Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Natal
2014
Rocelly Dayane Teotonio da Cunha
NATAL
2014
III
Rocelly Dayane Teotonio da Cunha, foi considerada aprovada por todos os membros da
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
_______________________________________________________
Agradecimentos
A Deus.
Aos meus pais Ivonete e Ronaldo e à minha irmã Raissa pelo apoio e
compreensão incondicionais.
À minha orientadora Ilana Lemos de Paiva, com quem muito aprendi, agradeço
trocas de experiências.
concessão da bolsa.
Jéssica, Hellen, Luciana, Thamiris, André e aos professores Dr. Marlos Bezerra e Dr.
Herculano Campos – pessoas com quem cresço todos os dias na luta pelos direitos de
crianças e adolescentes.
Às minhas amigas Dyalle Lira, Carol Campos e Ana Cândida pelo apoio afetivo
À querida Keyla, amiga e revisora, que me fez acreditar que é possível, sim,
sempre melhorar.
ao Professor Dr. Oswaldo Yamamoto pela atenção e pelas valiosas contribuições desde
os Seminários de Dissertação.
vivências.
VIII
Sumário
Lista de siglas
Lista de tabelas
Resumo
de atos infracionais no estado do Rio Grande do Norte. Por meio do método da História
unidades, desde o início das suas atividades. Para tanto, realizamos visitas à FUNDAC e
que pudessem colaborar com o estudo, bem como documentos institucionais sobre a
identificadas: Granja Santana, Instituto Padre João Maria e CEDUC, que foram
Os resultados estão organizados em cinco eixos de análise: (1) a criação das unidades de
socioeducativo.
XIII
Abstract
The objective of this study was to investigate the assistance for the female adolescents
perpetrators of offences in the state of Rio Grande do Norte. Through the Thematic Oral
History and Documentary Analysis methods, we sought to uncover historical aspects of
the work provided in women‟s units of the Fundação dos Direitos das Crianças e
Adolescentes (FUNDAC) [Foundation for the Rights of Children and Adolescents],
from the experiences of professionals who have worked in these units since the
beginning of their activities. For this, we made visits to FUNDAC and the Centro
Educacional Padre João Maria (CEDUC) [Educational Center Father João Maria], to
identify professionals who could participate in the study, as well as institutional
documents on routine of treatment. Eight professionals were found from three identified
units: Granja Santana, Instituto Padre João Maria and CEDUC, who were interviewed
according to a semi-structured script. The analysis of the collected material is supported
in Marxian theory and feminist perspective on the sexual division of labor. The results
are organized into five areas of analysis: (1) the creation of the service units; (2) the
deviant “behavior”: reasons for institutionalization of female adolescents; (3)
educational proposal: a female version; service strategies and; the rules and punishment:
the domesticated teenage girl. The study indicates that the commission of the offense by
the female adolescents in state of Rio Grande do Norte (RN) has been associated with
the conduct of their families, particularly their mothers. Moreover, in general, service
strategies, educational proposals, disciplinary measures were and have been developed
based on the naturalization of what is female. Therefore, the assistance to adolescent
girls in RN, those thirty-five years, left intact the existing hierarchy in social relations
between the sexes, it reproduced the subordination of female adolescents in the juvenile
justice system.
Introdução
do Rio Grande do Norte (RN) para adolescentes autoras de atos infracionais, desde a
criação da primeira unidade. Esta proposta surgiu no ano de 2010, a partir do contato
Socioeducativo do estado do RN, curso promovido pelo OBIJUV nos anos de 2011 e
1
O Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência foi implantado em agosto de
2009, tendo como objetivo contribuir com o enfrentamento à violência contra a população infantojuvenil
por meio de estudos, pesquisas e intervenções no âmbito do RN.
2
O Grupo de Pesquisas Marxismo & Educação é uma base de pesquisa vinculada ao Programa de Pós -
Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Foi implantado em
1995, com o objetivo de estudar a teoria social marxiana, congregando desde esse períod o diversos
pesquisadores, docentes e estudantes de graduação e pós -graduação.
3
Para melhor entendimento da situação do Sistema Socioeducativo Potiguar, consultar o Inquérito Civil
n. 010/2012 movido pela 21º Promotoria de Justiça da Comarca de Natal (2014).
15
desordem são considerados assuntos exclusivos dos homens. Segundo Perrot (1988), os
homens que cometem atos infracionais refletem atos viris masculinos nas “selvas das
cidades” (p. 256). No entanto, quando as mulheres desvanecem para este caminho,
tenham cometido como forma de resistência contra o algoz, ou ainda, elas estariam em
preconceitos milenares contra as mulheres. Saffioti (2004) lembra-nos que a posição das
mulheres foi construída a partir dos conceitos de fragilidade e docilidade, tendo como
mulheres frágeis e emotivas, não sendo, assim, indivíduos com potenciais para atos
violentos. Na mídia, exemplos desse incômodo podem ser encontrados nas seguintes
Horizonte” (Rede Globo de Televisão, 2013); “tomara que agora elas aprendam e não
repitam mais esses atos, é muito feio para meninas, e o que mais surpreende é como
campo e sobre as práticas que têm sido desenvolvidas nas unidades de atendimento para
4
Barra Pesada, da Tribuna do Ceará, é um telejornal local do estado do Ceará.
16
atenção que os homens no campo das pesquisas. A situação se agrava quando se trata
das adolescentes autoras de atos infracionais (Assis & Constantino, 2001). No Brasil,
atendimento ao público feminino, podendo, assim, refletir, sob a ótica do gênero, sobre
Natal. No entanto, foi no ano de 1979, sob a égide da doutrina de situação irregular, que
uso de drogas e exploração sexual. De 1979 aos dias atuais, a Região Metropolitana de
infrações do estado e, por isto, configura a maior parte do cenário que investigamos na
presente pesquisa.
partir daí, abordamos a escolha da história oral temática e a análise documental. Para
adolescentes envolvidas com infrações foi desencadeado ao longo dos anos. Como
RN, nesses trinta e cinco anos, deixou intacta a hierarquização existente na relação
Não há razão para negar que mulheres e homens não ocupam posições
Humano5 ressalta que nenhuma sociedade trata da mesma maneira seus homens e suas
Exemplos dessa desigualdade aparecem desde cargos e salários inferiores para mulheres
a regras morais que as definem como boas ou más (Saffioti & Almeida, 1995). Sabemos
entre os sexos se encontram latentes em pleno século XXI. Diante disso, questionamo-
tenha dominado a mulher pela força física, via de regra esta é maior nos elementos
masculinos do que nos femininos” (Saffioti, 1987, p. 12). “Foi nas sociedades de caça e
coleta, nas quais reinava a igualdade de gênero, que os homens desfrutando de tempo
livre (a caça sendo atividade praticada uma ou duas vezes por semana) criaram sistemas
verdade, então, que a partir desse período, tais sistemas se operacionalizaram nas
opinião de Hirata e Kergoat (2007), sim. Segundo essas autoras, as diferenças entre os
5
O Relatório pode ser encontrado no endereço eletrônico: http: www.undp.org.br Em seu sexto aspecto
referente à erradicação da pobreza, alerta-se aos países sobre a necessidade de obter a igualdade entre os
sexos, procurando privilegiar a energia e as capacidades produtivas das mulheres em todo o mundo.
20
maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares, dentre outros). (p.
599)
Nessa perspectiva, essa forma de divisão sexual do trabalho tem dois princípios
homens, outros para mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem tem
biológico, reduzindo seus papéis sociais às diferenças sexuais como um destino natural
Por exemplo, a educação dos filhos constitui tarefa tradicional das mulheres.
adolescentes. A naturalização deste processo é investida através dos tempos nas diversas
sociedades por fazer crer que esta atribuição, assim como todas as funções relacionadas
6
Concordamos com Matthews (2003) quando destaca que o sexo opõe-se ao gênero. Segundo essa
autora, no estudo das sociedades animais, incluindo os humanos primatas, revela-se uma grande
variedade de diferenças e assimetrias entre fêmeas e machos, homens e mulheres – características
secundárias que asseguram a procriação. No entanto, as sociedades humanas supervalorizam a diferença
biológica, atribuindo aos dois sexos funções diferentes e, especialmente, hierarquizadas no corpo social
como um todo.
21
organização social ter por base a dominação ideológica do patriarcado (Saffioti, 2004)7 .
Narvaz e Koller (2006) afirmam, a partir de suas trajetórias como militantes feministas e
tempos, sendo possível encontrar ainda suas sequelas nas organizações sociais. De
acordo com Saffioti (2004), a permanência do patriarcado persiste por esta ideologia
sua absorção pelo sistema capitalista, pois passam a se desenvolver a partir de novas
exercido por quem for homem, branco e heterossexual. Saffioti (1987) ressalta que um
nível extremo desse fenômeno diz respeito ao poder político. Para ela, em termos
grandes decisões que afetam a vida de um povo” (p. 47). Nessa conjuntura, a
7
O patriarcado é uma palavra antiga que, antes do século XIX, fazia referência aos dignitários da Igreja e
aos primeiros chefes de família que viveram antes e depois do dilúvio. No entanto, após o século XIX, o
conceito ressurgiu com a segunda onda do feminismo , demarcada a partir dos anos 1970 no ocidente.
Nessa perspectiva, o patriarcado designa uma formação social em que homens detê m o poder, ou ainda
significa o poder dos homens e a opressão das mulheres (Delphy, 1998).
22
participação das mulheres pode ser considerada mínima. As mulheres que chegaram aos
postos mais altos de uma república fizeram-no com o prestígio de seus companheiros
e/ou parceiros políticos. Segundo a autora, exemplos são Isabelita Perón, na Argentina,
Brasil. “A primeira por ter sido eleita vice-presidente em chapa integrada ao seu marido,
após a morte deste”. “A segunda foi eleita muito mais do que representou seu marido,
assassinado pela ditadura e Ferdinand Marcos” E a terceira foi eleita em 2010 e será
Silva, seu parceiro político (p. 47). Evidentemente, tais relações não deslegitimam nem
atividades que podem render mais lucros. Assim, quase todo o setor de emprego
estas últimas são mais numerosas nestes tipos de trabalho. (p. 49)
8
Atividades não estruturadas segundo o modelo capitalista (Saffioti, 1987).
23
desigualdades são acentuadas à mulher negra. Ela é duplamente discriminada, por ser
As mulheres negras ingressam mais cedo e são as que saem mais tardiamente do
negra. Embora tenham ocorrido transformações nas famílias, com a entrada da mulher
Estudos antropológicos realizados por Muraro (1997) dão conta que as primeiras
papeis sexuais não eram rígidos, sendo possível encontrar tribos nas quais as relações
entre mulheres e homens eram bastante igualitárias (Narvaz & Koller, 2006).
rivais. Tais disputas, entretanto, não tinham o objetivo de matar o macho rival,
social que ainda não separava a vida doméstica da vida pública. (Narvaz &
2004).
mais do que isso, torna-se o detentor do poder de vida e de morte sob os outros
patriarcado,
tempos heroicos, e mais ainda nos tempos clássicos, foi gradativamente retocada
Para este autor, dois aspectos são essenciais para a consolidação do patriarcado nas
burguês. Os grupos sociais que viviam antes livres passam a fixar e proteger suas
25
garantir a herança dos filhos legítimos. Para tanto, o corpo e a sexualidade das mulheres
mulheres é estabelecida. Desse modo, se na sociedade matriarcal não havia divisão das
atividades entre os sexos, sendo todo o grupo responsável pelo sustento coletivo, na
(2004), o processo de formação do patriarcado se deu por volta do ano 3.100 a.C. e
efetivando-se apenas no ano de 600 a.C. Desde então, o esquema de dominação das
mulheres pelos homens vem ocorrendo há cerca de 6.500 a 7.000 anos, impedindo a
Para Feitosa (2012), a razão da perpetuação dos valores patriarcais ocorre devido
ao fato de o patriarcado ainda constituir um sistema forte na sociedade como todo. Isto
é, embora haja mudanças sociais e econômicas nas sociedades, essa força adquirida ao
longo dos anos possibilita-lhe atravessar tempos e gerações (Therborn, 2006). Com
sobre a mulher: o poder do filho, via de regra, era uma versão suavizada daquela
Com esse poder, os homens, por muito tempo, conseguiram dominar seus filhos,
suas mulheres e seus escravos em todos os âmbitos da vida social. De acordo com
diversas sociedades, é necessário entender que o valor patriarcal que atribui valores
representadas como boas, ora como más e destrutivas, cujos poderes independiam do
durante os períodos históricos, a inclinação das mulheres para fazerem o mal, e, por
lendas judaico-cristãs, dão a dimensão dessa questão. Em uma das versões originárias
27
dos textos bíblicos mais antigos, oriundos de testemunhos orais de textos rabínicos
(Narvaz, 2002), aparece a figura de Lilith, que, segundo a lenda, foi a primeira mulher
criada por Deus. Ao ser criada da mesma forma que seu companheiro, Adão, recusou-se
a submeter-se à sua dominação. Segundo Sicuteri (1985), Lilith pedia para ser
domínio do homem. Outra versão, essa mais aceita por teólogos da filosofia cristã,
apresenta a primeira mulher, denominada Eva, que foi criada a partir da natureza de
Adão e, por desobedecer às regras impostas por Deus, influenciou seu companheiro a
reproduziram na vida social (Narvaz, 2002). Em textos bíblicos, escritos por Santo
Agostinho e São Paulo, podemos notar que, para eles, as mulheres eram consideradas
seres completos, que, por serem criadas de um dos membros de Adão, necessitavam do
mulheres deveriam aceitar a inferioridade feminina como obediência a Deus pelo mal
divina.
Eva judaica a Deus, quando ela proporcionou o pecado à humanidade. Segundo Lima
28
Não permito que a mulher ensine nem se arrogue autoridade sobre o marido,
mas permaneça em silêncio. Pois o primeiro a ser criado foi Adão, depois Eva. E
não foi Adão que se deixou iludir e sim, a mulher que enganada que incorreu em
parte dos desígnios de Deus, pois a mulher, um ser deficiente, dominada pela fraqueza
de seu caráter profano, foi criada para ser dominada pelos homens. Dessa forma, é uma
controlar o seu sexo secundário (Lima, 2002). Consonante a essa ideia, Delumenau
masculino. Nos discursos dos poetas, filósofos e médicos, havia a crença de que a
precisando do homem para obter sua completude. Sob essa perspectiva, foi atribuída à
anatômico, fisiológico e psicológico do homem (Sissa, 1993). Essa autora aponta, ainda,
que tudo que se propôs denominar de feminino, nesse período, derivava da mesma
momento, a mulher, pelas visões dos padres, e até mesmo dos manuais da Inquisição,
alguém “inimiga da amizade, um mal necessário, uma tentação natural, uma calamidade
Segundo Duby e Perrot (1991), Klapisch-Zuber (1993) e Lima (2002), essa visão
de base teológica e machista permaneceu durante todo o período medieval e foi uma das
fontes centrais da análise histórica. Com o domínio espiritual sobre todos os campos,
subordinação do prazer sexual à vocação materna. Nesse contexto, a mulher, vista como
Zuber, 1993).
século XIX, mantêm as marcas dos preconceitos medievais contra as mulheres (Lima,
legitimam a dominação das mulheres, por meio da contenção de seus corpos (Foucault,
1998). Para Foucault (1998), essa legitimação foi induzida por médicos e educadores,
morte e do mal.
30
feminina, mas mantém-se a tese da submissão feminina. Desta vez, as explicações que
empíricos (Andery, Micheletto, & Pires, 2011), em que não há espaço para centralidade
em um ser divino, mas no homem, que passa a direcionar todas as explicações (Eliade,
1986).
lembradas pela história, diversos núcleos de estudos referentes às mulheres são criados
em países da Europa, nos Estados Unidos e, baseados nesses países, também no cenário
brasileiro. De acordo com Lima (2002), a partir desse período, cada vez mais
que impunha a mulher como um ser determinado apenas por suas condições anatômicas
tomando como base a premissa de que as condições de vida das mulheres consistiam no
resultado das relações sociais determinadas por cada sociedade (Scott, 1989).
31
É nesta conjuntura, por volta da década de 1960, que surge o conceito de gênero.
surgimento de versões sobre as diferenças nas relações entre os sexos, sobre a condição
identificando como se construiu a posição social da mulher, como elas foram instruídas,
Inglaterra, discussões sobre a condição feminina e a luta pelo direito ao voto por esse
grupo social se iniciam, determinando a primeira onda feminista liderada pela bióloga
mulheres no Brasil, bem como a sua posição social, ocorreram em um terreno peculiar.
mulher no Brasil.
9
Segundo Pinto (2010), o sufrágio foi o primeiro movimento feminista desenvolvido no Brasil. Foi o
feminismo de tendência comportada. Liderado Bertha Lutz (1894-1976), o movimento não discutia a
inclusão das mulheres pelo objetivo da alteração das relações de gênero, mas a luta pelo voto
especificamente consistia para essas feministas como u m complemento para o bom andamento da
sociedade.
32
pobre
branco europeu, faz parte de um sistema mais amplo de dominação que remonta à
novo Portugal”, emergiu nas condições sociais da vida cotidiana dos colonizados
1986, p. 220), provocando não apenas a colonização de terras brasileiras, mas, além
indivíduos.
10
Para Weber, o Estado Patrimonial se dá quando o príncipe organiza seu poder político sobre áreas
extrapatrimoniais e súditos políticos (Weber, citado por Silveira, 2006). Esse modelo ainda se trata de
uma face do poder patriarcal, pois o seu arquétipo possui raízes na ordem familiar, “posto que com o
crescimento de poder do governante sobre seus súditos, abarcando uma grande parcela de regiões e
conjuntos populacionais, a administração necessitou racionalizar-se e desenvolver um aparato
administrativo capaz de cobrir essa nova dimensão territorial e demográfica” (Silveira, 2006, p. 5).
33
estas mulheres não deixavam de ser vítimas de opressão social, econômica e familiar
(Cerdeira, 2004).
serviços, o uso do seu corpo por parte do senhor lhes era uma obrigação diária.
dos desejos sexuais dos senhores, as mulheres brancas tinham a obrigação de cumprir as
atividades relativas aos seus papéis de esposas e mães dos filhos legítimos, não podendo
questionar a relação de seus maridos com as escravas, por sua condição feminina de
Saffioti (1979), “documentos históricos assinalam que pela característica rígida com que
marido” (p. 168). Existiam também as mulheres brancas das classes mais pobres. Para
elas, a luta pela sobrevivência se fazia constante, afinal, como mulheres livres,
analfabetas e também invisíveis aos olhos das autoridades políticas, muitas delas sem a
eventos sociais para mulheres de classes mais abastardas já começam a ser discutidos. O
considerada inferioridade mental da mulher. Sobre este aspecto, o filósofo Tito Lívio,
citado por Saffioti (1979), argumenta que a mulher não estava condenada à ignorância,
haja vista que a desigualdade das capacidades intelectuais entre os sexos se deve a
essa educação feminina não escapou dos princípios da Igreja Católica e do liberalismo.
adaptação das minorias para os novos tempos. Assim, marca a ruptura da instrução
era, desde os anos iniciais, a formadora da vida do indivíduo do sexo masculino, ela
deveria ser educada, a fim de desenvolver com eficácia o processo educacional das
educação, certamente isso se deve ao motivo do catolicismo ter objetivos aliados aos
moralidade cristã, entre outros, incutidos pela Igreja Católica à mulher. Nessa
de uma sociedade mais evoluída. Essa preocupação com a instrução das mulheres
constituía parte do projeto civilizatório almejado para o país, nas primeiras décadas da
civilizados, similares aos modelos europeus. Nesse período, em que a mão de obra da
preocupação com a organização das famílias e de uma classe dirigente sólida, pois essas
deveriam ser “respeitosa as leis, aos costumes, as regras, e as convenções” (p. 362). Do
11
Neste período de ascensão capitalista no Brasil, todos os indivíduos que não correspondessem aos
ideais do progresso, dentre eles, “mulheres, crianças, menores, vadios, vagabundos e capoeiras” são
tomados nas linhas do controle e enquadrados em ações educacionais e corretivas (Abreu & Martinez,
citado por Rizzini, 1997).
36
estabelecer normas sociais para mulheres dos segmentos mais empobrecidos. Partindo
da premissa que essas mulheres tinham natural propensão à transgressão12 , toda ação
palavras. Esse controle era realizado de forma violenta, pois as classes dominantes
comportamentos das mulheres pobres sofrem impactos ainda mais severos. Segundo
Cohn (2000), esse contexto econômico, caracterizado por uma reorganização no cenário
mulheres.
12
Lombroso e Ferrrero (2004) estudaram diversas características das mulheres que se envolviam no
cometimento de delitos, tais como: assimetria craniana e facial, mandíbula acentuada, estrabismo, dentes
irregulares, clitóris, pequenos e grandes lábios vaginais grandes, além da sexualidade exacerbada e dotada
de perversão, caracterizadas normalmente pela prática da masturbação e do lesbianismo. A quantidade
das características presentes em cada mulher determinava o tipo da anomalia (Lombroso & Ferrero,
1980). É válido ressaltar que, a depender do estigma, como é nos casos de lesbianismo, isso bastava para
a mulher ser considerada depravada ou perigosa.
13
Esse modelo, padronizado internacionalmente, tem orientado a economia dos Estados para a realização
de diversas reformas e adequações às regras internacionais , as quais correspondem à globalização do
mercado, a concretização do Estado mínimo, a desestatização da economia, o crescimento da
competitividade e das privatizações. Sobre es sa questão, Cohn (2000) alerta que o enfrentamento aos
problemas sociais, no modelo neoliberal dentro do modo de produção capitalista, tem sido feito por meio
de políticas, que, por sua vez, se dão de forma fragmentada e controvertida, as quais, na maioria das
vezes, ao invés de promover a inclusão social dos cidadãos, acabam legitimando a subalternização das
classes mais pobres.
37
inconsistência social da crise capitalista, têm afetado de maneira severa a vida das
mulheres pobres, destacando-se que a pobreza não tem apenas raça e idade, mas
desemprego (Prá, 2001). Segundo Prá (2001), “dentre o mais de um bilhão de pessoas
Nesse estado das coisas, a luta pela sobrevivência tem direcionado as mulheres a
chefiadas por mulheres que assumem novos ramos de atividades e desempenham novos
papéis na sociedade.
masculinizado, também tem sido alterado. Ao longo dos anos, cada vez mais mulheres,
quantidade de crimes seja inferior ao cometido pelos homens, é necessário ressaltar que
sistema penal (Andrade, 2012), fazendo-nos entender que a criminalidade, apesar de ser
14
Esse termo “feminização da pobreza” surge nos anos 1970, mas, conforme afirma Lopes e Azevedo
(2006), ganha força durante a IV Conferência Mundial das Mulheres, em Beijing (China), no ano de
1995, para denunciar o aumento progressivo da pobreza entre as mulheres e dar visibilidade ao fato que
elas estão cada vez mais pobres que os homens.
38
feminino são raros e, quando existem, aparecem como capítulo secundário em obras que
privilegiam a maior incidência masculina. Para Assis e Constantino (2001), são motivos
Para empreender uma investigação sobre essa temática, Espinoza (2004) nos
sugere considerar a categoria social controle como ponto de partida. Segundo esse
autor, tomando como base as raízes sociais em que os papéis femininos foram
questão, pois se trata de uma categoria que se efetiva antes do ingresso da mulher no
sistema penal, que permanece durante seu estágio e, ainda, persiste com a sua saída
controle e disciplinamento das mulheres de classes populares (Del Priore, 2008). Nesse
cometimento de transgressões por essas jovens e/ou pelas mulheres adultas (Del Priore,
2008).
e para as ações dos policiais, a fim de ensinar quais os reais valores femininos. Em
que não se envolvessem com práticas criminosas. A cargo desta educação, para
Soares e Ilgenfritz (2002) revelam essa pretensão por parte das autoridades:
reclusão feminina no Brasil é criada, no ano de 1942, no Rio de Janeiro (então Distrito
cujo teor era reconduzir as mulheres ao seu destino doméstico e reprimir sua
essa instituição assumiu mais que a função automática de isolar, de forma que a presa
baseados nos padrões sexistas. Segundo essa autora, isso explica o ponto limitador da
ressocializar, estabelecendo apenas uma opção para o exercício do papel feminino: mãe,
esposa e dona do lar. Sobre esse aspecto, Lemgruber (1999) argumenta que essa questão
pode ser mais bem entendida a partir das distintas representações sociais do
papel que lhes foi destinado. E deve suportar dupla repressão: a) a privação de
específico que, distinto da realidade masculina, tem como finalidade mediadora, além
41
consideradas infratoras e que chegam ao sistema punitivo como mães e esposas falhas,
1955, destaca-se a popularmente conhecida como Casa das Arrependidas (atual Instituto
Bom Pastor), instituição administrada por freiras, que recebia mulheres jovens com
jovens eram obrigadas a abandonar suas casas e eram internadas, utilizando esse tempo
2008).
Assim, a situação das mulheres envolvidas com delitos e/ou presas não passa de
uma fotografia da mesma desigualdade retratada no espaço livre, por isso o estigma de
2004). Sobre essa perspectiva, Soihet (2006) ressalta que a conduta das mulheres das
classes populares tem sido alvo do sistema repressivo há bastante tempo. Desde a
Exemplo disto são as distintas condições relativas aos padrões de socialização e hábitos
condições se reproduzem em diversos espaços da vida social, até mesmo nos espaços de
De acordo com Fachinetto (2008), inúmeros estudos sobre jovens das classes
vida social e que isso não ocorre de forma diferente no campo das medidas
submissão da mulher que necessita da proteção deste homem viril (Fachinetto, 2008)
(Safiotti, 2004)16 .
15
Em pesquisa sobre as vulnerabilidades masculinas, Silva (2013) menciona que os garotos no processo
de socialização são destinados a desenvolver habilidades assertivas “naturais ” do homem. Dentre essas,
são primordiais o alheamento aos sentimentos, a intolerância ao diferente, e a consequente incorporação
de estereótipos tradicionais , o que ocasiona a desvalorização das mulheres e a reprodução histórica de
opressão ao sexo feminino.
16
Ressaltamos que este estudo não toma como base o conceito de “gênero” como exclusivo, para tratar a
dominação em relação às mulheres ao longo dos anos. Prefere-se utilizar a categoria das relações de
gênero ou divisão sexual do trabalho sem uma ruptura com a ideologia do patriarcado, posto que, ao
adotar a ideologia do patriarcado, ao contrário da utilização do conceito de gênero, evidencia -se a
estrutura de desigualdades sociais entre os sexos e, deixa-se claro o vetor exploração-dominação discutido
por Safiotti (2004).
43
infracional
políticas, reforçou a exploração das mulheres, desde sua infância, e provocou efeitos
marcantes nos papéis exercidos pelas mulheres até os dias atuais (Holanda, 2009).
século XXI, a única razão para opressão das mulheres – em virtude da reorganização
dessa estrutura ainda se expressam no cotidiano das jovens meninas (Narvaz & Koller,
2006).
função dos chefes de família sobre as mulheres, não foi suficiente para sanar as formas
de exploração contra elas (Saffioti, 1979). Ao contrário, desde esse período, a ascensão
exploração que têm na feminização da pobreza sua pior face (Narvaz & Koller, 2006).
que coube a esse público os papéis sociais mais destrutivos na sociedade. No início do
17
Para Saffioti (1979), a partir do século XIX, há uma desorganização da família patriarcal. Mas, como
esse fenômeno não ocorreu uniformemente em todas as regiões do país, hoje, ainda podemos encontrar
famílias que mantêm a estrutura de bases patriarcais, submetendo mulheres desde a infância a situações
de exploração.
45
(Abreu, 2008).
É baseado nessa premissa que, nos primeiros vinte anos da República no Brasil,
momento, juristas criam uma legislação especial para menores de idade, para correção
dos desvios do comportamento das crianças, com base numa legislação específica.
tratamento, que marcará o final do século XIX e o século XX, não ultrapassará os
contrário, “valores como o casamento, a educação dos filhos, o cuidado com a família e
18
A categoria menor relaciona-se, neste período, independente do sexo, a meninas e meninos que estavam
em situação de abandono e/ou de delinquência.
19
Ressaltamos que atualmente este termo refere-se apenas aos maiores de idade, no caso de crianças e
adolescentes utiliza-se o termo de exploração sexual.
46
a honra feminina serão defendidos na prática pedagógica a fim de delimitar seu campo
2008, p. 305).
institucionalização tem sido uma saída bastante disseminada. Para entendermos como se
Ressaltamos ainda que os períodos a seguir não podem ser considerados sucessivos,
pesquisa realizada.
20
Para maior aprofundamento, consultar Farao (1958), Freyre (1986) e Holanda (2009).
21
Os interesses de Portugal e da Igreja Católica se encontravam no mesmo patamar. Segundo Freyre
(1986), era de interesse das duas partes o povoamento para exploração das riquezas existentes e a
aculturação dos costumes europeus para facilitar a colonização.
47
Não à toa, fora com a vinda dos padres jesuítas à colônia portuguesa que as
crianças foram eleitas como ponto de partida na catequização dos indígenas. Para os
jesuítas, as crianças, diferentemente dos índios adultos, eram consideradas seres mais
o adestramento colonial por serem denominados como “bons línguas”, “bons espelhos”
fossem conferidos (Arantes, 2009, p. 166). Segundo Marcílio (2006), foi com o desígnio
de educar essas crianças, afastando-as dos considerados maus costumes de seus pais,
Casas dos Muchachos (Alves, 2001). Igualmente aos pequenos índios, o trabalho volta-
se à assistência pela religião, a fim de compor “um grande „exército de Jesus‟ e sair
XVIII, não havia preocupação com o futuro ou até mesmo a sobrevivência dessas
crianças.
A visibilidade desse fenômeno – o abandono de crianças nas ruas, nas portas das
igrejas, nos conventos, nas instituições de caridade, nas portas de residências dos
O crescimento de crianças descartadas como objeto, que acabavam por ter como
única sorte a moradia e a esmola nas ruas, muitas das vezes, provocavam a morte por
fome e/ou por exposição às situações de insalubridade dos grandes centros urbanos
(Marcílio, 2006). Entregues a essa sorte, as crianças, na maioria das vezes, eram
devoradas por cães, porcos, dentre outros animais (Orlandi, 1985). Com o abuso dessa
situação, no ano de 1726, o Rei chega a propor duas medidas para a solução: a
22
Conforme Trindade (1999, p. 3), “a lógica do abandono passa pelo rigor do termo e sua
contextualização. No Brasil, desde a colônia até a crise do império, no final do século XIX, a criança
abandonada era tratada pelos termos „expostos‟ e „enjeitados‟. Esses termos correspondiam ao tipo de
abandono mais comum para o período, qual seja, o de recém-nascidos, e se consubstanciavam nas
práticas de enjeitar as crianças expondo-as em locais onde seriam, muito provavelmente, recolhidas. Os
locais mais comuns eram as igrejas e conventos e, mais tarde, as rodas dos expostos”.
23
Os filhos de relações extraconjugais não eram aceitos pela Igreja Católica, pois maculava a imagem da
família cristã.
49
2006).
Era convicção do Rei de Portugal que a solução para infância moradora de rua se
instituição (Alves, 2001). Foi a partir dessas determinações que, no Brasil, à luz das
caráter caritativo, a motivação dessas instituições era a assistência pelo amor a Deus
encaminhou a esse acaso. Desse destino, as crianças que eram rejeitadas nas Rodas
Giratórias eram alimentadas por amas de leite alugadas e também entregues às famílias
mediante pensões25 . Na instituição, a criança ficava na condição de órfã até sete anos
24
Instituição de caráter religioso que, segundo o governo da Corte, poderia arcar com a assistência dessas
crianças com o apoio dos recursos provenientes de esmolas e doações d os senhores ricos da sociedade
(Alves, 2001). Para Costa (1993), assim se demarcou o início da assistência à infância, a partir,
especificamente, da omissão do Estado com relação aos seus deveres e obrigações para com os grupos
mais vulneráveis do nosso povo.
25
A assistência à infância seguia as determinações de Portugal, aplicadas por meio da burocracia, dos
representantes da Corte e da Igreja Católica. Formalmente, era de responsabilidade das câmaras
municipais encontrar meios de proteger essas crianças sem famílias, sendo obrigadas a lhes destinar um
sexto de seus recursos. Como essa função era exercida de forma negligenciada, limitava -se a pagar
quantias irrisórias às amas de leite para amamentar e criar essas crianças ou as destinava aos serviços de
proteção, sobretudo, às Santas Casas de Misericórdia (Marcílio, 2006).
50
lhes seria determinado pelo juiz (Rizzini, 2009). Na maioria das vezes, essas crianças
primeiro momento, absorver os frutos de tais uniões. [...] Com o passar do tempo
essas instituições passaram a ser utilizadas também por outros motivos [...]. A
Casa dos expostos, Depósito dos Expostos e Casa da Roda eram designações
37-38)
que se refere à distinção social entre os sexos, deve-se destacar o número superior de
crianças do sexo feminino entregues ao abandono nas instituições (Trindade, 1999). Isso
implica dizer que, especialmente a partir de meados século XIX, já no período Imperial,
recolhimento, para que seja preparada nas artes domésticas – defendida pelo poder dos
26
De acordo com o Alvará de 1775, assim que as crianças completassem sete anos, o Hospital e/ou a
Casa da Misericórdia ficaria desobrigado da criação, podendo os juízes (de órfãos), a partir daí, distribuí-
los pelas casas que quisessem.
27
Nesse período, ascensão do capitalismo industrial, os meninos, órfãos, pobres, vagabundos, mendigos
de rua, eram encaminhados às escolas de formação industrial ou agrícola, ou a instituições militares –
com vistas à preparação de braços de exploração para o trabalho (Faleiros, citado por Rizzini & Pilotti,
2009).
51
capitalismo, nos finais do século XIX, a infância, especialmente a pobre, ícone central
nas discussões dos novos rumos para formação do Estado Nacional28 , será alvo de
criados.
uma conveniente educação moral para este público (Rizzini & Pilotti, 2009). Exemplos
de 1740, a partir de doações de 50.000 cruzados feita pelo Capitão Francisco dos
28
Em 11 de setembro de 1896, o Senador Lopes Trovão proferia: “Temos uma pátria a reconstruir, uma
nação a firmar, um povo a fazer... e para empreender essa tarefa, que elemento mais dúctil e mo ldável a
trabalhar do que a infância?!” (Rizzini, 2009).
52
estabelecimento anexo ao hospital Geral da Santa Casa até o ano de 1842. Por
movimento que será reconhecido mais tarde como assistência filantrópica, muitas
instituições vão sofrer insistentes denúncias, em que pese à falta de organização, ordem
acordo com cor e filiação (legítima e ilegítima) demarcou o papel e a posição que
deveria ser exercido pela criança na sociedade. Meninas negras e brancas geralmente
única função do sexo feminino. Todavia, ao passo que crianças e adolescentes de cor
branca eram direcionadas para o casamento, as negras tendiam a ser encaminhadas para
famílias se tornara tema essencial da formação dos habitantes do país (Abreu &
reordenações para construção de uma nação aos moldes internacionais (Rizzini, 1993).
e adaptados aos ensejos do Estado. Esse momento foi caracterizado por intensos debates
população, em especial a mais pobre. Isso porque, considerada a pobreza o fio condutor
diversas instituições formativas para a solução desse problema. Então, foram criadas
escolas elementares, secundárias, superiores, bem como asilos e internatos com cunho
educacional baseados nos ideais da construção de uma nação forte (Schueler, 1999).
estariam em torno dela deveriam ser vistos como uma questão pública (Viegas, 2007).
29
Ocasionadas pela grande quantidade de homens, mulheres, crianças e adolescentes sem condições de
sobrevivência, após a extinção do sistema escravagista no ano de 1988, e pela entrada do sistema
econômico capitalista (Abreu & Martinez, 1997; Rizzini, 2009).
54
país em busca de civilização. Dessa forma, a assistência pública para a solução dos
objetivo com intuitos organizados, efetivos e bem definidos (Schueler, 1999). Para o
governo brasileiro, a causa da infância deveria ser uma questão de ordem pública e
administrativa, mas isso não incidiria na substituição das obras de caridade já existentes.
dirigiam a essa população, por considerarem esses seres indivíduos dóceis e de fácil
moldagem. Como a esses seres pesava o futuro da nação, cabia aos médicos higienistas
criar seus filhos (Rizzini, 1997). Na tentativa de reverter esse quadro, defendia-se a
necessidade de orientar e educar as mães com relação aos cuidados aos membros
infantis, para garantir, no futuro, adultos ordeiros, saudáveis e fortes para o trabalho
primeiros anos.
atendimentos com carência e sem orientação alguma no trato com esse público. Para
reverter essa situação, os médicos defendiam que os fenômenos em torno das crianças e
infância. Evidentemente, aos olhos dos grupos dominantes, a infância pertencente aos
extratos mais pobres constituía seres com potenciais maus-hábitos, oriundos da pobreza.
descritas com detalhamento por Galton para o melhoramento das raças embasavam e
ganhavam destaque nos países que buscavam modificar a formação social das raças
consideradas inferiores, e não foi diferente no Brasil (Silva, 1999). De acordo com Silva
(1999), Galton explicava que se, desde os anos iniciais, a criança fosse educada de
ou estavam longe do controle das famílias ameaçava a ordem do país, e, por isso,
ideais médicos que objetivavam a purificação da raça brasileira focaram nas mulheres e
nas crianças o controle das ações e dos comportamentos da sociedade. Não à toa, a
De acordo com César (2009), apoiados pelos valores cristãos da Igreja Católica,
desde o início do século XIX, a higienização sexual dos mais jovens já era preocupação
instituições desse período, observamos que a preocupação com esse público não passa
do que César (2009) denominou de educação para o exercício do “sexo bem educado”.
58
Sob os auspícios das teorias científicas tão defendidas nesta passagem do século XIX
para o século XX, proteger e salvar a infância feminina era promover práticas que
promissor do país não recai apenas à infância, como categoria geral, mas sim às
mulheres, desde meninas, por serem elas as geradoras e as primeiras agentes protetoras
do Norte retrata bem a concepção ressaltada 30 . Nessa instituição, assim como outras
de bordados e para o casamento. Para que não houvesse nenhum tipo de desordem à
ações das meninas. Para esses autores, a preocupação com as meninas, diferente dos
meninos, era maior, por elas serem alvo de pessoas do ramo da prostituição.
mulheres e homens esperavam as meninas saírem das instituições para assim acolherem
como discurso de proteção da vida das meninas, em alguns casos, as freiras e os padres
30
Instituição que funcionou na Igreja da Misericórdia da Paraíba do Norte, no atual estado da Paraíba na
região nordeste do país.
59
conseqüentemente, da alma. Com esse intuito, elas eram confinadas aos limites
das Casas, sob as vistas de “irmãs superiores” e “irmãs mestras”, para evitar o
nessa instituição tinha finalidade central de evitar ociosidade. Para tanto, ao trabalhar
fechassem portas com ruídos, pois era tido como sinal de má educação; que as
com as meninas; que estas não fizessem sozinhas aquilo que não se animariam a
31
De acordo com Madeira (2008), as Casas de Caridade do Padre Ibiapina foram criadas no final do
século XIX , nos estados da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
60
A formação da menina não ultrapassava os limites que a destinava para ser boa
mãe e esposa. Para Ribeiro Neto (2009), outro exemplo que evidencia essa questão
domésticos próprios de uma boa mãe de família. Tanto nos estudos como nos
trabalhos manuaes as asyladas estão sempre sob a vigilância de uma das Irmãs
favor dos bons modos e o controle sobre a sexualidade refletia a moral cristã católica e
com a higiene (Madeira, 2008). Segundo Marcílio (2006), essas instituições, por
exemplo, as Santas Casas da Misericórdia e as Rodas dos Expostos, que persistiram até
fundava o trabalho dessas instituições era o desejo de tirar as órfãs, desvalidas, expostas
trabalho.
32
O Educandário Nossa Senhora da Paraíba do Sul foi fundado no dia 4 de abril de 1883, com verba
testamentária de Dona Mariana Claudina Pereira de Carvalho, Condessa do Rio Novo. Ela determinou
que se fundasse uma casa de caridade, que deveria ser dirigida pela Irmandade Nossa Senhora da Piedade.
A Paraíba do Sul era a denominação do atual município do Rio de Janeiro (Ribeiro Neto, 2009).
33
Citação referente à Resolução de 28 de Junho de 1895. Relatório apresentado ao Bispo de Niterói pelo
provedor Capitão José Fernandes Garrido (1895, p. 86, citado por Ribeiro Neto, 2009).
61
(Madeira, 2008).
pelas autoridades do país, essas instituições assistiam as meninas como meio de evitar o
desregramento sexual. Para Ribeiro Neto (2009), com o total apoio da Igreja, as
assistencial
massas nos centros urbanos – pôs em evidência, nos discursos das autoridades do país, o
34
Referem-se às mulheres que tiveram relações sexuais extraconjugais, meninas que perderam a
virgindade ou jovens abusadas sexualmente. É válido ressaltar que nos casos de abuso sexual, a menina
negra ou branca pobre geralmente era culpabilizada, pois médicos e juristas da época consideravam que o
ato tinha sido motivado pela menina, dotada de instintos perversos próprios das mulheres sem educação
(Abreu, 2008).
62
recolhimento específico para esse público (Santos, 2004). Na tônica desses discursos
norteava a criação dessas instituições era de que para correção dos meninos viciosos
nomeou o juiz de direito privativo para causas dos menores, bem como,
1998, p. 22)
126)
(Rizzini, 1993). Em seu artigo 62, o decreto explicita que, no objetivo de corrigir o
menor, haverá abrigos para recolhimentos provisórios de menores, até que esses tenham
aparelhos jurídicos e legislativos cada vez mais especializados. Exemplo disso pode ser
órfãos e assim por diante. No caso do menor delinquente, aquele que for
Esse código tinha como característica um enfoque fortemente corretivo, voltado para
64
internação dos considerados menores, retirando-os das situações de rua, e muitos dos
(Rizzini, 2009).
internos. Dessa forma, fatores como idade, origem da família, em especial a distinção
categoria se referia aquelas jovens que possuíam “boa índole” – meninas adequadas
vida” e/ou “as malditas prostitutas” que deveriam ser incansavelmente corrigidas (p.
292).
mantivessem longe dos “desvios sexuais”. Para Abreu (2008), essa preocupação se
masculinos e transgredirem as regras da honra feminina, por isso, elas deveriam ser
considerada a causa dos males que infringem o universo infantil, será ainda mais
66
elencada como o cerne do problema social das crianças. A despeito dessa questão, não
havia dúvidas de que a pobreza estava no centro dos problemas das menores, e que a
foco para suprimir os males causados pelas situações de pobreza generalizada pela
adolescentes envolvidos com infrações começam a ser interpretados nessa nova ótica
(Marcílio, 2006). Mais que nos períodos históricos anteriores, a estratégia no governo
mesmo nível repressivo e moralista das instituições masculinas, não tendo tanta
como das meninas, para as exigências do mercado de trabalho (Moreno & Saraiva,
2006).
que até então vinha sendo tratada por meio dos Juízos de Menores e pela atuação
Federal e, logo após, no ano de 1944, nas demais localidades do território nacional
(Rizzini, 2009).
(SAM), cuja finalidade era prestar assistência e amparo social, em todo território
67
2011).
encaminhamento das meninas, pelo juiz, de acordo com a administração dos asilos, para
O termo mediante a soldada era o processo pelo qual qualquer pessoa, tendo a
(p. 28)
combinado com o juiz, nem com a administração das instituições. Denúncias sobre a
35
Soldada é o termo que se refere ao ato de soldar ou moldar (Rizzini, 1993).
68
Eduardo Salamonde, para o jornal O Paiz. Esse autor denuncia que as jovens
soldada miserável e para se libertarem dessa nova escravatura, atiram-se nos braços do
que, antes mesmo das referidas fugas, mais comum era que as jovens fossem devolvidas
criação, indisciplina e até mesmo sofrer das faculdades mentais, havendo a necessidade
devolvessem.
tornava ainda mais subalterna, pois, conforme afirma Moreno e Saraiva (2006), o
confinamento forçado e desumano, muitas vezes com denúncias de abusos sexuais por
Segundo Rizzini (2009), no decorrer dos anos, a má fama conseguida remeteu suas
estruturas a mais uma ameaça à criança pobre do que a proteção. A partir disso, todos
clamavam pela extinção do SAM, denominada, na maioria das vezes, como Escola do
pela assembleia geral das Nações Unidas, no ano de 1959, causa impactos nas
esse momento para o Brasil fosse o do golpe militar de 1964 (Vogel, 2009),
Nesse contexto, por volta de 1970, como dissemos, com o objetivo de substituir
o extinto SAM, cria-se a FUNABEM. Esse novo órgão pretendia ser o oposto do SAM
e do regime antigo. Com base na Lei n. 4.513, essa entidade, autônoma tanto na esfera
surgiu nessa conjuntura cheia de “boas intenções”, quanto aos eixos norteadores do
prevaleceram heranças dos atendimentos deixados pelo SAM, reforçados pelo controle
36
Contrária às proposições jurídicas existentes até então, a Declaração dos Direitos da Criança passa a
considerar as crianças como sujeitos de direitos, atribuindo ao Estado e à sociedade o deve r de garantir
esses direitos (Comitê Social Humanitário e Cultural das Nações Unidas, 1959).
70
tentativa do novo modelo de política social, e pôs, no lugar desta, uma legislação
preocupada unicamente com assuntos que inibam a conduta antissocial dos menores
(Rizzini, 1993).
manutenção dos poderes normativos como o do juiz; para os juristas paulistas, outros
focos de análise deveriam ser empreendidos com relação aos menores. Para estes, o
problema do menor deveria ser encarado como produto de uma situação de abandono e
preocupações diante das reais necessidades para garantias de direitos das crianças e
Menores foi regulamentado. O novo código, para atender ao disposto na Declaração dos
inviabilizavam a efetiva garantia a esse público. No campo teórico, seu objetivo era
desinstitucionalização e da socioeducação
Na chegada dos anos 1980, o cenário nacional começa a dar sinais de mudanças
2009, p. 307). Nesse momento, a sociedade civil renegava-se viver aos auspícios de um
regime civil-militar e lutava-se por novas políticas internas e por novos ideais. De
acordo com Viegas (2007), nessa fase, foram destaques na luta política pelos direitos
mais pobres.
trabalhadores com idade menor de 14 anos (Fundo das Nações Unidas para a Infância,
país eram os principais argumentos que levaram esses membros da sociedade civil a
59)37
sociedade civil e nos avanços alcançados no tocante aos direitos humanos, tanto
37
Especificamente no Art. 277 da Constituição Federal de 1988: “É dever da família, da sociedade e do
Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. (Constituição Federal, 1988).
73
socioeducativa, o ECA demarca que o princípio dessa ação deve estar fundamentado no
processo educativo, a fim de reordenar os projetos de vida dos jovens que se inseriram
adolescente com o ato infracional que ele comete. Todas as condições, tais como, a
74
seus valores e o preparando para o convívio social e para a autonomia, de modo que sua
participação na vida social possa ter continuidade, sem que este venha a reincidir nas
atendimento.
no estado do Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro –, violam direitos básicos das
75
investigação foram profissionais que atuaram e/ou atuam nas unidades femininas de
privação de liberdade. Os critérios de inclusão para a amostra neste trabalho foram: ter
referidas instituições.
nessa identificação.
argumentos (Gattaz, 1996). Neste processo, contamos ainda com os contatos fornecidos
profissionais, mas apenas oito deles aceitaram participar da pesquisa, dentre eles,
que atuaram desde a criação da primeira unidade feminina – Instituto Padre João Maria
e/ou ainda estão em exercício no Centro Educacional Padre João Maria – CEDUC
(instituição atual). Os quatro profissionais que não aceitaram participar alegaram que a
pesquisa.
Tabela 1
Dados sobre os participantes da pesquisa
Função Instituição Quantidade de entrevistados
Total de entrevistados 8
História Oral Temática (Meihy, 1998). Nessas entrevistas, aspectos de três blocos de
atividades diárias das instituições. Por esse caráter histórico, o estudo foi realizado por
Trazemos algumas razões que nos fizeram optar por este desenho metodológico.
delegando voz àqueles que estariam marginalizados pela história oficial. Assim, o
comunidades que marcam nossa experiência cultural (Gattaz, 1996). Dessa forma,
no RN.
humanidade, a oralidade sempre esteve presente na historiografia oficial, ainda que sua
recorreram aos testemunhos orais são inúmeros, afinal, quais alternativas restariam a
escritos, em contextos em que a palavra escrita tinha menor importância que a oral? No
entanto, faz-se necessário destacar a diferença entre aqueles que se utilizaram dos
relatos orais em momentos em que a história oficial inexistia, daqueles que o fazem por
disseminação dessa técnica no mundo todo, vejamos como este processo ocorreu.
seres humanos notáveis na vida política e econômica, mas, de forma alguma, entrariam
sentimento de busca pelo passado nacional que não era apenas branco, anglo-saxão e
investigação:
No entanto, esses estudos orais pioneiros, cuja riqueza foi imensa, só conseguiram ser
tecnológicos, é que surgiu o que chamamos de método da História Oral. Isso ocorreu
pesquisadores que Alan Nevins foi o primeiro a registrar suas primeiras entrevistas, em
1948, e, a partir daí, começou a difundir a técnica da pesquisa histórica com base nas
notáveis. Por esta razão, ironicamente, nas primeiras décadas de existência, a história
sobre a função política da técnica, e sobre de quem eram as histórias e para quem eram
minorias, assumindo uma função política e ultrapassando assim a elitização com que foi
No Brasil, a ordem desses fatos foi semelhante. Meihy (1998) destaca que, na
concepção elitista e alienada das ciências frente à cultura popular no país coibiram
No entanto, “desde o momento da campanha pela anistia no fim dos anos 1970 e
buscar por informações e características que marcavam nossa cultura. Para esses
82
com que são realizadas as pesquisas: a história de vida e a história oral temática. Neste
Segundo Meihy (1998), a história oral temática é a que mais se aproxima das
sempre equivale ao uso da documentação oral da mesma forma das fontes escritas. Por
uma versão sobre o fato investigado. É necessário que o historiador oral temático
apresente alguma versão. Para Meihy (1998), como a verdade é um elemento externo,
opiniões e/ou esclarecer as versões narradas. Assim, esse método tem um caráter bem
83
apenas na medida em que revelam aspectos úteis à informação temática central” (p. 51).
subjetivas.
em áudio. Esse primeiro passo nos deu as informações e impressões iniciais sobre o
estado provisório, pois transcrevemos e enviamos cada entrevista aos profissionais para
modificam. [...] Sob esta perspectiva, o documento original não é a fita, mas o
objetivas e claras como forma de evitar respostas confusas (Anexo 2). Ao entrevistar
cada profissional, priorizamos o respeito por cada informação, considerando que todas
O historiador tem que ser um bom ouvinte e um ajudante ativo; deve demonstrar
perguntas simples e claras, evitando uma formulação tenda a obter uma reposta
educacionais.
passo, logo após a realização das entrevistas. Esse procedimento garantiu a formação do
passagem rigorosa não só das palavras para o papel, mas para a construção do
documento final, em que foi necessário ir além, conforme explicita Gattaz (1996):
etapa na leitura do texto final, que chamo de textualização, por ser ao fim e ao
narrativa e coerente. Segundo Gattaz (1996), esse procedimento exige que haja uma
organização dos depoimentos com uma combinação de fatos que aparecem na entrevista
textualização deve ser realizada quando for necessário para deixar o texto claro, sem
após, o texto deve ser reescrito para serem realizadas as últimas adaptações e a
final que se baseou no índice de temáticas que emergiram nas entrevistas e nos
documentos analisados.
86
Diante do que expusemos até o momento, ficamos com a seguinte questão: como
imenso avanço, pelo menos do ponto de vista legal, na forma de pensar sobre crianças e
distinção de cor, raça, gênero e classe social, o reconhecimento deles como sujeitos de
direitos.
autoras de atos infracionais, esse instrumento legal aponta para o potencial do princípio
de liberdade quando houver medida mais adequada ao ato cometido. Com essa
configuração, o ECA abandona as velhas práticas e aponta para a criação de uma rede
de cuidados que inclui todas as crianças e adolescentes sem distinção, sem privilégios,
sem discriminação, sendo a família, o Estado e a sociedade responsáveis por eles (Lei n.
8.069/1990).
normatizações dessa área, fazendo com que as FEBEMs deixassem de existir, e Centros
87
Nessa conjuntura, o Instituto Padre João Maria, unidade existente desde a década
Padre João Maria (CEDUC) e demais instituições no campo da defesa dos direitos das
tem apresentado outra face. Pesquisas realizadas no âmbito da UFRN 38 , bem como,
38
Exemplos são as produções acadêmicas de Evangelista (2011), autor da obra Barreiras da
sobrevivência: angústias e dilemas de jovens autores de atos infracionais pós-institucionalização, e
Maria Dilma Siqueira, em A condição sub-humana do infrator menor, de 1979, dentre outras produções
acadêmicas.
88
prática, elas continuaram invisíveis ao estado e alvo das posturas patriarcais da religião
e dos governantes.
Natal. Ressaltamos que focamos no atendimento realizado na cidade de Natal, por esta
ter sido sede da maioria das unidades de atendimento a este público. Posteriormente,
sido palco impulsionador das práticas de recolhimento de crianças no estado. Com base
das adolescentes nas unidades femininas. A partir desses dados, analisamos como essas
39
Nesse período, as situações consideradas de risco social às crianças e adolescentes eram notadamente
aquelas que se envolviam com exploração sexual e o uso de drogas.
89
Diretor - Centro Educacional Padre João Maria). A relação direta com as instituições
Instituto Padre João Maria, Granja Santana e Centro Educacional Padre João Maria
(CEDUC).
vinham se estruturando desde o século XIX no cenário nacional (Souza, 1976). Esses
(Machado, citado por Ferreira & Dantas, 2001), traduziu-se, no caso de Natal, em
Calcula-se que, em 1904, forçados pelo ciclo de grandes estiagens que atingiu todo o
Nordeste, chegaram a Natal mais de 15 mil retirantes em busca de trabalhos nas obras e
reformas do espaço urbano (Lima, 2001). De acordo com Ferreira e Dantas (2001),
13.735 em 1890, 22. 722 em 1920, e mais de 30 mil, dez anos depois.
que viria constituir, ao longo dos anos, a pobreza e a miséria em Natal” (p. 90). Além
disso, muitos dos que chegaram à capital não foram abarcados pelo trabalho nas obras
efeitos desastrosos do flagelo pelos meios infalíveis que já possuímos, ou teremos que
2001). Como podemos observar, essa lógica estava alinhada ao projeto civilizatório do
91
oposto à cidade colonial. No entanto, esse espaço não seria destinado a todos. Com a
construção desses novos bairros, “com ruas largas em xadrez, facilitando a penetração
dos ventos dominantes, com exigências de recuos para insolação e ventilação das
habitações” (Ferreira & Dantas, 2001, p. 5), o governo expulsou inúmeras famílias que
nas ruas. Com a criação do Asilo Padre João Maria, o Estado pretendia dar destino
40
O nome do asilo faz referência ao Padre João Maria, vigário da Paróquia Nossa Senhora da
Apresentação (antiga Catedral de Natal) por 24 anos, conhecido por seu trabalho diretamente
voltado às camadas pobres da população.
41
A congregação religiosa “Filhas de Sant‟ana” chegou ao Brasil no final do século XIX e dedicava-se à
assistência de pessoas pobres doentes. Em Natal, responsabilizaram-se por abrigos e instituições voltadas
para crianças e adolescentes do sexo feminino e mulheres adultas.
92
àqueles que, vivendo nas ruas, afastavam Natal dos novos padrões higiênicos, morais e
sociais necessários para o abandono dos costumes coloniais que remetiam ao atraso de
chamar Orfanato Padre João Maria. Segundo Oliveira e Araújo (1979), a grande procura
pela internação de crianças do sexo feminino, por parte dos responsáveis, e a situação de
outras abandonadas nas ruas obrigou o governo do RN a fazer uma reformulação no que
diz respeito às pessoas atendidas. Nessa ocasião, extinguiu-se o setor dos idosos,
feminino. Nesse período, “o orfanato tinha como diretora, a supervisora Senhora Tecla
meninas pobres e desamparadas” (Oliveira & Araújo, 1979, p. 10). Nesse período de
para o agravamento das sequelas da questão social na cidade. Com o fim da Guerra, as
menores)”, dentre outros problemas (Ferrari, 1968, p. 52). Essa situação obrigou a
93
assistência aos flagelados pelas secas foi a primeiras delas. Oliveira (2005) ressalta a
RN (2005):
Dentro de três dias, 8 mil pessoas estavam abrigadas. Terminada a seca Aluízio
Alves organizou a volta dos retirantes, fazendo com que cada um levasse um
[...] com a ajuda da Liga Brasileira de Assistência criou o Instituto Padre João
Pinheiro, passa, no ano de 1943, a ser chamado de Instituto Padre João Maria e se
pobreza (Oliveira & Araújo, 1979), chegando a abrigar 180 meninas órfãs42
(Evangelista, 2011).
Após a II Guerra Mundial, Natal enfrenta problemas de uma cidade que cresceu
e aumentava o número de pessoas que passaram a procurar nos centros urbanos o seu
42
O Instituto Padre João Maria ficava localizado à Avenida Almirante Alexandrino de Alencar, ao lado
do Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Norte, no bairro Barro Vermelho (Evangelista, 2011).
94
Natal, muitos desses trabalhadores retornaram as suas cidades de origem, deixando para
existentes na cidade. Diante disso, cria-se, junto à Liga Brasileira de Assistência (LBA),
demarca o início de ações de assistência mais direta por parte do Estado, quando, então,
ficavam sob a responsabilidade das obras sociais da Igreja Católica (Oliveira, 2005).
Como vimos, a cidade possuía, até então, apenas a instituição feminina (Orfanato Padre
João Maria), que ficava sob a responsabilidade das freiras da Congregação religiosa
Filhas de Sant‟ana e passou a se chamar “Instituto Padre João Maria”, logo após a
João Maria funcionou até meados de 1975. No final do Governo de Cortez Pereira
Lembro que foram me buscar e quando cheguei era uma casa próxima ao
43
Segundo informações de Gouveia (1993), o Serviço de Reeducação e Assistência Social foi instalado
no estado do RN no dia 26 de março de 1943, para enfrentar o problema da infância perigosa.
44
A ação do estado potiguar em face do “problema do menor” foi enfrentada junto com a participação
ativa das ações católicas. A primeira unidade de atendimento criada para meninos se deu no ano de 1954,
por decisão do Secretariado Arquidiocesano de Ação Social e se chamava Instituto Estevam Machado
(IEM), localizado em área periférica, hoje bairro das Quintas (Siqueira, 1979).
45
Trata-se do 16o Batalhão da Infantaria Motorizada, localizado na Avenida Hermes da Fonseca, no
bairro do Tirol.
95
casa, mas esqueci do nome do proprietário. Nessa época, não era específico o
atendimento para jovens infratoras. Não se você ouviu falar, mas tinham dois
meninas do corpo de bombeiros para a casa que eu trabalhava, mas não sei bem
por qual motivo. Foi durante o governo de Cortez Pereira, e Aída, primeira
depois de dois anos que começou a receber crianças do juizado, que foi
religiosas, não configurando assim o foco de atenção do Estado. A razão para essa
situação assenta-se na posição social das mulheres, baseada nos valores da sociedade
patriarcal. Na divisão social entre os sexos, a designação prioritária dos homens à esfera
produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva (Hirata & Kergoat, 2007) provocou nas
46
Lembramos ao leitor que a unidade de atendimento citada pela educadora, o Corpo de Bombeiros
Militar do Rio Grande do Norte, trata-se do Instituto Padre João Maria, como já explicitamos em outra
nota. A outra casa se trata da Casa das Arrependidas (atual Instituto Bom Pastor), localizada no Bairro do
Bom Pastor, instituição administrada por freiras, que recebia mulheres que apresentavam comportamentos
divergentes aos moralmente esperados. Desse destino, essas jovens eram obrigadas a abandonar suas
casas e se encaminharem à reclusão, utilizando seu tempo na aprendizagem de corte, costura, bordados,
bem como em atividades domésticas (Hora, 2008).
96
afirma: “Elas, em geral órfãs, eram recolhidas por instituições religiosas, segundo cor e
normalização (Rizzini & Pilotti, 2009). Foi assim que se criou a FUNABEM e a
Menores, que objetivava a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. No
favoreceram a internação, em larga escala no país inteiro (Rizzini & Pilotti, 2009).
Foi nessa conjuntura nacional que, em Natal, o Instituto Padre João Maria passa
por mudanças estruturais e retorna o seu funcionamento. É válido ressaltar que no ano
47
A Lei n. 4.306 que criou a FUNBERN foi sancionada por meio do Decreto n . 6.747. Sendo o órgão
estadual de implantação e execução das normativas da FUNABEM e PNBEM , ficou sob a supervisão da
Secretaria de Trabalho e Bem-Estar Social (Oliveira & Araújo, 1979). Por volta de 1980, passará a
denominar-se, assim como as outras fundações estaduais do país: FEBEMs.
97
& Araújo, 1979). No ano de 1979, a instituição voltou a funcionar em prédio localizado
aquelas que por situação da pobreza estavam abandonadas e outras por envolvimento
com a prostituição e o uso de drogas (Centro Educacional Padre João Maria, 2009).
Estar Social do RN, Dr. Otomar Lopes Cardoso, a Senhora Pricile Roy retoma a
48
O prédio em que funcionou o Instituto Padre João Maria, nesse período, localiza -se na Avenida Mor
Gouveia, próximo à rodoviária de Natal. Atualmente, nesse prédio funciona o Centro Integrado de
Atendimento ao Adolescente Acusado de Ato Infracional (CIAD) (Evangelista, 2011).
49
Assim como houve a separação das meninas por critério de honra (virgem e não virgens) nos
recolhimentos do Império, na República e no Serviço de Assistência ao Menor (SAM) no ce nário
nacional (Arantes, 2009).
98
não estava tendo efeito. A proposta era de salvação dessas meninas que, vivendo nos
Quando eu cheguei a Natal, em 1979, eu vim trabalhar com a freira Ir. Pricile
João Maria. Esse projeto se chamava “Granja Santana” e foi criado pelo
ideia do projeto era salvar as meninas, para tirar das ruas e dos vícios. O
proposta diferente, que era uma experiência que inclusive a Ir. Pricile já tinha
nos Estados Unidos de lidar com meninas e jovens. Claro que lá era diferente,
ela sempre dizia isso, mas pelo menos ela tinha identidade com a situação
Parnamirim. As meninas escolhidas para ir para essa granja eram aquelas que
achavam que não tinha mais ninguém que pudesse trabalhar com elas. Na
verdade, até se perguntavam quem teria essa coragem de trabalhar com elas?
Então, a irmã disse: são exatamente essas que eu quero. Daí, a Granja de
50
Segundo informações de Evangelista (2011), a instituição se localizava por trás da fábrica Sacoplástico,
no município de Parnamirim, região metropolitana de Natal.
99
Santana abriu e começamos com dez meninas esse trabalho. Elas eram
- Granja Santana)
abandono e carência (Centro Educacional Padre João Maria, 2009). Segundo a freira
Foi apenas um ano. Começou com o convite do Dr. Otomar Lopes Cardoso, que
me convidou para cuidar das meninas do Padre João Maria, algumas só...Com
relação à escolha das meninas dessa unidade, não sei exatamente. Acredito que
da minha experiência com mulheres jovens nos Estados Unidos e no Brasil com
Então, fomos encaminhadas para cuidar de uma casa que é por trás da fábrica
final deste ano. Eu tive uns problemas de saúde e tive que voltar para me cuidar
nos Estados Unidos e, nessa mesma época, o Dr. Otomar foi transferido para
Brasília e o projeto acabou. Não sei para onde as meninas foram levadas. A
partir daí, foi dado baixa na minha carteira porque eu era funcionária efetiva
51
A entrevistada faz referência a Secretaria de Trabalho e Bem-Estar Social, como era denominada à
época.
100
Secretaria de Trabalho e Bem-Estar Social – aquelas com faixa etária até seis anos
foram direcionadas para a Creche Menino Jesus e aquelas acima dos seis anos foram
estados do país. Com isso, o Instituto Padre João Maria, desde então, ficou ligado ao
De acordo com Evangelista (2011), o Instituto Padre João Maria ficou extinto
1991, após a promulgação do ECA, ainda de forma precária, em uma unidade no bairro
52
Na história das políticas para infância e adolescência no Brasil, a relação entre Estado e Igreja se
configurou numa aliança forte. No RN, essa relação não foi diferente. Na ausência da intervenção do
Estado com relação ao atendimento das meninas pobres, na maioria das vezes, realizaram-se convênios
com instituições religiosas, ficando as adolescentes a cargo da doutrina religiosa. No Caso do Instituto da
Medalha Milagrosa, o convênio foi com a FUBERN.
53
Lembramos ao leitor que o Instituto Padre João Maria se localizava no bairro da Cidade da Esperança,
onde hoje funciona o Centro de Atendimento ao Adolescente Acusado de Ato Infracion al (CIAD).
101
infracional grave, segundo a Lei n. 8069/90 – ECA [...] as internas passaram a ser
acompanhadas nas próprias famílias” (Centro Educacional Padre João Maria, 2009, p.
1).
com Costa (1993), nessa década, foi possível reunir as principais transformações sociais
política para crianças e adolescentes como sujeitos de direitos: o ECA, por meio da Lei
Maria, 2009).
de Centro Educacional Padre João Maria (CEDUC), nome que permanece até os dias de
pelas Varas da Infância e Juventude e os Juízos de Direitos das Comarcas de Natal e dos
reforçados pela Lei n. 12.594/2012 do SINASE, no âmbito das unidades do RN. Essa
Maria.
Socioeducativo norte-rio-grandense.
A omissão Estatal agrava a cada dia o quadro exposto. A sua inércia diante
Direito”.
no CIAD foram encaminhados para outras unidades do sistema. Essa situação trouxe
57
A interdição do CEDUC Pitimbu ocorreu no dia 13 de março de 2012, por decisão liminar da Vara da
Infância e Juventude da Comarca de Parnamirim/ RN.
58
Esse documento foi produzido pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, Defensoria
Pública do Estado do Rio Grande do Norte, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte,
Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, Ordem dos Advogados do Brasil –
Seccional do Rio Grande do Norte, Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do A dolescente – Fórum
DCA e Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONSEC. Disponível em:
104
oferece algumas recomendações, dentre elas nos interessa ressaltar as que propõem
para outro prédio com estrutura menor, como, por exemplo, o prédio da
330)
bairro da Cidade da Esperança. No entanto, esse não foi o destino dado às adolescentes.
http://www.mprn.mp.br/controle/file/2012_DOCUMENTO%20INTERISTITUCIONAL_IRREGULARI
DADES_SINASE.pdf
105
liberdade. Essa separação não ocorria recentemente, pois, sob a alegação da quantidade
de vista legal e políticas nacionais que abordem essa questão. Não obstante, o SINASE
2006, p. 55)
não contribuem para construção de projetos de vida aliados aos valores e ao respeito às
Norte. Lembramos que as unidades identificadas são: Instituto Padre João Maria, criada
em 1979, Granja Santana, criada no mesmo ano, e o Centro Educacional Padre João
intervir na “questão do menor”, a fim de agir nos casos de abandono, infrações penais,
Maria, 2009). Denominavam-se adolescentes em situação irregular aquelas que por uso
Oliveira e Araújo (1979), os critérios para o ingresso das “menores” na instituição não
13), mas abrangia todas as meninas órfãs, pertencentes a famílias de baixa renda,
Tinha uma diversidade muito grande. Eram meninas que os pais eram
alcoólatras, por exemplo. Às vezes ela não estava envolvida com os atos
meninas que não eram. Inclusive, tinha uma menina lá que era alcoólatra e
muita razão da família, não era tanto pela menina em si. Quando a menina
família. Era muito difícil ter uma menina com estrutura familiar organizada
vem da minha casa, não foi à toa que sai de lá. Então, nessa época, as meninas
108
cometido infrações. Às vezes elas roubavam besteiras, que se fosse hoje não
seria nem considerado ato infracional. Por exemplo, passar numa banca e
roubar uma besteira. Era muito mais para manter a droga. (Educadora -
Com base no relatório da FUNABEM (citado por Oliveira & Araújo, 1979), uma
posição, Oliveira e Araújo (1979) traçam um perfil das adolescentes atendidas nesse
básico para a sua integração e que somete lhe será propiciado pela família” (p. 19-20).
seguinte relato.
As que utilizavam drogas eram as que tinham mais conflito dentro da família, de
vez em quando chegava uma que bateu no irmão, outra que bateu no cunhado.
Elas usavam geralmente a maconha e eram rebeldes, mas essa rebeldia era em
no presídio. Tinha uma menina, por exemplo, que a mãe era do cabaré e depois
passou a vender drogas. Tinha outra que foi criada por uma tia que não dava
Maria)
109
Padre João Maria, Oliveira e Araújo (1979) chamam a atenção para a configuração dos
domésticas, [...] pois o mesmo atinge um percentual de 21,4%”; “as mesmas não
financeiras para criar seus filhos, em ambiente favorável a uma educação adequada”;
“outra característica bastante evidenciada refere-se à conduta irregular da mãe, o que faz
surgir problemas que vão repercutir na vida da menor, levando-a na maioria das vezes
Com relação à renda familiar das adolescentes inseridas no Instituto Padre João
Maria, Oliveira e Araújo (1979) verificam que mais da metade das famílias sobrevivem
com a metade de um salário mínimo59 , indicando que elas não possuem condições para
adolescentes envolvidas com drogas e/ou prostituição daquelas não envolvidas e tais
contextos, foi criada a Granja Santana. Inicia-se, então, a classificação do perfil das
consideradas “piores” do Instituto Padre João Maria. Nessa unidade o objetivo era isolar
em Parnamirim. E a proposta era trabalhar com as meninas do Padre João Maria, com as
59
Conforme o Decreto n. 84.135, de 31 de Outubro de 1979, o salário mínimo passa a ser 2.932, 80
cruzeiros. Informações recuperadas de http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-
84135-31-outubro-1979-433690-publicacaooriginal-1-pe.ht ml
110
2008).
adolescentes autoras de atos infracionais tem sido apontada como tema imprescindível
nos estudos que teorizam a infração juvenil (Assis & Constantino, 2001). Segundo esses
nota-se que a força dos amigos se exerce com maior intensidade nos momentos
companheiros, pais, irmãos, tios e primos (mais fortes, poderosos e capazes de supri-las
Assis e Constantino (2001) e Oliveira e Araújo (1979), o que nos impõe a necessidade
desigualdade decorrente das relações sociais, com especificidades nas relações entre os
crianças negras nos centros urbanos que surgiu a repulsa diante das crianças pobres e a
desqualificação da família por esta condição (Rizzini, 1997). Na história da política para
infância e adolescência vimos que o papel dos higienistas em muito contribuiu para o
reforço dessa desqualificação, pois, segundo eles, os hábitos sustentados pelas famílias
No que diz respeito à associação das infrações penais ao histórico das famílias,
comportamento das mães. Com isso, entendemos que a culpabilização da família pobre
não impacta da mesma forma a todos os membros dos grupos familiares, mas afeta de
família, enquanto que aos homens atribuiu-se tarefas pontuais consideradas como apoio
mulheres não conseguem cumprir o papel social esperado, elas são responsabilizadas de
forma severa, sendo, a partir disso, consideradas más cidadãs e inadequadas à sociedade
(Saraceno, 1997).
Nos últimos anos, essa responsabilização das mulheres tem se mantido intacta.
transformações da sociedade contemporânea, não se pode afirmar que tenha havido uma
Granja Santana, no Instituto Padre João Maria e no Centro Educacional Padre João
pela Igreja Católica, constatamos que houve várias iniciativas para criações de
Brasil. Dessas iniciativas, “a mais carregada de efeitos para elas foi à criação de uma
discurso religioso, com uma profunda visão tradicional do papel social da mulher
com essas meninas deveria ser com o trabalho voltado sobre a temática da
família. Então, para educarmos essas meninas, nós dizíamos: “aqui é a sua casa
Tinham experiência desde o tempo que moravam nos Estados Unidos e aqui no
Brasil quando trabalharam na unidade que se chama hoje Instituto Bom Pastor.
Santana)
Essas informações são reforçadas pelo relato da religiosa que administrava essa
unidade de atendimento:
Com base na minha experiência dos Estados Unidos, a proposta educativa era
tínhamos poucos meios para trabalhar com esse tipo de meninas com problemas
assistente social que ia uma vez por semana, não tinham mais profissionais.
que era o órgão que coordenava. Lembro-me que a Casa era muito longe das
coisas e para conseguir até um transporte era coisa muito difícil. Aí no Brasil
115
era muito diferente dos Estados Unidos. Nos Estados Unidos eu era acostumada
trabalhar com muitos profissionais com esse tipo de menina. Eram psicólogos,
Como vimos, a FUNABEM, órgão que substituiu o extinto SAM, surgiu com a
as suas competências, ressaltava ser uma antítese ao SAM em vários aspectos, dentre
pontos jamais efetivados pela antiga instituição (Lei n. 4.513/1964, Art. 5). Certos de
sobre quais rumos essas instituições deveriam tomar para não serem extintas. Com o
Segundo Silva e Lima (1986), estágios foram oferecidos aos técnicos de várias
João Maria foi uma das unidades escolhidas60 . Os campos de estágio foram a Escola
devido às suas semelhanças com o Instituto Padre João Maria. Ambas atendiam
preocupação com a questão dos menores. Para essa entidade, a preservação do “capital
60
A participação nesses estágios era aberta a todos . No entanto, apenas a psicóloga da instituição foi
escolhida e realizou o estágio no estado de Minas Gerais (Silva & Lima, 1986).
117
medida em que afetava o poder nacional (Vogel, 2009), haja vista que meninas e
Antônio Carlos Gomes da Costa, desde 1976 61 (Silva & Lima, 1986). Com a realização
trabalhar, na segunda, a educanda ou educando trabalha para aprender. Para esse autor,
em linhas gerais, a educação pelo trabalho significa educar jovens envolvidos com
infrações utilizando o trabalho. “Educar é criar espaços para que o educando, situado
empreender ele próprio a construção do seu ser, tanto no nível pessoal, como a nível
trabalhadora”. Ela propõe não apenas utilizar a mão de obra dos adolescentes, mas
61
Nesse período, o pedagogo Antônio Carlos Gomes da Costa era diretor da Escola Barão de Carmagos
em Minas Gerais.
62
A criação dessa proposta educacional surgiu a partir da dificuldade do trabalho pedagógico nas
Febem‟s de Minas Gerais e, sobretudo, a rejeição da comunidade e da Igreja sobre a presença dos
adolescentes na convivência com a sociedade (Silva & Lima, 1986).
118
proposta pedagógica – Educação pelo Trabalho – deve ser dar de forma participativa,
com diálogo e planejamento entre a equipe institucional e as educandas” (Silva & Lima,
1986, p. 28).
Instituto Padre João Maria, em que “as educandas e educadores têm participação ativa
na construção do plano de ação institucional e na sua execução” (Silva & Lima, 1986, p.
monitoras que acompanhavam. Depois de um curso que uma das técnicas fez em
Parnamirim. Elas colavam aquelas pedras nos botões. Era um convênio, eles
Econômica para elas e a gente administrava por elas serem menores de idade.
Eu lembro que tinha uma fábrica de botões, a Bonnor, era ótimo! O pessoal de
parte do dinheiro para elas. Elas ficavam direto dentro de casa, às vezes a mãe
119
passava muito tempo sem vê-las, então elas mesmas juntavam o dinheiro para
trabalhar na própria unidade, que começa a parecer uma “mini-fábrica”. Isso porque as
adolescentes passam a ganhar por produção, sem, “contudo, manterem nenhum vínculo
Padre João Maria, os convênios com empresas eram sempre recebidos com satisfação,
A Socioeducação
& Kramer, 2003). Com intuito de abandonar as velhas práticas punitivas, o ECA
originadas entre os anos 1950 e 1960 (Beisiegel, 1984), foram mais uma vez
vulnerabilidade social.
relações sociais. Ela se propõe a tratar os educandos de forma integrada aos contextos e
vivências de sua própria realidade social. Segundo Werthein (1985), a realidade social é
Social de Rua (ESR). Esta se baseou na Pedagogia da Presença e objetivou propor uma
como pessoas, cidadãos e futuros profissionais, para que não reincidam na prática de
mesmo tempo, o respeito aos seus direitos fundamentais e à segurança dos demais
sancionatórios;
2º) Deve ter o Projeto Político Pedagógico como ordenador de ação e gestão do
63
O SINASE se torna a Lei n. 12.594 no dia 18 de Janeiro de 2012.
123
socioeducativas apresenta outra realidade64 . Assim como nas demais unidades do RN,
no CEDUC, até os dias de hoje, não há um projeto político pedagógico que oriente o
unidade, a diretora do CEDUC (de fevereiro de 2011 a novembro de 2012) relata que,
gostariam de participar.
Quando foi publicado o SINASE, nós nos reunimos para elaborar atividades
baseado nos eixos desse documento. Então, fazíamos um lev antamento. Elas
artesanal, então nós falávamos: “vamos fazer artesanatos”. Mas quem dava
esses materiais era a oficineira, ou então, para conseguir mais, pegávamos uma
parte dos lucros e comprávamos mais e o restante era para elas. Do lucro, 20%
64
No tópico da contextualização das unidades de atendimento, ressaltamos a difícil situação das unidades
de medidas socioeducativas do RN. Para maior aprofundamento , pode-se consultar o Inquérito Civil n.
010/2012 – 21ª Promotoria de Justiça da Comarca de Natal, e o Documento Interinstitucional:
Irregularidades no sistema socioeducativo, publicado em julho de 2012.
124
Agora, a nossa grande dificuldade, que ainda deve ser hoje, é que são quatro
gente tinha que trabalhar com elas era esclarecimento do que era cada medida,
porque cada medida tem sua particularidade perante o ECA e elas não
habilidades femininas. Para essa profissional, é através dos trabalhos manuais que as
tudo isso eu acho que é bom para elas. Elas se sentem mais calmas, estão
pintura. Tudo isso, como elas mesmas dizem, é uma forma de ocupar a mente e
desenvolver o nosso trabalho, mas, como eu gosto, eu tiro do meu bolso pra
comprar algo que está faltando. (Educadora - Centro Educacional Padre João
Maria)
125
Por estar funcionando numa pequena casa, a prática esportiva é inexistente e as rodas de
Tabela 2
Com base nos dados, percebemos que a proposta educacional das unidades de
culturalmente identificadas.
ensinamentos cristãos foram utilizadas como justificativas para afastar, no caso das
opressão patriarcal.
com a lei, é importante notar que, no âmbito do atendimento nas unidades femininas
aos cuidados e ao trabalho doméstico. Não obstante algumas aulas denominadas pelos
artesanato. Embora saibamos que essas atividades contenham seus valores na sociedade,
a crítica que empreendemos aqui é que, quando se trata de mulheres, há uma nítida
frequentemente, foram utilizados também como mão de obra barata no setor produtivo
capitalista (Arantes, 2009). No entanto, são as jovens mulheres as mais excluídas das
propostas de qualificação exigidas pela lógica neoliberal, pois, na maioria das vezes,
compõem várias esferas da atividade social (Saffioti, 2004), e não nos surpreende que
Essas questões nos permitem refletir sobre como a ordem neoliberal mantém e
relações entre homens e mulheres são sexuadas deve ser considerada. Para a autora,
acordo com Diogo e Coutinho (2006), a inclusão das mulheres em diversos campos da
feminino.
sobre as mulheres se reforçam (Ávila, 2013). De acordo com Fonseca (2000), no modo
(1999) afirma “nas áreas onde é maior a presença de capital intensivo, de maquinário
mais avançado, predominam os homens. E nas áreas de maior trabalho intensivo, onde é
maior ainda a exploração do trabalho manual, trabalham as mulheres” (p. 202). Temos
aqui, então, uma estruturação do mundo do trabalho que se configura a partir das
relações de classe, com recortes mais perversos para questões de raça e gênero.
comportamentos adequados para o exercício dos papéis sociais (Saffioti, 1987). Para
Ainda que a proposta, segundo Costa (1984), intuísse ser diferente da educação alienada
escolha do tipo de trabalho instituído pelo convênio com a fábrica de botões indica que,
Concordamos com Diogo e Coutinho (2006) quando afirmam que essa questão
tem raízes históricas nos anos vinte e trinta do século passado. Nessa época, surge o
preparação física, moral e intelectual das filhas e filhos (Rago, 1997). Utilizando a
65
Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (2001), são as áreas
de serviços pessoais, domésticos, administração pública, saúde, ensino, serviços comunitários,
comunicações, comércio de mercadorias ou atividades agrícolas que concentram a maior parte da mão de
obra feminina.
130
líderes domésticas.
atendimento nas três unidades analisadas. Do ponto de vista dos objetivos que
reflexão:
Essas meninas eram vistas como menores, elas eram os menores. A sociedade
sequer chegava até elas. Ali, eram consideradas as meninas indesejadas. O fato
não era nem de serem mulheres, mas eram simplesmente as infratoras. Usavam
armas e a gente tinha que ter o maior cuidado. (Assistente Social - Instituto
outra casa era mais complicado [faz referência quando era diretor da unidade
masculina Ceduc Pitimbu], mas aqui já peguei tudo organizadinho. Pra mim, é
delas é bem melhor. Na outra unidade, até por ser bem maior e os atos
infracionais mais graves, era bem mais complicado. Aqui, por trabalhamos com
homens é um caos, já aqui funciona tudo direitinho. Até a rotina é melhor, elas
participam bem mais. Mas a gente sabe que no caso dos atos dos homens
geralmente são bem piores, eles são mais violentos. (Diretor - Centro
Com base nos relatos apresentados, não seria excesso afirmarmos que as
sistema de justiça juvenil. Ao analisar o sistema penal pela ótica do gênero, Andrade
(2003) afirma que o sistema de justiça criminal pauta-se nos valores patriarcais que
pelo machismo. De acordo com essa autora, o sistema jurídico e todos os aparelhos que
reforça a visão social que as mulheres apenas se constituem como boas e passíveis de
132
proteção se permanecem nos limites das tarefas domésticas. Aquela que, por diversos
demonstra similitudes com a reflexão acima. As tarefas domésticas têm sido uma
O que a gente dizia na Granja de Santana era: “isso aqui é a sua casa, não é
nossa, é sua casa, na sua casa você tem que ter responsabilidade, você tem
aí, a gente dizia o seguinte, “em toda casa tem regra, né?”. Então, a gente
não quiser tomar banho, a gente também num fazia essa guerra não, porque
quem vive na rua às vezes nem banho toma, você tem que fazer o outro
querer, gostar, porque pedagogia com imposição fechada, eu acho que não é
conta da casa e rodízio nas atividades para não ficar tão, tão cruel, essa
camas, na outra, então cada uma tinha uma atividade de cuidados com a
reunião geral com as famílias, entrevista com os pais, apoio psicológico, visitas
das unidades a presença na instituição era/é diária, mas a interação com as adolescentes
prática, as meninas ficavam muito tempo sem fazer nada. Nosso trabalho era
específico era atualizar todos aqueles estudos sociais e mandar para o juiz.
As atividades que faziam com elas eram os agentes educacionais. Eles faziam
desde a limpeza do prédio com elas até ficar com elas na sala. Lembro que
muita pintura. Nessa época tinham muitos profissionais. A equipe era muito
integrada, a gente se reunia muito e cada um dava sua opinião sobre como
Como essa unidade já vem há um tempo trabalhando com essas três medidas,
134
muito. Na outra unidade trabalhávamos com doze meninos, aqui são sete,
também ser maior. Apesar de se trabalhar as três medidas, cada unidade tem
forma mais efetiva, o que não ocorre com uma grande quantidade. A
Araújo (1979) afirmam que o Instituto Padre João Maria desenvolvia sua programação
cotidiana, de acordo com as necessidades da clientela, visando atingir aos objetivos que
a referida unidade se propunha. Nas entrevistas realizadas com profissionais das outras
duas unidades (Granja Santana e Centro Educacional Padre João Maria), percebemos
que a delimitação das atividades também é feita pelos técnicos. Apesar das profissionais
Tabela 3
atividades da vida doméstica. É válido ressaltar que as razões para esse estado das
sociedades. Assis e Constantino (2001) constatam que estudos em diversos países têm
demonstrado a relação entre esses dois aspectos. Ao analisar processos judiciais do final
do século XIX do Brasil, Abreu (2008) aponta que, do ponto de vista das relações de
tempos e não modificam suas interpretações. Segundo Campos (2003), essa visão
impera nos processos judiciários até os dias atuais e estagna o direito da mulher, que, no
âmbito penal, não teria evoluído desde o século XVI66 . No âmbito do atendimento
liberdade para mulheres adultas como exemplo dessa questão. As autoras verificam que
réplica dos serviços destinados aos homens, com adaptações que naturalização os papéis
com Volpi (2002), no que se refere a medidas aplicáveis desde aqueles que tiveram seus
66
Em sua pesquisa, Campos (2003) faz uma comparação entre as práticas desenvolvidas pelos tribunais
franceses nos séculos XVI, XVII e XVIII, e recentes decisões de tribunais brasileiros. A autora sinaliza a
semelhança dos referidos tribunais nas orientações e decisões relativ as aos casos de estupro.
137
social determinada pelo paradigma legal não rompe, da forma mais profunda, com a
perspectiva funcionalista. Evidentemente, essa realidade não difere quando tratamos das
adolescentes autoras de atos infracionais. Com base em Volpi (2002), dos programas de
infracionais no RN. Temos discutido até aqui que ao analisar a condição de mulheres
sistemas jurídico-penais e penitenciários para mulheres adultas, bem como nos sistemas
entender quais comportamentos eram passíveis de punição e, por fim, como se dava a
adolescentes autoras de atos infracionais, a unidade era uma casa e os moradores dela
eram uma família, assim, o trabalho apenas poderia partir da proposta do diálogo.
funcionamento da casa, elas eram encaminhadas para uma conversa individual com a
freira diretora da unidade. “Nós tentávamos resolver no diálogo. Como a proposta era
Santana. Não havia uma única forma de reagir aos considerados “maus
da unidade era escolhida pela equipe técnica ou pelos educadores. Na prática, como as
adolescentes tinham uma relação mais direta com os educadores, algumas sanções eram
resolviam o destino a ser dado às jovens. Nesse cenário do Instituto Padre João Maria,
para Casa de Saúde Natal. Segundo uma educadora da unidade, qualquer “nervoso” era
passível de internação.
Não tem menina que você vai conversar e é agressiva? Pronto. Eram essas
meninas. Elas perdiam o final de semana, não iam pra casa. Mas teve uma
139
época em que elas iam para o quartinho da reflexão, mas eu acho que não dava
decidia quando dias elas iriam passar lá, dependia do comportamento. Às vezes,
João Maria)
para elas refletirem. Elas se agrediam com facas e tesouras. É tanto que nada
disso poderia ficar exposto. (Assistente Social - Instituto Padre João Maria)
O que ocorria era o seguinte: era a época do Código de Menores, então, tudo já
era repressivo. Não havia uma direção na questão disciplinar. Cada educador
fazia à sua maneira. O processo era punitivo mesmo. Tinha educador que era
mais calmo, mas tinha outros que era mais repressivo, aí era na base do
Mas uma coisa que me deixa chocada até hoje é que teve uma época em que
qualquer menina que fosse atrevida era internada na Casa de Saúde Natal. Eu
tenho uma carta que mandaram para que eu comparecesse pra assinar um
documento, que eu não sei o que é, dizendo que já tinha internado oito meninas
internadas e ainda tinha mais para internar. Porque se a menina fosse agressiva
para internar. Era tipo um papel pequeno. Não sei se ainda tenho. Era a
drogas. No entanto, era possível ver adolescentes sendo encaminhadas a esse destino
Por sinal, teve um dia do meu plantão, tinha uma funcionária, que era de fora e
morava dentro da casa, e uma menina começou a cantar uma música com ela e
ela queria porque queria que eu levasse a menina pra Casa de Saúde, porque
estava doida. Aí, eu disse que não, que isso acontecia. Mas quem decidia era a
equipe de frente, a equipe técnica eu quero dizer. Essa parte de internar não era
com a gente. Eu encontrei uma mãe, uns três anos, muito revoltada. Até hoje
não se conforma pela menina ter sido internada sem ser doida, apenas por ter
respondido. Deve ter ficado com sequelas, não sei se eles davam choque.
poderíamos dar era a diminuição do tempo de visita, elas não iam para o lazer,
decidia, por exemplo, as duas não vão visitar a família no sábado. Era uma
2013, percebemos que as medidas disciplinares não eram discutidas numa Comissão de
aplicação de sanções às condutas que infringem as regras fica mais a cargo das
unidades de atendimento Granja Santana e Instituto Padre João Maria foram elencados
Tabela 4
Descrição das medidas disciplinares das unidades de atendimento as adolescentes autoras de atos infracionais do Rio Grande do Norte67
Unidade de Normas Condutas passíveis de Medidas aplicadas
Atendimento sanção
Granja Santana - Limpeza da casa deve ser - Desobediência aos - Diálogo individual com a diretora;
realizada pela manhã; educadores e diretoras; - Educador busca a menor e para retornar a
- Todas as adolescentes devem - Fuga. instituição.
cozinhar, de acordo com o dia de
sua responsabilidade;
- As adolescentes devem participar
das atividades pedagógicas.
Instituto Padre João - As menores deviam fazer a - Desobediência aos - Suspensão da ida para casa nos finais de
Maria (IPJM) limpeza dos quartos; educadores e diretoras; semana68 ;
- Não era permitido responder aos - Comportamentos - Encaminhamento para o “Quartinho da reflexão”
agentes educadores e técnicos. considerados inadequados (Educadora-IPJM);
para meninas. - A aplicação de medidas ocorria conforme a
- Ameaças, violência física e escolha de cada educador;
verbal, manifestação com -Internação na Casa de Saúde Natal69
gritos e o uso do corpo,
67
As informações sobre as normas, condutas e medidas aplicadas nas unidades da Granja Santana e no Instituto Padre João Maria foram elencadas com base nas entrevistas
realizadas com os profissionais de ambas as unidades. Quanto ao Centro Educacional Padre João Maria, os dados foram recuperados das normas gerais da instituição, em
documento cedido pela direção da instituição.
68
Segundo técnicos que atuaram no Instituto Padre João Maria, nesse período, as adolescentes não se encontravam privadas de liberdade, elas estavam institucionalizadas,
podendo ser liberadas aos finais de semana.
69
No ano de 2005 a Casa de Saúde Natal passou a se chamar de Hospital Psiquiátrico Professor Severino Lopes. A instituição é uma entidade filantrópica mantida pela
Sociedade Professor Carrilho que objetiva tratar indivíduos com transtornos mentais e dependentes químicos.
143
Centro Educacional - Limpeza dos quartos deve ser - Agressão verbal as demais - Aplicação da sanção de reflexão. A equipe de
Padre João Maria realizada pela manhã, logo ao adolescentes, educadores (plantão) aplica a medida e a
(CEDUC) acordar; coordenadores, educadores, adolescente só será liberada pela mesma equipe no
- Limpeza geral da instituição deve técnicos, policiais e pessoal plantão seguinte. Caso haja reincidência o tempo
de apoio; da reflexão estendido;
ser realizada todos os sábados; - Agressão física em relação - Aplicação de nove dias de reflexão;
- Apenas é permitido entrar na à outra adolescente; - Aplicação da sanção de reflexão. Funciona da
secretaria, na coordenação e na sala - Tentativa de fuga; mesma forma da medida aplicada a agressão
dos socioeducadores diante a - Fuga verbal;
solicitação; - Danos ao patrimônio; - Aplicação da sanção de reflexão. Nove dias.
- Não é permitido pegar nos - Ameaças de agressão física - Reparação ao dano pela família, caso esta não
e de morte; tiver condições de pagar, a socioeducanda pagará
equipamentos eletrônicos;
- Trocas de objetos pessoais, com seus trabalhos confeccionados.
- Evitar entrar nos quartos com - Aplicação da sanção de reflexão. Três (dias) para
comida; pegar objetos sem permissão
a primeira e sete dias para a segunda;
- O banho deve ser tomado ao e descumprimento das - Aplicação de advertência. Caso haja
acordar; atividades diárias. reincidência, as medidas podem ser suspensas das
- Lavar roupas somente nas terças e ligações e recolhimento após o jantar.
quintas;
- As refeições apenas podem ser
realizadas no refeitório.
144
institucionalizadas. Nas três unidades do estado, percebemos que para cada norma
transgressão à ordem estabelecida. Essas normas podem ser mais maleáveis ou mais
profissional que aplica à medida são o que define a punição. Cada medida disciplinar
utilizada como medida disciplinar desde o funcionamento do Instituto Padre João Maria
cometidos. A restrição com relação ao contato com os familiares também consiste num
argumento das normas gerais para o cumprimento das regras das instituições.
pelo Código de Menores, no Centro Educacional Padre João Maria, construído sob os
maioria das faltas disciplinares e a interdição da convivência com a família, não tem
faltas leves;
37-38)
das ligações e no recolhimento para o quarto após o jantar. Essa medida viola o direito
não haja prejuízo com relação à realização das visitas, as medidas lá aplicadas impedem
sofrem com a ausência da família, que muitas vezes não têm condições de chegar até a
dado nos remete a uma reflexão outrora realizada. As tarefas associadas à noção de
de justiça juvenil, pois reforçam que as ocupações para homens e mulheres têm relação
com os modelos preexistentes quanto ao que é apropriado para cada sexo (Colares &
Chies, 2004).
146
Instituto Padre João Maria foi recorrente o encaminhamento das internas ao Hospital
Psiquiátrico Professor Severino Lopes (Casa de Saúde Natal) como medida aplicada às
adolescentes que infringiam as regras. De acordo com os relatos dos profissionais, essa
medicalização.
Lima (1993) traz contribuições sobre essa questão. De acordo com o autor,
femininas no RN se organizou com base no olhar patriarcal, para o qual a posição social
vincular a infração das mulheres por meio dos argumentos de distúrbios emocionais e
que é feminino. A adolescente autora de ato infracional do RN, além de estar sob as
penitenciária70 têm uma base patriarcal e por isso exige-se continuamente indagar-se,
feminilidade, que por sua vez são relacionados à raça e à classe social (Rafter, 2004).
70
De acordo com Foucault (1998), foi a partir do século XIX que a prisão penitenciária tornou -se uma
prática comum.
148
primeiros estudos sobre o crime e punição de Cesare Lombroso (1835 – 1909), por
A pesquisa realizada por Pereira (1993) aproxima essa discussão à realidade das
ociosidade, objetivavam o controle total das vidas das adolescentes. Quando buscamos
entender esse controle nas unidades do RN, percebemos marcas dessa disciplina para a
introduzirem princípios de igualdade entre os gêneros, esses avanços não têm efeito na
dos adolescentes no mesmo contexto, mas ao insistir em naturalizar o que não é inato e
71
É uma unidade de cumprimento de medidas socioeducativas para adolescentes do sexo feminino em
conflito com a lei vinculada ao Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), órgão que, por
sua vez, vincula-se à Secretaria do governo estadual do Rio de Janeiro (Assis & Constantino, 2001).
149
Considerações finais
(Granja Santana, Instituto Padre João Maria e Centro Educacional Padre João Maria).
racistas, contexto em que a política para infância e adolescência se insere e tem sido
do ser feminino. Para análise dessa constatação, partimos da discussão sobre a divisão
sexual do trabalho, como um elemento central na estruturação das relações sociais entre
Com base na análise dos dados, consideramos que a seleção das adolescentes
estereótipo dos pobres como inferiores, viciosos, vadios, promíscuos, dentre outros
Assim, a família pobre aparece como aquela incapaz de cuidar de si mesmo e de seus
do país.
Nesse contexto de criminalização, a mulher pobre tem a carga mais pesada das
reforçou a exploração das mulheres e impôs sobre elas uma organização de vida voltada
Granja Santana. Vimos que se buscou justificativas para os atos infracionais cometidos
mulheres em face do domínio dos homens – do mesmo modo como tem sido observado
as leis, o Estado, desde o início da República, propôs ocupar suas mentes. De acordo
com Rizzini e Pilotti (2009), a ideia não era apenas prover a educação de “crianças e
adolescentes desvalidas e/ou menores”, mas impor uma educação universal e racional
conflito com a lei no RN, observamos que houve/há uma versão educacional feminina.
medidas disciplinares das três unidades, percebemos que houve/há formas específicas
disciplinar proposto pelo SINASE não têm sido seguidas. As medidas disciplinares das
três instituições contêm regras e ações restritivas que objetivam a produção de corpos
dóceis.
152
atendimento a partir dessa perspectiva, nesses trinta e cinco anos, as unidades deixaram
centralidade na família, suas ações têm aderido aos valores tradicionais sobre as
Essa situação não se limita a esse campo. Temos visto que as políticas sociais
Essa situação nos faz reconhecer que, embora a Política Nacional para Mulheres
que quando nos propomos a lutar para implementação de políticas que respeitem de fato
das condições de vida das mulheres e que promovam a construção de sua cidadania.
condições de vida das adolescentes autoras de atos infracionais. Para alcance disso,
divergentes nas relações de gênero, com vistas a superar as práticas assistencialistas que
E o mais essencial, é necessário que lutemos sempre a favor das questões das
apenas a luta feminista não será capaz de sanar as discriminações seculares direcionadas
Referências
Freyre, G. (1986). Casa grande & senzala: formação da família brasileira sobre o
regime da economia patriarcal. São Paulo: Círculo do Livro.
Fundo das Nações Unidas para a Infância. (1987). Observações iniciais sobre
programas de atendimento a meninos de rua (4a ed.). Brasília: Autor.
Gattaz, A. (1996). Pensando a história oral. São Paulo: Xamã.
Gonçalves, M. A. (1987). Expostos, roda e mulheres: a lógica da ambiguidade médico-
higienista. In A. M. Almeida (Org.), Pensando a família no Brasil (pp. 73-80). Rio
de Janeiro: Espaço e Tempo.
Gouveia, E. C., Cavalcante M. C. D., Cardoso, M. I. D. B., & Miranda, M. (1993).
Memória da Escola de Serviço Social de Natal – 1945-1955. Natal: Editora da
UFRN.
Hirata, H. (2002). Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para a empresa
e a sociedade. São Paulo: Boitempo.
Hirata, H., & Kergoat, D. (2007). Novas configurações da divisão sexual do trabalho.
Cadernos de Pesquisa, 37(132), 595-609.
Holanda, S. B. (2009). Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
Hora, C. E. P (Org.). (2008). Bom Pastor: Conheça melhor o seu bairro (Relatório
Técnico/2007-2008). Natal: Secretaria de Meio Ambiente e Urbanismo.
Kergoat, D. (2001). Le rapport social de sexe - De la reproduction des rapports sociaux
à leur subversion. Les Rapports Sociaux de Sexe, 30, 60-75.
Klapisch-Zuber, C. (1993) Histórias das mulheres no ocidente: a idade média (Vol. 2).
Porto: Afrontamento.
Lei n. 12.594, de 18 de janeiro de 2012. (2012, 18 de janeiro). Institui o Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das
medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional; e
altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do
Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 7.998, de 11 de janeiro de 1990,
5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14
de setembro de 1993, os Decretos-Leis nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621,
de 10 de janeiro de 1946, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada
pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943. Recuperado de
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm
Lei n. 4.513, de 1o de dezembro de 1964. (1964, 1o de dezembro). Autoriza o
Poder Executivo a criar a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, a ela
incorporando o patrimônio e as atribuições do Serviço de Assistência a Menores, e
dá outras providências. Recuperado de
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4513.htm
Lei n. 8.069, de 13 de junho de 1990. (2006). Estatuto da Criança e do Adolescente.
Brasília: Secretaria Especial de Editorações e Publicações.
Lemgruber, J. (1999). Cemitério dos vivos: análise sociológica de uma prisão de
mulheres. Rio de Janeiro: Forense.
Lima, L. A. (1993). O estigma do abandono: estudo epidemiológicos de uma população
de crianças e adolescentes internados na Colônia Juliano Moreira vindos
158
Rede Globo de Televisão. (2013). Bom Dia Brasil - reportagem no estado de Minas
Gerais [Reportagem em telejornal]. Brasil: Autor.
Ribeiro Neto, A. (2009). Dos exercícios devotos aos exercícios de agulha: uma análise
do currículo das meninas desvalidas do Educandário Nossa Senhora da Piedade,
1925-1930. Comunicação apresentada no VIII Seminário Nacional de Estudos e
Pesquisas: História, Sociedade e Educação no Brasil, Campinas. Resumo
recuperado de
http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario8/
Rizzini, I. (1993). A assistência à infância no Brasil: uma análise de sua construção.
Rio de Janeiro: Editora Universitária Santa Úrsula.
Rizzini, I. (1997). O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a
infância no Brasil. Rio de Janeiro: EDUSU/AMAIS.
Rizzini, I. (2009). Crianças e menores: do pátrio poder ao pátrio dever. In I. Rizzini &
F. Pilotti (Orgs.), A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da
legislação e da assistência à infância no Brasil (2a ed., pp. 97-151) São Paulo:
Cortez.
Rizzini, I., & Pilotti, F. (Orgs.). (2009). A arte de governar crianças: a história das
políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo:
Cortez.
Saffioti, H. I. B. (1987). O poder do macho. São Paulo: Moderna.
Saffioti, H. I. B. (2004). Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo.
Saffioti, H. I. B., & Almeida, S. S. (1995). Violência de gênero – poder e impotência.
Rio de Janeiro: Revinter.
Safiotti, H. I. B. (1979). A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Rio de
Janeiro: Vozes.
Santos, M. A. (2004). Criança e criminalidade no início do século. In M. Del Priori
(Org.), História das Crianças no Brasil (pp. 232- 238). São Paulo: Contexto.
Saraceno, C. (1997). Sociologia da família. Lisboa: Editorial Estampa.
Schueler, A. F. M. (1999). Crianças e escolas na passagem do Império para a República.
Revista Brasileira de História, 19(37), 1-18.
Scott, J. (1989). Gênero: uma categoria útil para a análise histórica (M. B. Ávila & C.
Dabatt, Trad.). Recife: SOS Corpo.
Secretaria Especial dos Direitos Humanos. (2006). Socioeducação: estrutura e
funcionamento da comunidade educativa (Antonio Carlos Gomes da Costa,
Coordenação Técnica). Brasília: Autor. Recuperado de
https://www.tjsc.jus.br/infjuv/documentos/midia/publicacoes/cartilhas/criancaeadol
escente/Socioeducação.%20Estrutura%20e%20Funcionamento%20da%20Comunid
ade%20Educativa.pdf
Sicuteri, R. (1985). Lilith, a lua negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Silva, G. N. (2013). A construção das vulnerabilidades masculinas: uma questão de
saúde e violência. In I. L. Paiva, M. A. Bezerra, G. N. Silva & P. D. Nascimento
161
Anexos
163
Anexo 1
Esclarecimentos
Se você tiver algum gasto que seja devido à sua participação na pesquisa, você
será ressarcido, caso solicite.
Você ficará com uma cópia deste Termo e toda a dúvida que você tiver a
respeito desta pesquisa, poderá perguntar diretamente para Rocelly Dayane Teotonio da
165
Declaro que compreendi os objetivos desta pesquisa, como ela será realizada, os riscos e
benefícios envolvidos e concordo em participar voluntariamente da pesquisa “O
atendimento às adolescentes em privação de liberdade no município do Natal”.
______________________________________________________
Técnico Participante
__________________________________
Anexo 2
Roteiro de Entrevista Semiestruturado
1. Nome:
2. Sexo:
3. Idade:
4. Estado Civil:
5. Formação:
6. Formação adicional (cursos, especialização):
7. Instituição de Trabalho:
8. Função:
9. Tempo de exercício profissional: