dos povos atuais, antigo território
María Laura Salinas. Para se ter ideia,
de várias das missões, sobre a proteção
muitos relatos sobre a natureza, a ge-
do patrimônio, a conservação dos res-
ografia e as populações originárias dos
tos e a cultura local, que se remete à ex-
primeiros anos do Brasil no período
periência missionária”.
colonial, e até pré-colonial, têm como
autores esses religiosos. O que tem María Laura Salinas é doutora
feito muitas pessoas questionarem, já em História pela Universidad Pablo
que são narrativas de um sobre outros, de Olavide, em Sevilha, instituição em
movidas pelo desejo de expandir a cris- que também é diplomada em Estudos
tandade. “É notório que as narrativas Avançados em História Moderna. Ain-
jesuítas manifestaram um objetivo cla- da é mestra em História da América
ro. No entanto, podemos estabelecer pela Universidad Internacional de An-
uma diferenciação entre essas fontes de dalucía, também na Espanha, e pesqui-
acordo com o gênero e o momento em sadora independente junto ao Consejo
que foram redigidas”, aponta. Nacional de Investigaciones Cientificas
Na entrevista a seguir, concedida por y Técnicas - Conicet. Atua também
e-mail à IHU On-Line, Salinas ainda como professora na Facultad de Hu-
detalha como novas abordagens sobre manidades da Universidad Nacional
esses documentos têm superado essa del Nordeste, na Argentina. Entre seus
perspectiva de parcialidade e, com isso, livros publicados, destacamos Domina-
revelado muitas nuances antes desco- ción colonial y trabajo indígena. Un
nhecidas sobre o período colonial. “O estudio de la encomienda en Corrien-
material produzido pelos jesuítas é, tes colonial (Ceaduc, 2010).
sem dúvida, parcial, da mesma forma Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a histo- são as mudanças mais signifi- tido, que revisões historiográfi-
riografia vem compreendendo cativas nos estudos históricos cas foram feitas sobre esse as-
as missões jesuíticas? Quais acerca das missões? Nesse sen- sunto no decorrer do tempo?

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

María Laura Salinas – A visão IHU On-Line – Que impor- original sobre algumas questões
atual sobre a história das missões tância têm os escritos da Com- que contribuem para ressignifi-
jesuíticas não é a mesma de algu- panhia de Jesus para a com- car os estudos realizados. A es-
mas décadas atrás. A importância posição da história do período crita tem sido um dos pilares nos
que o tema adquiriu, em geral, a colonial na América? quais a Companhia de Jesus se
valorização de seus vestígios monu- apoiou. Desde os tempos de Iná-
María Laura Salinas – Na
mentais, o processo analítico que a cio de Loyola1, era premissa básica
mesma linha de abordagens inter-
evolução de sua história sofreu e as que todos os jesuítas mantivessem
diversas perspectivas teóricas e me- disciplinares a que nos referimos
anteriormente, a partir de dife- correspondência frequente, infor-
todológicas pelas quais seu estudo mando sobre as atividades realiza-
se submete, nos abre um panora- rentes pontos de vista, as fontes
desempenharam um papel funda- das e a descrição dos lugares visi-
ma significativo para sua aborda- tados. Essa circunstância produziu
gem e para o surgimento de novas mental, abrangendo não apenas
os documentos históricos, mas no Novo Mundo, por exemplo, um
questões. A historiografia sobre as material documental abundan-
Missões superou embates, contro- também os conjuntos de estátuas
e restos ainda menores, que cons- te que foi elaborado no âmbito da
vérsias, momentos de rispidez e necessidade urgente de contar,
polêmica, sem que estas peculiari- tituem testemunhos-chave para
repensar a missão e seu funciona- narrar e relatar suas experiências
dades conseguissem dissipar o inte-
mento. As novas perguntas, que missionárias. Por mais que o inte-
resse pelas mesmas.
são feitas às antigas fontes jesuíti- resse estivesse centrado na ques-
As missões jesuíticas foram enten- cas, vistas nos primeiros estudos, tão da evangelização, a partir de
didas pela historiografia a partir de a partir de abordagens vinculadas uma perspectiva etnográfica, eles
diversos olhares e perspectivas rela- apenas à evangelização ou às ativi- também descreveram as diferentes
cionadas a diferentes contextos que dades da Companhia, colocam em etnias com as quais estabeleceram
foram acompanhando esse processo voga a relação guarani-jesuítica no vínculos em solo americano.
de construção historiográfica. Des- caso dos últimos tempos das mis-
de o final do século XIX, ao princí- Os padres da Companhia de Jesus
sões paraguaias e a ação indígena contribuíram para a produção de
32 pio e meados do século XX, houve como variável para ressignificar os
períodos de indiferença, discussão um grande conjunto de obras que
estudos missionários. incluíam tanto a crônica eclesiás-
e debate sobre as missões e a obra
dos jesuítas, sucedidos por momen- Os documentos jesuítas, os escritos tica quanto a vida política e social
tos de revalorização e resgate da produzidos não só pelos missioná- dos distritos americanos, às quais
experiência missionária no mundo rios, mas também pelos estudiosos da se somaram muitíssimas monogra-
jesuíta Guarani. As inúmeras pu- Companhia, são relevantes como fon- fias dedicadas aos povos indígenas
blicações divulgadas nas últimas tes históricas que contribuem para os ou a regiões específicas, o que enri-
décadas como resultado de diversas estudos do período colonial america- queceu sua contribuição à historio-
pesquisas contribuíram para a re- no, em geral. Em contraste com outra grafia2. Deve-se notar que a maior
flexão e problematização de temas documentação oficial operante em quantidade de documentação vem
que talvez tenham sido estudados diferentes arquivos americanos, estes dos próprios jesuítas. Observa-se
sob uma ótica e hoje são revisitados escritos – Relatórios, Cartas Ânuas, um desequilíbrio em relação à pro-
com novas perguntas. registros demográficos, descrições, dução de fontes escritas da socie-
relatos da Companhia, entre outros dade colonial e, obviamente, dos
A abordagem interdisciplinar
– são escritos necessários para conti- próprios grupos étnicos envolvidos
que começou a ser realizada nas
nuar contribuindo para a construção no processo de evangelização. No
missões nos últimos tempos tal-
da história dos séculos XVII e XVIII, entanto, os documentos dos jesu-
vez seja uma das mudanças que
no espaço americano. ítas também possuem diferentes
contribuiu em maior medida para
ampliar essa perspectiva e forne- características de acordo com seus
ceu linhas transversais de análise propósitos, sua origem, quem os es-
IHU on-Line – Em que pontos creve e o contexto de produção.
que enriqueceram as abordagens. os documentos da Companhia
O interesse da antropologia, da ar- de Jesus são diferentes dos de 1 Inácio de Loyola (1491-1556): fundador da Companhia
queologia e da linguística – apenas outras narrativas do período de Jesus, a Ordem dos Jesuítas, cuja missão é o serviço da
fé, a promoção da justiça, o diálogo inter-religioso e cul-
para citar algumas das disciplinas
colonial, seja de outras ordens tural. A Ordem teve grande importância na Reforma Cató-
que fizeram contribuições signifi- lica do século XVI. Atualmente a Companhia de Jesus é a
religiosas ou de pessoas mais maior Ordem religiosa católica no mundo. Para saber mais
cativas nos últimos tempos – des- sobre Loyola, acesse a edição 186 da IHU On-Line, dispo-
vinculadas ao poder temporal? nível em http://bit.ly/1IBwk2U. Inácio de Loyola foi cano-
tacaram novos tópicos de pesqui- nizado em 12 de março de 1622 pelo Papa Gregório XV.
sa e geraram novas respostas que María Laura Salinas – A do- Festeja-se seu dia em 31 de julho. (Nota da IHU On-Line)
2 Mais sobre o assunto em: Salinas, María Laura, “Misio-
colocam a temática missionária na cumentação jesuítica cumpriu um neros e historiadores”. Maeder, E.; Salinas, M. L.; et al. Entre
agenda acadêmico-científico, cul- papel preponderante, fornecendo los jesuitas del Gran Chaco. Compilación de Joaquín Ca-
maño y otras fuentes jesuíticas del siglo XVIII. Buenos Aires,
tural, turística e governamental. descrições, narrativas e um olhar Academia de Ciencias.pp. 19-50. (Nota da entrevistada)

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IHU On-Line – Apesar de ter forneciam dados sobre sua interação interpretados e incorporados como
organizado e trazido muitas in- com as sociedades indígenas. parte de um conhecimento necessá-
formações sobre o Novo Mun- rio, que deve ser parte de quem rea-
O material produzido pelos jesuí-
do, como cartas, crônicas e di- liza o processo de conversão.
tas é, sem dúvida, parcial, da mesma
ários de viagem dos jesuítas,
forma que qualquer documento que O conhecimento da língua é um as-
esse material é visto por muitos
venha de diferentes atores coloniais pecto-chave, pois sem a incorporação
como parcial a partir do mo- de tal conhecimento seria impossível
neste contexto (funcionários, oficiais,
mento em que revelam narrati- pensar sobre os processos de evange-
encomenderos, vizinhos). O trabalho
vas do católico europeu diante lização, e por isso as dificuldades em
do historiador implica transitar pelo
de um “outro” desconhecido. algumas regiões como a do Chaco5,
processo de crítica da fonte e valo-
Você concorda com esse tipo de em que a língua é conhecida por al-
rizar os dados e contribuições que
leitura? Como superar esse im- guns poucos missionários que estão
oferecem os ditos documentos em di-
passe fazendo uma leitura crí- se movendo e substituindo nessas
tica e sóbria dos documentos? álogo com outros escritos da época e
com a bibliografia que foi previamen- missões. A natureza, os animais, as
María Laura Salinas – A histo- te analisada para temas semelhantes. práticas de cura, os costumes, embo-
riografia atual tem caracterizado de ra seja a aspiração dos missionários
diversas maneiras o corpus docu- erradicar, são amplamente conheci-

“Os
mental produzido pela Companhia das por eles, de modo que podemos
de Jesus, uma dessas visões mais crí- afirmar que há uma influência notá-
ticas defende que essas fontes ape-
nas refletem “um discurso triunfa-
documentos vel de ditos saberes sobre os jesuítas.

lista do trabalho apostólico da Igreja


no Novo Mundo”3, enfatizando prin-
jesuítas são IHU On-Line – Quais são as
cipalmente a tarefa missionária e
destacando a vontade de sacrifício
relevantes principais semelhanças e dife-
renças na ação dos jesuítas na
do sujeito missioneiro. Portanto, a
partir dessa perspectiva, essas fon-
como fontes América Espanhola e na Amé-
rica Portuguesa? Como essas 33
tes não possuíam elementos para históricas que características aparecem nos
escritos?
análise histórica e antropológica,
pois eram meros instrumentos de contribuem María Laura Salinas – Os jesu-
propaganda de sua tarefa evangélica
na Europa. para os estudos ítas na América portuguesa chegam
cedo (no final do século XVI) se com-
É notório que as narrativas jesuítas
manifestaram um objetivo claro. No
do período paramos com a instalação das pri-
meiras missões do Paraguai (1609-
entanto, podemos estabelecer uma colonial 1610). Porém, em ambos os casos
são agentes importantes do conhe-
diferenciação entre essas fontes de
acordo com o gênero e o momento americano” cimento geográfico e territorial que
avançam no sertão, na floresta ou
em que foram redigidas. Além das
na selva. Por outro lado, os colégios
fontes geradas como uma comunica-
e outras casas formaram o núcleo
ção regular entre os povos e a Ordem
IHU On-Line – A partir dos es- inicial de vilas e cidades brasileiras,
na Europa ou as primeiras crônicas e
critos e documentos da Compa- além de contribuírem também para
testemunhos, houve obras que per-
nhia, como podemos entender que o caso hispânico fosse o centro
mitiram explicar as especificidades
qual foi a influência da cultura educativo para os filhos das elites
dos povos ameríndios, o que locali- daquelas cidades. Não há grandes
zou os missionários como verdadei- e do conhecimento indígena so-
bre os jesuítas? diferenças entre as missões que a
ros “antropólogos avant la lettre”4, Ordem possuía em diferentes locais,
pois em seus escritos eles transfor- María Laura Salinas – Os docu- embora a experiência dos 30 povos
maram suas experiências em etno- mentos jesuíticos descrevem o mundo oferecesse conotações particulares
logias comparativas ou relatos pes- indígena de maneira muito completa, no caso da América espanhola.
soais de diários de campo, nos quais a princípio de maneira detalhada,
a partir dos primeiros contatos e da Em tempos posteriores à expulsão,
3 Galaxis Borja González. “As narrativas missionárias e o
necessidade de conhecer o “outro”, é possível encontrar diferenças, se-
surgimento de uma consciência-mundo na imprensa je-
suíta alemã, no século XVIII”. Em: processos. Revista Equa- mas o número de descrições diminui
toriana de História. II Semestre, Quito.2012 pp. 178. (Nota 5 Chaco: também conhecido como Gran Chaco (do qué-
da entrevistada) na medida em que o mundo indígena chua chaku, “território de caça”), é uma das principais
4 Guillermo Wilde. “Las fuentes en el contacto. Escritura y regiões geográficas da América do Sul. Possui aproxima-
poder en el contacto colonial”. En: Fuentes indígenas en passa a ser conhecido. No entanto, damente 1.280.000 km2 e abrange partes dos territórios
la Sudamerica colonial y republicana. Dossier. Corpus. Ar- há interesse em conhecer costumes, da Bolívia, Argentina, Paraguai e Brasil. Caracteriza-se por
quivos virtuais da alteridade americana. Vol. 3 N° 1. (Nota muitos ecossistemas e climas distintos, que variam dos
da entrevistada) práticas e saberes indígenas que são pampas a florestas e semiárido. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

gundo o olhar de alguns autores, a IHU On-Line – Como o domí- historiografia, existem setores que
partir da medição da produção dos nio colonial foi estabelecido se recusam a pensar sobre essa es-
escritos de ambos os grupos de jesu- na América a partir do século cravidão pela via jurídica, que con-
ítas. Mesmo que a formação dos je- XVI? A ação das missões jesuí- sidera o indígena como vassalo da
suítas espanhóis e portugueses seja ticas reconfigura essa domina- coroa. No entanto, hoje em dia é
semelhante, a produção literária ção? Como? necessário aprofundar-se na práxis
dos jesuítas portugueses é menor colonial e nas formas de domina-
María Laura Salinas – A domi-
em quantidade e, consequentemen- nação colonial é configurada a par- ção e servidão subjacentes a outros
te, em qualidade. A razão está nas tir do século XVI de várias formas, modelos, que são impossíveis de
diferentes condições sob as quais entre elas a submissão, a violência visualizar neste contexto.
os políticos portugueses (Pombal6) e a conquista de territórios e povos, Nos documentos jesuítas, é mais
e espanhóis (conde de Campoma- que parecem ser o denominador co- difícil identificar diretamente essas
nes7, principalmente) planejaram a mum. A presença dos religiosos da práticas servis, mas, como men-
expulsão de seus respectivos jesu- Companhia e de outras ordens im- cionado na pergunta, uma noção
ítas8. Antes da expulsão de 1767, o põe práticas de dupla submissão: ao de trabalho pode ser analisada sob
povoado de Hervás, por exemplo, espanhol e ao frade, em alguns con- essa perspectiva.
registrou o assédio do marquês de textos. O religioso, com suas formas
Pombal sobre os mais importantes moderadas, propõe novas práticas
escritores jesuítas, como a conhe- de dominação que impõem a vida
cida perseguição ao escritor e líder
dos jesuítas portugueses expulsos,
em comunidade, sedentária, agríco- “A escrita
tem sido um
la e artesanal. No início do século
Manuel de Azevedo. Também cons- XVII, os acordos entre o provincial
ta nos registros de Hervás que a ex-
pulsão de 1759 interrompeu a edi-
Diego de Torres9 e o visitador Fran-
cisco de Alfaro10 sobre a isenção do dos pilares
nos quais a
ção do Dicionário Latino-Português tributo para os primeiros anos, dis-
do filólogo, historiador e escritor tanciam o índio das missões da en-
34 José Caeiro.
Da mesma forma, o curso de filo-
comienda e de formas servis sujei-
tas aos espanhóis, e isto pressupõe, Companhia
sofia do filósofo e orador Manuel
Marques, residente em Urbania,
sem dúvida, um modelo diferente
de dominação.
de Jesus se
também foi interrompido: “Es- apoiou”
creveu: era um Curso de filosofia
IHU On-Line – Como enten-
do qual, ao saírem os jesuítas dos
der o processo de escravização
domínios portugueses, havia três
indígena a partir dos documen-
volumes prontos para serem im- tos da Companhia? Essa ideia IHU On-Line – Quais são os
pressos”. Sem dúvida este curso foi de “escravização” torna-se uma desafios para entender as mis-
enquadrado na tendência filosófica noção de “trabalho”, especial- sões jesuíticas nos complexos
dos jesuítas desta época, que foi, mente nas reduções? Como? processos políticos, econômi-
certamente, o ecletismo. Os escritos
María Laura Salinas – A ideia cos, sociais e culturais da Amé-
dos expulsos da América Hispânica
da escravidão indígena é uma rica colonial, indo além do es-
tiveram melhor sorte, constituindo
questão que está sendo abordada pectro religioso?
uma valiosa historiografia do exílio
com contribuições de conhecimento em maior escala nos últimos anos, María Laura Salinas – As mis-
científico que merecem ser consul- com resultados muito bons. Da sões estão sendo abordadas com
tados para toda pesquisa. novos olhares, fontes e perguntas.
9 Diego de Torres Bollo (1551-1638): primeiro provincial
do Paraguai. Natural de Villalpando (Zamora), entrou na Não obstante, existem diversos ca-
6 Marquês de Pombal (1699-1782): Sebastião José de Companhia de Jesus em 1571, na província de Castella. minhos para continuar. A partir de
Carvalho e Melo, nobre e estadista português. Foi secre- Dez anos depois, já ordenado, chegou em Lima, Peru. Tra-
tário de Estado do Reino durante o reinado de D. José I balhou em Cuzco, Quito e Potosi, até que em 1600 foi elei- uma perspectiva acadêmico-cien-
(1750-1777), sendo considerado, ainda hoje, uma das to procurador provincial nas cortes de Madri e Roma. No
figuras mais controversas da História Portuguesa. Leia a retorno, foi designado a fundar a vice-província do Novo tífica, segue a problematização e a
edição 220 dos Cadernos IHU ideias intitulada O Marquês Reino de Granada (Colômbia) e, em 1607, foi fundador
de Pombal e a Invenção do Brasil, de autoria de José Edu- e primeiro provincial da Província Jesuítica do Paraguai.
resolução de hipóteses sobre as prá-
ardo Franco, disponível em https://goo.gl/CSRsmq. (Nota (Nota da IHU On-Line) ticas, saberes, atores, simbologia
da IHU On-Line) 10 Francisco Alfaro: foi um jurista que nasceu em Sevi-
7 Conde de Campomanes (1723-1802): Pedro Rodríguez lha (Espanha), em 1575, e que morreu em Madri (Espanha) da missão, entre outros temas. O
de Campomanes, político, jurista e economista espanhol.
Apontado como um adepto do despotismo esclarecido,
em data desconhecida. Tornou-se notável por redigir or-
denanças em favor dos povos nativos da região da Bacia
cruzamento de variáveis ​​e a trans-
promoveu o comércio, opôs-se aos monopólios dos grê- do Rio da Prata. Em 1611, iniciou suas atividades como versalidade de temas supõem um
mios e da Mesta (a poderosa confederação dos pastores) visitador, a partir das quais chegou à conclusão de que
e apoiou a expulsão dos jesuítas e desamortização dos deveria ser extinto o Instituto que obrigava os povos na- exercício metodológico que deve
seus bens. (Nota da IHU On-Line) tivos a prestar serviços pessoais aos colonizadores (enco-
8 Astorgano Abajo, Antonio. “Esbozo de la literatura de los miendas). Essa tese também era defendida pelos jesuítas
continuar sendo realizado.
jesuitas expulsos”. História Unisinos 13(3):265-283, Setem- de Tucumán, que haviam suprimido as encomiendas em
bro/Dezembro 2009. (Nota da entrevistada) seu favor. (Nota da IHU On-Line) Do ponto de vista cultural, é ne-

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cessário continuar com a revalo- María Laura Salinas – As opinião, estas Jornadas são as mais
rização da história missioneira, Jornadas Internacionais sobre as representativas, porque reúnem
conscientizando os governos dos Missões Jesuíticas foram espaços pesquisadores que há décadas es-
povos atuais, antigo território de significativos de construção histo- tudam essas questões.
várias das missões, sobre a prote- riográfica, reflexão, acordos e ca- O interessante é que eles apre-
ção do patrimônio, a conservação maradagem entre pesquisadores sentam uma evolução em suas
dos restos e a cultura local, que se das Missões. Desde a primeira con- abordagens. Embora o foco esteja
remete à experiência missionária. ferência realizada em 1984 na ci- nas Missões Jesuíticas, incorpo-
O conhecimento dessa história por dade de Resistência, em Chaco, na rou-se uma perspectiva analítica
parte dos atuais habitantes do es- Argentina, esta reunião se conso- global que nos permite visualizar
paço dessas antigas missões seria lidou e vem crescendo em número a missão em um contexto muito
fundamental para a construção de de pesquisadores e temáticas abor- mais amplo, que transcende fron-
identidades regionais. dadas. Embora existam diversas teiras e nos permite discutir con-
reuniões científicas que abordem, ceitos, visualizar problemas de
entre suas principais temáticas, as pesquisa e compartilhar perspec-
IHU On-Line – Deseja acres- missões ou a Companhia de Jesus tivas sobre os estudos que estão
centar algo? em relação às missões, na minha sendo realizados.■

35

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

Processos migratórios dos séculos XVI e


XVII promovem novos estatutos sociais
Para Erneldo Schallenberger, os contatos entre mundos distantes foram
marcados pela imposição cultural, mas também possibilitaram
outras experiências de trabalho e relações comunitárias
João Vitor Santos

N
ão se pode apagar a mácula do na entrevista concedida por e-mail à
que foi a imposição cultural fei- IHU On-Line. “Fundamentada em ba-
ta pelos europeus aos indígenas ses que privilegiaram as relações fami-
americanos, destituindo muitas formas liares e coletivas da organização social,
de vida para sugar da colônia tudo que a missão introduziu formas cooperadas
era possível para alimentar a metrópo- de trabalho, com a preservação da reci-
le. O professor Erneldo Schallenberger procidade, visando trazer o bem-estar e
lembra que as ações dos jesuítas em elevar a autoestima dos índios para pro-
reduções compunham esse esquema, mover as mudanças socioculturais dese-
mas, apesar de muito crítico dessa ló- jadas”, destaca.
gica colonizadora, reconhece que as
Erneldo Schallenberger é doutor
missões “desvelaram e aproximaram
em História pela Pontifícia Universi-
diferentes culturas e comportaram ex-
36 dade Católica do Rio Grande do Sul -
periências societárias que, ao seu tem-
PUCRS, com estágio pós-doutoral em
po, deram lugar à formulação de novos
História, Cultura e Poder pela Univer-
estatutos sociais”. E acrescenta: “a ten-
tativa de incorporação de povos e cultu- sidade Federal do Paraná - UFPR. Atu-
ras, mesmo que pela submissão a uma almente é professor da Universidade
cultura dominante, abriu o horizonte Estadual do Oeste do Paraná - Unioes-
para a discussão de novos paradigmas te. Entre suas publicações, destacamos
e para a formulação de novas formas de Missões do Guairá: espaço e territo-
organização social, a exemplo do socia- rialidade (In: Regina Maria d’Aquino
lismo e do social-cristianismo”. Fonseca Gadelha. (Org.). Missões Gua-
ranis: impacto na sociedade moderna.
Schallenberger reconhece que a “estra-
São Paulo: Educ/FAPESP, 1999), A
tégia da conquista atribuiu aos jesuítas
integração do Prata no Sistema Colo-
a missão de apaziguar as colônias e atu-
nial: colonialismo interno e missões je-
ar no meio dos índios”, mas lembra que
suíticas do Guairá (Toledo: EdT, 1997.
disso surgiu uma necessidade de se estar
v. 1) e Associativismo cristão e desen-
entre os índios e, mais tarde, escravos
volvimento comunitário: imigração
africanos. E é nesses contatos que os re-
e produção social do espaço colonial
ligiosos atuam como articuladores de re-
no sul do Brasil (Cascavel: Edunioeste,
des que, se não preservavam as culturas
originais, ao menos propunham outras 2009).
formas de vida levando em conta o bem Confira um trecho da entrevista.
comum. “Muito cedo os missionários da A versão completa será publicada numa
Companhia desaprovaram os mecanis- das publicações do Instituto Humani-
mos da conquista ibérica”, acrescenta, tas Unisinos – IHU.

IHU On-Line – Como compre- dida a associação com o poder cruz e a espada representam os
ender a concepção de Igreja temporal influenciou a ação símbolos maiores da conquista dos
que a Companhia de Jesus traz das missões jesuíticas? povos ameríndios pelos segmentos
para a América? Em que me- Erneldo Schallenberger – A hegemônicos da sociedade ibérica,

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“A cruz e a espada representam


os símbolos maiores da
conquista dos povos ameríndios
pelos segmentos hegemônicos
da sociedade ibérica”

como muito bem assinalou Ruggie- à colonizadora. Detentora do po- panhia de Jesus assumiu a missão de
ro Romano1 em sua obra Os Meca- der simbólico, fundado no capital converter os povos à fé cristã, sem-
nismos da Conquista Colonial2. O religioso, a Igreja enquanto vetor pre fiel às suas constituições, que
processo da conquista da América ideológico do Estado teve a função propunham abnegação, disciplina,
Latina foi desencadeado à luz do es- de exercer o controle sobre os di- organização rígida e a obediência ao
pírito da Cristandade e sob o regime ferentes povos e culturas que ha- Papa. Os membros da Companhia de
do padroado3. A Cristandade esteve bitavam as colônias, para manter o Jesus estavam diretamente subordi-
presente na sociedade eurocristã status quo da ordem social, política nados ao seu Provincial Geral e aos
durante um longo período histórico, e moral estabelecida. Desta forma, provinciais locais por ele nomeados.
que se estendeu por dezesseis sécu- a Igreja colonial contribuiu muito Não havia uma relação intrínseca en-
los (XV-XIX) e marcou a relação de para a manutenção da dominação, tre o poder temporal dos estados im-
poder entre a Igreja e a sociedade ci- da subordinação social e cultural periais e o poder simbólico religioso
vil. Na América Latina, com a chega- dos povos nativos e da sociedade dos jesuítas. Mesmo que seguindo os
da dos espanhóis e dos portugueses, emergente. Não se tratava tão so- ditames da legislação emanada dos
37
os impérios da conquista passaram mente da missão de converter os impérios coloniais, os inacianos de-
a exercer o controle sobre a Igreja povos indígenas ao cristianismo, viam obediência cega a Roma, o que
através do regime do padroado, de- mas, do mesmo modo, da sua su- reflete o caráter da universalidade da
rivado do acordo entre o papa e os bordinação política e da sua explo- Igreja Católica.
reinos de Portugal e da Espanha, ração econômica.
mediante o compromisso de cristia- Norteados pela objetividade da
nizar as terras a serem conquistadas. doutrina e pela objetividade do dis-
O papel da Companhia
cernimento, constituíram-se em
Como braço secular da Igreja, os agentes de atuação direta na socie-
A Companhia de Jesus foi criada
impérios ibéricos passaram a in- dade e na política colonial. Eram em
em 1534 e aprovada pelo papa Paulo
terferir diretamente na organização muitas situações coniventes com as
III4 pela Regimini Militantis Ecclesiae5,
e na vida eclesiástica das colônias, autoridades, seguindo os interesses
em 1540, em um contexto de signi-
nomeando bispos, vigários, pagan- postos pelo sistema colonial. Man-
ficativas transformações políticas,
do seus soldos e atribuindo funções tinham propriedades e escravos e
econômicas, sociais e culturais que
que, em muitas circunstâncias, so-
contribuíram para que a Igreja Ca- combatiam os “infiéis”, tidos como
brepunham a ação evangelizadora
tólica mudasse a sua postura e a sua bárbaros e pagãos quando não cor-
1 Ruggiero Romano (1923-2002): historiador italiano, atuação em meio à sociedade. A Re- respondiam ao ideal societário e re-
discípulo de historiadores de grande influência na Escola forma Protestante, que questionava ligioso por eles propagado.
de Annales como Fernand Braudel Nino Cirtese e Lucien
Febvre. Entre suas obras mencionamos Entre duas crises: profundamente a estrutura e as prá- Sob o lema “Ad Majorem Dei Glo-
a Itália da Renascença (1971), A Europa entre duas crises
(1980), A história da economia italiana (1991), As conjun- ticas da Igreja Católica, tornou-se o riam”, os soldados de Cristo se esta-
turas opostas. A crise do século XVII na Europa e América seu grande desafio. Emergida em um beleceram na América para atuarem
(1992) e Braudel e nós (1995), dedicado ao historiador
francês. (Nota da IHU On-Line) ambiente contrarreformista, a Com- prioritariamente na ação missioná-
2 São Paulo: Perspectiva, 2015. (Nota da IHU On-Line)
3 O padroado foi criado através de sucessivas e gradativas ria, na evangelização e na educação
bulas pontifícias, como resultado de uma longa negocia- 4 Papa Paulo III (1468-1549): 220º Papa Católico, assumiu
ção da Santa Sé com os Reinos Ibéricos, Portugal e Espa- o papado entre 1534 até sua morte. Lançador das bases dos povos. Controvérsias e conflitos
nha. Por meio destas bulas, que assumiram valor jurídico da Contrarreforma, aprovou a criação da Companhia de
no período da expansão ultramarina, a Santa Sé delegava Jesus de Inácio de Loyola em 1540. Convocou o Concílio marcaram a atuação dos jesuítas nas
aos monarcas católicos a administração e organização de Trento em 1545. Conhecido também pela promulgação colônias. Com estratégias diferen-
da Igreja Católica em seus domínios conquistados e por da bula Veritas Ipsa, a favor da liberdade dos índios das
conquistar. Em contrapartida, o rei padroeiro, que arreca- Américas. (Nota da IHU On-Line) ciadas em relação à evangelização e
dava os dízimos eclesiásticos, deveria construir e prover 5 Regimini militantis Ecclesiae: foi a bula papal promulg­
as igrejas, com todo o necessário para o culto, nomear os ada pelo Papa Paulo III em 27 de setembro de 1540, que à educação dos nativos e dos grupos
párocos por concursos e propor nomes de bispos, sendo deu uma primeira aprovação à Companhia de Jesus, tam- étnicos da sociedade colonial em for-
estes depois formalmente confirmados pelo Papa. (Nota bém conhecida como jesuítas, mas limitou o número dos
da IHU On-Line) seus membros a sessenta. (Nota da IHU On-Line) mação, os jesuítas travaram embates

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

sérios com as autoridades constitu- da cultura dos diferentes povos na- grande espaço cultural não identi-
ídas, sempre visando manter o seu tivos, buscando uma espiritualidade ficado. Os jesuítas trataram logo de
poder temporal e a sua influência encarnada numa linguagem acessí- mapeá-lo. Em seus ensaios cartográ-
social e cultural. vel pela qual Deus poderia ser expe- ficos reconheceram territórios habi-
rimentado por seus interlocutores. tados por diferentes povos, com cul-
A apropriação das diferentes línguas turas, línguas e costumes distintos.
IHU On-Line – O contato dos A compreensão desse espaço plural
dos ameríndios, convertida em di-
povos indígenas transformou colocou em evidência a diferença en-
cionários, catecismos e compêndios,
a concepção de Igreja e do “ser tre o modo de ser e a linguagem dos
expressa de certa forma um huma-
cristão” dos jesuítas? E desses povos nativos e a cristã. Os missio-
nismo em movimento, na direção de
contatos, que Igreja emergiu da nários, sobretudo os jesuítas, eram
uma fé encarnada na cultura de um
experiência missioneira? desafiados a superar essas diferenças
povo. É certo que, com a conversão
Erneldo Schallenberger – A dos códigos, dos signos e dos sinais da por meio de métodos pedagógicos
Companhia de Jesus representou linguagem dos povos indígenas para que estabelecessem a interlocução
para o processo da colonização da a linguagem cristã, houve uma impo- cultural para que os índios abando-
América uma ordem religiosa estra- sição de sentido que representou uma nassem ou cambiassem seus antigos
tégica. Diante da necessidade da pre- substancial perda de referências para costumes e aderissem às práticas e
servação e da incorporação da mão as populações em processo de cristia- às representações do cristianismo.
de obra indígena no sistema colonial nização. Os elementos míticos cons- Hábeis, valeram-se de práticas
e em razão dos conflitos oriundos da titutivos da religião indígena nunca pedagógicas, que, além do ensino
espoliação dos índios pelos colonos, conseguiram ser substituídos pela escolar estendido também às meni-
a estratégia da conquista atribuiu racionalidade cristã. Os índios cris- nas, abrangiam a música, a dança,
aos jesuítas a missão de apaziguar as tianizados nunca deixaram de ser ín- as artes e, até mesmo, o trabalho.
colônias e atuar no meio dos índios. dios para serem cristãos. Nas aldeias O trabalho constituiu-se em impor-
e nas reduções jesuíticas houve certa tante ferramenta de educação e de
Muito cedo os missionários da negociação cultural, sem renúncia à
Companhia desaprovaram os meca- evangelização e era um instrumento
apologética cristã, que transformou mediador para a construção de uma
38 nismos da conquista ibérica, lançan- o espaço missioneiro em um lugar de
do críticas aos vícios e à deturpação nova espacialidade, que conservava
combinação de elementos das cultu- elementos das sociedades tribais e
dos costumes e da moral cristã. O ras nativas com os da cristã.
processo de dizimação das popula- da sociedade cristã. O trabalho pas-
ções nativas não interessava nem A Igreja que nasce dessa experiên- sou a se constituir em uma forma
cia é missioneira e, portanto, pio- social de ser nas missões. Era um
à Igreja e, tampouco, aos impérios
neira em relação à conversão da fé, rito enquanto expressão do espírito
coloniais. A nova ordem social das
e dos ensinamentos dela derivados, coletivo, que foi mantido e inovado
colônias e as bases da organização
nas culturas singulares. A Igreja nas reduções com a introdução do
eclesiástica na América requeriam
missioneira foi libertadora na me- trabalho familiar. Ao sentido do rito
aos jesuítas um trabalho diferen-
dida em que assume a luta contra a os jesuítas agregaram o da transfor-
ciado em relação aos mamelucos e
escravidão, contra a espoliação e o mação pela introdução de novas cul-
crioulos e aos povos nativos. Para os
desrespeito à dignidade dos índios. turas e pelo uso racional de técnicas
nascidos da miscigenação (gente da
Ela assumiu uma postura crítica no e instrumentos. A combinação e a
terra) introduziram a prática missio-
tempo e nas circunstâncias em que manutenção de elementos culturais
nária do batismo das crianças e da
esteve inserida. Ela transcendeu engendraram a formação de novas
educação dos jovens. Em relação aos
a mera imposição do cristianismo bases para uma sociedade em cons-
indígenas, buscaram a convivência
missionário e fomentou uma religio- tituição.
com eles para cuidar do seu bem-es-
tar e para educá-los para o trabalho, sidade, embora não enraizada, pre- Os jesuítas, particularmente, fun-
para as atividades artesanais, artísti- sente na vida dos povos nativos. daram colégios e mantinham pro-
cas e domésticas. priedades, regidas por um rígido
sistema de administração e controle
Baseados nas “Regras do discerni- IHU on-Line – Como avalia
contábil, que serviram de suporte
mento dos espíritos”, de Inácio de as contribuições da experiên-
para as missões. Constituíram um
Loyola6, os jesuítas aproximaram-se cia de missão para a consti-
sólido sistema de armazenamento,
tuição da identidade de povos
distribuição e comercialização dos
6 Inácio de Loyola (1491-1556): fundador da Companhia coloniais tanto da América es-
de Jesus, a Ordem dos Jesuítas, cuja missão é o serviço bens produzidos. Introduziram tec-
da fé, a promoção da justiça, o diálogo inter-religioso e panhola como da portuguesa?
nologias de produção de alimentos e
cultural. A Ordem teve grande importância na Reforma E quais foram os limites dessas
Católica do século XVI. Atualmente a Companhia de Jesus se notabilizaram na criação de gado
é a maior Ordem religiosa católica no mundo. Para saber experiências?
mais sobre Loyola, acesse a edição 186 da IHU On-Line, e no cultivo da erva-mate, cujos deri-
disponível em http://bit.ly/1IBwk2U. Foi canonizado em 12
de março de 1622 pelo Papa Gregório XV. Festeja-se seu
Erneldo Schallenberger – A vados foram para além do consumo
dia em 31 de julho. (Nota da IHU On-Line) América colonial constituiu-se num interno das missões, tornando-se

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importantes produtos de valor co- pelos jesuítas sobre os índios, que domínios dos estados nacionais,
mercial. As estâncias e os ervais tor- era contrastante com os interesses alimentado pelas práticas do mer-
naram-se marcos indeléveis presen- colonialistas de submetê-los plena- cantilismo e legitimado pela ação
tes até hoje na paisagem e na cultura mente aos interesses dos agentes da da Igreja. O poder temporal e o ser
das populações que habitam ou são colonização e integrá-los na vida e cristão se constituíram nos vetores
oriundas do espaço missioneiro. na produção colonial para aumen- fundamentais do deslocamento de
tar os erários das coroas. A expulsão populações e da sua dominação so-
O poder temporal da Com- gerou desmandos, a fragmentação cial e cultural. O ser mais e o poder
panhia dos territórios, a dispersão dos po- mais estiveram presentes no ide-
vos, mas não conseguiu acabar com ário dos segmentos da sociedade
A ascendência sobre os índios das a cultura missioneira, traduzida na da conquista e da colonização. As
missões e o controle sobre o territó- linguagem nativa cristã e na reli- práticas colonialistas impuseram
rio missioneiro fortaleceu o poder giosidade; destruiu espaços edifi- padrões societários que reduziram
temporal da Companhia de Jesus na cados, mas não conseguiu soterrar a diversidade social e cultural dos
América colonial. A reunião dos ín- os monumentos e a memória, que, povos e desconstruíram os seus
dios dispersos em povoados contri- registrada, expressa a grandeza da territórios, mesmo que simbóli-
buiu para a escassez da mão de obra obra educadora e missionária dos cos. A expansão das fronteiras dos
e o seu recrutamento pelos agentes jesuítas; não impediu que hábitos e estados mercantilistas e da Igreja
da colonização. Esses fenômenos costumes permanecessem vivos e se pôs em contato povos de mundos
atraíram o olhar das coroas que difundissem, alguns deles derivados diferentes, o que impactou não so-
acusaram os padres missioneiros de das lidas do cotidiano missioneiro, a mente esses povos, mas também a
manter os indígenas em estágio de exemplo dos derivados da cultura da sociedade da conquista.
menoridade e alheios aos interesses erva-mate e da criação de gado.
dos impérios coloniais. Na resis- Em termos de influência globali-
tência ante a empreitada da demar- Uma das grandes virtudes da atu- zadora, a Companhia de Jesus teve
cação das fronteiras coloniais, que ação educadora e evangelizadora um papel fundamental para a for-
acabariam fragmentando os territó- dos jesuítas foi a recriação de um mação das elites europeias e das so-
rios das missões, aos jesuítas foi im- espaço coletivo para os índios, para, ciedades conquistadas. Em sua ação 39
putada a iniciativa de promoverem a partir das suas bases societárias e intelectual e educativa contribui
motins e rebeliões contra os colonos preservando sua integridade física, significativamente para o desenvol-
e as autoridades coloniais. Estas fo- construir uma sociedade fundada na vimento das ciências, das artes, da
ram algumas das razões alegadas ética e nos valores do cristianismo agricultura e da memória escrita.
pelos representantes plenipotenci- católico. Este novo estatuto social Disseminou técnicas, produtos e
ários das coroas, Sebastião José de ainda não havia chegado e dado aos hábitos que afetaram o modo de ser
Carvalho e Melo (Marquês de Pom- índios o grau de independência com- e de se relacionar com a natureza
bal)7 e Pedro Pablo Abarca de Bolea preensiva e política para a sua solidi- dos diferentes povos em contato. Os
(Conde de Aranda)8, para a expulsão ficação quando foi interrompido. métodos usados pelos jesuítas para
da Companhia de Jesus das colônias a conquista espiritual dos povos se
espanhola e portuguesa da América, fundamentavam no diálogo com o
IHU On-Line – O século XVI outro e na observação participante.
em 1759 e 1767 respectivamente.
é marcado pelo que podemos Eram exímios linguistas, cartógra-
Os limites impostos ao primeiro considerar como um grande fos e recolheram dados e informa-
ciclo da presença da Companhia de movimento migratório, asso- ções que enriqueceram as ciências
Jesus decorrem de certa maneira do ciado também à ideia de uma exatas e naturais, a antropologia e a
poder espiritual e temporal exercido primeira globalização. Quais filosofia e os processos de interação
as contribuições e o papel da cultural como um todo.
7 Marquês de Pombal (1699-1782): Sebastião José de Companhia de Jesus nesse
Carvalho e Melo, nobre e estadista português. Foi secre-
processo? Como promotores de uma nova re-
tário de Estado do Reino durante o reinado de D. José I
(1750-1777), sendo considerado, ainda hoje, uma das lação entre povos e culturas tão di-
figuras mais controversas da História Portuguesa. Leia a
edição 220 do Cadernos IHU Ideias intitulado O Marquês
Erneldo Schallenberger – Os ferentes constituíram uma rede de
de Pombal e a Invenção do Brasil, de autoria de José Edu- movimentos migratórios acompa- correspondências, sobretudo atra-
ardo Franco, disponível em https://goo.gl/CSRsmq. (Nota
da IHU On-Line) nham a humanidade desde os seus vés da escrita, que, fundada em seus
8 Pedro Pablo Abarca de Bolea (1719-1798): 10º Conde primórdios. Eles podem ser moti-
de Aranda, foi um estadista e militar espanhol. Estudou
experimentos sistematizados, con-
técnica militar na Prússia e na França e, no contexto da vados por diversos fatores que vão tribuiu para o avanço do conheci-
“Guerra Fantástica”, comandou a campanha militar contra
Portugal a partir do final de agosto de 1762. Considerado desde a perspectiva messiânica de mento. Presente em tudo isto esteve
como um típico representante do despotismo esclarecido
sob o reinado de Carlos III de Espanha, ocupou, a partir de
buscar o lugar ideal para se viver à o princípio de uma nova sociedade,
1766, a presidência do Conselho de Ministros. Executou superação de limitações que o meio inspirada na utopia cristã e fundada
o Decreto Real que expulsou a Companhia de Jesus da
Espanha e seus domínios. Entretanto, o seu fracasso na e as sociedades impõem aos sujeitos nas relações de solidariedade, mes-
tentativa de manter os Ingleses afastados das ilhas Mal-
vinas levou a que fosse destituído de suas funções pelo
sociais. Nos séculos XVI e XVII, hou- mo que o seu protótipo tenha sido a
soberano (1773). (Nota da IHU On-Line) ve um processo de expansão dos sociedade eurocristã.

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – No que os pro- regionais, quando não incorpora- desnaturalização dos povos nativos
cessos migratórios do século das como produtos de consumo, são e do acentuado deslocamento de po-
XVI podem inspirar nas refle- marginalizadas ou excluídas pela pulações para alimentar os sistemas
xões da chamada crise de imi- “sociedade globalizada”. coloniais, desvelaram e aproximaram
gração da atualidade? diferentes culturas e comportaram
As transformações provocadas pela
economia globalizada promovem a experiências societárias que, ao seu
Erneldo Schallenberger – As
exclusão progressiva de povos, que, tempo, deram lugar à formulação de
migrações contemporâneas estão
em sua luta pela sobrevivência, são novos estatutos sociais. A tentativa
inscritas num cenário marcado pela
obrigados a migrar. Acentuam as de incorporação de povos e culturas,
intolerância, que impõem formas
diferenças regionais e geram abis- mesmo que pela submissão a uma
unitárias de pensar e de agir. Os
mos entre os países mais ricos e os cultura dominante, abriu o horizonte
fanatismos religiosos e políticos,
emergentes, oriundos, sobretudo, para a discussão de novos paradigmas
inspirados em ideologias excluden-
das condições desiguais de competi- e para a formulação de novas formas
tes, são expressões da violência que
tividade no mercado e das barreiras de organização social, a exemplo do
inibem as pessoas de se articularem
protecionistas impostas. A grande socialismo e do social-cristianismo.
para construir os seus espaços de
liberdade e para alimentar as suas mobilidade humana promove o de- Em suma, os processos migratórios
utopias. O fenômeno da globalização sequilíbrio demográfico, agrava o forçados nos deixam a lição do que
centrou os eixos de decisão em torno problema das diferenças étnico-cul- não se deve fazer em respeito à di-
de grupos poderosos, que controlam turais e religiosas e instiga o narco- versidade cultural, à liberdade e ao
o capital, detêm os meios de comuni- tráfico, o crime organizado e toda direito de autodeterminação dos po-
cação e informação e influenciam os espécie de conflitos que refletem vos. Frear os impulsos de dominação
formas de poder numa sociedade de
governos. Decorre daí uma onda de e ver no outro os elementos consti-
desempoderados.
padronização de costumes, de hábi- tuintes do eu representam as bases
tos de consumo e de modelos de pro- Os processos migratórios dos sé- para uma nova utopia social, sonha-
dução guiados pelo grande mercado culos XVI e XVII, sem lhes tirar a da a partir de relações harmônicas
capitalista. As diferentes culturas mácula da imposição cultural, da com a natureza.■
40

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REVISTA IHU ON-LINE

As ações missioneiras e a formação


da identidade moderna
María Elena Imolesi se detém na escrita jesuítica para observar como,
pela autorrepresentação de suas ações, a Companhia de Jesus vai
marcando a mudança de pensamento que ocorre na saída do medioevo
João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas

A
historiadora María Elena Imo- a Companhia de Jesus, onde tanto a
lesi destaca que os jesuítas, leyenda dorada quanto a leyenda ne-
membros de uma ordem reli- gra tiveram grande força, e o fogo das
giosa constituída na transição entre paixões é algo que os jesuítas sempre
o tempo medieval e o moderno, aca- se encarregaram de reavivar”, analisa,
bam, especialmente na América Colo- na entrevista concedida por e-mail à
nial, realizando uma espécie de her- IHU On-Line. Para Imolesi, reavivar
menêutica. “Transportaram ao Novo os escritos dos jesuítas, especialmente
Mundo a interpretação cristã e oci- relacionados a missões, pode ser funda-
dental das coisas”, pontua. Mas isso mental para novas compreensões acer-
não se dá só por uma imposição, sen- ca do período de colônia. “Não se pode
do muito mais uma via de mão dupla. negar que a experiência missioneira é
“Ao mesmo tempo incorporaram toda um componente fundamental do co-
a experiência multicultural dos terri- lonialismo”, diz. Mas acrescenta: “é 41
tórios missionários distantes, estra- necessário abandonar o paradigma da
nhos e estrangeiros”, completa Imo- ‘conquista-resistência’, que considera
lesi. Essa será uma das marcas dessa os índios como seres impotentes sobre
ordem que viabiliza conexões globais. os quais eram descarregados os desejos
“É importante ampliar o olhar do je- e as vontades do poder colonial”.
suíta e entender a inserção do funcio- María Elena Imolesi é doutora em
namento da Companhia de Jesus em História e professora de História Latino
um contexto global e em suas relações -americana na Universidad de Buenos
com outros poderes tanto religiosos Aires, Argentina, e integrante do Pro-
quanto civis, com os quais houve pro- grama de História da América Latina.
fusos e frequentes conflitos”, provoca. Entre suas publicações, destacamos
Analisando por essas perspectivas, Soluciones jesuitas en entornos misio-
segundo a professora, é interessante nales: la aplicación del probabilismo
observar como as ações desses religio- en la resolución de dudas en torno a
sos vão gerar tantas críticas, pois ora matrimonios en las reducciones de
eram aliados do rei, ora eram proble- guaraníes (Historia y Grafía, Universi-
ma para coroa, assim como para Igre- dad Iberoamericana, ano 25 n.49 julio-
ja. “Nenhuma outra ordem religiosa diciembre/2017).
suscitou tantas paixões opostas quanto Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que ideia de se transformando ao longo da María Elena Imolesi – É difícil
índio pode ser construída a história da Companhia de Je- responder a essa pergunta sem co-
partir dos escritos dos jesuí- sus e como ela chega até nos- meter generalizações apressadas.
tas? Como essa concepção vai sos dias? Na verdade, não podemos falar dos

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

“jesuítas” como um todo, como que os índios, como seres racionais, manitários de Platão3 e Campanella4
um corpo indiferenciado. Os mis- tinham capacidades em potencial, foram amplamente superados, e isso
sionários eram consideravelmente mas que estas estavam obscureci- foi conseguido “com selvagens re-
diferentes em suas apreciações, das pela educação “bárbara”. Con- cém-saídos da mata”.
que variavam de acordo com a so- sequentemente, a transformação
Tais afirmações dão conta de uma
ciedade que estavam observando e dos índios estava vinculada com a
escrita pensada para a defesa dos
com as quais interagiam. Mas, em habituação às práticas cristãs no
ataques inimigos (uma escrita “ob-
linhas gerais, como salientou Bro- contexto do sistema missionário. É
sediada” ou “assediada”, chamada
nislaw Malinowski1, podemos dizer comum encontrar a tríade composta
por Martín Morales). Em grande
que os jesuítas “sabiam colocar a por poligamia, antropofagia e abuso
parte, podemos considerar que esse
rede no lugar certo”, ou seja, eles de álcool nas descrições feitas dos
olhar sobre os índios é prefigurado
eram bons observadores. indígenas. No entanto – e por isso
nas polêmicas do século XVIII e em
eu falei antes das contradições –, ao
No entanto, deveríamos estabe- escritos como os de José Cardiel5
mesmo tempo eles são apresentados
lecer diferenças quanto aos relatos ou de Ludovico Muratori6, que em
como excelentes cristãos, detentores
missioneiros dos primeiros dias. meados do século XVIII falava do
de todas as virtudes, quando o obje-
No Paraguai, por exemplo, surgem “Cristianismo feliz” nas reduções
tivo é mostrar o sucesso do sistema
as primeiras descrições etnográfi- do Paraguai.
missionário: frequentemente eles
cas do século XVII, onde as obser-
tornam-se seres santos, castos e de-
vações em torno da sociedade indí- Perspectiva contemporânea
votos nos relatos jesuítas.
gena são mais agudas e o sistema
missionário estava em formação. A No que tange ao período mais re-
Pós-expulsão cente e que chega aos dias de hoje,
avaliação correta do terreno era de
vital importância, porque o suces- os historiadores da Companhia, com
A partir do exílio provocado pela
so da missão dependia disso. Em suas divergências, tiveram o cuidado
expulsão dos jesuítas, a historio-
contrapartida, ao longo do século de apresentar os indígenas como su-
grafia dos exilados tendeu marca-
XVIII, com um sistema missionário jeitos históricos, agentes com auto-
damente para o destaque das virtu-
consolidado, mas ao mesmo tempo nomia cultural e como construtores
42 des dos regimes missionários e isto
de seu destino, ao mesmo tempo em
em crise a partir das críticas feitas resultou em um olhar idealizado e
na Europa e na América sobre o que trabalhavam nos mais diversos
estereotipado do mundo indígena.
papel da Companhia de Jesus, as assuntos da história da Companhia
A distância, a nostalgia da América
descrições são mais estereotipadas, junto com historiadores, linguistas
perdida e, claro, a necessidade de
predominando a ideia – bastante e antropólogos acadêmicos não je-
defender a obra da Companhia, con-
contraditória – de que, apesar do suítas. Os casos dos antropólogos
tribuiu muito para isso.
sistema missionário ser um suces- Bartomeu Melià7, para o Paraguai, e
so, os índios ainda necessitavam de Um exemplo entre muitos: já no
tutela permanente e de isolamento século XX, e herdeiro dessa vi- 3 Platão (427-347 a.C.): filósofo ateniense. Criador de sis-
ante a sociedade espanhola. são triunfalista, o padre Guillermo temas filosóficos influentes até hoje, como a Teoria das
Ideias e a Dialética. Discípulo de Sócrates, Platão foi mes-
Furlong2 – provavelmente o maior tre de Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A Repú-
Neste sentido, não é coincidên- responsável por moldar o olhar de blica (São Paulo: Editora Edipro, 2012) e Fédon (São Paulo:
Martin Claret, 2002). Sobre Platão, confira e entrevista As
cia que uma das primeiras tarefas jesuíta sobre a história das missões implicações éticas da cosmologia de Platão, concedida
empreendidas pelos jesuítas seja a e autor de centenas de obras biográ-
pelo filósofo Marcelo Perine à edição 194 da revista IHU
On-Line, de 4-9-2006, disponível em http://bit.ly/pteX8f.
elaboração de vocabulários e gra- ficas – escreveu na Introdução de Leia, também, a edição 294 da revista IHU On-Line, de 25-
5-2009, intitulada Platão. A totalidade em movimento, dis-
máticas para a produção de línguas sua obra “Missões e seus povos de ponível em http://bit.ly/2j0YCw8. (Nota da IHU On-Line)
gerais, padronizadas (em quíchua, Guaranis” (1962), que as reduções 4 Tommaso Campanella (1568-1639): filósofo, teólogo,
astrólogo e poeta italiano. (Nota da IHU On-Line)
aimará e guarani, entre muitas ou- constituíram um “felicíssimo reino”, 5 José Cardiel (1704-1782): jesuíta espanhol, naturalista,
geógrafo e cartógrafo, a quem se devem as relações en-
tras línguas). A ideia é “traduzir” o no qual “menos de cem sacerdotes, tre flora, fauna e etnografia no Rio da Prata, na Argentina,
cristianismo para os índios, e não espalhados em 30 aldeias, puderam bem como a mapas precisos de diversas partes do Para-
guai. (Nota da IHU On-Line)
hispanizá-los. Os índios são consi- governar sem qualquer obstáculo, 6 Ludovico Muratori (1672-1750): Historiador italiano,
educado pelos jesuítas. É conhecido pela descoberta do
derados eternos menores de idade, com facilidade e felicidade, a 100 Cânone Murator, uma cópia da lista mais antiga que se
propensos aos vícios e mentiras e, mil indígenas que se consideraram conhece dos livros do Novo Testamento. (Nota da IHU
On-Line)
portanto, precisam de vigilância. felizes ou, até mesmo, felicíssimos, 7 Bartomeu Melià: jesuíta espanhol, pesquisador do
Centro de Estudos Paraguaios Antonio Guasch e do
Devo dizer que isso não era uma sob a sua ordem, disciplina e amor”. Instituto de Estudos Humanísticos e Filosóficos. Sempre se
exclusividade do olhar jesuíta: mui- Nessas reduções, os devaneios hu- dedicou ao estudo da língua guarani e à cultura paraguaia.
Doutor em ciências religiosas pela Universidade de
tos homens da Igreja consideravam Estrasburgo, acompanhou e conviveu com os indígenas
Guarani, Kaigangue e Enawené-nawé, no Paraguai e no
2 Guillermo Furlong (1889-1974): historiador jesuíta ar- Brasil. É membro da Comissão Nacional de Bilinguismo, da
1 Bronisław Kasper Malinowski (1884-1942): foi um an- gentino. Escreveu mais de 80 livros e cerca de 1.500 pu- Academia Paraguaia da Língua Espanhola e da Academia
tropólogo polaco. Ele é considerado um dos fundadores blicações. Algumas de suas obras são Glorias santafesinas Paraguaia de História. Entre suas publicações, citamos El
da antropologia social. Atuando na London School of Eco- (1923), Los jesuitas y la cultura rioplatense (1930), El padre don, la venganza y otras formas de economia (Assunção:
nomics (LSE), fundou a escola funcionalista. Suas grandes Quiroga (1930), La enciclopedia rioplatense de José Sán- Cepag, 2004). Confira a entrevista As missões jesuíticas
influências incluíam James Frazer e Ernst Mach. (Nota da chez Salvador (1930) e Cartografía jesuítica del Río de la nos sete povos das missões, concedida por Melià à edição
IHU On-Line) Plata (1936). (Nota da IHU On-Line) 196 da revista IHU On-Line, de 18-9-2006, disponível em

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Xavier Albó8, para o Peru, são exem- preservando – como levantado por dade, não está separado da realida-
plos disso. José de Acosta9 – os traços culturais de mais generalizada do universo
que não afetaram a conversão, é algo colonial espanhol dentro do qual
pelo qual os jesuítas eram famosos e, foi concretizado. Ocorre-me um
“A ideia é do ponto de vista de seus objetivos,
muito eficazes. Se todo sistema co-
dado muito evidente: a dispensa
do trabalho nas encomiendas dos
“traduzir” o lonial é, acima de tudo, uma grande guaranis das reduções era um pri-
operação de controle, não creio que vilégio obtido em função da defesa
cristianismo devamos duvidar que os jesuítas ti- militar da fronteira hispano-por-

para os
vessem muito êxito nesse sentido. tuguesa, na qual os Guarani foram
peças centrais. Em outra ordem de
Mas, é claro, é necessário abando-
índios, e não nar o paradigma da “conquista-re-
sistência”, que considera os índios
assunto, os jesuítas eram media-
dores econômicos das instituições

hispanizá-los” como seres impotentes sobre os


quais eram descarregados os dese-
coloniais espanholas, pois con-
trolavam o produtivo comércio de
erva-mate e, em geral, o abasteci-
jos e as vontades do poder colonial.
mento da região.
Longe disso, as sociedades indíge-
IHU On-Line – Hoje, algumas nas atuaram ativamente através das Certamente, se considerarmos a
pessoas consideram a experi- mais variadas respostas, que pode- ação dos jesuítas em outros con-
ência missionária como uma riam incluir tanto a rejeição e a guer- textos, não americanos, a pergunta
grande operação colonialista. ra, quanto a adoção e adaptação de formulada pode ter uma resposta
Como você avalia essa interpre- práticas cristãs. Sabemos, por exem- diferente: enquanto na Ibero-Amé-
tação? A experiência missionei- plo, que a aliança dos jesuítas com os rica a corte real e as ordens religio-
ra pode ser considerada dessa guaranis foi fundada na manutenção sas, como o clero secular, foram o
forma? dos cacicados indígenas e que estes braço de um catolicismo que era
María Elena Imolesi – Não se tiveram um papel central na chama- religião de Estado e fundação da
pode negar que a experiência mis- da guerra guaranítica10, no meio do ordem colonial, em regiões como 43
sioneira é um componente funda- século XVIII, quando eles agiram de Japão e China houve um diálogo in-
mental do colonialismo. Deixemos acordo com seus próprios interesses. tercultural muito mais rico. Ali, je-
de lado as avaliações que sempre suítas como Alessandro Valignano11
Em outro plano, o complexo siste-
atrapalham a compreensão: se a im- ou Mateo Ricci12 fizeram grandes
ma de funcionamento das províncias
plementação do sistema colonial foi esforços para a adaptação e acomo-
jesuítas, com suas redes de colégios
bem-sucedida, a cristianização era dação frente a outras religiões e sis-
como centros organizacionais, as fa-
uma ferramenta central para a con- temas de pensamento dominante
zendas e estâncias como eixo de pro-
versão e a disciplina das sociedades contra os quais o cristianismo era
dução, abastecimento e intercâmbio
indígenas. Na verdade, essa tarefa uma religião muito minoritária e
comercial, e as missões ou povoados
de adaptação das orientações cris- até mesmo perseguida.
indígenas, eram um modelo mui-
tãs e ocidentais às sociedades locais, to eficaz de organização colonial. O
próprio sistema de comunicação e IHU On-Line – De que maneira
http://migre.me/vMqU. Na noite de 26-10-2010 Meliá
profere a conferência A cosmologia indígena e a religião
circulação de informações entre a a supressão e a restauração da
cristã: encontros e desencontros de universos simbólicos, Cúria Jesuíta em Roma e as provín-
dentro da programação do XII Simpósio Internacional
IHU – A Experiência Missioneira: território, cultura e cias, em escala mundial, assegurava
identidade. Confira a programação completa do evento o funcionamento do sistema. 11 Alessandro Valignano (1539-1606): jesuíta italiano
em http://migre.me/vMs5. Confira, na edição 331 uma que ajudou na introdução do catolicismo, principalmente
entrevista com Meliá, intitulada “A história de um guarani no Japão. Sobre as missões jesuítas na China e no Japão,
é a história de suas palavras”, disponível em http://migre.
me/MqPH. Confira, ainda, o Perfil de Melià, publicado em
Modelo jesuíta confira a edição 347 da IHU On-Line de 18-10-2010, in-
titulada Matteo Ricci no Império do Meio. Sob o signo da
http://migre.me/2pf5p. (Nota da IHU On-Line) amizade, disponível para download em http://bit.ly/9oO-
8 Xavier Albó Corrons (1934): padre, linguista e antro- O “modelo jesuíta”, embora repre- ler. (Nota da IHU On-Line)
pólogo jesuíta, com experiência em povos indígenas e 12 Matteo Ricci [Mateus Ricci] (1552-1610): Missioná-
populações rurais da Bolívia. Albó foi cofundador do Cen- sentasse aspectos notáveis ​​de novi- rio que viveu já em sua época os princípios básicos do
tro de Pesquisa e Promoção de Agricultores (Centro de Vaticano II, especialmente a inculturação e o diálogo in-
Investigação e Promoção do Caminho, CIPCA) em 1971. ter-religioso. Depois de estudar direito em Roma, entrou
Ele foi seu primeiro diretor em 1976. O IHU publicou uma na Companhia de Jesus, em 1571. Durante sua formação,
sério de textos sobre Albó, quando da sua passagem pela 9 José de Acosta (1539-1600): foi um jesuíta, poeta, cos- interessou-se também por várias matérias científicas,
Unisinos em 2015. Entre eles Bem viver X viver melhor: O mógrafo e historiador espanhol que foi para o Peru em como matemática, cosmologia e astronomia. Em 1577,
desafio indígena na América Latina, disponível em http:// 1571. Desempenhou trabalhos missionários na América, pediu para ser enviado às missões no Leste da Ásia e, em
bit.ly/2QDK1Xd; além dos artigos de sua autoria, como regressando à Espanha em 1587. Escreveu História Natu- 24 de março de 1578, embarcava em Lisboa, chegando a
O grande dasafio dos indígenas nos países andinos: seus ral e Moral das Índias, em 1590. (Nota da IHU On-Line) Goa, capital das Índias Portuguesas, em 13 de setembro
direitos sobre os recursos naturais, disponível em http:// 10 Guerra Guaranítica (1750-1756): é o nome que se dá do mesmo ano. Alguns meses depois, foi destinado para
bit.ly/1XqWaeb; e Os Guarani e seu “Bem Viver”, dispo- aos violentos conflitos que envolvem os índios guaranis e Macau, a fim de preparar sua entrada na China. Confira a
nível em http://bit.ly/2C79xzV. No sítio do IHU, também as tropas espanholas e portuguesas no sul do Brasil após entrevista realizada pela IHU On-Line com Nicolas Stan-
é possível acessar entrevistas realizadas com Albó, entre a assinatura do Tratado de Madri, no dia 13 de janeiro de daert, intitulada O “caminho chinês”. A contribuição da Chi-
elas Um Deus de rosto indígena. Entrevista com Xavier Albó, 1750. Os índios guaranis da região dos Sete Povos das na para o mundo, disponível em http://bit.ly/ihu281008.
disponível em http://bit.ly/2NyynuQ, e A constituição mais Missões recusam-se a deixar suas terras no território do Confira a edição especial da IHU On-Line intitulada
humanista da América Latina. Entrevista especial com Xa- Rio Grande do Sul e a se transferir para o outro lado do Matteo Ricci no Império do Meio. Sob o signo da amiza-
vier Albó, disponível http://bit.ly/2Nw7Tdm. (Nota da IHU rio Uruguai, conforme ficara acertado no acordo de limites de, publicada em 18-10-2010, disponível em http://bit.ly/
On-Line) entre Portugal e Espanha. (Nota da IHU On-Line) ihuon347. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

Companhia de Jesus impacta a que estavam no exílio foi prolífica e nário semelhante ao da era colonial.
historiografia sobre as missões? influente. Os governos republicanos estavam
muito relutantes em compartilhar o
María Elena Imolesi – A su-
Necessidade de defesa poder com a Igreja. Se tomarmos o
pressão e restauração moldaram
caso do Paraguai de José Gaspar Ro-
fundamentalmente a experiência Ao longo do século XIX, a necessi- dríguez de Francia16 e Carlos Antonio
dos jesuítas. No curto espaço de dade de se defender dos ataques ini- López17, ou a Argentina de Rosas18,
tempo entre as duas datas (1767 e migos e de criar uma versão própria tentou-se assimilar os jesuítas aos ob-
1814), transcorreu o vendaval da da tarefa jesuítica no mundo a partir jetivos do Estado. A Companhia não
Revolução Francesa e o começo das das suas origens, que enfatizasse o podia desfrutar de seu antigo status
guerras de independência hispano trabalho da Companhia nos espaços autônomo. Em nenhum caso tornou-
-americanas. Acima, referia-me ao missionários, na educação através se a organizar missões entre índios, na
modo em que o exílio influenciou de seus colégios, na ciência e na fi- forma antiga.
o discurso jesuíta sobre os índios. losofia, entre outros, levou à enorme
Está em debate a ideia de que há compilação documental patenteada No entanto, como foi observado
uma “restauração” propriamente em sua maior parte nas Momumen- por Guillermo Wilde19 (CONICET,
dita, mas o fato é que o evento fratu- ta Historica Societatis Iesu15, orga- Argentina), muitos dos elementos
rou inclusive os arquivos da própria nizadas por tópicos e por províncias. culturais (políticos, religiosos e lin-
Companhia, atualmente organiza- A ideia era criar uma história com guísticos) criados na época jesuítica
dos em “antigos” e “novos”. fundamentos de verdade científica a continuaram vigentes, na medida
partir dos documentos. em que constituíam uma base para
A crise que trouxe a extinção da
a identidade cultural e religiosa dos
ordem foi obra de um conjunto de No entanto, esse objetivo coexistiu povos guaraníticos. Interessante é,
pensadores iluministas – que viam contraditoriamente com a apologia e em particular, o caso das missões do
no sistema educacional jesuíta um o mito do heroísmo. Nesta nova es- atual estado do Rio Grande do Sul,
atraso – e da política judiciária crita da Companhia restaurada, era que pertenceram à órbita de influên-
dos Estados europeus – que dese- dada a continuidade do trabalho dos cia colonial espanhola. Atualmente,
javam retomar o controle político jesuítas, na concepção historiográ-
44 os historiadores da região cunharam
e ideológico frente à igreja. Nesta fica destes, pela sua participação na o termo de missioneirismo como
polêmica, um tópico central foram formação de novas nações, através uma definição regional de identi-
as reduções do Paraguai, em torno de uma valorização do passado colo- dade fundada no passado dos Sete
das quais se criticou o autoritaris- nial em que os jesuítas foram agen- Povos guaranis20, famosos por sua
mo paternalista e arbitrário atri- tes políticos e culturais de primeira
buído aos jesuítas, a sua enorme magnitude e da contribuição que 16 José Gaspar Rodríguez Francia (1776-1840): foi um
acumulação de poder e riqueza, o teriam feito a um processo de inde- teólogo, advogado, revolucionário e político paraguaio.
Ocupou vários cargos no Governo independente, sendo
seu desprezo pela autoridade real pendência que seria “catolizado” e primeiramente Secretário da Junta, depois Cônsul, junta-
etc. Todos os argumentos que, jun- “jesuitizado”, enfatizando a influên- mente com o comandante militar Fulgencio Yegros. Pela
Assembleia foi nomeado Ditador Temporário e finalmen-
tamente com a acusação de laxismo cia da teologia jesuíta sobre a origem te, em 1816, Ditador Perpétuo da República do Paraguai.
(Nota da IHU On-Line)
moral, tornaram-se os tópicos clás- do poder nas origens dos processos 17 Carlos Antonio López (1790-1862): político paraguaio,
sicos de antijesuitismo. de independência. presidente de seu país. Em 1848 decretou o fim das mis-
sões no Paraguai e estendeu aos índios a condição de ci-
dadãos. (Nota da IHU On-Line)
Também incidiu decisivamente na 18 Juan Manuel José Domingo Ortiz de Rosas (1793-
atitude defensiva que os jesuítas to- 1877): apelidado de “o Restaurador das Leis”, foi um po-
IHU On-Line – Quais são as lítico e oficial militar argentino que governou a província
maram na publicação de escritos que de Buenos Aires e brevemente a Confederação Argentina.
mudanças que as missões so- Nasceu em uma família rica, porém mesmo assim conse-
no século XVIII retomavam velhos
frem a partir da restauração da guiu acumular uma riqueza pessoal, adquirindo grandes
argumentos sobre a inferioridade e extensões de terra no processo. Rosas colocou seus tra-
Companhia? balhadores em uma milícia particular, algo comum para
“degeneração” do mundo americano proprietários rurais da época, e participou de disputas
frente ao europeu, como exempli- María Elena Imolesi – A restau- entre facções que levaram a várias guerras civis no país.
Foi bem-sucedido na guerra, conseguiu influência pessoal
ficado pelos ensaios de De Pauw13 e ração da Companhia ocorreu no iní- e era seguido por um exército particular leal, tornando-se
o modelo do caudilho, como os senhores provinciais da
do abade Raynal14, entre outros. A cio do século XIX e conduziu a uma região eram conhecidos. Rosas eventualmente alcançou
polêmica com os jesuítas expulsos tentativa de trazer de volta os jesuítas a patente de brigadeiro-general, a mais alta do exército
argentino, e tornou-se o líder incontestável do Partido Fe-
inaugurou o americanismo como à América, mas o mundo já era outro deral. (Nota da IHU On-Line)
19 Guillermo Wilde: doutor em Antropologia pela Uni-
corrente intelectual. Nesse contexto, e as novas condições políticas das na- versidad de Buenos Aires, é pesquisador do Conicet e le-
a produção dos jesuítas hispânicos ções ibero-americanas impediam o es- ciona no Instituto de Altos Estudos Sociais da Universidad
Nacional de San Martín. É autor de Religión y Poder en las
tabelecimento de um sistema missio- Misiones de Guaraníes (Editorial SB, 2009). (Nota da IHU
On-Line)
13 Cornelius Franciscus de Pauw ou Cornelis de Pauw 20 Sete Povos das Missões: é o nome que se deu ao
(1739-1799): filósofo holandês, geógrafo e diplomata da 15 Monumenta Historica Societatis Iesu (MHSI): coleção conjunto de sete aldeamentos indígenas fundados pelos
corte de Frederico, o Grande, da Prússia. (Nota da IHU de volumes acadêmicos (157 até hoje) sobre documentos Jesuítas espanhóis na Região do “Rio Grande de São Pe-
On-Line) editados criticamente sobre a origem e os primeiros anos dro”, atual Rio Grande do Sul, composto pelas reduções de
14 Guilherme Thomas François Raynal (1713-1796): re- da Companhia de Jesus, incluindo a vida e os escritos de São Francisco de Borja, São Nicolau, São Miguel Arcanjo,
ligioso e filósofo francês. Utilizou o nome L’Abbé Raynal Santo Inácio de Loyola. O repositório desses documentos São Lourenço Mártir, São João Batista, São Luiz Gonzaga
quando pertenceu à Companhia de Jesus. (Nota da IHU pode ser acessado em http://bit.ly/2CBpsYo. (Nota da IHU e Santo Ângelo Custódio. Os Sete Povos também são co-
On-Line) On-Line) nhecidos como Missões Orientais, por estarem localizados

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violenta oposição à transferência de desde a época do padre geral Clau- ção e tiveram as mais diversas pro-
sua jurisdição ao âmbito português, dio Acquaviva22, levou à necessi- cedências. Com certeza, a aspiração
como resultado do Tratado de Ma- dade de adaptar-se (acomodar-se isolacionista e a concentração de
dri21 de 1750. O passado da presen- seria o termo mais bem utilizado) uma mão de obra que estava fora da
ça jesuíta é mantido no imaginário e ser capaz de interpretar a alte- órbita de controle da sociedade civil,
coletivo como uma era dourada e de ridade. Frente a essas realidades, especialmente no caso das missões
prestígio. As antigas missões eram os jesuítas faziam um esforço para guaranis, foram motivo de críticas
vistas por alguns movimentos políti- compreendê-las especialmente e conflitos desde muito cedo. As
cos como um modelo social e de boa com o fim de “converter”, contro- mesmas cartas dos padres gerais à
governança, digno de ser reeditado. lar, governar e modificar as situ- Província do Paraguai revelam esses
ações enfrentadas, que sempre conflitos e críticas: os jesuítas pare-
foram complexas e contraditórias. cem vinculados a um interesse ex-
IHU On-Line – Qual é o papel No entanto, esta complexidade e cessivo nos negócios, inclusive com
dos historiadores, ou ainda dos riqueza, registradas nas primeiras participação nos contrabandos.
antigos cronistas, jesuítas na descrições etnográficas, no estudo
narrativa sobre a história da Também no Brasil, as aldeias tor-
das línguas originárias, nas histó-
América colonial? naram-se verdadeiras empresas
rias “naturais e morais”, nas varia-
econômicas, sobretudo produtoras
María Elena Imolesi – Creio das formas de tradução e de clas-
de açúcar, competindo com o poder
que se possa e que se deva estabe- sificação cultural, não se refletiam
real e, por essa razão, as críticas se
lecer uma diferenciação clara en- necessariamente nas operações
intensificaram, tanto das autorida-
tre, por um lado, a maneira em que historiográficas, onde o paradig-
des civis quanto dos proprietários
os jesuítas escreveram sua própria ma moral e o caráter triunfalista,
de terras. Havia ações judiciais per-
história, muitas vezes carregada especialmente nos textos do século
manentemente entre jesuítas e as
de urgências, necessidade de con- XVIII, tinham como característica
autoridades civis e eclesiásticas. O
vencer os seus próprios membros e a “redução da complexidade”.
famoso conflito entre o bispo Ber-
também a estranhos, defender-se e nardino de Cárdenas23 e os jesuítas
atacar ao mesmo tempo, e a forma
“Não se pode
– que levou ambos a uma breve ex- 45
em que realmente atuaram “no cam- pulsão, em 1649 – revela um proble-
po”. Não se pode negar a riqueza do
que Wilde chama de “interações” negar que a ma fundamental que reflete a difícil
relação entre autoridades eclesiásti-
da Companhia, com seus entornos,
em um contexto inicial e surpreen- experiência cas e jesuítas, pela sobreposição de
privilégios pontifícios concedidos à

missioneira
dentemente global: já em meados Companhia de Jesus, que permitia a
do século XVI, logo após a criação seus membros manterem-se à mar-
da Ordem, temos um punhado de
missionários dispersos e ao mesmo é um gem do controle da Igreja diocesana.
Pior ainda foram os conflitos entre
tempo conectados ao redor do globo
– inicialmente, na Europa, envolvi- componente jesuítas e um setor predominante de
crioulos durante a chamada Revolu-
dos na luta contra o protestantismo,
assim como no Extremo Oriente, no fundamental do ção de Antequera24 (1717-1735), con-
flito que colocou em xeque o próprio
Brasil e depois por toda a América.
colonialismo” sistema missionário, causando uma
crise da qual ele nunca se recuperou.
Essa enorme dispersão, cujas dis-
tâncias eram contrabalançadas atra-
vés de um sistema de comunicação Críticas do século XVIII
IHU On-Line – Como você en-
epistolar perfeitamente padronizado tende as críticas que ainda hoje Durante o século XVIII, as críti-
continuam a impactar o mode- cas ao sistema missionário foram
a leste do Rio Uruguai. Com os ataques dos bandeirantes, lo missionário empregado pe-
os jesuítas espanhóis fugiram da área do Guairá. (Nota da
IHU On-Line) los jesuítas?
21 Tratado de Madrid: foi um tratado firmado na capital 23 Bernardino de Cárdenas e Ponce (1579-1668) foi um
espanhola entre os reis João V de Portugal e Fernando VI María Elena Imolesi – As crí- frade da ordem franciscana e bispo de Assunção e mais
de Espanha, em 13 de janeiro de 1750, para definir os li- tarde Santa Cruz de la Sierra. Ele serviu como Governador
mites entre as respectivas colônias sul-americanas, pondo ticas do modelo missionário jesuíta do Paraguai de 4 de março de 1649 a 1 de outubro de
fim assim às disputas. O objetivo do tratado era substituir são tão antigas quanto sua instala- 1649. Ordenou a primeira expulsão dos jesuítas do Go-
o Tratado Tordesilhas, o qual já não era mais respeitado na vernorato do Paraguai, embora essa expulsão não tenha
prática. Pelo tratado, ambas as partes reconheciam ter vio- durado; foi deposto como governador após uma batalha
lado o Tratado de Tordesilhas na América e concordavam contra os exércitos jesuítas. (Nota da IHU On-Line)
que, a partir de então, os limites deste tratado se sobrepo- 22 Claudio Acquaviva (1543-1615): padre jesuíta italiano, 24 Revolução de Antequera: integra as chamadas Revo-
riam aos limites anteriores. As negociações basearam-se terceiro superior geral no período de 1581 a 1615. Du- luções dos Comuneros paraguaios, lideradas pelo pana-
no chamado Mapa das Cortes, privilegiando a utilização rante a sua gestão, viu duplicar o número dos membros menho José de Antequera e Castro e pelo venezuelano
de rios e montanhas para demarcação dos limites. O di- da Ordem (de 5 mil para 13 mil) e o surgimento de san- Fernando Mompox, são consideradas revoltas ancestrais
ploma consagrou o princípio do direito privado romano tos como São Luís de Gonzaga e São Roberto Belarmino. dos movimentos independentistas, embora partissem do
do uti possidetis, ita possideatis (quem possui de fato, deve Compilou a “Ratio studiorum” para os colégios jesuítas interesse de se opor às limitações da Coroa espanhola em
possuir de direito), delineando os contornos aproximados e ordenou o “Directorium” para os Exercícios Espirituais. relação à exploração dos assuntos espanhóis aos sujeitos
do Brasil de hoje. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) indígenas. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

alinhadas a uma nova constelação Antes ainda, tanto Bartolomeu de principais razões para o sucesso do
de temáticas, nas quais as missões las Casas26, na Guatemala, como sistema missionário.
do Paraguai seriam o argumento Vasco de Quiroga27, no México,
principal, especialmente quando, a promoveram projetos para separar

“A supressão
tudo o que acabamos de mencionar, os índios dos espanhóis para prote-
somou-se a guerra guaranítica, ger os primeiros da exploração e da
em 1750, em que os índios de vá-
rias reduções se levantaram contra
mortalidade, registrados no regime
de encomienda, e no brutal declí- e restauração
a ordem real para entregar sete ci-
dades a Portugal, como produto do
nio demográfico que foi verificado
na população indígena desde o iní- moldaram fun-
Tratado de Madri. Os missioneiros
foram acusados ​​de incitar os índios
cio do século XVI, assim, também
para evitar o “mau exemplo” dos damentalmente
à rebelião. No entanto, são os acon-
tecimentos em outros lugares que
espanhóis. Tudo isto deu origem à
normativa jurídica da separação das
a experiência
provocam as críticas que levarão à
expulsão da Ordem, em 1767, e à
duas repúblicas. dos jesuítas”
De fato, quando os jesuítas sur-
Supressão, em 1773. As ideias ilu- giram no México, no Peru e no Pa-
ministas e o próprio regalismo en- raguai, outras ordens já os haviam
xergam na ação dos jesuítas, seu po- precedido na tarefa reducionista. IHU On-Line – Deseja acres-
der e seu sistema educacional, um No Paraguai, os primeiros reassen- centar algo?
obstáculo para o progresso das “lu- tamentos e concentração de indíge-
zes” e para os objetivos de aumentar nas antes dispersos foram realizados María Elena Imolesi – Sim, nos
o poderio monárquico. Questões de pelos franciscanos. Frei Luis de Bo- últimos 20 anos, os estudos sobre
distintas ordens, como a polêmica laños28, autor da primeira gramática o mundo jesuítico foi notavelmente
dos “ritos chineses”, que por sua vez e vocabulário guarani, foi uma refe- ampliado com as contribuições da
estavam inseridas em uma crítica rência de prestígio para os jesuítas. antropologia, da história cultural e da
mais ampla do chamado “laxismo” No entanto, o sistema social e políti- valorização de uma grande quantida-
46 dos jesuítas, derivado da utilização de de fontes reservadas, antes pouco
co desenvolvido pelos jesuítas desde
de doutrinas probabilistas, propor- o início do século XVII tinha traços ou nada disponíveis para os historia-
cionaram argumentos e razões para de originalidade: depois de muitas dores acadêmicos de fora do âmbito
a expulsão e a supressão. negociações com o governo espa- da Companhia de Jesus. Isto gerou a
nhol, os guaranis foram isentos da ideia de uma “jesuitologia” sempre em
encomienda e foram obrigados a tri- crescimento que nutre o já dilatadíssi-
IHU On-Line – Em que mo- butar apenas ao rei. Por outro lado, mo corpus de fontes jesuíticas a nível
delos as missões jesuíticas na enquanto instituição de fronteira e global. Historiadores da cultura, das
América foram inspiradas? diante dos ataques dos bandeirantes línguas, da arte e da ciência têm se
paulistas que dizimavam os povos preocupado em estudar as contribui-
María Elena Imolesi – O siste-
guaranis, capturando indígenas para ções dos jesuítas. Provavelmente (e o
ma missionário, enquanto ideia para
escravizá-los, os índios foram autori- proponho como um desejo e objetivo
concentrar as populações indígenas,
zados a se armarem e formarem mi- pessoal) é importante ampliar o olhar
especialmente em áreas de fronteira
lícias de defesa. Tudo isso foi obtido do jesuíta e entender a inserção do
e em povoados, não é uma criação
em uma aliança entre os jesuítas e os funcionamento da Companhia de Je-
original dos jesuítas. Na verdade,
caciques indígenas, que mantiveram sus em um contexto global e em suas
estava nos ordenamentos coloniais,
sua autoridade nos povoados, carac- relações com outros poderes tanto
como por exemplo, os do vice-rei To-
terística que é considerada uma das religiosos quanto civis, com os quais
ledo25, no Peru da segunda metade
houve profusos e frequentes conflitos.
do século XVI: a ideia era “reduzir”
26 Frei Bartolomé de las Casas (1474-1566): frade do-
os índios para a vida social e política, minicano, cronista, teólogo, bispo de Chiapas, no México. Além disso, muitas características
separando-os do resto da população Foi grande defensor dos índios, considerado o primeiro do processo de conversão, como a
sacerdote ordenado na América. Sobre ele, confira a obra
e encarregando os religiosos desta de Gustavo Gutiérrez, O pensamento de Bartolomeu de Las tão mencionada adaptação, eram
Casas (São Paulo: Paulus, 1992), e a entrevista Bartolomeu
função, mas mantendo sua própria de Las Casas, primeiro teólogo e filósofo da libertação, con- políticas gerais da Igreja Católica
estrutura de governo indígena. Foi cedida pelo filósofo italiano Giuseppe Tosi à IHU On-Line desde suas origens, quando procu-
342, de 6-9-2010, disponível em http://bit.ly/9EU0G0.
Toledo quem encarregou os jesuítas (Nota da IHU On-Line) ravam se impor ao paganismo. A
27 Vasco Vázquez de Quiroga y Alonso de la Cárcel
das primeiras paróquias indígenas (1470-1565): foi um administrador colonial espanhol, ideia de acomodar-se “aos tempos,
em Juli (atual Bolívia), consideradas primeiro bispo de Michoacán, no México e um dos juízes pessoas, lugares e outras circuns-
(oidores) da Real Audiência que governou Nova Espanha
antecedentes das paraguaias. de 10 de janeiro de 1531 a 16 de abril de 1535. (Nota da tâncias” é atribuída aos jesuítas e, de
IHU On-Line)
28 Luis de Bolaños (1549-1629): frade espanhol da Or- fato, ainda hoje é utilizada na convo-
25 Francisco de Toledo (1515-1584): aristocrata e militar
espanhol, foi o quinto vice-rei do Peru - posição que assu-
dem dos Frades Menores, um dos introdutores do sistema
de reduções nos atuais territórios do Paraguai e da Argen-
cação de acampamentos destinados
miu de 1569 a 1581. (Nota da IHU On-Line) tina. (Nota da IHU On-Line) a jovens leigos, organizados pela

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Companhia de Jesus. A frase, no en- na das empresas de sentido”. Eles leyenda negra33 tiveram grande
tanto, pertence ao cardeal Tommaso exerceram uma função hermenêuti- força, e o fogo das paixões é algo
de Vio29, proeminente figura domi- ca: transportaram ao Novo Mundo a que os jesuítas sempre se encar-
nicana da Igreja do início do século interpretação cristã e ocidental das regaram de reavivar... Nenhuma
XVI. A circulação de ideias e práti- coisas, mas ao mesmo tempo incor- outra ordem religiosa, como diz
cas, da e para a Companhia de Jesus, poraram toda a experiência multi- Pierre Antoine Fabre34, foi extinta
poderia iluminar a compreensão dos cultural dos territórios missionários pelo papa. Os jesuítas fizeram da
fenômenos da conversão, isto sem distantes, estranhos e estrangeiros. autorrepresentação e da apologia
negar as indubitáveis contribuições​​ à sua própria tarefa uma marca re-
que a Companhia de Jesus realizou Nenhuma outra ordem religio-
conhecível. Mas essas característi-
no mundo moderno. sa suscitou tantas paixões opostas cas da escrita jesuítica constituem,
quanto a Companhia de Jesus, onde paradoxalmente, uma vantagem
A Companhia e uma identi- tanto a leyenda dorada32 quanto a para a pesquisa histórica, pois nos
dade Moderna deixaram uma riqueza documental
jesuíta e erudito francês que se dedicou ao estudo da
psicanálise, filosofia, e ciências sociais. Intelectual jesuíta verdadeiramente notável.■
Muitos dos assuntos que são atri- é autor de inúmeras obras fundamentais sobre a religião,
a história e o misticismo dos séculos XVI e XVII. O IHU pu-
buídos à criação dos jesuítas, são blica regularmente textos sobre de Certeau. Entre eles, Mi- Historia. (Nota da IHU On-Line)
patrimônio do pensamento e das chel De Certeau, o pensador jesuíta citado pelo papa no seu 33 Leyenda negra: a lenda negra (cujo título completo é
discurso sobre a liberdade religiosa, publicada nas Notícias “A lenda negra e a verdade histórica: contribuição para o
ações da Igreja. Por que então essa do Dia de 28-9-2015, disponível em http://bit.ly/2elkzm7; estudo do conceito de Espanha na Europa, as causas deste
Há 30 anos, a morte do jesuíta francês Michel De Certeau, conceito e tolerância religiosa e política nos países civiliza-
preeminência dos inacianos? Sabina “excitateur de la pensée”, publicado nas Notícias do Dia dos”) é um livro de Julián Juderías e Loyot, publicado em
Pavone30 assinalou que a Companhia de 11-1-2016, disponível em http://bit.ly/2eciMRY; e De Madri em 1914, em espanhol e ilustração americana, em
Certeau, um “sujeito de inquietação verdadeira”, publicado cinco partes distribuídas em janeiro e fevereiro. Foi am-
de Jesus esteve envolvida em muitos nas Notícias do Dia de 12-1-2016, disponível em http://bit. pliado e reeditado no mesmo ano, e em 1917 foi publica-
ly/2e0GBjw. (Nota da IHU On-Line) da uma segunda edição, à qual foi adicionado o capítulo
momentos-chave na formação de 32 Leyenda dorada: compilação de histórias hagiográ- sobre “O Trabalho da Espanha”. Em “The Black Legend”, o
uma identidade moderna. Michel de ficas reunidas pelo dominicano Santiago (ou Jacobo) do conceito da lenda negra é usado pela primeira vez para se
Maelstrom, arcebispo de Gênova, no meio do XIII. Inicial- referir ao conjunto de propaganda antiespanhola que se
Certeau31 a considera “a mais moder- mente intitulado Legenda Sanctorum (“Leituras sobre os espalhou por toda a Europa a partir do século XVI. (Nota
Santos”), foi um dos livros mais copiados durante o final da IHU On-Line)
da Idade Média e ainda hoje existem mais de mil cópias 34 Pierre-Antoine Fabre: (1957) um historiador das reli-
29 Tommaso Cascianelli (1948): é um bispo católico ita- manuscritas. Com a invenção da imprensa, dois séculos giões francesas. Seu trabalho se concentrou na história do
liano da Diocese de Irecê. (Nota da IHU On-Line)
30 Sabina Pavone: pesquisadora em História Moderna na
depois, sua reputação consolidou-se e, antes do final do
século XV, surgiram numerosas edições impressas. O texto
primeiro século da Companhia de Jesus (1540-1640). Suas
publicações dizem respeito ao sistema devocional da Igre-
47
Faculdade de Patrimônio Cultural de Fermo. Sua pesquisa original, escrito em latim, recolhe lendas sobre a vida de ja Católica no período das reformas; os escritos espirituais
acadêmica tem sido sobre história religiosa e catolicismo, cerca de 180 santos e mártires cristãos de obras antigas e e a produção artística deste mesmo período, a montante
em particular enfocando os jesuítas. Ela é autora de várias de grande prestígio: os próprios Evangelhos, os escritos e a jusante do Concílio de Trento, ao qual ele acaba de
obras importantes, incluindo I gesuiti. Dalle origini alla so- apócrifos de Jerônimo de Estridon, de Cassiano, de Agos- dedicar seu trabalho mais recente; a história das missões
ppressione (2009, posteriormente traduzido para o inglês), tinho de Hipona, Gregorio de Tours e Vicente de Beauvais, de evangelização, a qual ele se interessou pelas atividades
que serve como uma história geral dos jesuítas desde as entre outros. Junto com eles, ele apresenta uma explica- de um grupo de pesquisa fundado em 1995 com Bernard
origens da Sociedade até sua primeira repressão. (Nota ção baseada nos evangelhos das festividades do calendá- Vincent e hoje animado com Charlotte de Castelnau, Ma-
da IHU On-Line) rio litúrgico, bem como uma breve história do cristianismo ria Lúcia Copete, Juan Carlos Estenssoro, Alyosha Malda-
31 Michel de Certeau (1925-1986): foi um historiador, na Lombardia, que lhe valeu o subtítulo da Lombardica vsky, Ines Zupanov. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

A “hinduização” do cristianismo na
experiência missioneira no Oriente
A historiadora Célia Tavares analisa as particularidades e
consequências das ações dos jesuítas nas primeiras incursões
na Índia e as influências dessas vivências na América
João Vitor Santos

P
ouco tempo depois de a Com- conflitos basearam-se numa divergên-
panhia de Jesus se constituir cia fundamental em relação à postura
enquanto ordem religiosa, do que se entendia ser o ato de cristia-
Francisco Xavier partiu no que seria nizar”, avalia.
uma das primeiras missões dos jesu- A pesquisadora ainda pontua que,
ítas. Seu destino foi o Oriente, inau- embora inspire as missões na América,
gurando a presença da congregação
as obras de jesuítas no Oriente se dão
no movimento ibérico de coloniza-
noutro contexto, já que Portugal não
ção. Entretanto, o que não se imagi-
tinha interesse em ocupar terras, e sim
nava ainda no início dessa jornada é
dominar as rotas comerciais. “Os por-
o quanto o cristianismo seria modifi-
tugueses nunca promoveram um real
cado pela ação das culturas locais. “É
esforço de conquista de territórios que
inegável que a cristianização foi uma
48 não aqueles que consolidariam suas
inserção da cultura europeia na reali-
posições. Pode-se dizer o mesmo em
dade indiana, especificamente na de
relação à cristianização, aliás, associa-
Goa. Mas não se deve esquecer que as
da diretamente à expansão portugue-
fronteiras entre as culturas são ma-
sa”, explica. “Por mais missionários
leáveis e comportam trocas”, analisa
que se dirigissem para o Oriente, a ta-
a professora Célia Tavares. “Pode-se
refa era hercúlea e fadada a enfrentar
observar a “indianização” – ou “hin-
enormes obstáculos”.
duização” – de algumas práticas re-
ligiosas dos grupos cristãos de Goa. Célia Cristina da Silva Tavares é
É muito comum a prática de colocar formada em História pela Universida-
colares de flores nas imagens de san- de Federal Fluminense - UFF, desde
tos, especialmente de São Francisco a graduação, passando pelo mestrado
Xavier, reproduzindo uma prática de e doutorado. Ainda realizou estágio
tratamento dada a deuses hindus”, pós-doutoral na Faculdade de Letras
completa. da Universidade de Lisboa. É do De-
Na entrevista, concedida por e-mail partamento de Ciências Humanas da
à IHU On-Line, Célia também abor- Faculdade de Formação de Professo-
da as formas particulares com que os res da Universidade do Estado do Rio
jesuítas conduzem a cristianização na de Janeiro - FFP-UERJ e pesquisadora
Índia e como isso acaba gerando re- do Núcleo de Estudos Inquisitoriais,
ações da própria Igreja. Segundo ela, no Grupo de Pesquisa Companhia das
houve um esforço de evangelização Índias - Núcleo de História Ibérica e
“que privilegiava os batismos em mas- Colonial na Época Moderna. Entre suas
sa, colaborava para a frouxidão do co- publicações, destacamos Jesuítas e in-
nhecimento da doutrina e franqueava quisidores em Goa (Lisboa: Roma Edi-
a possibilidade de se cometerem here- tora, 2004), Goa: a cidadela cristã no
sias”. Isso passou a não ser bem visto. Oriente (Medellin: Historia y Sociedad,
“Sem dúvida houve colaborações entre 1994) e Francisco Xavier e o Colégio de
a Inquisição de Goa e a Companhia Goa (Em Aberto, v. 78).
de Jesus, mas com certeza muitos dos Confira a entrevista.

16 DE OUTUBRO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

“É inegável que a cristianização foi uma


inserção da cultura europeia na realidade
indiana. Mas não se deve esquecer
que as fronteiras entre as culturas são
maleáveis e comportam trocas”

IHU On-Line – Como a senhora e as grandes religiões asiáticas. O es- junto da expansão portuguesa, na
descreve as missões jesuíticas no forço de cristianização, que pode ser medida em que os colonizadores se
Oriente? Quais os principais le- entendido como “ocidentalização”, fez utilizaram das práticas comerciais
gados e quais foram seus limites? com que essas monarquias sustentas- e da estrutura da vida rural goesas,
sem pela primeira vez uma burocracia embora tenham deixado marcas re-
Célia Tavares – A abrangên-
em escala planetária, cujos principais ligiosas católicas muito evidentes
cia territorial e a longa duração das
representantes foram a Companhia de nessa sociedade. É inegável que a
missões jesuíticas no Oriente são
Jesus e a Inquisição. Não obstante, os cristianização foi uma inserção da
impressionantes, mesmo que se te-
contatos entre as civilizações produ- cultura europeia na realidade india-
nha em mente que também foram
ziram uma realidade múltipla, com a na, especificamente na de Goa. Mas
limitadas. Explico. Se recortarmos o
mistura de elementos tradicionais das não se deve esquecer que as frontei-
período de 1542 a 1759, conseguimos
culturas envolvidas num “processo de ras entre as culturas são maleáveis
contar um pouco mais do que mil je-
mestiçagem”, como é definido pelo e comportam trocas. Dessa forma,
suítas que foram para o Oriente sob 49
autor. Diante dessa realidade múlti- pode-se observar, em contrapartida,
o Padroado de Portugal1. A despeito
pla, o historiador tem de transformar- a “indianização” – ou “hinduização”
das enormes dificuldades que temos
se numa espécie de “eletricista” – que – de algumas práticas religiosas dos
de contar o número de convertidos
Gruzinski e Sanjay Subrahmanyam3 grupos cristãos de Goa. É muito co-
pelas missões destes padres, sabe-
chegam a enunciar sob a forma da mum a prática de colocar colares de
mos, com certeza, que este número
expressão “eletricista-historiador” –, flores nas imagens de santos, espe-
sempre foi infinitamente menor que
capaz de estabelecer as conexões ge- cialmente de São Francisco Xavier5,
as populações que existiam em toda
radas a partir dos contatos de civili- apóstolo das Índias, reproduzindo
a Ásia. O tamanho de seu alcance,
zações, de culturas, as chamadas “his- uma prática de tratamento dada a
mesmo que impressione, deixou um
tórias conectadas”. Um bom exemplo deuses hindus.
legado muito limitado, se compara-
desse processo descrito por Gruzinski
do com as crenças religiosas locais. Por outro lado, símbolos externos
pode ser encontrado na experiência
Dizer isso não diminuiu a grandeza da vida cristã podem ser vistos nas
de cristianização ocorrida em Goa4
do esforço de “missionação” jesuíta, casas e aldeias da cidade e adjacên-
durante os séculos XVI e XVII.
apenas reforça a ideia de que foi uma cias. Em Salcete, os jesuítas conse-
tarefa hercúlea. guiram, com o tempo, que os mora-
Trocas culturais e religiosas
dores substituíssem a planta sagrada
Para Serge Gruzinski2, as monar-
Geralmente destaca-se a origina- usada como proteção – tulâss – que
quias católicas ibéricas e seus domí-
lidade da ocupação de Goa no con- todo o hindu mantinha na entra-
nios se transformaram no teatro de
da de sua casa, por uma roseira de
interações entre o cristianismo, o islã e
Santa Catarina ou por um cruzeiro,
as “idolatrias”, como eram designados 3 Sanjay Subrahmanyam (1961): um historiador indiano,
professor de história econômica na cátedra de história tornando, assim, fácil a identificação
os cultos existentes na América, África indiana na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e
professor no Collège de France. Ele defende uma história
das habitações dos cristãos locais, ao
conectada (a partir da história global) e tem populariza- mesmo tempo em que se combatia
do essa concepção na historiografia nas últimas décadas.
1 Padroado Português: foi um acordo instituído entre a (Nota da IHU On-Line) uma manifestação de “gentilidade”.
Santa Sé e Portugal em que o Papa delegava ao Rei de 4 Goa: é um estado da Índia. Situa-se entre Maharashtra a
Portugal o exclusivo da organização e financiamento de norte e Karnataka a leste e sul, na costa do Mar da Arábia,
todas as atividades religiosas nos domínios e nas terras a cerca de 400 km ao sul de Bombaim. É o menor dos esta-
descobertas por portugueses. (Nota da IHU On-Line) dos indianos em território e quarto menor em população,
2 Serge Gruzinski (1949): historiador francês especializa- e o mais rico em PIB per capita da Índia. A sua língua ofi- 5 Francisco Xavier (1506-1552): missionário cristão espa-
do em questões latino-americanas. Pertencente ao grupo cial é o concani, mas ainda existem pessoas neste estado nhol e apóstolo das Índias, um dos pioneiros e cofundador
de historiadores que pratica a chamada história das men- que falam português, devido ao domínio de Portugal na da Companhia de Jesus. Morreu na China, onde se pre-
talidades. É arquivista, paleógrafo e doutor em História. região por mais de 400 anos. Goa, a partir de 1510, foi a parava para cristianizar essa vasta região. Foi canonizado
Seus estudos versam sobre a imagem mestiça e o ingres- capital do Estado Português da Índia, tendo sido integrada pelo Papa Urbano VIII. Leia também Francisco Xavier: o
so na modernidade do México. Nos últimos anos, realiza à Índia após ser tomada pelo exército indiano em 1961 aventureiro de Deus. Entrevista especial com o jornalista
pesquisas sobre o Brasil e o Império Português. (Nota da derrotando as exíguas forças militares portuguesas pre- espanhol Pedro Miguel Lamet, no sítio do IHU, disponível
IHU On-Line) sentes. (Nota da IHU On-Line) em http://bit.ly/2OcQ7Rq. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

Cristãos no Oriente Célia Tavares – Basta notar o Célia Tavares – Há, atualmente,
pequeno lapso de tempo entre a uma forte polêmica nos meios aca-
Outro aspecto comumente ressal- fundação da Companhia de Jesus e dêmicos em torno desta questão. Há
tado para indicar o enraizamento a chegada de Xavier em Goa – são cada vez mais trabalhos de historia-
da cristianização de Goa é o núme- dores indicando que outras ordens
dois anos. Mesmo se pensarmos
ro de cristãos existentes na região. É religiosas já faziam procedimentos
em período mais elástico, desde a
verdade que nos séculos XVI e XVII que depois serão imputados à Com-
esse número foi sempre crescente, formação do núcleo fundador da
panhia de Jesus, especialmente os
ao basear-se especialmente nas fon- Companhia de Jesus em torno de
franciscanos que estavam presentes
tes jesuíticas, mas o século XIX ofe- Loyola6, não chega a um período
desde a chegada dos portugueses à
rece um quadro distinto, mesmo que de 10 anos. Portanto, a experiência
Índia. Apesar de concordar com esta
se considerem as diferenças territo- de Xavier no Oriente foi elemento visão, creio que não se pode negar
riais, uma vez que desde meados do fundamental para se forjar o con- que a capacidade organizadora dos
século XVIII os portugueses haviam ceito de missão inaciano, mesmo jesuítas, especialmente por sua de-
acrescentado ao território de Goa as que já possuísse algumas diretrizes dicação e disciplina de manter uma
terras das Novas Conquistas, cujas gerais. Gosto de exemplificar este intensa correspondência entre as
populações não sofreram o mesmo raciocínio contando sobre a hesi- suas missões, criou uma marca mui-
esforço evangelizador dos séculos tação que Xavier teve em relação a to exclusiva na ação da ordem.
anteriores. Considera-se que o pri- assumir a direção de um Seminário
meiro censo confiável realizado em A Companhia de Jesus foi uma das
que estava sendo fundado em Goa, ordens que mais esforços envidou
Goa é o de 1881, quando foi detec-
à época de sua chegada. para a missionação. É verdade que
tado que 58% da população era de
cristãos e 42% de hindus. Em 1950, não agiu de maneira uniforme como
ainda sob o domínio português, ou-
tra estatística demonstrou que a po-
“A experiência costumeiramente são apresentadas
as ações dos jesuítas. No meu estudo
pulação hindu era majoritária, com
o índice de 55% dos habitantes, en-
de Xavier no de doutoramento7 foi possível notar
que havia modelos diferenciados
50 quanto os cristãos constituíam-se Oriente foi nos métodos de conversão das po-
pulações indianas, causa inclusive
em 42%.
No entanto, mesmo havendo uma
elemento de graves embates entre grupos de
inacianos. É interessante perceber
tendência demográfica de diminui-
ção de cristãos, esse último censo
fundamental que, onde a presença portuguesa não
era efetiva, a abordagem dos jesuítas
indicava uma predominância da po-
pulação cristã na região das Velhas
para se forjar tendia mais a um modelo de “orien-

o conceito
talização”, a partir do último quartel
Conquistas, nomeadamente em Sal- do século XVI. Nas regiões onde ha-
cete, com o índice de 79%. Em 1981,
vinte anos após a independência de
Goa, as estatísticas indicavam um
de missão via o respaldo das autoridades por-
tuguesas houve maior tendência à
maior número de hindus, com índi- inaciano” “ocidentalização”, mesmo que hou-
vesse níveis de flexibilização junto às
ce ainda superior ao de 1950, 64%, populações locais; a contraposição
contra um significativo declínio dos dos métodos de conversão utilizados
habitantes cristãos, 31%. Não há a em Salcete e no Maduré comprova
IHU On-Line – Ainda a par-
informação nesse caso do índice de essa afirmação.
tir da experiência de Francis-
cristãos nas Velhas Conquistas, mas
mesmo esses indicadores gerais re- co Xavier, no que a missão da
velam uma tendência de diminuição então recém-fundada Compa-
IHU On-Line – Podemos afir-
desse número, o que comumente nhia de Jesus se distingue das
mar que as primeiras missões
é explicado por uma estagnação do demais ações de religiosos que jesuíticas no Oriente inspira-
crescimento dessa população deriva- já vinham sendo desenvolvidas ram as ações da Companhia na
da, principalmente, de uma dramáti- no Oriente? América? Por quê?
ca migração de goeses cristãos para
outras regiões da Índia e do mundo. Célia Tavares – Mais uma vez, a
dedicação em promover uma cons-
6 Inácio de Loyola (1491-1556): fundador da Companhia
de Jesus, a Ordem dos Jesuítas, cuja missão é o serviço da tante circulação de informações
IHU On-Line – De que forma fé, a promoção da justiça, o diálogo inter-religioso e cul-
tural. A Ordem teve grande importância na Reforma Cató-
através das cartas fez com que as
a experiência de Francisco Xa- lica do século XVI. Atualmente a Companhia de Jesus é a experiências fossem partilhadas e,
maior Ordem religiosa católica no mundo. Para saber mais
vier vai “forjando” a ideia, o sobre Loyola, acesse a edição 186 da IHU On-Line, dispo-
conceito de missão para a Com- nível em http://bit.ly/1IBwk2U. Inácio de Loyola foi cano-
nizado em 12 de março de 1622 pelo Papa Gregório XV.
7 A tese, intitulada Jesuítas e Inquisidores em Goa: a cris-
tandade insular, está disponível em http://bit.ly/2Oi2J9W.
panhia de Jesus? Festeja-se seu dia em 31 de julho. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

16 DE OUTUBRO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

mesmo diante de etnias tão diferen- especificamente no de Goa, a realida- militar e política do mundo indo-
tes em termos culturais, algumas de era muito diferente, ou, “tudo se americano. Partindo do exemplo
práticas foram repetidas. Por exem- complica e a toada já não é a mesma espanhol e para além das caracte-
plo, a preocupação com a confecção quando o avanço não é feito sobre o rísticas da sociedade hindu já res-
de catecismos nas línguas locais; vazio”. Não só as densidades demo- saltadas, deve-se buscar na própria
a preocupação com o aprendizado gráficas eram infinitamente maiores estrutura do Estado da Índia expli-
dessas mesmas línguas; coisas assim na Índia, como se tratava de civiliza- cações sobre os limites da cristiani-
distinguem o esforço dos jesuítas ções muito antigas e profundamente zação que ali teve lugar.
nas “quatro partes do mundo”, ex- enraizadas. O hinduísmo, como um
O Império português no Orien-
pressão usada no título de interes- conjunto de concepções e práticas
te estava montado como uma rede
sante livro de Serge Gruzinski8. religiosas que pautavam a vida dos
e tinha como principal ambição o
indianos, possuía um complexo sis-
Quando se compara o processo de controle da circulação de mercado-
tema de castas que ditava uma or-
cristianização de Goa com o da Amé- rias. Os portugueses nunca promo-
ganização da sociedade em termos
rica hispânica, especialmente nas re- veram um real esforço de conquista
de grupos, e toda sua lógica reforça
giões onde existiam sociedades orga- de territórios que não aqueles que
a totalidade social em detrimento do
nizadas de maneira mais complexa, consolidariam suas posições. A ta-
interesse individual.
como eram os casos das civilizações refa provavelmente estaria além das
asteca e inca, nota-se que os resulta- Trata-se, portanto, de uma pode- capacidades da Coroa portuguesa.
dos, tanto do ponto de vista quanti- rosa barreira que dificultava a apro- Pode-se dizer o mesmo em relação à
tativo como no de enraizamento do ximação das culturas que a expan- cristianização, aliás, associada dire-
cristianismo, são muito diferentes. são portuguesa proporcionava. Na tamente à expansão portuguesa. Por
No caso americano, a cristianização América espanhola, especificamente mais missionários que se dirigissem
difundiu-se de forma generalizada. nas regiões das civilizações asteca e para o Oriente, fossem jesuítas, fran-
Não se está aqui avaliando a mecâ- inca, também havia dificuldades de ciscanos, agostinianos, dominicanos
nica do processo, se há assimilação, superar as altas densidades popula- ou religiosos da Propaganda Fide11, a
aculturação, ou inculturação. Ape- cionais, apesar dos recursos técnicos tarefa era hercúlea e fadada a enfren-
nas destaco que, nos dias atuais, os de defesa serem mais frágeis no caso tar enormes obstáculos, que se não 51
países que pertenceram ao domínio americano do que no do Oriente. eram totalmente intransponíveis,
espanhol têm na fé católica um ele- Os esforços de cristianização feitos mesmo depois de ultrapassados, al-
mento de identidade cultural in- pelos espanhóis nos seus domínios cançavam resultados modestos.
questionável. Na América portugue- na América, por outro lado, foram
sa e em outras regiões dos domínios formidáveis. No plano institucional
americanos pertencentes à Espanha,
de maneira diferente, a cristianiza-
numerosas ordens religiosas insta-
laram-se desde o início da ocupação
“A marca da
ção também se consolidou, mas gra-
ças à própria lógica de colonização,
territorial, universidades, bispados e
arcebispados em toda parte, três tri-
cristianização
que se baseou na ocupação do terri-
tório onde viviam esparsas popula-
bunais do Santo Ofício10 em pontos
estratégicos do império, todas essas
de Goa está
ções indígenas. iniciativas serviram para formar
uma forte estrutura com o propósito
no seu caráter
Ao referir-se aos contatos entre as
civilizações e culturas menos comple-
de desenvolver a evangelização. insular,
xas, usando o Brasil como exemplo,
Braudel9 afirma que: “o português
Conquista espiritual confinado,
aparece e o índio primitivo retrai-se,
cede o seu lugar”. No caso do Oriente,
Campanhas como “conquista espi-
ritual” e “extirpação de idolatrias”
posto sob
foram modos essenciais da presen-
ça espanhola na América, sobretu-
cerco”
8 GRUZINSKI, Serge. As Quatro Partes do Mundo. História
de Uma Mundialização. São Paulo: EDUSP, 2014. (Nota da do nos dois primeiros séculos. Mas
IHU On-Line)
9 Fernand Braudel (1902-1985): historiador francês que
tudo isso só se tornou possível, evi- IHU On-Line – Como se deu o
foi um dos mais importantes representantes da chamada dentemente, em razão de ter ocorri- processo de cristianização no
“escola dos Annales”. A sua reputação decorre em parte
dos seus escritos, mas principalmente de seu sucesso em do uma efetiva conquista territorial, Oriente e em que medida esse
fazer da escola dos Annales o mais importante motor da
pesquisa histórica em França, e em grande parte do mun- processo foi capaz de promover
do, após a década de 1950. Como principal líder da escola 10 Congregação para a Doutrina da Fé: a mais antiga
historiográfica dos Annales nas décadas de 1950 e 1960, das nove congregações da Cúria Romana, um dos órgãos
exerceu enorme influência na escrita da História na França do Vaticano. Fundada pelo Papa Paulo III, em 21 de julho
e em outros países a partir de então. Braudel tem sido de 1542, com o objetivo de defender a Igreja da heresia. 11 Congregação para a Evangelização dos Povos (Con-
considerado um dos maiores dos historiadores modernos É historicamente relacionada com a Inquisição. Até 1908, gregatio pro Gentium Evangelizatione): é um dicastério da
que têm enfatizado o papel dos fatores socioeconômicos era denominada como Sacra Congregação da Inquisição Cúria Romana, ocupa-se das questões referentes à propa-
em grande escala na pesquisa e escrita da História. Ele Universal quando passou a se chamar Santo Ofício. Em gação da fé católica no mundo inteiro. Está sediada no Pa-
também pode ser considerado como um dos precursores 1967, uma nova reforma, durante o pontificado de Paulo lazzo di Propaganda Fide, na Piazza di Spagna, em Roma.
da teoria dos sistemas-mundo. (Nota da IHU On-Line) VI, mudou para o nome atual. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

a enculturação da fé, sem dizi- mento. Muitas práticas católicas so- forte elemento de “indianização” ou
mar a cultura originária? freram alterações. Um bom exemplo “hinduização” do catolicismo. Sem
pode ser dado pela suspensão do uso dúvida houve colaborações entre a
Célia Tavares – Não costumo usar
da saliva no batismo, pois causava Inquisição de Goa e a Companhia
o conceito de enculturação. Dou pre-
grande repugnância entre os hindus. de Jesus, mas com certeza muitos
ferência para o conceito de mediação
Mas essas adaptações não devem ser dos conflitos basearam-se numa di-
cultural. A cristianização no Oriente
entendidas como “transformações”. vergência fundamental em relação à
foi um processo extremamente com-
No difícil processo de mediação cul- postura do que se entendia ser o ato
plexo e nunca conseguiu se impor
tural que muitos jesuítas tentaram de cristianizar.
completamente. Ao contrário do que
promover no Oriente, muitas vezes
aconteceu na América Portuguesa, o Particularidades da inqui-
houve flexibilização de ritos e prá-
confront0 entre culturas não resultou sição oriental
ticas que foram entendidos como
em sufocamento das culturas origi-
ameaças à ortodoxia da fé católica e
nárias. É importante notar que o pro- Mesmo com variações, pode-se
foi neste ponto que o Tribunal da In-
cesso de cristianização no Oriente, na dizer que, de maneira geral, os je-
quisição no Oriente se desenvolveu.
época moderna, ou na primeira mo- suítas tendiam a uma postura de
dernidade, como queria chamar, foi É importante entender que a cris- flexibilização de determinadas práti-
sempre pontual e residual diante das tianização não estava apenas a cargo cas culturais, desde que elas fossem
manifestações locais. Gosto de usar a dos jesuítas ou de outras ordens reli- consideradas apenas manifestações
imagem de uma cristandade sitiada, giosas. A Inquisição também desem- exteriores de identidade política ou
muito associada ao esforço de coloni- penhava seu papel nessa ação. Como social, o que era aceitável dentro do
zação europeu. tribunal que julgava as questões de espírito de adaptação paulina. Em
fé, mas atrelado à Coroa portuguesa, contrapartida, os inquisidores pau-
o Tribunal do Santo Ofício de Goa tavam-se pela ortodoxia, e mesmo
tornou-se o mais poderoso instru- que tenham ficado perplexos dian-
“Por mais mento no processo de “ocidentaliza-
ção” da sociedade goesa. O esforço
te da complexa realidade indiana,
logo procuraram os padrões usuais
52 missionários foi grande, a tal ponto que promoveu
a alteração do alvo tradicional desse
de perseguição e de ação na conduta
social dos indianos cristãos recém-
que se tribunal: a perseguição aos cristãos- convertidos.
novos.
dirigissem A partir dos finais do século XVI
Essa tarefa mostrou-se também
extraordinária, pois num mundo
para o Oriente, a preocupação com as gentilidades
ocupou o centro das atenções dos in-
onde as fronteiras eram extrema-
mente flexíveis, maleáveis, porosas,
a tarefa era quisidores. Mesmo com a recorrente
recomendação de brandura em rela-
aumentar-se a pressão poderia re-
sultar em esforço perdido, como fica
hercúlea e ção aos neófitos, a própria natureza
das conversões feitas em Goa servia
evidente quando se constata a mi-
gração de goeses para outras regiões
fadada a de material quase inesgotável para a da Índia, fugindo da legislação feita
ação persecutória inquisitorial. Nes-
enfrentar
pelos vice-reis ou do aumento da
se aspecto, chega-se a uma impor- atuação da Inquisição de Goa, o que

enormes
tante contradição: o enorme esforço ameaçava seus interesses e seu estilo
de evangelização feito principalmen- de vida. Deve-se ainda aqui dimen-

obstáculos” te pelos jesuítas, que privilegiava


os batismos em massa, colaborava
sionar melhor a atuação do Tribunal
goês. Há a necessidade de fazer-se
para a frouxidão do conhecimento um ajuste no olhar sobre sua ação, a
da doutrina e franqueava a possi- modo de evitar a tradição de “lenda
bilidade de se cometerem heresias, negra” que a envolve.
IHU On-Line – Que transfor- retroalimentando o próprio alvo da
Não há como negar que foi o tribu-
mações o catolicismo sofreu a Inquisição oriental.
nal de fé mais ativo dos que existi-
partir da experiência de jesuí-
Além disso, os batismos em massa ram na Coroa portuguesa. Mas com
tas em Goa? Gostaria que a se-
eram interessantes também pelas certeza era também a realidade mais
nhora destacasse, também, as
próprias características do sistema complexa com a qual um tribunal da
particularidades do Tribunal
de castas, pois a conversão em gru- Inquisição já se havia confrontado,
da Inquisição no Oriente.
po facilitava a inserção social desses o que pode ser verificado no núme-
Célia Tavares – O conceito de novos cristãos, que assim perpetua- ro de processados registrados. Mas
mediação cultural também é bem vam um elemento fundamental da é importante notar que os níveis
útil para pensar esse tipo de movi- cultura hindu, constituindo-se em percentuais dos relaxados ao braço

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REVISTA IHU ON-LINE

secular não fugiam das médias his- Célia Tavares – De uma maneira Célia Tavares – Apenas desta-
tóricas dos tribunais inquisitoriais geral, o deslumbramento era muito car que a marca da cristianização
lusitanos, até onde foi possível cons- semelhante, especialmente com as- de Goa está no seu caráter insular,
tatar a partir dos dados fragmentá- pectos naturais. confinado, posto sob cerco, pois
rios que sobreviveram à destruição em torno da cidadela cristã, capital
da documentação do tribunal goês. do Estado da Índia, da considerada
IHU On-Line – A experiência Roma do Oriente, existiam multi-
dos jesuítas no Oriente e no dões que não compartilhavam a fé
IHU On-Line – Atualmente, a Novo Mundo foram cruciais católica com os portugueses, e que
senhora tem trabalhado com para as ações de um catolicis- por isso eram consideradas inimi-
escritos de jesuítas no Oriente e mo que adentrava na Moder- gas e uma ameaça à cristandade.
na América. O que as primeiras nidade. Hoje, como compre-
Mas essa ilha de cristãos em que
cartas de jesuítas que chegam à ender o papel geopolítico da
Goa havia se transformado tam-
Índia revelam? A partir desses Igreja na Pós-Modernidade? E
bém convivia, dentro de suas defe-
relatos, o que podemos inferir como a Companhia de Jesus e
sas, com a presença desse universo
acerca da visão sobre o outro, suas missões se inserem nesse
de diferenças religiosas que pro-
de uma cultura e um mundo di- contexto?
movia contraditoriamente a orien-
ferente do seu?
Célia Tavares – Atualmente, talização dos cristãos que viviam
Célia Tavares – Era comum que muitos historiadores estão traba- na cidade.
os jesuítas, depois de passarem longo lhando o conceito de “primeira glo-
As fronteiras existiam nos limi-
tempo em viagem – em geral, de Lis- balização” para explicar a expansão
tes físicos do domínio português
boa a Goa, podia demorar seis meses marítima europeia e, a partir deste
na Índia, mas também havia fron-
ou mais –, escreviam uma carta ou raciocínio, pensam a Companhia de
teiras dentro da cidade de Goa e,
para seus irmãos ou superiores que Jesus como uma “empresa globa-
por suas características intercam-
ficaram na Europa. O mais interes- lizada”, ou como a principal inte-
biáveis, foi possível promover uma
sante nesses relatos é o choque que grante de um “conglomerado globa-
os jesuítas sofriam com as cores, os lizado” que seria a Igreja Católica. rica circulação de padrões cultu-
rais nesse espaço. Portanto, a ori- 53
cheiros e o barulho da importante ci- Utilizar estes conceitos aproxima
dade de Goa. A variedade cultural era reflexões sobre as questões da Pós- ginalidade da cristianização de Goa
muito destacada nessas cartas, para Modernidade e traça um importan- repousa em três elementos que se
além da força da própria natureza. te quadro para se pensar a Mun- antagonizaram, mas que também
dialização. É uma tendência muito promoveram uma síntese singu-
atual da historiografia. lar: a ocidentalização dos hindus,
IHU On-Line – E sobre as car- a orientalização ou indianização
tas dos primeiros jesuítas na dos portugueses e a insularidade
América, o que mais chama IHU On-Line – Deseja acres- do catolicismo goês, finisterra da
atenção? centar algo? cristandade lusitana.■

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

A história natural e da ciência


como valor missionário
Miguel de Asúa analisa como a troca de saberes sobre práticas médicas,
uso de ervas e conhecimento de flora e fauna se configura com um outro
ponto de conexão e aproximação entre jesuítas e povos indígenas
João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas

A
experiência de missão para os va. “Vale pensar sobre o que aconteceria
jesuítas pode ser compreendida se missionários cristãos do futuro che-
através dos movimentos de apro- gassem a um planeta habitado por di-
ximação com os povos indígenas. Uma versas criaturas e civilizações, e tivessem
das faces dessas aproximações se dá na que falar sobre isso, contar como são as
troca de informações entre índios e re- coisas para o povo da Terra. Bom, esse
ligiosos europeus no que diz respeito ao “falar de”, esse discurso, que em grande
uso de plantas para fins medicinais e até medida estava relacionado com o mun-
mesmo para conhecer esse Novo Mun- do natural é o que os jesuítas criaram:
do. O historiador Miguel de Asúa explica uma nova forma de falar sobre algo não
que os jesuítas tinham uma certa liber- visto”, explica.
dade, através da qual deveriam agir com
Asúa reconhece que o caráter global
seu propósito de evangelização. É por
54 isso que muitos vão desenvolver o que
de troca de saberes que a Companhia
de Jesus vai empregar acaba revelando
podemos chamar de projetos científicos.
uma espécie de conexão completamen-
“Acredito que o ponto mais significativo
te nova à época. “Poderíamos dizer que
do projeto jesuíta, que implicitamente
os jesuítas foram os pioneiros de tudo
começa com a História Natural e Moral
isso, da mesma forma que inauguraram
das Índias de José Acosta é ter que dar
uma forma de conceber o mundo como
conta de um universo totalmente novo,
unidade na diversidade, algo que nos é
de um ‘Novo Mundo’, com sua imensa
acessível atualmente, mas em uma cha-
geografia, seus povos, seus animais e
ve secular”, resume.
plantas nunca antes vistos”, analisa. “A
história natural dos jesuítas tinha um Miguel de Asúa possui doutora-
valor missionário”, ou seja, para evange- do em Medicina pela Universidade de
lizar era preciso conhecer e esse conhe- Buenos Aires, mestrado em História
cimento vinha da troca desses saberes. e Filosofia da Ciência e doutorado em
Na entrevista a seguir, concedida por História pela Universidade de Notre
e-mail à IHU On-Line, Asúa observa Dame. Membro do Consejo Nacional
como essas trocas vão transformando de Investigaciones Científicas y Técni-
tanto jesuítas quanto indígenas. Quando cas - Conicet, da Argentina, é professor
chegam na América, boticários e enfer- de História do Instituto de Pesquisa de
meiros jesuítas trazem um conhecimen- Ciências e Engenharia Ambiental na
to europeu de tratamentos medicinais Universidade de San Martin e professor
de base herbórea. Assim, é natural que de filosofia no Colégio Máximo de San
passem a aderir a práticas indígenas Miguel. Entre suas publicações, desta-
no uso de novas ervas. “No entanto, é camos Ciencia y literatura (Eudeba,
preciso ter cuidado em não criar uma 2004), A New World of Animals: Early
imagem ‘romântica’, não pensar que os Modern Europeans on the Creatures of
jesuítas recebiam de braços abertos o sa- Iberian America (Routledge, 2005), Los
ber curativo indígena: em muitos casos juegos de Minerva (Eudeba, 2007) e La
havia desconfiança, já que estava vincu- ciencia de Mayo (Fondo de Cultura Eco-
lado a práticas mágico-religiosas que os nómica, 2010).
padres viam como ‘diabólicas’”, ressal- Confira a entrevista.

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REVISTA IHU ON-LINE

“As missões funcionaram


como uma estrutura global”

IHU On-Line – Em que consis- universo (De revolutionibus orbium blicadas ali o que houver de comum
tia a prática científica, isto é, “o coelestium5). Ambos foram “revolu- entre os artigos, será muito difícil
fazer ciência”, no século XVI? cionários” de uma maneira muito in- encontrar um denominador mínimo
Quais eram os critérios que de- completa – eu as chamo de “revolu- comum (e isso que estamos deixando
limitavam a prática científica? ções conservadoras”, porque muitas de fora as ciências exatas – aqui es-
das coisas antigas se mantiveram. tou considerando “ciência” como as
Miguel de Asúa – No século XVI,
ciências empíricas naturais). O que
os critérios eram muito diferentes
há de comum entre a Física do esta-
dos atuais. Na época do Renasci- IHU On-Line – E, atualmente, do sólido e a Ecologia das zonas úmi-
mento, havia uma combinação entre o que é a prática científica, o das? Ou entre a Cosmologia Quânti-
ciência antiga-medieval (basicamen- que delimita o “fazer ciência”? ca e a Farmacologia dos Receptores
te, fundada pelos escritos de Aris-
Miguel de Asúa – Quando come- de Membrana? De qualquer forma,
tóteles1), a magia e o conhecimento
ço os cursos rápidos de Filosofia da tudo isso é muito diferente da jovem
oculto, a nova ciência, e o mecanis- 55
Ciência, que às vezes ministro para ciência da Idade Moderna. Por isso,
mo que recém estava surgindo. To-
estudantes de ciências, sempre per- quando falamos de “ciência” nos sé-
memos como referência dois livros
gunto a mesma coisa. Creio que a culos XVI, XVII ou XVIII, estamos
fundamentais que foram publica-
resposta mais lógica a esta pergunta falando, em sentido análogo, de algo
dos no ano-chave de 1543, que às
seria: “ciência é o que fazem as pes- que é em parte igual e em parte dife-
vezes são utilizados para demarcar
soas que se dedicam à ciência”. Isto rente do que é feito atualmente.
o começo da Revolução Científica:
o de anatomia de Andrea Vesalius2 parece uma banalidade, mas não é.
(De humani corporis fabrica3) e o É melhor fundamentarmos bem IHU On-Line – De que forma,
de cosmologia e astronomia de Co- nossa definição sobre a realidade. Se na experiência das missões je-
pérnico4, com o Sol como centro do tomarmos uma revista líder, como a suíticas, podemos compreen-
Science6 ou a Nature7, e buscarmos der a articulação entre saberes
1 Aristóteles de Estagira (384 a.C.-322 a.C.): filósofo nas-
cido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões filosóficas – por
entre todas as coisas que foram pu- científicos globais e culturas lo-
um lado, originais; por outro, reformuladoras da tradição cais, tomando como referência a
grega – acabaram por configurar um modo de pensar que
se estenderia por séculos. Prestou significativas contri- América Colonial do século XVI?
buições para o pensamento humano, destacando-se nos 16-11-2005, o ciclo de estudos Desafios da Física para o
campos da ética, política, física, metafísica, lógica, psicolo- Século XXI: uma aventura de Copérnico a Einstein. (Nota Miguel de Asúa – As missões
gia, poesia, retórica, zoologia, biologia e história natural. É da IHU On-Line)
considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o 5 De revolutionibus orbium coelestium: é o nome original funcionaram como uma estrutura
pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line) em latim do livro Das revoluções das esferas celestes, do
2 Andreas Vesalius (1514-1564): por vezes referido na li- astrônomo polonês Nikolaus Koppernik, mais conhecido
global. Agora, todos falamos de “glo-
teratura portuguesa como André Vesálio, foi um médico pelo nome latinizado Nicolau Copérnico, publicado em 24 balização” e este não é um conceito
belga, considerado o “pai da anatomia moderna”. Foi o de maio de 1543 em Nuremberg. É uma das obras mais
autor da publicação De Humani Corporis Fabrica, um atlas importantes do período do Renascimento e um marco fácil de entender. Isso quer dizer que
de anatomia publicado em 1543. (Nota da IHU On-Line) da Revolução Científica. A publicação ocorreu durante o eles levaram um padrão comum de
3 De Humani Corporis Fabrica Libri Septem: livro de anato- ano de sua morte, 1543. Apesar disso, ele já havia desen-
mia humana, escrito por Andreas Vesalius em 1543. Con- volvido sua teoria algumas décadas antes. (Nota da IHU pensamento e ação para todos os
siderado um dos mais influentes livros científicos de todos On-Line)
os tempos, De Humanis Corporis Fabrica é conhecido so- 6 Science: também amplamente referida como Science lugares. Esse padrão, como já é co-
bretudo por suas ilustrações, algumas das mais perfeitas Magazine, é uma revista científica publicada pela Asso- nhecido, era por sua vez estruturado
xilogravuras jamais realizadas. (Nota da IHU On-Line) ciação Americana para o Avanço da Ciência (em inglês:
4 Nicolau Copérnico (1473-1543): astrônomo e matemá- American Association for the Advancement of Science - e flexível, e por isso obteve sucesso.
tico polonês, governador e administrador, jurista, astrólo- AAAS), considerada, ao lado da Nature, uma das revistas
go e médico. Desenvolveu a teoria heliocêntrica para o acadêmicas mais prestigiadas do mundo. (Nota da IHU Em relação ao nosso tema, o as-
sistema solar, que colocou o Sol como o centro do sistema On-Line)
solar, contrariando a então vigente teoria geocêntrica - o 7 Nature: é uma revista científica interdisciplinar britânica, pecto “estruturado” correspondia à
geocentrismo (que considerava a Terra como o centro). publicada pela primeira vez em 4 de novembro de 1869.
Essa teoria é considerada uma das mais importantes des- Foi classificada como a revista científica mais citada do “ciência” contemporânea europeia
cobertas de todos os tempos, sendo o ponto de partida
da astronomia moderna. A teoria copernicana influenciou
mundo pela edição de 2010 do Journal Citation Reports,
sendo amplamente considerada como uma das poucas
(coloco-a entre aspas para enfatizar
vários outros aspectos da ciência e do desenvolvimento revistas acadêmicas remanescentes que publica pesqui- que está pouco relacionada com o
da humanidade, permitindo a emancipação da cosmo- sas originais em uma ampla gama de campos científicos.
logia em relação à teologia. O IHU promoveu, de 3-8 a (Nota da IHU On-Line) que entendemos como tal, como já

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TEMA DE CAPA

foi dito na pergunta anterior). A flexi- Isso não dependia das culturas lo- ça a aparecer, a ganhar destaque,
bilidade estava na adaptabilidade, na cais. O que aconteceu é que logica- a chamada “ilustração católica” ou
receptividade ao conhecimento local. mente houve um processo de acul- ibero-americana, que foi uma ilus-
Isto sucedia o aspecto científico como turação, no qual as culturas nativas tração eclética, na qual buscou-se
qualquer outro, a arte ou a política (as incorporaram muitas técnicas. A negociar entre conteúdos antigos e
formas de governo). Os jesuítas não erva-mate, a base da economia das novos. Nesse sentido, penso (há ou-
distinguiam muito o que hoje consi- missões, é o exemplo mais chamati- tros colegas que enxergam as coisas
deramos áreas separadas. A cultura vo: os jesuítas descobriram a manei- de maneira diferente) que os jesuítas
renascentista ou barroca era muito ra de cultivá-la e isso transformou aqui foram basicamente barrocos e a
mais integrada nesse sentido. profundamente a sociedade guara- abertura entre eles para essa ilustra-
ni (e a relação desta com seu meio ção foi muito tímida ou polêmica.
ambiente, que não é pouco), porque
IHU On-Line – Como os conta- permitiu outro tipo de exploração e
tos com os povos indígenas da também uma maior produtividade IHU On-Line – Quais as con-
América impactaram os saberes do que a que tinham quando colhiam tribuições de indígenas para a
científicos da Companhia de Je- a planta em estado silvestre. constituição dessa cultura mé-
sus? E em que medida a cultura dica e científica no Rio da Prata?
indígena também se transfor-
Miguel de Asúa – É justamente
mou a partir desse contato? IHU On-Line – No que consis-
essa região onde se verificou a trans-
tia a cultura científica na região
Miguel de Asúa – Acredito que o ferência mais forte dos conhecimen-
do Rio da Prata entre o final do
ponto mais significativo do projeto tos locais sobre a natureza para a
século XVIII e início do século
jesuíta, que implicitamente começa cultura letrada europeia. É natural
XIX? Qual o papel dos jesuítas
com a História Natural e Moral das que os boticários e enfermeiros je-
nesse contexto?
Índias8 de José Acosta9, é ter que suítas tivessem recorrido ao saber
dar conta de um universo totalmen- Miguel de Asúa – Enquanto os local como medicina botânica. É
te novo, de um “Novo Mundo”, com jesuítas estavam lá, até 1767, o ano preciso levar em consideração que
sua imensa geografia, seus povos, da expulsão, é legítimo dizer que, a medicina europeia, de raiz galê-
56 seus animais e plantas nunca antes em grande medida, a cultura esteve nica, era também basicamente her-
vistos. Tudo isso em termos de evan- em suas mãos – o padre Guillermo bórea, de maneira que havia certa
gelização. Apesar do anacronismo Furlong S. J.10 exagerou a respeito da continuidade enquanto prática. A
histórico, vale pensar sobre o que importância dos jesuítas, certamen- professora Eliane Deckmann Fle-
aconteceria se missionários cristãos te, mas não de maneira demasiada! ck11, da Unisinos, investigou e des-
do futuro chegassem a um planeta Havia lá outras ordens e congrega- cobriu manuscritos farmacológicos
habitado por diversas criaturas e ci- ções, mas é certo que os jesuítas ti- que dependiam em grande parte do
vilizações, e tivessem que falar sobre veram o papel mais relevante. Isso uso guarani das plantas, com uma
isso, contar como são as coisas para aconteceu em duas áreas que nem “racionalização” europeia – isso fica
o povo da Terra. Bom, esse “falar de”, sempre se distinguem: por um lado, notório no tratado do irmão Pedro
esse discurso, que em grande medi- as universidades, que eram em gran- Montenegro12, que foi o mais impor-
da estava relacionado com o mundo de parte tradicionais e conservado- tante deles.
natural (ainda que também teve um ras; por outro lado, as missões, essa
No entanto, é preciso ter cuidado
aspecto histórico e cultural, que é a sociedade de fronteira, na qual havia
em não criar uma imagem “român-
outra metade deste discurso) é o que a possibilidade de experimentar, ha-
tica”, não pensar que os jesuítas
os jesuítas criaram: uma nova forma via mais liberdade de pensamento e
recebiam de braços abertos o saber
de falar sobre algo não visto. de ação, pois, diante da experiência
da missão, estavam surgindo todas
11 Eliane Deckmann Fleck: professora titular da Unisinos,
8 História Natural e Moral das Índias: trabalho do jesu- as categorias escolásticas – para vinculada ao Curso de Graduação em História e ao Progra-
íta José de Acosta, publicado pela primeira vez em latim ma de Pós-Graduação em História. Possui graduação em
sob o título De natvra nobi orbis libri dvo, e prompelatione qualquer pessoa que tenha visitado a História pela Unisinos, mestrado em História pela mesma
evangelii apud barbaros sive de procvranda indorvm salvte, selva, por mais que tenha sido como universidade e doutorado em História pela Pontifícia Uni-
libri sexo no ano de 1589 em salamanca por Guillermo Fo- versidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Integra
quel. É composto de sete livros, que podem ser divididos turista, não é difícil entender isto. a Linha de Pesquisa Sociedades Indígenas, Cultura e Me-
entre aqueles dedicados à natureza e à moralidade. Em mória do PPGH-Unisinos, desenvolvendo investigações
relação à natureza, ela é encontrada nos livros I a IV, nos
quais trata de tópicos cosmográficos, biológicos, botâni-
Com a expulsão dos jesuítas, os que contemplam a História da América, a História Lati-
no-Americana e a História do Brasil, privilegiando temas
cos e geográficos. O relativo à moral inclui nos livros V franciscanos tomam sua posição no relacionados à História da Saúde e das Doenças, à História
ao VII, no qual se trata de assuntos religiosos, políticos e das Ciências e à História das Religiões e das Religiosida-
históricos, porque no último livro narra a história antiga Rio da Prata, mas também come- des. (Nota da IHU On-Line)
dos mexicanos. (Nota da IHU On-Line) 12 Pedro Montenegro: nascido na Espanha, em 1663, ele
9 José de Acosta (1539-1600): jesuíta, poeta, cosmógrafo atuou no Hospital Geral de Madri, onde realizou sua for-
e historiador espanhol que foi para o Peru em 1571. Na mação técnica. Anos mais tarde, imigrou para a América,
América, Acosta fundou várias faculdades, entre elas as 10 Guillermo Furlong (1889-1974): historiador jesuíta onde, em 1691, ingressou na Companhia de Jesus, mas
de Arequipa, Potosí, Chuquisaca, Panamá e La Paz, mas argentino. Escreveu mais de 80 livros e cerca de 1.500 pu- continuou exercendo seu ofício, tanto em Córdoba, quan-
enfrentou considerável oposição do vice-rei Toledo. Seus blicações. Algumas de suas obras são Glorias santafesinas to nas missões de Apóstoles e Mártires, onde faleceu em
deveres oficiais obrigavam-no a investigar pessoalmente (1923), Los jesuitas y la cultura rioplatense (1930), El padre 1728. Ao irmão jesuíta Montenegro é atribuída a autoria
um território muito extenso, de modo que adquirisse um Quiroga (1930), La enciclopedia rioplatense de José Sán- da Materia Medica Misionera, de 1710, considerado um
conhecimento prático da vasta província e de seus habi- chez Salvador (1930) e Cartografía jesuítica del Río de la dos principais tratados de botânica médica do período
tantes indígenas. (Nota da IHU On-Line) Plata (1936). (Nota da IHU On-Line) colonial. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

curativo indígena: em muitos casos Miguel de Asúa – A história na- reu no Novo Mundo, nem nas mis-
havia desconfiança, já que estava tural dos jesuítas, como assinalamos sões, mas na Europa.
vinculado a práticas mágico-religio- antes, tinha um valor missionário.
sas que os padres viam como “diabó- Um renomado arqueólogo argenti-
licas” e, além disso, estes eram mui- no, já falecido, “Pepe” Pérez Gollán13, IHU On-Line – De que forma
to firmes na farmacêutica europeia: uma vez me disse que ele pensava os manuscritos de “matéria
nas missões usavam-se drogas locais que as histórias naturais dos jesuí- médica” dos jesuítas, atraves-
como substitutos, mas havia uma tas eram semelhantes a field guides sados pelos saberes das cul-
preferência pelas europeias, que já (guias de campo) para os futuros turas originárias da América,
eram conhecidas (tudo isso é lógico missionários, textos que permitiram impactam o campo da ciência
e humano: uma pessoa prefere o que conhecer a geografia, flora, fauna médica da Europa dos séculos
já conhece e traz consigo, e, pouco a e os povos entre os quais teriam de XVIII e XIX?
pouco, vai descobrindo outras coi- viver. Acredito que, em grande me- Miguel de Asúa – Não tiveram
sas, o que há de novo e em algum dida, isso aconteceu assim. Não são muito impacto. Os herbários jesuí-
caso poderia ser melhor, situação escritos “científicos” para os parâ- ticos das missões não foram publi-
que também acontecia). metros do século XVIII – a história cados na Europa, mas circularam
natural desse século era a de Lineu e como manuscritos. No entanto,
Buffon14, e os jesuítas de nossas regi- havia exportação de drogas. A prin-
IHU On-Line – Como se dava ões não a usavam, e ainda mais, não cipal, o caso mais famoso, foi a qui-
a atividade científica nas redu- queriam usá-la. Algum deles, inclu- nina16, descoberta no povoado de
ções jesuíticas? sive, afirmam que o que eles fizeram Loja (Equador), que foi uma das pri-
Miguel de Asúa – Eram os jesu- não é história natural, mas um relato meiras com utilização específica (ou
ítas aqueles que, individualmente, em linguagem cotidiana acerca das seja, medicamentos efetivos contra a
faziam coisas pelas quais sentiam plantas que trouxeram e dos idiomas causa de uma doença).
vocação. Mas é preciso tomar cui- que conheceram.
Os jesuítas montaram um comér-
dado para não exagerar as coisas: A questão da linguagem é algo cio muito grande com a quinina e
alguns jesuítas dedicavam-se a isto fundamental, porque o registro das
e sempre, sempre, dentro do âmbi-
com outras drogas – por exemplo, 57
criaturas está relacionado com o a partir do Rio da Prata, exportava-
to da atividade missioneira. É uma aprendizado dos idiomas: os nomes se o aguaribay17. Mas também eram
tradição que está viva na Companhia de plantas e animais fazem parte de importadas muitas drogas que, no
de Jesus e que é possível percebê-la dicionários de línguas nativas, léxi- que compete aos jesuítas que depen-
ainda hoje: cada jesuíta segue sua cos que deviam aprender para evan- diam da Espanha (o caso do Brasil
vocação, mas dentro do estilo espiri- gelizar. Novamente, tudo termina é diferente, obviamente), tinham
tual e de evangelização que enxerga confluindo na tarefa da missão. Um que seguir a rota do Pacífico e esses
todas as coisas em Deus. O que era reconhecido especialista em ciência medicamentos eram caríssimos. Daí
escrito tinha, direta ou indiretamen- jesuítica, Mordechai Feingold15, ar- surgiu a necessidade de buscar subs-
te, significado missionário, seja por gumentou que houve jesuítas que titutos locais. Isso acontecia também
si só ou para contribuir com o fun- cultivaram as ciências por si pró- em todas as regiões de missão, na
cionamento cotidiano das missões prias, sem fins religiosos. Pode ser, América no Norte (atual Canadá), na
(como por exemplo, a medicina e a mas em todo caso, isso não transcor- Índia e no distante Oriente.
farmácia, mas também a astronomia
e a geografia, que eram eminente-
mente práticas, para orientar e de- 13 José Antonio Pérez Gollán (1937-2014): nascido em IHU On-Line – Os processos
Córdoba, após o ensino secundário na escola Montserrat
terminar as coordenadas dos povos e uma breve passagem pela Faculdade de Arquitectura, de independência da América
das missões). formou-se em História em 1967 com uma monografia e
delineou seu forte interesse em arqueologia: padrões de impactaram de alguma forma
assentamento no noroeste da Argentina. Dez anos depois,
realizou doutorado na Universidade Nacional de Córdoba
as atividades científicas desen-
com outro assunto de arqueologia, a cerâmica do local de volvidas nas reduções jesuítas?
IHU On-Line – A Companhia Ciénaga Grande em Jujuy. Discípulo de outro pesquisador
reconhecido, Alberto Rex González, realizou uma extensa
de Jesus também assume um pesquisa sobre a arqueologia do noroeste da Argentina
protagonismo na organização e escreveu numerosos artigos e um livro que foi difundi-
do no país, Argentina indígena. Vísperas de la conquista 16Quinina: é um alcaloide de gosto amargo que tem
das histórias naturais do Novo (1972). (Nota da IHU On-Line) funções antitérmicas, antimaláricas e analgésicas. É um
Mundo. Qual a importância 14 Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788):
foi um naturalista, matemático e escritor francês. As suas
estereoisómero da quinidina. O sulfato de quinina é o qui-
nino. É extraída da quina que, por sua vez, é extraído da
desses trabalhos, especialmen- teorias influenciaram duas gerações de naturalistas, entre Cinchona, uma planta família Rubiaceae com aproximada-
os quais se contam Jean-Baptiste de Lamarck e Charles mente 40 espécies. São arbustos de folhagem persistente
te de cronistas e viajantes jesu- Darwin. A localidade de Buffon, na Côte-d’Or, foi o senho- naturais da região tropical da América do Sul que crescem
ítas, para o campo das ciências rio da família Leclerc. (Nota da IHU On-Line) entre 5 e 15m de altura. (Nota da IHU On-Line)
15 Mordechai Feingold: historiador, trabalha com His- 17 Aguaribay: é uma árvore da família Anacardiáceas, do
naturais? No que o trabalho tória da Ciência, desde a Renascença até o século XVIII. gênero conhecido como molles ou pimenteiros. É nativa
Sua pesquisa se concentra em como a ascensão da ciência da América do Sul, onde cresce selvagem no centro e
desses religiosos se difere das moderna transformou a cultura ocidental de uma cultura norte da República Argentina, da província de Córdoba a
práticas de outros cronistas e humanista, religiosa e unificada durante o século XVI em Jujuy. Devido ao seu valor ornamental, foi introduzido em
uma científica, tecnológica, secular e fragmentada no sé- áreas temperadas e quentes em todo o mundo. (Nota da
viajantes? culo XIX. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

Miguel de Asúa – No tempo da Sarreal19, ocuparam-se disso. entender o que, à primeira vista, pa-
independência, a partir da segunda rece incompreensível. Em áreas mais
IHU On-Line – Como a experi-
metade do século XIX, os jesuítas já específicas, é crescente o interesse
ência da relação entre jesuítas
haviam sido expulsos há 40 anos e da indústria farmacológica (uma das
e indígenas pode inspirar no-
as reduções seguiram seu caminho maiores do mundo) para investigar
vos caminhos para o desenvol-
histórico sem elas. Eu não estudei a matéria médica local e encontrar
vimento das ciências médicas e
esse período. Outros colegas, como o drogas úteis. Nesse sentido, poderí-
naturais no nosso tempo?
renomado Ernesto Maeder18, que la- amos dizer que os jesuítas foram os
mentavelmente faleceu há pouco, ou Miguel de Asúa – A experiência pioneiros de tudo isso, da mesma
a historiadora estadunidense Julia jesuítica nas missões foi resultado de forma que inauguraram uma forma
uma encruzilhada histórica particu- de conceber o mundo como unidade
lar. Resta delas um espírito de aber- na diversidade, algo que nos é aces-
18 Ernesto Maeder: historiador argentino, falecido em tura, de curiosidade e de busca para
2015. Foi membro do Consejo Nacional de Investigacio-
sível atualmente, mas em uma chave
nes Científicas y Técnicas – Conicet, da Argentina, e da secular. Por isso, não é sempre fácil
Academia Nacional da História. É designado acadêmico
correspondente na Província do Chaco pela Academia Na- 19 Julia Sarreal: é uma historiadora, ligada a Arizona State traçar paralelos históricos: os jesuítas
cional de Educação, membro titular da Junta de Estudos
Históricos do Chaco, presidente do Comitê Argentino de
University, cujo trabalho se concentra na região do Río de
la Plata da América do Sul. Seu primeiro livro, Guaraní and
sempre pensaram pela perspectiva
Ciências Históricas (2002-2005), e integrante da Comissão Their Missions: A Socioeconomic History (Stanford Universi- do divino e a cultura global contem-
Assessora em Ciência e Tecnologia da Secretaria Geral de ty Press, 2014) integra análises quantitativas e qualitativas
Ciência e Técnica da Universidade Nacional do Nordeste - para esclarecer as experiências dos índios guaranis que porânea corre em grande medida por
UNNE. Concentrou sua atenção nas missões jesuíticas do residem em missões católicas durante o século XVIII. De caminhos de negação do sagrado ou
período colonial, particularmente as da costa do Paraná e enfoque socioeconômico, seu trabalho adota uma nova
do Grande Chaco. (Nota da IHU On-Line) abordagem da etno-história. (Nota da IHU On-Line) por suas formas não cristãs.■

58

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Da mistura de dois mundos,


emerge a arquitetura missioneira
Norberto Levinton analisa como as edificações e
organizações espaciais das missões revelam mais
do que uma supremacia de um povo sobre outro
João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas

Q
uando se visitam ruínas de re- de espaço para a habitação familiar úni-
duções jesuíticas, tem-se a im- ca, restrita pela concepção dos jesuítas
pressão de que tudo aquilo foi europeus em termos da separação das
erguido pelo trabalho forçado de indíge- famílias do cacicado por meio de uma pa-
nas que tinham sua alma cooptada pelos rede fina que, antes, a oga guasu macro-
religiosos. De fato, a relação mudou a familiar não tinha. A igreja, a tuparoga,
forma de vida originária. “O contato com como casa de Deus, foi principalmente
o europeu significou para o índio muito uma mudança de escala no mesmo es-
mais perdas do que ganhos. Eles tiveram quema”, analisa. É o que diferencia, por
que renunciar a muitos de seus valores exemplo, uma organização franciscana
culturais devido à incompreensão dos re- de uma jesuíta, pois enquanto a primeira
ligiosos”, aponta o arquiteto e historiador tem a centralidade na Igreja, a segunda
Norberto Levinton. “A principal caracte- está num complexo que tem junto o colé-
rística da arquitetura missioneira é ser gio e a residência dos religiosos.
59
uma arquitetura de composição”, desta-
ca. Em seu trabalho, observa nas organi- Norberto Levinton é arquiteto, dou-
zações e edificações do espaço de missão tor em História e especialista em Histó-
essa fusão cultural. “Nos referimos a uma ria e Crítica de Arquitetura e Urbanismo,
arquitetura tipológica porque trabalha pesquisador na Universidad del Salva-
com esquemas prévios em planta, mas de dor, em Buenos Aires, na Argentina.
grande flexibilidade e adaptação, o que Entre suas publicações, destacamos La
permitiu incorporar elementos das cul- Arquitectura Jesuitico-Guarani: Una
turas indígenas e até mesmo da grande Experiencia De Interaccion Cultural
diversidade de linguagens arquitetônicas (Buenos Aires, Argentina: SB, 2008); El
das regiões europeias”, explica. espacio jesuítico-guaraní: la formación
de una región cultural (Asunción: Centro
Na entrevista a seguir, concedida por
de Estudios Antropológicos, Universidad
e-mail à IHU On-Line, Levinton evi-
Católica Nuestra Señora de la Asunción,
dencia como o indígena traz elementos
2009) e San Ignacio Miní: la identidad
de sua cultura originária ao projeto que
vai sendo concebido na missão. “O mais arquitectónica (Buenos Aires, Argentina:
importante foi o fato de que o indígena Contratiempo, 2009).
de língua guarani impôs sua concepção Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual o espaço com o contexto no qual a Província Jesuítica do Paraguai se organi-
da missão jesuítica na América zou desde o final do século XVI até
Colonial? guaraní. Una experiencia de interacción cultural, publicado a expulsão da Companhia de Jesus
em Buenos Aires, em 2008; El espacio jesuítico-guaraní.
La formación de una región cultural, publicado em 2009, dos territórios espanhóis. Isto está
Norberto Levinton – É impor- em Assunção do Paraguai; San Ignacio Miní: la identidad relacionado com o papel da ordem
tante vincular a definição de espaço1 arquitetónica, publicado em 2009; e vários artigos difundi-
dos em revistas acadêmicas de universidades espanholas, religiosa formada de acordo com as
paraguaias e brasileiras. Para ater-se ao caso de edifícios
jesuítas construídos em cidades: Arquitectura de la Com- ideias políticas da Coroa Espanhola
1 Os conceitos utilizados para responder às perguntas pañía de Jesús en Buenos Aires, lançado em 2012, e vários em relação à gestão da fronteira de
sobre os povos das Missões Jesuíticas são melhor de- artigos publicados em Buenos Aires, Córdoba e Praga.
senvolvidos nos seguintes livros: La arquitectura jesuítico- (Nota do entrevistado) seus territórios com Portugal e a uti-

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TEMA DE CAPA

lização de índios para a formação de ou Balverde, fazem parte da docu- outros lugares, como a Província de
“presídios” ou postos fronteiriços. mentação fundamental. De vez em Buenos Aires, com índios de grande
Dentro dessas políticas, insere-se o quando, algumas informações im- diversidade étnica.
propósito jesuíta de evangelizar os portantes surgem em memoriais.
índios e introduzi-los na sociedade A questão mais importante é o re-
colonial a médio prazo. conhecimento dos direitos consue- IHU On-Line – Quais são as
tudinários dos índios por parte dos principais características da
Por isso, acredito que o espaço da arquitetura nas missões?
jesuítas. Isto pode ser claramente
missão jesuítica na América Colonial
observado nos escritos produzidos Norberto Levinton – A principal
Espanhola, diferententemente do
sobre os litígios entre povos. característica da arquitetura missio-
que houve na América Colonial Por-
tuguesa, teve uma inserção plena nas Um tópico que considero muito neira é ser uma arquitetura de com-
fronteiras da Província Jesuítica do importante é o direito dos índigenas posição. O que significa isto? Nos re-
Paraguai e também nas outras cida- ao lucro quilombola sobre o gado ferimos a uma arquitetura tipológica
des espanholas, através do mercado selvagem e os ervais silvestres, bem porque trabalha com esquemas pré-
como sobre a aquisição de terras vios em planta, mas de grande flexi-
comum constituído pela produção de
por parte da Companhia de Jesus na bilidade e adaptação, o que permitiu
povos indígenas e vendida nas cida-
região do Iberá, na Argentina, e na incorporar elementos das culturas
des mais importantes da América es-
Banda Oriental uruguaia, algumas indígenas e até mesmo da grande
panhola: as mulas criadas nas estân-
delas literalmente compradas ou ce- diversidade de linguagens arquitetô-
cias dos povoados e dos colégios das
didas de diferentes maneiras por go- nicas das regiões europeias, de onde
cidades, vendidas na região de Po-
vernadores ou outros funcionários. procediam os arquitetos coadjutores
tosí; a erva-mate enviada a Santiago
da Companhia de Jesus. Por isso, a
do Chile, Lima e Potosí; e os que per- Estudamos as estâncias da Banda
arquitetura da Companhia de Jesus
corriam as cidades mais importantes Oriental e as existentes entre os rios
segue as mesmas tipologias nas ci-
do Rio da Prata através da gestão das Corriente e Miriñay, que também
dades e nos povoados missioneiros,
Procuradorias dos Colégios. No sécu- passaram por um processo histórico
mas ao mesmo tempo é totalmente
lo XVIII, também o couro. que reduziu suas extensões. É preci-
diferente em cada local por conta das
60 Então, o espaço missioneiro com-
so salientar a composição identitá-
implicações culturais, dos materiais,
ria de cada povoado que, em muitos
preende o assentamento urbano de da mão de obra e dos chefes de obra.
casos, reúne os caciques de vários
cada povoado e toda a estrutura pro- povoados dissolvidos, o que implica
dutiva das fazendas e estâncias que a existência de direitos consuetudi-
geralmente não formam um espaço IHU On-Line – De que forma
nários que passam a fazer parte dos a arquitetura, especificamente
contínuo, mas que estão divididas direitos consuetudinários dos índios
em porções territoriais repartidas na experiência jesuítica-gua-
da aldeia. rani, pode ser compreendida
historicamente devido à mobilidade
Devemos também levar em conta como uma interação cultural?
e relocalizações das Missões Jesuí-
ticas, além da extensão de cada ci- os direitos dos índios de origem nô- Norberto Levinton – Escre-
dade no mercado jesuítico-indígena made que estão integrados aos po- vemos um artigo intitulado “De la
comum. Isso quer dizer que, acerca vos missioneiros, como os Yaros e os manzana cuadrada a la vivienda
deste assunto, é necessário analisar Charrúas, em Yapeyú, ou os semis- -manzana”2 [“Do quarteirão qua-
cada caso em particular e não é pos- sedentários, como os Guaianás de drado ao quarteirão-domiciliar”,
sível separar o espaço missioneiro Santa Maria e Corpus. As estâncias em tradução livre] como o processo
do espaço jesuítico das cidades. e chácaras constituem uma história mais interessante que foi experi-
à parte, nas quais houve feitos mui- mentado pelas cidades missioneiras.
to particulares, como a cessão das O mais importante foi o fato de que
IHU On-Line – Como se dá a terras de Concepción ao novo povo o indígena de língua guarani impôs
organização do espaço dentro do de Trinidad, como presente de ca- sua concepção de espaço para a ha-
“mundo missioneiro”? Que rela- samento de um cacique Ñeenguirú bitação familiar única, restrita pela
ções podemos estabelecer entre à sua própria filha com um cacique concepção dos jesuítas europeus em
essa organização e as atividades procedente de San Carlos e que pas- termos da separação das famílias do
sociais, políticas, econômicas e sava a fazer parte do novo povoado. cacicado por meio de uma parede
culturais dentro das missões? fina que, antes, a oga guasu macro-
Então, acho que não é possível fa-
Norberto Levinton – A organi- familiar não tinha. A igreja, a tupa-
larmos apenas sobre algo jesuítico-
zação do espaço missioneiro é um roga, como casa de Deus, foi princi-
guarani, mas de uma cultura missio-
palmente uma mudança de escala no
processo histórico. Sobre este as- neira muito complexa, com grande
mesmo esquema.
sunto, as relocalizações, os litígios diversidade cultural. Isto é clara-
entre povos e o que foi observado mente reafirmado com a fundação 2 O artigo referido está disponível em http://bit.ly/
em 1657 pelo Ouvidor Valverde de povoados em Gran Chaco e em 2Qr74Ev. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

O habitante nativo da selva contri- determinante que é a latitude. sões, imprime a constituição
buiu com seu conhecimento no uso do cenário urbano como estra-
Por sua parte, entre as missões
da madeira, como por exemplo, o tégia apostólica? E como com-
franciscanas e jesuíticas, a diferença
uso de vigas mestras e dos enfeites preender essa estratégia?
está no núcleo principal. Nas fran-
de folhas de palmeira. O jesuíta con-
ciscanas, a igreja fica no meio da Norberto Levinton – No caso
tribuiu com o uso do barro (os tor-
praça. É uma questão simbólica em das cidades, estamos falando da pro-
chis franceses ou o pisée) e, poste-
relação aos Guaranis. Nas jesuíticas, posta dos jesuítas para os espanhóis.
riormente, o uso do azulejo, o tijolo
permanecem juntas a igreja e a es- Sua postura é fundamentalmente
de adobe e, finalmente, a pedra sem
cola, a residência dos sacerdotes e cultural. Eles atraem as pessoas por
trabalho adequado com a ñau e a
os ateliês – tal como nas cidades –, conta do alto nível de conhecimento
pedra conformada para a alvenaria.
além do cemitério. Os jesuítas reto- de seus sacerdotes. Na verdade, em
Isto é, houve etapas de interação cul-
mam a ideia dos mosteiros medie- essência, é a mesma ideia que está no
tural na arquitetura.
vais. Entre as missões portuguesas e substrato dos povos de índios missio-
Ainda analisamos a questão sobre espanholas, a diferença é uma ques- neiros. Aproximar-se de Deus a par-
a habitação indígena circular nos tão de política de Estado. Estamos tir da realidade mental de cada um.
povoados missioneiros. Como esses falando sobre o papel dos sacerdotes Um templo em Montevidéu deveria
índios se adaptaram à habitação li- em relação à comunidade indígena. ser construído com uma linguagem
near? Do meu ponto de vista, foi per- Quer seja uma missão volante ou de arquitetônica que pertencesse aos
cebido um processo em Chiquitos3, um curato. habitantes do lugar. Essa é a ideia
com os índios dessa etnia, e com os que o mudéjar5 sustenta para as pes-
Guaianás4, entre os Guarani. Esses soas que vêm das ilhas espanholas do
grupos étnicos trocaram as residên- IHU On-Line – Qual era o es- Atlântico, as Ilhas Canárias.
cias redondas pelas residências line- paço das máquinas no mundo
missioneiro? Como se dá essa Em Buenos Aires, Assunção e San-
ares e, de certa forma, pode-se dizer
inserção da tecnologia pré-in- ta Fé deve haver abóbadas e cúpulas,
que eles se “guaranizaram”.
dustrial nos modos de produ- feitas de madeira ou tijolos, de acor-
ção missioneiro? E qual o im- do com a capacidade do arquiteto.
IHU On-Line – Há diferenças pacto disso nos modos de vida 61
na organização espacial e ar- de povos originários?
IHU On-Line – Ainda sobre o
quitetônica entre as missões da
Norberto Levinton – Pensamos cenário urbano, podemos afir-
América Espanhola e da Amé-
que o que os índigenas trazem de mar que as reduções jesuíticas
rica Portuguesa? Quais e o que
sua cultura originária é o que per- seguem um modelo de cidade
significam?
manece, transforma-se e se torna europeia entre o final da Idade
Norberto Levinton – Em todas uma conquista da cultura missionei- Média e o início da Modernida-
as missões, o substrato étnico apa- ra. Isto é claramente o resultado da de? Por quê?
rece como grande diferenciador. A fabricação de lenços e guardanapos.
Norberto Levinton – As redu-
questão da identidade cultural dos Os índios sabiam como fazer uma
ções jesuíticas não seguem um mo-
grupos indígenas participantes é o rede e os jesuítas introduzem a roda
delo europeu. Somente o núcleo ar-
que diferencia uma missão da ou- de fiar. Há um processo.
quitetônico da igreja e o colégio têm
tra. É diferente caso seja um grupo algo associado com a Idade Média
Com a escultura, acontece algo
nômade ou sedentário. Isso está e os primórdios da Modernidade.
muito particular. Não há registro
relacionado com o modo de vida. A O traçado urbano do povoado mis-
prévio de uma arte antropomórfica.
isto, também se relaciona o clima sioneiro é o resultado de uma ne-
O indígena produz uma arte barroca
de cada lugar, a vegetação arbórea, gociação entre o esquema original
que é rejeitada pelos espanhóis das
o tipo de solo, a existência de pedra. da cultura indígena Guarani e as
cidades. A escultura mais interes-
Isso é muito claro se compararmos leis das Índias. A ideia de uma pra-
sante dos povos indígenas é aquela
as missões jesuíticas de Chiloé, no ça como conjunção da comunidade
que sai dos sonhos. São as obras do
Chile, com as da Baixa Califórnia, vem das aldeias indígenas. O bairro
tipo ingênuas e hieráticas. Essas for-
nos Estados Unidos. Há um grande mas se relacionam com a geometria é cacical. A habitação linear é a oga
das cerâmicas e das cestas. Os in- guazu. O cabildo ou o cotyguazu
3 Chiquitanos (ou chiquitos): grupo indígena que habita o
oeste do estado brasileiro do Mato Grosso (Terra Indígena dígenas rejeitam e não se destacam não é de origem indígena. Tampou-
Lago Grande) e o leste da Bolívia. (Nota da IHU On-Line)
4 Guaianás: grupo indígena, também conhecidos como naquilo que não há vínculos com a co o cemitério.
guaianases (do tupi antigo gûaîanã) ou guayanas, sul-a- cultura originária.
mericano que povoou regiões entre São Paulo de Pirati- IHU On-Line – O que a relação
ninga e o Uruguai até o final do século XVI. Durante o
período colonial, essa tribo recebeu vários nomes, como
guaianases e guaianã. Era um grupo considerado coletor, 5 Denomina-se arte mudéjar ao estilo artístico que se
ocupando a região da Serra do Mar, em um território que IHU On-Line – Podemos afir- desenvolveu entre os séculos XII e XVI nos reinos cristãos
ia desde a Serra de Paranapiacaba até a foz do Rio Paraíba
do Sul, no atual estado do Rio de Janeiro. (Nota da IHU
mar que a Companhia de Jesus, da Península Ibérica, que incorpora influências, elementos
ou materiais de estilo ibero-muçulmano. (Nota da IHU
On-Line) a partir da experiência de mis- On-Line)

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

entre jesuítas e índios nômades, vido à incompreensão dos religiosos. povos indígenas? E que rela-
como os Abipones6, pode reve- E tiveram que manter certos hábitos ções podemos fazer entre as
lar acerca das resistências de e crenças em sua intimidade, que disputas nos territórios de mis-
povos originais às estratégias subjazem em cultos populares como sões com as lutas pela demar-
missioneiras? Que outros povos o San La Muerte8. Os europeus trou- cação de terras indígenas do
também apresentaram resis- xeram consigo doenças como a varí- nosso tempo?
tências às ações missioneiras? ola. No conhecimento sobre os avan-
Norberto Levinton – Sua cultu-
Norberto Levinton – Para os ín- ços tecnológicos, poucos indígenas
ra continua sendo assassinada, suas
dios nômades, os espaços foram en- participaram.
terras são usurpadas e seu modo de
colhendo e por isso eles tiveram que Após a expulsão dos jesuítas, eles ser é desprezado ou menospreza-
aceitar a redução no meio do cami- perderam suas terras e foram utili- do. Nesse sentido, a divulgação da
nho. Os jesuítas estavam conscientes zados como mão de obra barata para língua guarani é muito importante,
de seu fracasso com esses índios. Os os exércitos. Somente alguns que pois envolve a inserção da questão
nômades amavam a liberdade. Es- aprenderam ofícios puderam entrar cultural. Hoje, na América, a vida e a
crevemos um artigo sobre isso7. na sociedade crioula e conseguiram morte como continuidade é um con-
sobreviver mudando seus sobreno- ceito que nos aproxima mais dos in-
mes indígenas. dígenas do que dos cristãos, judeus
IHU On-Line – Quais os prin-
ou muçulmanos.
cipais limites do aldeamento IHU On-Line – Como essa re-
missioneiro? lação com a cultura de povos IHU On-Line – Deseja acres-
originários estabelecida no es- centar algo?
Norberto Levinton – O conta-
paço de missão vai influenciar Norberto Levinton – Em um
to com o europeu significou para o
índio muito mais perdas do que ga- nossa perspectiva atual sobre contexto de degradação humana
nhos. Eles tiveram que renunciar a suscitado pelo liberalismo econômi-
8 San La Muerte: é um santo não reconhecido pela igreja
muitos de seus valores culturais de- católica, cultuado no sul do Brasil, nordeste da Argen- co, o ressurgimento das filosofias dos
tina e sul do Paraguai. Tem a sua origem na época das
Missões Jesuíticas do século XVI. Conta a lenda que este povos originários significa o aprimo-
62 6 Abipones: foram uma nação indígena da região do Gran santo foi um monge franciscano ou jesuíta que curava as ramento de um caminho alternativo
Chaco, na Argentina. Pertenciam à família linguística guai- pessoas de várias enfermidades, principalmente de lepra.
curus. Eles deixaram de existir como um grupo étnico in- Este monge foi castigado pelos seus superiores por estes para aqueles que desejam um modo
dependente no início do século XIX. Um pequeno número milagres e foi preso em um quarto onde foi privado de
de sobreviventes está assimilado à sociedade argentina. água e alimentos; passando os dias abriram este quarto e de vida distante do consumo e da
(Nota da IHU On-Line) encontraram uma caveira em seu lugar. É um santo muito luta por ascenção social através do
7 O artigo está disponível em http://bit.ly/2IHpcra. (Nota cultuado na Argentina, comemorado no dia 20 de agosto.
da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) dinheiro.■

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A multiplicidade política nas missões


da Companhia de Jesus
Aliocha Maldavsky observa que a ação de jesuítas não é algo que possa
ser uniforme e generalizado, assim como as relações que vão
estabelecer com o poder temporal e populações nativas
João Vitor Santos | Tradução: Vanise Dresch

A
historiadora Aliocha Maldavsky interesses ibéricos e a sobrevivência dos
define as missões jesuíticas como povos originários, a prioridade estará
“instrumentos de colonização do majoritariamente alinhada pela conver-
território americano, inclusive nos espa- são e expansão do catolicismo. “Mesmo
ços mais recuados onde os administra- que os missionários se interessassem
dores ibéricos não conseguiam exercer pelos usos e costumes das populações
um controle político e militar suficiente- americanas, eles não o faziam por elas
mente estável”. Mas ter claro esse con- mesmas, mas para melhor convertê-las.
ceito não significa que há unidade na Estavam convencidos de que o catolicis-
condução dessas missões. “Não existe mo era superior”, analisa a pesquisadora.
uma ‘missão’ jesuítica, mas várias. É im-
Aliocha Maldavsky é doutora em
portante que os historiadores não reifi-
História, integra os grupos de pesqui-
quem a ação dos jesuítas como se fosse
única no tempo e no espaço”, completa.
sa Mondes Américains (UMR 8168, da 63
Université Paris Nanterre) e Missions
Ou seja, a penetrabilidade e os modos de
agir dos religiosos varia de acordo com o Religieuses Ibériques Modernes na Éco-
local e as comunidades com as quais vai le des hautes études en sciences sociales
tomando contato. “Nas cidades, os jesu- - EHESS. Suas pesquisas compreendem
ítas se dirigem a todos os fiéis, incluindo temas da História Social da Religião e
os índios, que não são os mesmos nos seu lugar nas sociedades antigas do pris-
campos e em zonas de fronteira ou re- ma do investimento, financeiro, huma-
cuadas como a Amazônia”, exemplifica. no e simbólico por parte dos leigos. En-
tre seus livros publicados, destacamos
Na entrevista a seguir, concedida por
Space and Conversion in Global Pers-
e-mail à IHU On-Line, Aliocha tam-
pective (Leiden: Brill, 2014); Vocacio-
bém analisa as relações dos jesuítas com
nes inciertas: Misión y misioneros en la
as monarquias ibéricas. Segundo ela, é
provincia jesuita del Perú en los siglos
verdade que, em muitos momentos, pa-
XVI y XVII (Madrid: Consejo Superior
dres – não só jesuítas – se associavam em
de Investigaciones Cientificas, 2012) e
prol da preservação e aproximação da re-
Missions d’évangélisation et circulation
alidade dos indígenas. Entretanto, ressal-
des savoirs: XVIe-XVIIIe siècle (Ma-
va: “os religiosos podem ter-se oposto aos
monarcas, mas nem Las Casas nem Viei- drid: Casa de Velázquez, 2011), editado
ra questionam fundamentalmente a so- em parceria com Marie-Lucie Copete e
berania dos monarcas ibéricos”. Mesmo Ines G. Zupanov.
havendo um interesse de ajustes entre os Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma Aliocha Maldavsky – Além da inclusive nos espaços mais recuados
podemos apreender a missão perspectiva religiosa, as missões, onde os administradores ibéricos –
jesuítica além da perspecti- assim como todo o empreendimen- espanhóis e portugueses – não con-
va religiosa? E, nesse sentido, to de evangelização dos ameríndios, seguiam exercer um controle políti-
quais os seus principais lega- constituem um dos instrumentos de co e militar suficientemente estável.
dos para a América? colonização do território americano, Nos espaços controlados, como nas

EDIÇÃO 530
TEMA DE CAPA

fronteiras, os missionários e os re- talmente a soberania dos monarcas tão, reconfigurando a ideia de
ligiosos têm igualmente um papel ibéricos. Em suas advertências, em sagrado? Como?
fundamental na sujeição das popu- seus sermões, opúsculos e proposi-
lações aos poderes europeus. ções, percebemos mais a busca de Aliocha Maldavsky – Não tenho
um ajuste entre os interesses dos competência para responder corre-
ibéricos – econômicos, muitas ve- tamente a essa pergunta, que supõe
zes – e a sobrevivência de popula- como resultado uma única “configu-
“A catequização ções que esses religiosos têm como
prioridade converter ao catolicismo.
ração da ideia do sagrado” depois da
conversão. Posso apenas responder
dos ameríndios Sem o apoio das monarquias, os
missionários não conseguem agir.
que a catequização dos ameríndios
provavelmente não destruiu as ou-
provavelmente IHU On-Line – No que a mis-
tras formas de sagrado que existiam
na América. É impossível generalizar.
não destruiu as são jesuítica difere de outras
ações de religiosos? E como po-
outras formas demos perceber isso na Améri-
ca Colonial?
IHU On-Line – Pensando no
contato entre colonizadores e
de sagrado Aliocha Maldavsky – Não existe
indígenas, é comum conside-
rarmos que o europeu chega e
que existiam uma “missão” jesuítica, mas várias.
É importante que os historiadores
destrói a cultura e a política de
povos originários. Quais os de-
na América” não reifiquem a ação dos jesuítas
como se fosse única no tempo e no
safios para se conceber não a
destruição, mas a transforma-
espaço. Nas cidades, os jesuítas se ção do modo de vida de povos
dirigem a todos os fiéis, incluindo originários? E a transformação
IHU On-Line – Embora os je- os índios, que não são os mesmos dos próprios?
suítas representassem um bra- nos campos e em zonas de fronteira
ço das monarquias católicas da ou recuadas como a Amazônia. As Aliocha Maldavsky – A trans-
64 Península Ibérica, é sabido que “missões volantes” dos jesuítas na formação ocorre para as culturas
em certos momentos se coloca- América espanhola visam a reforçar dos povos autóctones assim como
vam contrários aos interesses o trabalho dos padres encarregados ela acontece em todo e qualquer
dos reis em prol de indígenas. da vida espiritual. Mas esses jesuítas processo histórico. Todo povo tem
Como compreender essas rela- administram muito poucas paró- uma história que se transforma em
ções que se estabelecem a partir quias e, portanto, não se confrontam contato com outros povos. Porém,
do século XVI? com as mesmas realidades cotidia- se, por um lado, essa transfor-
nas que os outros padres – regulares mação ocorre efetivamente tanto
Aliocha Maldavsky – Na escala entre os europeus, que se ameri-
ou seculares – que vivem diariamen-
do continente americano, os jesuítas canizam, quanto entre os povos au-
te entre os índios.
não são os únicos a desempenhar tóctones, que se adaptaram à nova
No Brasil, as aldeias administradas
um papel de consciência dos monar- configuração, por outro lado os de-
pelos jesuítas se assemelham às doc-
cas ibéricos. Antes deles, os domini- safios não são os mesmos para os
trinas dos índios da América espa-
canos, destacadamente Bartolomeu
nhola e, nesse contexto, os jesuítas dois lados.
de Las Casas1, trazem uma reflexão
enfrentam as críticas dos colonos. Para os povos ameríndios, o con-
sobre a colonização e o respeito à
Nas missões das fronteiras, como no fronto é violento, porque a popu-
vida e à dignidade das populações.
Paraguai, a autonomia é bem maior. lação é dizimada pela doença, pelo
Os religiosos podem ter-se oposto
Então, não há “uma” missão jesuíti-
aos monarcas, mas nem Las Casas deslocamento forçado e/ou pela
ca, mas várias.
nem Vieira2 questionam fundamen- exploração. Neste caso, o desafio
da transformação é a sobrevivên-
1 Frei Bartolomé de las Casas (1474-1566): frade domi-
IHU On-Line – A catequização cia. Para os europeus, a questão é
nicano, cronista, teólogo, bispo de Chiapas, no México.
Foi grande defensor dos índios, considerado o primeiro de indígenas estabelece uma o lugar a ocupar nas novas socieda-
sacerdote ordenado na América. Sobre ele, confira a obra
de Gustavo Gutiérrez, O pensamento de Bartolomeu de Las nova forma de ser católico cris- des que se originam nos processos
Casas (São Paulo: Paulus, 1992), e a entrevista Bartolomeu de conquista e colonização, é o sta-
de Las Casas, primeiro teólogo e filósofo da libertação, con-
cedida pelo filósofo italiano Giuseppe Tosi à IHU On-Li- onde fez acusações aos senhores de engenho escravo- tus social, enquanto para os ame-
ne 342, de 6-9-2010, disponível em http://bit.ly/9EU0G0. cratas na defesa da liberdade dos índios. Foi expulso do
(Nota da IHU On-Line) país, juntamente com outros jesuítas. Voltou ao Brasil em ríndios o problema é a sobrevivên-
2 Antônio Vieira (1608-1697): padre jesuíta, diplomata e 1681. Entre suas obras estão: Sermões, composto por 16 cia. Embora o processo se dê nos
escritor português. Desenvolveu expressiva atividade mis- volumes que foram escritos entre 1699 e 1748; História do
sionária entre os indígenas do Brasil procurando comba- Futuro (1718); Cartas (1735-1746), em três volumes; De- dois sentidos, ele não é simétrico,
ter a sua escravidão pelos senhores de engenho. Em 1641 fesa perante o tribunal do Santo Ofício (1957), composto
voltou a Portugal onde exerceu funções políticas como por dois volumes. Confira a edição 244 da IHU On-Line, longe disso. É importante que não
conselheiro da Corte e embaixador de D. João IV principal- de 19-11-2007, Antônio Vieira. Imperador da língua portu- se lance um olhar ingênuo sobre
mente no que se referia às invasões holandesas do Brasil. guesa, disponível em http://bit.ly/ihuon244. (Nota da IHU
Retornou ao Brasil em 1652, tendo estado no Maranhão, On-Line) esses fenômenos.

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IHU On-Line – Como se dá a Aliocha Maldavsky – As mis- bros da Companhia de Jesus


atuação dos jesuítas? E no que sões jesuíticas na América Andina para o conhecimento dos mo-
consiste o processo de restitui- são principalmente missões volan- dos de vida de povos originá-
ção de bens dos índios no sécu- tes5 que apoiam a ação dos párocos rios da América? E quais os li-
lo XVI? das doctrinas de índios. Encontra- mites desses documentos?
mos também uma ação missionária
Aliocha Maldavsky – A devolu- Aliocha Maldavsky – As cartas
nas cidades e em algumas paróquias
ção dos bens espoliados é uma obri- escritas pelos membros da Com-
controladas pelos jesuítas, mas em
gação comum a todos os cristãos. panhia de Jesus são de natureza
número limitado, pois isso é contrá-
Bartolomeu de Las Casas adapta isso diferente. Embora a questão se re-
rio às Constituições da ordem.
ao contexto americano em um trata- fira aos relatos das missões desti-
do publicado em 1552, pelo qual ele nadas a um grande público ou aos
exige que os encomenderos3 resti- Nos Andes, no século XVII, desen- membros da ordem na Europa,
tuam os bens adquiridos durante as volve-se também uma ação repressi- como as cartas anuais, esses são
guerras injustas e aqueles extraídos va por parte das autoridades religio- documentos com um caráter edifi-
abusivamente das comunidades lo- sas e civis sob a forma de campanhas cante que têm por objetivo glorifi-
cais. Os dominicanos logo exercem de extirpação da idolatria que são car a ação dos membros da ordem.
essa prática junto aos antigos con- uma particularidade local. Os jesu- Outros documentos, de caráter
quistadores do Peru, suscitando ítas participam, num primeiro tem- administrativo, permitem enten-
uma onda de restituições de bens po, dessas campanhas (nos anos de der situações concretas e sair da
aos índios nos Andes, nos anos de 1610), mas delas se desvinculam esfera da propaganda. Em todos
1550 e 1560. (nos anos de 1660) para evitar que eles, é possível ler nas entrelinhas
fossem associados à repressão exer- para encontrar, mesmo nos rela-
Essas restituições são feitas median- cida sobre as populações. tos edificantes, elementos úteis
te fundações devotas financiadas pela para a compreensão das popula-
doação de terras, de animais (ovelhas), ções autóctones, desde que sejam
geralmente controladas por religiosos.
Para o rei da Espanha, a restituição
“Mesmo que os cruzados com outras fontes.
65
é um meio de pressionar os antigos
conquistadores4 que se tornaram en-
missionários se IHU On-Line – Que relações
comenderos. Os jesuítas chegam nos
Andes em 1568 e se interessam por
interessassem podemos estabelecer entre as
missões de jesuítas na América
essa questão a posteriori, participan-
do dos debates que acontecem com as
pelos usos e e no Oriente? No que essas mis-
sões se assemelham e no que se
autoridades civis. Eles adaptam a res- costumes das dissociam?

populações
tituição utilizando-a para financiar as
Aliocha Maldavsky – Pode-
fundações de colégios e as missões. A
mos certamente comparar as mis-
má consciência dos antigos conquista-
dores é, portanto, usada pelos jesuítas americanas, sões americanas com as missões no
Oriente, embora o que as diferencie
em proveito do financiamento das ins-
tituições religiosas. eles não o primeiramente é o contexto colonial,
bem mais presente na América do
faziam por elas que no Oriente, onde os missioná-
rios são dependentes dos poderes
IHU On-Line – Quais as par-
ticularidades das missões na mesmas, mas locais. Um primeiro ponto em co-
América Andina?
para melhor mum é a importância das elites lo-
cais como alvos da evangelização e
3 Encomendero: aquele que realiza a encomenda, que,
originalmente aplicada na região das Antilhas em 1503,
com posterior projeção em outras porções da América
convertê-las” a formação, dentro dessas elites, de
intermediários – catequistas, sacris-
espanhola, constando nos registros legislativos coloniais tãos, cantores – pela transmissão de
até o século XVIII, foi uma instituição jurídica imposta pela
coroa com vistas a regular o recolhimento de tributos e competências de leitura, escrita, mú-
circunscrever a exploração do trabalho indígena. Estabe-
lecida a partir de um arranjo contratual, caracteriza-se
IHU On-Line – Quais as con- sica. Isso é encontrado tanto nos An-
pela submissão de um número variável de indígenas “pa- tribuições das cartas de mem- des e no Paraguai quanto no Japão e
gadores de impostos” a um encomendero – inicialmente
os mais notáveis soldados espanhóis nas guerras de con- na Índia.
quista – responsável por viabilizar sua incorporação aos 5 Missões volantes: estilo de missão popular feita na Eu-
moldes culturais, econômicos e sociais europeus. (Nota da
IHU On-Line)
ropa, também chamada missão romana que consistia em
ao menos dois padres saírem pelas periferias da cidade
Outro ponto em comum é a impor-
4 Conquistador: termo empregado para se referir aos indo às vilas próximas e de média distância para fazer uma tância atribuída à língua vernácula
soldados, exploradores e aventureiros espanhóis e portu- pregação, normalmente em tom de Quaresma. Consistia
gueses que se aventuraram pelas Américas e pelo oceano em uma semana ou 15 dias, na qual se faziam catequese, em todos os terrenos missionários e
Pacífico, nas costas da Ásia, em regiões controladas pelos
portugueses e espanhóis entre os séculos XV, XVI, XVII e
sacramentos e uma espécie de retiro quaresmal. Isto foi,
grosso modo, aplicado também em vilas da América espa-
a aprendizagem dessas línguas pelos
XVIII. (Nota da IHU On-Line) nhola e Portuguesa. (Nota da IHU On-Line) missionários, com estratégias às ve-

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TEMA DE CAPA

zes diferentes conforme as ordens e exercem um poder que eles não têm fatores próprios de sua época. O
as épocas. Um terceiro ponto em co- no sul da Índia ou entre os mongó- historiador não tem de se pronun-
mum é a promoção das organizações is. Consequentemente, a questão do ciar sobre erros eventuais, como se
coletivas laicas, como as confrarias grau de coerção não é unicamente fosse possível julgar sobre o bem e o
ou as congregações marianas, para redutível ao continente. mal no século XVI a partir do século
organizar a devoção católica; portan- XXI. Não penso que esse seja o meu
to, é o papel atribuído aos laicos na papel de historiadora.
organização de novas cristandades. IHU On-Line – Quais foram os
principais equívocos no proje- A destruição das culturas locais,
A principal diferença é o grau de pela qual se pode lamentar poste-
coerção mais elevado na América to da Missão, tanto na América
como no Oriente? riormente, fazia parte do projeto
que na Ásia. Mas isso depende do
colonizador e evangelizador. Mes-
lugar. Nas zonas de densa ocupação Aliocha Maldavsky – Os ato- mo que os missionários se interes-
europeia na América, essa coerção res da história agem em função de sassem pelos usos e costumes das
é evidente. Ela é menos nítida nas
populações americanas, eles não o
zonas de fronteira, onde os missio- tra a norte e Karnataka a leste e sul, na costa do Mar
faziam por elas mesmas, mas para
nários dependem das autoridades da Arábia, a cerca de 400 km ao sul de Bombaim. É

locais, como no Paraguai, mas tam-


o menor dos estados indianos em território e quarto
menor em população, e o mais rico em PIB per capita
melhor convertê-las. Estavam con-
bém no Japão ou na China. Mas nem da Índia. A sua língua oficial é o concani, mas ainda vencidos de que o catolicismo era
existem pessoas nesse estado que falam português,
toda a Ásia é redutível ao mesmo devido ao domínio de Portugal na região por mais de superior. Embora tendo se adapta-
400 anos. Goa, a partir de 1510, foi a capital do Estado
esquema: em Goa6, os portugueses Português da Índia, tendo sido integrada à Índia após
do, em parte, às circunstâncias, eles
ser tomada pelo exército indiano em 1961, derrotan- pensavam estar agindo bem com a
do as exíguas forças militares portuguesas presentes.
6 Goa: é um estado da Índia. Situa-se entre Maharash- (Nota da IHU On-Line) introdução do cristianismo.■

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Estâncias missioneiras como


horizonte de relações
Helenize Serres pesquisou esse espaço que servia como
local de produção, ponto de encontro e também de
disputas e tensões dentro das reduções jesuíticas
João Vitor Santos

A
s reduções jesuíticas situadas en- neiras foram horizontes de relações, em
tre o que é hoje o sul do Brasil e o diferentes níveis, com grupos chama-
Uruguai eram verdadeiros com- dos ‘infiéis’, com espanhóis fugitivos e
plexos que reuniam diversos povos in- mesmo portugueses em busca de gado.
dígenas, religiosos e também espanhóis Essa situação mostrou o trânsito que
e portugueses. Dentro dessas grandes havia na área rural a partir dos pontos:
áreas se desenvolveram as chamadas invasões e roubos de gado e laços de
estâncias. “Foram importantes por se- parentesco ou acolhida como forma de
rem espaço de criação, mas também refúgio”, analisa. Assim, a historiadora
porque nelas foi desenvolvida uma vida propõe um olhar desde a perspectiva
que estava além do povoado, espaço ao de fronteira, de troca e de influências
qual permaneciam interligadas a partir mútuas, num espaço que hora permite
de diversas questões, entre elas, admi- passagem e hora promove contenções.
nistrativas, econômicas ou, ainda, de 67
Helenize Soares Serres é douto-
ordem religiosa”, explica a historiadora ra em História pela Unisinos, tendo
Helenize Soares Serres. Ou seja, era a realizado estágio doutoral no Institu-
paisagem rural da redução, responsável to de Historia Argentina y America-
também pela produção de alimentos na Dr. Emilio Ravignani, em Buenos
que subsidiaria as ações dentro desse Aires. Também é mestra em História
grande complexo gerido pela Compa- pela Universidade Federal de Pelotas
nhia de Jesus. - UFPel, graduada e especialista em
Na entrevista a seguir, concedida por História pela Universidade da Região
e-mail à IHU On-Line, Helenize ob- da Campanha - Urcamp. Entre suas
serva que essa definição já revela que publicações, destacamos: Os “pueblos
a estância vai muito além do espectro de índios” e suas estâncias. Litígios de
religioso. “A fundação dos povos e con- fronteira no espaço missioneiro (In:
versão de seus moradores provocou Fronteiras e identidades: reunião de
transformações de vários níveis. Os artigos do III EIFI. Pelotas: Edição do
padres jesuítas promoveram mudanças autor, 2017) e Jesuítas e espanhóis na
no âmbito religioso, na política e na so- construção do espaço da Estância de
ciedade, por exemplo”, acrescenta. Mas La Cruz (In: Missões em Mosaico: Da
isso não se dava de forma homogênea, Interpretação à prática: um conjunto
o que vai fazer da estância, além de de experiências. Porto Alegre: Faith
ponto de encontro entre culturas, um Ltda, 2011).
local de disputa. “As estâncias missio- Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consis- Helenize Soares Serres – As criação, mas também porque nelas
tiam e como se configuravam estâncias missioneiras ocuparam foi desenvolvida uma vida que esta-
as estâncias missioneiras? E em um papel imprescindível na histó- va além do povoado, espaço ao qual
que se diferenciavam das demais ria das missões jesuíticas. Foram permaneciam interligadas a partir
missões e reduções jesuíticas? importantes por serem espaço de de diversas questões, entre elas, ad-

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TEMA DE CAPA

ministrativas, econômicas ou, ainda, prover as reduções de animais de dentro do mundo colonial, a qual,
de ordem religiosa. Elas compõem abate. segundo Bartomeu Melià3 (1997),
o que pode ser considerada como mostrou-se utópica. Desse modo,
“paisagem agrária” das reduções, as os jesuítas no espaço reducional

“A redução
quais foram sendo construídas pela buscavam conduzir os indígenas a
intervenção humana nos ervais, áre- viver concentrados, ou seja, em po-
as de cultivo e onde se vai criar gado.
A partir de cartas e crônicas dos
buscava a voados sobre o controle do Estado e
da Igreja, interferindo em aspectos
jesuítas, sabemos que a produção
e distribuição de alimentos para
estabilidade sociais, políticos e econômicos de
suas sociedades, em um esforço de
os índios reduzidos era um grande da população ocidentalização.
Assim, ela deve ser entendida como
indígena para
desafio. Os períodos de fome cos-
tumavam ter consequências muito algo mais que um fenômeno religio-

que pudesse,
negativas como fugas e decrésci- so, uma vez que a fundação dos po-
mo populacional. Por isto, pode-se vos e conversão de seus moradores
compreender a necessidade que os
jesuítas tinham de garantir uma pro- de fato, provocou transformações de vários
níveis. Os padres jesuítas promove-
dução alimentícia capaz de sustentar
grupos de indígenas das missões,
consolidar- ram mudanças no âmbito religioso,
na política e na sociedade, por exem-
que podiam ser consideravelmente
grandes. Nesse sentido, a carne de
se uma plo. Não resta dúvida que também
as pautas econômicas indígenas de-
gado constituía uma fonte essencial
de comida.
comunidade veriam ser transformadas.

As estâncias surgiram, ainda, para cristã” IHU On-Line – Qual o papel


solucionar um problema que as va- dessas estâncias missioneiras
carias ofereciam por suas vastas no processo de colonização da
68 IHU On-Line – Normalmen-
extensões de terra, pois evitariam a América?
dispersão do gado pelas pastagens, te, se associa a aglutinação dos
índios nas reduções apenas Helenize Soares Serres – As
livres para o consumo e o rapto pe-
sob uma perspectiva religiosa. missões na antiga Província Jesuítica
los portugueses e pelos nativos da
Como superar essa visão, es- do Paraguai4, das quais fazem parte
região, como os Charruas1 ou Minua-
tendendo o olhar também para os povoados missioneiros, iniciaram-
nos2, bem como pelos espanhóis. Por
se no século XVII e se desenvolveram
estarem mais próximas das reduções perspectivas econômicas, polí-
sem interrupções até 1767. Foram
do que as vacarias, elas proporciona- ticas e sociais das reduções?
uma “instituição de fronteira” em que,
vam um maior controle do gado, que Helenize Soares Serres – A re- pela ação dos jesuítas, para desenvol-
permanecia reunido e próximo aos dução buscava a estabilidade da popu-
cuidados dos indígenas missionei- lação indígena para que pudesse, de 3 Bartomeu Melià: jesuíta espanhol Bartolomeu
ros responsáveis pelo trabalho com fato, consolidar-se uma comunidade
Melià, pesquisador do Centro de Estudos Paraguaios
Antonio Guasch e do Instituto de Estudos Humanísticos
os animais. Nelas se encontravam cristã, a partir, por exemplo, de práti- e Filosóficos. Sempre se dedicou ao estudo da língua
guarani e à cultura paraguaia. Doutor em ciências
capelas, além de casas, currais, gal-
cas de trabalho que seguiam uma rela- religiosas pela Universidade de Estrasburgo, acompanhou
pões e hortas. Tinham, ainda, uma e conviveu com os indígenas Guarani, Kaigangue e
ção com a organização econômica das Enawené-nawé, no Paraguai e no Brasil. É membro
estrutura com afazeres produtivos da Comissão Nacional de Bilinguismo, da Academia
sociedades guaraníticas. Nas missões, Paraguaia da Língua Espanhola e da Academia Paraguaia
que eram importantes para a susten-
eles participavam de uma nova vida de História. Entre suas publicações, citamos El don, la
tabilidade dos pueblos missioneiros. venganza y otras formas de economia (Assunção: Cepag,
social, contribuindo na ocupação do 2004). Confira a entrevista As missões jesuíticas nos sete
Formavam, portanto, parte do espa- povos das missões, concedida por Melià à edição 196 da
espaço e no desenvolvimento da so- Revista IHU On-Line, de 18-9-2006, disponível em http://
ço econômico das missões jesuíticas,
ciedade colonial espanhola. migre.me/vMqU. Na noite de 26-10-2010 Meliá proferiu
constituindo unidades produtivas a conferência A cosmologia indígena e a religião cristã:
encontros e desencontros de universos simbólicos, dentro
em que se criava o gado que deveria Ao lado dos objetivos de alcance da programação do XII Simpósio Internacional IHU – A
Experiência Missioneira: território, cultura e identidade.
espiritual e moral que os jesuítas Confira a programação completa do evento em http://
1 Charruas: [também grafado como charrúas] índios que tinham para as reduções, estavam migre.me/vMs5. Confira, na edição 331, uma entrevista
habitavam nos campos dos territórios atuais do Uruguai, com Meliá, intitulada “A história de um guarani é a
do nordeste da Argentina (especialmente na Província de focados também em construir uma história de suas palavras”, disponível em http://migre.
Entre Ríos) e do sul do Rio Grande do Sul, no Brasil. (Nota me/MqPH. Confira, ainda, o Perfil de Melià, publicado em
da IHU On-Line) sociedade que pudesse progredir http://migre.me/2pf5p. (Nota da IHU On-Line)
2 Minuanos: grupo indígena que habitava os campos no na mesma proporção da dos colo- 4 Província jesuíta do Paraguai: foi uma das províncias
sul do estado brasileiro do Rio Grande do Sul, bem como da Companhia de Jesus na América do Sul antes de sua
o Uruguai. Emprestam o nome ao vento forte vindo do nos, com uma vida social, política e expulsão do território do Império Espanhol entre 1767 e
sudoeste, frio e cortante, que sopra no Rio Grande do Sul, 1768. Esta região ou província, então dependente do Vi-
depois das chuvas de inverno. Eram índios com origens econômica organizada, porém, sem ce-Reino do Peru, abrangia regiões da corrente: Paraguai,
na região da Patagônia, como os Charruas e os Guenoas, ser administrada diretamente pelos Argentina, Uruguai, Bolívia e partes do Brasil e do Chile,
com os quais nunca se sobrepunham no mesmo território. e a sede do pai provincial ficava na cidade de Córdoba.
(Nota da IHU On-Line) espanhóis. Esta era uma alternativa (Nota da IHU On-Line)

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ver a “polícia civil e cristã” junto aos Os jesuítas foram os guias dessa como os Guenoas5 e Charruas, eram
povos indígenas, buscava-se contri- empreitada constituída por relações tidos como hábeis em certas ativida-
buir para o controle colonial destes sociais que foram se desenvolvendo des desenvolvidas nas estâncias.
territórios. Isto implicava “reduzir a com intuito de reunir os povos atra-
Através do Diario de viaje a las va-
pueblos”, ou seja, interferir no padrão vés de atividades diversas, envolven-
querias del mar, escrito pelo Padre
de assentamento disperso dos índios do valores de coletividade e ideias do
Silvestre Gonzalez6, por exemplo,
para concentrá-los de forma a facilitar cristianismo, a partir de uma vida
conseguimos perceber a participa-
a catequese e o controle sobre eles. As social. Porém, é certo que as relações
ção dos Guenoas atuando como va-
estâncias das missões orientais abar- entre os povos ocorreram por vários
queiros nas áreas rurais. Da mesma
cavam uma vasta área do atual terri- meios e que muitos foram os confli-
forma, hoje também sabemos que
tório do estado do Rio Grande do Sul tos entre os cristianizados e também
reduzidos e não reduzidos encontra-
e da República do Uruguai. Trata-se com os povos infiéis que, mesmo não
vam meios de interação, o que verifi-
das fundações jesuíticas localizadas aceitando a evangelização, tinham
camos a partir de cartas e pareceres
na margem oriental do rio Uruguai: acesso a estâncias em aproximações
de membros da Companhia de Je-
estância de San Borja; estância de San amigáveis ou não.
sus, encontrados no Archivo Gene-
Lorenzo; estância de San Luis, estân-
ral de la Nación, em Buenos Aires,
cia de San Nicolás; estância de Santo
IHU On-Line – Quais foram Argentina.
Ángel; estância de San Juan Bautista;
estância de San Miguel. as estâncias missioneiras de As estâncias oportunizavam o con-
maior destaque desse período? tato com diversos sujeitos que não
Foram estabelecidas no período
Helenize Soares Serres – As eram “índios reduzidos”, os “infiéis”
conhecido como “segunda entrada”
estâncias de maior destaque, tanto visitavam as estâncias para buscar
dos jesuítas na região, haja vista que
em extensão de terra quanto de cir- “regalos” ofertados pelos padres que
eles haviam iniciado suas atividades
culação de gado, foram a de Yapeyú desejavam atraí-los à catequese, e
apostólicas nesta área anteriormen-
e San Miguel. Yapeyú foi a redução também para promover assaltos e
te. As fundações das reduções e suas
mais meridional de todas as da conflitos. Além de outros nativos,
respectivas estâncias ocorreram en-
frente missioneira, estando situada há também gente que se subtrai da
tre o final do século XVII e início do 69
à margem direita do rio Uruguai, esfera hispano-colonial da socieda-
século XVIII, período de expansão
em frente à desembocadura do rio de e se fez presente nesses espaços.
dos povoados. O maior legado das
Ibicuí. Este pode ser considera- Um dos problemas que se apresen-
estâncias missioneiras é sua im-
do como o limite sul do território tava com constância no cenário das
portância na história das missões
de ocupação guarani-missioneira. missões diz respeito ao roubo de
jesuíticas, pois foram agentes pro-
Sua estância, entretanto, estava gado. Via de regra, este era um con-
pulsores do desenvolvimento das
localizada no lado esquerdo do rio flito ocasionado pelos grupos nôma-
reduções, vindo a ser uma parte es-
Uruguai. Já a estância e redução de des que frequentavam o espaço que
sencial dos povoados.
San Miguel, ambas estavam locali- os jesuítas consideravam como rela-
zadas no lado oriental do rio Uru- cionado às suas estâncias e, correta-
IHU On-Line – Como compre- guai, atual estado do Rio Grande mente, às suas missões.
ender as estratégias sociais, po- do Sul, Brasil.
líticas e econômicas dos jesuí-
IHU On-Line – Como compre-
tas na condução das estâncias
IHU On-Line – Como compre- ender as questões de fundo nas
missioneiras?
ender as relações que se esta- disputas entre indígenas e es-
Helenize Soares Serres – A panhóis? De que forma a figura
beleciam nesses espaços?
criação das estâncias, como forma de do missionário jesuíta se insere
organização e desenvolvimento, pos- Helenize Soares Serres – As nesse contexto?
sibilitou um crescimento e valoriza- estâncias missioneiras foram hori-
Helenize Soares Serres – No
ção do espaço onde se situavam. Por zontes de relações, em diferentes ní-
espaço das missões jesuíticas ocorre-
exemplo, as estâncias, que se encon- veis, com grupos chamados “infiéis”,
ram muitas disputas que envolveram
travam como reservas econômicas com espanhóis fugitivos e mesmo
diferentes atores sociais. Nos povoa-
e territoriais das reduções. Assim, portugueses em busca de gado. Essa
também tinham a função de vigiar as situação mostrou o trânsito que ha- 5 Guenoas: [também conhecidos como guanoas]: eram
fronteiras servindo de barreira para via na área rural a partir dos pontos: índios da região da Patagônia, região que hoje fica en-
tre Argentina e Chile, que viviam errantes nas terras ao
o avanço de invasores, além, ainda, invasões e roubos de gado e laços de oriente do rio Uruguai, no ângulo sudoeste do estado do
da tentativa de evangelização com parentesco ou acolhida como forma Rio Grande do Sul, estendendo-se até o oceano Atlântico.
São considerados os charruas setentrionais. (Nota da IHU
objetivo de conversão e integração de refúgio. A historiografia hoje re- On-Line)
6 Padre Silvestre Gonzalez: nasceu em Hueva, Espanha,
das parcialidades indígenas e mais a conhece que, nos povoados missio- em 1657. Ele ingressou na Companhia de Jesus em 1675
manutenção e exploração dos recur- neiros, havia grupos indígenas que e chegou a Buenos Aires em 1681. Concluiu seus últimos
votos em Santiago del Estero, Argentina, em 1689, e fale-
sos naturais do espaço povoado. não eram guaranis. Alguns deles, ceu em Candelária, em 1708. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

dos, mesmo havendo prevalência de originários e o contato com cul- legados da história de formação da
uma estabilidade no plano interno, turas mais “ocidentalizadas”? nossa sociedade como um todo, em
não havia ameaças só pelo que vem prol de dias melhores.
Helenize Soares Serres – A
de fora. A população das missões,
experiência de missão na coloniza-
de fato, não era homogênea, pois,
ção da América é mais uma forma IHU On-Line – Deseja acres-
ao contrário, podemos observar in-
de apresentar a importância desses
dícios de interações entre diferentes centar algo?
diferentes grupos indígenas na his-
grupos nativos nos povoados. O que
tória da nossa sociedade, a partir Helenize Soares Serres – A
existiu foi um território de atuação
de um processo de aculturação que pesquisa sobre as estâncias missio-
da Companhia de Jesus, mas não
mostra as trocas que ocorreram. De neiras foi realizada através do es-
exclusivamente dela. Ele continuou
fato, o colonialismo provocou, para tudo da historiografia das missões
sendo área de vivência de outros
os índios reduzidos, diversas ruptu- jesuíticas a partir de diferentes abor-
grupos indígenas, bem como de no-
ras no seu sistema tradicional, mas dagens que contemplassem de algu-
vos atores sociais, como espanhóis
fugitivos, marginalizados e portu- não há como negar que os jesuítas ma forma as estâncias. Na tentativa
gueses da Colônia de Sacramento. buscaram elementos de apoio nas de buscar, desse modo, subsídios
formas de vida destes índios, sempre que lançassem luzes sobre elas, uma
A visão do cenário interno deve ser que elas não entravam em choque vez que raros foram os trabalhos
tensionada, pois houve muitos con- com os preceitos religiosos, morais que trataram especificamente desse
flitos que se estenderam a longo pra- e civilizacionais do ocidente cristão. tema. Paralelamente, foi analisado
zo. Embora saibamos que relações
Desse modo, as referidas rupturas um conjunto de documentos elabo-
de tipo diferente devessem ocorrer
de diversas outras formas, aquelas não são um sinal do fim de uma cul- rados pelos jesuítas, assim como ou-
em nível “oficial”, tramadas entre os tura, tanto que, em algumas áreas, as tros, provenientes da administração
pueblos que formavam o conjunto da características da organização mis- da colônia espanhola, referentes ao
Província Jesuítica do Paraguai, no sioneira levaram em conta as práti- período das reduções, girando em
que se refere à figura do missionário, cas indígenas. O regime de trabalho torno das estâncias e envolvendo
eram estabelecidas através dos seus e de produção é uma destas esferas, questões internas e externas a elas.
70 sendo que se mantiveram, em parte,
representantes, que vinham a ser os Os documentos utilizados foram
curas de cada missão. Muitos acor- a organização coletiva do trabalho e
a posse comunitária dos seus frutos. prospectados a partir de pesquisas
dos que foram firmados estreitaram
feitas em Buenos Aires, no Archivo
os laços entre eles.
General de la Nación, onde foram
Porém, assim como havia acordos, IHU On-Line – Quais os desa- encontradas várias informações so-
também encontramos distancia- fios para se pensar numa ideia bre a Companhia de Jesus, entre
mentos e desavenças entre os povo- de missão no nosso tempo, esses, Memoriais com dados sobre
ados. Isso pode ser observado, por num mundo em que vivemos a a situação dos povoados, o funcio-
exemplo, em pleitos que mostram chamada crise migratória? namento das estâncias e a presença
que havia competitividade. Esses nelas dos indígenas missioneiros
Helenize Soares Serres – A
pleitos geralmente se resolviam em através de atividades laborais. Os
migração segue acontecendo prin-
longo prazo e costumavam envolver
cipalmente por questões políticas e Memoriais também traziam elemen-
disputas por recursos como terras
econômicas, exemplos contemporâ- tos sobre os grupos residentes nas
e gado. Em meio a esses problemas
neos é a guerra na Síria, levando mi- estâncias, bem como sobre o tipo e a
internos, atuavam Provinciais, Su-
lhões de pessoas a deixarem o país quantidade de animais que nelas se
periores e Curas, tentando resolver
os litígios, sendo que, em algumas em busca da própria sobrevivência, podiam encontrar.
situações, até mesmo o Padre Ge- ou ainda, a crise na Venezuela com
A partir da Biblioteca Nacional do
ral veio a se manifestar. Assim, a alta inflação, escassez de alimentos
Rio de Janeiro, a consulta à Coleção
atenção a este tipo de ocorrência e de produtos de necessidade bási-
ca, que também impulsionaram uma de Angelis permitiu encontrar fontes
assinala a necessidade de relativizar importantes como Memoriais dos
a compreensão prevalecente que forte onda migratória. A relação
com a ideia de missão vem a partir Superiores das Missões do Paraná e
acentuou aspectos da solidariedade do Uruguai. Também, no acervo do
entre os povos. da acolhida, da possibilidade de in-
tegração entre diferentes culturas, Instituto Anchietano de Pesquisa na
estabelecendo relações em prol da Unisinos, foram encontrados os Ma-
IHU On-Line – No que a expe- sobrevivência, que busca enfatizar a nuscritos da Coleção de Angelis, isto
riência de missão na coloniza- humanização e a não violência. Acre- é, documentos que foram editados
ção da América espanhola pode dito que carece as nações pensarem da referida Coleção, bem como obras
nos inspirar a, hoje, pensar e agirem com maior tolerância e co- que constituem a literatura clássica
acerca da relação entre povos letividade, e talvez recorrerem aos sobre as missões jesuíticas.■

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PUBLICAÇÕES

O pontificado de Francisco e o laicato


na missão da Igreja hoje. Avanços e
impasses da “parrésia eclesial”

A
edição 138 dos Cadernos Teologia Pública apresenta o texto O pontificado
de Francisco e o laicato na missão da Igreja hoje. Avanços e impasses da
“parrésia eclesial”, de Andrea Grillo. Para o autor, parece que “Francisco,
exatamente enquanto Papa, teve o mérito histórico de introduzir formalmente
– e eu diria plasticamente – um grande paradoxo: para contestar a categoria de
‘leigo’ é suficiente descobrir, reconhecer e admitir que o papa ‘não é primaria-
mente um clérigo’. Ou melhor, apesar de ser ‘clérigo’ pela formação e cultura,
talvez por causa de sua natureza ‘religiosa’
jesuítica, se comporta, fala, pensa como
um ‘não clérigo’. É por isso que ele é reco-
nhecido ‘por instinto’ pelos ‘não clérigos’
e é frequentemente mal compreendido
– talvez também aqui por instinto ou au-
todefesa – pelos ‘seus’ clérigos”. Grillo en-
72 tende que deve então “identificar em que
sentido a ‘missão da Igreja’ envolve radi-
calmente todos os batizados e batizadas.
Não porque constituam ‘o laicato’ – que
continua sendo uma categoria sociológica
com pretensões teológicas –, mas em vir-
tude de seu batismo e de sua comunhão
eucarística. No entanto, esta passagem,
apesar de estar oficialmente escrita nos
textos de Concílio Vaticano 2 (CV2), con-
tinua sendo um passo difícil e árduo, pois
repousa sobre ‘estruturas’ ainda profun-
damente ‘leigas’ e ‘clericais’”.
Andrea Grillo é filósofo e teólogo ita-
liano, leigo, especialista em liturgia e pas-
toral. Doutor em teologia pelo Instituto de
Liturgia Pastoral, de Pádua, é professor
do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de
Roma, do Instituto Teológico Marchigia-
no, de Ancona, e do Instituto de Liturgia
Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de
Pádua. Também é membro da Associação
Teológica Italiana e da Associação dos
Professores de Liturgia da Itália.
A versão completa deste Cadernos Teologia Pública está disponível em https://
bit.ly/2QHVVPO.
Esta e outras edições dos Cadernos Teologia Pública também podem ser obti-
das diretamente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no campus São Leopol-
do da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humanitas@
unisinos.br. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

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REVISTA IHU ON-LINE

Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

A experiência missioneira: território, cultura e


identidade
Edição 348 – Ano X – 25-10-2010

Em alusão ao XII Simpósio Internacional IHU – A experiência mis-


sioneira: território, cultura e identidade, promovido pelo Instituto Hu-
manitas Unisinos - IHU, em parceria com o PPG em História, da Unis-
inos, a revista IHU On-Line debate essa experiência, nos 400 anos da
fundação das primeiras reduções da Província da Companhia de Jesus
do Paraguai.

A Globalização e os Jesuítas
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Edição 196 – Ano VI – 18-9-2006

A celebração mundial do Ano Jubilar Inaciano, fazendo a memória dos


450 anos da morte de Inácio de Loyola e dos 500 anos de nascimento de
Francisco Xavier e Pedro Fabro, companheiros do primeiro que fundou
a Companhia de Jesus, inspirou a realização do Seminário Internacional
Os Jesuítas e a Globalização.

Companhia de Jesus. Da Supressão à


Restauração

Edição 458 – Ano XIV – 10-11-2014


Era 1773. Do Canadá à Terra do Fogo, da Amazônia brasileira aos recantos
da China, espalhavam-se cerca de 23 mil jesuítas, membros da Companhia
de Jesus. Coordenando mais de 800 estabelecimentos de ensino, reconheci-
dos catequistas, educadores e administradores, os membros da ordem cria-
da por Santo Inácio de Loyola viram tudo ruir a partir de um breve papal,
que estabeleceu a supressão da Companhia, que perdurou durante 41 anos.
Ao retornar, em 1814, são cerca de 600 os inacianos responsáveis por dar
continuidade ao projeto missionário. Um processo lento e progressivo, que
culmina — mas não se encerra — com a eleição de um papa jesuíta em 2013.

EDIÇÃO 530
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