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EM BUSCA DA
IMORTALIDADE
O imaginário da morte no antigo Egipto
ROGÉRIO SOUSA
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ÍNDICE
NOTA PRÉVIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
IMAGENS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
MAPAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249
BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
ABREVIATURAS UTILIZADAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267
CRONOLOGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 268
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The Fountain,
Darren Aronofsky (2006)
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NOTA PRÉVIA
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ROGÉRIO SOUSA
Kom (Luxor), Setembro/Dezembro de 2009
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INTRODUÇÃO
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tal seria impossível, não nos propomos aqui apresentar uma síntese sobre
todas as áreas de conhecimento que se ocupam desta matéria. Tão pouco
seria possível abordar de forma credível o estudo aprofundado de estrutu-
ras tão complexas como os monumentos funerários reais, nem o de explo-
rar a extraordinária mole de textos funerários e mágicos que, apesar da
destruição infligida pelos séculos, chegaram aos nossos dias. Seria tentador
abordar o imaginário da morte através das suas expressões materiais na
arte funerária, mas uma tal opção, por se basear em sucessivos casos par-
ticulares, dificilmente se ajustaria à visão holística que aqui me proponho
apresentar. O leitor poderá aprofundar os seus conhecimentos em aspec-
tos particulares das crenças funerárias através das notas que acompanham
o texto e através das indicações bibliográficas apresentadas no final deste
volume. Obviamente que ao seleccionar os elementos em estudo neste li-
vro fui levado a não considerar um conjunto imenso de outros dados que
poderiam ser igualmente esclarecedores e ilustrativos da temática em ques-
tão. Não me move, portanto o ensejo de exaustividade, mas sim o de re-
presentatividade.
O objectivo essencial deste livro é, portanto, o de proporcionar uma
leitura holística que unifique e relacione entre si os aspectos através dos
quais a ideia da morte se desdobrava no antigo Egipto. No entanto, o es-
tudo das crenças e das práticas funerárias egípcias remete-nos para con-
textos tão diversificados e distintos entre si que por vezes se torna difícil
estabelecer um laço de continuidade entre elas. Tanto para o público ge-
neralista como para o próprio especialista, torna-se difícil e, por vezes te-
merário, entre o extraordinário conjunto de textos, objectos e toda a es-
pécie de informações disponíveis, encontrar um significado unificador
que dê sentido à heterogeneidade das imagens, dos rituais e dos espaços.
Num trabalho de síntese, mais do que as manifestações particulares, é es-
sencial a compreensão do todo e a integração das partes num certo en-
quadramento espacial e temporal. A apreensão do todo, no entanto, so-
bretudo para as etapas mais recuadas da civilização egípcia, permanece
dificultada pelo carácter lacunar das fontes o que, apesar de reconhecer-
mos as limitações e o carácter provisório do estado actual dos nossos co-
nhecimentos, não nos deve impedir de esboçar, tanto quanto nos é pos-
sível, uma visão de conjunto. Ora é essa visão de conjunto que, uma vez
formulada, se torna organizadora de sentido e permite, por si mesma, in-
tegrar os aspectos particulares à luz de relações que, de outro modo, pas-
sariam insuspeitas. Com todas as limitações e riscos implícitos numa abor-
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CAPÍTULO I
O MITO DA MORTE
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morte. Era entre estas duas imagens diametralmente opostas que o ima-
ginário egípcio da morte se estendia como um caminho de afirmação con-
tra uma condição de injustiça. De certo modo a monumentalização da
morte que se observa no antigo Egipto explica-se pela necessidade de afir-
mar a imortalidade através de uma demonstração inequívoca que ateste
a superação do mal. A imortalidade estava, portanto, conotada com o
combate cósmico entre a maet e a isefet, a ordem e o caos, respectivamen-
te. Só poderemos compreender a relação entre a imortalidade e reposição
da ordem cósmica no quadro dos referenciais míticos que justificam as
práticas funerárias. Neste âmbito, é nos mitos que tematizam a criação
do mundo que devemos em primeiro lugar procurar as representações
egípcias sobre as condições indispensáveis à vida, bem como as que intro-
duzem a morte.
1. A CRIAÇÃO DA MORTE
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3. Iunu, a cidade do culto solar, foi o maior centro religioso e cultual do Egipto. No seu templo
era venerado o deus solar nas suas três manifestações: Ré, Khepri e Atum. Aí se cultuava tam-
bém o benben, o monólito associado à colina primordial cuja extremidade coberta de ouro
recebia os primeiros raios de sol em cada manhã. A teologia solar, aí concebida desde a mais
remota antiguidade, foi decisiva para a vida religiosa e política do Egipto. A associação de Ré
à monarquia consolidou-se na IV dinastia e, apesar da ascensão de Amon e de Osíris, perma-
neceu sempre uma divindade de alcance nacional.
4. Era o deus Atum que estabelecia uma solução de continuidade entre o mito hermopolitano e o
mito heliopolitano, pois consistia na manifestação madura e «idosa» de Nefertum, a criança solar
criada pela Ógdoade. Mais do que uma versão contraditória da criação, estes mitos descreviam
momentos diferentes da criação: a Ógdoade criou Nefertum, a criança solar que, ao atingir a ma-
turidade, criou a Enéade, ou seja, toda a comunidade de deuses que regem o funcionamento do
cosmos.
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ções igualmente possíveis do seu nome5, o que significa que o criador re-
sumia em si mesmo os extremos opostos: o tudo e o nada, o ser e o não
ser. Apesar de personificar a unidade primordial da criação, Atum era
também o criador de «Duas coisas», ou seja, era o deus primordial que
introduziu a dualidade e, desse modo, a vida6.
De acordo com o mito heliopolitano, a criação de Atum iniciou-se
sobre a pedra benben, o monólito sagrado de Heliópolis. O monumento
que havia de inspirar a erecção dos obeliscos assinalava este momento ori-
ginal que começou com a masturbação de Atum. Ao ejacular, Atum ori-
ginou Chu7 (representado no fluxo de energia associado à libertação do
sémen) e Tefnut8 (identificada com a essência vital do sémen)9. Parece
consensual que este par primordial corporizava a diferenciação dualista
entre os princípios masculino e feminino que perpassava por toda a cria-
ção10. Em termos cosmológicos é habitual identificar Chu com a atmos-
____________
5. ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 9.
6. Muitos aspectos da iconografia real apresentam uma configuração dualista precisamente com
o intuito de identificarem o faraó com o próprio Atum. A coroa real, por exemplo, é uma coroa
dupla, a pa-sekhemti («As Duas Poderosas»), composta através da sobreposição da coroa bran-
ca, evocativa do Alto Egipto e do órgão sexual masculino, com a coroa vermelha, evocativa do
Baixo Egipto e do órgão sexual feminino. Fazendo alusão à união sexual entre o princípio mas-
culino (coroa branca) e feminino (coroa vermelha), a coroa dupla era o símbolo, por excelên-
cia, de Atum, a totalidade. Ao usá-la, o faraó do Egipto identificava-se com o criador heliopo-
litano e chamava a si a responsabilidade pela recriação do mundo através do equilíbrio dinâ-
mico que fazia reinar sobre as Duas Terras e sobre toda a criação graças à harmoniosa e fecun-
da articulação entre os dois princípios cósmicos complementares. Também na titulatura real se
manifestava o carácter dual do seu poder: o título das Duas Senhoras, bem como o título de
rei do Alto e do Baixo Egipto, definiam o papel criador do poder real. Ver BONHÊME e
FORGEAU, Pharaon, pp. 102-110.
7. Chu tem sido frequentemente associado ao «ar», ou ao «sopro de vida», ver VELDE, «Some
Aspects of God Shu», JEOL 26 (1979-1980), pp. 23-28. A imagem da ejaculação é bastante
interessante pois fornece uma imagem visual do poder de projecção «para cima» deste sopro. A
imagem preconiza assim aquele que é o seu atributo mais comum como deus da atmosfera: o
poder de erguer o céu.
8. A deusa é frequentemente associada à humidade, muito embora o seu âmbito não se esgote
nesta associação. Na maior parte das vezes possui uma conotação vincadamente solar, personi-
ficando o Olho de Ré e o uraeus real.
9. Devido à sua indispensável colaboração no processo criativo, a mão do demiurgo acabou por
merecer uma hipostização sob a forma da deusa Iusaés que assim se tornava no princípio femi-
nino subjacente à criação. Para a deusa Iusaés ver ARAÚJO, «Iusaés», em idem, Dicionário do
antigo Egipto, p. 456. Outras versões perspectivavam a criação de Chu e Tefnut através da sali-
va ou do suor de Atum. Evidentemente nenhuma destas formas era considerada como uma
verdadeira etiologia da criação. Através das imagens corporais procurava-se explicar a transmis-
são da «matéria» de uma fonte una para a heterogeneidade do mundo exterior.
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Osíris era, portanto, o deus que reinava sobre a criação. Esta afirmação
requer, no entanto, um enquadramento prévio já que começámos por referir
que, no mito heliopolitano, Atum era, por excelência, a personificação do
soberano cósmico e o modelo arquetípico do faraó do Egipto. Como e em
que circunstâncias se verifica a sucessão do rei cósmico é o que é necessário
esclarecer antes de mais nada. Esta questão foi claramente tematizada no
Livro da Vaca Divina cuja versão final parece ter sido estabelecida ao longo
do período amarniano. Aí, Ré é evocado como um deus Sol envelhecido e
incapaz de agir com eficácia, o que levou os homens perversos a planearem
uma rebelião13. Decidido a pôr fim a esta ameaça, Ré encarregou Sekhmet, a
feroz deusa leonina, de matar a humanidade. No entanto, ao ver a chacina
provocada pela implacável deusa, o deus Sol arrependeu-se e tentou salvar a
humanidade da fúria de Sekhmet14. Esta, no entanto, embriagada num fre-
nesim de matança, era incapaz de parar. O deus Sol, que ainda habitava a
terra (no seu palácio de Heliópolis), fez então trazer de Elefantina a água da
cheia e misturou-a com cerveja e um pigmento vermelho de modo a sugerir
o sangue humano. A terra do Egipto manchada do sangue dos homens foi
então inundada pela cheia mágica provocada por Ré. Ao ver o líquido ver-
melho, a deusa tomou-o pelo sangue humano e embriagou-se, aplacando,
por fim, a sua fúria contra a humanidade. Esta cheia desencadeada por Ré
era, portanto, o símbolo de uma regeneração desejada para o mundo novo
que havia de nascer depois desse episódio funesto. No entanto, tudo iria
mudar desde então. Desapontado com a iniquidade dos homens, o deus Sol
retirou-se para o céu e confiou a Tot o arbítrio sobre a legalidade e a justiça.
Doravante, o céu e a terra estariam separados entre si. O céu tornar-se-ia a
morada dos deuses onde a maet se mantinha pura como no tempo primor-
dial, ao passo que a terra, que a maldade dos homens havia corrompido irre-
paravelmente seria entregue aos homens. Os sucessores de Atum no trono do
Egipto teriam, daí em diante, a responsabilidade de velar pela maet no
mundo terreno para que a terra continuasse ligada ao céu.
Estas são, portanto, as peripécias do drama que conduziu à eclosão
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13. HORNUNG, L’ Un et le Multiple, p. 138.
14. SALES, Estudos de Egiptologia, pp. 135-156.
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do mal na criação. Tal como a morte, o mal não resultava da criação divi-
na, mas do orgulho humano, o que se apresenta perfeitamente ajustado
à representação do mal na tradição bíblica. Também a morte havia de
surgir acidentalmente, mas desta feita após a partida de Ré para o céu.
Seria, portanto, necessário aguardar pelos sucessores de Ré para assistir a
esse terrível evento.
No Cânone Real de Turim, que data da XIX dinastia, é apresentada
uma linhagem real mítica que antecede os faraós humanos: a lista come-
ça por Ptah, o deus primordial das origens, ao qual se segue o deus Sol,
sucedendo-lhe Chu, o seu primogénito, Geb, o deus da terra, e Osíris15.
É neste enquadramento mitológico, em que Osíris desempenhava a fun-
ção de soberano da terra, que a morte finalmente irrompe no mito helio-
politano. É Set, o irmão de Osíris, o responsável pela ocorrência da pri-
meira morte: invejoso do seu irmão, Set assassina-o e retalha o seu corpo,
dispersando-o pelo Egipto. Tal como na tradição bíblica, a morte não sur-
giu, como seria de esperar, em resultado do envelhecimento, o que leva-
ria a enquadrar a morte como um dado pertencente à ordem natural das
coisas. Pelo contrário, a morte irrompe no contexto da nova geração e
concretiza-se através de um crime, o mais hediondo de todos, o fratricí-
dio. Apesar de ser evidente o resultado final desta acção, as fontes egíp-
cias são omissas quanto ao acto em si, uma vez que, de acordo com a
perspectiva egípcia da escrita, representar uma ideia, pelo texto ou pela
imagem, levava a perpetuar os seus efeitos no mundo o que, no caso do
crime de Osíris, se procurava contrariar a todo o custo. O episódio, no
entanto, é por nós sobejamente conhecido graças aos relatos bastante cir-
cunstanciados patentes em De Iside et Osiride de Plutarco, bem como de
Diodoro (I, 22). De acordo com estas alusões, Osíris não foi apenas mor-
to, como o seu corpo foi violentamente desmembrado. Apesar de retalha-
do por Set, o cadáver de Osíris foi recuperado por Ísis e Néftis que, com
a força da magia e do amor o reanimaram, confeccionando a primeira
múmia. Apesar da sua união com Set, Néftis é mais intensamente asso-
ciada a Osíris constituindo a aliada incondicional de Ísis na luta para rea-
nimar o cadáver do deus. Embora não seja muito claro, Anúbis, o deus
do embalsamamento, parece ser precisamente o resultado da união de
Néftis com Osíris. Mais do que uma aventura «extraconjugal» de Osíris,
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15. HORNUNG, L’Un et le Multiple, p. 140.
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devemos ler esta união divina à luz de uma interpretação teológica: ela
simbolizava o papel que o saber depositado nos templos desempenhava
na luta contra os efeitos maléficos de Set sobre a criação.
Apesar do falo de Osíris ter sido tragado pelo peixe nar, Ísis confec-
cionou um novo membro viril para restituir à múmia de Osíris toda a sua
vitalidade e vigor e foi tão bem sucedida no seu intento que à reanima-
ção de Osíris se seguiu a união amorosa do casal, da qual resultou a con-
cepção póstuma de Hórus. Uma vez mais, o enredo mítico afirma-se co-
mo um veículo para difundir imagens basilares da morte: se a morte era
um crime, a imortalidade era, antes de mais, um dom do amor. A repo-
sição da ordem cósmica, comprometida pelo assassínio de Osíris, no en-
tanto, estava ainda longe de estar assegurada. Perseguida por Set, Ísis
«refugia-se» nas florestas de papiro do Delta para dar à luz o seu filho. Na
Antiguidade, em que as florestas de papiro constituíam um domínio im-
penetrável e povoado toda a espécie de perigos e ameaças mortais, esta
imagem da fuga de Ísis devia ser bem expressiva do furor persecutório de
Set que, até ele, se detinha neste território temível. O parto de Ísis é, por-
tanto, a imagem mais intensa da vulnerabilidade da verdade e da pureza
perante os perigos infligidos pelo mal16. No entanto, por uma espécie de
revés do destino, foi precisamente aí, em convívio com os inúmeros peri-
gos que o rodeavam,17 que Hórus se «tornou forte»18 e se preparou para
reivindicar o trono do seu pai no tribunal heliopolitano dos deuses.
Começava assim um período de contenda com Set, que se saldou sempre
num embaraçoso empate e envolveu episódios aberrantes. Movido na sua
luta, Set arrancou um olho a Hórus, mas este vingou-se cortando-lhe os
testículos. Não obstante, Set procura, certa vez, seduzir Hórus mas este
____________
16. Não nos esqueçamos que, mesmo nos territórios humanizados, como as aldeias a confronta-
ção com a vida selvagem era uma constante e que foi com grande dificuldade que os territó-
rios pantanosos do delta foram sendo povoados. No imaginário do ouvinte deste mito, o refú-
gio de Ísis afigurar-se-ia, deste modo, tão inusitado, como escolher a «toca do lobo» em busca
de protecção, dado que as florestas de papiro despertavam o temor mais intenso.
17. Os perigos contidos nas florestas de papiro prendem-se essencialmente com os animais vene-
nosos, em particular com os escorpiões e as serpentes, isto para além dos crocodilos e hipopó-
tamos. No mito, apesar da protecção garantida por Ísis, o menino Hórus não conseguiu esca-
par a estas ameaças. A Estela de Metternich actualmente conservada no Metropolitan Museum
of Art evoca o ataque de que é vítima o menino Hórus e os esforços de Ísis para o salvar. Ver
The Metropolitan Museum of Art: Egyptian Art, 50.
18. SOUSA, Iniciação e mistério no antigo Egipto, pp. 48-49.
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esquiva-se e deposita o seu sémen nas alfaces que haviam de ser ingeridas
por Set19. Evidentemente estes episódios devem ser lidos em função de uma
interpretação simbólica. As contingências relacionadas com os olhos e os
testículos, órgãos duais e semelhantes em forma, eram a expressão da fun-
ção cósmica de cada deus. A remoção do olho de Hórus, conotado com o
poder cósmico da luz, deu origem a um dos mais importantes símbolos
egípcios, o Udjat que se havia de tornar no símbolo de cura por excelência
e a imagem da regeneração, ao passo que a decepação dos testículos de Set
expressava a esterilidade do deus resultante da sua cupidez, a raiz de todas
as manifestações do mal20.
Um ponto é importante sublinhar: a legitimidade de Hórus para su-
ceder a Osíris é o resultado de uma decisão colectiva das divindades e não
de uma luta. Não foi pela força nem pela violência que Hórus conquis-
tou o trono do Egipto, mas sim pela decisão emanada de um tribunal. Só
nesse momento é que a ordem cósmica foi definitivamente reposta e que
Osíris venceu sobre Set. Nesse momento, a vida triunfou duplamente so-
bre a morte: Hórus foi investido como rei do Egipto e tornou-se no mo-
delo do faraó reinante, enquanto Osíris se tornava no soberano do mun-
do inferior e alcançava uma verdadeira imortalidade. A partir daí Osíris
tornava-se activo nos domínios ctónicos do mundo inferior: velava sobre
a fertilidade do Egipto, garantia a fecundidade dos campos, a regularida-
de das cheias, a abundância das colheitas e, mais importante do que tudo
o resto, a regeneração do cosmos. Pai e filho uniam os seus poderes para
que o mundo dos vivos e o mundo dos mortos fossem solidários entre si.
Evidentemente estas representações míticas tiveram uma tradução políti-
ca. O faraó vivo, identificado com Hórus, actualizava continuamente o
velho mito da criação e justificava a sua acção política no quadro da repo-
sição da ordem cósmica, a maet, a noção egípcia que evocava a pureza da
ordem cósmica no momento inaugural da origem do mundo. O faraó
contava, no entanto, com os seus antepassados reais, entretanto transfor-
mados em Osíris, para fecundarem a terra do Egipto e encher os seus
celeiros. Era esta perspectiva que justificava em pleno a erecção dos gran-
des monumentos funerários reais, na medida em que, após a morte do
faraó, era a partir deles que o rei morto transformado em Osíris emana-
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19. Ver ARAÚJO, «Set», in idem, Dicionário do Antigo Egipto, p. 784.
20. Sobre as circunstâncias míticas do combate entre Hórus e Set ver GRIFFITHS, The Conflict
of Horus and Seth, pp. 28-52.
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solar e das divindades do Além que se opunham a Apopis. Nesta luta até
Set intervinha, canalizando o seu poder destrutivo contra o monstro.
Estas circunstâncias não são introduzidas no mito por fantasia dos
seus autores ou por qualquer outro tipo de alienação. Nos mitos egípcios,
as acções divinas constituem uma linguagem cifrada que, à semelhança
de qualquer outra linguagem possui uma codificação própria por vezes
difícil de identificar devido ao nosso distanciamento relativo ao universo
semântico que lhe estava associado. No caso específico do percurso noc-
turno do Sol, a ameaça protagonizada por Apopis constitui a imagem da
luta perpétua que sustenta a manutenção da vida21, uma imagem que
mais tarde os gnósticos do Egipto iriam cunhar com uma interpretação
fortemente negativa, motivando a sua fuga do mundo e o seu desdém pe-
la criação. Ao contrário da criação do mundo, que se tratava de uma obra
individual de Ré, a manutenção da vida é uma obra colectiva na qual, na
realidade, Ré intervém de um modo bastante passivo. É a colectividade
de divindades que se une para proteger Ré e salvar a criação. O carácter
colectivo desta obra indica que a imortalidade e a vitória da luz contra as
trevas é uma tarefa «pública» e, nesse sentido, solar porque se dirige a to-
dos e requer a união de todos em nome de um bem comum.
O percurso nocturno do Sol proporcionava também uma nova visão
de Set. Se no ciclo mitológico de Osíris a sua representação é integralmen-
te negativa, personificando as forças separadoras, egocêntricas, que se opu-
nham à integração plena na unidade divina, a representação deste pérfido
deus no ciclo solar afigurava-se «reabilitada»: afinal do seu hediondo crime
resultara, por força da magia de Ísis, a criação do reino dos mortos, o ter-
ritório onde Osíris pontificava e onde o envelhecido deus Sol podia agora
mergulhar para regenerar os seus poderes criadores. De certa forma, o cri-
me de Set havia contribuído para regenerar o mundo, uma vez que o deus
Sol emergia todas as manhãs do reino de Osíris regenerado como uma
criança. Afinal, o crime de Set pusera fim ao envelhecimento do deus Sol.
No âmbito do ciclo solar, Set exercia ainda uma outra acção muito impor-
tante na preservação da ordem cósmica. Ele presidia à proa da barca solar
e defendia a barca divina contra os ataques de Apopis. Esta circunstância
indica que o mal, a isefet, a dor e o sofrimento personificados em Set eram
integrados no ciclo solar como uma faceta dinâmica da criação que, atra-
____________
21. Sobre Apopis ver BORGHOUTS, «The Evil Eye of Apopis», JEA 59 (1973), pp. 114-150.
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24. Pir. § 1975 b. Em Ibidem, p. 145.
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temente sacralizado, era ta djeser, a «terra sagrada», pois era aí que ha-
bitavam os deuses (e os mortos).
Na visão egípcia do mundo estabelecia-se assim uma profunda inter-
-dependência entre o mundo criado e a Duat ou, o mesmo é dizer, entre
os vivos, os deuses e os mortos bem-aventurados. Embora este equilíbrio
fosse a chave para a perpétua renovação do mundo, era também esta rela-
ção dinâmica que ameaçava constantemente a ordem cósmica. Cada al-
vorecer assemelhava-se a um triunfo pois ao percorrer o mundo inferior
durante a noite, para assegurar a sua regeneração, o deus Sol defrontava-
-se com os inimigos da luz, mas não era absolutamente certo que voltas-
se a emergir, no dia seguinte. O risco de sucumbir a um ataque de Apopis
estava sempre presente. Apesar de constituir, por excelência, o modelo da
ordem do mundo, o ciclo solar estava assim continuamente ameaçado de
paragem e de decomposição. Esta imagem de vulnerabilidade era afinal a
imagem da precariedade do cosmos.
Com efeito, sabemo-lo hoje melhor do que nunca, apesar da sua gran-
diosidade, nada é mais precário do que a maet, a ordem cósmica. A vulne-
rabilidade do mundo e da maet face às forças do Nun levava a que a criação
estivesse sempre em aberto, podendo, em qualquer altura, ser absorvida pelo
Nun. A morte, o sofrimento, a injustiça e o crime eram fenómenos da
mesma natureza que constituíam manifestações da isefet, o princípio oposto
à maet. No entanto, a isefet não se instalava a não ser através do esvaziamen-
to da ordem cósmica decorrente de um afastamento da plenitude e pureza
original que impelia o mundo de novo para o estado de caos25. Por essa razão,
os vivos estavam profundamente responsabilizados em manter as forças letais
da isefet afastadas, contribuindo activamente para que os alicerces da maet no
mundo terreno se mantivessem estáveis. Era a constante manutenção da maet
no mundo terreno que garantia a conservação de um elo entre os três planos
da mundividência egípcia: o céu, onde habitavam os deuses celestes; a terra,
onde se desenrolava a vida humana; e o mundo inferior, o domínio de Osíris,
dos defuntos e das divindades ctónicas. Cada gesto humano, por insignifi-
cante que pudesse parecer, encadeava-se assim na gigantesca engrenagem da
maet, contribuindo para a sua manutenção ou, pelo contrário, para o seu es-
vaziamento.
____________
25. ASSMANN, The Search for God, p. 3.
31
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____________
26. Quando hoje vemos as nossas vidas desorganizadas e os seus nefastos efeitos no mundo que
nos rodeia é difícil não constatar que, na sua assombrosa simplicidade, esta formulação egíp-
cia da vida é de uma clarividência límpida: na nossa vida política, profissional e afectiva, em
qualquer uma das nossas actividades, o afastamento de uma visão harmónica do ser humano
conduz-nos a um esvaziamento progressivo que nos remete para a indiferença, a apatia e a
perda de uma ligação profunda à vida. Ao contrário dos complexos modelos psicoterapêuti-
cos actuais, a visão egípcia das causas da felicidade e da dor baseia-se no poder e na respon-
sabilidade que o homem tem para escolher entre a maet e a isefet, entre a plenitude da vida e
o seu esvaziamento. É esta escolha que se acreditava realizar-se secretamente no coração de ca-
da um que decidia afinal o rumo de cada vida humana. O livre arbítrio passava assim larga-
mente pela aceitação da ordem cósmica. Afinal, na visão egípcia do cosmos, cada um de nós
era visto como uma parcela do universo e na forma como cada um vive faz reactualizar os
princípios cósmicos que regem a criação: podemos fazer da nossa vida um universo onde a
luz e a plenitude da maet irradia para o mundo, ou podemos regredir, individualmente ou co-
mo sociedade, para um estado caótico de inversão da ordem cósmica onde a dor e o sofrimen-
to exprimem o esvaziamento da maet, a «ausência». A isefet não tinha, portanto, um poder in-
trínseco: a morte e a dor resultam de um esvaziamento essencial que se traduz na corrupção
do homem, da sociedade e da natureza.
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CAPÍTULO II
O HOMEM E A IMORTALIDADE
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tas entre si. Reflexos dessas conotações distintas detectam-se, por exem-
plo, na escrita hieroglífica. O olho, por exemplo, é utilizado isoladamen-
te para redigir o termo ir, «criar», enquanto o seio feminino é utilizado
como determinativo do termo chedi, «mamar» e o pénis erecto para redigir,
entre outras, a expressão em bah, «estar diante de». Da mesma forma, os res-
tantes elementos antropológicos egípcios que hoje conhecemos, como o ka,
o ba, ou a sombra, resultam deste mesmo modo de pensar e representar o
real. De alguma maneira, cada um destes elementos traduzia uma faceta dis-
tinta do homem que se manifestava numa certa dimensão específica e que,
por isso, se tornava individualizável. Da mesma forma como reconhecemos
a importância do olho para a criação de um artefacto e de forma alguma
admitimos que ele possa ser mais útil quando arrancado e isolado dos outros
elementos, as diferentes dimensões antropológicas eram vistas como mani-
festações particulares mas inseparáveis de uma totalidade. Por essa razão,
quando perspectivava a sua vida no Além, o homem egípcio não podia sim-
plesmente optar por viver como um ba, ou como um ka. O seu corpo
teria de estar presente no Além, bem como todos os restantes elemen-
tos da sua natureza e, como tal, não se podia simplesmente aceitar o seu
desaparecimento.
Como se manifestavam então estes distintos elementos dentro do ho-
mem? Constituíam «vozes» distintas com «vontades» diferentes? Seriam
estas entidades investidas com um valor ético, isto é, poderiam algumas
delas serem consideradas benéficas e outras prejudiciais? Tudo indica que
não. Como sublinha o egiptólogo português Luís Manuel de Araújo no
seu livro de estudos sobre o erotismo no antigo Egipto, em cada uma das
suas manifestações, a natureza essencial do homem apresentava sempre
uma conotação positiva e até divina27.
1. O NOME
____________
27. ARAÚJO, Estudos sobre o Erotismo no Antigo Egipto, pp. 149-154.
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____________
28. VERNUS, “Name”, LdÄ, III, col. 321.29. O signo em questão é o D 45 da lista de Gardiner.
Ver A. GARDINER, Egyptian Grammar, p. 544.
29. BRUNNER, “Das Herz als Sitz des Lebensgeheimnisses”, Das hörende Herz. Kleine Scriften
zur Religions und Geitesgeschichte Ägyptens, Friburgo, 1988, pp. 140-141.
30. Ibid., p. 141.
39
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alguém dava, portanto, um enorme poder sobre ele, pois permitia conhe-
cer o seu coração, ou seja, a chave da sua essência pessoal, da sua identi-
dade mais essencial. É certamente essa a razão que explica que o nome
pudesse ser considerado um «deus» pessoal:
____________
31. TdS, 411 (S14C).
32. Os túmulos possuíam uma superstrutura, dedicada ao culto funerário, que era visitável pelos
seus familiares. A câmara funerária era, em geral, escavada à parte permanecendo oculta e
inacessível.
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que está no meu seio. Que seja trucidado para mim aquele que qui-
ser arrebatar o meu nome e o meu coração de mim! Eu não esque-
ci este meu nome junto do senhor do Julgamento.33
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____________
35. Noutro monumento do mesmo faraó, o mesmo processo foi aplicado para monumentalizar
o seu nome de nascimento, Ramesu. Representado como uma criança (o hieróglifo més), Ramsés
II ostenta um junco na mão esquerda (que evoca a bilítera su) e o disco solar sobre a cabeça
(que, por sua vez, se lê Ré).
36. Muitos amuletos levados para o túmulo, alguns deles usados certamente em vida, apresentam
como única inscrição o nome real, atestando que provavelmente já em vida, o defunto usava
o nome do faraó para garantir a sua protecção.
37. Esta intencionalidade transparece também na concepção da câmara funerária real que, em alguns
casos (como no túmulo de Tutmés III) apresenta a configuração elíptica típica da cartela real.
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2. O KA
____________
38. PINTO, «Nome», em Araújo (dir), Dicionário do Antigo Egipto, p. 617-620.
39. GREVEN, Der Ka in Theologie und Königskult der Ägypter des alten Reiches, 17, 1952.
40. ROTH. “The Pss-kf and the “Opening of the mouth” cerimony: A ritual of birth and rebirth”,
JEA 78 (1992), p. 126.
41. Para além de evocar o poder de vida, o termo ka era usado, noutros contextos, para designar
o touro, outro símbolo de força de vida e virilidade. No entanto, quando usado no femini-
no, kat, o termo designava uma obra ou construção, o que de algum modo indica que tam-
bém as obras humanas estavam dotadas de um poder de vida.
42. BOLSHAKOV, «Ka», em Donald Redford (ed), The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, p.
215. O autor distingue entre ka interno (as manifestações anímicas e físicas do ka) e o ka
externo que se manifesta sobretudo nas representações. No entanto, tal como o autor indica,
as representações do ka não são mais do que uma sua personificação. Não me parece, portan-
to, que esta distinção existisse no pensamento egípcio. O ka evocava o poder de vida do indi-
víduo que era representado normalmente pela silhueta convencionada do defunto. Sobretudo
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Para o teu ka! Faz uma festa na tua bonita casa da eternidade,
decorada com grinaldas untadas com óleos perfumados, toma
(...)
parte numa festa. O teu coração está alegre. Contemplas Amon; ele
concede-te estar entre os homens, abençoado na terra dos vivos.45
____________
no Império Antigo, virtualmente todas as representações do defunto se confundem com a
representação do seu ka. Também é difícil de saber até que ponto o ka real era exterior ao fa-
raó. Portanto, mais do que a distinção era um ka exterior e um ka interior parece-me mais se-
gura a distinção entre ka real e o ka dos homens comuns.
43. Efectivamente, para que o ka beneficie com a alimentação é necessário que o coração adopte um
estado de espírito propício. Os próprios sábios recomendam a «tomar somente (os alimentos)
quando o coração está apaziguado», em Instrução de Kagemni, em PIANKOFF, Le Coeur, p. 30.
44. Tumulo de User, No. 21 de Tebas, em LICHTHEIM, “The songs of the Harpers”, JNES 4
(1945), p. 183.
45. Parede D da entrada do túmulo de Horemheb, em Ibid., p. 184.
44
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____________
46. Intr. Ptahhotep: ASSMANN, Maât, l’ Egypte pharaonique et l’ idée de justice social, p. 53.
47. Ibidem.
48. Ibidem.
49. Sobre o livre arbítrio no antigo Egipto ver CAMPOS SILVA, «O problema do livre arbítrio
e da intervenção divina na Instrução de ptah-hotep», Cadmo 19 (2009), pp. 9-32.
50. PIRENNE, “Âme et vie d’outre-tombe chez les Égyptiens de l’Ancien Empire” Cd’E 67
(1959), pp. 210-211.
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____________
51. As qualidades mencionadas fazem parte dos catorze kau de Ré, os quais fornecem uma espé-
cie de «definição» das qualidades do ka. Em HORNUNG, L’ Esprit du temps des Pharaons,
Paris, 1996, p. 190.
52. Ibidem.
53. ROTH. “The Pss-kf and the «Opening of the mouth» cerimony: A ritual of birth and rebirth”,
JEA 78 (1992), p. 126.
54. Embora difícil de estabelecer com exactidão a razão desta associação, ela já é patente nos
«Textos das Pirâmides», onde a relação do rei com o seu ka, no ventre materno, lembra a de
um abraço: «O braço do teu ka está diante de ti, o braço do teu ka está detrás de ti, a perna
do teu Ka está diante de ti, a perna do teu ka está por detrás de ti.» (Pir. 18)
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3. O BA
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____________
61. Outra forma de manifestar o poder do ba era adoptar a forma de outros deuses (Amon pode
ser mencionado como o ba de Chu). Assim encarados, os deuses são tidos como manifesta-
ções transitórias de um poder divino o que conduz facilmente à ideia de um henoteismo.
62. ZABKAR, A study of the Ba concept, p. 113.
63. DAUMAS, La civilisation de l’Égypte pharaonique, p. 227.
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nografia traduz, através dos símbolos, uma mensagem de cariz teológico mais
profundo, não se trata, portanto, de imaginar o ba como simplesmente um
pássaro com uma cabeça humana. É vulgar na iconografia egípcia combinar
com uma desenvoltura inusitada cabeças com corpos de animais distintos.
Tal não traduz qualquer tipo de bizarria, mas sim um jogo de linguagem que
é necessário descodificar. Na iconografia dos seres de aparência compósita, a
cabeça traduz a natureza profunda de um ser, a sua verdadeira identidade, ao
passo que o corpo traduz uma manifestação particular e momentânea dessa
entidade. O deus Sobek, por exemplo, pode manifestar-se inteiramente co-
mo um crocodilo ou com um corpo humano, assinalando neste caso a sua
«humanização». Também a representação do morto com o corpo de uma ave
significava que o defunto se manifestava através de uma forma luminosa,
aérea e solar. A ave ba exprimia, em suma, a conquista pelo defunto de um
horizonte de liberdade e de luz. Outro atributo iconográfico do ba consiste
numa pequena lâmpada desenhada ao lado da ave ba, evocando a crença
segundo a qual o ba do defunto cintilava no céu como uma estrela,64 brilhan-
do ao lado dos outros deuses. Constituindo a personificação do poder divi-
no do defunto, o ba, ao contrário do ka, não estava circunscrito ao túmulo65.
Efectivamente, o mundo fechado do túmulo era o domínio do cadáver e do
ka, ao passo que o domínio do ba era o mundo da luz.
Uma das características mais frequentemente citadas nos textos fune-
rários, é a capacidade do ba para se movimentar livremente entre os mun-
dos.66 Graças ao ba, o defunto podia circular sem entraves, ligeiro como
uma ave, nas três esferas do mundo, o céu, a terra e o mundo inferior. Só
sob a forma do ba o defunto podia deixar o Além e voltar aos lugares que
amava em vida:
Que o seu ba viva nos locais que ama; (...) Que o seu ba se possa
deslocar a qualquer lugar que ame, do mesmo modo que o fazia
em vida.67
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bebendo a água da vida. Depois de se comprazer com a visita aos locais fa-
voritos e, sobretudo, de se alimentar dos raios solares, o ba voltava ao escu-
ro domínio do túmulo e, poisando sobre o peito da múmia, derramava so-
bre ela os raios benéficos do sol bem como as belas visões que recolhera no
mundo dos vivos. As vinhetas que, no «Livro dos Mortos», ilustram este ca-
pítulo mostram, com efeito, uma ave ba pousada sobre a múmia ou a
esvoaçar sobre ela. Era esta ligação periódica com o ba que regenerava o
defunto, razão pela qual, os textos funerários obsessivamente repetem:
Que o seu corpo seja de novo reunido, possa ele estar satisfeito,
que o seu ba possa vir para o seu corpo e o seu coração, que o seu
ba possa vir para este corpo e o seu coração, que o seu ba possa
fazer parte deste corpo e do seu coração, que o seu ba seja provi-
do com o seu corpo e o seu coração.68
____________
68. SCHNEIDER, «Bringing the ba to the body: A glorification spell for Padinekhtnebef», Homma-
ges à Jean Leclant, vol. 4, p. 356.
69. Ibidem. A arqueologia revelou que esta recomendação era cumprida. A múmia de Tutankhamon
é disso um bom exemplo já que revelou, quando desenfaixada, uma deslumbrante ave ba, feita
em ouro com incrustações, poisada sobre o peito. Também as estatuetas funerárias, constituindo
réplicas miniaturizadas da múmia, ostentam aves ba abraçadas ao peito do defunto.
70. PIRENNE, “Âme et vie d’outre-tombe chez les Égyptiens de l’Ancien Empire” Cd’E 67 (1959),
p. 212.
71. Pir., § 854.
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____________
72. ALLEN, «Ba», em Redford (ed), The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, Vol. I, p. 161-162.
73. Ver ibidem, p. 161.
74. VERNUS, “La formule du bon comportement”, Rd’E 39 (1988), pp. 147-148.
75. Inst. de Ptahhotep: LICHTHEIM, AEL, I, p. 73.
76. Ibid., pp. 195-196.
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são da ordem cósmica que graça sobre a terra, o homem deseja o suicídio
como uma libertação, algo que constitui uma aspiração claramente invul-
gar na mundivisão egípcia:
____________
77. Diálogo do homem cansado da vida com o seu ba (excerto), em ASSMANN, La Mort et l’au-
delà, p. 555.
53
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____________
78. Diálogo do homem cansado da vida com o seu ba (excerto), em ibidem, p. 553.
79. Com esta expressão o autor evoca a imortalidade entendida como o resultado de uma perma-
nência perene do equipamento funerário. Ver ibidem, p. 553.
80. DAUMAS, La Civilisation de l’Égypte pharaonique, p. 227.
81. Diálogo do homem cansado da vida com o seu ba (excerto). Em ASSMANN, La Mort et l’au-
delà, p. 556.
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4. A SOMBRA
____________
82. LEFEBVRE, Romans et contes égyptiens de l’époque pharaonique, p.22.
83. HORNUNG, L’ Esprit du temps des Pharaons, p.195.
84. Ibidem, p. 195.
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2.5. O AKH
____________
85. SOUSA, «Sombra», em Araújo (dir), Dicionário do Antigo Egipto, p. 797.
86. Também aqui toda a reflexão que hoje se elabora em torno desta noção se alicerça num estu-
do, decisivo para delimitar esta noção, desenvolvido pela eminente egiptóloga sueca Gertrie
Englund. Para o essencial da sua reflexão neste domínio ver ENGLUND, Akh, pp. 201-211.
87. DERCHAIN, “La mort dans la religion égyptienne”, em Y. BONNEFOY (dir.), Dictionnaire
des Mythologies, II, p. 125.
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dida que a dimensão material das instalações funerárias era secundada pela
moralização do Além. Neste enquadramento, o akh era conotado sobretu-
do com o conhecimento das fórmulas mágicas que punha em marcha for-
ças secretas que conduziam à transformação do defunto num akh, num
espírito luminoso. É esta visão, diríamos «gnóstica», que progressivamente
se foi impondo ao longo do Império Novo. Tornar-se um akh requeria co-
nhecimento e este era alcançado através de peregrinações e da superação de
provas, entre as quais figurava o próprio julgamento do defunto88.
O akh traduzia assim a solarização do defunto graças ao conhecimen-
to, a iluminação que lhe permitia a conquista da vida eterna. Era este esta-
do de iluminação que era expresso nas fórmulas escritas sobre as estatue-
tas funerárias que imitavam a configuração da múmia: «Que brilhe o Osí-
ris…» (Sedje Usir ..). Na qualidade de akh, o defunto podia subir ao céu
ou permanecer com o sol nocturno no mundo inferior. Apesar de deno-
tar uma transcendência inegável, o akh transporta também todas as fun-
ções corporais, embora sob uma forma superior e ideal, constituindo uma
espécie de «corpo de glória» ou «corpo de luz». Era desta maneira que os
Egípcios imaginavam a suprema perfeição da existência humana89.
Na vida do Além, o akh apaziguava o coração do defunto, substituin-
do as tensões próprias da vida, pela serenidade de uma existência divina:
____________
88. ENGLUND, Akh, pp. 202-203.
89. HORNUNG, L’ Esprit du temps des Pharaons, p. 197.
90. TdS, III 82d-83a.
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____________
91. Ibidem, p. 211.
92. ENGLUND, Akh, p. 211.
93. FRIEDMAN, «Akh», in Redford (ed), The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, I, p. 47.
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justapor as várias partes do corpo entre si, era necessário assegurar que o
coração fosse devolvido ao corpo para que este, tal como fizera em vida,
instaurasse de novo a unidade perdida. A vida resultava, portanto, do po-
der conectivo do coração que através do sangue que pulsava nas veias,
conferia unidade a todo o corpo. Do mesmo modo, também entre os di-
ferentes aspectos da vida consciente do indivíduo, o coração exercia uma
acção similar, integrando-os e conferindo-lhes unidade94. Com o coração
no seu lugar, todos os aspectos do homem se podiam manifestar: o ka po-
dia alimentar-se das oferendas funerárias, o ba podia circular no mundo
luminoso e regressar ao túmulo, o akh podia irromper das trevas.
Pela importância que tinha como elemento conectivo, o coração era
protegido e muitas vezes substituído na múmia pelo escaravelho do cora-
ção cujo intuito consistia exactamente em assegurar a reanimação do co-
ração no Além, sem a qual a nova vida seria impensável. No entanto, uma
vez reanimado, o coração teria um outro papel, muitas vezes temido pelo
defunto. O coração não era visto apenas como um órgão, mas sim como
a materialização da própria a consciência do defunto que, ao longo da vi-
da terrena, assistira e testemunhara todos os seus actos. Mais ainda, ao
longo da vida terrena, o homem transformara necessariamente o seu co-
ração através das suas acções: se praticou a maet, o coração iluminou-se,
ao passo que se praticou a iniquidade, o seu coração corrompeu-se e per-
deu a sua pureza original. Chegado ao Além, o defunto seria julgado pelo
tribunal dos mortos pela testemunha mais imparcial: o seu próprio cora-
ção. Para isso, este último seria colocado na balança cósmica e o seu es-
tado de pureza comparado com a pluma de Maet, que simbolizava a ver-
dade e a justiça. Esta operação simbólica exprimia, afinal, que era através
de um coração puro e justo que se podia aspirar à imortalidade. Em caso
de sucesso, um amuleto cordiforme era atribuído ao defunto, assinalan-
do a aquisição de uma nova identidade, divina e imortal, que havia con-
quistado no tribunal de Osíris graças à virtude acumulada sobre a terra95.
____________
94. Sobre a noção egípcia de coração ver SOUSA (2004), «A noção de coração no Egipto faraóni-
co: uma síntese evolutiva», em J. Ramos, L. Araújo, A. Ramos (org.), Percursos do Oriente An-
tigo- Homenagem a José Nunes Carreira, pp. 529-554.
95. Ver SOUSA, «The meaning of the heart amulets in Egyptian Art», Journal of the American
Research Center in Egypt 43 (2007), pp. 59-70. Ver também SOUSA, «Symbolism and Mea-
ning of Pendulum Heart Amulets», GM 221 (2009), pp. 69-79. SOUSA, «O amuleto cor-
diforme na arte egípcia: as representações humanas», Cadmo 18 (2008), pp. 81-107.
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96. A própria palavra «alegria» foi prodigamente utilizada, quer em inscrições de templos, cheias
de simbolismo e magia, quer em amuletos, inspirando a produção de belíssimas peças de joa-
lharia que, para além do seu efeito estético, tinham uma função bem mais importante como
proporcionadores de protecção mágica capaz de aumentar a força vital do indivíduo. BRUN-
NER, “Das Herz im ägyptischen Glauben”, em Das hörende Herz, p.13.
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____________
98. ARAÚJO, «Ba», em idem, Dicionário do Antigo Egipto, pp.131-132.
62
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____________
99. Ver ASSMANN, Mort et l’Au-delà, pp. 181-184.
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100. ASSMAN, The Search for God, p. 216. Ver também SOUSA, «Demiurgic erotism and its
sublimation in the heliopolitan cosmogonic tradition», em Erotismo e Sexualidade no Anti-
go Egipto, 2006, p. 522-527.
101. Ver QUAEGEBEUR, Le Dieu Égyptien Shaï dans la religion et l’onomastique, Orientalia
Lovaniensia Analecta, Leuven, 1975.
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102. A deusa é representada como um tijolo com cabeça humana. Esta representação deve-se ao
facto de a parturiente se posicionar sobre tijolos para dar à luz (de cócoras). Os tijolos usa-
dos no parto simbolizavam, portanto, a passagem da criança para o mundo. Ver MEULE-
NAERE, «Meskhenet à Abydos», in Verhoeven & Grafe, Religion und Philosophie im Älten
Ägypten, pp. 243-251.
103. Em MEEKS, «Demons», in Redford (ed), The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, I, pp
375-378.
104. Na narrativa dos Dois Irmãos, as Sete Hathores também referem à mulher de Bata que irá
ser morta pela faca.
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Vê, o teu deus colocou na tua mão um dos teus destinos. Ele
proteger-te-á dos outros também106.
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105. LICHTEIM, AEL, p. 200.
106. Ibidem, p. 202.
107. HOFFMEIER, «Fate», in Redford (ed), The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, pp 507-508.
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CAPÍTULO III
OS RITUAIS FUNERÁRIOS
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110. Aventura de Sinuhe. Em Ibidem, p. 281
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1. A MUMIFICAÇÃO
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112. A evisceração constitui uma das etapas fundamentais da mumificação. Ao que parece as téc-
nicas de mumificação nasceram do desejo de assegurar artificialmente um processo que ocor-
ria naturalmente por desidratação rápida do cadáver em contacto com a areia quente. No
entanto, já no Egipto faraónico, com a complexificação das estruturas tumulares, tal proces-
so deixou de ocorrer, pelo que era requerido um método capaz de assegurar a preservação
dos tecidos. A primeira evidência que possuímos da aplicação da evisceração data da IV
dinastia e consiste num cofre de vísceras pertencente à rainha Hetepheres, mãe de Khufu. A
existência deste cofre mostra que a evisceração era praticada e que as vísceras eram preserva-
das adequadamente através do uso de natrão. Nesta data aplicavam-se, portanto, os dois
principais métodos sobre os quais se alicerçavam os subsequentes processos de mumificação.
Não se conhece, no entanto, o resultado directo destas práticas, já que a maior parte dos ca-
dáveres desta época que chegaram até aos nossos dias não registam qualquer preservação dos
tecidos a não ser os tecidos ósseos. As primeiras «múmias» foram simplesmente cobertas com
uma camada de gesso de modo a imitar a configuração de uma estátua. O cadáver, no entan-
to, não se apresenta preservado. Ver DAVIS, «Mummification», em Redford (ed), The Oxf-
ord Encyclopedia of Ancient Egypt, p. 440.
113. Aparentemente, a remoção do cérebro só começou a ser generalizada no Império Novo,
embora algumas múmias do Império Médio já apresentem esta prática, o que pode ter sido
justificado por algum tipo de representação simbólica que lhe estava associada. Ver ibidem.
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diar da melhor maneira possível, sendo que, claro está, o resultado de más
práticas dificilmente seriam descobertas pelos familiares do defunto já que
só o voltavam a ver oculto sob metros e metros de ligaduras.
Depois de purificado abundantemente, podia começar o processo de
secagem do cadáver. Dentro da cavidade ventro-torácica eram colocadas
especiarias e saquinhos de natrão que permitiam a remoção interna dos lí-
quidos corporais, ao passo que na cavidade craniana era colocada uma subs-
tância resinosa que entretanto solidificava, acumulando-se na base do crâ-
nio. O cadáver era então inteiramente coberto por natrão (um sal natural
que se encontrava em jazidas a oeste da actual cidade do Cairo) e assim per-
manecia durante cerca de quarenta dias. O resultado da mumificação
dependia muito do grau de pureza do natrão e da sua reciclagem: se fosse
muito puro os quarenta dias podiam conduzir a uma secagem muito acen-
tuada do cadáver, mas se tivesse sido usado muitas vezes, o grau de secagem
podia ser insuficiente, o que em parte explica o grau muito variável de pre-
servação das múmias encontradas.
Depois da secagem, o cadáver adquiria a configuração próxima da
definitiva: a massa corporal estava significativamente reduzida e adquiri-
ra a tez negra característica das múmias. O cadáver estava agora purifica-
do e, espante-se, preparado para ser «embelezado».
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114. ASSMANN, Mort et au-delà, p. 68.
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115. Ibidem, p. 64-65
116. A palavra que traduzimos por amada, na realidade corresponde ao termo egípcio senet, ou
seja, “irmã”.
117. A estrela em questão é Sotis (Sírius).
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118. A moderação, particularmente nas palavras, era considerada uma virtude e era sinal de sabe-
doria. Veja-se, a título de exemplo, o conselho de Ptah-hotep: Se és homem de valor (...) con-
centra-te no que é sábio. O teu silêncio é melhor que a verborreia» (Max. 24: em CARREIRA,
Filosofia antes dos Gregos, p., 104.
119. A cabeleira de lápis-lazúli é uma característica das divindades.
120. Embora indirectamente, tenta-se criar o mesmo efeito do verso anterior, dado que, no anti-
go Egipto, o ouro era a carne dos deuses.
121. O verbo utilizado, meseneh, emprega-se para descrever um movimento de cabeça destinado
a melhor contemplar um objecto venerado. Não se trata, portanto, de uma admiração estri-
tamente «sexuada» dos encantos da amada, mas sim da sua contemplação como uma mani-
festação da divindade.
122. Esta expressão refere-se especificamente à majestade de uma estátua divina em procissão e
ao sentimento de profunda veneração que ela suscita.
123. SOUSA, Doces Versos, p. 81.
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124. A associação do amor e da palavra era a força de coesão mais intensa conhecida no antigo
Egipto e o mais potente elixir de vida. Era esta proximidade entre a magia e a morte que ex-
plica que a «divinização dos membros», um motivo característico da literatura funerária, te-
nha sido importado para a lírica amorosa. Este processo que permite, na literatura funerária,
que o corpo do defunto seja transformado em panteão divino, é a base da glorificação do
corpo da amada nos poemas de amor. Ver ASSMANN, Mort et au-delà, pp. 65-70. Ver tam-
bém SOUSA, «Sexo e erotismo na literatura do Antigo Egipto», em Ramos, Fialho, Rodri-
gues, Sexualidade no Mundo Antigo, pp. 89-108.
125. Ver BLACKMAN, «The significance of incense and libations in funerary and temple ritual»,
ZÄS 50 (1912), p. 71.
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Unas come com a sua boca, Unas urina, Unas convive com o
seu falo, Unas é o senhor do sémen, ele que arrebata as mulheres
dos seus maridos, sempre que Unas queira, de acordo com o dese-
jo do seu coração.127
____________
126. TdS 304. , em BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp. 230-231.
127. Pir § 510.
128. A aspectividade é para Brunner-Traut a base cognitiva do pensamento egípcio. Trata-se de um
pensamento que justapõe aditivamente vários elementos sem que se estabeleçam princípios
organizadores e estruturantes que integrem o particular no todo. Para Assmann, no entanto,
este é apenas um dos aspectos do modo de pensar da civilização egípcia. Às manifestações «visí-
veis» do pensamento aspectivo, bem expressas na arte, seria preciso acrescentar as formulações
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conectivas que justamente estabelecem a unidade entre o particular e o todo. Para o autor o prin-
cípio de conectividade manifesta-se claramente nas crenças relacionadas com o corpo, onde se
destaca a função do coração como garante de conectividade. Veja-se o Epílogo de Brunner Traut
em SHÄFER, Principles of Egyptian Art, pp. 421-446.
129. Sobre rituais de mumificação e ritos funerários ver D’AURIA (ed), Mummies and Magic: The
funerary arts of ancient Egypt, Boston, 1987.
130. BJÖRKMAN, A Selection of the Objects in the Smith Collection of Egyptian Antiquities at the
Linköping Museum, 59.
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várias centenas de metros de tecido. Este processo era tutelado pela deusa
Neit. Tal como Nut, esta poderosa divindade introduz-nos no mundo sub-
terrâneo, misterioso e secreto da Duat, com o qual a múmia gradual mas
inexoravelmente se começava a identificar. Congruente com estas crenças,
a múmia era criada de modo a ter a aparência de um deus ctónico, associa-
do ao interior da terra: os seus braços e pernas desapareciam gradualmen-
te sob as faixas de tecido resultando uma configuração em crisálida. Esta
configuração que hoje consideramos «mumiforme», na realidade, aos olhos
dos embalsamadores já não era um cadáver, mas sim o corpo vivo de um
deus ctónico.
Na verdade, as primeiras múmias não tinham sequer esta configuração
«mumiforme». Durante o Império Antigo (c. 2686-2160 a. C.), as técnicas
de mumificação mantinham a independência dos braços, dos dedos e das
pernas de modo a dar à múmia o aspecto que o corpo tivera em vida. Para
acentuar este efeito, por vezes chegava-se mesmo a «vestir» a múmia com
peças de roupa: um saiote para os homens, vestidos de missangas para as
mulheres. Apenas no Império Médio é que a mumificação passou a envol-
ver inteiramente o corpo de modo a conferir-lhe a típica configuração de
crisálida.132 Esta transformação das práticas da mumificação reflectia a
grande diferença de horizontes que separava as duas épocas no que diz res-
peito às crenças funerárias. Enquanto que, no Império Antigo, a mumi-
ficação procurava conferir a aparência do corpo em vida, sobretudo para
proporcionar um suporte ao ka, as técnicas de mumificação aplicadas no
Império Médio procuravam conferir ao cadáver a fisionomia de um deus
imerso no interior da terra133. Ao adoptar a configuração mumiforme, o
defunto identificava-se com outros deuses ctónicos como Osíris e Ptah
representando, por essa forma, a sua associação ao Nun, ao universo in-
criado e informe que se estendia para lá das fronteiras da criação134.
____________
132. Com efeito as primeiras múmias eram enfaixadas de forma a preservar a autonomia dos
membros, sinal que a característica configuração mumiforme foi importada de um modelo
divino e não o contrário. Ver IKRAM, DODSON, The Mummy in Ancient Egypt, pp. 156.
133. Uma vez que os membros representam a capacidade para agir, o seu desaparecimento por
baixo das camadas de ligaduras assinala um estado letárgico em que esta capacidade não é
necessária. São, portanto, os deuses que residem no interior da terra, como Osíris, que as
múmias procuram imitar, ocultando os membros do cadáver.
134. Esta associação à terra e à fertilidade é reforçada, na representação de Ptah e de Osíris, pelo
rosto pintado de verde, outro elemento iconográfico que acentua a ligação às forças regene-
radoras da terra e ao crescimento da vegetação.
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135. Sobre o dualismo do coração ver SOUSA, Iniciação e Mistério no Antigo Egipto, p. 147-153.
Ver também idem, «O simbolismo dos amuletos cardíacos no antigo Egipto», em Cadmo 20
(2010), pp. 113 - 139.
136. Em ASSMANN, Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne, p. 80.
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137. Para Assmann, a esfera física reúne em torno do corpo outros elementos antropológicos
como o ba e sombra, ao passo que a esfera social se reúne em torno do nome e do ka. Em-
bora enfatize mais o papel do coração como garante de conectividade física, dadas as carac-
terísticas desta noção antropológica, parece-nos impossível não reconhecer o papel do cora-
ção como garante da conectividade social. Idem, p. 74.
138. Este sacerdote envergava uma veste ritual semelhante à que o faraó usava no âmbito do ritual
do Heb Sed, o que alerta para a inspiração destes rituais nos cerimoniais reais.
139. Para alguns autores o tekhenu era o invólucro que encerrava os restos da mumificação, ao
passo que para outros, o tekhenu envolvia um sacerdote prostrado. Ver OLSON, «Burial
Practices», in Redford (ed), The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, p. 215.
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140. Sobretudo a partir do Império Novo, foram criadas curiosas figurinhas, os uchebtis ou chauab-
tis, destinados a trabalhar para o defunto nos campos do Além, libertando assim o defunto dos
trabalhos do campo para que este se pudesse entregar inteiramente às restantes actividades, bem
mais prazeirosas. Embora originalmente estas estatuetas tivessem sido criadas com o intuito de
munir o defunto com uma «múmia» de substituição, rapidamente estes objectos foram investi-
dos com a função de «responder» ao chamamento do defunto. Esta função é tão nuclear que
está na origem da designação uchebti. Na verdade, o termo uchebti significa «O que responde» e
faz alusão aos trabalhos que o defunto devia desenvolver nos Campos de Iaru, os campos míti-
cos do Além que estavam reservados aos justos. Por essa razão, sobre estas estatuetas foi normal-
mente redigido o capítulo 6 do «Livro dos Mortos». O belo exemplar conservado no Museu Na-
cional Soares dos Reis, por exemplo, apresenta a seguinte versão deste texto: «Que brilhe o Osíris
Djedhor, justificado, filho de Renpetneferet. Diz ele: «Ó estes uchebtis do Osíris Djedhor, justi-
ficado, filho de Renpetneferet, se fordes designados para fazer o trabalho que se faz na terra
sagrada, se vos for imposto um dos trabalhos que um homem executa, vós respondereis: Aqui
estamos! Nós o faremos! Nós faremos o trabalho diário que consiste em plantar os campos, en-
cher os canais de água e transportar a terra de ocidente para oriente e vice-versa. Nota, nós o fa-
remos!» Em ARAÚJO, Estatuetas funerárias da XXI dinastia, p. 307. Para além do texto hieroglí-
fico, as estatuetas são também decoradas com alfaias agrícolas onde não falta um cestinho para
remoção de terra, habitualmente desenhado nas costas da figura. Por vezes, entre estas estatue-
tas existe mesmo a diferenciação de capatazes cuja função consiste em supervisionar o trabalho
das restantes figurinhas. Estas estatuetas assinalam a sua posição hierárquica através do traje que
normalmente imita a indumentária usada pelos vivos. Para além da óbvia leitura sociológica, a
«hierarquização» destes servidores do Além traduz a utilização de um número crescente de uche-
btis no equipamento funerário que, em certos casos, chegou mesmo a atingir o número de 365
figuras, uma para cada dia do ano.
141. COONEY, The Cost of Death, 173.
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144. O ritual assimilava o enterro à criação de uma estátua divina. De resto, este tipo de ritual podia
ser aplicado sobre uma estátua, ou até sobre um edifício para o dotar de um poder anímico.
145. ASSMANN, Mort e au-delà, p. 119. Neste ritual era abatido um boi. No momento da morte
Ísis segredava, na orelha da vítima, as seguintes palavras: «Palavras ditas por Ísis na sua orelha:
Foram os teus lábios que causaram isto (a tua desgraça), foi devido à tua língua». A referência
à língua indica que foram as mentiras que Set pronunciou no palácio do príncipe que causa-
ram a sua própria condenação.
146. O triunfo sobre a morte (Set) assegurava o domínio de Osíris sobre o reino dos mortos. O
triunfo de Osíris constituía, desta forma, uma replicação da oposição mítica entre Ré e Apo-
pis. No mito solar Ré «justificava-se», ou seja, proclamava-se vitorioso e vencia o opositor,
personificado em Apopis, do mesmo modo como, no ciclo funerário, Osíris se justificava
diante de Set.
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150. Muitos outros rituais eram celebrados após os funerais e alguns deles são por nós muito mal
conhecidos, apenas entrevistos por representações raras. Alguns deles eram feitos em pequenos
jardins funerários e envolviam a navegação de miniaturas de barcas sagradas. Outros eram fei-
tos, também no contexto de um jardim, sobre pequenos ilhéus.
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mente por falta de rega. Um tal desleixo num aspecto tão visível do túmu-
lo, ajuda-nos a imaginar até que ponto a falta de zelo pelas obrigações do
culto funerário menos visíveis poderia atingir.
Se, ao nível do quotidiano, o culto funerário podia cair rapidamente
na incúria, havia alturas do calendário em que os rituais celebrados no tú-
mulo eram cumpridos com mais zelo, sobretudo por ocasião de festivida-
des importantes, como a do Ano Novo e, em particular no caso da necró-
pole tebana, o festival da Bela Festa do Vale, a grande festa da necrópole,
por excelência. A ocupação do túmulo estava assim directamente relaciona-
da com os dinamismos locais que marcavam a vida na necrópole. É agora
para estes grandes núcleos «urbanos» que voltamos a nossa atenção.
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CAPÍTULO IV
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mas regras que regiam o mundo dos vivos. Aqui, nas escarpas e nos pla-
naltos do deserto, habitavam as divindades que mantinham o mundo em
equilíbrio. Este quadro genérico de compreensão do território funerário,
é, no entanto, demasiado simplista.
Em primeiro lugar esta visão do território sagrado inspira-se na geogra-
fia religiosa do Alto Egipto. O grande contraste geográfico e cultural entre
o Baixo Egipto, constituído pelo delta do Nilo (que se forma nas imedia-
ções da antiga Mênfis, 30 km a sul do Cairo, e se estende a norte até ao
Mediterrâneo) e o Alto Egipto (constituído pelo vale do Nilo) motivava
certamente uma organização dos espaços funerários muito distinta. Os ma-
teriais que hoje documentam a nossa visão sobre o antigo Egipto são larga-
mente provenientes das necrópoles do Alto Egipto, normalmente construí-
das na orla do deserto onde o clima é seco e apresenta condições propícias
para a preservação dos artefactos. Se no Alto Egipto a proximidade com o
deserto facilitou a preservação das necrópoles, claramente diferenciadas do
território dos vivos, no Baixo Egipto, devido à pressão demográfica e ao
clima húmido, os vestígios são escassos e uma tal delimitação territorial se-
ria muito mais difícil de assegurar. Nunca é demais recordar, portanto, que
o que tomamos como certo para a civilização egípcia resulta sobretudo da
imagem proporcionada pelas necrópoles que, desde Mênfis até o Sudão,
traçam um retrato relativamente homogéneo das crenças e práticas funerá-
rias do antigo Egipto. O Baixo Egipto, que eventualmente poderia forne-
cer um quadro contrastante, esse permanece largamente em silêncio.
Também do ponto de vista diacrónico se registaram inúmeras flutua-
ções ao longo do tempo. As conotações simbólicas associadas aos defun-
tos sofreram grandes alterações ao longo da formação e desenvolvimento
da civilização egípcia. Assim, sem sair da necrópole de Sakara, constata-
mos uma enorme diferença de horizontes no que toca à formulação da
imortalidade implícita nas mastabas de Ti ou de Mereruka (V e VI dinas-
tias), daquela que se depreende das vizinhas instalações funerárias de
Horemheb ou de Maia (XVIII dinastia). Importa, deste modo, estabele-
cer as linhas gerais desta evolução que se detecta nas instalações arquitec-
tónicas do túmulo que, por sua vez reflecte mudanças no plano das cren-
ças antropológicas e funerárias que foram ampliando ao homem egípcio
o seu horizonte de sobrevivência no Além. Poderíamos deste modo falar
no antigo Egipto de uma autêntica «história da morte», na medida em
que, apesar de unidas por uma notável linha de continuidade, as estrutu-
ras funerárias do Egipto mais tardio apresentam um mundo em represen-
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1. AS ORIGENS
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151. VERCOUTTER, L’Égypte et la vallée du Nil, p. 130.
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154. Sobre as paletas pré-dinásticas ver ibidem, 180-184
155. Túmulo 100 de Hieracompólis (Nekhen). Ver em SHULZ & SEIDEL, Egipto: O Mundo dos
Faraós, p. 21
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156. Tratam-se das únicas ocorrências conhecidas de sacrifícios humanos cometidos por ocasião da
morte do rei. Esta prática foi abandonada ainda na Época Tinita e substituída por outro tipo
de práticas mágicas, mas o abate ritual de inimigos permanece uma possibilidade para os
funerais reais.
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157. Ver O’CONNOR, Abydos: Egypt’s first Pharaohs and the cult of Osiris, pp. 31-41
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160. Ver ibidem, p. 39. Esta viagem fluvial pode ter inspirado mais tarde o tema da peregrinação
a Abido.
161. Para além da função ritual destes edifícios, Dieter Arnold sublinha ainda o valor simbólico
que eles possuíam na afirmação do carácter divino do faraó o que justificava, por si só, a sua
erecção. Neste contexto, as «fortalezas dos deuses» desempenhavam a função de perpetuar a
união do faraó com as divindades tutelares de cada região do Egipto (os «Seguidores de Hó-
rus»), o que, para além da função religiosa de identificar o faraó a Hórus (a divindade que
personificava a realeza), cumpria igualmente uma função política, consolidando a consubs-
tanciação do faraó às províncias do Egipto unificado. Ver ibidem, pp. 31-36.
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167. Ibidem, pp. 40-44.
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168. Em Guiza, por exemplo, sabemos que foi edificado um complexo palaciano dotado de equi-
pamentos civis que formava uma autêntica cidade de pirâmide.
169. O próprio curso do Nilo ditou flutuações importantes no crescimento da cidade, uma vez
que, gradualmente se foi afastando para leste, tendência que actualmente ainda se mantém.
À medida que o Nilo se distanciou do núcleo antigo deixou atrás de si terreno livre que os
faraós do Império Novo não deixaram de aproveitar para implementar o seu programa de
expansão da cidade.
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170. KEMP, El Antiguo Egipto: Anatomia de una civilización, p. 187-188.
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do faraó, não teriam, elas próprias, recorrido aos recursos do tesouro fu-
nerário real como forma de suprir as necessidades que, de um modo cada
vez mais premente, se iam colocando à medida que o Império Antigo
chegava ao fim.
É neste contexto multifacetado social e geograficamente que nos apro-
ximamos do complexo funerário do faraó Teti (2345-2323 a.C.). Sem os
recursos económicos dos seus antecessores da IV dinastia que ergueram as
pirâmides do planalto de Guiza, os soberanos da VI dinastia apresentam,
ainda assim, recintos funerários extremamente sofisticados que se inseriam
numa tradição arquitectónica inaugurada pelo faraó Seneferu que levou ao
limite a inspiração solar destas estruturas.
O conceito subjacente à pirâmide escalonada de Djoser foi formula-
do num grau de depuração e abstração crescente através da adopção da
verdadeira configuração piramidal. O carácter solar desta construção foi
também acentuado através do alinhamento dos elementos do complexo
funerário real através um eixo este-oeste (ao contrário do monumento de
Djoser que se organizava em torno de um eixo norte-sul). Esta viragem
pressupunha uma mudança na interpretação do significado da pirâmide.
Se a posição setentrional da pirâmide de Djoser assinalava a sua associa-
ção às estrelas Imperecíveis, o posicionamento da pirâmide no extremo
ocidental do eixo solar conferia-lhe uma identificação mais óbvia com o
percurso do deus Sol. O que este alinhamento pressupunha era também
a importância crescente que o culto solar desempenhava no âmbito do
culto funerário real e a transformação na própria forma de conceber a imor-
talidade do faraó que desse modo se confundia com a noção cíclica do
percurso solar. Congruente com a formulação da imortalidade do faraó
como um percurso solar, a estrutura de todo o complexo apresenta uma
configuração dinâmica formulada como um percurso, ao invés do com-
plexo de Djoser que se afigurava um recinto com uma estrutura fechada
e, portanto, fortemente «estática».
Depois de Seneferu (2613-2589 a.C.), todos os monumentos reais
apresentavam uma estrutura semelhante inspirada neste modelo dinâmi-
co onde a ideia de percurso é pela primeira vez monumentalizada. Com
efeito, um percurso arquitectónico bem delimitado ligava três estruturas
distintas: o templo do vale, o templo funerário e a pirâmide.
O templo do vale, construído nas imediações da terra fértil, estava
em contacto directo com a água do Nilo através de um canal que torna-
va acessível à navegação o complexo funerário real. A sua função de anco-
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174. Tal é o caso do templo da pirâmide de Meidum. Ver ARNOLD, «Royal Cult Complexes of
the Old and Middle Kingdoms», in Shafer (ed), Temples of Ancient Egypt, p. 45.
175. O carácter sóbrio do templo da pirâmide de Khufu daria lugar a uma complexificação cres-
cente visível já sob o reinado de Khafré. O seu templo da pirâmide apresenta um intricado
plano cuja função cultual permanece largamente desconhecida. As cinco estátuas patentes no
templo funerário de Khufu surgem aqui individualizadas em santuários particulares que se
sucedem ao grande pátio solar. Em todos estes espaços, a iluminação era ténue, excepto no
pátio solar que se abria no centro do templo funerário. Aí era possível vislumbrar com toda
a sua imponência, o perfil da pirâmide iluminada pelo sol nascente ou recortada contra o
céu estrelado da noite egípcia.
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tio, que parece ter sido utilizado para celebrar festivais relacionados com o
Heb Sed, conduzia ao elemento mais importante do templo: um nicho on-
de se albergavam, por regra, cinco estátuas, provavelmente todas repre-
sentando o faraó. Sobre cada uma das cinco estátuas verificavam-se, cer-
tamente os rituais diários tradicionalmente reservados às estátuas divinas,
como a unção, investidura de símbolos sagrados, lavagem e fumigações.
Nos complexos funerários mais tardios da V e da VI dinastias, os templos
da pirâmide foram contemplados com uma nova estrutura cultual onde
se realizava o ritual de apresentação de alimentos diante de uma monu-
mental porta falsa, uma grande estela que evocava a passagem mágica en-
tre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e que garantia a alimenta-
ção do ka real através do poder vital contido nas vitualhas176.
A transformação que o complexo funerário real sofreu no início da IV
dinastia obedecia, assim, a uma formulação rigorosa e sistemática claramen-
te estruturada a partir da noção teológica do percurso cósmico do Sol, por
oposição às estruturas anteriores em que os elementos do monumento real
eram dispostos de modo flexível e heterogéneo seguindo os ritmos e a ins-
piração das festividades que celebravam o poder do faraó, com especial rele-
vância para o Heb Sed. Não que os antigos rituais tivessem desaparecido.
Pelo contrário, os fragmentos de decoração dos templos de pirâmide indi-
cam que as antigas cerimónias reais continuavam a ser evocadas com prodi-
galidade nestes novos contextos arquitectónicos. No entanto, os cerimoniais
reais estavam agora subordinados a uma nova interpretação da vida do faraó
no Além. Num certo sentido, estas novas estruturas ocultavam a mani-
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176. A arqueologia consagrou o uso da expressão «porta falsa», muito embora a sua verdadeira
função pudesse ser melhor compreendida pela expressão «porta mágica». Para a visão egíp-
cia não se tratava de uma porta falsa: era, pelo contrário, uma porta eficaz que estabelecia o
contacto entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Devido ao seu poder mágico para man-
ter a comunicação entre os mundos, era junto dela que as provisões alimentares destinadas
ao culto do ka eram depositadas. Ver WIEBACH, Dië Ägyptische Scheintür. Morphologische
studien zur entwicklung und bedeutung der haupkultstelle in den privatgräben des Alten Reiches,
Hamburgo, 1981.
177. Concomitantemente, a formulação do faraó como incarnação terrena de Hórus alargava-se
à sua identificação com o deus Sol e ao seu ciclo de morte e ressurreição. A pirâmide já não
era apenas um túmulo com conotações cósmicas, como o monumento de Djoser, mas um
local de transição entre o mundo dos vivos e dos mortos, entre o céu e a terra e, sobretudo,
era o local onde se guardava um profundo mistério, a união do faraó com o ba do deus Sol.
Ver ARNOLD, «Royal Cult Complexes of the Old and Middle Kingdoms», in Shafer (ed),
Temples of Ancient Egypt, p. 46.
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178. Ver ibidem, p. 45.
179. Para a lista dos nomes conhecidos das pirâmides reais do Império Antigo e do Império Mé-
dio ver LEHNER, The Complete Pyramids, p. 17.
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180. Ver ARNOLD, «Royal Cult Complexes of the Old and Middle Kingdoms», in Shafer (ed),
Temples of Ancient Egypt, p. 72.
181. O Papiro de Abusir data da V dinastia. Apresenta interessantes paralelos com outros docu-
mentos templários encontrados em instalações funerárias, como o Papiro de Kahun, do Im-
pério Médio. Ver ibidem, p. 57
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182. Não se pode, portanto, ver na diminuição do tamanho das pirâmides uma relação directa
com o enfraquecimento do poder real. Os monumentos funerários do Império Antigo têm,
portanto, que ser vistos como um todo e não podem ser comparados entre si tendo em con-
ta apenas um dos seus componentes.
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contextos rituais que o glorificavam como soberano das Duas Terras. Para
mostrar a sua eficácia na manutenção da maet, a ordem cósmica, os rele-
vos representam o faraó a esmagar os inimigos e a capturar as feras selva-
gens. A representação da luta cósmica entre a ordem e o caos, tipicamen-
te ilustrada nestas composições iconográficas, era abundantemente repre-
sentada nas paredes do templo da pirâmide, mas também nas paredes do
caminho lajeado pontuado por estátuas de prisioneiros preparados para
o abate ritual perpetrado pelo faraó. Os poucos fragmentos que chegaram
aos nossos dias revelam uma qualidade ímpar no domínio dos materiais
e das técnicas escultóricas. A visão destas galerias majestosamente deco-
radas imersas numa semi-obscuridade difusa deve ter sido assombrosa,
sobretudo nos casos em que os olhos das divindades e do faraó foram in-
crustados com cristal de rocha183. A visão dessas efígies em tamanho na-
tural, em que a beleza e a depuração das formas estava animada pelo bri-
lho cristalino dos olhos devia ter um efeito verdadeiramente sobrenatu-
ral para o visitante da Antiguidade. Para além da excepcional qualidade
do relevo, os temas representados são complexos e muito realistas, o que
é característico da inspiração solar. No seu conjunto, o complexo monu-
mental de Abusir revelava um afã de representação como se de uma ver-
dadeira «arca de Noé» se tratasse e, através das representações tivesse de
levar consigo todos os espécimes de aves, plantas, animais selvagens e do-
mésticos que viviam nas margens do Nilo e até dos países vizinhos, repre-
sentando o urso pardo e outros animais estranhos ao habitat nilótico184.
Para além do rigor colocado na representação dos animais em si, é sobre-
tudo notável a representação dos seus comportamentos, mesmo os mais
imprevistos, como a corte de duas aves pousadas entre as hastes de papi-
ros que ilustrava um ínfimo mas vívido detalhe da vida que pululava no
Nilo. Nem mesmo os homens escaparam a este registo, figurando com os
diferentes trabalhos característicos de cada estação do ano185. Este «natu-
ralismo» da representação e o zelo colocado no registo da variedade das
formas de vida não se justificava por uma questão estética, mas sim teo-
lógica. Ela era parte integrante de uma linguagem estética de louvor ao
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183. Ver ARNOLD, «Pyramide de Niouserrê: déese à tête de lion allaitant le roi», em L’ Art Égyp-
tien au temps des pyramides, pp. 280-281.
184. Ver ARNST (e outros), Ägyptishes Museum, nº 24.
185. Ver ARNOLD, «Temple solaire de Niouserrê: le début de l’été», em L’ Art Égyptien au temps
des pyramides, pp. 281-282.
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186. Outras estruturas inovadoras dão conta da complexidade que o plano dos complexos pira-
midais atingiu. Para além do complexo templário adoçado ao lado oriental da pirâmide, a
partir da V dinastia, um santuário albergando uma porta falsa foi acrescentado à vertente
norte da pirâmide. Aparentemente, o templo da pirâmide estava em ligação simbólica com
a câmara funerária situada no interior da pirâmide, ao passo que o santuário setentrional se
ligava à entrada da pirâmide situada, por regra, na vertente norte. Também a construção de
uma pequena pirâmide satélite inserida no complexo templário se tornou normativa. A câ-
mara funerária desta estrutura, no entanto, tem dimensões demasiado pequenas sendo pos-
sivelmente destinada a albergar uma estátua, ou os vasos de vísceras do faraó.
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187. Embora sem tradução a publicação de referência nesta matéria continua a ser a obra de
SETHE, Altägyptischen Pyramidentexte, 4vol., Leipzig, 1908-1922.
188. ARNOLD, «Royal Cult Complexes of the Old and Middle Kingdoms», in Shafer (ed),
Temples of Ancient Egypt, p. 71.
189. MÜLLER, «Afterlife», in Redford (ed), The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, I, pp. 32-37.
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192. Tal como no culto real, esta porta mágica garantia a comunicação entre os vivos e o morto e era
aí que o defunto se vinha alimentar das oferendas aí depositadas.
193. Estas estátuas representam, em geral, o indivíduo na plenitude da vida e no vigor da juven-
tude, personificando, por excelência, a força da vida que animava o indivíduo. Embora fosse
semelhante, em forma, ao corpo, o ka não tinha uma existência material, razão pela qual era
imprescindível dotar o ka com um suporte material que pudesse substituir o corpo, caso este
se degradasse.
194. DONADONI, “O Morto”, em idem (dir.), O Homem Egípcio, pp. 226-227.
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195. A expressão é de MÜLLER, «Afterlife», em Redford (ed), The Oxford Encyclopedia of Ancient
Egypt, p. 34.
196. Ver, a propósito da representação do ka do homem comum, BOLSHAKOV, Man and his dou-
ble in Egyptian ideology of the Old Kingdom, Wiesbaden, 1997.
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3. NA SENDA DE KHENTIAMENTIU
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198. SHAW (ed), The Oxford History of Ancient Egypt, p. 146.
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199. Ver a maqueta de Meketre (XI dinastia) no Museu Egípcio do Cairo. Em MALEK, Egypt: 4000
years of Art, p. 103.
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200. Ver COLLIER & MANLEY, How to read Egyptian hieroglyphs, p. 74.
201. São as autobiografias, narrativas que começando por ser, nos finais do Império Antigo, meras
descrições biográficas do curriculum vitae do funcionário que, através delas, demonstrava a sua
fidelidade ao faraó, adquiriram uma tonalidade completamente diferente a partir do Primeiro
Período Intermediário.
202. Desde então, paralelamente ao percurso profissional e, por vezes, suplantando-o, o texto autobiográfico
traça uma caracterização do carácter e da integridade moral do funcionário. Ao fazê-lo estes tex-
tos autobiográficos atribuíam a realização da maet ao «carácter», khed, e ao coração do indivíduo
(designado em geral pelo termo ib), os verdadeiros responsáveis pelo comportamento do indiví-
duo. Esta consideração aparentemente simples teve consequências muito amplas pois abriu à
elaboração discursiva a interioridade do ser humano. Neste âmbito, as inscrições autobiográfi-
cas constituíram um «terreno experimental» para a expressão de si mesmo que levou à criação
de géneros literários autónomos, como a narrativa, que nasceu justamente a partir do desenvol-
vimento das autobiografias.
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vozes que, pela primeira vez na história da humanidade, nos falam sobre
um homem interior que já não busca auto-definição na função que de-
sempenha, mas no ser que é:
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203. Autobiografia de Antef, filho de Sitamon, Império Médio, em LICHTHEIM, Maat in Egyptian
Autobiographies, p. 34.
204. SOUSA, «O controlo da consciência e o poder: política e religião na afirmação do poder
faraónico», Oliveira Jorge (ed), Crenças e Poderes, pp. 347-356.
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cairia inevitavelmente em ruína com o passar das gerações, era fazer do seu
coração o monumento de si mesmo através de uma conduta impecável o
que implicava, naturalmente, uma aceitação implícita da ordem política
vigente e consequente a colaboração activa na sua manutenção e reforço.
Para assegurar a imortalidade interessava mais, portanto, garantir uma con-
duta irrepreensível, do que construir um vasto domínio funerário.
Testemunhos destas vozes que emergiam para evidenciar a inutilida-
de dos monumentos funerários detectam-se aqui e além na própria litera-
tura funerária, o que indicia que esta perspectiva pode ter tido um impac-
to muito mais amplo do que o que nos é permitido actualmente divisar.
Reflexo desta tendência é o belíssimo Cântico de Antef:
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205. A canção de Antef. Em DAUMAS, La Civilisation de l’ Egypte Pharaonique, pp. 404-405 e
de BRUNNER, “Das Herz im ägyptischen Glauben”, Das hörende Herz. Kleine Schriften zur
religions und Geitesgeschichte Ägyptens, pp. 28-32.
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206. Esta região fascinou os visitantes da Antiguidade, extasiados pelo Labirinto, o templo funerá-
rio de Amenemhat III, e pela sua proximidade com o lago Karun (Heródoto, II, 148-149).
207. Durante o Primeiro Período Intermediário, os governadores locais não se faziam sepultar em
cemitérios de elite separados do resto da população. Em Tebas, os túmulos dos soberanos da
XI dinastia seguem a tradição local e fazem-se sepultar nos típicos hipogeus túmulos assina-
lados com um pórtico colunado (designados pelo termo árabe saff, «fila»), portanto plena-
mente inseridos na necrópole local. Emergia assim um novo modelo de poder que, no que
toca às crenças funerárias, assentava numa visão partilhada da morte, visão essa que ilustrava
a sua própria concepção dos fundamentos do poder detido em vida pelo soberano. Ver SHAW
(ed), The Oxford History of Ancient Egypt, p. 135. O expoente máximo deste estilo regional é
atingido no monumento tebano do faraó Nebhepetre Mentuhotep II, que, nos finais da XI
dinastia, efectivou a reunificação do Egipto. Nesse tempo, o templo elevava-se numa platafor-
ma alojada sob a falésia de Deir el-Bahari, na margem ocidental de Tebas, num local conhe-
cido como djeser, «o sagrado». Não existe aqui nada que evoque o tempo das pirâmides. Pelo
contrário, é a inspiração nas tradições locais que rege o edifício, em relação aberta com a falé-
sia (tida como a manifestação da deusa Hathor). Ver NAVILLE, The XIth Dynasty Temple at
Deir el-Bahari, p. 9. Os seus pórticos e terraços inspiram-se na tradição local dos túmulos saff
e ajudavam a manter uma relação aberta com o ambiente envolvente. É um edifício que,
simultaneamente, pretende visibilidade e procura dar visibilidade. De resto, o edifício afirma-
va-se mais como um templo divino do que como um túmulo, já que no seu interior o culto
funerário do faraó se confundia com o serviço divino ao deus Montu-Ré, como indicam as
inscrições dedicatórias.
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xos funerários reais encontravam-se dispersos por uma área bastante vasta.
A obra destes soberanos, sobretudo nesta área, emergia como uma revitaliza-
ção das tradições funerárias «clássicas», devidamente reactualizadas pelos no-
vos paradigmas políticos e religiosos que, de algum modo, se tornavam ac-
tuantes no local e nas comunidades em que se instalavam.
Para além da região do Faium, Dachur, a área mais meridional da ne-
crópole menfita foi eleita ao longo da XII dinastia para a construção do
complexo funerário de Senuseret III (1870-1831 a.C.) e de Amenemhat
III (1831-1786 a.C.), sendo improvável que, no segundo caso, a constru-
ção tenha sido efectivamente usada como túmulo real, já que o mesmo
faraó replicou no Faium as suas estruturas funerárias onde provavelmen-
te se fez sepultar. A duplicação do monumento funerário real em regiões
distintas constituiu, portanto, uma característica da XII dinastia, já que
também Senuseret III ergueu em Abido um complexo real, aparentemen-
te usado como cenotáfio.
A fundação da nova capital é acompanhada, na arquitectura funerá-
ria real, pelo regresso aos complexos funerários centrados na construção
da pirâmide. O templo de pirâmide de Amenemhat I em el-Licht reto-
ma a estrutura clássica destas construções, com um templo do vale, um
caminho lajeado, um templo funerário e a pirâmide.
O regresso ao cânone menfita é empreendido de modo bastante inten-
cional, como atestam os fragmentos provenientes dos templos funerários
reais dos faraós da IV dinastia que foram saqueados da antiga necrópole real
de Guiza, na época já em ruínas, e integrados, certamente devido ao seu ine-
gável prestígio, no complexo de Amenemhat I208. A presença destes blocos
originários de Guiza é bem reveladora do desejo de continuidade que os no-
vos monarcas desejavam estabelecer com as tradições menfitas.
Apesar da sua proximidade com o modelo menfita, os novos monu-
mentos estavam animados com uma nova visão da imortalidade209. As pi-
râmides do Império Médio apresentam um plano interior mais labirínti-
co, apresentando várias câmaras albergando não só o faraó mas algumas
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208. ARNOLD, «Pyramide de Chéops: personification d’un domaine», em L’ Art Égyptien au temps
des Pyramides, p. 190.
209. O caminho lajeado de Senuseret I, por exemplo, apresentava-se decorado com estátuas osiría-
cas do faraó, retomando a tradição fundada por Djoser e, mais tarde continuada por Hatche-
psut e Ramsés II, de representar o faraó mumiforme no contexto do templo funerário.
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210. O complexo de pirâmide de Amenemhat III em Dachur albergava nas suas instalações vários
túmulos de rainhas. Ver LEHNER, The Complete Pyramids, pp. 179-180.
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211. KEMP, El Antiguo Egipto: Anatomia de una civilización, p. 191.
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212. Esta viragem traduziu-se também na forma de representar o Além: enquanto que no Império
Antigo o mundo da Duat era projecto no céu, agora a Duat era vista como o mundo infe-
rior onde reinava Osíris. Mais do que uma escadaria cósmica, a pirâmide afirmava-se agora
como a colina de terra fértil que conduzia ao mundo inferior. Concomitante com esta visão
subterrânea do Além é a complexificação da estrutura interna das pirâmides que, ao longo
da XII dinastia, adquirem a configuração de autênticos labirintos e onde, para além do faraó,
também as suas esposas são sepultadas.
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213. Os primeiros faraós do Egipto unificado, à distância de mais de um milénio, tinham natu-
ralmente um estatuto tão lendário com as próprias divindades. Djer confundia-se, assim,
com o vulto de Osíris que, depois de ter sido faraó do Egipto, se tinha tornado no rei do
mundo inferior.
214. Esta estátua está actualmente conservada no Museu Egípcio do Cairo. Apresenta uma ins-
crição dedicatória do faraó Khendjer da XIII dinastia e manteve-se em uso até à Época Baixa.
Ver O’CONNOR, Abydos, p. 90.
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excesso: que ele fale quando o acusarem que ele seja absolvido gra-
ças a tudo quanto disser.215
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215. Estela de Antef, Império Médio, adaptado da versão francesa proposta em CLÈRE, «Un pas-
sage de la stèle du général Antef (Glyptothèque Ny Carlsberg, Copenhague)», BIFAO 30
(1931), p. 246. Sobre as fórmulas redigidas em períodos anteriores ver LEPROHON, «The
offering formula in the First Intermediate Period», JEA 76 (1990), pp. 163-164. Parece de-
preender-se na evolução destas fórmulas uma despromoção das prerrogativas reais. Inicialmen-
te elas evocam a oferenda que o rei dá em paralelo com as oferendas dadas pelos deuses. No
Império Médio, o faraó faz oferendas aos deuses para que estes realizem a oferenda ao defunto.
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216. O’CONNOR, Abydos, p. 94.
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a.C.), a rainha fez erguer o seu templo funerário sob as escarpas de Deir
el-Bahari, recuperando assim o antigo estilo provincial tebano. No entan-
to, a rainha mandara escavar o seu túmulo do outro lado da escarpa, num
lugar que actualmente é conhecido como o Vale dos Reis. Entre o túmu-
lo e o templo funerário ficava a montanha que preservava o corpo da rai-
nha no seu segredo. O túmulo resguardava, portanto, o seu carácter se-
creto e afirmava-se como uma cripta onde a rainha se manifestava plena-
mente com um Osíris. Era assim inaugurada uma tradição a que os seus
sucessores, como em muitos outros aspectos do seu reinado, não pude-
ram ou não quiseram esquivar-se.
A partir de agora o complexo funerário real seria constituído por um
templo construído entre o deserto e as terras férteis inundadas pelo Nilo
e por uma cripta secreta escavada na montanha sagrada, tida como uma
manifestação de Hathor, a deusa mãe que garantia o renascimento para
uma vida eterna. Apesar da grande diferença de horizontes, o esquema es-
sencial do complexo funerário real mantinha uma relação de continuida-
de com os grandes complexos piramidais do Império Antigo, apresentan-
do, tal como aqueles, um embarcadouro, um caminho processional e um
templo onde se realizava o culto do ka real. Quanto ao túmulo, que antes
era o elemento mais distintivo do conjunto, adquiria agora uma total
invisibilidade, escondido que estava agora no ventre montanhoso da
grande deusa cósmica222.
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223. HAENY, «New Kingdom Mortuary Temples», in Shafer (ed), Temples of Ancient Egypt, p. 93.
224. Esta festa é atestada, pelo menos, desde a XI dinastia. A festa era celebrada por ocasião da
lua nova do segundo mês da estação da cheia (Chemu). Nesta altura as famílias reuniam-se
nos túmulos dos antepassados e os laços entre os mortos e os vivos reforçados. Neste âmbito
destaca-se o sacrifício privilegiado, o holocausto, um sacrifício consumido por chamas.
Mirra e óleos aromáticos eram vertidos sobre o fogo que fazia subir os seus aromas para o
céu. O festival, com fortes conotações hathóricas, parece constituir uma versão tebana de
rituais que eram celebrados em honra da deusa um pouco por todo o país. Em Tebas, em-
bora em pano de fundo, o papel de Hathor era secundado pelo de Amon, que presidia, do
templo de Deir el-Bahari, às cerimónias, antes de passar por cada um dos templos reais, com
particular destaque para o templo real do faraó reinante. Ver BELL, «The New Kingdom
“divine” temple» in Shafer (ed), Temples of Ancient Egypt, p. 137.
225. Ver ibidem, p. 137.
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226. Na época em que foi construído, o templo de Deir el-Bahari era, inclusivamente, bastante
mais idêntico às linhas arquitectónicas que então se desenhavam na margem oriental. Em
Karnak, o pai de Hatchepsut, Tutmés I, havia engrandecido o templo de Amon-Ré com um
pátio solar ornado com estátuas osiríacas, numa configuração em fila muito semelhante à que
se observa em Deir el-Bahari.
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230. Ver ASSMANN, The Search for God, p. 133. Ver também SOUSA, Iniciação e Mistério no
Antigo Egipto, p. 49.
231. Ver BELMONTE, SHALTOUT & FEKRI, «Astronomy, Landscape and symbolism: a study
of the orientation of ancient Egyptian temples», in Belmonte & Shaltout (ed), In Search of
Cosmic Order: Selected Essays on Egyptian Archaeoastronomy, p. 267.
232. Sobre o santuário solar de Hatchepsut ver KARKOWSKI, Deir el-Bahari: The solar complex,
vol. IV, Éditions Neriton, Varsóvia, 2003.
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233. O santuário de Hathor tinha uma via de acesso independente.
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236. Aparentemente o Djeser akhet não estava ligado ao culto funerário do faraó, o qual decorria
num templo autónomo edificado junto à margem cultivável. Sobre o templo de Tutmés III
de Deir el-Bahari ver LIPINSKA, Deir el-Bahari: The Temple of Thuthmosis III (statuary and
votive monuments), Éditions Scientifiques de Pologne, Varsóvia, 1984. Ainda assim, o tem-
plo setentrional de Deir el-Bahari deve ter continuado a desempenhar um papel importante
pois, ao implementar a sua reforma religiosa Akhenaton revelou um zelo particular na des-
truição das imagens divinas de Djeser djeseru. Mais tarde, já no reinado de Ramsés II, o tem-
plo foi novamente reabilitado e as imagens divinas repostas, sinal de que a vitalidade do tem-
plo se mantinha.
237. O templo de Tutmés III ficou tão seriamente danificado que ainda hoje os vestígios encontra-
dos se afiguram de difícil reconstituição. Sobre o estudo destes vestígios pela equipa polaca ver
DOLINSKA, «Some remarks about the function of the Thutmosis III temple at Deir el-Bahari»,
Eggebrech & Schmit, Ägyptische Tempel – Struktur, Funktion und Programm, pp. 33-45.
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238. A designação de «templos de milhões de anos» parece constituir a designação egípcia dos
templos tebanos dedicados ao culto do ka real. A designação «templos funerários» é a mais
frequentemente utilizada na literatura egiptológica para designar estes edifícios, muito em-
bora apresente claras limitações. Insinua, em primeiro lugar, um paralelismo demasiado es-
trito com os templos funerários edificados nos complexos de pirâmide. Ao contrário destas
estruturas, o templo de milhões de anos é, antes de mais, um templo divino edificado para
o acolhimento da barca divina de Amon desempenhando adicionalmente a função de alber-
gar o culto do ka real. Sobre esta distinção ver HAENY, «New Kingdom Mortuary Temples»,
in Byron Shafer (ed), Temples of Ancient Egypt, pp. 123-126. As próprias inscrições dedica-
tórias referem-se a estes templos, em primeiro lugar, como repositórios da barca sagrada de
Amon: «O seu belo nome (do templo), que sua majestade nomeou, é “Receber Amon (e)
exaltar a sua beleza”. É um lugar de repouso do Senhor dos deuses durante o seu festival do
Vale na procissão de Amon para o Ocidente para visitar os deuses do Ocidente e proporcio-
nar a sua majestade vida e poder». Em ibidem, p. 101. Apesar desta função cultual, é óbvio
que o templo real era igualmente utilizado para garantir o culto do ka real. E, de facto, assim
era. No templo funerário de Seti I, erguido na necrópole tebana, o próprio templo foi repre-
sentado nas suas paredes sob a forma de uma personificação feminina apresentando sobre a
sua cabeça os hieróglifos hut ka, ou seja, o templo do ka.
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239. Ainda assim, Amen-hotep III não havia inteiramente virado as costas ao deserto. Jogando com
os limites meridionais deste território sagrado, Amen-hotep III ergueu nas imediações de Me-
dinet Habu, um vasto complexo palaciano inteiramente construído no deserto cujas funções
parecem ter sido igualmente funerárias.
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241. O nome atribuído à sala é justamente o de «o lugar de repouso do Senhor dos deuses na sua
Bela Festa do Vale». Em Ibidem, p. 115.
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celeste: a sua soberania é aclamada pelos «deuses que estão no céu», en-
quanto o seu nome é inscrito nos frutos da sagrada iched, a árvore solar de
Heliópolis.
Na segunda sala hipóstila, o tecto decorado com a magnífica repre-
sentação astronómica assinala a nossa chegada ao mundo primordial da
Duat. A partir daí situava-se a câmara que recebia a barca sagrada do deus
e o santuário onde se verificava a união que se desejava eterna entre o
faraó e Amon. Era aí, no interior secreto do templo, que a identificação
entre o faraó morto e a divindade cósmica era renovada. O Ramesseum,
como a maior parte dos templos funerários tebanos, está alinhado com o
eixo este-oeste o que torna muito provável que, em certas ocasiões, ao
nascer do sol, todos os portais sagrados se abrissem de par em par para dei-
xar entrar os raios solares que então inundavam a imagem divina guarda-
da no local mais recondito do templo. Este caminho solar encetado pelos
raios luminosos até ao território escuro da Duat habitado pela imagem
do faraó divinizado era outra forma de garantir a sua imortalidade, atra-
vés da sua união com o criador que renascia para um novo dia.
A sua estrutura, como a de todos os outros templos de milhões de anos,
estava assim perfeita e conscientemente ligada aos cosmos nilótico circun-
dante e não diferia, no essencial, do plano canónico de um templo divino
utilizado para o culto de qualquer outro netjer aá, «deus grande». E, no fun-
do, tal não nos deve surpreender, na medida em que, se em vida o faraó ma-
nifestara os seus poderes enquanto netjer nefer, um «deus perfeito», após a
morte manifestar-se-ia como um netjer aá no seu templo de milhões de
anos, tal como qualquer outra divindade cósmica. No entanto, algumas par-
ticularidades alertam para o carácter de alguma forma «pessoal» destes pro-
jectos, com todas as reservas que a aplicação deste termo inspira quando
aplicado à instituição faraónica.
Com efeito, cada um destes edifícios constituía a síntese teológico-po-
lítica de um reinado e a expressão quintessencial do seu programa242. No
Ramesseum encontramos vários indícios, sobretudo ao nível da iconografia,
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242. Embora prejudicada pelo estado muito fragmentário do Ramesseum, se compararmos este edi-
fício com o templo funerário do seu pai, Seti I, encontramos alguns contrastes interessantes. O
templo de Seti I foi erguido a norte do eixo que unia Karnak a Deir el-Bahari, certamente com
o intuito de se substituir ao monumento de Hatchepsut como contraponto ocidental de Karnak
na necrópole. O seu programa arquitectónico, porém, acusa uma inspiração clara nas estrutu-
ras do templo funerário da rainha que, entretanto, se haviam tornado «clássicas»: se atentarmos
ao seu plano constatamos que o templo solar e as câmaras osiríacas foram igualmente integra-
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dos no complexo. Decalcando também o plano do templo da rainha, Seti I reforça a legi-
timidade da nova dinastia criando um espaço cultual exclusivamente dedicado ao seu pai
terreno, Ramsés I, o fundador da dinastia, à semelhança do que Hatchepsut fizera com o
seu pai terreno, Tutmés I.
243. Embora transformado no conteúdo e na forma, o génio político do legado de Hatchepsut
permanecia uma referência impossível de ignorar para os seus sucessores.
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os espaços cultuais do templo com um tema que, embora não seja exac-
tamente profano, era certamente demasiado «exotérico» para figurar en-
tre os domínios secretos do templo, como uma forma de introduzir o po-
vo do Egipto no próprio coração do templo. Assim, em vez do tradicio-
nal motivo do rekhit, a ave que simbolizava o povo do Egipto neste tipo
de enquadramento cultual, o faraó dava agora uma expressão bem mais
concreta e animada a esta presença colectiva, confundindo-a, através dos
seus filhos, com a sua própria prole.
É difícil estimar como seria o programa iconográfico do Ramesseum
na sua totalidade, uma vez que uma parte importante se perdeu. No en-
tanto, os vestígios sobreviventes apontam para uma notável simplificação
do programa decorativo244. Em vez de múltiplos registos sobrepostos, no
Ramesseum cada parede é ilustrada apenas com um único quadro, por
vezes, é certo, desdobrado num registo secundário mas que de forma al-
guma compromete a grandiosidade da composição. A expressão talvez
mais acabada deste esforço de depuração iconográfica encontra-se na sala
de oferendas onde o faraó é representado na parede norte com a coroa ver-
melha diante das divindades do Baixo Egipto e, na parede sul, com a coroa
branca diante das divindades do Alto Egipto. Ao invés da desmultiplica-
ção das imagens de culto, o faraó expressava de modo simples, mas perfei-
tamente inteligível, a universalidade da sua acção cultual. E em suma, é
exactamente em torno desta ideia, que nos parece afinal centrado todo o
programa do Ramesseum: com o seu monumento, Ramsés II exaltava a
natureza e o carácter universal do faraó afirmando-se como um eixo uni-
ficador, para o qual convergem homens e deuses, mas também como o
veículo através do qual Amon expressava a sua vontade divina no tempo
e na história. A concepção da realeza que perpassa nas colunas e nas pare-
des arruinadas do Ramesseum parece assim de algum modo prefigurar a
afirmação bíblica «ninguém vai ao Pai senão por Mim» (Jo, 14:6) que afi-
nal poderia perfeitamente resumir o essencial da acção faraónica.
Vemos pois como, partilhando de uma linguagem e de uma simbóli-
ca comum, cada um destes edifícios se perfilava, no entanto, como um
porta-estandarte ilustrativo do programa cósmico e político que cada faraó
concebera para o seu reinado tendo em conta as contingências específicas
da sua ascensão ao trono e do momento histórico em que tal evento suce-
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244. Estamos aqui longe da profusão, diríamos «erudita», dos gestos codificados e das inúmeras varia-
ções cultuais representadas no templo funerário de Seti I.
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245. A identificação entre a designação da necrópole real Set Ueret e a deusa Ísis detecta-se na própria
iconografia dos túmulos. No túmulo de Ramsés III, por exemplo, Ptah é apelidado «O Belo de
Rosto, o que está em Set Ueret». Set Ueret é aqui usada como designação da necrópole. No
entanto, na parede ocidental da mesma câmara a mesma designação é usada para identificar a
contígua representação de Ísis. Noutros túmulos, como o de Ramsés IX, é a própria deusa da
montanha Meretseguer que acolhe o faraó à entrada do túmulo.
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te conotado com Nut, a mãe cósmica que personificava o papel das águas
primordiais na regeneração do mundo. Era neste mundo paralelo à cria-
ção, tido como o próprio corpo celeste da deusa, que o deus Sol mergu-
lhava quotidianamente para aí se reunir com o cadáver de Osíris. Esta
união misteriosa entre o deus Sol e Osíris era o principal requisito para
assegurar a ordem cósmica. Dessa união o Sol emergia rejuvenescido e Osí-
ris via revigorados os seus poderes vitais. Esse percurso nocturno, no en-
tanto, estava povoado por perigos terríveis, pois era nas regiões obscuras
da Duat que se refugiava o dragão Apopis que eternamente buscava com-
prometer a viagem cósmica de Ré. Era, porém, na serpente Mehen, a ser-
pente que circundava o mundo para o proteger, que a esperança última
na reabilitação do mundo residia pois era ela que dissolvia os efeitos do
tempo e permitia, no final deste percurso, a regeneração do Sol que emer-
gia, no horizonte oriental do céu, sempre menino, sempre criança.
Estas representações de carácter cosmológico relacionadas com a via-
gem nocturna do Sol são centrais na estrutura e na decoração dos túmu-
los reais tebanos. Comecemos pela estrutura. Os primeiros túmulos do
Vale dos Reis apresentam uma estrutura em ângulo recto que simboliza-
va a cripta de Osíris. O túmulo real era, portanto, construído à imagem
de um templo subterrâneo que imitava o túmulo de Osíris. No entanto,
a decoração desta cripta revela um interesse inusitado por temas solares.
Desde o início, os túmulos reais reservaram uma parte importante da sua
decoração para inscrever e representar complexas composições textuais e
iconográficas que descreviam a viagem nocturna do Sol. No túmulo de
Tutmés III a câmara funerária em forma de cartela real albergou a primei-
ra edição conhecida do Livro da Câmara Secreta ou, como é mais vulgar-
mente conhecido, o Livro do Amduat. Aqui, pela primeira vez, o Além é
representado em imagens. Os textos religiosos que há muito descreviam
o Além eram assim transformados pela iconografia num mundo em ima-
gens. O valor simbólico do Livro do Amduat pode ser estimado se pen-
sarmos que este se afirmava como uma composição para uso exclusivo do
faraó e até finais da XVIII dinastia foi a única composição redigida nos
túmulos reais. Ao contrário das colectâneas de textos para uso privado,
como o «Livro dos Mortos», esta composição não apresenta variações: tex-
to e imagem constituem uma unidade sólida e inseparável246. A câmara
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246. HORNUNG, Books of the Afterlife, p. 26
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o seu legado. Tal como acontecera com Hatchepsut, o faraó proscrito dei-
xara um legado ao qual era difícil voltar as costas. O plano linear dos tú-
mulos reais ramséssidas ilustra a intensificação das crenças solares associa-
das ao Além e o fascínio que suscitava a penetração directa dos raios sola-
res até ao interior da câmara funerária. A solarização dos túmulos parece
ter sido acompanhada por um desejo de visibilidade uma vez que, ao
invés de pequenas entradas facilmente dissimuláveis, os novos túmulos
reais apresentavam agora grandes portais monumentais que, com toda a
probabilidade, não só não estavam dissimulados de todo como poderiam
ser fechados com uma simples porta passível de ser reaberta a todo o mo-
mento, certamente com o intuito de fazer introduzir na câmara funerá-
ria a luz do sol.
A ideia muito difundida que estes túmulos estariam recheados de
tesouros «até ao tecto» parece deste modo altamente improvável. Em pri-
meiro lugar estes túmulos são constituídos sobretudo por passagens des-
cendentes com um grau de inclinação variável mas que, de qualquer das
maneiras, inviabilizava sempre o armazenamento de bens funerários. Es-
tes só poderiam ser acumulados nas câmaras laterais, relativamente raras,
que seriam devidamente seladas para o efeito e cuja dimensão no conjun-
to do túmulo não é particularmente impressionante. A ideia que o tesou-
ro de Tutankhamon transmite, empilhado num túmulo minúsculo, não
deve, portanto, ser transposta para estes grandes túmulos que, no essen-
cial, estariam vazios. O conteúdo do túmulo de Tutankhamon não pare-
ce assim diferir substancialmente da capacidade útil de armazenamento
de qualquer um dos grandes túmulos ramséssidas.
O verdadeiro propósito para a ampliação do túmulo real não era,
portanto, o de acumular tesouros, mas sim obter espaço para a edição dos
livros do Além, o verdadeiro tesouro que estas câmaras e corredores en-
cerravam. Para além do Livro do Amduat, as paredes destes túmulos apre-
sentam agora novas composições iconográficas, como o Livro das Portas250, o
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250. O Livro das Portas tornou-se a principal composição a decorar os túmulos da XIX dinastia.
A composição centra-se na passagem da barca solar e do seu séquito através das Portas do
Além. A passagem através das portas enfatizava o carácter secreto dessa travessia e o perigo
que lhe estava subjacente, uma vez que cada uma delas era vigiada por demónios. Subjacente
estava também a concepção do Além como um templo, uma característica que também já se
detecta no Livro dos Dois Caminhos, nos «Textos dos Sarcófagos».
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251. O Livro das Cavernas é uma composição tardia do período ramséssida (XX dinastia) que repre-
senta o Além como um território povoado por cavernas, no interior das quais se encontram
defuntos retidos, ao passo que outros parecem afogados pelas águas do mundo inferior.
252. Estas composições eram normalmente pintadas nos tectos, apresentando o percurso diurno
e o percurso nocturno no céu, representado como o corpo de Nut. O Livro da Vaca Divina
apresenta uma estrutura diferente e faz alusão a um do smais importantes mitos egípcios: a
destruição da humanidade e a fuga de Ré e dos deuses para o Céu. A primeira versão desta
composição foi encontrada no túmulo de Tutankhamon, representada num dos seus relicá-
rios dourados.
253. Ver HORNUNG, The Valley of the Kings: Horizon of eternity, Nova Iorque, 1990.
254. Ver a este respeito a magistral obra PIANKOFF & RAMBOVA, The Tomb of Ramses VI,
Bollingen Series XL 1, Pantheon Books, Nova Iorque, 1954.
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e assevera nove vezes (!) a sua eficácia para conhecer os misteriosos fenó-
menos da Duat255. A morte aqui não era senão o véu que ocultava o mis-
tério e a imortalidade o caminho dessa revelação. Para Erik Hornung,
este percurso nocturno constituía uma metáfora para uma transformação
interior que ocorreria nas profundezas da mente humana que se renova-
va mergulhando nessas profundezas. Tratava-se, no seu dizer, de uma odis-
seia interior simbolizada pela representação do Sol com a cabeça de car-
neiro que, na escrita hieroglífica significa ba256. Não conheço, com efei-
to, testemunho mais inequívoco do valor transformador do livro e do
conhecimento do que as monumentais páginas editadas em pedra destes
túmulos onde o leitor, como numa Never Ending Story, entra literalmen-
te na história e se deixa transformar e renascer através dela.
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258. Ver a este respeito LEBLANC, Ta Set Neferu: Une nécropole de Thébes-Ouest et son histoire, 5
volumes, Cairo.
259. Ibidem, p. 12.
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260. Os textos do «Livro dos Mortos» estão povoados por uma perspectiva esotérica do Além, na
medida em que pressupõe um conhecimento prévio para serem compreendidos, isto através
de alusões simbólicas tão cifradas que, aparentemente, já na Antiguidade, o seu sentido se tor-
nava dúbio. O capítulo 17 é disso um claro exemplo. As notas «explicativas» que o seguem,
sob a forma de perguntas e respostas, mostram como o sentido de algumas expressões era
interpretado de forma diferente, segundo a tradição solar ou segundo a tradição osiríaca, e ou-
tras mais difíceis de identificar. Com o tempo o carácter esotérico do texto levou mesmo a que
os seus leitores não o compreendessem de todo, copiando-o reverentemente, mesmo quando
veiculava erros grosseiros de caligrafia.
261. Alguma documentação fotográfica da decoração deste túmulo pode ser encontrada em
LEBLANC, Ta Set Neferu, pl. CXXXV-CXXXVIII.
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tecipando o papel de Orfeu, o seu pai, Ramsés III, entra nos domínios da
Duat, não para daí o trazer, mas para o conduzir em segurança à presença
de Osíris. A chegada à Duat é representada logo na antecâmara que vibra
com os gestos de amor que o faraó troca com as deusas que o acolhem calo-
rosamente. Depois, sempre adiantando-se à criança, o faraó apresenta-se
diante das divindades ctónicas do mundo subterrâneo: primeiro diante de
Ptah, depois diante de Tatenen, divindades primordiais benfazejas que cer-
tamente lhe concederiam o privilégio de flanquear o território dos mortos
proibido aos vivos. É então, ele próprio, conduzido pela mão por divinda-
des masculinas para o interior da Duat. Na galeria descendente, o faraó e a
criança estão sozinhos diante das perigosas portas da Duat guardadas por
demónios. O faraó vai à frente e abre o caminho até ao derradeiro momen-
to da despedida. Na parede direita da galeria, contrariamente ao que até aí
era usual, o faraó não prossegue com a criança até à câmara funerária.
Ramsés III flanqueara os portões do Além mas detém-se aí, erguendo os
braços num gesto de adeus enquanto o pequeno príncipe avança sozinho,
tal como a personagem de Saint-Exupèry, para um caminho que a partir de
agora é só seu. É uma rara e desconcertante visão da morte que nos devol-
ve um rosto humano às tradicionais prerrogativas faraónicas: a de um pai
que, usando os seus poderes sobrenaturais, flanqueia os umbrais da morte
para acompanhar o seu filho num mundo povoado de perigos, para aí o
deixar partir em segurança para o território dos bem-aventurados. É, no
meu ponto de vista, ainda hoje, uma metáfora incrivelmente poderosa
acerca do luto e a única, tanto quanto é do meu conhecimento, em que a
morte se insinua na imagem de uma despedida.
5. OS TÚMULOS PRIVADOS
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262. Embora a pirâmide tivesse sido uma prerrogativa da realeza no passado, no Império Novo ela
era usada pelos particulares, uma vez que os faraós haviam abdicado de a usar.
263. Uma característica típica da necrópole tebana é a colocação de cones de cerâmica embutidos
nas paredes exteriores do túmulo. A base destes cones, virada para fora, apresentava o nome e
títulos do defunto e de algum modo assinalava a identidade do defunto. Sobre estes objectos
ver DAVIES & MACADAM, A Corpus of Inscribed Egyptian Funerary Cones, Oxford, 1957.
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264. Ver a este título NEWBERRY, The Life of Rekhmara, pl. XVL
265. Ver a decoração do túmulo tebano de Djeserkeresonb, em DAVIES, Scenes from the Theban
Tombs, pl. I-II.
266. Ver, por exemplo, a decoração do túmulo tebano de Nebamun em SÄVE-SÖDERBERGH,
Four Eighteenth Dynasty Tombs, pl. XXIV-XXVI.
267. No Império Antigo e no Império Médio o repertório decorativo estava circunscrito às repre-
sentações de carácter autobiográfico (1) e ao aprovisionamento funerário do túmulo (2), com
raras alusões aos rituais funerários (3). No Império Antigo o campo temático 4 é desenvolvi-
do apenas sob forma textual para o faraó, através da redacção dos «Textos das Pirâmides».
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representar numa animada e desportiva sequência: primeiro desafia as feras do deserto no seu
possante e vistoso carro puxado por cavalos, para em seguida investir contra as aves das flores-
tas de papiro navegando numa barca de papiro. Depois de enfrentar os domínios caóticos no
deserto e dos pântanos, Userhat é representado em seguida num tranquilo e agradável passeio
náutico. Trata-se de uma forma singular de evocar a aproximação ao Além: recorrendo ao tema
do domínio da luz sobre as trevas inerente quer à caça no deserto, quer nas florestas de papiro,
Userhat representa o seu caminho para o Além como uma luta ao cabo da qual acabaria por
conquistar a tranquilidade, evocada no passeio náutico, um tema aristocrático e lúdico, por
natureza. Curiosamente, e talvez não por acaso, o nobre Userhat reflecte no seu túmulo o gosto
«desportista» do seu faraó, Amen-hotep II, conhecido precisamente pelas suas proezas atléticas.
Há, portanto, nestas flutuações iconográficas matizes de carácter religioso, mas também polí-
tico. Já no túmulo de Menna (TT 69), o mesmo tema do passeio náutico é interpretado de
outro modo. Esta cena, que é normalmente associada ao prazer, é evocada com o intuito de
«fazer esquecer o coração» (ou seja, de «distrair»), como refere a legenda que a acompanha. Cu-
riosamente, na parede oposta, está representada a cena da pesagem do coração, que constitui
precisamente uma das primeiras ocorrências desta cena na decoração tumular tebana. Tratam-
-se portanto de dois temas «cardíacos» cujo paralelismo parece revestir-se de um intuito alegó-
rico: se era certo que o coração seria examinado no tribunal de Osíris, Menna estava tranqui-
lo a esse respeito e podia «distrair-se» pois certamente se tinha a si mesmo como um justo que,
ao longo da sua vida, não tinha feito outra coisa do que praticar a maet. Por detrás da aparen-
te uniformidade pictórica destes túmulos insinua-se, portanto, uma constante reinterpretação
assumindo, por vezes, um cunho fortemente pessoal.
269. As cenas relacionadas com a vida no Além (4) começam já a surgir na XVIII dinastia mas
concentram-se nas extremidades do eixo este-oeste: a entrada do túmulo (a este) apresenta a
adoração ao deus Sol, Ré, representada nos batentes da porta, e a adoração a Osíris, normal-
mente representada na extremidade oeste, depois do cortejo fúnebre. Ver ASSMANN, Mort
et l’au-delà, pp. 296-297.
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270. Também a lustração solar representada numa das colunas já não constitui uma evocação auto-
biográfica (1) mas sim a imagem da sua regeneração no Além (4). A peregrinação à cidade santa
de Abido que, em princípio deveria ocorrer em vida, é representada com o intuito de conti-
nuar a realizar-se no Além.
271. Notícias das primeiras representações do mundo da Duat nas câmaras funerárias dos túmulos
tebanos remontam ao reinado de Hatchepsut. Senmut fez incluir no programa decorativo do
seu túmulo secreto um tecto astronómico. Também Djehuti (TT 11) apresenta alusões à Duat
mas desta feita através da inscrição de textos do «Livro dos Mortos».
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272. O interesse criado por esta nova temática, a vida no Além, não deixaria de aumentar e não tar-
daria a revelar-se no contexto público do túmulo. Duas gerações depois, no túmulo de Khae-
mhat (TT 57), também ele governador de Tebas, mas desta feita no reinado de Amen-hotep
III, encontramos uma evolução nítida. Os domínios da Duat estão claramente em destaque na
decoração da superstrutura, portanto na parte pública do monumento, concentrando-se na
passagem longitudinal. Aí encontramos uma prodigalidade surpreendente destes novos temas:
a representação da adoração do defunto a Osíris, a representação nos campos de Iaru (excep-
cional neste período), a peregrinação a Abido, e a lustração solar que, tal como em Sennefer,
não é apresentada num contexto autobiográfico, mas sim como uma cerimónia que facultava
a saída para o dia. Podemos dizer, quando comparamos o túmulo de Sennefer com o de Khae-
mhat que, neste último, as inovações introduzidas por Sennefer na infraestrutura e, portanto,
rodeadas de secretismo, encontravam-se agora ilustradas com desenvoltura na superstrutura.
No entanto, um pouco mais tarde, à medida que nos aproximamos do reinado de Akhenaton,
assiste-se a uma clara repressão destas temáticas. O túmulo de Ramés (TT 55) que se encon-
tra entre os mais majestosos da necrópole, é decepcionante no ponto de vista da inovação neste
domínio. O programa decorativo deste túmulo inclui o tema do aprovisionamento (1 e 2),
bem como a representação do cortejo funerário. A exaltação autobiográfica é coroada com as
cenas majestosas de apresentação diante do faraó: do lado sul é representado Amen-hotep III,
enquanto do lado norte figura Akhenaton. A evocação da adoração ao Sol, representada nos
batentes da entrada, é a única representação enquadrada no novo tema. É difícil imaginar que
um túmulo com esta dimensão e monumentalidade não tivesse incluído no seu repertório pelo
menos algumas cenas das novas temáticas. No entanto, se essas cenas foram previstas, elas nun-
ca chegaram a ser iniciadas, uma vez que o túmulo se afigura inacabado. Evidentemente, no
reinado de Akhenaton a situação agravou-se neste domínio, com todas as manifestações do
culto funerário de inspiração osiríaca a serem banidas, o que pode estar justamente na base do
abandono do túmulo pelo seu proprietário.
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273. Para a completa descrição da decoração do túmulo ver DAVIES, Two Ramesside Tombs at
Thebes, Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, 1927.
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é frequentemente o caso no antigo Egipto, não sejam o alvo directo das suas
representações. Deir el-Medina constitui por si só, um caso invulgar devido
ao estatuto especial que detinha. Não podemos, no entanto, pensar que se
tratava de um caso isolado de uma comunidade com vocação funerária. No
contexto da necrópole tebana, outras comunidades floresciam. Em primei-
ro lugar no interior do próprio perímetro dos grandes templos funerários
reais que albergavam nos seus muros uma florescente comunidade de fun-
cionários com responsabilidades administrativas e sacerdotais. É de esperar
que em torno destas comunidades se estendessem pequenas aldeias para
prover às necessidades de mão-de-obra desta elite. Há ainda que contar com
os profissionais da morte, desde os mumificadores às carpideiras, passando
pelos carregadores e toda a sorte de artesãos especializados, e também, cer-
tamente em muito maior número, de trabalhadores indiferenciados, que
trabalhavam na construção dos túmulos privados.
Para além destes, não nos podemos esquecer dos sacerdotes responsá-
veis pelo culto funerário, distribuídos em várias categorias, entre as mais
importantes das quais figuram os sacerdotes-leitor, heri-heb (responsáveis
por recitar as fórmulas mágicas que presidiam às liturgias fúnebres) e os
sacerdotes do ka, hem ka (responsáveis pela apresentação das vitualhas ali-
mentares, bem como de fumigações e libações).
Outra classe profissional muito importante das necrópoles era a dos ar-
tesãos que produziam bens funerários, como sarcófagos, ataúdes, chauabtis
e amuletos de toda a espécie que geravam uma fonte importante de rique-
za com o seu trabalho. Graças à documentação descoberta em Deir el-
-Medina, possuímos informações muito circunstanciadas acerca do preço
de alguns destes bens. A confecção de um sarcófago de madeira, por exem-
plo, podia custar entre 20 a 30 deben (1 deben corresponde a 91 gramas de
cobre), mas a sua decoração podia oscilar entre 1 deben e 200, em função
do grau de riqueza pretendido. A julgar pela qualidade pictórica de alguns
destes objectos, a sua decoração envolvia necessariamente um trabalho con-
junto de pintores muito hábeis, mas também de entendidos na iconogra-
fia e nos textos funerários.
Todos estes profissionais da morte se integravam em comunidades
complexas que, embora apresentassem uma certa heterogeneidade entre
si, eram fortemente interdependentes. Não nos podemos esquecer tam-
bém que os campos férteis eram cultivados por camponeses que viviam
em aldeamentos dispersos na orla do deserto ou nas colinas artificiais
criadas em redor do lago palatino de Amen-hotep III que, provavelmen-
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278. É o caso, por exemplo, do ataúde antropomórfico A.19 encontrado em Bab el-Gassus perten-
cente à cantora de Amon Taiheri e actualmente conservado no Museu Nacional de Copenhaga.
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ao dinamismo dos bens funerários, é pouco provável que estes bens ficas-
sem em stock durante tanto tempo, sendo muito mais plausível admitir
que os ataúdes em questão tivessem sido «subtraídos» a um túmulo da
necrópole e posteriormente vendidos a um ateliê que se encarregou de
lhe dar uma nova roupagem, mais adaptada ao gosto e às convenções do
tempo. Vemos pois como um mesmo objecto podia ser utilizado sucessi-
vamente em diferentes enterramentos.
Com todos estes indicadores, não é, portanto, de estranhar a descon-
fiança mútua entre os habitantes da margem oriental e os da margem oci-
dental, um traço que curiosamente, apesar de todas as mutações do tempo,
se observa ainda no território de Luxor, com os habitantes de uma margem
a apontar com reprovação a conduta dos habitantes da margem oposta.
Fosse como fosse, em certas alturas do ano a necrópole animava-se com
a presença em peso da comunidade de ambos os lados do rio. Eram as fes-
tas da necrópole, como a Bela Festa do Vale, que reforçavam o laço entre
os vivos e os mortos, mas também entre a necrópole e o templo. Em Tebas,
a festa era acompanhada pela procissão da barca de Amon, acompanhada
pela da esposa divina, Mut, e pela da criança divina, Khonsu, bem como
de um numeroso séquito sacerdotal. Em alturas como estas, o já de si sagra-
do território da necrópole tornava-se uma extensão palpável do templo
divino, mostrando a prevalência simbólica que, sobretudo no Império No-
vo, o templo detinha no território da morte.
Para além das festividades que anualmente tinham lugar na necrópole,
o defunto podia receber as visitas dos vivos nos momentos em que a angús-
tia batia à porta. O túmulo, de resto, era um ponto de contacto permanen-
te entre os vivos e o defunto. Este elo poderia ser, é certo, mais ou menos
duradouro, mas tinha uma intensidade que não deixa espaço para dúvidas
acerca do halo de poder que rodeava o «santo» defunto. Os vivos procura-
vam o apoio dos entes queridos mortos e com o intuito de se fazerem ouvir
pelos defuntos redigiam-lhes cartas onde lhes apresentavam abertamente as
questões que os afligiam. Estas missivas eram normalmente redigidas sobre
loiça cerâmica onde eram depositadas oferendas de bebida ou alimento para
o ka do defunto. Mantinha-se, assim, uma troca entre os vivos e os mortos
e a interdependência entre os dois mundos. O defunto podia ser visto como
a fonte das desgraças que se abatiam sobre o vivo, normalmente o cônjuge
sobrevivente, que temia o ciúme suscitado pela necessidade natural de reto-
mar a sua vida terrena com outra ligação amorosa:
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279. DONADONI (ed), O Homem Egípcio, p. 234.
280. Em ibidem, p. 230. Acreditava-se também que o defunto podia assumir a forma de uma as-
sombração e aparecia repetidamente aos vivos, exortando-os a restaurarem a sua fundação fu-
nerária. Assustados, os vivos redigiam os nomes de defuntos em tabuinhas e enterravam-nas
para reconduzir os defuntos para o seu devido lugar. Felizmente, os mortos eram mais fre-
quentemente vistos como uma ajuda do que como uma ameaça. Uma narrativa conta como,
nos domínios do Além, um morto pede a Osíris que confeccione um homem em terra, uma
espécie de golem, e que o envie para o mundo dos vivos para obter informações sobre os seus
entes queridos e punir os que os atormentavam. Em MEEKS, «Demons», in Redford (ed),
The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, pp. 375-378.
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281. Ver TAYLOR & STRUDWICK, Mummies: Death and the Afterlife in Ancient Egypt, EA n.º
21809.
282. Ver SEIDLMAYER, «Necropolis» em Redford (ed), The Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt,
p. 509.
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7. O SENHOR DO MISTÉRIO
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283. A existência de um jardim dos mortos é feita por Diodoro da Sicília que os localiza no lago
de Akheru. O «Livro dos Mortos», no entanto, já aludem à sua existência ao longo do
Império Novo. Ver ASSMANN, Mort et au-delà, p. 356.
284. Nos templos tardios verifica-se mesmo a celebração de cerimónias de carácter osiríaco,
mesmo em templos onde as conotações funerárias não são à partida atributos dominantes da
divindade aí cultuada. Reflexo disso é a construção de câmaras osiríacas, como no templo de
Hathor em Dendara. Ver CHASSINAT, Le Mystère d´Osiris au Móis de Khoiak, IFAO,
Cairo, 1966. Ver também SOUSA, «O edifício de Taharka no lago sagrado de Karnak: sim-
bolismo e função ritual», em Arte Pré-Clássica: Colóquio comemorativo dos vinte anos do
Instituto Oriental da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pp. 279-302.
285. Tal como o seu templo tebano, o templo erguido na necrópole de Abido era um «templo de
milhões de anos» mas, à diferença daquele, celebrava a união do faraó não apenas com
Amon (cuja estátua ocupava o santuário central do templo), mas sobretudo com Osíris, ao
qual eram dedicadas as câmaras secretas edificadas atrás do templo assim como o túmulo
simbólico de Osíris, o Osireion. Ao invés de uma única câmara destinada a albergar a está-
tua divina, o templo de Abido de Seti I apresentava sete câmaras, cada uma delas dedicada
a uma divindade. Ao centro presidia a imagem de Amon. Para norte divizam-se as câmaras
de Osíris, Ísis e Hórus, ao passo que a sul se apresentam os santuários de Horakhti, Ptah e
o próprio Seti I divinizado. Todas estas divindades são aqui reunidas devido às conotações
funerárias do seu culto.
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289. Na capela de Osíris que preside às câmaras osirianas.
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290. BARGUET, Livre des Morts, p. 261.
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CAPÍTULO V
O CAMINHO DE REGRESSO
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291. Para além da jornada ritual rumo à necrópole e ao túmulo, os textos deste livro são alusivos a
uma outra jornada que o defunto realiza na qualidade de um deus osirificado. Enquanto a sua
múmia e o seu ka permanecem ancorados à infraestrutura e superstrutura, respectivamente, o
defunto divinizado realiza um périplo solar, ao qual o seu ba se reúne, e um percurso ctónico
que evoca a sua iniciação nos mistérios de Osíris, iniciação essa que o conduzirá de regresso à
Origem. Estes textos redigidos como fórmulas mágicas eram entoados ao longo dos rituais fu-
nerários, não só no funeral, mas periodicamente por ocasião de certas festividades, como indi-
cam as instruções que as acompanham. No entanto, tudo indica que Os capítulos de sair para
o dia eram também lidos ao longo da vida terrena, como forma de adquirir o conhecimento
esotérico necessário para esta viagem.
292. As correntes de interpretação do «Livro dos Mortos» dividem-se quanto à questão das fórmu-
las apresentarem ou não uma estrutura narrativa. Temos evidentemente de considerar que, ape-
sar da sua numeração não ser antiga, ela corresponde à estandardização que estas composições
sofreram na Época Baixa e que organizaram, tudo indica sequencialmente, um conjunto de
textos que antes era apresentado sem qualquer ordem específica. Esta ausência de ordem
explica-se pelo carácter prático das fórmulas mágicas que não pretendem contar uma história,
mas apresentar textos mágicos que possam ser aplicados no Além. A sequência que aqui apre-
sento é a que se detecta nos livros tardios.
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1. O PÉRIPLO SOLAR
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293. Capítulo 64 do «Livro dos Mortos». Ver em BARGUET, Le Livre des Morts des Anciens Égyp-
tiens, pp. 102-105
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jaz por terra, Chu, o pilar cósmico, ergue o céu sob os seus braços. Com esta
vinheta o defunto, vislumbrava os fundamentos do universo que regiam a
navegação da barca solar no firmamento.
A ÁRVORE DO PARAÍSO
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re.297 O capítulo 110 descreve este lugar como uma paisagem mítica onde
todas as necessidades vitais do defunto eram satisfeitas e onde o seu poder
de vida era reforçado:
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297. Em certas fórmulas, este lugar é descrito como uma cidade que liberta o defunto da morte:
«Ele olha, o que aproxima desta cidade (...) Quem aí chega não perece (lit.: «não toca o
chão»). Quem aí entra torna-se um deus. Olha, através dessa visão, Khentiamenti, tornas-
-te um deus no seu centro.» Em ASSMANN, Mort et au-delà, p. 239. O lugar de vida eter-
na também podia ser descrito como uma margem situada do outro lado de uma grande
extensão de água que o defunto atravessava sob a forma de uma ave. Ver Capítulo 110 do
«Livro dos Mortos», em BARGUET, Le Livre des Morts des Anciens Égyptiens, pp. 145-147.
298. Capítulo 110 do «Livro dos Mortos», em ibidem
299. Em ASSMANN, Mort et au-delà, p. 356. Também em Ibidem., p. 342
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A PESAGEM DO CORAÇÃO
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301. Estas crenças motivaram mesmo a identificação entre o coração e o prumo da balança, levan-
do à elaboração de prumos com a forma de coração usadas em vulgares balanças utilizadas na
vida terrena. Ver SOUSA, «Symbolism and Meaning of Pendulum Heart Amulets», GM 221
(2009), Göttinger, pp. 69-79. Ver também o exemplar conservado Museu da Farmácia em
BASSO & ARAÚJO, A Farmácia no Mundo Pré-Clássico e nas Culturas Tradicionais, p. 119.
302. Para uma caracterização sumária da noção de coração ver SOUSA, “Coração”, em ARAÚJO
Dicionário do Antigo Egipto, pp. 234-236.
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303. Ver idem, Iniciação e Mistério no Antigo Egipto, p. 202.
304. A sucessão de portas estabelece um paralelo entre o Além e um templo. A ideia de flanquear
portais ao longo do caminho do Além já está presente no Livro dos Dois Caminhos. Nesta
composição do Império Médio, o defunto entra na «Morada da Lua», o templo de Tot onde
se dá a regeneração do morto. Também aqui o defunto passa por sete pórticos guardados por
monstros ameaçadores que velam pela sacralidade desses lugares. Para Barguet, trata-se, sem
equívocos, da descrição do plano de um templo. A viagem do defunto corresponderia, deste
modo, à iniciação do sacerdote e à sua apresentação diante do relicário divino. Ver BAR-
GUET, Le Livre des Morts des Anciens Égyptiens, pp. 13-31. Também o conto demótico Setne-
-Khaemuaset e Siosíris apresenta uma idêntica concepção do Além. Quando Setne, guiado
pela mão de Siosíris, entra em Ra-setau, atravessa sete salas até chegar à comparência de
Osíris. Ver ARAÚJO, Mitos e Lendas do Antigo Egipto, pp. 264-265.
305. O carácter secreto destes domínios é enfatizado com o desdobramento simbólico do número
de portas. Completude e universalidade parecem, efectivamente, estar muito conotados com
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o significado mágico do número 7 que reúne a magia do número três (pluralidade) e do
número quatro (totalidade). Sobre a magia contida nestes números ver WILKINSON, Sym-
bol and Magic in Egyptian Art, 146.
306. A sucessão de portas estabelece um paralelo entre o Além e um templo. A ideia de flanquear
portais ao longo do caminho do Além já está presente no «Livro dos Dois Caminhos». Nesta
composição do Império Médio, o defunto entra na «Morada da Lua», o templo de Tot onde
se dá a regeneração do morto. Também aqui o defunto passa por sete pórticos guardados por
monstros ameaçadores que velam pela sacralidade desses lugares. Para Barguet, trata-se, sem
equívocos, da descrição do plano de um templo. A viagem do defunto corresponderia, deste
modo, à iniciação do sacerdote e à sua apresentação diante do relicário divino. Ver BAR-
GUET, Aspects de la pensée religieuse de l’Égypte ancienne, pp. 13-31. Também o conto
demótico Setne-Khaemuaset e Siosíris apresenta uma idêntica concepção do Além. Quande
Setne, guiado pela mão de Siosíris, entra em Ra-setau, atravessa sete salas até chegar à com-
parência de Osíris. Ver ARAÚJO, Mitos e Lendas do Antigo Egipto, pp. 264-265.
307. A sucessão das sete portas indicava uma progressão em tudo semelhante à que era feita no
interior de um templo divino. No interior das muralhas deste templo subterrâneo, no círcu-
lo mais interior e recuado e mais santo de todos, o defunto era acolhido por Osíris. Par-
tilhava o seu segredo e os temíveis guardiões seriam, de ora avante, os seus próprios protec-
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diante dos guardiães das portas308. Uma vez atravessadas estas barreiras
guardadas pelos monstros do Além, o defunto estava a salvo, a potencial
ameaça transformava-se em protecção segura309. Graças à pureza, o defun-
to podia atravessar esta barreira e penetrar no domínio mais secreto da
Duat,310 onde se podia identificar totalmente com Osíris e onde podia as-
pirar a uma regeneração cósmica. A pureza era, deste modo, a chave para
____________
tores e o preservá-lo-iam de todo o mal. A porta de Adriano, em Philae, apresenta uma repre-
sentação acerca do trajecto iniciático no templo e a função da porta na defesa do mistério da
regeneração que, em última análise, é responsável pela renovação do mundo. Neste relevo, a
porta apresenta um ferrolho em forma de leão que simboliza a função dos guardiões do Além
(comentámos estes objectos na III parte do nosso trabalho) e a sua relação com a pureza. O
paralelo com as vinhetas do «Livro dos Mortos» que ilustram esta passagem faz-se natural-
mente. Numa destas representações («Livro dos Mortos» de Userhatmés – Museu Egípcio do
Cairo: SR 10249) o defunto que exibe o órgão diante dos génios funerários proclama: «Abre
o caminho! Eu conheço-te e conheço o teu nome, bem como o nome do deus que vela por
ti. (Capítulo 145 e 146 do «Livro dos Mortos». Versão francesa em BARGUET, Le Livre des
Morts, pp. 193-203.) Noutra vinheta rara ilustrando a rubrica do capítulo 194 («Fórmula
para entrar no tribunal das duas deusas e para glorificar Osíris»), o defunto é representado
diante de seis akhu, estando um deles equipado com um coração. A legenda refere que se
trata de «O da oferenda», «O que dá pão ao esfomeado». Estes akhu constituem um tribu-
nal para determinar se o defunto pode ser admitido no Além. É talvez por isso que um deles
é representado com o coração (Ver DUQUESNE, At the Court of Osiris. Book of the Dead
spell 194, p. 12).
308. A função destes guardiões concentrava-se, no entanto, na figura de Ammut, a Devoradora,
monstro que devorava os corações pecaminosos, carregados pelas faltas. O papel destas enti-
dades era, deste modo, o de provocar uma dissociação moral do defunto em relação à morte.
A balança da psicostasia, a Devoradora e os monstros do Além eram marcos no percurso do
morto no afastamento da sua própria morte/impureza.
309. ASSMANN, Mort et au-delà dans l’ Égypte ancienne, p. 196. Estes monstros, também desig-
nados como «demónios» são na verdade divindades menores. O que as distingue das restan-
tes divindades é a sua sujeição a uma autoridade superior que os «obriga» a se circunscreve-
rem a uma determinada tarefa, normalmente punitiva. A sua acção punitiva justifica-se em
nome da protecção que garantem de uma determinada esfera do sagrado. O demónio apre-
senta, portanto, uma face positiva e negativa. Em MEEKS, «Demons», in Redford (ed), The
Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, pp 375-378.
310. O carácter secreto destes domínios é enfatizado com o desdobramento simbólico do número
de portas. No capítulo 145 do «Livro dos Mortos», o símbolo é desenvolvido numa série de 21
portas que o morto deve flanquear. O capítulo 146 reduz este número para catorze, ao passo
que nos capítulos 144 e 147 apenas sete portas subsistem. O desdobramento do número sete
está certamente em relação com as sete vacas celestes descritas no capítulo 148. Os sete portais
constituem, muito provavelmente, uma alusão ao papel protector destas deusas bovinas e à sua
capacidade para restaurar a completude do defunto e para garantir a universalidade dos seus
poderes. Completude e universalidade parecem, efectivamente estar muito conotados com o
significado mágico deste número que reúne a magia do número três (pluralidade) e do núme-
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3. O RETORNO À ORIGEM
____________
ro quatro (totalidade). Sobre a magia contida nestes números ver WILKINSON, Symbol &
Magic, p. 146. Há uma sugestiva representação da vinheta do capítulo 148 no túmulo da
rainha Nefertari, com as sete vacas celestes e o touro copulador, com o mágico reforço dos
lemes.
311. Este era também um dos momentos críticos para o renascimento do defunto que os amule-
tos «cardíacos» procuravam propiciar. As divindades bovinas e os quatro lemes celestes da-
vam ao defunto a regeneração e a afirmação da universalidade do seu poder. Ver capítulo
148 do «Livro dos Mortos».
312. Inscrição do sarcófago de Hatchepsut, em HAYES, Royal Sarcophagi of the XVIII Dynasty, p. 67.
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313. Capítulo 182 do «Livro dos Mortos».
314. Texto de Nut, em ASSMANN, Mort et au-delà, p. 253.
315. O acolhimento maternal de Nut está bem exemplificado nas pinturas internas dos sarcófagos on-
de a imagem da deusa celestial está de braços abertos, pronta para receber o seu filho Osíris (o
defunto) no seu seio. Um bom paradigma pode ver-se na colecção egípcia do Museu Nacional
de Arqueologia (sarcófago de Pabasa), da Época Greco-Romana.
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vel316. O defunto era agora o filho de Nut e, tal como o Sol, era gerado
para uma nova vida para renascer, como o Sol, no firmamento. Do corpo
inerte e mumificado do defunto eclodia então a centelha luminosa rege-
nerada por Nut e que era simbolizada pelo escaravelho do coração depo-
sitado nas faixas da múmia. O escaravelho sagrado representava, deste
modo, o renascimento do defunto graças à sua identificação plena com o
Sol. Começava agora uma nova vida que levava o defunto a integrar-se
nos ciclos cósmicos do Sol. O fim da viagem conduzia o defunto à Ori-
gem e uma nova vida podia agora começar. O escaravelho solar, represen-
tando o Sol nascente, assinalava que a noite escura da morte dera lugar à
luz de um novo nascimento. Esta linha de continuidade entre os domí-
nios secretos de Osíris e a visibilidade do Sol é, em suma, o verdadeiro
mistério do Além cujo valor reside precisamente no seu poder para asse-
gurar a renovação da vida à imagem do próprio cosmos317.
Realizava-se, assim, a fusão dos ciclos mitológicos de Ré e de Osíris.
Um circuito ligava o fim ao princípio, a vida e a morte, o interior da terra
ao céu que rodeia o mundo. A morte, a descida ao mundo inferior de Osí-
ris e a justificação, culminava com o regresso ao ventre da deusa celeste e
o renascimento sob a forma do Sol nascente, a pura imagem da recriação
do mundo na sua plenitude primordial. Era afinal a imagem da morte
como um regresso ao ventre materno que os túmulos mais antigos do
vale do Nilo já apresentavam milénios antes da criação do próprio Egipto
faraónico. O final do caminho conduzia, afinal de forma bem literal, à
Origem dos tempos.
____________
316. Em ibidem, p. 267. Estas crenças reflectiam-se naturalmente no modo como os vivos enca-
ravam o aproximar da morte. Ao chegar a velhice, o homem via na morte a possibilidade de
rejuvenescer: «Ah, que eu possa rejuvenescer, pois a velhice chegou, a fragilidade venceu-me,
os meus olhos estão pesados e os meus braços inertes, as minhas pernas deixaram de seguir
o meu coração cansado. Estou prestes a passar. Que eu seja levado à cidade da eternidade,
para que possa seguir a senhora do universo. Então ela dirá as palavras benéficas para os seus
filhos e percorrerá a eternidade debaixo de mim». Em Aventura de Sinuhe, em ibidem, p. 281.
317. Ver ibidem, p. 288.
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CONCLUSÃO
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____________
318. SOUSA, Iniciação e Mistério no Antigo Egipto, pp. 154-176.
319. HORNUNG, L’ Un et le Mulptiple, pp. 137-150.
320. Em ASSMANN, Mort et au-delà, p. 267. Estas crenças reflectiam-se naturalmente no modo
como os vivos encaravam o aproximar da morte. Ao chegar a velhice, o homem via na morte
a possibilidade de rejuvenescer: «Ah, que eu possa rejuvenescer, pois a velhice chegou, a fra-
gilidade venceu-me, os meus olhos estão pesados e os meus braços inertes, as minhas pernas
deixaram de seguir o meu coração cansado. Estou prestes a passar. Que eu seja levado à cida-
de da eternidade, para que possa seguir a senhora do universo. Então ela dirá as palavras be-
néficas para os seus filhos e percorrerá a eternidade debaixo de mim». Em Aventura de Sinu-
he. Versão francesa em ibidem: 281.
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ver, do ka e do nome era uma questão puramente material: para isso era re-
querido ter estatuto e fortuna suficiente para construir um túmulo seguro,
uma casa de eternidade eficaz. Era este horizonte de eternidade, sem qual-
quer conteúdo salvífico, que se estendia perante o homem do Império An-
tigo. Para ele, a imortalidade era um dom atribuído pelo faraó em resulta-
do dos seus bons serviços. A esta noção de imortalidade estava associada a
imagem da morte como um atentado, um crime, que as instalações funerá-
rias procuravam colmatar através dos rituais funerários, nomeadamente
através do ritual da abertura da boca e do culto do ka.
Todos os que não dispunham de meios para criar uma casa de eterni-
dade, não estavam propriamente destituídos de qualquer horizonte de so-
brevivência. Os seus túmulos, limitados a um sarcófago de vime ou a um
vaso cerâmico, continuavam a albergar o cadáver sepultado em posição fe-
tal, prolongando a tradição pré-dinástica até ao fim do III milénio. Para es-
tes, as antigas crenças animistas continuavam certamente a fazer da morte
um regresso ao útero materno de uma deusa cósmica, para nós, inominada.
A verdadeira imortalidade estava, porém, associada ao tempo neheh,
ao regresso regenerador ao tempo primordial, algo que evidentemente se
revestia de um cunho utópico e que assumia o contorno de uma deman-
da sobre-humana. Nesta dimensão a imagem da morte dominante é
totalmente diferente e consiste num regresso à Origem. Para se inscrever
nesta dimensão, o homem precisava de se deslocar no espaço e no tempo,
precisava de vencer o hiato cósmico entre o céu e a terra e regressar a um
tempo primordial onde se reencontrava com a unidade perdida. Em teo-
ria, a este horizonte de sobrevivência só o faraó, dotado de uma centelha
divina, podia ambicionar ascender. A história da imortalidade no antigo
Egipto é sobretudo marcada pela conquista gradual desta dimensão pelo
homem comum através da sua apropriação do ba, o poder divino que
permitia ao faraó empreender a viagem cósmica rumo às origens da cria-
ção. É esta apropriação que traça os fundamentos para a definição salví-
fica da morte, uma vez que a aquisição do ba se fazia ao longo da vida
terrena através de uma conduta maética, ou seja, através do respeito pela
verdade, harmonia e justiça. Este horizonte de eternidade era definido
judicialmente, no tribunal de Osíris, mediante o exame do coração. No
Império Novo, a dupla estrutura do túmulo já não estava ancorada à pre-
servação do defunto no tempo djet. Embora continuassem a manter ob-
viamente as conotações anteriores, os túmulos privados ramséssidas eram
agora instalações destinadas a projectar o defunto no tempo neheh, por-
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-nos a todos o caminho que nos liga colectivamente ao vale do Nilo e faz
de cada igreja que povoa o nosso território, seja nos mosteiros ortodoxos
de Meteora, nas sumptuosas basílicas de Roma ou na modesta capela de
uma aldeia beirã, um repositório de imagens antigas, continuamente vi-
vas e activas, cujo poder consiste precisamente no de nos unir, através de-
las, à longa genealogia de símbolos cuja origem nos conduz continua-
mente de regresso às margens do Nilo.
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IMAGENS
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Sepultura pré-dinástica.
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Templo de Abu Simbel, reinado de Ramsés II, XIX dinastia. Sobre o portal de
entrada figura o deus Ré empunhando os ceptros user e maet. Trata-se de uma
composição críptica do nome de coroação do faraó, UsermaetRé.
MAPAS
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MAPA DO EGIPTO:
AS PRINCIPAIS LOCALIDADES COM VESTÍGIOS ARQUEOLÓGICOS.
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1 – Heliópolis 6 – Sakara-Norte
2 – Mênfis 7 – Abusir
3 – Dachur (pirâmide meridional de 8 – Abu-Gurab (templo funerário solar)
Seneferu) 9 – Zaiet el-Arian
4 – Dachur (pirâmide setentrional de 10 – Guiza
Seneferu) 11 – Abu Roach (pirâmide de Djedefre)
5 – Sakara-Sul
251
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ABREVIATURAS UTILIZADAS
OUTRAS ABREVIATURAS:
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CRONOLOGIA
Época Pré-dinástica
c. 5300 – 3000 a.C.
Época Greco-Romana
332 a.C. – 394
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