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A BENÇÃO
ou O Evangelho segundo Mammon
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nvvoliver@gmail.com
nicolas.vladimir@hotmail.com
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‘’. Eu deveras lhes digo, que por teres acreditado, que
hoje estará comigo no Paraíso. ’’
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Primeiro
JUÍZES
O ladrão terá que restituir o que roubou, mas, se não tiver nada, será
vendido para pagar o roubo. ’’
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Pena enésima vez, Bom Ladrão ia preso. Sentia-se
porém, como se fosse a primeira vez, quando tremia
completamente de medo. Depois do primeiro pula saci,
e com as seguidas prisões, passou a ficar conhecido
dos guardas que o prendiam. O que dirigia a viatura
onde estava podia até se considerar seu amigo, antes
de descobrir a última das suas. Bom Ladrão, algemado
no banco de trás, falou tentando ser engraçado:
-Ô, Rondinei, rapaiz, você pegou a via errada. A
pensão é pela rua da esquerda.
A 'pensão' era a delegacia de furtos e roubos do
distrito. Mas Rondinei hoje não estava para piadas.
-Calabôca, seu sacana!-
Respondeu, dando-lhe uma coronhada com a
mão livre. Mesmo assim, bateu com tanta força que
chegou quase a perder a direção, derrapando na pista.
Estava realmente com raiva naquele dia, e não sem
razão. O motivo daquela raiva foi um mau negócio que
fizera. Apesar de a cada ano ter mais trabalho, seu
salário não subia na mesma proporção: e para cobrir
os buracos em casa, Rondinei trabalhava, por fora,
numa empresa de segurança, com alguns colegas e o
mesmo Subcomissário do seu emprego regular, que
trabalhava ali como ''consultor de operações'', tendo
um primo formado em administração numa faculdade
particular como proprietário formal do negócio. Um
certo dia, o Subcomissário lhe chamou em sua casa de
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praia para dizer que Rondinei passaria pela prova de
confiança para ser efetivado na empresa: um serviço
de duas semanas com eletrônicos, no porto, fácil e
bem pago, mas que tinha a questão de vigiar também
os próprios funcionários do contratante, que tinham
esquemas com gente de fora. Aceitando o trampo,
Rondinei chamou a pessoa mais experiente que
conhecia para ser seu ajudante: ninguém menos que
o próprio Bom Ladrão, que agora vinha no carro.
Considerando que o seu ''consultor'' tinha uma boa
experiência e estava sendo bem pago, Rondinei
acreditou que bastaria aparecer e conversar com Bom
Ladrão de tempos em tempos para mostrar que o
material estava protegido, aproveitando para pegar
outros serviços na Zona do Porto, aonde eles eram
abundantes, enquanto fazia sua patrulha regular. Ele
até tinha como bater ponto e nem sequer entrar na
delegacia, mas isso ia contra seu senso de
honestidade. Confiava no próprio taco e não deixaria
as ruas desprotegidas enquanto cuidava dos
estabelecimentos que pagavam, mesmo que isso
significasse sacrificar as 3 horas de sono que tinha por
dia.
*
Na segunda semana, porém, Rondinei teve uma
triste surpresa. Um dos peões, conhecido por ser
notoriamente desonesto, o procurou na saída e
alcaguetou para ele que Bom Ladrão, com ajuda de
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um supervisor, estava trocando as peças novas de
alguns aparelhos por outras mais velhas, da geração
anterior, e repassando as peças novas para algumas
autorizadas, que as trocariam a preço de ouro quando
os produtos começassem a dar problemas. Rondinei,
ao saber disso, ficou furioso: o esquema era dos mais
fuleiros e fáceis de serem descobertos, bastando
alguém levar o aparelho para consertar com um
técnico de confiança ou que não fosse das autorizadas
envolvidas, e saberia na hora que lacre interno do
produto havia sido violado e continha peças que não
batiam com o resto do material. Além de queimar seu
nome com o Subcomissário, a investigação resultante
poderia manchar sua ficha administrativa,
perfeitamente limpa em mais de 20 anos de serviço.
Sem saber o que fazer, Rondinei informou o caso ao
Subcomissário, que friamente lhe disse que aquilo
seria resolvido com uma boa conversa, e que Rondinei
deveria levar seu sócio a um lugar combinado. Tendo
essas ordens, Rondinei agiu. Ao supervisor, nada fez
além de dar uma indireta para ele ficar esperto, porque
além do cargo, era primo de consideração de um
deputado de um partido pequeno, mas influente.
Quanto a Bom Ladrão, o chamou para umas geladas
fora de hora num bar próximo, algo que ele jamais
recusava, sob o pretexto de comemorar com ele o
sucesso no serviço que tinham feito. Por consideração,
e para evitar que Bom Ladrão pudesse usar manobras
de capoeira e fugir, como fizera outras vezes, Rondinei
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deixou que o parceiro tomasse as últimas cervejas, por
sua conta. Então, fazendo um grande esforço, olhou
grosso para Bom Ladrão, e apontou a pistola para o
rosto dele.
-Mãos nas costas e cara na mesa, vagabundo!gritou.
-O que é isso Rondi. Vai fazer isso comigo? Você
mesmo sabe que faz mais de um ano que não tenho
nenhum BO nas costas.- tentou desconversar Bom
Ladrão.
Rondinei não quis ouvir. Algemou o parceiro, o
arrastou, e jogou no banco de trás do carro. Os
frequentadores do bar viram tudo, mas fingiram que
não perceberam nada. Os rumores sobre o esquema
de Bom Ladrão e do supervisor já tinham se espalhado
pelo cais, e sabendo melhor que Rondinei como aquilo
acabaria, preferiram ficar calados, antecipando a
reação indiferente que teriam quando a conclusão
daquilo saísse numa reportagem de canto de página
dali a dois dias, se por acaso saísse. Rondinei dirigiu
para além do subúrbio, numa casa no meio do mato.
O lugar combinando era quase no interior, já nos
confusos limites entre a Região da Capital e um dos
municípios semi-costeiros do istmo interno. À medida
que os postes iam virando árvores, Bom Ladrão tremia
mais e mais. Se fosse uma simples surra, ainda que
daquelas ‘’de batismo'', fariam isso na delegacia
mesmo, pensou ele. Entrando numa estrada
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secundária indicada pelo chefe, Rondinei parou diante
de um pequeno sítio e buzinou. Três pessoas saíram
da casa. Bom Ladrão conhecia um deles, de vista. Era
o Subcomissário, acompanhado de dois mal-
encarados que nem mesmo Rondinei sabia quem
eram.
-Então esse aí é o espertinho, hein? Entra, pra tomar
um café com a gente. Congelou, foi? Anda, homem.
Não diziam que você era atleta, que fez o Rondi
emagrecer?
Bom Ladrão não podia nem falar. Em ocasiões
semelhantes, o Subcomissário lhe daria um tapa para
''engrenar a fita'', mas se limitou a dizer:
-Binhão, ajuda aí o amigo.-
Binhão, um dos fortões, com o outro, que se
chamava Toninho, pegou Bom Ladrão pela manga e
carregou para dentro. O Subcomissário foi atrás,
conversando com seu subordinado. Pelo olhar dele
quando se aproximou antes de apertarem as mãos,
Rondinei acabou percebendo aquilo que os
estivadores e mecânicos no bar já sabiam. Não seria
uma conversa.
-Você não é homem, sargento? Tem de fazer. Você
mesmo não diz que é sério, honesto? - indagou o
Subcomissário.
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-Mas eu sou chefe. Todo mundo que me conhece sabe
que eu nunca…- tentou responder Rondinei.
-Uma coisa é você lá, outra é aqui. Com plateia, todo
mundo é bom. Não tinha o Pereira, aquele que botava
banca de macho e descia a zorra nos travecos?
Morreu debaixo da outra, de ataque cardíaco. No
enterro dele, a mulher não tinha onde botar a cara.
Vive até hoje sem sair de casa. É isso que você quer
pra sua nêga? Que ela tenha vergonha de você?-
-Não senhor claro que não… mas aí é já é diferente.-
-Diferente nada. No fim das contas, com traveco ou
sem traveco, é tudo a mesma coisa. Homem, tem o
que diz, e tem o que faz. Então você, que, que eu
conheço a anos, que meu pai quando fazia a faculdade
ia todo fim de semana na barbearia do seu, já fez
alguma coisa na sua vida, que um homem não deveria
fazer em relação a outros homens que lhe deram
confiança? -
Rondinei respondeu que não, longe disso.
-Então, Rondi, vai fazer por onde pra ninguém falar
nada de você.-
Entraram, deixando Bom Ladrão jogado na sala,
diante de uma cadeira. Havia outros homens lá dentro,
para olhar a lição. Usavam ternos e camisas polo. Dois
se destacavam, um pela pinta de médico, e o outro,
pela jaqueta ridícula que usava
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-Então esse é o de hoje hein? Veio conhecer o parque
de diversões!- disse o homem da jaqueta.
A voz dele era hostil e forçada. Parecia um
daqueles apresentadores que fazem audiência com
cenas torpes, da imprensa urubu de sirene. Devia ser
o líder do grupo, pois o Subcomissário ficou a seu lado.
Toninho, prendeu as mãos de Bom Ladrão no encosto
da cadeira, usando a chave mestra que possuía. A
essa altura Bom Ladrão já gritava, pedindo piedade.
-Não fui eu, patrão! Foi o homem que pediu! A parte
boa era dele! Era dele, meu chefe, era del…-
Mexia-se tanto, que nem mesmo Toninho, de
quase dois metros, conseguia controlá-lo. Binhão, de
um metro e sessenta, teve de dar-lhe um murro.
-Ai!-
Os presentes quase se engasgaram, rindo do
jeito que ele gritou, desmaiando. Acordou pouco
depois, com uma garrafa praticamente enfiada na sua
garganta. Era do whiskey que eles estavam bebendo.
Um uísque doce, numa garrafa quadrada, diferente
dos whiskys e bebidas compostas sabor uísque que
ele já tinha tomado até então. Interagia de forma
estranha com o sangue que se espalhava na sua boca.
-Acorda, descarado. Já foi pra escola na sua vida? –
perguntou o Subcomissário.
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-Fui, mas me expulsaram. Eu não aprendia não patrão,
diziam que eu era um menino ruim.respondeu Bom
Ladrão, num tom ao mesmo tempo aterrorizado e
respeitoso.
-Pois a gente quer que você aprenda. História. Isso
mesmo, História. Vamos começar por aí. Era minha
matéria preferida na escola. Eu vou fazer um teatrinho.
Tinha teatrinho na sua escola? -
-Uma vez teve. O governador foi visitar. Todos os
professores apareceram pra dar aula e tinha comida
de verdade na cantina.-
O Subcomissário não pôde deixar de rir.
-Certo, mas nosso teatrinho vai ser diferente. Vai ser
de verdade.
-Então me solta, patrão, pra eu fazer melhor. Posso ser
o Dom Pedro.
-Não… nosso teatrinho vai ser sobre povos antigos. Os
acadianos, por exemplo. Já ouviu falar deles? Eram
um povo que vivia do saque, muito malvados. Não
gostavam de ser enganados. Sabe o que faziam com
quem tentava ser esperto com eles? -
-Davam uma pisa? Era isso, meu patrão, davam uma
pisa bem dada?-
-Não, isso foi depois, com os romanos. Povo que eu
também admiro muito, mas não estou a fim de brincar
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de romano hoje. Vamos ser acadianos. Sabia que eu
tenho até um sabre? Rondinei foi pegar pra gente ver.-
-Não quero ver não... não precisa de aula, não senhor,
eu já sei o que é! Meu Deus! Valha-me Jesus Cristo,
não precisa de aula não, que eu já sei, que sabre é
espada, sabre é espada, é espada meu Deus! -
Todos riram com ainda mais gosto. Rondinei
apareceu taciturno, com o sabre na mão. Bom Ladrão,
que era negro, ficou parecendo um papelofIcio, quase
desmaiando de novo. O homem da jaqueta pegou uma
garrafa de champagne para comemorar. No mesmo
momento que saiu champagne da garrafa, esguichou
sangue no chão. Bom Ladrão gritou. O homem com
pinta de médico, que de fato tinha alguma formação
em saúde, não demorou em garroteá-lo e anestesiá-lo.
-Esse aí vai viver, pros outros aprenderem. - disse o
Subcomissário.
Deixando Bom Ladrão jogado num canto, o
homem da jaqueta e o Subcomissário passaram a
conversar sobre negócios.
-Então, Subcomissário, nosso amigo, o vereador, me
disse que o senhor andou deixando outra emissora
fazer furos antes da gente. O valor tá muito baixo?
-Absolutamente não, seu J., porém eu não controlo
todas as viaturas, é do outro distrito, e o outro
Subcomissário é parente de…-
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Passaram a noite nisso. Depois da reunião, foram
embora, deixando a casa. Na saída, após ordenar que
Toninho e Binhão cuidassem do que fosse necessário,
o Subcomissário apresentou Rondinei ao homem da
jaqueta.
-Então, seu J., aproveitando que o senhor vai começar
sua campanha pra deputado e tá querendo alguém de
confiança pra ajudar o seu pessoal, eu gostaria de lhe
apresentar o Rondi. O senhor mesmo acabou de ver
que ele é dos nossos e não foge da reta. É vagabundo
começar a vandalizar os seus materiais de campanha,
e seus amigos dentro dos abrigos dizerem quais são
dos adversários, que o senhor já sabe.
-Mas então, com esse irmão aí, acabou o grão, não
tem café, e ele dá mesmo cartão de pênalti pros
vagabundos, não é mesmo? - exclamou J., batendo
forte na chaparia de um dos carros e rindo.
O Subcomissário riu com gosto ao vê-lo repetir
seu gesto de assinatura na televisão especialmente
para eles. Significava que a reunião tinha ido às mil
maravilhas, e que até as próximas eleições, estava
tudo garantido.
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Segundo
GÊNESIS
"Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado, mas
vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor".
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Bom Ladrão acordou perto da cidade, com dores
horríveis. Sentia-se ainda mais confuso por perceber em
seus braços, no lugar das mãos, dois cotocos cobertos de
gaze suja. Em redor, havia marcas das rodas de picape,
que após deixá-lo ali, aparentemente ficou fazendo voltas e
depois saiu exatamente por aonde chegara. Bom Ladrão
ainda sentia o gosto do whiskey tomando toda a sua
garganta, misturado a um bafo ruim de não sabia o que.
Saiu andando a esmo, reconhecendo ao longe o que
parecia ser uma comunidade. Aproximou-se, e reconheceu
o lugar. Era mais ou menos conhecido ali, com alguns
amigos, mas ao ver como ele estava, todos os evitaram
como se tivesse cinco mãos, e não o contrário.
-Saia de perto, filho! Isso aí é um ladrão que pegaram! Não
ajuda não que vão dizer que você é da gangue dele!ele
ouviu, a partir de uma janela que se fechou numa casa
rebocada em apenas um dos lados.
Andou por vários lugares, vendo as portas se
fecharem com sua chegada, até desmaiar de sede e de
fome no meio de uma praça. Três moças de saia longa o
acharam, lhe deram água e comida, e o levaram para sua
congregação. O pastor não gostou muito daquilo. O rumor
da presença de Bom Ladrão tinha se antecedido a sua
chegada, e apesar dele ser novo ali, tendo vindo a pouco
tempo da universidade da denominação, que ainda estava
pagando, as lições de criminologia e sociologia instrumental
que tinha recebido indicavam ao pastor que a presença
daquele individuo ali era um mau negócio. As três moças,
porém, eram de famílias bem posicionadas na comunidade,
e lideranças dentro do movimento juvenil do seu rebanho.
Tinha, além disso, conseguido encaminhar um noivado com
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a família da mais velha, que era uma das que pagavam o
maior dízimo da congregação, e nunca falhavam com
nenhuma oferta espontânea que seus chefes pedissem.
Devido a isso, e com mais alguma insistência delas,
acabou, a contragosto, aceitando fazer algo por Bom
Ladrão.
-Para servir a Deus, é necessário dar o que você tem.-
O que Bom Ladrão tinha agora eram os braços.
Colocando escovas adaptadas, passou a servir como
faxineiro do púlpito. Vestia roupas do bazar da igreja,
devidamente descontadas de seu pequeno ordenado, e
fazia suas refeições junto com os mendigos e catadores de
latinhas no sopão da caridade. Era deixado dormir no pátio
externo da igreja, sobre um colchão velho, pois mesmo sem
mãos, o pastor não confiava deixá-lo sozinho dentro do
prédio principal, aonde ficava a caixa de ofertas.
*
Certo dia, porém, o Apóstolo Setorial do bairro disse
ao pastor que precisava de pessoas convincentes para
aparecer no programa de tevê da denominação, num dos
horários alugados das emissoras menores. O pastor,
recém-promovido de Pastor Estagiário a Pastor Júnior,
gostaria de ter alguém melhor para mandar. Porém, o
exesquizofrênico que ele tinha curado com imposição de
mãos, após abandonar qualquer tratamento que não fosse
a Água Sagrada do Monte Gerizim™, tinha recentemente
se jogado do alto de um prédio em obras, destruindo
milhares de reais em azulejos importados e entrando em
coma. O ex-molestador, curado de forma semelhante, tinha
atacado o chiuaua da irmã solteira com o qual ele a tinha
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casado, levando o pobre animal a óbito e fazendo a irmã
mudar de denominação e processá-la na delegacia do
consumidor e na delegacia dos animais. Por exclusão, e
insistência da sua recém-noiva, o pastor acabou indicando
Bom Ladrão, na sincera esperança de que ele fosse
recusado. O pastor gostava da faxina e dos outros
pequenos serviços que ele fazia, mas não queria arriscar a
promoção pela qual esperava passando essa vergonha
com o chefe. Sabendo perfeitamente disso, sua noiva e as
amigas levaram Bom Ladrão ao escritório dele dias antes
de estarem efetivamente agendados. Após um pequeno
tempo de espera, a secretária falou ao chefe:
-Seu Batista, tem um varão e três irmãs querendo audiência
com o senhor. Dizem que é um caso de alta urgência, que
depende de um poder maior para ser resolvido.- disse a
secretária, atribuindo essas palavras a noiva para ajudá-la
a conseguir um horário na agenda do patrão.
Ser reconhecido como indispensável para resolver
um problema, era de fato um dos pontos fracos do Apóstolo,
e ele sabia perfeitamente que a secretária fizera uso dele,
mas deixou passar essa porque ela não costumava fazer
mal uso. Após essa chave ter sido utilizada, Bom Ladrão e
as moças foram recebidos polidamente na sala do Apóstolo,
que funcionava na sobreloja do pequeno mercado do qual
ele era
proprietário. Ele resistia bravamente a ser absorvido pelas
megarredes que há anos vinham tentando quebrá-lo.
Ultimamente, elas estavam fazendo ofertas de várias vezes
o valor verdadeiro de sua propriedade para que ele se
tornasse parte de uma franquia de mercados de bairro
controlados pelos grandes, aonde se mantinha o ‘’clima
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local’’ que as pessoas das comunidades gostavam, mas a
companhia lucrava como nos mercados grandes.
Empresarialmente falando, o plano era bom, mas, ainda
assim, ele considerava que não compensava: os
funcionários que ele tinha, todos irmãos, aceitavam um
salário ainda menor do que o das grandes redes e faziam
mais horas extras, além de serem dizimistas e ofertantes
nas unidades das quais ele era supervisor. Ganhar alguns
milhões de dólares ou euros, e se tornar franqueado ou
gerente do próprio mercado sob as regras das redes
estrangeiras era algo que nem compensaria para ele nem
faria bem para os funcionários, que teriam de aceitar
trabalhar com gente que não era da fé ou praticava
abominações, por causa das ‘’políticas de inclusão’’ que
seriam impostas pelos estrangeiros apóstatas e
exploradores. O Apóstolo, portanto, era um homem muito
satisfeito consigo mesmo, pois considerava que tinha
deixado de se dobrar a Mammon para servir a Deus,
mesmo sofrendo tantas dificuldades. Do ponto de vista de
Deus, ele tinha certeza que a única coisa melhor do que ser
ele mesmo era ser funcionário dele. Foi nesse espírito, que
ele perguntou a Bom Ladrão quando ele entrou:
-Com qual dádiva você foi agraciado após sair do mundo e
oferecer em sacrifício ao Altíssimo a décima parte de sua
renda? Qual milagre alcançou após adquirir as relíquias
consagradas no Altar da Fé?-
-A dádiva eu não sei, reverendo meu patrão, porque não
recebo nem meia nem quarta parte de qualquer salário, e
não tenho como adquirir um milagre nem no crediário Pra
mim já é milagre estar vivo e sendo bem cuidado do jeito
que eu estou sendo na Casa de Deus. Gosto de viver na
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humildade, sem chamar a atenção, assim na minha
mesmo- disse Bom Ladrão, tentando parecer contrito.
-O milagre dele é ter um trabalho e viver dentro da fé após
ter passado pela provação de um terrível acidente de carro
no qual o atropelador fugiu após atingi-lo! - exclamou a
noiva do Pastor.
-Ah, claro, um terrível acidente- disse o apóstolo encarando
Bom Ladrão de forma enigmática.
Ele olhou um pouco mais detalhadamente para Bom
Ladrão, e não o reconheceu porque não o conhecia, porém
se lembrou de rumores que tinha ouvido há algum tempo.
Como proprietário de um pequeno comércio, se mantinha
relativamente informado do que ocorria nas empresas de
segurança, e ficara sabendo da maneira que andavam
dizendo que apresentador J., infelizmente frequentador de
uma denominação concorrente, tinha escolhido quem faria
a proteção dos banners e outdoors da sua campanha de
deputado contra os pivetes dos outros candidatos. Vendo
Bom Ladrão e tendo ouvido do Pastor Júnior a maneira
pouco clara que ele tinha voltado aquela comunidade,
donde saíra há anos ameaçado pelo dono da rua,
insatisfeito com os roubos e golpes que ele praticava, o
apóstolo juntou as pontas e deduziu que aquilo que
andavam dizendo era exatamente o que tinha ocorrido.
Apesar de ser mais antigo na fé, e não ter tido a
oportunidade de fazer um curso EAD de Tecnólogo em
Teologia como o pastor, ele tinha senso de negócios, e
exatamente por isso era chefe direto dele na organização:
o que o pastor apenas pôde perceber como um incômodo
ou possível ameaça para sua própria unidade, ele pôde
enxergar como um ativo muito valioso para a organização
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como um todo. O Apóstolo intuiu que, as eleições estando
próximas, Bom Ladrão seria o primeiro de não poucos que,
passando por uma provação corporal ordenada pelo Pai,
buscaria a porta da consolação espiritual tantas vezes
ignorada, e eles estariam preparados para fornecê-la.
Sorrindo sem aparentar ter percebido nada, o Apóstolo
respondeu:
-Pois bem, varão. Se você ainda não foi devidamente
ungido na palavra, lhe peço que se ajoelhe agora diante de
mim, e faça o que eu mandar. -
Vendo que Bom Ladrão iria ser formalmente
batizado, algo que o pastor-local tinha tido receio de fazer,
as três boas irmãs exultaram, começando a fazer alarido e
falar em línguas.
-Com o poder que me foi concedido pelo Pai, eu declaro
neste momento, oh Senhor, que este penitente aqui agora,
oh Senhor, é uma pessoa nova, diante do Senhor! -
Disse isso, pôs as mãos violentamente sobre a
cabeça de Bom Ladrão, apertando e agitando com
veemência.
-Esse varão aqui!!! O Espírito me diz que ele passou por
grandes sofrimentos na sua vida! E não foi honesto diante
de Deus no prestar de contas de tudo o que fez de errado!
Ele não foi honesto, oh Senhor! Enganou a outros na sua
vida, e achou que na sua casa teria esconderijo, oh Leão
de Judá! - disse o Apóstolo, apertando ainda mais, e
encarando Bom Ladrão agressivamente nos olhos
-Eu revelo tudo sim, mas me garanta, reverendo! - tremeu
Bom Ladrão, agora tomado de verdadeiro medo.
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-Só te garanto a MORTE!
Bom Ladrão começou a chorar descontroladamente.
-Você quer a morte!?- gritou-lhe o homem.
-Quero não! -Você
quer a morte!?-
-NÃO! -
-Pois você quer a morte nesta vida pra ter a salvação em
outra? Ou prefere o inevitável nessa daqui e o Inferno na
outra? O fogo da salvação, ou o lago fervente do
INFERNO?
-A salvação, senhor! A morte que garante! O fogo
bom!gemeu Bom Ladrão.
-Pois receba A MORTE! E tome O FOGO! - disse o
apóstolo, pondo a mão esquerda sobre o ombro esquerdo
de Bom Ladrão, e a mão direita aberta sobre a cabeça dele.
-POU! - exclamou o Apóstolo, fazendo um som de tiro.
Como se por um sinal, as três moças, que tinham
entrado junto, começaram a ulular e rodarem em círculos
pela sala.
-Ai! - gritou Bom Ladrão, já sabendo o que aquilo
significava, por ter visto o pastor fazer dezenas de vezes,
quando visitava traficantes arrependidos.
-TRÁ! TRÁ! - fez o apóstolo, dessa vez simulando uma
pistola semiautomática.
-Ai! Ai! -
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-XABLAU! PLAM! RATÁPEIM! TABUM! - fez ele,
disparando um arsenal onomatopeico que parecia incluir
também uma calibre 12, um fuzil de assalto, um
lançamorteiros da polícia de choque e uma granada de
fragmentação.
Bom Ladrão se contorceu devidamente como se
tivesse atingido em cheio por todo esse material bélico, se
jogando para trás, contorcido, após a granada final. O
apóstolo ainda disparou sobre o ‘’cadáver’’ dele, para
garantir, algumas rajadas de metralhadora e uma bateria
naval, antes de perguntar:
-Você já está bem morto?- indagou ele.
-Tô sim!- disse o presunto de Bom Ladrão.
-Você já está bem morto?
-Tô sim!
-Você quer a nova vida?
-Quero!
-Você quer a nova vida?
-Quero!
-Pois ajoelha!
-E diga comigo: Eu sou... uma nova... PESSOA!
-EU SOU! UMA NOVA! PESSOA!
-O meu passado! Está no passado!
-O meu passado tá passado!
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-Pois bem, pode se levantar, irmão. - disse, tranquilamente,
o apóstolo.
-Tão simples assim? - perguntou Bom Ladrão.
-O procedimento, como um todo, envolve outras
preparações, mas no seu caso, o que importava era garantir
que você estivesse puro para o templo de Deus. Siga em
paz para onde está sendo abrigado, irmão, e fique
descansado de que não tardarão a surgir dádivas na sua
vida.- disse o Apóstolo, despedindo-o junto com as moças.
Por não serem mais inteligentes que seu próprio pastor,
elas apenas achavam que tinham feito uma boa ação e
salvo uma alma, mas ele sabia que tinha batizado alguém
que, em alguns anos, provavelmente seria maior do que
ele, e de quem, mesmo sendo mais velho, pediria a benção.
Conhecendo Deus mais que os outros, sabia reconhecer
quem estava destinado a ser retirado do monturo para dar
glória ao palácio do Pai e causar espanto nos descrentes.
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Terceiro
LAMENTAÇÕES
‘’. Quem pratica a fraude não habitará no meu santuário; O mentiroso
não permanecerá na minha presença. ’’
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Sabendo que Bom Ladrão era agora um irmão, e não
apenas isso, alguém considerado por um superior como
importante por alguma razão que só pertencia ao Altíssimo,
o pastor deixara com ele a chave da igreja, para que Bom
Ladrão pudesse dormir dentro dela e abri-la um pouco mais
cedo, o que basicamente equivalia a promovêlo ex-officio a
levita-assistente-júnior. Poucos dias depois, o pastor lhe
informou que uma van da denominação viria buscá-lo para
ser levado ao estúdio. Ao chegar lá, Bom Ladrão foi levado
a sala do Missionário Geral responsável, que era um diretor
de TV relativamente famoso antes de ter se convertido após
ter hipotecado a própria mansão, que lhe disse:
-Dimas, pregador.
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-Aleluia, irmão, que nome bem-aventurado! E me
diga, como era sua vida?
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além de todas as coisas que diz que fez, também falou que
já abortou ou abandonou várias crianças. A mãe do varão
sumiu em São Paulo, certo?-
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sequer mencionei que sua remuneração aumentaria e você
passaria a ser uma atração regular?-
-Amém! E MERDA!-
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pessoas corretas, noivando entre si e virando cantores
gospel na gravadora da denominação. Bom Ladrão e sua
trupe, por assim dizer, fizeram um relativo sucesso por
algum tempo, ajudando a causar um pequeno aumento nas
ofertas na cidade e tendo seus programas retransmitidos
para unidades em outros estados, antes de acabarem
expostos por um grupo de ateus delinquentes que se
dedicavam a desmascarar periodicamente as exibições
televisivas da denominação na Internet. Os chefes do
Missionário ordenaram a ele que desmontasse a atração
antes de haver mais consequências, e dispensasse cada
estrela com um cheque razoável para cada um, além de
alguns cupons de desconto próximos do vencimento em
lojas parceiras, e alguns milhares de pontos no catálogo de
produtos da denominação, que valiam descontos de até
15% em produtos após as primeiras compras no crediário.
Pouco depois, os advogados das ex-mulheres terminaram
de processar o falidor profissional antes que ele
conseguisse proteger tudo sob o nome de seu pastor, como
fizera em ocasiões semelhantes, e quando ele foi preso por
estelionato e escroqueira, um antigo sócio que ele fizera ser
preso por crimes que eram mais dele do que do sócio, o
recebeu na cadeia junto com um grupo de capangas e o
colocou para limpar as latrinas de todas as celas com a
própria escova de dentes. Ele morreu de disenteria um ano
depois, sem que ninguém lamentasse sua morte nem se
incomodasse em abrir uma investigação sobre o assunto. A
ex-pombagira continuou discretamente com seu trabalho de
massagista e ajudante de canto, nos quais era sempre
muito requisitada. O antigo casal ''exerrado'' se desfez
como mágica, com cada um dos noivos entregando suas
alianças de volta ao Missionário e voltando para seus
trabalhos na noite, visto que ambos eram cantores de bar
34
em bairros diferentes. A mãe, por sua vez, foi transferida
para outra cidade, aonde outra denominação a contratou
sob nova identidade artística. Bom Ladrão retornou a sua
unidade, tendo, além de todos os ganhos citados, havia sido
promovido a sub-gedeão. Estava assim, apto a servir no
lugar do pastor, que já tinha até então se casado, numa
cerimônia discreta, porém de muito bom gosto, quando ele
estava em congressos. Suas excessivas visitas às casas
das fiéis solteiras para lhes esclarecer as Escrituras atraíam
alguma atenção, logo dispersada:
35
36
Quarto
LUCAS
‘’Pois o Reino de Deus não consiste em palavras, mas em poder. ’’
37
Havia, porém, outro sub-gedeão, tão fervoroso quanto
Bom Ladrão, ou até mais, pois o Espírito o favorecera com
uma pequena, mas próspera loja de materiais de
construção. Além do mais, era casado há muitos anos com
uma esposa que não só tinha muita fé, mas tinha
conseguido convertê-lo junto com sua mãe de 90 anos, do
catolicismo, da maçonaria e de ser eleitor de um partido de
centro-esquerda para a religião correta. Bom Ladrão foi até
o homem, e mostrou ter o Espírito consigo naquela questão.
Chegando ao escritório do outro com uma pasta debaixo do
braço, abriu-a e mostrou o conteúdo. Ele tremeu, como se
um espírito maligno saísse de seu corpo. Bom Ladrão então
falou a ele:
38
tentar ser mais do que podia apenas porque tenho a
prosperidade, sendo que você se mostrou ungido, que tem
a benção dele junto com você... siga com sua candidatura,
que eu tiro a minha hoje mesmo!- disse o outro, submisso.
39
comprado no shopping. Evoluiu, então do tecido
semissintético para o algodão nacional; do algodão nacional
para o importado; deste para o linho feito sob medida, e do
linho para a seda oriental acabada na França. Em outros
debates de fé, agiu do mesmo jeito que com o dono da loja
de materiais, sempre vencendo. Só parou quando atingiu o
nível de Bispo Geral, pois aí os outros eram tão avançados
em conhecimento divino quanto ele, e seria arrogância
discutir com quem sabe mais. Quando atingiu este ponto,
porém, sua antiga igreja era uma das mais bem-sucedidas
da cidade, toda mobiliada com bancos de madeira no lugar
daquelas desconfortáveis cadeiras de plástico. A grande
consagração veio quando ele decidiu se casar, com uma
esposa adequada a estatura social que ele tinha alcançado.
Dispensou discretamente a garota com a qual estava até
então, arranjando o casamento dela com um contrabandista
de suplementos esportivos que ele tinha convertido e
ajudado, por uma parte dos ganhos, a transformar num
empresário legítimo, e se casou com a filha de um
empresário de aparelhos de segurança eletrônica. Com
financiamento do sogro, que esperava ajuda dele para
ganhar contratos para fornecer as unidade de CCTV e
outros sistemas de segurança eletrônica para as unidades
da denominação, constituiu morada num bairro nobre da
cidade.
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41
Quinto
REVELAÇÕES
‘’...e se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar e orar,
buscar a minha face e se afastar dos seus maus caminhos, dos céus o
ouvirei, perdoarei o seu pecado e curarei a sua terra. ’’
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Bom Ladrão abriu vários negócios, operados em
nome de Lucas para maior discrição, e passou a contar no
seu rebanho com pessoas nos altos e baixos escalões da
cultura, política e dos negócios, tanto lícitos como não tão
lícitos assim. E aprendeu a gostar de ser obedecido tanto
quanto até então só tinha gostado de dinheiro. Tinha
finalmente chegado ao ponto de, mesmo que lhe dessem
uma chance de passar de onde estava, recusaria, pois teria
mais trabalho sem poder aproveitar tudo o que acumulara.
Andava até mesmo pensando em se aposentar dali a algum
tempo: lia nas revistas de negócios mil casos de executivos
que saíam no melhor momento e se davam melhor do que
aqueles que ficavam tentando chegar à Presidência.
Vivendo antes como alguém que chegava até a passar fome
entre um golpe e outro, passou a poder se dar ao luxo de
apenas esperar o tempo mais conveniente. Os seus antigos
membros nem faziam tanta falta assim, pois tinha criados a
disposição para cada coisa que precisasse. Planejara uma
aposentadoria em grande estilo: dali a algumas semanas,
numa das Sessões de Desapego do Mega-Templo aonde
fora recentemente designado Apostolo Executivo
Financeiro, por indicação unânime dos outros Apóstolos,
conclamaria por uma dádiva especial para ajudar a ampliar
o estacionamento privativo. Na verdade, porém, ele
aplicaria todo o dinheiro arrecadado na criação de uma
denominação nova, menor que a sua original, mas aonde
ele seria o Missionário Executivo Chefe, Lucas o Vice
Apóstolo, e sua esposa a Bispa Geral de Recursos
Humanos. Ele acreditava que o Pastor Presidente de sua
atual denominação não teria como reclamar ou gastar muito
com um processo por lucros cessantes, depois da tentativa
de adquirir igrejas menores na África ter sido bloqueada por
um governo local preocupado com a influência excessiva da
43
denominação nos assuntos locais, e da projetada fusão
com um culto sul-coreano ter fracassado por causa de uma
alta repentina no dólar. Provavelmente aceitaria um acordo
dividindo igualmente algumas retransmissoras de TV e
horários alugados em canais menores, e cederia partes de
rádios comunitárias de acordo com a quantidade de
gedeões-votantes de cada um. O problema mesmo seria
decidir a quais deputados e vereadores da base abençoada
cada um teria direito, mas isso depois se resolvia. No exato
dia da grande conclamação, porém, aconteceu o
impossível. Bom Ladrão tinha anunciado um grande
momento de louvor e de consagração, antecipando-o com
a participação de vários cantores gospel recém-saídos do
mundo, e tinha posto todas as câmeras do Mega-Templo
diante de si para fazer o anúncio, uma declaração que ele
dizia que mudaria a vida dos presentes para sempre e seria
um divisor de águas nas suas existências. Ele já tinha
mandado projetar os gráficos e balancetes mostrando o
quanto seria necessário para a pretensa construção do
estacionamento, quando, do meio dos fiéis, surgiu uma
figura atarracada, que se mexia fervorosamente, enquanto
os outros estavam parados, aguardando a revelação.
Inicialmente confuso com o que poderia ser, por não ter
ensaiado nenhum arrebatamento nem expulsão do
demônio para aquele dia, Bom Ladrão tentou se concentrar
em quem seria, e então, aterrorizado, percebeu o rosto de
Rondinei, visivelmente perturbado e chorando, correndo em
direção ao palco.
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Os seguranças formaram imediatamente duas barreiras, na
parte baixa e alta do palco, para tentar conter o homem,
mas ele, como se de fato estivesse tomado por
Legião, passou pela primeira barreira, formada por
fisiculturistas e atletas semiprofissionais, como se fosse
papel de arroz, e de um salto escalou o palco e atravessou
a segunda barreira, formada por lutadores da liga Júnior do
MMA regular e paralelo liderados por Binhão e Toninho.
Bom Ladrão tentou recuar, mas não conseguiu a tempo:
Rondinei já tinha se atirado a ele, e se jogado a seus pés,
segurando fortemente seus sapatos fabricados na Itália, da
grife de um dos cantores-levitas que sua produtora
promovia.
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comprometia tudo. Bom Ladrão segurou a cabeça de
Rondinei, o puxou para cima, e exclamou:
46
bastante terrenos, mas que devido a situação, aqueles
milhares que estavam presentes no local, e os milhões que
podiam vê-lo pela internet e televisão, atribuíam uma
inspiração divina.
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Sexto
PROVÉRBIOS
‘’S’e ele se mostrar confiável, não cairá nem um só fio de cabelo da sua
cabeça, mas, se nele se descobrir alguma maldade, ele morrerá"
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Bom Ladrão tinha se recolhido ao seu apartamento
sacerdotal, dentro do próprio Mega-Templo, para se
recuperar. Rondinei, entrando em colapso, havia sido
levado para um hospital. Bom Ladrão temia, agora, que
quando se fossem cobradas as devidas satisfações sobre o
que havia sido revelado, um hospital seria de muita pouca
ajuda tanto para Rondinei como para si mesmo. Gente
ainda mais pesada do que aqueles homens de alguns anos
atrás se sentiria ameaçada pelo que julgariam ter sido uma
manobra de popularidade feita as suas custas, e o corpo
tinha muito mais pedaços do que apenas as mãos. A mente
de Bom Ladrão estava toda ocupada por um sentimento de
morte, desespero em estado puro pela que outros homens
poderiam imaginar fazer quando o pegassem tentando ser
esperto com eles de novo. Bom Ladrão não mediu o tempo
que ficou sentado em sua poltrona, catatônico, mas foi
avisado que o Pastor Presidente em pessoa, que estava do
outro lado do país instruindo um futuro candidato a
Presidente, tinha mandado reabastecer as pressas seu
jatinho pessoal para vir falar com ele. Após algumas horas,
o homem foi finalmente anunciado: era um senhor branco,
entre os cinquenta e sessenta anos, com uma cabeleira
mantida ligeiramente grisalha, cuidadosamente pintada de
forma a passar ao mesmo tempo a sensação de
experiência e jovialidade. Tinha uma expressão benévola
que dava a impressão de ser alguém que jamais xingava ou
se exaltava com ninguém, apesar de que nos bastidores,
seja exigindo o cumprimento de metas ou disciplinando
quem julgasse estar querendo passá-lo para trás, poder ser
tão duro e incisivo que podia causar em pouco tempo uma
gastrite motivada por estresse em alguém que provocasse
sua fúria ou caísse em seu desfavor. Além disso, era um
músico bem passável, e tinha composto a música-tema da
50
denominação, que ele cantava junto com um coro de levitas
pessoalmente conduzido por ele, na abertura dos
programas nacionais da igreja. Entrou no apartamento, fez
sinal para que todos saíssem e sentou em outra poltrona.
Cruzou uma das pernas sobre o joelho, uma das mãos sob
o queixo, e ficou, matreiramente, encarando Bom Ladrão.
Após alguns minutos assim, vendo que o outro não diria
nada sem ele abrir a boca primeiro, Bom Ladrão falou:
- Pelo que conheço deles, eles não seriam tão burros nem
tão atrevidos para pensar algo assim. Algo mais?respondeu
o pastor.
51
-Na verdade, ele tem ascendência libanesa e jordaniana,
senhor.
-Tô nem aí pra que tipo de judeu ele é. Mas, continuando,
se dependesse de mim, você e ele já tinham sido levados
pelo pessoal há muito tempo, e sua esposa, que vamos
admitir, é uma varoa com bons atributos, tinha sido levada
para o serviço no novo Mega-Templo Central,
recepcionando os parceiros da classe Salomão. Os da
classe Salomão-Potestade, para ser mais exato.
52
faculdade na qual era bom aluno, mas tive que deixar na
metade, e achava me aposentaria como um amanuense
mediocre, seja numa empresa privada, fosse no serviço
público. Mas então, eu caí doente, após um ano bastante
atribulado na minha vida, e minha família, não podendo
pagar por bom centro de recuperação para mim, fez o
melhor que pôde: me mandou ficar no sítio de um tio
distante, aonde quase a única coisa que havia para fazer
era ler na biblioteca livros antigos de teologia de uma
teóloga amadora americana, que falava sobre conceitos
complicados de forma brilhantemente simples, e algumas
obras de psicologia e administração. Quando eu fiquei bom,
e voltei para casa, minha família dissque que eu deveria
assumir como boy em outro escritório aonde eles
conseguiram vaga, mas eu falei pra eles: se eu voltasse
para esse trabalho de novo, iria ficar doente de vez ou
rachar minha própria com um peso de papel antes disso. Eu
disse eu preferia começar algo meu a ser empregado dos
outros de novo. Eles não tiveram fé em mim. Chegaram a
me renegar, e me amaldiçoarem por terem conseguido me
casar com uma garota que mesmo sendo tão pobre quanto
a gente, tinha o sobrenome de uma família que fora dona
de várias fazendas e ensacadoras de café, do qual o sítio
do meu tio era uma das sobras. Aí eu falei pra eles que eu
ia trabalhar muito pra iniciar o que eu queria, e que mesmo
sofrendo muito no começo, Deus ia olhar pra mim como não
tinha olhado para eles, e que muitos deles estariam vivos
para estarem trabalhando comigo como meus
subordinados, em cargos indicados por mim, e casando
com quem eu mandasse. Eles riram e me mandaram
embora jogando uma mala velha nas minhas costas. Então
eu me dediquei. Me fiz discípulo de uma pequena igreja
protestante, para poder aprender na prática algumas coisas
53
que eu só tinha entendido na teoria. Quando senti que tinha
aprendido tudo o que queria, briguei com o pastor da igreja.
Ele era um homem simples, de origem humilde, que tinha
herdado o seu púlpito de um casal de americanos que
vieram como missionários. Quando ele entrou na igreja
deles, tinha literalmente apenas as próprias roupas. Eu
provoquei uma disputa com esse homem, sabendo que ele
tinha não tinha o refinamento retórico para disputar comigo
apesar de ter uma fé mais sólida e mais sincera. Além
disso, eu também previa que esse homem, se sentindo
traído e humilhado por um rapaz que apesar de também
pobre e sozinho, era branco e tinha alguma instrução,
chegaria ao ponto de, no desespero, contratar malandros
para tentarem me espancar. E eu deixei eles conseguirem
mesmo tendo recebido treinamento avançado de artes
marciais no tempo em que servi os paraquedistas. A nossa
igreja se dividiu em duas: as pessoas que preferiam as
minhas preces mais instruídas e embasadas num
conhecimento exato dos trechos da Bíblia, e que me viam
como vítima, e aqueles que, por serem pobres demais para
frequentarem outro lugar, ou por respeito ao falecido casal
de americanos e seu discípulo ainda vivo, mas cujos
cablelos brancos já estavam começando a cair, se
mantiveram fiéis ao antigo mestre. Ele tinham, reconheço,
ajudado muita gente sem pedir nada de volta, e afora eu
próprio, todos ali eram pessoas de alma simples. Eu poderia
ter facilmente me reconciliado com meu ele, e continuar a
ser o herdeiro presumido, mas não quis perder tempo com
uma igreja pobre. Declarei que uma tentativa de
convivência era impossível e levei meus discípulos para um
galpão em outro bairro, aonde percebi potencial de
crescimento. Então comecei minha própria denominação,
aplicando conceitos que tinha lido sobre as novas mega-
54
igrejas americanas, e nas biografias de empresários bem-
sucedidos do ramo financeiro e imobiliário. Depois desse
galpão, fui adquirindo casas noturnas falidas e outros
espaços que tinham sido condenados pelo Diabo, até
chegar a ter um Mega-Templo em cada cidade com mais de
dois milhões de pessoas. Pouco antes disso, procurei
minha família. Minha própria mãe, que tinha arremessado a
mala em mim achando que eu tinha ficado retardado ou
estivesse fugindo de casa para virar michê em outra cidade,
me pediu desculpas e chorou, me reconhecendo como o
chefe da família a partir do daquele momento. Coloquei um
parente meu no Apostolado de cada Estado da Federação,
e alguns, como você sabe, até mesmo como deputados,
senadores, diretores de empresas importantes. Criei minha
própria universidade tendo como formação um curso de
correspondência em secretariado cuja empresa foi fechada
ano passado, antes que falisse por falta de clientes. Tenho
dois filhos, formados em Direito e Negócios no Exterior, e
uma filha formada em Alta Costura na Europa. E as
mulheres que aceitaram servir como servas da minha
esposa, num livre acordo entre mim e elas pouco depois de
eu ter me tornado milionário, tiveram filhos que hoje são
seguranças, motoristas de ônibus e cozinheiros nas nossas
unidades, e filhas que são manicures, cabeleireiras e babás
de pessoas importantes. Quanto a você, veio da mais baixa
criminalidade e não seria surpresa nenhuma você sumir.
Porém, nas últimas três horas, nossos canais nas redes
sociais ganharam mais assinantes do que nunca, e as
ofertas espontâneas dos fiéis que já temos quadruplicaram.
Eu conheço o jogo, e ele é assim: ou você cede, ou você
não ascende. Você teve sucesso em me desafiar, mostrou
que não tem falsa humildade e garantiu sua vaga no carro-
forte do Senhor. Pegou o cheque em branco e sem data, e
55
pegou também a assinatura. Por isso, o que você quiser,
Deus vai lhe dar, e acho que por isso nada lhe pode ser
negado. -concluiu o Pastor.
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-Minha Nossa. – exclamou Bom Ladrão, num ato de
apostasia vestigial.
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58
Sétimo
ROMANOS
Inclinem-se diante dele todos os reis, e sirvam-no todas as nações. ’’
59
Passaram-se alguns anos. Bom Ladrão, já elevado a
Pastor Co-Presidente, foi procurado por uma delegação do
recém-criado Conselho Interdenominacional e
ExtraEcumênico Nacional, que tinha importantes coisas a
lhe dizer.
60
primeiro tive que servir. Existe, portanto, um caminho para
a ascensão, e esse se faz através da fidelidade e do
serviço. Para realizar o serviço de todos, preciso da
fidelidade geral. Especialmente dos ateus virtuais, que já
atacaram minha denominação no passado. – reiterou Bom
Ladrão.
O líder dos ateus virtuais, um técnico de informática
de 40 anos, que virou Executivo de Redes de uma grande
multinacional se aproveitando de trainees que cediam
suas ideias a ele em troca de conforto anti-espiritual,
assegurou para Bom Ladrão:
61
-Nem mesmo daquele biólogo inglês que vive brigando com
todo mundo?- perguntou Bom Ladrão.
62
-Potencialmente de 2000%, se nossa operação não fizer o
valor da moeda virtual cair muito antes de terminarmos de
coletar o lucro.-
Iluminado Social,
Médium de Influência,
Emir do Pensamento,
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Eminência das Panelinhas,
Mulá de Mídias;
Mestre da Popularidade;
além desses,
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-Saravaménastêsalam, irmãos. E que assim seja.-concluiu
Bom Ladrão, primeiro em Português e depois em Binário,
em respeito ao líder dos ateus, que todos sabiam só se
dirigir em Klinlek aos verdadeiros iniciados.
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66
Final
ATOS
‘’Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas
já passaram; eis que surgiram coisas novas! Tudo isso provém de
Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos
deu o ministério da reconciliação, ou seja, que Deus em Cristo estava
reconciliando consigo o mundo, não levando em conta os pecados dos
homens, e nos confiou a mensagem da reconciliação. Portanto, somos
embaixadores de Cristo, como se Deus estivesse fazendo o seu apelo
por nosso intermédio. Por amor a Cristo suplicamos: reconciliem-se
com Deus. Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado,
para que nele nos tornássemos justiça de Deus. ‘
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Um cidadão que passasse com seu carro pela
avenida Zaqueu (antiga Doutor Senador Avô) vindo da Jacó
(antiga Bacharel Deputado Filho), não deixaria de
acompanhar os jogos do Campeonato Abençoado, ou
Abençoadão, através da mega-tela postada diante do
Hipertemplo da cidade, que de quando em quando passava
mensagens edificantes, misturadas com notícias
devidamente interpretadas de acordo com aquilo que era
moralmente correto. As declarações do Conselho
Naciosagrado sobre como tudo melhorava no país, que
recentemente adquirira armas ‘’de grande poder’’ para
poder se defender dos poderes apóstatas ainda restantes,
se alternavam com anúncios da nova novela das 8 na Rede
Única Nacional, que inovava em relação as que existiam
antigamente por, em vez de ter um tema do Antigo
Testamento, ser baseado em alguns trechos do Novo, com
infiéis de verdade morrendo nas cenas de guerra e
assassinato, como aquelas na qual Cristo, durante a luta
contra os vendilhões do tempo, atirava com sua
metralhadora contra os soldados romanos e guardas do
Sinédrio mandados para proteger a venda de produtos
feitos por empresas pagãs que não davam á Casa de Deus
o dízimo devido. Ninguém tampouco esquecia de ir,
mensalmente, ao banco pagar o carnê da Arca da
Promessa, um inovador sistema de capitalização que
garantia valiosos prêmios no fim do ano, em troca de
parcelas muito pequenas se comparados aos prêmios que
algumas pessoas ganhavam. Havia gente mais prática, que
já pagava o carnê junto com o desconto do dízimo no
contracheque. Lendo as notícias da Trombeta de Davi, o
jornal oficial, distribuído gratuitamente em todas as bancas,
o cidadão também poderia saber, por exemplo, que
vantagens teria em tomar o Achocolatado da Benção em
68
vez de achocolatado comum, pois o primeiro era o único
com sete vitaminas e fabricado de acordo com preceitos
bíblicos, ao contrário dos chocolates pagãos. A bem da
verdade, a fabricante de ambos os achocolatados era de
fato a mesma, que usava dois tipos de embalagem nas suas
fábricas. Nos bons tempos, a empresa lucrava mais de 40%
do valor da venda apenas com sua marca, pagando uma
pequena fração do total aos produtores do cacau e leite
utilizados. O Conselho lhes tomara esse lucro forçando-os
a colocar parte da produção sob a nova embalagem, cujo
direito intelectual pertencia ao governo. Não fazer isso
significaria ter o produto listado pela Associação de Pais de
Família Preocupados, cujos advogados e relações públicas,
recrutados entre profissionais que tinham sido cassados por
suas associações ou internados em clínicas psiquiátricas,
tinham conseguido destruir todas as marcas de refrigerante
seculares em menos de três anos e assegurado o
monopólio nacional do Guaraná Messias, alegando que
Satanás fazia surgirem ratos dentro dos refrigerantes
pagãos para causar doenças naqueles que os
consumissem. Devido a esse receio, a empresa era
basicamente obrigada a concorrer com ela mesma, sem
poder fazer propaganda do seu próprio produto porque a
Associação e o Conselho possuíam acesso gratuito aos
meios de comunicação que os outros tinham de pagar. E
ainda existia outro risco: pessoas que compravam a
embalagem deles porque era quase ilegal, para poderem se
sentirem subversivas consumindo o produto deles dentro
das embalagens oficiais. Quando havia apreensões de lotes
não autorizados em galpões ou casas, a Associação
começava campanhas de mídia que acabavam com
multidões destruindo lotes legítimos nos mercados, sem
que os Guardiões impedissem nem a justiça os
69
reembolsasse. Assim como as outras grandes empresas,
eles tinham, é claro, apoiado a decisão do Conselho em
suprimir o Congresso e indicar o Presidente através de uma
escolha interna porque eles tinham prometido que o livre
mercado seria assegurado. Em menos de seis anos, porém,
todas as empresas que não fornecessem versões
abençoadas de seus produtos tinham sido colocadas para
falir ou seus ativos confiscados, inclusive em países aonde
o Conselho não tinha autoridade direta, mas a denominação
tinha muitos líderes poderosos entre os discípulos. No final
das contas, ninguém queria de ser impedido de investir no
maior mercado do mundo: os empresários e financistas
compreenderam que novo país que estava se formando, a
liberdade do investidor investir era conseguida ao custo da
liberdade do consumidor escolher, e do trabalhador de
como trabalhar, mas apesar deles não saberem como, não
era a primeira vez que este paradoxo acontecia. Os grandes
jornais fizeram algumas reportagens deplorando ‘’um certo
excesso de ingerência’’ do Conselho nos assuntos
financeiros, mas elogiando ‘’a grande competitividade’’ da
economia como um todo. Na linguagem humana, isso
queria dizer que eles aprovavam tanto a administração do
Conselho como alguém poderia aprovar, quando você é
alguém que aprovaria um espantalho como guarda de
trânsito porque ele não atrapalha o livre fluxo dos carros, ou
colocaria um lobo selvagem para cuidar de ovelhas porque
ele promove a atividade física no rebanho. Havia paz na
Terra, entre os homens de boa vontade.
*
No Templo de Governo, que após ser concluído fez a
megalópole que surgiu ao redor dele ser considerada a
nova Capital Nacional sem necessidade de qualquer
decreto ou proclamação, o homem conhecido pelo público
70
como Pai Supremo da Pátria pela Graça e com a Benção
do Altíssimo, saboreava seu humilde caviar de penitência,
pois era sexta e não podia por nada na boca que não fosse
peixe. Rondinei estava ao seu lado, cuidando dele
humildemente, como um bom servo. Estava trajado de
forma simples, pouco melhor do que um simples
empregado. Ele possuía, presenteado por seu mestre, um
sobrecasaco branco, acompanhado por um chapéu e
algumas peças de terno, decorado com duas ombreiras
douradas com sete estrelas em cada uma. Tinha também
um bastão de carvalho decorado com uma espada, asas,
porrete, e uma âncora sobrepostos, e ao redor desse
símbolo, um isotopo de plutônio, um símbolo de perigo
biológico e as letras ‘’WWW’’ dentro de um círculo. Mas
essas meras externalidades, para ele, não tinham utilidade
das portas do Templo para dentro. Eram apenas roupas de
trabalho que tinha que utilizar quando o Mestre o expedia
em funções burocráticas. Ele tinha decidido ser, desde que
tinha recebido alta do centro de repouso, o primeiro a estar
por perto para atender cada capricho de seu mestre, e
qualquer empregado que tentasse antecedê-lo nisso era
punido diretamente por ele, e ainda temia, com razão,
grandemente pela própria vida e pela vida dos seus fora
dali. Nas primeiras vezes que isso aconteceu, Bom Ladrão
achou engraçado, e os outros empregados acharam que
Rondinei era uma espécie de bajulador. Algum tempo
depois, compreendendo que, mesmo ele não acreditando
em nenhuma nessas coisas, havia de fato algo quase
sobrenatural naquela dedicação, Bom Ladrão não
conseguiu mais rir, e os empregados entenderam que o
próprio Rondinei era algo ainda mais digno de medo do que
os títulos e atribuições que tinha recebido. Aprenderam a
não ficar em seu caminho, e a deixar que ele cumprisse o
71
que tinha tomado como sua sina. Bom Ladrão foi superando
o estranhamento, e por final se acostumou. Nesse
momento, Rondinei preparava o caviar de duas maneiras
diversas: colocando três variedades enlatadas sobre
pequenas colheres de pérola rosa, e outras duas de spread
em bisnaga sobre canapés de pão israelense levemente
tostado no forno de lenha alimentado com maple
canadense, e cortado em várias formas geométricas
diferentes, a depender da maneira que o Mestre fosse
preferir consumi-lo naquele dia. Rondinei sabia
perfeitamente que, por Bom Ladrão, eles poderiam abrir
qualquer uma das latas e comerem juntos, usando as
próprias mãos (e implantes) ou colocando o caviar em pães
de cachorro quente junto com molho cheddar e pasta de
amendoim, como faziam nos velhos tempos. Ainda assim,
Rondinei sempre cumpria cuidadosamente o mesmo ritual,
e Bom Ladrão chegava a ter mais prazer em vê-lo executar
cada etapa do que no caviar em si, que para ele não era
isso tudo que fizeram parecer quando ele era pobre.
Pessoalmente, Bom Ladrão não achava mais necessário
ele ser tão atencioso, apesar de saber que isso era algo
impossível de ser impedido. A verdade é que novas mãos
cibernéticas lhe permitiam fazer tudo que fazia antes, e até
mais, pois podiam girar completamente ao redor do próprio
eixo, ajudando, entre outras coisas, a escovar os dentes
mais rápido, girando as mãos num sentido e a escova
automática para outro. Engolindo vários canapés de cores
diferentes em sequência, perguntou ao subordinado quais
eram as novidades. Rondinei respondeu que suas 40
esposas e o filho estavam bem, exceto pelas notas
escolares do garoto que andavam meio baixas e ele pediu
que o diretor da escola verificasse de novo. Aproveitado que
já estava falando de escola, Rondinei comentou que, em
72
Ottawa, Ciudad del Mexico e Quito, professores
universitários tentaram realizar paradas pelo ensino da
Evolução Natural e dos métodos anticoncepcionais. Bom
Ladrão pediu a ele sua opinião sobre o assunto.
73
demorou um certo tempo para refletir, mas não muito para
dizer:
74
75