Indicações : Notas escritas em Maiúsculo fazem menção a acordes (harmonia)
enquanto notas escritas em minúsculo a notas (melodia).
Como discutido anteriormente em sala, o que vemos nessa peça em particular é um
universo sonoro que caminha junto ao do conto (mito), versado em prosa aberta, sem notação em pentagrama, e que guia, ou parece guiar os caminhos dos instrumentos dentro da atmosfera musical. O início na nota Ré não parece significar nada além de um ponto de partida, visto que o discurso falado é livre e não parece estar dentro de sistema temperado. Logo em seguida, após as apojaturas, vemos a voz alcançar o ré e promover a queda melódica de Ré para Si bemol, Lá bemol e assim por diante (Marcação 1). O clarinete parece confirmar essa nossa impressão inicial de que a voz lidera de alguma forma o discurso musical, onde após um pequeno melisma, vemos a “transcrição” do melisma em apojaturas, no Clarinete em Lá*, aqui notado em nota real. Seguindo, um glissando no violino começa a abrir o que parece ser um esquema harmônico também derivado do glissando na voz (Marcação 2). As notas formam acordes diatônicos e não diatônicos, não seguindo progressão harmônica tonal, que resulta mais em apelo dramático que propriamente uma escala melódica premeditada. A desconfiança sobre este fato torna- se mais palpável ao ler no site do compositor que a música deriva de uma gravação de um conto grego da ilha de Cyprus. O autor explica que no conto um Rei promete a mão da filha em casamento ao Diabo. Após o casamento, o noivo leva a noiva para o calabouço de seu castelo e, enquanto o marido sai para caçar, a esposa abre todas as portas do calabouço até a centésima primeira, onde ela encontra corpos de pessoas mortas e partes de animais mutilados. Ao chegar da caça, ele percebe ela muito triste, e pergunta: “está com saudades,quer ver seus pais?”, ao que responde sim. Então ele se veste, disfarçando-se como os pais da noiva. O conto termina aí, e o autor tenta recriar o conto na música. Voltando a análise da conjuntura harmônica, os acordes criados, reagindo à letra, nos guiam por uma miríade de dissonâncias e consonâncias, indo de um Mi com terça omitida, a um Mi com sexta, Sol com terça no baixo, inclusão de Dó criando uma segunda maior entre o piano e clarinete, chegado até a nota de dó sustenido (Marcação 2 até 3). Este dó sustenido, sonoramente, parece ser um ponto de chegada junto com a voz. Quando cito “sonoramente”, realço o fato das notas e das progressões não seguirem esquema tonal. Esse “ponto de chegada” logo se desfaz com a entrada das apojaturas do que considero um Mi bemol (si bemol, mi bemol, si bemol no violino), talvez um ponto de retomada do primeiro “acorde”, fazendo a mesma apojatura no clarinete, mas dessa vez alcançando um fá, montado um acorde de Fá, logo em seguida um Fá sustenido, caindo finalmente num Lá sustenido diminuto com quinta dobrada (mi natural, Marcação 3). No início da Marcação 4, vemos novamente o si bemol, mas agora fazendo um jogo de equilíbrio com o lá no violino, que cresce por glissando até o si natural ainda no violino, criando uma atmosfera tensa de dissonância de segundas, que continua com dó natural e dó bemol, finalizando com um Dó sustenido sem terça (Marcação 4). Pela pequena análise do começo vemos como o compositor busca contar essa história de forma não tonal com ferramentas aparentemente simples, omitindo a terça, que criaria uma certa estabilidade, e com inversões dos acordes, fazendo jogos de segundas e com ataques e respostas das notas através de glissandos.