Vous êtes sur la page 1sur 10

DOSSIÊ

PERFORMANCES CULTURAIS:
O OLHO PELO QUAL ENXERGAMOS
A NÓS MESMOS*

DOI 10.18224/frag.v28i3.6628

JOSÉ CARLOS LIMA COSTA**

Resumo: o presente artigo busca debater sobre o conceito de performances culturais, no


intuito de compreender a cultura como um espaço de reflexão sobre as práticas humanas.
As performances posicionam os indivíduos que delas participam tanto como espectadores
quanto como agentes de seus próprios processos sociais, pois, em seus movimentos reflexivos,
deixam descobertas as estruturas da sociedade e da cultura. Vale ressaltar que a cultura está
em constante movimento, ela é dinâmica e instável, e não deve ser encarada como algo fixo
e imutável. São estas as perspectivas analisadas aqui, levando em consideração o recorte das
performances culturais como um campo interdisciplinar.

Palavras-chave: Performances Culturais. Cultura. Fronteiras Políticas. Tradições.

O 
presente artigo resulta de reflexões desenvolvidas nas disciplinas “Teorias e Práticas
da Performance” e “Cultura, Arte e Estética” oferecidas pelo Programa de Pós-
Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais da Universidade Federal
de Goiás (UFG), ministradas pelos respectivos professores Dr. Robson Corrêa de Camargo
e Dr. Márcio Penna Corte Real.
Pretende-se debater aqui sobre o conceito de performances culturais, assinalando a
cultura como um ato reflexivo sobre as próprias práticas sociais e culturais. As performances
atribuem aos indivíduos um duplo posicionamento de plateia e, ao mesmo tempo, de atores,
pois, quando as pessoas produzem eventos performáticos, deixam descobertas as estruturas da
sociedade que estão em movimento, revelando o quanto os processos sociais são dinâmicos
e instáveis. Ler a cultura enquanto performance cultural é entendê-la como representação

* Recebido em: 20.11.2017. Aprovado em: 10.03.2018.


** Mestre em Performances Culturais Pela Universidade Federal de Goiás. Graduado em Teatro pela
Universidade Federal do Maranhão. Professor no Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão.
Pesquisador vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade nas Práticas Educativas
da UFMA. Ator. E-mail: teatrocarlos@gmail.com

362 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 28, n. 3, p. 362-371, jul./set. 2018.


das convicções, religiões e mitos de um povo. Os sujeitos se organizam em torno de tais
produções que fazem parte da liga que mantém unidos os elementos que trazem à tona, para
indivíduos de um determinado grupo social, o sentimento de coletividade.
Para tanto, procurou-se discutir o campo das performances culturais e sua interdis-
ciplinaridade, observando que se trata de um conceito guarda-chuva, sob o qual várias temáti-
cas podem ser discutidas ou abordadas. Trata-se de um campo em construção, em obras, mas
que permite algumas definições e direcionamentos. É possível observar, por meio das perfor-
mances culturais, as tensões e relações de poder estabelecidas entre culturas e classes sociais.
Elas revelam o quanto as tradições são fragmentadas, móveis, em constante transformação,
deslocamento e, consequentemente hibridação. Resultam das tensões sociais e culturais tanto
“processos de segregação como de hibridação entre os diversos setores sociais e seus sistemas
simbólicos” (CANCLINI, 2008, p. 40).
As populações humanas se diferenciam dos outros seres vivos por causa de suas prá-
ticas culturais que, ao mesmo tempo, carregam os seus pensamentos, os modos de ser e com-
preender o mundo e, ainda são meios de reflexão e problematização da própria vida social.
As práticas culturais são reflexivas porque são dinâmicas, são mecanismos para demonstrar
pontos de resistência e de transformação no seio de uma cultura. O ato reflexivo não pode
ser confundido com a ação do espelho de reproduzir a realidade, mas como um processo de
projeção dos indivíduos sobre sua realidade no intuito de apreendê-la e ressignificá-la.
Estudar a cultura e suas transformações seria uma saída para interpretações não
essencialistas dos comportamentos e organizações humanas. A divisão do trabalho por sexo,
a divisão social do trabalho e a organização da sociedade em classes dependem mais de pro-
cessos sociais e históricos ao longo dos quais grupos de pessoas foram compreendidos como
subalternos e, assim, incapazes de assumirem e desempenharem determinadas incumbências
do que determinações biológicas particulares.

PERFORMATIVIDADE REFLEXIVA

O termo “Performances Culturais” foi cunhado por Milton Singer em 1955. Sin-
ger, em seu trabalho de campo na Índia, observou que as unidades de pensamento não são
unidades de observação. O autor encontrou em seu caminho dados da experiência, deno-
minados por ele de unidades de observação cujas metodologias formuladas até então pelas
ciências sociais e antropologia não poderiam dar conta da complexidade destes fenômenos
encontrados em campo. Neste contexto, as performances culturais foram tomadas como ob-
jeto de análise das Estruturas de Tradições da Índia e como perspectiva metodológica para
analisar as unidades de observação levantadas em campo.
As Performances Culturais incluem aquilo que nós ocidentais frequentemente de-
nominamos de, “por exemplo, peças, concertos e leituras. Mas eles (os orientais) incluem
também orações, leituras rituais e declamações, ritos e cerimônias, festivais, celebrações e
todas aquelas coisas que nós frequentemente classificamos sob o ponto de vista da religião e
rituais em vez do cultural e artístico” (SINGER, 1972, p. 71)1.
O estudo das performances analisa as interligações entre as esferas tomadas de
modo binário dentro de um contínuo cultural, como, por exemplo, a cidade e o campo, o
popular e o erudito, as pequenas e grandes tradições etc, revelando as relações de interdepen-
dência instauradas entre estas esferas.
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 28, n. 3, p. 362-371, jul./set. 2018. 363
Victor Turner (1988) propõe que os gêneros performativos (alguns foram citados
acima) não são simplesmente expressões ou reflexos do sistema social ou cultural ou apenas catego-
rias e variantes de códigos de relacionamentos, mas um movimento reflexivo e recíproco, isto
quer dizer: as performances culturais podem ser tomadas como pontos de reflexão e crítica,
ou seja, é a maneira como as sociedades interpretam, ressignificam, e integram-se a sua pró-
pria cultura e produzem História.
Turner (1988) afirma que as performances podem ser compreendidas como even-
tos que não são organizados, tais como o fluxo da vida cotidiana, eles estão integrados à vida
cotidiana, mas não seguem a mesma dinâmica e, por isso, não podem ser encarados como
reproduções imagéticas da realidade.
As performances são eventos descontínuos realizados em intervalos de tempos de-
terminados e espaços separados das experiências diárias, mas fazem parte da própria vida
social (TURNER, 1988). Quando uma pessoa testemunha ou participa de uma performan-
ce, ela se envolve num ato reflexivo de sua própria cultura, ou seja, elas estão atribuindo
significado a suas próprias práticas como membros de determinada comunidade. Por isso, é
possível afirmar que as performances culturais são os “olhos” pelos quais a cultura enxerga a
si mesma e vai se ressignificando pelas casualidades emergentes no contexto social dentro do
qual é produzida.
Por isso, o caráter reflexivo das performances não pode ser entendido como um
simples reflexo, ou mesmo uma resposta automática a estímulos externos, mas uma atividade
inventiva, que agrega seus fragmentos para manter, nem sempre coerentes, mas coesos, os
elementos que constituem a cultura. Reflexivo não pode ser entendido como duplicação da
realidade, um realismo cultural, mas uma ação de moldar a matéria da cultura dentro dos
processos sociais.
A cultura é reflexiva porque no seio dela podemos perceber as tensões e os processos
de dominação estabelecidos na sua formação. Marx e Engels (1974) assinalam que “a classe
que dispõe de meios materiais, dispõe ao mesmo tempo, dos meios de produção intelectual,
de maneira que, em médias, as ideias daqueles a quem são recusados os meios de produção
intelectual estão desde logo submetidos a essa classe dominante” (MARX; ENGELS, 1974,
p. 22).
As ideias hegemônicas que circulam em um contexto cultural impõem-se como
grandes tradições, deixando à margem manifestações e produções culturais que viveram sob a
fronteira da escrita. Entretanto, os estudos das performances culturais permitem “repensar o
processo de formação de toda cultura que viveu e ainda vive sob o limiar da escrita” (BOSI,
1992, p.324). É preciso problematizar os binarismos e as barreiras instauradas pela domina-
ção de uma classe social sobre outra.
A reflexividade das performances é uma maneira de um sujeito representativo do
grupo ou o próprio grupo voltarem-se para seus próprios processos sociais. A performance
realiza um ato de “captação que faz dos dados objetivos da realidade, como dos laços que
prendam de um lado ao outro ou de um fato a outro, sendo naturalmente crítica, por isso,
reflexiva” (FREIRE, 1999, p.40). Nisso o ser humano projeta-se sobre sua própria realidade
como agente e espectador ao mesmo tempo.
Muitas performances marcam passagens, momentos de transporte, de atuação cole-
tiva. Performances podem colocar os participantes numa situação de liminaridade, pois, além
de serem desempenhadas em espaços específicos, muitas delas produzem espaços “ficcionais”
364 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 28, n. 3, p. 362-371, jul./set. 2018.
onde as testemunhas e performers são inseridos. As performances podem ser caracterizadas
como situações de suspensão nas quais os seres humanos vivenciam, encenam, desempenham
seus mitos, suas crenças, seus valores culturais.
Por esta razão, as performances são movimentos progressivos que se voltam sobre
si mesmos, alterando seu desenvolvimento e colocando todas as coisas em um modo subjun-
tivo, que expressa desejo, hipótese, “em vez de declarar real, a liminaridade e os fenômenos
liminares, dissimulam todos os sistemas factuais e do senso comum em suas composições e
‘jogam’ com eles de uma maneira nunca encontradas na natureza ou na cultura, pelo menos
no nível ou na percepção direta” (TURNER, 1988, p. 25)2.
A espetacularidade pública dos gêneros performativos absorve os olhares das mas-
sas, incluindo-os, muitas vezes, na ação, não mais como simples espectadores, mas como co-
autores do evento - tomando como base lugares abertos no meio das cidades, como quadras,
praças ou em vilarejos.
As performances podem ser eventos que transformam e transportam pessoas de
uma estrutura a outra da vida social. Elas permitem uma partilha mútua de experiências en-
tre audiência e performers. Abrem-se para o envolvimento coletivo, para sociabilidades, para
a partilha de sensações e experiências estéticas. Há grandes gêneros, como carnaval, rituais,
teatro, espetáculos abrem-se para o imprevisto, para a sempre improvisação, um momento de
“subversão” da ordem cotidiana instaurada.

Consciência Performática: o fluxo da vida nas performances

Schecher (2011), em “Pontos de Contato ente o Pensamento Antropológico e Tea-


tral”, tece uma discussão sobre as contribuições que a relação entre teatro e antropologia pode
oferecer. O autor aborda interseções de pensamentos em as referidas áreas e aponta que a relação
entre estas duas disciplinas permite uma expansão de suas fronteiras. No teatro, por exemplo,
vê-se emergindo pesquisas que exploram possibilidades técnicas de outras culturas, fazendo
emergir o que se passou a chamar de antropologia teatral, como em evidência no trecho abaixo:

Antropologia Teatral é o estudo do comportamento cênico pré-expressivo sobre o qual estão basea-
dos diferentes gêneros, estilos, papeis e tradições pessoais e coletivas. No contexto da Antropologia
Teatral, a palavra ‘performer’ pode significar ‘ator ou dançarino’, ambos masculinos e femininos.
‘Teatro’ pode significar ‘teatro e dança’3 (BARBA, 2005, p. 9).

Necessário é considerar que a representação é uma necessidade primordial humana


e quando o sujeito desempenha suas cerimônias, seus rituais, está performando a si mesmo,
o seu fluxo de vida. A antropologia teatral pode ser compreendida como um apanhado de
técnicas, de comportamentos cênicos, definido por Barba (2005) como “pré-expressivo” e que
compõem a “arte secreta” do ator. Trata-se de uma diversidade de gêneros, desde tradições
pessoais até tradições coletivas. Nesse sentido, o teatro e, consequentemente, o treinamento
do ator, seriam oportunidades para revisitar algumas práticas culturais.
Vale lembrar que tanto no teatro quanto na vida cotidiana, em cerimônias e rituais
há momentos em que os indivíduos são levados a representar papeis, instantes nos quais se
situa no duplo negativo analisado por Schechner (2011) (“não”… e “não não”…), ou seja,
no entre lugares, dividindo-se entre seu eu e outras personas (que fazem parte dele mesmo).
Assim, aquilo que ele personifica dentro de um transe, no sentido religioso ou cerimonial,
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 28, n. 3, p. 362-371, jul./set. 2018. 365
ou mesmo na própria arte, é uma projeção do “eu”, ou de uma multiplicidade de “eus” coe-
xistindo, Schechner (2011, p. 215) observa:

Não é que um performer deixa de ser ela ou ele mesmo quando ela ou ele se tornam outros – eus
múltiplos coexistindo em uma tensão dialética não resolvida. Assim como uma marionete não
deixa de ser ‘morto’ quando é animado, o performer não deixa de ser, em algum nível, seu eu
comum quando ele é possuído por um deus ou interpreta o papel de Ofélia (SCHECHNER,
2011, p. 215).

Portanto, vários níveis de transformações temporárias ou permanentes são experimen-


tados dentro de uma performance. Vale ressaltar que a performance opera transformações nas
pessoas que participam. “Seja permanentemente, como em ritos iniciáticos, ou temporariamente,
como no teatro estético ou em danças em transe, os performers – e algumas vezes os espectadores
também – são alterados pela atividade de performatizar” (SCHECHNER, 2011, p. 213).
As transformações permanentes acontecem, geralmente, em determinados ritos de
passagens e cerimônias desempenhadas para marcar ou provocar um transporte de um indiví-
duo dentro da estrutura social. Estas performances se diferenciam das transformações tempo-
rárias experimentadas durante os transes e outros eventos como no teatro. Schechner (2011,
p. 215) destaca que as “transformações do ser que compõem a realidade da performance evi-
denciam a si mesmos em todo tipo de anacronismos e combinações estranhas e incongruentes
que refletem as qualidades liminais da performance”.
Assim, todos os sistemas de transformação performáticos jogam com as qualidades
do tempo e do espaço; coadunam-se “onde e quando”, “aqui e agora”, sem a exclusão de
nenhuma destas qualidades espaciais e temporais. As performances estão nos fluxos da vida.
A performance na qual não há transformação permanente fundamentam-se na par-
tícula “como se” e nas palavras de Schechner (2011, p.19), são “ilusão da ilusão e, como tal,
deve ser considerada mais ‘cheia de verdade’, mais ‘real’ que uma experiência comum”. “Tornar-
-se outro” inclui um estado de consciência entre lugares (SCHECHNER, 2011). A pessoa em
transe não sai inteiramente de si, ela não perde a consciência e, ao mesmo tempo, presentifica
um duplo que não é a própria pessoa, mas um outro.
A “consciência performática” (SCHECHNER, 2011, p. 215) apresenta alternativas,
possibilidades de rearranjos, diferentemente da vida cotidiana, na qual todas as coisas cumprem
uma determinada finalidade. Nas performances, os sujeitos perambulam pelas trilhas do “si ou
como si”, bem como podem trilhar as vias da incerteza, do ensaio e da reordenação comum ao
teatro e a determinadas cerimônias. Neste contexto, a forma ou a intensidade experimentada pelos
participantes de uma performance dependem muito do envolvimento dos participantes nas ações
propostas, do ritmo e da profundidade, que são determinados pelo modo como é conduzida a
reunião. Estar em fluxo é ser levado para dentro do sentimento de êxtase, é despertar dentro de
si um sentimento de pertencimento àquela comunidade, como se fossem um organismo só, no
qual cada um formasse uma célula ou “membro” de tal “corpo”. Nestes casos, estas performances
envolvem diretamente a audiência, que é “contaminada” pelo clímax que envolve o ambiente.

SABERES E PODERES NAS PERFORMANCES CULTURAIS

É importante compreender a cultura como o lugar no qual os sujeitos representam


a si mesmos, suas reivindicações e convicções. Uma análise da cultura na perspectiva dos

366 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 28, n. 3, p. 362-371, jul./set. 2018.


estudos das performances é uma oportunidade para se reinscrever os processos culturais no
contexto dos antagonismos sociais (BHABHA, 2014).
As performances culturais oferecem uma leitura a contrapelo dos processos histó-
ricos e culturais. Isto acontece porque propõem analisar a cultura extrapolando os elementos
materiais: artefatos e objetos de arte (por exemplo), e apresenta a cultura como uma textu-
alidade simbólica (BHABHA, 2014). Trata-se de uma oportunidade para se desconstruir
discursos que unificam e sacralizam noções como nação e grandes tradições autênticas e uni-
ficadas, como em destaque no trecho a seguir:

O discurso natural(izado), unificador, da “nação”, dos “povos” ou tradição “popular” autêntica, esses
mitos incrustrados da particularidade da cultura, não pode ser referências imediatas. A grande, em-
bora desestabilizadora, vantagem dessa posição é que ela nos torna progressivamente conscientes da
construção da cultura e da invenção da tradição (BHABHA, 2014, p. 277).

Com isso, fronteiras políticas se revelam mais permeáveis e as distribuições irregu-


lares de poderes são demonstradas como processos sociais, culturais e históricos bem locali-
zados. Tais fenômenos são representados constantemente nas performances elaboradas no
contexto de cada cultura.
Como exemplo, no caso de manifestações da religiosidade e festividades populares
maranhenses, vemos que o encontro entre culturas (sobretudo as europeias, africanas e in-
dígenas) não aconteceu de maneira pacífica ou passiva, pois, neste contexto, pensamentos e
saberes institucionalizados ganharam legitimidade enquanto saberes orais e empíricos não re-
ceberam o mesmo prestígio na sociedade brasileira (BOSI, 1999). Por causa disso, os conhe-
cimentos da fé africanas (que deram origem a grande parte das religiosidades e festividades
populares maranhenses) foram interditados, pois a imposição do catolicismo romano fez com
que, ao longo do tempo, os cultos afros incorporassem alguns símbolos da fé colonizadora, o
que permitiu sua sobrevivência clandestina no Brasil. Dessa forma, “a aproximação dos negros
africanos e seus descendentes com o mundo do colonizador foi sempre impregnada de um
simbolismo que hoje revela uma extraordinária coerência e uma profunda sabedoria e opor-
tunismo na comunhão forçada com os valores de classe dos senhores” (FERRETTI, 2002, p.
32). A incorporação dos símbolos religiosos dos colonizadores na fé africana funcionou como
uma forma de resistência e sobrevivência dos saberes trazidos da África para o Brasil.
Como em evidência acima a cultura pode ser compreendida como um espaço de
saberes e de tensões. A cultura portuguesa impôs-se como uma forma legítima de saber cultu-
ral, deslegitimando outras formas de saber, como as indígenas e africanas reunidas no Brasil
colônia. Bhabha (2014) argumenta que a exploração e a discriminação colonial são autori-
zadas pelo reconhecimento da diferença enquanto algo natural, tomando como referências
estereótipos essencialistas associados a cor da pele.
Este é precisamente o tipo de reconhecimento, espontâneo e visível, que é atribuído
ao estereótipo. A diferença do objeto da discriminação e ao mesmo tempo visível e natural
– cor como ‘signo’ cultural/político de inferioridade ou degeneração, a pele como sua ‘iden-
tidade’ natural (BHABHA, 2014, p. 123, grifo nosso).
No sistema colonial brasileiro a cor da pele apresentou-se como um sinal de infe-
rioridade e, consequentemente, uma justificativa para a exploração e discriminação. Assim ao
olharmos para a cultura brasileira, mais especificadamente a cultura maranhense, poderemos
enxergar que o processo de colonização brasileiro se baseou na exploração e violências contra
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 28, n. 3, p. 362-371, jul./set. 2018. 367
homens e mulheres aborígenes e contra aqueles/as que foram trazidos/as de várias nações do
continente africano. Os africanos foram inseridos num sistema de dominação colonial pau-
tado no silenciamento de suas memórias, de suas práticas culturais, de sua religião, de suas
formas de existência. “Nesse contexto, vivendo sob o julgo do trabalho forçado, torturado e
oprimido, poucas chances tinha o negro escravo de praticar os seus rituais de origem” (FER-
RETTI, 2002, p. 32).
O sistema colonialista português implantado no Brasil justificou sua exploração
do continente americano por meio de um conceito de civilização baseado na confiança de
que todas as culturas seguiriam a mesma trajetória histórica em relação ao desenvolvimento
tecnológico e científico. Esse ideal de cultura evidencia que o progresso é proporcional aos
conhecimentos científicos adquiridos (CUCHE, 1999).
Este pensamento justificou a implantação do sistema colonial brasileiro, alimentan-
do uma relação de dependência e exploração do Brasil pela Coroa Portuguesa. Esta percepção
universalista a respeito de cultura compreendia o desenvolvimento das comunidades huma-
nas seguindo uma linha plana, uniforme e contínua com ritmos diferentes ao estágio no qual
se encontrava a Europa, especialmente a França do século XVI.
No final do século XIX, o Brasil passou por um processo de transformação. Neste
período, como destaca D’Ianco (2006), uma moral burguesa e um espírito de europeização
(sinônimo de civilização) instauraram-se entre as elites brasileiras, de modo que até as mani-
festações culturais populares foram banidas do meio social, reprimidas e consequentemente
proibidas, pois se distinguiam do que era considerado civilizado. Assim, alguns cultos e festas
deixaram o espaço da cidade e migraram para lugares mais escondidos. Neste período, alguns
prédios foram demolidos, ruas foram construídas, a arquitetura sofreu mudanças significa-
tivas, a noção de público e privado foi delimitada com mais evidência, e espaços de praças e
ruas receberam um novo tratamento, passando a ser administradas pela elite governante para
que se mantivesse a ordem e os limites estabelecidos não fossem ultrapassados.
Tais tensões ficam expressas nos gêneros performativos, sobretudo da cultura popu-
lar brasileira, quando os performers sobem aos palcos, adentram terreiros ou outros espaços
encenando/representando a trajetória histórica de seu grupo social e evidenciando todas as
tecnologias de silenciamento e exclusão operadas contra suas manifestações culturais e cultu-
ais. Os Estudos da Performance, portanto, precisam lidar com as polarizações, no intuito não
de reforçar, mas de problematizar os binarismos e as distribuições desiguais de força.

Fricções entre a Tradição e o Presente

As manifestações culturais de origem africana frente às tecnologias de repressão,


para sua sobrevivência, tiveram que se ressignificar e buscar vias de resistência. De fato, den-
tro da própria estrutura da cultura, há momentos em que se vivenciam transformações de
elementos culturais e de suas manifestações. Isso não desqualifica as transformações culturais
e manifestações emergentes, ao contrário, permite evidenciar as soluções criativas para os pro-
blemas enfrentados pelos grupos sociais, revelando também que os modos de fazer e pensar
dos sujeitos vão se transformando, bem como as constantes experimentações levam a estas
mudanças.
O Tambor de Crioula do Maranhão é um exemplo dessa transformação. Trata-se
de uma dança popular criada por afro-brasileiros, comum ao estado do Maranhão. Nela,
368 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 28, n. 3, p. 362-371, jul./set. 2018.
apenas as mulheres dançam em círculo com saias rodadas e coloridas em volta de tambores
ou atabaques tocados pelos homens. As músicas ou toadas são puxadas pelos homens ou
por um homem mais velho, o qual é acompanhado por todos que assistem à performance e
também pelas dançarinas. A cadência do tambor é determinada pela música. Há dois tipos
de dirigentes, uma feminina, que coordena a roda e um masculino, que coordena as toadas
e, consequentemente, a cadência dos tambores. Os cantos podem ser livres ou improvisados,
havendo, muitas vezes, recortes e colagens de outros cânticos. É dançado com finalidades
religiosas, mas pode acontecer por qualquer outro motivo (reunião de amigos, festas de ani-
versário e etc.). Não há data específica no calendário festivo do estado do Maranhão para o
acontecimento do tambor. Sobre o tambor de crioula observa-se:

Manifestação cultural criada por afrodescendentes, o tambor de crioula é uma dança popular muito
conhecida e apreciada no Maranhão. Assemelha-se a outras danças como o samba de roda da Bahia,
o jongo do Sudeste ou o batuque paulista que se caracterizam pela umbigada ou punga, contato
frente a frente entre duas pessoas na dança. A palavra crioula relaciona-se com o papel da mulher, e
tambor deriva da importância básica deste instrumento musical na dança (FERRETTI, 2002, p. 2).

No tambor de crioula, portanto, coexistem tanto o aspecto religioso ou espiritu-


al quanto secular. Trata-se de uma dança frequentemente desempenhada em homenagem
ao santo do Catolicismo São Benedito ou a entidades do Tambor de Mina4 (geralmente
quando associada a divindade, denomina-se tambor de promessa). Mas esta celebração
coexiste com seu duplo artístico, constantemente dançada em palcos por companhias de
teatro ou de dança que se apropriam da manifestação com todos os seus elementos e a
deslocam das ruas, terreiros, largos para os teatros fechados, Assim, a “antiga” configura-
ção, na qual os passantes que sentissem animados para dançar ou cantar ou até tocar os
atabaques (se souberem), integram-se ao grupo e celebrando também, é desempenhada
pelos performers, no palco de casas de espetáculo, em frente a uma audiência. Bhabha
(2014, p. 27) destaca:

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não seja parte do continuum
de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa
arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético ela renova o passado,
refigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente.
O ‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver.

Como em evidência acima o confronto entre o passado e o “novo” aciona um


processo de tradução cultural que desloca o passado para um “entre-lugar”. A relação passado-
presente não aparece, agora, como um resgate nostálgico, mas como resposta às inquietações
das novas gerações. No caso das performances as constantes recombinações e criação de
novos comportamentos, inseridos nos comportamentos anteriores das performances é
prevista por Schecher (1985), quando assinala o comportamento restaurado enquanto uma
trama de recombinações de outros comportamentos. O autor em foco usa a metáfora de um
diretor de cinema organizando “tapes” de um filme, os quais são ordenados de acordo com a
individualidade do diretor. A performance cultural “is restored behavior” nas quais as chamas
dos significados são avivadas pela constante fricção entre as formas enrijecidas da tradição
com a flexibilidade e novidade do presente (TURNER, p. XI, 1985). É importante lembrar,
portanto, que a cultura e suas manifestações sofrem transformações, são mutáveis.

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 28, n. 3, p. 362-371, jul./set. 2018. 369


CONCLUSÃO

Performance é um conceito abrangente, integra uma multiplicidade de práticas cul-


turais tomando as coisas em seu movimento, em suas relações históricas e dialógicas. A versa-
tilidade do conceito de performance propicia interlocução entre várias áreas do conhecimento
e da prática cultural, assim ela pode ser descentralizada e desarraigada de qualquer disciplina.
As performances que integra tanto os elementos formais que constituem sua comunicação
quanto materiais latentes para uma reflexão sobre o contexto social ao qual se refere.
As performances culturais inserem espectadores e performers num processo reflexivo
de autorrepresentação e reflexão sobre a própria prática social dos indivíduos, em um fluxo
de vida como eventos apartados da vida comum, mas que a constituem. As performances
iniciam as pessoas nos processos da sua própria cultura, tornando-as espectadores e agentes
num movimento reflexivo.
As performances desvelam a cultura como um espaço descontínuo, fragmentado e
em movimento. Um ritual, uma cerimônia ou outra performance cultural pode ser reelabora
em seus pequenos aspectos. Quando alguns trechos não causam o efeito que o feiticeiro, pa-
dre, pastor, babalorixá ou sacerdote espera, pode ser retirado e inserido outro comportamen-
to, outro fragmento ainda não experimentado por aquele grupo. Bem como no teatro nos
quais os ensaios são oportunidades de errar, e produzir possibilidades artísticas e combinações
de gestos, falas, inflexões, enfim, numa performance as recombinações são numerosas.
Schechner (2011) apresenta possibilidades para se pensar as relações entre antropo-
logia e teatro, isto porque estudos nestas duas áreas têm se alargado cada vez mais com o pas-
sar dos tempos. É possível ver elementos, compreendidos por muito tempo enquanto teatrais
no contexto das tradições culturais, inseridos de maneira conscientes ou inconscientes e, do
mesmo modo, nas pesquisas e produções teatrais é possível observar que as tradições cultu-
rais, de um determinado contexto social, servem tanto como enredos quanto como elemento
estruturante presente nos treinamentos e processos de criação.
Os Estudos da Performance evidenciam que as manifestações culturais implicam um
entendimento global do contexto sociocultural e histórico no qual são produzidas. Os gêneros
performativos são compostos por signos e elementos intencionalmente ordenados, são uni-
dades comunicativas específicas que dialogam com as convenções estabelecidas na socieda-
de. As performances revelam uma tensão entre expressão e forma, ou seja, elementos organiza-
dos pela subjetividade dos/as performers e códigos partilhados pelos membros do grupo social.

CULTURAL PERFORMANCES: THE EYE BY WHICH WE SEE OURSELVES

Abstract: the present paper intend to discuss about the concept of cultural performances, in order to
understand the culture how a place to reflection of the human practices. The performances positions
individuals who participate as much as spectators as agents of its owns social process, because, in
its reflexives movements, expose the structures of the society and of the culture. It is worth pointing
out the culture is in movement constant, it is dynamic and unstable, and not must to be viewed
as something fixed and immutable. This is the perspectives analyzed here, taking into account the
approach of the cultural performances as an interdisciplinary field.

Keywords: Cultural Performances. Culture. Politics Frontiers. Traditions.


370 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 28, n. 3, p. 362-371, jul./set. 2018.
Notas
1 For example, plays, concerts, and lectures. But they (Eastern) include also prayers, ritual reading and
recitations, rites and ceremonies, festivals, festivals and all those things which we usually classify under
religion and ritual rather than with the cultural and artistic” (SINGER, 1972, p. 71).
2 (…) rather than stating actual, so do liminality and the phenomena of liminality dissolve all factual and
commonsense systems into their components and ‘play’ with them in ways never found in nature or in
custom, at least at the level or direct perception” (TURNER, p. 25, 1988).
3 Theatre Anthropology is the study of the pre-expressive scenic behavior upon which different genres, styles,
roles and personal or collective traditions are all based. In the context of Theatre Anthropology, the word
‘performer’ should be taken to mean ‘actor and dancer’, both male and female. ‘Theatre’ should be taken to
mean ‘theatre and dance’ (BARBA, 2005, p. 9).
4 Religião de matriz africana que surgiu no Maranhão e se espalhou por alguns estados do Norte e alguns
estados do Brasil. No Tambor de Mina são cultuados voduns (são forças da natureza e ancestrais humanos
que se tornaram divindades) e orixás, gentis (nobres relacionados a orixás ou entidades de origem africanas,
mas com nomes brasileiros) (FERRETTI, 1996).

Referências

BARBA, Eugenio. The Paper Canoe: a guide to theatre anthropology. Translated by Richard
Fowler. New York: Routledge, London and New York, 2005.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2014.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernida-
de. São Paulo: Edusp, 2008.
CUCHE, Denys. A noção da cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 1999.
D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e Família burguesa. In: PRIORE, Mary Del. História das
mulheres no Brasil. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
FERRETTI, Mundicarmo. Tambor de Mina e Umbanda: o culto aos caboclos no Mara-
nhão. Jornal do CEUCAB-RS: O Triângulo Sagrado, ano III, n. 39, 1996.
FERRETTI, Sérgio. Tambor de Crioula: ritual e espetáculo. 3. ed. São Luís: Comissão Ma-
ranhense de Folclore, 2002.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
MARX, K.; ENGELS, F. Sobre literatura e arte. 4. ed. Lisboa: Estampa, 1974.
SCHECHNER, Richard. Between Theatre and Anthropology. University of Pennsilvania
Press, 1985.
SCHECHNER, Richard. Pontos de contato entre o pensamento antropológico e o teatral.
Cadernos de Campo, n. 20, p. 213-236, 2011.
SINGER, M. Traditional India: Structure and Change. Philadelphia, Pennsylvania: Ameri-
can Folklore Society, 1972.
TURNER, Victor W. Foreword. In: TURNER, Victor W. Between theatre and anthropology.
Philadelphia: UPP, 1985.
TURNER, Victor W. The anthropology of performance. New York: Performing Arts Journal,
1988.

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 28, n. 3, p. 362-371, jul./set. 2018. 371

Vous aimerez peut-être aussi