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Criatividade: suas origens e

produtos sob uma


perspectiva comportamental
Hernando Borges Neves Filho

Criatividade: suas origens e


produtos sob uma
perspectiva comportamental

Primeira Edição

Fortaleza
Imagine Publicações
2018
c
Copyright 2018 da 1ª edição pela Imagine Publicações Ltda.

ISBN: 978-85-54337-00-1
Capa: Talitha Lobato
Coordenação: Felipe Leite
Edição: Roberto Leite
Revisão: Felipe Leite, Hernando Borges, Roberto Leite, João Pedro Ma-
galhães
Projeto gráfico e editoração eletrônica: João Pedro Magalhães

2018
Todos os direitos em lingua portuguesa reservados pela
IMAGINE PUBLICAÇÕES LDTA.
Rua Doutor Gilberto Studart, 55 - Sala 1502 - T1
CEP: 60192-105 - Cocó - Fortaleza - CE
Telefone: (85) 3246-1706
Email: imaginepublica@gmail.com

Impresso no Brasil pela [...]


Prefácio

A compreensão sobre inovação, resolução de problemas e emergência de


comportamentos novos sempre intrigou a humanidade. Nossa espécie é
única em termos de como transforma o ambiente e como continuamente
desenvolve soluções para problemas com os quais nos deparamos (muitos
que nós mesmos criamos, até). Nesse sentido, o estudo da criatividade é
de interesse de artistas, arquitetos, engenheiros, escritores, músicos, ato-
res, comunicólogos, administradores, empreendedores, psicólogos... En-
fim, qualquer ser humano que se depara com uma situação-problema
nova e busca uma solução nova.
Tal processo é focado na Psicologia há tempos, tipo como um processo
psicológico de alta complexidade, e recorrentemente ouvia-se (e ainda se
ouve) críticas de que a Análise do Comportamento não apresenta ferra-
mentas para lidar com tal fenômeno. Felizmente, eu tive o prazer de
acompanhar o desenvolvimento da carreira acadêmica do Dr. Hernando
Borges Neves Filho que vem buscando compreender minuciosamente o
fenômeno da criatividade sob uma perspectiva analítico-comportamental,
tema com o qual trabalha desde 2008, quando ingressou no mestrado
e nos conhecemos. Já nesta época, ele se mostrava um cientista minu-
cioso e curioso, leitor e estudioso ávido, e um excelente delineador de
experimentos.
Desde 2013 (Neves Filho & Carvalho Neto, 2013) ele vem apresentando
publicações sobre o tema, incluindo pesquisas relatadas em periódicos
internacionais (e.g., Neves Filho, Stella, Dicezare & Garcia-Mijares, 2015;
Neves Filho, Carvalho Neto, Tayteulbaum, Malheiros & Knaus, 2016) e até
resgatando pesquisadores esquecidos sobre o tema, como N. R. F. Maier
(Neves Filho, 2017). Atualmente ele se mostra como uma liderança nesta
emergente linha de pesquisa aqui no Brasil.
Assim, a obra Criatividade: suas origens e produtos sob uma perspec-
tiva comportamental vem para se firmar como um ponto de marco em sua

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produção, na qual o autor sintetiza a produção da área de modo completo
e didático, com uma humilde ênfase em informar e educar, e não mostrar
erudição. Algo que, às vezes, falta em produções acadêmicas pautadas em
personalismo.
A primeira parte da obra traça uma visão geral do tema e vai afu-
nilando até uma apresentação de uma postura analítico-comportamental
geral da criatividade, passando aí por apresentação de outras aborda-
gens psicológicas do tema. Já a segunda parte aprofunda as investigações
analítico-comportamentais sobre criatividade, partindo de relacionar o tó-
pico com processos básicos, modelos diversos analítico-comportamentais
para lidar com comportamentos novos e/ou emergentes e, por fim, um
capítulo que fecha de forma exitosa, abordando inovação, cultura, ética e
educação e suas relações com criatividade.
Este livro tem um sabor especial como primeiro lançamento da Imagine
Publicações, tanto por cumprir nosso objetivo de dar espaço para jovens
analistas do comportamento que se destacam em linhas de pesquisa emer-
gentes no país, como por ser uma obra do Hernando, que é uma pessoa
dedicada, humilde e que, creio eu, deixará sua marca como um grande
cientista do comportamento brasileiro. Além disso, este livro é produto
de um sonho dele e meu, de nossa geração tomar as rédeas da produção
científica e buscarmos fazer as coisas também do nosso jeito, mas nunca
esquecendo o que aprendemos sobre rigor científico e preocupação com
qualidade de produção de conhecimento.
Espero que vocês, leitores, apreciem a obra, estudem o tema e que
possam usar o conhecimento aqui apresentado no dia-a-dia acadêmico
e/ou profissional de vocês.
Nos vemos na estrada!

Felipe Lustosa Leite


Analista do comportamento e diretor-presidente da Imagine Publicações
Sumário

Introdução à Obra 5

I 9
1 Criatividade: definições e medidas 11
1.1 Criatividade: do mito ao processo . . . . . . . . . . . . . . 14
1.2 Como medir a criatividade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
1.3 Criatividade e inovação: a criatividade com “c” minúsculo
e a Criatividade com “C” maiúsculo . . . . . . . . . . . . . 23
1.4 Questões de estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
1.5 Notas do capítulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

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4
Introdução à Obra

No século XX, século do surgimento da Análise do Comportamento, esta


foi atacada como uma tradição psicológica mecanicista (o que hoje não
é), reducionista (o que hoje não é) e que se recusava, ou eliminava, pro-
cessos complexos tipicamente humanos de seu escopo científico (o que
também não é o caso, conferir. Zilio & Neves Filho, no prelo). Ainda no
século XXI, tal visão persiste em alguns segmentos, entretanto, isso em
nada brecou o desenvolvimento da área. O presente livro é uma prova de
que estas críticas provenientes do século passado sobre a área hoje são
anacrônicas e infundadas. Esta obra resume pouco mais de dez anos de
pesquisa do autor, que começou a investigar a criatividade ainda em seu
mestrado, seguindo pelo doutorado, pós-doutorados e hoje continua como
tema central de sua carreira como pesquisador. A ideia do livro surgiu ao
observar que, apesar de haver bastante material sobre uma análise com-
portamental da criatividade, tanto em língua inglesa como em português,
não havia uma obra que sintetizasse achados e posturas perante o tema,
e muito menos uma obra que relacionasse a pesquisa operante da cria-
tividade com outras áreas que também investigam o fenômeno. Partindo
disso, delineou-se a obra aqui disponível.
Ao conceber a estrutura do livro, optou-se por uma estrutura didática,
com claros apontamentos do que cada capítulo apresenta e questões de
estudo. Nesse sentido, a escrita tenta evitar ao máximo jargões e digres-
sões históricas e técnicas. Entretanto, recentemente foi apontado que di-
versos livros textos de Psicologia tendem a evitar as controvérsias da área,
que não são poucas (Fergusson, Brown & Torres, 2016; Wilson, 2017). Assim,
é comum encontrar em livros textos e obras didáticas uma apresentação
enxuta de temas complexos, que acabam por construir um cenário irreal
repleto de questões bem resolvidas. Bem ou mal, a controvérsia é um dos
motores da ciência, e privar o leitor e leitora disso é ocultar como a ciên-
cia é feita. Para evitar esse problema, notas de rodapé foram adicionadas

5
sempre que um tema é em alguma medida controverso, ou passível de crí-
ticas bem fundamentadas. Nesse sentido, o texto dos capítulos pretende
ser agradável e palatável a leitores de diferentes origens, como estudantes
de psicologia, analistas do comportamento, pessoas interessadas em arte
e criatividade, e leitores de ciência em geral.
Apesar do foco principal do livro ser uma análise operante da cria-
tividade, os Capítulos 1 e 2 fazem uma breve apresentação de diversas
metodologias de investigação do fenômeno. Em diversos capítulos especí-
ficos sobre tópicos da Análise do Comportamento, os pontos apresentados
nos Capítulos 1 e 2 são retomados, na tentativa de situar a pesquisa ope-
rante sobre a criatividade no panorama de investigação do tema. Uma das
maneiras de estimular a criatividade é se expor a diferentes estímulos e
recombiná-los, assim, o diálogo com outras áreas e outras metodologias é
tanto uma fonte valiosa de ideias de pesquisa como também uma maneira
certeira de não produzir um conhecimento isolado e alienado. Assim, a
Parte I do livro dedica-se a apresentar o que é a criatividade, as principais
abordagens psicológicas que investigam o tema e como é possível uma
análise operante de comportamentos novos. Na Parte II são apresentados
em detalhes os processos comportamentais responsáveis pela origem e
manutenção da criatividade. O último capítulo (Capítulo 7), é um esboço
dos tópicos aos quais o autor pretende se dedicar com mais atenção nos
próximos anos, tópicos estes que versam sobre o papel da criatividade na
cultura e educação.
Leitores e leitoras astutos podem acusar o autor de um abuso de
longas citações de outras obras. Tal acusação é real e valida. Como
este trabalho pretende ser uma apresentação de diferentes tradições de
pesquisa, optou-se por mostrar o que expoentes e referências dessas áreas
expuseram, comentaram e argumentaram. A apresentação deste material
de terceiros, em sua maioria de originais em inglês, com tradução livre do
autor (que desde já pede perdão pelo papel inescapável e autoconcebido
de traduttore, traditore), é uma tentativa de aguçar a curiosidade do leitor
ou leitora, que pode eventualmente se interessar em ler a obra referenciada
em sua completude. Além disso, todas estas citações são explicadas,
detalhadas e recombinadas umas com as outras, a fim de tentar buscar
semelhanças e diferenças entre estas, principal meta deste livro.
Dito isto, o autor gostaria de agradecer à Imagine Editora, nas pessoas
de Felipe Leite e Lidiane Lins que incentivaram e tornaram possível a
publicação e livre acesso desta obra. Agradeço também os colegas Paulo

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Henrique Módena Coutinho e Nicolau Chaud pela revisão e feedback de
capítulos específicos. O autor também agradece Yulla Christoffersen Knaus
pela confecção das figuras 2.4, 2.5, 3.2, 4.3 e 4.4, e Tom Machnik, do Harold
Cohen Trust, que gentilmente cedeu o direito de reprodução da figura 2.11.
O autor é também grato a seus ex-orientadores e supervisores, hoje
colegas de profissão, Olavo de Faria Galvão (que também gentilmente ce-
deu o direito de reprodução das figuras 2.7 e 2.9), Marcus Bentes de
Carvalho Neto, Miriam Garcia-Mijares, Alex Taylor e Lauro Nalini. O autor
agradece também às agências de fomento FAPESPA, CNPq, CAPES e FAPEG,
responsáveis pelo auxílio e fomento às pesquisas realizadas nestes últi-
mos dez anos debruçados sobre as origens da criatividade. Curiosamente,
alguns pesquisadores estimam que são necessários dez anos de trabalho
e acumulo de conhecimento para que uma pessoa tenha boas chances
de produzir uma ideia ou produto novo socialmente relevante (Ericsson,
Krampe & Tesch-Römer, 1993; Martindale, 2009a). Espero que este livro
contenha ao menos um exemplo que corrobore esta estimativa.

7
8
Parte I

9
Capítulo 1

Criatividade: definições
e medidas

Objetivos do capítulo: Ao final do capítulo, o leitor ou leitora deverá


ser capaz de identificar e dar exemplos de algumas maneiras como a cria-
tividade foi vista durante a história humana e como hoje em dia podemos
distinguir a criatividade em sua faceta cotidiana e extraordinária.

Principais temas abordados no capítulo: a definição tradicional


e vernácula de criatividade, a noção histórica de acumulo de eventos, a
noção de contingência entre eventos, determinismo e ciência, história do
termo criatividade, como medir a criatividade e dois tipos de criatividade
(a criatividade individual e a criatividade histórica).

A criatividade é uma faceta da vida humana merecedora de fascí-


nio. Arte, ciência, tecnologia e muitas outras práticas humanas estão
intimamente ligadas ao que tradicionalmente chamamos de criatividade.
Criatividade, advém de criar:
criatividade
/cri.a.ti.vi.da.de

do latim creare
sf (criativo+i+dade)

1 Qualidade ou estado de ser criativo.


2 Capacidade de criar. (Dicionário Michaelis da Lingua Portu-
guesa)

11
Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas

Há alguns milhões de anos, nossos ancestrais vagavam por terras inós-


pitas com pouco mais do que uma rudimentar tecnologia baseada em
pedras e galhos (para uma relato arqueológico da viagem humana, com
foco cognitivo-comportamental, conferir Corballis, 1991; Mithen, 1996; To-
masello, 2014). Hoje, nós, os descendentes sobreviventes, gastamos boa
parte de nossa vida batendo coordenadamente em teclas que contém sím-
bolos, que possibilitam o compartilhamento de informação em tempo real,
a despeito da distância, em monitores eletricamente iluminados. Como
saímos de um ponto ao outro?
A história das coisas é uma história contínua, permeada por um cons-
tante acúmulo. Tudo ao nosso redor é o resultado de um acumulo de
eventos históricos. Os aspectos dos continentes que hoje temos cartogra-
fados são o resultado do movimento de placas tectônicas de bilhões de
anos (Hallam, 1973). Plantas, pássaros, animais de estimação como cães e
gatos, e os demais seres vivos, incluindo os seres humanos, são o resul-
tado de uma cadeia ininterrupta de descendência, sujeita a um processo
evolutivo natural e cumulativo, com seus processos de variação, seleção
e retenção (Darwin, 1859). Para que o Brasil hoje seja o país do futebol,
foi necessário que os ingleses trouxessem o esporte para cá, no fim do
século XIX (Wilson, 2013), assim como, da mesma maneira para que hoje a
indústria dos videogames seja uma das mais prolíficas do mundo, foi ne-
cessário que alguns jovens brincassem com a possibilidade de manipular
pixels exibidos em tubos de raios catódicos (Wolf, 2007). Tudo ao nosso
redor possui uma história. A sua cadeira, a sua cama e toda sua mobília
foram construídas por pessoas em diferentes lugares no passado, pessoas
estas que utilizaram materiais e padrões estéticos de uma determinada
cultura. Da mesma forma, sua casa ou seu prédio foram construídos
seguindo os desígnios arquitetônicos e tecnológicos de uma época especí-
fica. Sua cidade, seu estado, seu país possuem uma história de formação,
com diferentes delimitações, migrações e nomeações. Esta visão histó-
rica sobre a origem dos fenômenos implica em pelo menos duas noções
essenciais ao pensamento científico: contingência e determinismo.
Sobre o papel da contingência na narrativa científica, o eminente pa-
leontólogo e biólogo evolucionista Stephen Jay Gould (1989) escreve:

Explicações históricas têm a forma de narrativas: ‘E’, o fenô-


meno a ser explicado, surge pois ‘D’ ocorreu anteriormente,
e foi por sua vez precedido por ‘C’, ‘B’ e ‘A’. Se quaisquer um

12
Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas

desses estágios não tivesse ocorrido, ou tivesse ocorrido de


forma diferente, ‘E’ então não existiria (ou existiria em uma
forma substancialmente diferente, ‘Ex’, que por sua vez re-
quereria uma explicação diferente) [...] Não estou falando de
aleatoriedade (pois o surgimento de ‘E’ é uma consequência
de ‘A’ a ‘D’), mas sim do princípio central de toda história –
contingência (Gould, 1989, p. 283, tradução livre).

Contingência é um tipo de relação de dependência, que pode ser di-


daticamente entendida, em sua forma mais simples, como uma relação
“se ... então”. Se “A”, então “B”, “se você for, eu vou”, “se chover, não
vou”. Uma relação de contingência varia em probabilidade, podendo ser
uma relação de probabilidade desde 1 (100%), quando um evento, em con-
dições constantes, sempre é dependente do outro; até zero, quando dois
eventos não possuem nenhuma dependência. Quando construímos narra-
tivas científicas, especialmente em ciências históricas, que tentam explicar,
descrever ou controlar um determinado fenômeno, uma das estratégias de
investigação é buscar essas relações, as contingências entre eventos. O de-
terminismo tem uma longa história, repleta de nuances e desenvolvimen-
tos (Laurenti, 2008; Moxley 2007). Para o argumento que desenvolveremos
neste e nos capítulos seguintes, vamos nos ater a um dos muitos tipos
de determinismo, o determinismo probabilístico (Guimarães & Micheletto,
2008; Laurenti, 2008, 2009a; Marr, 1982). Em uma definição bem simplista e
inicial, podemos dizer que uma noção determinística é aquela que pressu-
põe que todo evento tem algum tipo de determinação, e essa determinação
pode ser estudada de alguma maneira. Aqui é importante ressaltar que
determinação, em uma acepção probabilística, não é a mesma coisa que
causa (o que distanciaria este tipo de determinismo da pecha mecanicista).
Os eventos que determinam um dado fenômeno são eventos que exercem
controle sobre esse fenômeno, alterando-o em alguma medida1 . O pres-
suposto determinista acompanhou diversas revoluções científicas, desde a
consagração da física clássica de Newton (Scheurer & Debrock, 1988), à
origem das espécies (Weber, 2001) até o comportamento humano (Skinner,
1953).
Diante disto, seria então possível estudar a criatividade, o processo
relacionado a inovação, à criação e a comportamentos novos, sob uma
ótica determinística, a partir das contingências que a produzem? Esta
pergunta possivelmente geraria um debate noite a dentro, e sem conclu-

13
1.1. Criatividade: do mito ao processo Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas

são nenhuma, caso fosse feita no século XIX. Hoje em dia, século XXI, a
resposta é sim, e se houver algum psicólogo ou psicóloga por perto, a
resposta virá repleta de dados empíricos. Com os avanços da Psicologia
no século XX, hoje a criatividade é um tema comum em estudos de labo-
ratório, e muito se produziu acerca de seus determinantes. Apesar disso,
ainda persiste uma forte visão mítica, indeterminista (i.e. anticientífica),
sobre a criatividade na sociedade em geral. Neste sentido, para melhor
entendermos a criatividade como um processo ordenado e determinado,
precisamos primeiro entender a história da criatividade.

1.1 Criatividade: do mito ao processo


Antes de iniciarmos uma breve incursão na história da criatividade, uma
pergunta inicial se faz necessária: existe uma definição clara, única e defi-
nitiva de criatividade? A resposta é não (?), e apesar do termo criatividade
na sua acepção atual ser relativamente recente (Runco & Jaeger, 2013), di-
versas de suas definições são contrastantes. Sobre isto, Carvalho Neto et
al. (2016) comentam:

“Há dezenas de definições de criatividade, dentro e fora da


psicologia (Boden, 2000). Em geral prevalecem proposições
puramente teóricas, fortemente marcadas pelo uso cotidiano
do termo. O uso de metaconceitos, conceitos derivados de
conceitos (por sua vez já pobremente definidos), também é
frequente. Mooney (1963), por exemplo, desmembra a criativi-
dade em ‘processo criativo’, ‘produto criativo’, ‘pessoa criativa’
e ‘situação criativa’, mas tal taxonomia é feita sem a definição
do próprio termo central: ‘criativo/criativa’” (p. 52, tradução
do original em inglês)

Este quadro rico em diferentes definições não é um problema atual


do termo criatividade, na medida em que historiadores e pesquisadores
interessados pelo tema relatam que o termo possuiu diversas conotações
e origens distintas durante a história, e por muito tempo, fenômenos cria-
tivos foram relatados com outros termos (Lubart, 2007; Pope, 2005; Taylor,
1988). Weiner (2000) realizou um minucioso estudo sobre as origens da
palavra “criatividade”, e constatou que esta, em sua versão em inglês
(“creativity”) não existia até antes de 1870. Ainda segundo o autor, seu

14
Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas 1.1. Criatividade: do mito ao processo

uso como substantivo só foi disseminado a partir de 1950. O termo e o


valor positivo da criatividade podem ser considerados produtos da socie-
dade moderna, secular, democrática e capitalista (Wiener, 2000). Em um
estudo recente, McKerracher (2016) identificou doze metáforas corriqueiras
desenvolvidas a partir do termo criatividade, metáforas como “criatividade
é incubação”, “criatividade é iluminação”, “criatividade é evolução”, “cria-
tividade é um algorítimo”, dentre outras. Tal uso corriqueiro de diferentes
metáforas para ilustrar o que seria a criatividade indica o quanto o termo
é hoje popular, relevante e discutido, assim como é um termo pouco claro,
confuso e multifacetado.
Entretanto, indivíduos se comportaram criativamente durante toda a
história da humanidade, indiferentes à existência ou não do termo. Diver-
sos achados arqueológicos mostram como atividades artísticas acompa-
nham a espécie humana há muitos milhares de anos. Um exemplo famoso
de arte pré-histórica é o “homem leão” (Figura 1.1), uma efígie metade hu-
mana e metade leão, encontrada em uma caverna no sul da Alemanha,
com idade estimada entre 35.000 e 40.000 anos (Turner, 2014). É possível
inclusive subscrever parte da história da humanidade à história da cria-
tividade humana, na medida em que registros históricos (como pinturas
rupestres e a escrita), que um dia surgiram como uma novidade criativa,
são os dados básicos da história da humanidade. Mesmo dados comple-
mentares, como os registros arqueológicos, também possivelmente um dia
foram novidades de uma cultura, e hoje, após serem redescobertos, são
novamente novidades, por serem produtos de cientistas e pesquisadores
que um dia se comportaram criativamente, e criaram toda uma ciência, a
arqueologia (e.g. Elias, 2012). Então, assim temos a história natural, a his-
tória da humanidade e a história das coisas, temos também a história da
criatividade, surgida a partir do momento em que o processo de criação
e inovação se tornou socialmente reconhecido e estudado.
Tomando uma perspectiva geral da criatividade, Dacey (1999) divide a
história da interpretação de produtos criativos humanos (i.e. criatividade)
em três grandes momentos: um primeiro momento (da pré-história a
idade média) no qual produtos criativos eram resultados de um processo
sobrenatural e místico, resultantes de inspirações e intervenções divinas;
um segundo momento (a partir do renascimento e do humanismo) no qual
as artes e inovações eram produto de uma genialidade individual imutável,
perene e absoluta; e um terceiro e atual momento, no qual a criatividade
é um processo natural, passível de ser estudado e modulado.

15
1.1. Criatividade: do mito ao processo Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas

Figura 1.1: Foto da versão restaurada do “homem leão”, ou Löwenmensch, como é


chamado em alemão. Este artefato esculpido em marfim foi descoberto em 1939, e é
considerado um dos exemplos mais antigos de arte figurativa. Atualmente, o artefato
encontra-se no museu de Ulm, na Alemanha. Foto reproduzida sob licença Wikimedia
Commons, autoria de Dagmar Hollmann - Own work, CC BY-SA 3.0, https://
commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=29686577

Um exemplo de produtos criativos como um produto da inspira-


ção divina pode ser encontrado no modelo de mente bicameral (Jaynes,
1976/2000). Mente bicameral foi o nome dado pelo Psicólogo Julian Jaynes a
sua formulação da concepção de mente extraída de exemplos na literatura
judaico-cristã e da Grécia antiga (Dacey, 1999). Segundo Jaynes (1976/2000),
durante boa parte da história antiga da humanidade, persistiu uma noção
de uma mente em duas câmaras: uma na qual ocorriam os pensamen-
tos novos, guiados pelos deuses (e eventualmente onde se desenvolviam
as loucuras); e outra na qual estes pensamentos ganhavam forma, sendo

16
Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas 1.1. Criatividade: do mito ao processo

portanto a câmara responsável pela linguagem ou qualquer outra forma


de expressar os pensamentos originados na primeira câmara (Dacey, 1999).
Exemplos desta concepção podem ser encontrados em textos e mitos reli-
giosos e na literatura antiga, como nas monumentais Ilíada e Odisséia, de
Homero, onde os personagens realizam feitos heroicos, míticos e inova-
dores, beirando a insanidade, sempre guiados pela inspiração de um deus
ou enviados de deuses, eventualmente com a intermediação de uma musa
(Figura 1.2). Sobre a concepção de mente bicameral de Jaynes, Dacey (1999)
escreve:

“Por toda a história humana, Jaynes postula, pessoas acredi-


taram uniformemente que a câmara da mente na qual novos
pensamentos ocorriam era controlada por deuses. Assim, eles
acreditavam que todas as ideias criativas eram advindas dos
deuses, usualmente a partir da mediação de uma musa, um
tipo de intermediário dos deuses. Uma pessoa que sentisse
um impulso criativo invocaria portanto a assistência da musa
apropriada: Calíope para a poesia épica e heróica; Clio para
a história; Erato para poesias de amor; Euterpe para música e
poesía lírica; Mepomene para a tragédia; Polyhímia para can-
ções e hínos aos deuses; Terpsícora para a dança; Tália para
a comédia; e Urania para a astronomia. Uma função primor-
dial da mente era portanto de um receptáculo de inovações
sobrenaturais [...] O propósito da segunda câmara da mente
seria a de expressar tais inspirações a partir de mecanismos
ordinários como a fala e a escrita. Essa era então conside-
rada a representante pública da primeira câmara. A segunda
câmara seria também responsável pela expressão de pensa-
mentos mundanos como ‘eu estou com fome.’[...] Em suas
mais importantes conquistas, os heróis de Homero agiam de
acordo com suas inspirações, levando a cabo as estratégias
a eles reveladas. Entretanto, este não era um ato passivo [...]
Ao escrever uma belo poema ou peça, o autor era admirado
por sua produção, primordialmente por ter sido escolhido a
realizar tal honra.” (Dacey, 1999, p.608-609, tradução livre)

Uma concepção alternativa à inspiração divina surgiu em Aristóteles


(384 – 322 A.C.), que acreditava que grandes ideias eram resultados do
pensamento do próprio indivíduo, a partir de processos de associação

17
1.1. Criatividade: do mito ao processo Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas

Figura 1.2: A inspiração de São Mateus (1602), quadro de Michelangelo Merisi - Ca-
ravaggio (1571-1610), hoje exposto na capela de Contarelli em Roma, Itália. O qua-
dro mostra um anjo, um típico mensageiro do deus cristão, instruindo o evange-
lista, que registra em um livro (com uma aparente pressa) o que ouve do envi-
ado. Um exemplo de inspiração divina produzindo comportamento. Reprodução de
domínio público, disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:
The_Inspiration_of_Saint_Matthew_by_Caravaggio.jpg.

(Dacey, 1999). O pensamento para Aristóteles seria o movimento de uma


ideia para outra em uma cadeia de associações2 . Esta noção humanista
culminou no segundo momento da história das interpretações de produtos
criativos, o da exacerbação da genialidade, que despontou no iluminismo.
Neste momento, produtos criativos seriam originados em um processo
individual, nascido e gerido no interior do sujeito, que culmina na noção
de gênio (Dacey, 1999; Lubart, 2007). Um gênio é o avatar da criatividade,
suas habilidades são imperscrutáveis e advindas de processos misteriosos
e únicos, supostamente herdados. Pouco ou nada podia ser feito se você
não nascesse um gênio3 , e gênios geralmente eram do sexo masculino
(como o próprio termo “gênio” já denota), nascidos em famílias tradicionais

18
Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas 1.1. Criatividade: do mito ao processo

e ricas (?). Basta uma breve incursão na lista de biografias de gênios das
artes e ciências anteriores ao século XIX para observamos que a sociedade
ocidental não foi nada igualitária, mas sim pouco democrática na sua
seleção de gênios, na medida em que destacaram-se somente homens em
alguma medida envolvidos com a aristocracia da época (Simonton, 2002).
Campbell (1960) comenta que boa parte do encantamento que gênios
propiciam se dá de acordo com a tendência humana de buscar relações
causais de igual intensidade entre eventos (e. g. Heider & Simmel, 1944). De
acordo com Campbell (1960, p.390) nós humanos teríamos “uma tendência
a enxergar eventos fantásticos com bases em antecedentes igualmente
fantásticos”, mas que, entretanto:

“Assim como não atribuímos uma ‘antevisão’ especial a um


alelo mutante bem-sucedido, em comparação com um não
tão bem-sucedido, em muitos casos de descobertas nos não
devemos esperar que consequências fantásticas tenham ante-
cedentes igualmente fantásticos [...] explicações em termos de
antecedentes especiais serão muito comumente irrelevantes, e
o fato de que os vieses interpretativos de nossas mentes nos
deixam inclinados a tais superinterpretações, do tipo post-
hoc-ego-proper-hoc, deificando o gênio criativo a quem atri-
buímos uma capacidade de ‘Insight’, tipifica nossos próprios
processos de pensamentos em tropeços mentais e becos sem
saída.” (Campbell, 1969, p.391, tradução livre)

O terceiro e atual momento histórico da interpretação de produtos


criativos perpassa o surgimento do termo criatividade, e desponta na for-
mação de disciplinas científicas, como a Psicologia, empenhadas em estu-
dar as origens de comportamentos novos (Dacey, 1999). Hunziker (2006),
comentando sobre uma abordagem científica da criatividade destaca:

“Ao contrário do senso comum, que considera que os indiví-


duos são criativos, a perspectiva científica considera que as
pessoas tornam-se criativas ao longo da vida (ou seja, apren-
dem a agir de forma criativa). (p. 157)

Apesar de Dacey (1999) construir a história das concepções de criativi-


dade como a sucessão destes três períodos, as três noções se desenvol-
veram e convivem até hoje em paralelo. Na era do culto a genialidade,

19
1.1. Criatividade: do mito ao processo Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas

as explicações em termos de inspiração divina ainda eram recorrentes, e


mesmo hoje em dia não é incomum pessoas evocarem inspirações so-
brenaturais para suas obras (cf. Tatarkiewicz, 1980). A terceira, e mais
recente visão ainda é pouco famosa fora do ambiente acadêmico, entre-
tanto, setores mais progressistas na Psicologia, Biologia, Pedagogia e Ad-
ministração estão na vanguarda desta visão, que toma a criatividade como
um processo que pode ser cientificamente estudado e democraticamente
estimulado (Runco, 1994). Sobre este momento atual, ? comentam:
“Assim, o conceito de que o produto criativo seria fruto de
um lampejo de inspiração apenas, que ocorreria em determi-
nados indivíduos considerados privilegiados do ponto de vista
intelectual, dotados de um poder especial ou de um dom que
trariam desde o nascimento, deu lugar à ideia de que todo ser
humano apresenta um certo grau de habilidades criativas, e
que essas habilidades podem ser treinadas e aprimoradas por
meio da prática. Para tal, seriam necessários tanto condições
ambientais favoráveis, como o domínio de técnicas adequa-
das” (p. 16).
Na mesma linha, ? afirma:
“[...] criatividade não é uma faculdade especial, possuída ape-
nas por uma pequena elite romântica. De fato, ela é uma
característica geral da inteligência humana. Em toda ocasião
na qual alguém faz um comentário perspicaz, canta uma nova
canção para seu bebê sonolento, ou mesmo aprecia um qua-
drinho de tons políticos no jornal, essa pessoa está engajada
em processos de pensamento criativo disponíveis a todos nós”
(?, p. 24, tradução livre)
As três etapas de Dacey (1999) contemplam apenas uma parcela da his-
tória da criatividade, pertinente ao mundo ocidental4 e seus mais de dois
mil anos de continuidade cultural bem documentada, desde a antiga Is-
rael e Grécia, passando pelo desenvolvimento do cristianismo, capitalismo,
método científico, e a atual globalização (Weiner, 2000). De certo, dife-
rentes concepções, ou variações das concepções gerais de Dacey (1999),
permearam a noção de criatividade de diferentes culturas, noções estas
que gravitavam em torno de concepções de produtos criativos como sím-
bolos de riqueza, poder, status e religião. Diferentes culturas, para além

20
Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas 1.2. Como medir a criatividade

do mundo ocidental e em diferentes épocas, deixaram registros, obras de


artes e esculturas arquitetônicas que figuram entre as maiores realizações
da humanidade, como a grande muralha de China, o Angkor Wat no Cam-
boja e as linhas e geóglifos de Nazca, no Perú. Em cada caso, a avaliação e
as formas de produção desses produtos criativos variavam, e cada cultura
lida com seus artistas e inovadores de diferentes formas5 (Weiner, 2000).
Além disso, é importante lembrar que a história da humanidade é uma
história de constante conflito, e nesse cenário, produtos criativos, como
símbolos e realizações de uma cultura, são alvos privilegiados em guerras.
Sobre isso, Weiner (2000) comenta.

“A história é repleta de exemplos de grupos poderosos con-


quistando e subjugando outras pessoas, destruindo ou sim-
plesmente desconsiderando suas criações. Assim, por exem-
plo, foram necessários quatrocentos anos para que europeus
começassem a ver esculturas africanas como ‘arte’, e mesmo
que os invasores espanhóis fossem fascinados pelas bolas de
borracha usadas pelos povos maias, os europeus tomaram
para si o crédito da invenção da borracha trezentos anos de-
pois. Escravos e mulheres ‘livres’ certamente produziram be-
las, úteis e importantes coisas, mas, em geral, tiveram pouca
oportunidade de expressar ou expor isto em público. De fato,
diversas áreas da criatividade que foram valorizadas durante
boa parte da história foram áreas usualmente restritas a castas
específicas de homens.” (Weiner, 2000, p.18, tradução livre).

Discussões como a levantada por Weiner (2000) circunscrevem toda


uma área de pesquisa, a ética da criatividade, que será discutida em mais
detalhes no capítulo final deste livro. No que cabe ao principal objetivo
deste livro, vamos nos ater ao terceiro momento de Dacey (1999), em
especial no âmbito do desenvolvimento da Psicologia como uma ciência
empírica e sua investida sobre a criatividade, tida como um processo
natural.

1.2 Como medir a criatividade


É atribuída a Thorndike (1874-1949), o pioneiro Psicólogo experimental
norte-americano, a frase “tudo que existe, existe em alguma quantidade,

21
1.2. Como medir a criatividade Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas

portanto, pode ser medido” (Eysenck, 1996; Jonçish, 1968). A afirmação


deixa clara que tipo de investida a Psicologia já preconizava desde sua
época: observar e medir os fenômenos psicológicos. Este tipo de in-
vestida está imbuída da noção determinista, no sentido de, se podemos
observar e medir, podemos também manipular e testar. Na medida em
que manipulações alteram o fenômeno, podemos dizer que o fenômeno
é determinado por aquilo que foi manipulado, e assim são identificadas
relações de contingências entre eventos.

Neste pouco mais de um século de investida empírica na Psicolo-


gia, estudos então foram realizados com humanos em laboratório e com
animais não-humanos tanto em laboratório como em vida livre. Testes
psicológicos foram desenvolvidos para avaliar as diferenças individuais, e
centenas de milhares de pessoas de diferentes populações foram testadas.
Computadores foram utilizados como simulacros capazes de se compor-
tar criativamente e o cérebro foi mapeado ponto a ponto no momento em
que a criatividade se manifesta. Nesse sentido, em todos os casos, um
aspecto esteve sempre presente nas medições e manipulações científicas
sobre a criatividade: o comportamento.

Por mais que o interesse dos investigadores seja estudar instâncias


cognitivas, mentais ou de processamento de informação relacionadas à
criatividade, o que é efetivamente observado e manipulado é o compor-
tamento do indivíduo (ou grupo de indivíduos). Constructos mentais ou
cognitivos são inferidos dedutivamente a partir do comportamento obser-
vado. Neste sentido, medir a criatividade é medir comportamento. Da
mesma forma, ao se observar a ativação cerebral durante a manifesta-
ção da criatividade, deve-se planejar uma situação na qual o organismo
portador do cérebro se comporte, onde o comportamento criativo possa
ocorrer (não encontramos a criatividade, ou qualquer outro constructo
psicológico, ao dissecarmos um cérebro). O comportamento é, neste sen-
tido, a matéria prima da Psicologia (??; Roediger, 2005). Neste contexto,
tanto pesquisadores que utilizam de observações do comportamento para
inferir instâncias cognitivas como pesquisadores interessados no compor-
tamento per se distinguem duas dimensões gerais de criatividade: uma
dimensão individual, da história de vida de um organismo, e uma dimen-
são coletiva, da história de um grupo de indivíduos ou cultura (?); 2003;
Lubard, 2006; Nickerson, 1999).

22
Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas 1.3. Criatividade e Inovação

1.3 Criatividade e inovação: a


criatividade com “c” minúsculo e a
Criatividade com “C” maiúsculo
“Pode-se falar em processo criador ou pensamento produtivo
sempre que ocorra o aparecimento de nova solução para um
problema anterior, ou sempre que se consiga realizar uma
expressão aceitável por outros indivíduos. No primeiro caso,
devem ser consideradas não apenas as soluções científicas ou
técnicas, mas também as atividades menos amplas ou ambi-
ciosas da vida cotidiana. Desse ponto de vista, considera-se
pensamento produtivo não apenas a criação de uma nova te-
oria para explicar fenômenos biológicos ou físicos, mas tam-
bém a solução técnica para um problema de vedação de pa-
rede ou de cola de materiais” (Leite, 1958/2002, pg. 65).
Como dito acima por Dante Moreira Leite6 , a criatividade tem duas
dimensões: uma cotidiana e outra extraordinária. Uma maneira de distin-
guir estas duas dimensões é chamando-as de criatividade-p e criatividade-
h7 . Podemos categorizar um comportamento novo como um exemplo de
criatividade-p (a criatividade com “c” minúsculo) quando aquele compor-
tamento é novo em relação à história de vida do indivíduo. Quando um
jovem ou uma jovem aprendem a tocar uma escala em uma guitarra, po-
demos afirmar que há ali um marco na história daquele indivíduo (afinal, é
assim que todo guitarrista, amador ou profissional, começa). O comporta-
mento novo, tocar guitarra, ao ocorrer pela primeira vez, é uma instância
da criatividade-p, por ser novo em relação à história de vida daquele in-
divíduo. A criatividade-p é uma ocorrência constante na vida de humanos
e não-humanos. No dia a dia inventamos maneiras distintas de lidar com
eventualidades, desde estudantes universitários que conseguem fazer um
almoço no fim do mês com o que sobra na geladeira (sabemos que a di-
eta universitária é a vanguarda da baixa gastronomia), desde engenheiros e
mecânicos que consertam maquinarias de diferentes complexidades com
uma “improvisada” baseada em fita isolante e cola. Animais não-humanos
também demonstram isso, e tradicionalmente observamos isso ao colo-
carmos os animais em uma situação problema (os exemplos no Youtube
são incontáveis).
Em contrapartida, comportamentos que são inovadores na escala de

23
1.3. Criatividade e Inovação Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas

um grupo ou de uma cultura, são casos de criatividade-h (ou Criatividade,


com “C” maiúsculo). Comportamentos categorizados como criatividade-h
estão ligados à descobertas, criação de novas tecnologias, inovações, for-
mulação de teorias científicas etc. Os gênios e inventores são lembrados
pelos seus comportamentos categorizados como criatividade-h. Um caso
de criatividade-h seria o de um jovem ou uma jovem, que ao aprender a
tocar guitarra, começa a mexer com circuitos elétricos e moduladores de
som, até chegar a criar um dispositivo eletrônico de distorção caseiro, dis-
tinto dos disponíveis comercialmente, construído em uma lata de sardinha
(caso verídico, Figura 1.3).

Figura 1.3: Um exemplar de pedal de guitarra construído em uma lata de sardinha.


Os primeiros exemplares surgiram no Rio Grande do Sul, na década de 70 do século
passado. Hoje em dia os “pedais de sardinha” são fabricados em todo o Brasil. A
criatividade-h, devido seu critério de inovação em nível de grupo, é passível de sele-
ção. No caso, inovações podem sobreviver e se proliferar em uma cultura (como foi o
caso do “pedal de sardinha”, devido sua estética low tech e baixo custo). Da mesma
forma, exemplos de criatividade-h podem também desaparecer, na medida em que
não se proliferam. O “pedal de sardinha” é também um exemplo de criatividade re-
combinatória (que será descrita em detalhes nos próximos capítulos), já que se trata
de produzir algo novo recombinando elementos inicialmente dissociados (no caso
um circuito elétrico modulador de som e uma lata de sardinha). Um vídeo sobre um
dos pioneiros na criação do “pedal de sardinha”, e como se dá seu processo criativo,
pode ser encontrado no link: https://youtu.be/0BQ7i3BuNts (recuperado em
25 de janeiro de 2017).

Toda criatividade-h é necessariamente também um exemplo de criativi-


dade-p. Diversas pessoas aprendem a tocar guitarra todos os dias, a par-
tir de diferentes histórias e por diferentes caminhos, e para cada uma

24
Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas 1.3. Criatividade e Inovação

delas a primeira ocorrência é um caso de criatividade-p. Para que um


comportamento seja um caso de criatividade-h, é necessário que o com-
portamento ou o produto deste comportamento seja inédito no grupo, que
o proliferará ou não. Por ser inédito no grupo, deve também ser inédito
para o indivíduo. Nesse sentido, a criatividade-p é um efeito individual,
de contato com contingências e contextos, enquanto que a criatividade-
h, por ser cultural, depende do comportamento verbal, das regras e das
práticas culturais que permeiam a sua ocorrência. Em outras palavras,
a criatividade-p em geral é descrita em termos individuais e psicológicos,
enquanto que a criatividade-h é descrita em termos históricos e sociais (?),
ou alternativamente criatividade-p é uma experiência pessoal, enquanto a
criatividade-h é um consenso cultural (Simonton, 2015).
Diferentes culturas podem estimular ou coibir a ocorrência tanto da
criatividade-p quando da criatividade-h, um exemplo próximo é o nosso
“jeitinho brasileiro” que é uma prática cultural que estimula a criatividade-
p, e eventualmente até a criatividade-h (para uma interpretação compor-
tamental desse fenômeno, veja Fernandes, Perallis & Pezzato, 2015). De
qualquer forma, o que caracteriza um comportamento novo como uma
instância de criatividade-h é um julgamento a posteriori, feito por outros
membros do grupo e da cultura, e os critérios utilizados para definir isso
são variados (e.g. Stein, 1974). No caso do “pedal de sardinha” da Figura
1.3, o que consiste na novidade é a reutilização de uma lata na confecção
de um aparato eletrônico, diminuindo assim seu custo. Outros exemplos
de criatividade-h, como a formulação da teoria psicanalítica por Freud, ou
a distinção do behaviorismo radical feita por Skinner se destacam como
criatividade-h por suas devidas inovações frente às ideias da época, assim
como pelo seu reconhecimento posterior. Assim como que para surgir um
“pedal de sardinha” foi necessário que um indivíduo com conhecimento
de elétrica utilizasse um material (a lata de sardinha) de uma forma nova,
da mesma maneira, para que surjam ideias novas, como um dia foram a
psicanálise e o behaviorismo radical, é necessário que existam precursores
dessa ideia (cf. ?; O’Donohue & Kitchener, 1998). Este é um ponto impor-
tante para o argumento que será desenvolvido sobre a criatividade nos
próximos capítulos: toda resposta nova, todo exemplo de criatividade é o
resultado de uma história, somada a um conjunto de condições imediatas.
A criatividade é, neste sentido, uma criação sobre o que já existe, e sendo
assim, para entendê-la basta olhar para as contingências que a produz.

25
1.4. Questões de estudo Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas

1.4 Questões de estudo


a) Tente um exercício de imaginação bem simples: imagine algo
que não exista! Após imaginar algo que não exista, descreva
verbalmente, ou mesmo desenhe, o que você imaginou. Feito
isso, comece a analisar as partes constituintes do que você ima-
ginou. É um ser vivo? Tem braços, tentáculos? É um objeto?
Qual sua forma, cor? Qualquer coisa que se tenha imaginado
sempre vai compartilhar de alguma propriedade que conhece-
mos, que existe. Se pensarmos, por exemplo, em um marciano,
o marciano terá um corpo, uma forma e de imediato já tem
um planeta. Suas partes constituintes provém do que conhece-
mos. Você consegue de fato imaginar algo que não exista, que
não compartilhe em nada de propriedades que conhecemos de
coisas que existam?

b) Segundo Dacey (1999) quais as três grandes visões de criatividade


durante a história da humanidade?

c) Qual a diferença entre criatividade-p e criatividade-h? Diferencie


com exemplos.

d) Encontre exemplos de criatividade-p e criatividade-h no artigo


de Fernandes, Perallis e Pezzato (2015) sobre o “jeitinho brasi-
leiro”.

1.5 Notas do capítulo


1. Quando falamos de controle, estamos indicando que eventos
antecedentes ou consequentes alteram a probabilidade de ocor-
rência de um fenômeno, no caso, uma resposta. Neste sen-
tido, ao falarmos de controle estamos atribuindo uma natureza
probabilística ao fenômeno, ou seja, que este contém alguma
variabilidade intrínseca (Laurenti, 2012). Uma maneira de ana-
lisar eventos probabilísticos se dá com o uso de uma análise
funcional, como apresentada no Capítulo 3.

2. O associacionismo de Aristóteles propunha que a mente é for-


mada por elementos, que são organizados por diferentes associ-

26
Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas 1.5. Notas do capítulo

ações. Apesar de originalmente formulada por Platão, Aristóteles


foi quem desenvolveu a proposta, elencando quatro leis da as-
sociação: contiguidade, frequência, similaridade e contraste. O
associacionismo de Aristóteles foi o antecedente histórico dos
filósofos conhecidos como os empiristas Britânicos, que por sua
vez foram antecedentes históricos das teorias de aprendizagem
associacionista em Psicologia (inicialmente pautadas pelos tra-
balhos pioneiros de Pavlov e Thorndike) e do conexionismo cog-
nitivo (Thagard, 2014).

3. Uma notável exceção de pensador clássico que repudiou a noção


de caráter imutável e herdado da genialidade foi o filósofo Jean-
Jacques Rousseau (1712-1778), que via a genialidade como um
traço geral humano que podia ser estimulado pela aprendizagem
(Rousseau, 1762/1979).

4. A história do ocidente suscita a crença de que o mundo oci-


dental é bastante diferente do “resto” do mundo. Essa alegada
diferença é em boa parte exagerada, e em grande medida se
coaduna a uma postura condescendente e hostil (Weiner, 2000).
Tal postura ignora o débito do ocidente para com outras cultu-
ras, e o fato do mundo ocidental moderno não ser monolítico,
mas sim, multicultural. Com os efeitos da globalização e da rá-
pida transferência de informações, pode-se considerar que hoje
vivemos em um mundo no qual o conceito de “mundo ociden-
tal” está tanto em “todo lugar, como em lugar nenhum” (Weiner,
2000, p.19).

5. Na antiga Mesopotâmia (atual Iraque e Kuwait), por exemplo, pa-


rece não haver uma palavra para designar artistas ou inventores,
e o status social destes era apenas de pouco mais do que um
escravo. Em Mari, uma cidade da antiga Mesopotâmia, o termo
mar ummenin descrevia pessoas com algum tipo de habilidade
específica, de profissões que iam desde cantores a porteiros,
e essas habilidades eram tidas, em geral, como permanentes e
imutáveis, na medida em que refletiam os desígnios dos deuses
e das estrelas (Mathews, 1995). No Egito, artesãos tinham o deus
Ptah como seu patrono, responsável pelos desígnios do que é
e não é criativo. Neste sentido “no Egito da época dos faraós,

27
1.5. Notas do capítulo Capítulo 1. Criatividade: definições e medidas

não havia nenhum conceito de criatividade individual marcada


pelo selo da personalidade do artista” (Drenkhahn, 1995, p.339).
Em decorrência disso, tanto no Egito como na Mesopotâmia,
praticamente todas as pinturas, esculturas e demais produtos
criativos eram anônimos, exceto por raras exceções, que em
geral envolviam pessoas em cargos de poder (Weiner, 2000).
6. Dante Moreira Leite (1927-1976) foi um pioneiro da Psicologia So-
cial brasileira (Paiva, 2000), e publicou obras importantes como
Caráter Nacional Brasileiro (1983), Psicologia Diferencial (1966) e
Psicologia e Literatura (1958/2002). A biblioteca do Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo, uma das maiores bi-
bliotecas de Psicologia da América Latina, foi nomeada em sua
homenagem.

7. A adoção da dicotomia criatividade x Criatividade, ou criatividade-


p e criatividade-h, não é unânime, e muitos autores questionam
os limites entre as duas categorias. Kaufman e Beghetto (2009)
por exemplo sugerem que existem quatro tipos de criatividade
(big-C, little-c, mini-c e pro-c), e Simonton (2016) argumenta que
é impossível definir criatividade sem definir não-criatividade.
Para uma análise detalhada das diferentes visões e limites dos
termos, conferir Sousa (2008) e Merrotsy (2013).

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