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O MANDATO

Nikolai Erdman
O Mandato, Nikolai Erdman

A ENCENAÇÃO

No texto “O Mandato”, Nicolai Erdman traça um interessante retrato da sociedade russa da


década de 20, numa estrutura cuidadosamente tecida em forma de Vaudeville (gênero de
teatro ligeiro onde música, dança e canto contribuem para tornar o espetáculo leve, dinâmico
e engraçado, parodiando situações típicas da época). O caráter musical, os quiprocós, o “entra
e sai” constantes, são usados para discutir questões referentes à confusão causada pela
Revolução Comunista.

Reencontrar o texto de Nicolai Erdman em 1992, significa reencontrar uma joia preciosa que
nos permite falar dos acontecimentos recentes que abalaram toda a humanidade, com sátira e
humor. Significa, também, trazer para os palcos brasileiros, um autor russo que nunca foi antes
aqui encenado, buscando, na adaptação, fazer uma ponte com o Brasil contemporâneo a fim
de que a essência do texto chegue com a mesma força e vigor com que chegava às plateias
soviéticas da década de 20. Para isso, foi necessário revestir o texto russo, aparentemente tão
distante do nosso dia-a-dia, com a graça histriônica e irônica do intérprete brasileiro.

Ao misturar, no mesmo espetáculo, o Vaudeville e questões humanas relevantes, optamos por


imprimir aos personagens uma interpretação quase realista, com exceção dos “músicos”,
criados a partir de um processo de formação de Buffon. A interpretação se apoia em
elementos e recursos da estética popular brasileira, para, através de seus mecanismos,
aproximar o texto de um público contemporâneo.

Os figurinos seguem a mesma linha da interpretação: todos eles são figurinos de época,
mesclados a elementos atemporais não realistas.

O cenário traz uma parede disposta em diagonal com detalhes Bizantinos à frente, sendo que
ao fundo vê-se a desestruturação desta e de todo o espaço da caixa de palco, numa referência
ao Construtivismo. Também através do cenário faz-se uma ponte com o presente, pois há a
queda da parede, numa referência ao muro.

Assim, finda-se o espetáculo: a apoteose da queda ao som de gargalhadas histéricas...

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PERSONAGENS

Nadezda Petrovna : A mãe

Pavel Sergueivic : O filho

Varvara Sergueivic : A filha

Ivan Ivanovic : O operário

Nastja : A empregada

Tamara Leopoldovna : A amiga da mãe

Olimpic Valerianovic : Pai de Valerian

Valerian : Pretendente de Varva

Sanfoneiro

Homem do Tambor

Mulher do Papagaio

Avtonon : Ex-general, cunhado de Olimpic

Agafangel : Empregado de Avtonon (ex-soldado)

Stephan : Amigo do ex-general

Filitsata : Mulher de Stephan

Padre

Narkiz : O fotógrafo

PRONÚNCIAS

Najesda Petróvna Ânton Sigismúndavich

Pável Serguêivitch Guljakin Stéfan Crúchovic

Varvára Serguêievna Anastácia Nicaláevna Maltávna

Iván Ivánavich Nicalái Nicaláevich

Tamara Leopóldóvna Alekssandra Fiódóróvna

Alímpic Valeriánavich Smetánic Michail Alekssândravich

Valérian Alímpovich Lípovic

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PRIMEIRO ATO

(Uma sala do apartamento. Pavel pendura quadros, ajudado por sua mãe Nadezda. No chão,
quadros emoldurados)

Pavel E agora, mamãe, dá-me o “Entardecer em Copenhagem”.

Nadezda Eu prefiro o “Creio, Senhor, creio”!

Pavel “O Entardecer em Copenhagem” vai ficar muito melhor!

Nadezda Engano teu, Pavel, “Creio, Senhor, creio” diz coisas mais profundas!

Pavel Se é pelas coisas que diz, dá uma olhada atrás do “O Entardecer em


Copenhagem”!

Nadezda (olhando o outro lado do quadro) Virgem Nossa, quem é essa figura?

Pavel Que importa, mamãe?... Os tempos mudaram!

Nadezda Mas quem pregou isto aqui atrás?

Pavel Sei lá, mamãe... Lê o que está escrito aí!

Nadezda Karl Marx! Claro que este aqui não é russo! Que ideia é essa, filho?

Pavel Um quadro, mamãe, é essencialmente uma arma de propaganda!

Nadezda Uma arma? Mas, como?

Pavel Por exemplo: vem um representante do poder em casa. Temos aí na


parede o “Creio, Senhor, creio”... De repente ele olha para o quadro...
Olha para nós... E pergunta: “Diz-me, camarada Nadezda Petrovna, o
que fazia o teu bisavô?”

Nadezda Meu bisavô, na verdade, não fazia nada. Simplesmente, nada... Era o
dono de uma tinturaria...

Pavel Ah, muito bem, uma tinturaria... “E se eu – continua ele – por esse
precedente burguês os denunciasse?”

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Nadezda Virgem Maria, Santa Mãe de Deus!

Pavel Isso, mãezinha, “Virgem Maria”!

Nadezda Que situação terrível, Pavel!... Não há outra maneira de encarar essa
revolução?

Pavel Sim!... Pelo buraco!

Nadezda Pelo buraco? Mas, que buraco?

Pavel Psiu, fala baixo... É sigiloso... Fiz um buraquinho na porta de entrada...

Nadezda Buraquinho, pra quê?

Pavel Pra quê?... Tocam a campainha... Quem será?... A gente olha pelo
buraco, vê quem é e até a intenção da pessoa... Faz de conta que se
trata de um militante do partido, ou, sei lá, um comissário de polícia...

Nadezda Oh, Virgem Maria!

Pavel Esquece essa Virgem, mãezinha!... Se vemos pelo buraco um tipo


destes, invertemos rapidamente o quadro e convidamos a visita a
entrar...

Nadezda E daí?

Pavel Simples... O comissário ficaria por um momento, depois iria embora,


sem problemas...

Nadezda É?

Pavel Claro!... Esse Karl Marx é o máximo pra eles!

Nadezda Tudo bem, filho... Só que aquela figura não combina com nossa
decoração, não achas?

Pavel Mãezinha, se vierem pessoas de um certo nível social, inverte-se o


quadro novamente... Assim não pareceremos vulgares revolucionários,
mas intelectuais... O Smetanic, por exemplo, se por acaso viesse aqui,
julgaria assim...

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Nadezda Pois fica sabendo, meu filho, que o senhor Smetanic virá nos ver de
verdade, ele prometeu!

Pavel Prometeu?

Nadezda Ele disse: “Irei dar uma olhada em seu filho e ver como estão vivendo
nestes tempos...”

Pavel Por que não me disse antes? Rápido, vamos pendurar o “Creio, Senhor,
creio”!

Nadezda E não sabes o melhor: o senhor Smetanic pretende dar a nossa Varvara
como mulher ao filho dele!

Pavel Como esposa?

Nadezda Sim!

Pavel A nossa Varvara ao filho dele?

Nadezda Exatamente!

Pavel Não dá para acreditar, mãezinha... A senhora deve estar delirando...


Como é possível que ele tenha pedido Varvara para seu filho se ele
nunca a viu?

Nadezda E qual é o pecado?

Pavel Sei lá... Até acho que se ele a visse, seria muito pior... Mesmo assim,
não dá para acreditar...

Nadezda Se sou eu que estou dizendo, tens que acreditar!

Pavel Quem diria? Quer dizer que logo seremos parentes do senhor
Smetanic?

Nadezda Devagar com o andor, pensa primeiro no dote!

Pavel Dote? Que dote? A senhora sabe muito bem que estamos
completamente falidos!

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Nadezda Ele não quer dinheiro...

Pavel Não?! O que ele quer, então?

Nadezda Nada.

Pavel Ahn?!

Nadezda Tudo o que ele pede como dote é um comunista!

Pavel O quê?! Um comunista?!

Nadezda Nada mais do que isso...

Pavel E de que jeito, mãezinha, dar como dote um membro do partido?

Nadezda Pegar um na rua, realmente, não é possível... Mas, se for alguém da


família...

Pavel A senhora deve estar mesmo com doença mental! Nós somos
ortodoxos praticantes! Na nossa casa, comunista não entra!

Nadezda Calma, Pavel, ninguém vai ficar sabendo do teu pecado...

Pavel Que pecado?

Nadezda Vais inscrever-te, imediatamente, no partido!

Pavel Eu? No partido?!

Nadezda Tu mesmo, meu filho!

Pavel Que loucura é essa, mãezinha?

Nadezda É preciso, Pavel... Daremos um marido a Varvara! Irei morar com os


Smetanic e terei netos desenvolvidos!

Pavel (bate o prego na parede, com raiva. A parede cai. Escuta-se barulho de
louça caindo do outro lado da parede) Um golpe de martelo!

Nadezda Virgem Maria, destruímos a louça do vizinho!

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(Ivan entra pelo buraco da parede, gritando, com uma caçarola enfiada na cabeça, lambuzado
de arroz-doce)

Ivan Socorro! Socorro! Estou morrendo!

Pavel O que é que aconteceu?

Ivan Ah, então foram vocês? Vocês vão ter que responder por isso. Essa eu
não vou deixar passar... Vou denunciá-los!

Pavel Mas com que direito invades, aos gritos, a casa dos outros?

Ivan E como não gritar, quando tentam afogar um homem n’uma panela de
arroz-doce!

Pavel Se me permite...

Ivan Não permito coisíssima nenhuma!

Varvara (entrando) Que confusão é essa por aqui?

Nadezda Que que há contigo, Ivan Ivanovic? Ficou doido?

Ivan Quantas vezes já lhe disse, Nadezda Petrovna, que sou um homem que
trabalha... E vocês ficam aí batendo prego de propósito na minha
parede?

Pavel Que tua parede?

Ivan Sou solteiro... Não tenho mulher... Me viro sozinho com meu fogareiro
à querosene... Mas, tenho direito de comer como todo mundo, tá
certo?

Nadezda Espero que não tenhas vindo à minha casa para contar a tua vida
íntima... Temos uma moça em casa...

Varvara Qual é, mamãe? Não exageres!

Ivan Só tinha este arroz-doce para comer e vocês derrubaram tudo na


minha cabeça. E eu ainda tenho que ficar quieto? Mas, nunca!

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Nadezda Não vais querer que também nos preocupemos com teu leitinho!

Ivan Claro que não, Nadezda Petrovna! Mas, derrubar a parede na minha
cabeça vocês podem, não é? E se o arroz-doce tivesse me sufocado, e
se eu tivesse morrido, hein, me diga, quem responderia por isso?

Nadezda Imagina se um marmanjo desse tamanho se afogaria no arroz-doce...

Ivan Imagine se a polícia se preocupa em distinguir se um homem pode ou


não morrer afogado no arroz-doce. Não, o assunto não termina aqui,
podem se preparar. Vou denunciá-los!

Nadezda Será preciso chegar a tanto, Ivan Ivanovic?

Varvara Tira esse troço da cabeça, cara... Estás ridículo...

Ivan Nunca! Não vou tirar coisa nenhuma... Se tirar, como vou provar que
ela me caiu de verdade na cabeça?

Pavel (à parte) Michail?

Ivan Isso é o que vocês querem, não é? Mas eu não sou besta não... Vou ao
camarada comissário e lhe digo: Tá aí, companheiro comissário, esta é
uma prova imexível e inconfundível de que foi perturbada a ordem
pública! Pra vocês é uma panela, tá certo?... Pois, pra mim é o corpo
de delito!

Varvara Vais fazer uma linda figura pelas ruas com o corpo de delito na
cabeça...

Ivan Mas, vou mesmo!

Nadezda Pavel, por favor, faz alguma coisa!

Pavel Mãezinha, não vês que ele não tem berço?

Nadezda Dá uma dura nele, Pavel!

Pavel “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás.”

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Ivan Não adianta, Nadezda Petrovna. Não tenho medo de seu filho. Eu,
Nadezda Petrovna, não tenho medo de ninguém no mundo... Eu,
Nadezda Petrovna...

Pavel Cala a boca! Eu sou do partido!

(Todos, a começar por Pavel, se espantam. Ivan, por medo, se dirige para a porta e sai)

Pavel (dramático) Mamazita, yo me voy para Sibéria!

Nadezda Não, Pavel. Por quê partes?

Pavel Porque podem me poner en el paredon!

Varvara No paredão?

Nadezda Nenhuma lei, meu filho, condena à morte um homem pelas coisas que
diz.

Pavel Mas, entenda, mamãe, que não estou inscrito no partido!

Nadezda Mas vais te inscrever!

Pavel Claro, é isso que vou fazer!

Nadezda Graças a Deus! E muito em breve teremos as bodas! Varvara, agradece


ao teu irmão por esse sacrifício!

Varvara (segurando-lhe as mãos) Merci!

Pavel E se não me aceitarem, mamãe?

Nadezda Que é isso, meu filho? Eles aceitam qualquer um!

Pavel Mãe, outro dia, conheci um homem no trem... Parecia um homem


como outro qualquer... Só que ele tem três parentes comunistas...
Estou pensando em convidá-lo a vir a nossa casa... Assim, ele pode
recomendar-me ao partido...

Nadezda Convida, filho, convida o mais depressa possível!

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Pavel Só que tem uma coisa, mamãe, eles não podem saber que tivemos um
armazém...

Nadezda Por quê saberiam? Não saberão!

Pavel Vamos recebe-los com muita diplomacia!

Nadezda Caviar, meu filho... É très chique!

Pavel O quê?! Oferecer caviar aos comunistas?!

Nadezda Mas, Pavel, eles...

Pavel Acorda, mamãe! Esta noite virão aqui proletários e não turistas de
Copenhagem.

Nadezda Entendido, Pavel!

Pavel E se Varvara disser uma palavra sobre Deus ou sobre armazém, juro
que embarco imediatamente para a Sibéria.

Varvara Mas, que marcação!

Pavel É isso mesmo! Por tua culpa, um jovem na flor da idade foi
constrangido a transformar-se em... em um dote!... E ainda ficas aí,
resmungando!

Nadezda Varvara, pede desculpas imediatamente a teu irmão!

Varvara Caretice, mãezinha...

Nadezda Varvara!

Varvara (indo para o irmão) Desculpa!

Pavel Tudo bem. Vou sair!

Nadezda Onde vais, Pavel? Procurar o homem do trem?

Pavel Encontrar o homem, mamãe, encontrar o homem... (pausa) Oh, deus,


tem que dar certo... Iiihhh!

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Nadezda Que houve, meu filho?

Pavel Como podemos convidá-lo, mamãe, se não temos nenhum parente na


classe operária?

Nadezda E o que se vai fazer? Se não tem, não tem...

Pavel E se a gente arranjasse um pobre qualquer conhecido? Varvara não


conhece os operários?

Varvara Empregado, talvez que conheça... Mas, operário, não faz meu gênero...

Nadezda Nastja!... Isso mesmo! Chamemos Nastja! (chamando) Nastja, Nastja!


(ninguém responde) Que menina! Seguramente, deve estar lendo...
Nastja!

Pavel A mamãe esgoelando e ficas aí parada?

Varvara Não posso gritar... O maestro do coro disse que não é uma boa para
uma voz de soprano como a minha!

Nadezda Estás querendo estragar tudo? Ele mandou, grite!

Varvara Nástja!

Nastja (em off) Eh?

Todos Oh!

Nastja (entrando) Eu...

Nadezda Cala a boca quando estou falando! Nasceu perto de cachoeira, é?

Nastja Eu só...

Nadezda E não levante a voz!... (para os filhos) E daí? O que querem com ela?
Por quê a gente a chamou mesmo? Estavas lendo, não é? Eu te pago
pra gastar dinheiro com romances?

Varvara Dá um tempo, mamãe!

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Pavel Gostaria de saber, Nastja, se tens amizade com algum operário...

Nastja Como se atreve? Sou uma moça donzela...

Pavel Não é nada disso, Nastja... Só quero saber se tens conhecimento na


classe operária...

Nastja Uma moça direita não se liga nos operários...

Nadezda Nastja, chega de historinhas românticas...

Nastja Trabalhei em várias casas de família e nunca tive ligação com esse tipo
de gente... A senhora pode tirar informações...

Nadezda Romance, não, Nastja... Quero a realidade!

Nastja Só tenho falado com Ivan Ivanovic... Mas aí é outra coisa... Ele não é
um qualquer... Ele mora com a gente...

Nadezda Ah, é, é?

Nastja Ele me convidou para ir ao quarto dele só para fazer crescer meus
peitos...

Pavel Como é que é?

Nastja Ele só queria fazer massagens para crescer...

Varvara Oh!

Nadezda Nastja, que papelão! Minha filha vai se unir em legítimo e sagrado
matrimônio e fazes essas porcarias em minha casa? Eu te pago pra
ficar por aí galinhando?

Varvara Mamãe, calma, qual é?... Acho uma experiência válida... Diz aí, Nastja,
e cresce mesmo?

Nastja Ele me garantiu...

Varvara E como é que é?

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Nastja Ainda não sei... Só ficou na proposta... Ele estava vendo uma foto
minha e achou que o busto era muito pequeno... Daí ele olhou bem
pra mim e disse: “Por você, Anastácia Nikolaiev, vou fazer eles
crescerem.”

Varvara E ficou nisso?

Nadezda Então é assim? Direto pra cozinha! (Nastja sai) Parece uma santinha!
Me deixou nervosa, arrepiada!

Varvara Controla-te os hormônios, mamãe!

Pavel E os parentes? Como vamos resolver esse problema?

Varvara Parentes?

Nadezda Temos que ter parentes operários!

Varvara Operários?

Pavel Varvara, é um ultimato... Se não encontrares esses parentes, não sairás


nunca da tua condição de titia solteirona...

Varvara E queres que eu faça o quê?

Pavel Problema teu! Outra coisa: esse nosso co-habitante que faz crescer
peitos de empregada, deve arrumar as coisas e sumir daqui... Fora com
ele!

Varvara E sobrou pra mim convencer esse panaca?

Pavel Não vais fazer isso?

Varvara Claro que não!

Pavel Então, só me resta dizer: Boa noite e bênção, titia! (Pavel sai)

Nadezda Dá um jeito, Varvara, e descobre logo esses tais parentes operários...

Varvara Tudo eu, mamãe?

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Nadezda É para tua felicidade! Ou pensas que no mundo, além de ti, não
existem outras solteironas?

Varvara Tá bem, mamãe... Vou nessa atrás dos parentes... Só não sei como é
que se faz pra botar o massagista pra correr...

Nadezda Vamos botá-lo pra fora com barulho, Varvara!

Varvara Com barulho?

Nadezda Esse camarada, Ivan Ivanovic, não suporta barulho... Portanto, zoeira
nele...

Varvara Que zoeira, mamãe?

Nadezda Vale tudo... Guerra é guerra... Jogos, música, gritos... Ah, porque não
canta alguma coisa, filhoca? Bem alto?

Varvara Qual é a tua mamãe?... Só canto numa boa... Mamãe, ele é loiro?

Nadezda Quem?

Varvara O filho do Smetanic.

Nadezda Não, ele é moreno.

Varvara Que pena!

Nadezda Vais viver com o homem ou com os cabelos dele?

Varvara E o nome dele?

Nadezda Valerian! Valerian Olimpovic Smetanic!

Varvara Valerian... Me lembra um pouco o remédio...

Nadezda É um belo rapaz... E o pai... Aquele sim é um pai! Filha, aquele homem,
desde o primeiro dia da revolução vem perdendo todo o seu
patrimônio, mas continua altivo, imponente! É incrível como existam
ainda homens desta cepa! Para pessoas como essa, é preciso levantar
monumentos!

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Varvara Pra quê? Pra um dia outros botarem abaixo! (pausa) Ah, mamãe, acho
que eu vou até o cabeleireiro!

Nadezda Pra quê?

Varvara Pra dar um trato no visual... Depois botar uns perfuminhos... Um


cheirinho...

Nadezda Vai, filha, vai...

Varvara Não espalhes por aí, mamãe... Quero que pensem que o cheirinho é
natural... (sai)

Nadezda Virgem Maria, mas que vida é essa? O mundo está todo mudado! Que
que está acontecendo com as pessoas?... Moças solteiras põem filhos
no mundo... Isso quando não usam drogas! Não há mais respeito... Os
homens nos ônibus não cedem mais os seus lugares... Não só os
homens de bem, até os pretos... Que saudades dos bons tempos! E o
que fizeram da igreja, Virgem Maria? Agora, cada fiel tem que pagar
por oração e, ainda, tem que enfrentar filas e filas... Segundo eles,
devo abandonar tudo o que tenho e terminar na humildade... Pode?
Até o mais fervoroso fiel gostaria de rezar um pouco de graça!
(enquanto faz o monólogo, Nadezda põe sobre a mesa uma toalha
limpa e, sobre esta, um gramofone. Ao lado do gramofone, duas velas.
Põe um disco e se ajoelha. No gramofone, uma missa) “Em verdade,
em verdade vos digo: em cada respirada, dê graças ao Senhor...
Senhor, Senhor, tenha piedade desta pobre pecadora”... (entra Nastja)

Nastja Senhora!

Nadezda Droga! Não vês que estou rezando? Por que me interrompes?

Nastja Tem aí uma mulher perguntando pela senhora...

Nadezda Que mulher?

Nastja Não conheço... É essa aí... (entra Tamara Leopoldovna, arrastando um


baú)

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Nadezda Tamara Leopoldovna! És tu? Entre!... Ah, como estou contente em te


ver, Tamara Leopoldovna! Nastja, arrume a mesa... Por que não vieste
mais me ver, Tamara Leopoldovna?

(Nastja desliga o gramofone)

Tamara Ah, não me perguntes nada, Nadezda Petrovna!

Nadezda Não entendo, Tamara Leopoldovna!

Tamara É simplesmente terrível, Nadezda Petrovna!

Nadezda Assim me assustas, Tamara Leopoldovna!

Tamara Nadezda Petrovna, está tudo perdido!

Nadezda Acomoda-te, Tamara Leopoldovna!... Aí não, aí não... No sofazinho...


Espere, a almofada...

Tamara Não tem importância...

Nadezda E a saúde, a saúde como vai, Tamara Leopoldovna?

Tamara Ah, estou arrasada. Não estás vendo?

Nadezda Virgem Maria, que desgraça te aconteceu?

Tamara Um pesadelo, um pesadelo... Imagina só, Nadezda Petrovna, que hoje


virão fazer uma revista em minha casa!

Nadezda Uma revista?! Ah, Virgem Maria, estão possuídos pelo demônio...
Como é possível, Tamara Leopoldovna, fazer uma afronta dessa a uma
senhora de tão alta e nobre estirpe?

Tamara Acreditas, Nadezda Petrovna, que os camponeses tenham as mínimas


condições de julgar senhoras como eu?

Nadezda E por que esses biltres te perseguem?

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Tamara Mas, como és ingênua, Nadezda Petrovna! Como, por que?... Para ti, é
preciso haver razão para tudo o que vem acontecendo nos últimos
tempos?

Nadezda Nem me fales, Tamara Leopoldovna, onde é que vamos parar?

Tamara Um país tão grande e, de repente, inventam uma revolução! E ainda


criam uma situação embaraçosa diante das outras grandes potências!
Será que acreditam que um povo ignorante como o nosso possa
entender certas ideias? Ainda não estamos maduros!... Sabes, Nadezda
Petrovna, meu marido sempre diz: “se essa revolução acontecesse
daqui a cem anos”, ele aceitaria!

Nadezda Ele tem razão! E quais são tuas intenções, Tamara Leopoldovna?

Tamara Preciso de um favor teu, Nadezda Petrovna... Não sei se seria


possível...

Nadezda Qualquer favor, Tamara Leopoldovna!... Nos bons tempos, eras uma
de nossas melhores freguesas!

Tamara Bem... Preciso guardar este baú em tua casa!

Nadezda Aqui? Na minha casa?

Tamara E não se trata de um baú qualquer... É muito perigoso!

Nadezda Perigoso?!

Tamara Dá uma olhada. (abre o baú)

Nadezda Um vestido? Cheguei a pensar que fosse uma bomba!

Tamara Se soubesses de quem é este vestido, Nadezda Petrovna...

Nadezda De quem, Tamara Leopoldovna?

Tamara Nadezda Petrovna, este vestido... Feche a porta!

Nadezda (fechando e conferindo) Já está fechada!

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Tamara Este vestido é de Alekssandra Fjodorovna!

Nadezda Alekssandra Fjodorovna?

Tamara Da Czarina Alekssandra Fjodorovna, Nadezda Petrovna!

Nadezda Da Czarina?!... Oh, Tamara Leopoldovna!

Tamara Sim, Nadezda Petrovna!... Deves lembrar que, tempos atrás, o meu
marido tinha um filho que vivia em Petersburgo... Deves lembrar,
ainda, que a filha mais velha da dona da casa do filho da tia do meu
marido teve, desde o batismo, uma autêntica educação alemã. Quando
veio essa revolução catastrófica, toda essa gente se propôs a salvar a
Rússia. Por sua conta, a Fraulen de sua Alteza, madrinha da filha da
dona da casa do filho da tia de meu marido, se empenhou em salvar
este vestido... Mas, visto que a revolução tomava conta de tudo, a
dona da casa do filho da tia do meu marido recebeu este vestido da
Fraulen para salvá-lo. Depois, o filho da tia do meu marido ganhou da
dona da casa... A tia do meu marido, de seu filho, e, por fim, o meu
marido de sua tia. Dá pra entender, agora, que se descobrem este
vestido em minha casa, será o nosso fim!

Nadezda Este vestido é muito perigoso! Seria melhor jogá-lo fora, Tamara
Leopoldovna!

Tamara Estás louca, Nadezda Petrovna?... Será que não entendestes que neste
baú está guardado tudo aquilo que restou da Rússia na Rússia? E quem
mais, hoje, poderá salvar a Rússia a não ser tu e eu, Nadezda
Petrovna?

Nadezda Isto é verdade, Tamara Leopoldovna!

Tamara E depois, mais dia, menos dia, os bons tempos estarão de volta... E,
pelo que eu fiz, poderão me premiar.

Nadezda Premiar? De que modo?

Tamara Sei lá... Com a cruz de qualquer coisa, por exemplo! Ou, quem sabe,
até uma aposentadoria!

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Nadezda Uma aposentadoria? Oh, Tamara Leopoldovna, não te esqueças de


garantir a minha parte!

Tamara Apesar dos boatos que poderão surgir, dos perigos iminentes, me
entregarei inteiramente...

Nadezda E eu por ti, Tamara Leopoldovna!

Tamara Não por mim... Mas, pela Rússia!

Nadezda E os bons tempos quando estarão de volta!

Tamara Ainda esta manhã, meu marido me falou: “Tamaroca, dá uma olhada
por trás da cortina da janela e verifique se terminou o poder
soviético”. Não, disse eu, parece que ainda continua... “Bem, – disse
ele – fecha a cortina, vejamos amanhã”.

Nadezda E quando será este amanhã?

Tamara Paciência, Nadezda Petrovna, paciência... Por precaução, guarda isto!


(tira da bolsa uma pistola)

Nadezda Virgem Maria, uma pistola!

Tamara Não fiques assustada, Nadezda Petrovna!

Nadezda E se isso dispara?

Tamara Se não apertar o gatilho, Nadezda Petrovna, não dispara... Agora,


estarei segura quanto à guarda do vestido... Guarda-o e confia em
Deus!

Nadezda Fica tranquila, Tamara Leopoldovna! Ainda há na Rússia pessoas, como


eu, em que se possa confiar, além de Deus!

Tamara Que coisa linda, Nadezda Petrovna! Agora, devo partir. Segredo,
hein?... Não digas nada a ninguém!

Nadezda Eu sou um túmulo, Tamara Leopoldovna... Deus te guarde! (Tamara


sai) Virgem Maria, Virgem Maria! Que mundo perigoso! Virou um

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inferno! Só nos resta pedir proteção! Rezar, rezar, rezar! (põe o disco
no gramofone e começa a rezar) Escutai, Senhor, tende misericórdia...
(disco errado, começa a tocar o tema de Lara) Virgem Maria, errei o
disco!

(Blackout. Foco em Nastja que lê um livro).

Nastja “Meu nobre, gritou a princesa, estás ultrapassando todos os limites”...


“princesa”, gritou o lorde, “eis a minha espada, apunhala-me”... Mas,
porque é tão desesperado este lorde?... Não consigo entende-lo.
“Infeliz – retrucou a princesa – tu ainda me amas?”, “Duvidas? – gritou
o lorde – Amo-te como os passarinhos amam a liberdade”. Mas, como
é simpático este lorde, muito simpático... “E, agora – gritou a princesa
– eu arranco a máscara da hipocrisia”... E suas bocas se uniram no
êxtase. Jesus, que vida linda!... E uma vida como esta foi jogada fora!...
Ah, se o nosso governo conhecesse uma vida como a da princesa, não
teria inventado essa revolução... “Mas, o amor é como uma miragem e
no quarto entra o príncipe”... Ih, agora a coisa vai engrossar... Esse
príncipe é um boca dura... Já vai logo ofendendo.

(Entra Ivan. Nastja não o percebe)

Nastja “Porco, o que estás fazendo neste quarto?”

Ivan Por que me tratas assim, Anastácia Nikolaevna?

Nastja “Suíno! Tramando nas minhas costas e sujando a minha honra?”

Ivan Que que é isso, Nastja? Tá me estranhando?

Nastja Ah, Ivan Ivanovic?!

Ivan Acredite, Anastácia Nikolaevna, a honra de uma mulher, pra mim, é


coisa séria... Sinto uma necessidade de encontrar conforto em uma
alma feminina!

Nastja O que você quer dizer com isso?

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Ivan Vê se entende, Anastácia Nikolaevna... Sou solteiro... Não tenho


ninguém que cuide da minha roupa... E você é uma mulher
maravilhosa que poderá fazer um homem esquecer os problemas...

Nastja Sou, ainda, uma menina, Ivan Ivanovic. Não consigo entender...

Ivan Esquece meus bigodes, Anastácia Nikolaevna, de alma sou uma


verdadeira criança...

Nastja O bigode é um dom de Deus, Ivan Ivanovic... Só que o seu está um


pouco antigo...

Ivan Você acha?

Nastja Em vez de caído pra baixo, deveria virar ele pra cima... Ficaria mais
elegante...

Ivan O bigode masculino precisa do carinho feminino... Se não, eles crescem


como bem entendem... Vira ele com as suas mãozinhas, para o lado
que quiser...

Nastja Que isso, Ivan Ivanovic! Não vai dá, não!

Ivan Claro que dá!

Nastja É claro que não!

Ivan Ah, Anastácia Nikolaevna, tente pelo menos...

Nastja Tá bem, Ivan Ivanovic... Mas, não vá ficar pensando...

Ivan Não vou pensar em nada, Anastácia Nikolaevna...

Nastja Então, com licença... Nossa, que pêlos mais rebeldes... Deve ser de
nascença...

Ivan Molha um pouquinho, Anastácia Nikolaevna...

Nastja Que jeito?

Ivan Com os lábios...

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Nastja Hum...

Ivan Pode crer, Anastácia Nikolaevna, pelos pêlos do meu bigode, você
penetrou meu coração...

Nastja “Meu lorde, estás ultrapassando os limites!”

Ivan Perdoa-me, Anastácia Nikolaevna, foi uma loucura incontrolável... Amo


tanto você que me dá medo! Se quiser ser minha para sempre, estou
pronto!

Nastja A gente se conhece tão pouco... Como saberei se não está mentindo?

Ivan Alguma coisa contra o meu aspecto?

Nastja Oh, não... Até que você tem um jeitão bem...

Ivan E minha maneira de vestir? Que tal minha gravata?

Nastja Bonitinha... Mas, está suja de arroz...

Ivan Arroz?

Nastja É arroz-doce...

Ivan Ah, suíno!

Nastja Gritou o lorde!

Ivan O quê?!

Nastja Nada, nada... De quem você está falando?

Ivan Como de quem? De Pavel Sergueivic, claro! Ah, me fala uma coisa:
quando Pavel se inscreveu no partido?

Nastja Ele não se inscreveu em partido nenhum,, Ivan Ivanovic!

Ivan Como não se inscreveu?

Nastja Simples: não se inscreveu...

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Ivan Ah, ah... Não se inscreveu?... Cadê o arroz-doce que estava na gravata?

Nastja Joguei fora, Ivan Ivanovic...

Ivan Mas onde? (procurando)

Nastja Não exagere, Ivan Ivanovic... Comer arroz do chão pode fazer mal...

Ivan Por favor, ache ele pra mim... Já volto! (Ivan sai)

Nastja Esquisito... Tanta delicadeza, de repente o arroz... (procurando no


chão) Ah, achei... Destruir um sonho por um grão de arroz,
nunca!...Casar com um homem como Ivan Ivanovic pode ser uma coisa
até interessante.

(Entra Ivan com a caçarola na cabeça)

Ivan Então, achou o arroz?

Nastja Jesus, Ivan Ivanovic, pra que esta caçarola aí?

Ivan Não diga nada a ninguém que fui eu que coloquei... Eles devem pensar
que não tirei ela da cabeça...

Nastja Não tirou? É a nova moda, é?

Ivan Sei o que estou fazendo... Cadê o grão de arroz?

Nastja Tá sujo, Ivan Ivanovic...

Ivan Quanto mais sujo, melhor, Anastácia Nikolaevna... O tribunal precisa


saber direitinho como os ex-donos desta casa querem humilhar as
pessoas que trabalham!

Nastja Onde é que cê vai com isso aí, Ivan Ivanovic?

Ivan À polícia! (sai)

Nastja Foi embora, meu príncipe... Enfeitado daquele jeito acho que não vai
agradar ninguém... (sai)

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(Entra Varvara acompanhada de três músicos)

Varvara Por aqui, por aqui... Bem de frente para esta parede! Agora, som para
estourar o mundo... Bem alto!

(Os músicos ficam olhando para ela, parados)

Varvara Como é que é?

Tocador 1 Pra mim, tanto faz como fez, mas seria uma boa tocar lá fora... Podem
escutar pela janela...

Varvara O quê?

Tocador 1 Não sou de criar caso, senhorita, mas a gente se sai melhor ao ar
livre...

Varvara Estás querendo complicar as coisas?... E o combinado?

Tocador 1 Seguinte, mademoiselle, pensei que fosse alguma festa, tá


entendendo? Tocar assim pra casa vazia...

Varvara Não ficou claro que o negócio é botar uma pessoa para fora daqui?

Tocador 1 (para os músicos) Tá todo mundo doido... Esse novo regime tá


balançando essa gente... A senhorita me parece meio fora de si...

Varvara Quem está por fora aqui é o inquilino... E a gente quer que ele
desocupe...

Tocador 2 Ah, o inquilino... Mas, tem seus direitos... Por que querem se livrar
dele?

Varvara Porque é um picareta... Safado... Com ele aqui, vou ficar solteirona
para o resto da vida!

Tocador 3 Não tô entendendo...

Varvara É o seguinte: o meu irmão, Pavel Sergueivic, deu-me um ultimato esta


manhã... Se eu não botar esse inquilino pra fora de casa, nunca sairei
da condição de titia... Entenderam, agora?... Então, música maestro!

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Tocador 1 Ah, e que gênero preferes, senhorita?

Varvara Qualquer um, qualquer coisa... Só que tem que ser no último volume!

(Os músicos começam a tocar. Varvara canta. Nastja entra como um raio)

Nastja Oh, Deus seja louvado!

Varvara Que isso?

Nastja Temia pela senhorita, Varvara Sergueivna!

Varvara Estás louca?

Nastja Não... Ouvi lá da cozinha e pensei comigo: Quem estará gozando


minha patroinha, estrilando com essa voz tão ardida... Então, eu...

Varvara Esta voz é minha! E tu és uma estúpida?

Nastja Me desculpa... Nessa bagunça...

Varvara Chega! Cala essa boca e dança!

Nastja O quê?

Varvara Dança! É uma ordem!

Nastja Mas, senhorita, dançar não faz parte do meu trabalho!

Varvara Como não faz parte? Estás contratada para todos os serviços, não
discuta. Dança, dança. Músicos, mais forte! Nastja bata os pés no chão
como um potro. (um tempo de música e dança) Oh, meu Deus!... Um
momento, um momento! Dá um tempo aí!... Nastja, vem aqui... Dá
uma cheiradinha...

Nastja Não sou disso, patroa...

Varvara Um cheiradinha em mim... Estou perfumada?

Nastja Hum... Um pouquinho, sim...

Varvara Ainda bem... Tenho que ficar cheirosinha para Valerian Olimpovic...

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Tocador 1 Depois desse pique, senhorita, espero que seu inquilino já esteja
fazendo as malas...

Nastja Quem está fazendo as malas?

Varvara Ora, quem, Ivan Ivanovic!

Nastja Ivan Ivanovic? Ele não tá aí!

Varvara E onde ele foi?

Nastja Saiu correndo com uma caçarola na cabeça!

Varvara Como?!

Nastja Vai ver que já está internado em algum lugar!

Varvara E tudo isso, pra nada!

Tocador 1 Não. Quer dizer, sim. A senhorita pode ter se esgoelado por nada, mas
o nosso trampo tem preço, como foi combinado...

Varvara Espera aí! Que que tu és na vida?

Tocador 1 Quem sou eu? Sou um artista do povo!

Varvara De que classe provéns?

Tocador 1 Da segunda série da escolinha da paróquia!

Varvara Não é nada disso. Tu és da classe operária?

Tocador 1 Não. Sou do mundo da arte, apesar de tocar de orelha!

Varvara Que pena!

Tocador 2 Não vejo muita diferença...

Varvara Pro meu irmão é muito diferente... Ih, por falar nele, ainda tenho que
encontrar os parentes operários.

Tocador 3 Parentes operários?

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Varvara Isso aí... Meu irmão precisa, urgentemente, de ter parentes na classe
operária... Daí pensei que os senhores...

Tocador 1 É o caso da gente pensar... Pagando bem, que mal tem?

Varvara Serão convidados para um jantar... Caviar... Doces... Coisas que a classe
operária não conhece nem o cheiro.

Tocador 1 A gente topa isso pro corpo. E o que vai rolar para o espírito?

Varvara Como para o espírito?

Tocador 2 Pra beber... O que é que vai pintar?

Varvara Ah, vinhos finíssimos!

Tocador 1 Mas que cabeça a minha... É brincadeira!

Varvara Que brincadeira?

Tocador 1 A gente se esquecendo que veio da classe operária...

Varvara A coisa é séria, hein...

Tocador De quantos parentes precisa nesta festa?

Varvara Hum, creio que três... Um parente para cada comunista convidado.

Tocador 1 Então, fechado: uma garrafa por parente!

Varvara Posso esperá-los?

Tocador 1 Pontualmente!

Varvara Nastja, acompanha os músicos e acha por aí três garrafas de vinhos...


Anda, vai...

Nastja Sim, senhorita... (sai com os músicos)

Varvara Que mais que falta agora: inquilino, parentes... Esta vida está ficando
um saco! (Varvara está mirando-se no espelho. Entra Pavel)

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Pavel Varka, pra quê esta careta horrível?

Varvara Que careta? Estou sorrindo!

Pavel Se sorrires desse jeito, esta noite, na frente dos convidados, eu te


renego!

Varvara Sem essa, mano!

Pavel Não duvides... E mais, te ponho a ridículo!

Varvara Que pressão, cara!

Pavel Direi que não és minha irmã, mas... minha tia!

Varvara Ah, é assim... E eu que te encontrei... Parente...

Pavel Encontrou? É um operário?

Varvara Três! Três operários!

Pavel Trabalham em quê?

Varvara Trabalho manual. E os comunistas, vêm?

Pavel Claro. O homem do trem prometeu que os trará!

Varvara Quer dizer que estás assim com os homens?

Pavel Já sou de casa... Olha, já comprei até a carteirinha... Só falta a ficha de


inscrição...

Varvara Só com a carteirinha já dá pra furar muitos lugares...

Pavel Isso mesmo, Varvara... Já me sinto outro... Varvara, sabes o que é


P.C.R.?

Varvara Não tenho a menor ideia...

Pavel Conversando, o homem me disse: “Ora, disse ele, qualquer cretino


sabe o que significa P.C.R.”...

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Varvara E tu sabes, mano?

Pavel Bem... sobre o ponto de vista extremamente pessoal é bem provável


que saiba; mas são tantos os afazeres de um homem do partido que
até pode esquecer!

Varvara Pavel, aquilo ali é um baú?

Pavel Onde?

Varvara Ali.

Pavel É mesmo... É um baú...

Varvara Que estranho! Que será que tem dentro?

Pavel Abre pra ver!

Varvara Está com cadeado, Pavel...

Pavel Que esquisito... Não vejo razões pra mamãe trancar um baú com
cadeado, já que não temos mais nada de valor.

Varvara É um cadeado bem frágil... Vamos abri-lo?

Pavel Espera. E se mamãe achar ruim?

Varvara Não vai ter bronca, não... Está tudo em família... E se tiver que sobrar
pra alguém, seja pra Nastja.

Pavel Bem lembrado... Afinal, todas as empregadas são ladras, porque que a
nossa também não pode ser... Ela deve ser também uma ladrona...

Varvara Ladrona, Pavel?

Pavel O mundo está cheio de gente desonesta... Não se pode confiar em


ninguém...

(Os dois estão forçando o cadeado. Estão atrás do baú. Entra Nadezda. Não tem visão para
reconhece-los)

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Nadezda Virgem Maria, estão roubando o vestido da Czarina! A pistola, a


pistola! Onde foi que guardei a pistola? (encontra a pistola, engatilha e
fecha os olhos) Parem ou eu atiro!

Varvara Socorro, é um assalto!

Pavel Varvara, esconda-se aqui!

(Agacham-se atrás do baú)

Nadezda Será um ladrão bolchevista?

Pavel Camarada!

Nadezda Virgem Maria, são bolchevistas! Vou atirar! (atira)

Pavel Será que ainda estou vivo?

Varvara Acho que sim...

Nadezda Esses militantes vão acabar comigo!

Pavel Atenção, camarada! Somos jovens, ainda na flor da idade!

Nadezda Foi Tamara Leopoldovna que guardou o vestido no baú! Eu não tenho
nada com isso... Foi ela!

Pavel A gente quer dizer uma coisa...

Nadezda É melhor dizerem logo: são bolchevistas ou ladrões?

Pavel Somos apartidários, companheiro, da terceira corporação mercante...

Nadezda Oh, Deo gratias! São ladrões! Socorro, estou sendo roubada!

Varvara Fica frio, é a mamãe!

Pavel Mamãe!

Nadezda Parem ou disparo!

Pavel O que está acontecendo, mamãe? Sou eu, Pavel!

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Nadezda Meu filho?

Varvara Ele mesmo!

Pavel A senhora não está vendo?

Nadezda Como, se estou com os olhos fechados?

Pavel Arregala logo esses olhos, antes que aconteça uma desgraça!

Nadezda Não consigo abrir os olhos, Pavel... Só de pensar que a pistola pode
disparar a qualquer momento!

Pavel Vira essa pistola pra lá, mamãe... Aponta para o teu lado ou acabas me
acertando nas costas...

Nadezda Virgem Maria, sinto que vai disparar, já, já...

Pavel Mamãezinha, estás querendo o quê? Uma guerra civil dentro de casa?

(Nadezda consegue deixar a pistola sobre a cadeira)

Varvara Mãezinha, onde fostes arrumar essa pistola?

Nadezda Foi a Tamara Leopoldovna... Ela me trouxe.

Pavel E por quê?

Nadezda Para proteger o vestido, meu filho!

Varvara Vestido?

Pavel Que vestido?

Nadezda Um vestido, filhos, que antes da revolução abrigou todo o estado


russo!

Pavel E onde está?

Nadezda Naquele baú ali!

Pavel E como veio parar aqui?

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Nadezda É uma história muito longa!

Varvara E de quem é este vestido, mamãe?

Nadezda Antes de mais nada, jurai, perante Deus, que não direis nada a
ninguém!

Varvara Já jurei, pronto!

Nadezda E tu, Pavel?

Pavel Não posso mais jurar por Deus, mamãe... Agora temos a ditadura do
proletariado...

Nadezda Jura, Pavel, o proletariado não saberá.

Pavel Juro que não falarei.

Nadezda Este vestido, queridos filhos, era da soberana, a imperatriz Alekssandra


Fjodorovna!

Varvara Oh, que maravilha!

Pavel Vais me desculpar, mamãe, conta outra história!

Nadezda É a pura verdade. Juro diante de Deus!

Pavel Mãezinha, este vestido está novíssimo!

Varvara Só nas axilas está um pouquinho...

Nadezda Mas, é suor imperial, filha!

Varvara Muito agito, talvez!

Nadezda O que estás dizendo? Uma imperatriz? Muita reza!

Varvara Que raça desta costureira... Nos dias de hoje, fazer um vestido para a
imperatriz!

Pavel Deixa de ser cretina, Varvara... Achas que uma rainha faria um vestido
em qualquer costureira?

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Varvara E quem faria, então?

Pavel No mínimo, a mulher de um general!

Varvara Como gostaria de ver esse vestido desfilando!

Pavel Não sobrou mulher na Rússia para usar este vestido!

Varvara Posso dar uma voltinha?

Nadezda Que sacrilégio, filha! Podes até ser condenada por isso!

Varvara Então, vamos usar a Nastja... (sai com o vestido)

Pavel Só essa que faltava, vestido de uma imperatriz... Quem foi que
inventou essa?

Nadezda Pois fica sabendo de uma coisa, meu filho, Tamara Leopoldovna me
prometeu uma pensão!

Pavel Uma pensão em troca de quê?

Nadezda Da salvação da Rússia!

Pavel É demais! Achas que os comunistas vão te permitir salvar a Rússia!

Nadezda Pro inferno, os comunistas! Ninguém irá consulta-los quando os


franceses, mais dias, menos dias, trouxerem em triunfo o Czar de volta
à Rússia!

Pavel O Czar de volta, mãezinha?

Nadezda Nem que tenhamos que fazer um plebiscito!

Pavel Sabes o que está dizendo, mãezinha?... Se o Czar retomar o poder,


serei retalhado sem tempo pra dizer “A”... Como fazê-los entender que
eu não era um comunista, mas sim um simples dote?

Nadezda E a minha pensão, filho?

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Pavel De quê adiantará a sua pensão se eu estiver no cemitério? Acho


melhor, mamãe, eu não entrar para o partido.

Nadezda Bravo, Pavel, e que dote daremos à tua irmã?

Pavel Mas, o velho regime condena à morte quem aderir ao novo regime!

Nadezda Nunca me condenarão se exibir o vestido da imperatriz!

Pavel Se me encontrarem com o vestido da imperatriz, o novo regime me


bota no paredão!

Nadezda Como poderão condenar-te se estás inscrito no partido?

Pavel Então, me garantes que estou seguro em qualquer regime?

(Entra Varvara, agitadíssima)

Varvara Mamãe, mamãe! O vestido caiu em cima! Nastja está na medida!

Nadezda Onde está ela? Quero vê-la!

Varvara Está chegando!

Pavel Meu Deus, e se entrasse na verdade a imperatriz? Como deveria


saudá-la? Dizendo “salve”, ou seria “Meus respeitos”?

Nadezda Mas que “salve”, que “meus respeitos”? A uma imperatriz se diz
“urrah”!

Nastja (em off) Posso entrar?

Pavel Que loucura! Sei que é uma empregada e mesmo assim me sinto
intimidado!

(Entra Nastja com o vestido e um leque)

Todos Urrah! Vossa Majestade!

Nadezda Que impressionante! Parece ela mesma!

Varvara Estou viajando... É o maior barato, mamãe!

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Pavel Cara Nastja, joia preciosa, anda por toda a sala!

Varvara Ah, Nastja, caminha com mais graça... Desliza...

Pavel Vamos, Nastja, imponente...

(Nastja vai imitando)

Nadezda Parece ela! É incrível, parece realmente!

Pavel Perfeito, Nastja, perfeito...

Varvara Pavel, ela merece sentar no trono!

Pavel Senta-te, Alteza!

(Ela senta na cadeira onde está a pistola)

Nadezda Parece ela! Parece ela!

Nastja Mas, o que é isso que tem aqui embaixo?

Pavel O trono, Vossa Alteza!

Nadezda Oh, meu Deus!

Todos O que aconteceu?

Nastja O que aconteceu, senhora?

Nadezda Nastja, não te movas, por Jesus Cristo, não te movas... Estás sentada
sobre uma pistola engatilhada.

Nastja Sobre uma pistola, meu Deus! Eu vou morrer!

Nadezda Nastja, não grites!

Pavel Fica imóvel... Até agora não morreu ninguém!

Nadezda Se fizeres um mínimo de movimento, ela dispara!

Nastja Jesus, Maria, José, estou frita!

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Nadezda Não tremas, Nastja, não tremas, Nastja, ou vamos parar todos na
cadeia!

Pavel Tudo por tua culpa, mamãe!

Nadezda Minha não, meu caro! Culpa de tua irmã... “Ela merece sentar no
trono”... Ela merece, ela merece e olha aí no que deu!

Nastja Oh, meu Deus, misericórdia!

(Toca a campainha)

Nadezda Virgem Santa, estão tocando!

Varvara Será o senhor Smetanic?

Nadezda Valei-me todos os santos! Que vamos fazer?

Pavel Nastja, querida, coraçãozinho, nós te colocaremos uma almofada sob


os pés... Levanta lentamente... Pode ser que o tiro só te arranhe...

Nastja Podem me ameaçar com outra pistola, daqui não saio, daqui ninguém
me tira!

(Toca a campainha novamente)

Nadezda Virgem Maria, estão insistindo!

Pavel O que faremos, mamãe?

Nadezda Cobre-a com um tapete... Eu vou abrir. (sai)

Pavel Varvara, pega um tapete, rápido!

(Varvara sai, volta com um tapete. Pavel fica distraindo Nastja)

Pavel Temos que cobri-la... Escondê-la... Puxa o teu lado...

Nastja Estão me sufocando!

Varvara Sufoca, mas fica na tua! Durinha!

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(Entram Nadezda, Olimpic e seu filho Valerian)

Olimpic Nadezda Petrovna, tens sala de jantar!

Nadezda Sim, Olimpic Valerianovic. Esta é minha filha, a minha pequena


Varvara!

Olimpic Sensibilizado em conhecer-te, senhorita!

Varvara (à parte) Que figura!

Olimpic Valerian!

Valerian Eu, papai!

Olimpic Te apresento Varvara Sergueivna!

Valerian Encantadíssimo!

Varvara (à parte) Outro idiota, mais besta ainda!

Nadezda E este é meu Pavel, jovem expoente do partido!

Olimpic Ah, então já és militante, jovenzinho? E quando te inscreveste?

Pavel Sim, justamente... No fim de 1905, me apresentei... Atendi, como


dizer, uma vocação e estava absolutamente de acordo com o que dizia
nosso amado mestre Engels...

Olimpic E o que dizia esse senhor?

Pavel Bem, quer dizer, disse tanta coisa que é difícil me lembrar de tudo!

Olimpic Meu rapaz, que te levou a inscrever-te no partido?... Por convicção ou


então...

Pavel Não sei, não... Minha mãe sabe!

Nadezda Oh, para nós, dá no mesmo, Olimpic Valerianovic... Como for melhor
para ti...

Olimpic Naturalmente, tens um “cartucho” lá dentro, não tens jovem?

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Pavel Um cartucho?

Olimpic Um protetor... Como direi... Algum superior influente!... E


complacente!

Pavel Complacente?

Olimpic Alguém da chefia, mais íntimo... Assim, da casa...

Varvara Claro! Ele é assim com os homens!

Nadezda Nós conhecemos muito o homem!

Olimpic E quem é esse homem?

Nadezda Um homem muito famoso, Olimpic Valerianovic... Parece um homem


normal, mas tem três parentes comunistas!

Pavel Isso mesmo! E, hoje, são nossos convidados!

Olimpic Eles vêm aqui? Valerian!

Valerian Sim, papai!

Olimpic Coloca o botton do Agitprop!... E o conserva com convicção!

Valerian O distintivo eu tenho, mas a convicção, não. Sou anarquista!

Olimpic Os jovens de nossa classe, Nadezda Petrovna, não têm preconceitos...


Mas, diz-me, Nadezda Petrovna, porque aquele tapete sobre a
cadeira?

Nadezda Não toques, Olimpic Valerianovic, te suplico! Está muito sujo e...
Vamos para outra sala, Olimpic Valerianovic...

Olimpic Valerian!

Valerian Sim, papai!

Olimpic Fica conversando com Varvara Sergueivna. Já volto. Vamos, Nadezda


Petrovna... (à Pavel) Por favor, Pavel Sergueivic!

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Pavel Com todo respeito, depois do senhor!

(Saem)

(Um tempo)

Valerian Senhorita, tocas piano?

Varvara Até hoje, não tive sa... oportunidade...

Valerian Tens notado, senhorita, as mudanças feitas pelo poder soviético no


campo das artes?

Varvara Desculpa-me... Mas, estou por fora...

Valerian Imagina que eles igualaram, no mesmo nível, os pintores e os


ferroviários!

Varvara Como é que é?

Valerian No mesmo nível de moradia, quis dizer...

(Nastja se mexe e suspira)

Valerian Disseste alguma coisa, Varvara Sergueivna?

Varvara Nada, Valerian Olimpovic. Estou só te ouvindo!

Valerian E sobre a teoria da relatividade, o que pensas? Conheces Einstein?

Varvara Não. Mas, meu irmão conhece... Ouvi um papo aí que a teoria dele tem
feito o maior sucesso na cinematografia...

Valerian Einstein, no cinema?

Varvara É isso aí... Fizeram um filme que fala de um encouraçado... Acho que é
por aí...

(Nastja, resfolega)

Valerian Quem está resfolegando?

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Varvara Valerian Olimpovic!

Valerian Sim?

Varvara Eu... eu gostaria de dizer...

Valerian O quê?

Varvara Quer dizer... Eu queria te pedir...

Valerian Fala!

Varvara Oh, meu Deus... Queria perguntar... Não usas pince-nez?

Valerian Não.

Varvara Ah, que pena! Eu acho bárbaro homem de pince-nez!

Valerian Ouvi novamente um sussurro!

Varvara É?!... Sou eu!

Valerian Tu?

Varvara Valerian Olimpovic, passemos para a outra saleta...

Valerian Não seria melhor ficarmos aqui, Varvara Sergueivna?

Varvara Vamos para a outra saleta, Valerian Olimpovic...

Valerian Vamos... Então, me dá a tua mão!

Varvara A mão?! Oh, Valerian Olimpovic... Desculpa a minha timidez, mas


concedo!

Valerian Não me entendestes, Varvara Sergueivna...

Varvara Claro que entendi, Valerian Olimpovic... Ainda assim, seria melhor que
falasses com mamãe...

Valerian Falar o quê?

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Varvara Dá um tempo... Volto já, já... (vai sair, encontra-se com Nadezda,
entrando)

Nadezda Por que não ficastes com Valerian Olimpovic?

Varvara Pra quê, mamãe?... Ele já fez a proposta!

Nadezda Varvara, não estás inventando coisas?

Varvara Quê isso, mamãe?... Simplesmente, ele me pediu a mão!

Nadezda E Nastja, como está se portando?

Varvara Sussurra e espirra.

Nadezda Nastja, porque está espirrando?

Nastja Me cobriram com este tapete cheio de pó. (espirra)

Nadezda Tem mais um pouco de paciência... Já, já, eles vão embora.

Varvara Não te mexas, Nastja!

(Entra Pavel)

Pavel Mamãe, me dá os documentos. Preciso ir à assembleia para o comitê


das moradias populares... (sai)

Nadezda Senta-te à mesa, Olimpic Valerianovic... Ocupa o lugar do falecido...


Que Deus o tenha!

(Campainha)

Nadezda São os comunistas, certamente!

Todos Os comunistas! Os comunistas!

Nadezda Varvara, manda vir o caviar, vou olhar pelo buraco... (voltando) Oh,
sim... São eles mesmos, os comunistas! Varvara, vira o “Entardecer em
Copenhagem”... Vou guardar o “Creio, Senhor, creio”...

(Campainha)

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O Mandato, Nikolai Erdman

Nadezda Santos do Paraíso, são apressados... Vou abrir... Seja o que Deus
quiser!

Olimpic Um momento, Nadezda Petrovna... isto não é uma coisa para


senhoras... Valerian e eu vamos recebê-los!

Nadezda Que Deus te renda méritos, Olimpic Valerianovic! Se precisar, me


chama... Peço a Deus que Pavel volte logo. Vamos, Varvara! (sai com
Varvara)

Olimpic Valerian!

Valerian Sim, papai!

Olimpic Dá uma conferida... Estou bem?

Valerian Sim, papai. Como sempre!

Olimpic Valerian!

Valerian Sim, papai!

Olimpic Arruma o seu botton e canta qualquer coisa de revolucionário!

(Olimpic vai até a porta e retorna com os músicos. Enquanto isso, Valerian fica cantando)

Olimpic Acomodai-vos, camaradas!

Tocador 1 (à parte) Será que eles são os comunistas?

Tocador 2 Claro, saca o distintivo daquele lá...

Olimpic Acomodai-vos, camaradas... Pavel Sergueivic deve estar chegando...

Tocador 1 Pavel Sergueivic, um camarada convicto, exemplar!

Olimpic Conhece-o há muito tempo, camarada?

Tocador 1 Faz uma cara! Sou tio dele!

Olimpic Tio dele?

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O Mandato, Nikolai Erdman

Tocador 1 Desde que nasceu... Eu saía da fábrica e ia direto pra casa dele...
Sempre no colo da mãe, mamando... Daí, eu fazia bilubilupiririri no
queixo dele... Ele dava a maior risada... Daí, eu perguntava: “Diz aí,
cumé que cê tá se sentindo aí na classe operária?”... Ele parava de
mamar e dizia “Numa boa, tiozinho”... E depois arrotava...

Tocador 3 Sempre teve uma consciência de classe fora de série!

Tocador 2 Nasceu agitando, ó!

Olimpic Também o conhece desde a infância?

Tocador 2 Ele sempre foi o chuchuzinho aqui da titia!

Tocador 1 Somos todos tios dele... Da classe operária, falô!

Valerian (à parte) Mas... isso são parentes que se apresente?

Tocador 3 Saca só essa: ele era ainda um bacuri... Tava passando perto de uma
fábrica e ele pulou do meu colo pra agarrá o muro...

Olimpic Dá licença um momentinho, camarada... Vem aqui, Valerian...


(cochichando) Estranho... Nadezda Petrovna nunca me falou desses
seus parentes comunistas.

(Saem)

Tocador 3 Ganhamos os caras! Entraram na nossa!

Tocador 1 Grande performance!

Varvara (entrando) Como, já estão aí?

Tocador 1 Em carne e osso, senhorita!

Varvara E onde estão os companheiros comunistas?

Tocador 1 Já desempenhamos, senhorita! Só estamos esperando os comes e


bebes!

Varvara Isso é com a mamãe. (sai)

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(Entra Nadezda)

Nadezda Olá, camaradas!

Todos Olá, patroa!

Nadezda Então, camaradas, tiveram uma bela conversa com Olimpic


Valerianovic?

Tocador 1 Não podia ser melhor, patroa! Um papo de primeira! Agora, só tá


faltando um bom gole pra molhar a goela!

Nadezda Vou mandar vir uma jarra d’água!

Tocador 1 Água? É gozação, madame?

Nadezda De modo algum, camarada!

Tocador 1 O trato com mademoiselle é traçar um caviar e enxugar uma garrafa


de vinho cada um!

Nadezda Quem meteu isso na tua cabeça, camarada? Não há caviar, e vinho é
uma bebida que nunca entrou nesta casa!

Tocador 2 Qual é, dona, e o acordo?

Nadezda Não sei de nenhum acordo!

Nastja (debaixo do tapete) Humpf!

Tocador 1 Que que é isso?

Nastja Não toquem ou disparo!

Todos Socorro, vão atirar!

(Campainha)

Nadezda Virgem Santa, estamos fritos!

Varvara (entra correndo) Mamãe, é Tamara Leopoldovna, vi pelo buraco!

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Nadezda Deus meu, Tamara Leopoldovna!

Varvara (para os músicos) Fora, fora daqui... Para outra sala, aqui correm
perigo!

(Saem comentando)

Nadezda Nastja, levanta bem rápido!

Nastja Podem me matar, daqui não me mexo!

Nadezda (gritando) Varvara, um balde d’água, depressa!

Nastja Pra quê água, senhora?

Nadezda Pistola molhada não dispara...

(Campainha)

Nadezda Virgem Maria, ela continua lá!

(Entra Varvara com um balde d’água. Nadezda tira o tapete de cima de Nastja)

Nadezda Entorna o balde em cima dela!

Nastja A senhora vai me afogar!

Varvara Tapa o nariz! (vira o balde)

Nastja Socorro! Me acudam, estão me afogando!

Nadezda Está ensopadinha... Nastja... Levanta-te e... Anda!

(As duas ajudam-na a se levantar)

Nadezda E agora, entre no baú!

Varvara Dentro, rápido!

Nastja Estou molhadinha!

Nadezda Aí dentro vai se enxugando... (tranca o baú) Abaixa a cabeça! Varvara,


fecha o baú. Vou abrir a porta para Tamara Leopoldovna! (sai)

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(Varvara fica fechando o baú. Entram as duas)

Tamara Ah, eu estava tão preocupada! Está tudo em ordem, aconteceu alguma
coisa?

Nadezda Não, que nada. Está tudo bem. Muito tranquilo, Tamara Leopoldovna!

Tamara É melhor eu dar uma olhada!

Nadezda Não acreditas em mim, Tamara Leopoldovna?

Tamara Não quis dizer isso, Nadezda Petrovna!

Nadezda Temos gente estranha em casa, Tamara Leopoldovna, mas podes ficar
tranquila que ninguém notou nada!

Tamara Ah, que maravilha! Estava tão preocupada. Muito preocupada. Ainda
bem que tudo está tranquilo!

Nadezda Muito tranquilo!

(Entra Ivan Ivanovic)

Ivan Polícia! Polícia!

Nadezda Que história é essa, Ivan Ivanovic?

Ivan A polícia! A polícia está chegando!

(Ivan sai. Entra Valerian. Nadezda sai atrás de Ivan)

Valerian O que é que está acontecendo aqui?

Tamara Meu caro jovem, acreditas em Deus?

Valerian Em casa, eu acredito, no trabalho, não !

Tamara (ajoelhando-se aos pés dele) Ajuda esta mulher a levar embora este
baú!

Valerian Este baú? O que tem dentro dele?

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Tamara Meu jovem, vou te contar um segredo de estado! Neste baú, está
guardado tudo aquilo que restou da Rússia na Rússia!

Valerian Então, mãos à obra!

Tamara Suplico-te, se não o salvarmos será a ruína de todos!

Valerian Deixa comigo!

Tamara Precisamos de uma carroça para levá-lo!

(Saem com o baú. Entram os músicos e Olimpic)

Tocador 1 Quem gritou polícia?

Tocador 2 Por que polícia?

Tocador 3 Cadê a polícia?

Varvara O inquilino voltou. Temos que botá-lo para fora! Som pauleira! No
talo!

Tocador 1 Galera, vamos nessa, pisando fundo... Música, música!

Varvara Mais forte, mais forte... Vamos, temos que botar esse cara pra correr!

(Estão cantando, dançando, batendo os pés. Entra Ivan)

Ivan Ah, estão apavorados, hein? Cê pensava, Nadezda Petrovna, que na


República Soviética não tivesse lei? Ah, Nadezda Petrovna, claro que a
lei existe! Em nenhum país do mundo é permitido afogar uma criatura
no arroz-doce! Não adianta ficar rezando com o gramofone, o que vale
é a justiça dos homens! Fica sabendo que pra combater a contra-
revolução podemos processar até um gramofone!

Olimpic Calma, camarada! Não se trata de contra-revolução! Nadezda Petrovna


tem um filho comunista!

Ivan Comunista? Pavel Sergueivic, comunista? Gostaria de ver ele na frente


do comissário jurando sobre a bíblia que é inscrito no partido!

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Olimpic Quê significa tudo isto, Nadezda Petrovna?

Nadezda Pode ser que ele ainda não esteja inscrito, mas está pensando
seriamente!

Olimpic Não está inscrito? Então, me enganastes, Nadezda Petrovna? É uma


provocação?

Ivan Uma boa e porca provocação!

Olimpic Onde está o dote, Nadezda Petrovna?

Tocador 1 Cadê o caviar, Nadezda Petrovna?

Tocador 2 É uma embrulhona, essa Nadezda Petrovna!

Tocador 3 É uma vigarista, essa Nadezda Petrovna!

Ivan Uma bela burguesa, isto sim é que é a senhora!

(Entra Pavel)

Pavel Silêncio! SOU UM MEMBRO DO PARTIDO!

Ivan Sem essa, Pavel Sergueivic, já não me assusta mais!

Pavel Ah, não te assusto, é? Tudo bem. E se eu fosse amigo íntimo do


comissário, o que dirias?

Ivan Mas, que raça de comunista é você, Pavel Sergueivic, se não tem a
ficha do partido? Sem a inscrição não existe comunista!

Pavel Essa que é a tua, Ivan Ivanovic? É preciso ter ficha pra ser comunista?
De que país estás falando?

Ivan Você tem a inscrição, Pavel Sergueivic?

Pavel Não, claro que não!

Ivan Claro que não poderia ter!

Pavel E o mandato? Querem ver?

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Ivan Você não tem nenhum mandato!

Pavel Ah, não? (tira uma carta) E isto, o que é, ahn?

Todos Um mandato! Um mandato! (tumulto geral)

Nadezda Um mandato!... É muito mais importante!

Pavel (passando-lhe a carta) Lê, mamãe, lê!

Nadezda O supracitado é delegado do partido para todos os fins e efeitos...


Assinado. Presidente dos Comitês das Moradias Populares: Pavel
Segueivic Guljackin.

Pavel Com esta carta, mamãe, EU TENHO EM MINHAS MÃOS TODA A


RÚSSIA!

CORTINA

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SEGUNDO ATO

(Sala do apartamento de Smetanic. Em cena, o ex-general Avtonon Segismundovic, cunhado


de Olimpic e o empregado Agafangel)

Avtonon Agafangel!

Agafangel Pronto, excelentíssimo senhor general!

Avtonon Onde foi parar o “Mensageiro Russo”?

Agafangel Destruído, excelência!

Avtonon Destruído?!

Agafangel Completamente, excelência! Não dá nem pra segurar nas mãos,


excelência!

Avtonon Como assim?!

Agafangel É um buraco só, excelência!

Avtonon Um buraco?!

Agafangel Um buraco, excelência!

Avtonon Que droga! Faz sete anos que leio este jornal, todas as manhãs,
sempre a mesma folha... De repente, o buraco! Agafangel, não foste tu
quem o destruiu? Não vás me dizer que te interessas por política?

Agafangel Eu me interessar por política? Não quero nem saber dessas coisas!

Avtonon E agora, Agafangel, o que é que eu vou ler?

Agafangel Me permite uma sugestão, excelência?

Avtonon Vejamos, o que me propões?

Agafangel Uma revista ilustrada... Internacional, excelência!

Avtonon Provavelmente, deve ser um horror...

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Agafangel Precisamente, excelência!

Avtonon Naturalmente, deve ser isso que trazes aí no sovaco?

Agafangel Perfeitamente, excelência... (dando algumas folhas) Olha que belo


retrato, excelência!

Avtonon Quem é?

Agafangel Sua majestade o Imperador, excelência!

Avtonon Fala baixo!... Onde conseguiu?

Agafangel No banheiro, excelência!

Avtonon E não tinha outro?

Agafangel Tinha excelência!

Avtonon Quem?

Agafangel O Rei Alberto da Bélgica, bem colorida, no meio de seu povo!

Avtonon E onde está?

Agafangel Peço desculpas, excelência!

Avtonon Desculpas de quê?

Agafangel Distraidamente, eu o usei...

Avtonon Usou?! Agora entendo porquê dizem que todo rei é um mártir!... Lê o
que foi salvo!

Agafangel “O Comandante supremo das forças armadas, Nicolai Nicolaievic, sob


incessante fogo inimigo, cozinhando um caldeirão de sopa para os
recrutas...”

Avtonon Hoje em dia, não há mais essa fibra! Um exemplo para os soldados!
Mesmo sob o incessante fogo inimigo, não deixava de provar o
minestrone de seus soldados! Que me dizes disso, ahn?

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Agafangel Que ele podia morrer muito mais pelo minestrone, que pelo fogo
inimigo!

Avtonon Agafangel!

Agafangel Sim, excelência!

Avtonon Passa cola nesta foto... Vamos grudá-la em uma cartolina.

Agafangel É pra já, excelência!

Avtonon E, depois de colada, quero que me tragas todas as manhãs... Anda


logo, mexa-se... Preciso ler... Não posso ficar nem um minuto sem
informações políticas... Durante toda a minha vida, no café da manhã,
me ocupo de política!

(Agafangel sai. Entra Valerian com o baú)

Valerian Cuidado! Muito cuidado!... Pode pôr no chão... Muito obrigado!

(Sai o ajudante que o acompanhava)

Avtonon Valerian!

Valerian Sim, tio!

Avtonon Está trazendo um arsenal para dentro de casa?

Valerian Não estou sozinho nisto, titio!... Só dei uma mão!

Avtonon Como?

Valerian Não entenderias, tio!

Avtonon Por que eu não entenderia?

Valerian Porque nem eu estou entendendo... É muito confuso!

Avtonon Não entendes nem aquilo que está fazendo?

Valerian Eu, sozinho, não faço anda. Sou um anarquista! Presta atenção, tio: de
repente, entra uma pessoa com uma caçarola na cabeça...

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Avtonon Com o quê na cabeça?

Valerian Uma caçarola!... E vem gritando bem alto: “Polícia! Polícia!”... Aí,
então, o comunista pega um bumbo e começa a socá-lo...

Avtonon Esses comunistas são todos umas bestas! E daí?

Valerian Daí, todo mundo sai correndo para outra sala e vem uma desconhecida
e me cai aos pés de joelhos!

Avtonon De joelhos?

Valerian Isso mesmo!

Avtonon Onde foi parar a mulher soviética?

Valerian Ao contrário, tio! Era uma verdadeira dama!

Avtonon Uma verdadeira dama? E o que pode querer contigo uma verdadeira
dama?

Valerian Ela me confiou um segredo de estado...

Avtonon Segredo? Onde está este segredo?

Valerian No baú, tio.

Avtonon No baú?

Valerian Sim, está guardado neste simples baú tudo aquilo que na Rússia
sobrou da Rússia!

Avtonon E o que foi que sobrou da Rússia, Valerian?

Valerian Não sei, tio... Está fechado... Pensei que o senhor pudesse me dizer...
Afinal, nesta casa, é o senhor que se ocupa de política!

Avtonon Política... Até ontem “O Mensageiro Russo” e, hoje, um buraco... Eis o


que sobrou da Rússia... Um buraco!

Agafangel Descobri outro buraco, excelência!

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Avtonon O quê?

Agafangel No baú, excelência... está saindo água pelo buraco!

Valerian É mesmo!

Avtonon O que há ali dentro, um homem ou um animal?

Valerian Que homem ou animal pode ter sobrado da Rússia, tio?

Avtonon Pelo que eu saiba, só sobrei eu!

Valerian E se aí dentro, de verdade, estivesse um homem? (gritando para o baú)


Ei, desculpa-me... És um homem, por acaso?

Nastja (tranquilamente) Não, uma mulher.

Todos Uma mulher?!

Valerian Tio, que mulher pode ter restado da Rússia?

Avtonon (friamente) Me contou um coronel, conhecido meu, que, um dia,


encontrou em uma praia, na Criméia, uma das princesas mais
iminentes...

Valerian Quem, tio?

Avtonon Anastásia Nicolaevna, Valerian! Não acreditei muito... Ele era míope de
natureza... Um coronel tão míope que uma vez se tomou por general...

Valerian Precisamos saber, tio. (para o baú) Escuta: Como é teu nome?

Nastja Nastja!

Valerian Como?

Nastja Anastásia!

Todos É ela!

Avtonon Meu Deus, é ela! E agora, o que vamos fazer?

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Valerian Vamos interrogá-la!

Avtonon Estás louco?... Se for ela, realmente, sabes como se faz para interrogar
uma princesa? Nem seria permitidopelo protocolo...

Valerian Faz de conta que não sei de nada... Senhorita, só para saber, como é
teu sobrenome?

Nastja Nicolaevna!

Avtonon Agafangel!

Agafangel Sim, excelência!

Avtonon Segura-me!

(Entra Olimpic)

Olimpic Senhores, dizem que na Polônia, ainda agora, está se fazendo alguma
coisa contra o poder soviético!

Avtonon Ficas falando na Polônia, quando nem imaginas o que está


acontecendo aqui em casa!

Olimpic Não entendi!

Valerian Papai, perdoa-me!... Eu salvei a Rússia!

Olimpic Salvaste a Rússia?

Valerian Casualmente, papai!

Avtonon Salvou uma das princesas mais eminentes, Olimpic!

Olimpic Como é que é?

Avtonon Sim, Olimpic!

Valerian Anastásia Nikolaevna, papai!

Olimpic Anastásia Nikolaevna, não é possível!

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Valerian Claro que é, papai... Ela mesma disse!

Olimpic Ela? E onde está ela?

Avtonon No baú!

Olimpic No baú?! E esperam o quê? Devemos soltá-la imediatamente!

Avtonon E preparar uma grande recepção!

Valerian Lembrei-me de uma coisa... Volto já... (sai)

Olimpic Será que não há nenhum engano?... Estão seguros de que é ela
realmente?

Avtonon Mas, claro! Por que razão iriam conservar uma mulher viva, trancada a
chave, se não fosse uma princesa?

(Entra Valerian com pão francês e sal)

Valerian Pão e sal, papai, para a cerimônia... Pena que o pão seja de ontem...

Avtonon É pão francês... Isso que interessa! Houve tempo, Valerian, que os
franceses eram os únicos patriotas russos! Pensai, senhores, neste
exato momento, está para surgir diante de nós o futuro da Rússia!
Estão prontos?

Todos Prontos!

Avtonon Posso abrir?

Valerian Sabes de uma coisa, tio? Estás abrindo uma nova página da história!

Avtonon Ei-la, senhores!

Nastja (saindo) Onde estou?

Avtonon Em casa de fiéis servidores, Alteza!

Nastja Estão enganados, senhores!

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Olimpic Crêde, Alteza... Se soubéssemos que vós éreis a única que restou por
todo este tempo em Moscou...

Nastja Senhores, é exatamente o contrário... Acabei de chegar!

Olimpic Sozinha, Alteza?

Nastja Mas, o senhor não acerta uma, hein?

Olimpic Desculpai-me, Alteza, com quem, então?

Nastja Quanta pergunta... Com o tio!

Avtonon Como?! Também o grande príncipe Michail Alexandrovic se dignou a


retornar a Moscou?! Bravo!

Nastja Oh, Deus meu!...

Olimpic Que houve, Alteza?

Nastja Me sinto húmida...

Valerian Papai, ela não está sentindo bem!

Olimpic Carregai-a!

Agafangel Olha, excelência está toda molhada!

Avtonon É preciso despi-la... Caso contrário pode acontecer uma tragédia!

Valerian Deixa que eu a dispo, tio!

Olimpic Não te envergonhas, Valerian, em me dizer semelhante asneira?

Avtonon Não sejas inconveniente! Eu me ocuparei disso! Um ex-general não só


tem o direito como o dever de o fazer... Tudo pela salvação da Rússia!

Valerian Um momento! Quem salvou a Rússia fui eu! Por que outros devem
despi-la? (pega a mão de Nastja)

Olimpic Senhores, levai-a para a cama!

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(Todos, menos Olimpic carregam-na. Olimpic fica só em cena. Vai ao telefone)

Olimpic Pensai, senhores, em todo o tempo ela carregou a Rússia nas mãos.
Agora, só três pessoas para carregá-la! Se não tivesse visto com os
meus próprios olhos... (disca um número) Não teria acreditado... Alô?
Stephan Krushovic?... A fonte é segura... Deixa, imediatamente, tudo o
que estás fazendo e começa a juntar os teus títulos... Como? Os títulos
imperiais... Sim, da família imperial!... Claro que estou bem... A fonte é
absolutamente segura, te digo! Não posso... Deves saber que esta linha
pode estar “grampeada”... Claro!... Vou falar em alemão... Eles são
ignorantes e certamente não entenderão nada... Então... Droga,
esqueci como se diz... Mas, eu estudei alemão... Ah... (trecho em
confuso alemão)... Bem, em resumo, ela chegou... Em Moscou,
entende... É... Em Moscou... Gross Furstin... Gross, Gross, entende?
Gross Furstin, a Grande... Anastásia Nikolaevna... Isso! E também o
Gross... Gross... Gross, o grande príncipe, entende?... Michail... Michail,
entende? Sim, Michail Alexandrovic... É... Mas, é segredo... Não digas
nada a ninguém, entendeu? (desliga o telefone) Hoje só a cultura pode
salvar o homem!

Avtonon Pissss!... Sua Alteza está dormindo!

Olimpic Enquanto ela dorme, decidamos como vamos proceder!

Valerian Eu acho, papai, que deveríamos andar na ponta dos pés!

Olimpic Eu acho, Valerian, que vais se casar, ainda hoje com Varvara
Sergueivna. Neste momento, é mais do que necessário termos na
família um comunista de confiança... Vá te aprontar, meu filho!

(Valerian sai)

Agafangel Vou passar o vestido! (sai)

(Entra Nadezda)

Nadezda Olimpic Valerianovic, não creias naquele maldito... Não acredites, pelo
amor de Deus!

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Olimpic Que aconteceu, Nadezda Petrovna?

Avtonon Do que se trata? Fala, Nadezda Petrovna!

Nadezda Se ele te disse que é homem honesto, é mentira!

Olimpic Mas, quem?

Nadezda Ivan Ivanovic!

Olimpic Que Ivan Ivanovic?

Nadezda Aquele operário que mora lá em casa!

Avtonon E o que é que disse esse senhor?

Nadezda Ele anda duvidando que Pavel é um comunista... Está dizendo por aí
que Pavel é filho de parasitas... E diz que prova!

Olimpic A qual idiota, me desculpe a expressão, ele quer provar semelhante


coisa?

Nadezda A ti, Olimpic Valerianovic, a ti! Mas, não acredites, eu te peço... Não
acredites!

Olimpic Não darei ouvidos a tais banalidades!

Nadezda Duvidar de que meu filho é comunista? Ele tem um mandato, Olimpic
Valerianovic! Um mandato tão importante qie me dá até medo... E se
me prendem?

Olimpic Como iriam prender a mãe de um comunista?

Nadezda Tu não sabes até que ponto são fanáticos!

Olimpic Fica tranquila, Nadezda Petrovna! Não vamos desistir das núpcias!
Nunca!

Nadezda Oh, Olimpic Valerianovic, então está decidido?

Olimpic E será hoje mesmo, Nadezda Petrovna... Mas, com uma condição!

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Nadezda Deus meu, qual?

Olimpic Que o teu filho não se afaste de nós!

Nadezda Oh, claro, sem dúvida! Não só ele, Olimpic Valerianovic, nós todos nos
mudaremos para cá!

Olimpic Todos? Por que todos, Nadezda Petrovna?

Nadezda Não te preocupes, Olimpic Valerianovic! Só vamos trazer algumas


coisinhas para cá!

Olimpic Essas coisinhas são dispensáveis... Que ele venha só com o mandato!

Nadezda Oh, Olimpic Valerianovic, ele não dá um passo sem o mandato... No


banho, esta manhã, na mao direita tinha o sabonete, na esquerda, o
mandato... “Devo guarda-lo como um marechal”, disse ele!

Olimpic Então, estaremos esperando, Nadezda Petrovna!

Nadezda Viremos a galope, Olimpic Valerianovic! (sai)

(Olimpic vai entrando para o quarto)

Olimpic (chamando) Valerian!

(Entra Ivan)

Ivan Se eu fosse uma pessoa estudada, seria bem mais fácil conversar, cara
a cara, com uma pessoa do nível de Olimpic Valerianovic...

(Entra Nastja, enrolada em um lençol)

Nastja Onde será que enfiaram o meu vestido? (vendo Ivan) Oh!

Ivan Oh, uma ninfa do bosque!

Nastja Ah, não me olhe!

Ivan Desculpa... Cadê a sua roupa?

Nastja (reconhecendo-o) Você, Ivan Ivanovic? Pensei que fosse gente.

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Ivan Anastásia Nikolaevna, como veio parar aqui?

Nastja Sei lá!... Nem sei onde estou!

Ivan Como não sabe?! Você está circulando nua pela casa!

Nastja Que culpa que eu tenho se o meu vestido sumiu?

Ivan Sumiu?

Nastja Você não vai acreditar, mas eu me afoguei...

Ivan Ah, sim, claro... Se afogou onde?

Nastja Sentada em uma cadeira!

Ivan Cê tá pensando que eu sou algum cretino, Anastásia Nikolaevna?

Nastja Eu tô aqui desesperada e você ainda fica desconfiando de mim, Ivan


Ivanovic?

Ivan Vai me desculpar, mas como é que cê veio parar aqui?

Nastja Me carregaram pra cá...

Ivan Nos braços dos outros? Pela rua?

Nastja É...

Ivan Enrolada no lençol?

Nastja Peraí! Cê tá pensando que eu sou o quê, hein? Vim no baú...

Ivan Não entendi nada... É melhor abrir o jogo logo!

Nastja Foi assim: primeiro de tudo, me vestiram... Um vestido lindo, lindo...


Depois me deram um banho... Depois me enfiaram no baú e me
trouxeram pra cá!

Ivan Vestiram primeiro, depois deram o banho... Tá muito enrolado... E o


que aprontaram por aqui?

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Nastja Tiraram a minha roupa e me levaram pra cama!

Ivan Pode parar! Não precisa dizer mais nada! Definitivamente, cê caiu na
vida!

Nastja Essa que é a sua, Ivan Ivanovic?

Ivan É isso aí, perdida! Piranha!

Nastja Vira essa boca pra lá!

Ivan Já vi tudo! Nadezda Petrovna entrou no tráfico de escravas brancas...


Já deve até ter comprado a sua passagem para o Japão!

Nastja Não acredito no que estou ouvindo... É mentira!

Ivan Pequenas virgens, embaladas em baú, para pronta entrega!

Nastja Deus meu, é isso que cê pensa que farão comigo?

Ivan Bela mercadoria, a favorita de Olimpic Valerianovic!

Nastja O quê?

Ivan A favorita, Anastásia Nikolaevna, é uma serva que caiu na gandaia!

Nastja Virgem Maria! Que situação pra uma moça donzela! Não é nada disso,
Ivan Ivanovic!... Vai ver que o Olimpic Valerianovic está querendo fazer
que nem no livro “A Rainha Mártir”...

Ivan Ah, é, é?... E como é essa história?

Nastja A história é linda... Conta que um grande senhor, muito fino, enamora-
se de uma pobre coitada, sem tradição... Daí, os dois se casam em uma
Igreja Católica e vivem felizes para sempre...

Ivan Acorda, Anastásia Nikolaevna... Os tempos são outros! Que besta sou
eu... Pensando em revelar a Olimpic Valerianovic que Pavel é um
vigarista e descubro que os dois são da mesma laia... Nem sei o que é
pior!

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Nastja E agora, Ivan Ivanovic, o que é que a gente faz?

Ivan Nada! Já está feito... Cê caiu na arapuca!

Nastja Ajuda-me, Ivan Ivanovic! Você é estudado, esclarecido!

Ivan (de joelhos, beijando-lhe a mão) “Não me curvo diante de sua


presença, mas de sua desgraça!”... Tchau mesmo, Anastásia
Nikolaevna, ou, ainda faço uma besteira!

Nastja Me leva com você, Ivan Ivanovic!

Ivan Com que roupa, Anastásia Nikolaevna? A rua não é banheiro!

Nastja Fica comigo, Ivan Ivanovic! Me ajuda!

Ivan Eu, me meter nesse saco de gatos? Se me pegam junto com você,
ainda vestida desse jeito, vai sobrar pra mim... Psssiu, vem gente aí.
Me esconda, me esconda...

Nastja Entra aqui debaixo... Quietinho, hein!

(Ivan se esconde debaixo do lençol. Entra Olimpic na ponta dos pés, com Avtonon, trazendo o
vestido. Logo a seguir, vem Valerian)

Olimpic Tens certeza de que esse vestido está seco?

Avtonon Claro que tenho, Olimpic, é claro!

Nastja Não entrem... Tem uma mulher nua!

Olimpic Oh, pardon! Levantastes, Alteza. Permitai-nos vestir-vos?

Ivan (sob o lençol) Tá na cara... é a favorita mesmo!

Nastja E como é que eu saio dessa?

Avtonon Não quereis se lavar, Alteza? Eis a bacia!

Ivan A bacia!... Naturalmente, a festa vai começar!

Nastja Podem me matar, se quiserem, mas não aceitarei tal desonra!

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Olimpic Perdão, Alteza! Se assim vos pareceu... Não era nossa intenção, Alteza!

Nastja Chega de papo furado, pois aqui eu não fico mais!

Olimpic Não é possível que duvideis da devoção ardente e do grande amor


sincero de um homem russo!

Nastja Que amor, o quê! Será que não enxerga? Claro que não acredito!

Olimpic Eu juro, Alteza!

Avtonon Confiai em nós, Alteza!

Nastja E se alguém me descobre aqui nesta casa, nesta situação?... Tenho que
sair quanto antes...

Olimpic Nós vos imploramos, Alteza, ficai conosco... Mudai o vosso


sobrenome...

Nastja Você está falando sério, ou é conversa fiada?

Valerian Eu vos juro, Alteza! Eu responderei por isso!

Nastja Virgem Nossa, está falando exatamente como na “Rainha Mártir”!...


Tudo bem, meu querido, não precisa me chamar de Alteza...

Valerian Nada receais, Alteza... Ninguém nos ouve!

Nastja E quando a gente se casar, pode me chamar de Nastja!

Valerian (vacilando) Como? Quando casarmos?

Nastja Já vou avisando: na minha família, mulher não separa, fica viúva!

Olimpic Avtonon, dá-me água, a água...

Valerian Papai, estou completamente zonzo!

Ivan (sob o lençol) Cê tá vendo? Tá pulando fora!

Nastja Uai, agora mesmo cê não falou que me amava e que queria mudar
meu nome?

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Avtonon Responda, Valerian, responda!

Valerian Não posso, tio, não posso... A cabeça está girando!

Avtonon Responda tu, Olimpic!

Olimpic Sim, claro... Como poderia sonhar tamanha sorte, Alteza!

Nastja Então, concorda?

Olimpic E quando estareis disposta, Alteza?

Nastja (desconfiada) Disposta a quê?

Olimpic A unir-se em matrimônio, Alteza, se não esquecestes...

Nastja Ah, imediatamente!

Ivan É enrolação, Nastja... É enrolação... Preciso sair daqui!

Nastja Senhores, fechem os olhos um pouquinho... Preciso ir para outra sala...

Olimpic Fechai os olhos, senhores, fechai...

Avtonon Pronto, Alteza!

(Todos de olhos fechados)

Nastja (à Ivan) Vai saindo de fininho...

(Ivan sai. Ouve-se as passadas de Agafangel)

Ivan Estou perdido, vem vindo alguém...

Nastja Entra no baú... rapidinho. (Nastja fecha o baú e vai saindo) Vou para
minha toilette... Já, já estarei pronta!

Agafangel (entrando) Os coches estão chegando, excelência!

Avtonon Que coches?

Agafangel Os coches que vossa excelência alugou para o casamento de Valerian


com Varvara Sergueivna! (sai)

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Avtonon Deus do céu... Logo mais chegarão também eles!

Olimpic Tinha me esquecido completamente, Valerian! Que faremos, Valerian?

Valerian Não tenho a menor ideia, papai!

Olimpic Avtonon, dá um jeito de avisá-los, não sei de que jeito... Com


diplomacia, previne-os que o casamento não vai acontecer!

Avtonon Com diplomacia?! Tentarei, Olimpic… Então, concentra-te na outra


pretendente... Esta mulher representa, hoje, toda a Rússia! Que
responsabilidade!

Avtonon E que dote!

(Entra Nastja)

Nastja Pronto! Estou pronta!

Olimpic Alteza, os coches já estão lá fora!

Nastja Então, que estamos esperando? Vamos!

(Saem Nastja, Olimpic, Valerian. Entra Agafangel)

Agafangel Eis a cola, excelência!

Avtonon Cola?!... Ah, já nem me lembrava... Cola este retrato na cartolina.

Agafangel (observando o retrato) É o pai daquela mulher que estava no baú,


excelência?

Avtonon Sim, o nosso imperador!

Agafangel Pronto, excelência, passei cola no imperador!

Avtonon E a cartolina?

Agafangel Ah, vou buscar. (deixa o retrato sobre uma cadeira e sai)

(Entram Nadezda, Varvara vestida de noiva e Pavel com o mandato na mão)

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Nadezda Tardamo-nos, mas não faltamos, graças a Deus!

Avtonon E agora? E tem que ser com diplomacia...

Nadezda Avtonon Segismundovic, eis meus filhos!

Avtonon Honestamente, estou sentindo muita pena... Mas, muita pena mesmo,
Nadezda Petrovna... Mas, te juro, não tenho culpa nenhuma!

Nadezda Culpa de quê?

Avtonon Bem, quer dizer...

(Entra Agafangel com a cartolina)

Nadezda Onde está o noivo, Avtonon Segismundovic?

Varvara Mamãe, não digas essa palavra que até me arrepio! Fico até com
vergonha!

Avtonon Eu também, senhorita!

Agafangel Se falam de Valerian Olimpovic, ele foi casar-se e o pai foi com ele!

Nadezda Virgem Santa, estamos aqui perdendo tempo e eles já estão na igreja
nos esperando... Vamos, Avtonon Segismundovic, estamos atrasados!

Avtonon Um momento, Nadeza Petrovna, preciso te confessar uma coisa... Não


vai haver casamento!

Pavel Não vai?!

Avtonon Não... Realmente, não vai.

Varvara Mamãe, parece-me que estão querendo nos desonrar!

Nadezda Por que não vai haver casamento?

Avtonon Isto eu não posso te dizer!

Nadezda Senhor Deus, o que está acontecendo? Estamos desonrados... desenr...

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Avtonon Tenta entender, Nadezda Petrovna... A coisa não diz respeito a vós...

Nadezda E a quem, então?... Eu sou a mãe! Que baixaria é essa?... Uma recusa?

Avtonon Eu entendo tua revolta, Nadezda Petrovna, só que...

Nadezda Então, por que Valerian Olimpovic não me escarra a verdade na cara?

Avtonon Ele fará, Nadezda Petrovna, ele fará... Se tu soubesse a razão talvez...

Nadezda E que razão é esta, Avtonon Segismundovic?

Avtonon É segredo de estado... Não posso revelá-lo...

Nadezda Ah, não pode?... Pavel, tu não passas de um... Fala alguma coisa,
paspalho!

Pavel O que é que tens na cabeça, seu moleque? Por que não haverá
casamento?

Avtonon Proíbo-te de falar assim comigo!

Pavel Mas, eu falo... E se eu falasse com a Terceira Internacional, hein?

Avtonon Estou frito! Lá vem chumbo!

Pavel Esqueces que durante a Revolução de Outubro, eu participei da luta


clandestina? E tu vens me dizer: “Proíbo-te!”

Avtonon É o fim. Agora, ele atira!

Pavel Eu sou presidente... do Comitê das Moradias Populares!

Avtonon Minhas desculpas, camarada, irmão, companheiro, eu...

Pavel Silêncio! Sou um membro do partido!

Avtono (gritando) Silêncio!

(Assustados, sentam-se os dois. Pavel, sobre o retrato com cola. Toca a campainha. Entram
Stephan e Filitsata, trazendo flores)

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Filitsata Cristo ressuscitou, Avtonon Segismundovic! (beija-lhe a mão) Não te


assustes se te beijo. Estou com o espírito de páscoa!

Stephan Desculpa-me se não pergunto como estás, mas os interesses da Rússia


estão acima de tudo!

(Campainha. Entram Narkiz e o padre)

Narkiz Senhores, é verdade que a notícia de Michail Aleksandrovic não é


mentira?

Stephan Deus meu, como responder a uma pergunta com tanta falta de
civilidade?

Filitsata Me fez lembrar esses presunçosos bolchevistas! Eu andava pela rua


com meu marido e um policial estava ali tranquilo em uma esquina
como se nada estivesse acontecendo!

(Toca a campainha. Entra Agafangel com flores e telegramas)

Agafangel Excelência... Telegramas e flores...

Avtonon Começa a ler, um por um... Em posição de sentido!

Agafangel (lendo, solenemente) “De volta à Rússia o que é da Rússia”. Ponto.


Michail Barichnicov!

Todos Urrah!

Agafangel (lendo outro telegrama) “Estamos prontos para entrar em ação!”


Ponto. Assinado. P.C... PC?

Padre P.C.? Partido Comunista?!

Stephan Claro que não! É o PC, tesoureiro do nosso movimento!

Todos Urrah!

(Toca o telefone. Avtonon atende)

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Avtonon (no telefone) Pronto... Oui, oui... Alô, Oui, Mr... C’est vraie... Elle est
avec nous… Maintenant… Oui, Mr… Ici… Elle est ici… Vous pouver
venir… Façam as malas e voltem… A Rússia é nossa novamente... Nous
sommes attendant... Au revoir... Bon soir... Bon apetit... (desliga o
telefone) Nossos amigos exilados estão voltando! Os russos estão
voltando!

Todos Urrah!

Avtonon Agafangel!

Agafangel Sim, excelência!

Avtonon Levas as flores para dentro... Dá-me os telegramas... Pode haver


alguma informação confidencial... Ficarão sob a minha guarda!

Narkiz (tira a máquina fotográfica) Uma pose, senhores!

Filitsata Stephan, olha o fotógrafo!

Narkiz Assim que soube, apesar do rigoroso segredo, que sua Alteza se
encontra aqui...

Pavel Como?! Sua Alteza? Aqui?!

Avtonon (indicando Pavel) Prendei-o! Segurai-o! (gritando) Agafangel!

Agafangel Sim, excelência!

Avtonon Tranca a porta!

(Agafangel, armado em frente à porta)

Vozes O que é que está acontecendo? O que é que houve? Vamos lá ver!

Avtonon Ouviram?

Todos O quê?

Avtonon Os comunistas!

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Todos Os comunistas... Os comunistas!

Filitsata Salve-se quem puder!

Agafangel Parem ou atiro!

Stephan Socorro, estamos cercados!

Avtonon Onde estão os comunistas? Aqui só tem um! Ele!

(Todos se juntam, pressionando Pavel e a família)

Pavel Mamãe, estou sucumbindo em uma emboscada da burguesia!

Nadezda Senhores, não vos enfureçais contra um cristão ortodoxo! Avtonon


Segismundovic, meu filho é comunista só da boca pra fora... Por
dentro...

Pavel Por dentro, não sou nada disso...

(Pavel está com o retrato colado na bunda)

Padre É preciso deixar claro qual é a tua verdadeira cara...

Filitsata Nossa, ele tem duas...

Stephan Como duas?

Filitsata É difícil de explicar... Ele tem frente e verso!

Todos Onde?

Filitsata Ali! (mostrando o retrato)

Avtonon (à Pavel) Vira-te, moleque! Deus meu! O imperador na bunda do


comunista?

Vozes Chegaram! Chegaram! Viva os noivos! A imperatriz!

(Um hino. Entram os músicos)

Todos Urrah!

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Avtonon Oh, diabo! (para os músicos) Quem sois vós?

Tocador 1 Hóspedes, senhor, hóspedes!

Avtonon Hóspedes de quem?

Tocador 2 Teus, caro senhor!

Tocador 1 Convidados de Olimpic Valerianovic... Para o casamento. Estamos aí


pro que der e vier...

Avtonon Já que é assim, ficai!

Agafangel (anunciando) Sua Alteza Imperial!

Avtonon Atenção, senhores! Música!

(Hino. Entram)

Todos Urrah!

Pavel (jogando-se aos pés de Nastja) Perdoai-me, Alteza, pelo amor de Deus!
Perdoai-me!

Nadezda (também aos pés de Nastja) Concedei-lhe perdão, Alteza! Ele sabe que
foi um estúpido!

Nastja Não agarra no meu vestido assim... Levanta daí! Virgem Nossa, a
patroa!

Nadezda Virgem Minha, Nastja!

Todos Urrah!

Pavel (ainda ajoelhado) Mamãe, dá-me coragem! Estou morrendo!

Todos Urrah!

Olimpic Senhores, hoje Sua Alteza Imperial quis unir-se em matrimônio com
meu filho Valerian!

Varvara Ah!

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Olimpic Eu, senhores, não aguento... (chora)

Varvara Nem eu!

Nadezda Varvara, fica quieta!

Avtonon Egrégios e gentis senhores, Sua Alteza Imperial vos agradece pela
colhida maravilhosa e festiva... Egrégios e gentis senhores...

Olimpic Sua Alteza Imperial...

Avtonon Olimpic, é a minha vez! Já termino!

Olimpic Estive calado sete anos! Agora ninguém vai me calar! Sete anos
esperando por este momento, sete anos!

Padre Cristãos ortodoxos, de muitos anos, em verdade... (aproximando-se de


Olimpic)

Todos Muitos anos, muitos anos...

(Músicos tocam)

Olimpic Alteza Imperial, finalmente serão os intelectuais russos a governar a


Rússia... Permite que eu diga algumas palavras...

Nastja Pode falar, a boca é sua!

Olimpic Sete anos, Alteza Imperial, sete anos nossa cabeça permaneceu
inativa. Sete anos, e que anos! Cada ano pesava como se fosse uma
dezena... Cada dezena, como um século... Setecentos anos, Alteza
Imperial! A nossa cabeça está embolorada, rançosa!

Todos Bravo! Bravo!

Avtonon Musica! Urrah!

Nastja Que festa de casamento!

Todos Urrah!

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(Ouve-se um grito do baú)

Vozes Ouviram? De onde vem essa voz? Quem será?

Nastja Deus meu! Deve ser Ivan Ivanovic. Grita de medo!

Olimpic Deve ser o povo festejando!

Stephan Será possível que o povo já sabe?

Olimpic Claro, por que então gritaria “urrah!”?

Padre Tens certeza de que gritaram “urrah!”?

Olimpic Ouvi claramente!

Stephan Então, o povo está conosco!

Todos Urrah!

(Novo sussurro no baú)

Olimpic Ouvistes agora?

Ivan (no baú) Socorro!

Stephan Ouviram?

Avtonon Não. E tu?

Padre Nem eu.

Stephan Prestai atenção!

Todos Urrah!

Olimpic Ouviram?

Avtonon O povo cala!

Nastja Senhores, não gritem tanto!

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Pavel Senhoras e Senhores... Russas e russos... Olhai bem este herói que está
diante de todos!

Vozes O que está acontecendo? O que ele pretende?

Pavel Minha gente... Trabalhadores da Rússia... Meus caros patrícios,


descamisados e pés descalços, esta mulher quer o trono russo, mas
para consegui-lo terá que passar sobre o meu cadáver! Esta é uma
comunicação oficial!

Vozes Quem é esse cidadão? Algum louco?

Pavel Companheiros, camaradas, por quê lutamos? Por quê tombamos sobre
os campos sangrentos da batalha? Somos trabalhadores do arado e
presidente do Comitê das Moradias Populares! Represento o poder
soviético... Ama-o ou Deixa-o! Eu me recuso heroicamente em prestar
juramento a estas classes de generais, de padres, de proprietários!

Vozes Calai esse homem! Não deixeis que ele fale!

Pavel Ninguém pode me calar, camaradas! Não podemos nos dispersar!


Seremos uma só voz contra a ex-classe dominante, porque aí está a
consciência, a nossa sadia consciência! Ninguém sufocará a revolução
pela qual lutamos, minha mãe e eu... Juntos, chegaremos lá! E não
pensais que sou corajoso só na frente de vós... Vamos à Inglaterra e eu
não terei medo nem da Rainha... Discursarei na frente de qualquer rei
ou imperador... O povo unido jamais será vencido! Grito a todos os
monarcas, a todos, inglês, italiano, turco, francês etc. Senhores, são
todos uma merda! Meu nome é Pavel!

Avtonon Senhores, ele está armando um complô... Precisamos mata-lo!

Vozes Mata... Mata!

Nastja Não toquem nele... Está bêbado!

Pavel Bêbado? Quem está bêbado? Eu estou bêbado? Estou completamente


sóbrio... Sóbrio e seguro... E, agora, senhores, prestai muita atenção no
que eu vou dizer: Alteza Imperial, vós sois uma filha da puta!

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Todos Oh!

Nastja Pavel Sergueinovic, como se atrave a dizer uma coisa dessa de mim?

Avtonon Soldados!

Agafangel Pronto, excelência!

Avtonon Prendei-o! Prendei-o!

Vozes Prendei-o... Prendei-o...

Pavel Camaradas, vós fostes enganados... Ela é a nossa empregada... Ela é a


nossa criada!

Avtonon O que?! Cala essa boca!

Pavel Essa imperatriz é falsa... É a nossa empregada... Já me lavou até as


cuecas...

Olimpic Não há mais dúvida, esse homem está louco!

Nadezda Caros companheiros, é verdade, como Deus é verdadeiro! Ela é Nastja,


nossa empregada... (à Nastja) Nastja, responda a tua patroa: és ou não
és a nossa empregada?

Nastja E a senhora ainda duvida? Que pergunta!

Nadezda Ouviram, ouviram? Ela confessou!

Olimpic Alteza...

Nadezda Que Alteza, o quê!... Maltavna, agora é Alteza? Tenho até o


documento dela: Maltavna... Anastásia Nikolaevna Maltavna.

Olimpic Maltavna?

Nastja Mal-ta-v-na!... É um nome bem comum onde eu nasci!

Valerian Malta-v-na?!

Nastja É isso aí!

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Valerian E o tio?

Nastja Que tio?

Olimpic O tio. Não tens um tio?

Nastja Claro.

Olimpic É o príncipe?

Nastja Meu tio?

Olimpic Teu tio é o quê?

Nastja Meu tio é peão de boiadeiro. E valente!

Olimpic Me segurai... Me segurai...

Padre Cruz, credo... Pro diabo que a carregue!

Avtonon Estamos de novo na... Não sobrou nada! Nem pra mim, nem pra ela,
nem pra ninguém!

Pavel Aos senhores, é verdade, não existe mais nada! Mas as palavras
ficarão! Meu ato de heroísmo ficará! Chamei os patriotas da Rússia de
bastardos! Isso ninguém mais apaga! Entendeis, agora, até onde posso
chegar, ahn? Por minha palavra, terei acesso ao Kremlin, sem me fazer
anunciar! Com esta vos que vos fala, abrirei todas as portas da Rússia!
Eu sou o caminho, a verdade e o poder!

Vozes Camarada, Pavel Sergueivic, perdoai-nos! (repetem)

Pavel Ahn, ahn, agora estão com medo, é? Pois não vos iludes que não
esquecerei nunca o que vós fizestes de minha bunda uma galeria de
arte!

Vozes Piedade! Não era nossa intenção! A gente não queria!

Pavel Silêncio! Ainda não sabeis do que sou capaz! Por um ideal, sou capaz
de tudo! Fui transformado em dote, por um ideal! E, agora, toda a
Rússia se casará com Varvara! Varvara, escolhe quem quiser!

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Nadezda Anda, Varvara, escolhe logo!

Vozes Eu! Escolhe eu! Não, eu!

Varvara Eu quero um que use pince-nez e cheio de amor pra dar!

Pavel Varvara!

Filitsata Meu marido! Leva meu marido!

Padre Eu não posso... Escolhe outro!

Olimpic Mas como? Como? Eu mesmo vi com meus próprios olhos... Aqui...
Aqui mesmo, neste lugar... A nossa amadíssima pátria, a nossa mãe
Rússia, ressurgir, como uma fênix, do baú!

Stephan Qual baú?

Olimpic Deste baú... Vêde, senhores... Estava aqui...

Avtonon Eu abri o cadeado...

Olimpic E surgiu a Rússia!

(Abre o baú. Sai Ivan)

Ivan Eu ouvi tudo! Sei de tudo!

(Todos se apavoram)

Ivan Camaradas, mantenham-se calmos, não fujam, pois eu não mordo!

Vozes Salvai-nos, Pavel Sergueivic! Salvai-nos! Fala com esse homem!


Estamos perdidos!

Ivan De jeito nenhum! Não tem conversa! Polícia! Polícia!

Olimpic Desculpa, companheiro, mas, por quê a polícia?

Ivan Vou denunciar a todos, imediatamente!

Olimpic Por quê, companheiro, que mal fizemos?

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Ivan Todos, nesta sala, querem derrubar o poder soviético!

Nastja Ivanecka, não precisa gritar!

Olimpic O senhor não entendeu direito... Não é verdade! Palavra de honra!


Temos testemunhas... Olha, aqui tens um comunista... É Pavel
Sergueivic...

Ivan Pavel Sergueivic?! Ah, este não passa de um impostor! Nunca foi
comunista!

Pavel Quem? Eu? Sou um representante do povo. Eu tenho calos! Vejam


minhas mãos! E isto não é nada... Nem imaginam os calos que tenho
nos pés... Cada um...

Ivan Prova que você é um comunista!

Pavel Provarei! Chamai o Comissário e perguntai se sou ou não sou


comunista!

Avtonon Estás te arriscando, companheiro, ele tem um mandato!

Ivan Onde está o mandato?

Pavel (tirando o mandato do bolso) Está aqui, ó!

Ivan (apoderando-se do papel) Ora, cidadãos, estão todos fodidos! (foge)

Pavel Segurai-o! Ivan Ivanovic, onde vais?

Ivan Na polícia! Na polícia! (sai)

Pavel Tudo perdido! Serei esquartejado! Pardeão!

Olimpic Como? Serás esquartejado? E nós, o que nos espera?

Nadezda Pavel, meu filhinho, o que estás dizendo?

Pavel Meus caros cristãos ortodoxos... O mandato é falso... Eu plagiei!

Nadezda É plágio, meu filho?!

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Varvara É o fim da picada... Dançamos mesmo!

Olimpic És ou não és comunista?

Pavel Bem, sabe, varia muito... Depende... Eu...

Olimpic Depende? Depende de quê?

Pavel É que, politicamente sou um pouco instável...

Olimpic Não!... Não é verdade! Nada é de verdade! Ela não é de verdade! Ele é
uma mentira!

Pavel Mãezinha, fala pros comunistas que eu sou um débil mental... os


débeis, eles não matam!

Nadezda Eles não acreditarão, meu filho!

(Barulho e vozes de fora)

Avtonon É ele... É ele! É a desgraça!

Agafangel Os comunistas estão chegando!

Padre Meu Deus!

Stephan Estamos perdidos!

(Entra Ivan, desolado. Senta-se e soluça)

Olimpic O que aconteceu? O que houve?

Ivan Eles se negam!

Olimpíc Se negam a quê?

Ivan Se negam a vir prendê-los...

Olimpic O quê?

Stephan Não vêm nos prender?

Padre Foi o que ele disse!...

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Fotógrafo Negam-se?

Pavel Ouvistes, mãezinha?... Não querem nos prender!

Nadezda Não? Então, o que somos? Do quê vamos viver?

Pavel Viveremos para quê?

Olimpic (energicamente, para Ivan) E por quê se negam a nos prender?

Ivan Nomearam uma Comissão Parlamentar de Inquérito!

(Todos se olham... A música já começa ao fundo... Olimpic começa uma gargalhada... Os outros
vão aderindo, pouco a pouco... Ivan chora desolado... E a música vai crescendo e tomando
todo o ambiente)

CORTINA

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