Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Antes de publicar o primeiro livro, ainda estudante de Direito, Clarice Lispector havia
como a Vamos ler! e o jornal A Noite No final da década de 1960, então consagrada,
aceitou o convite para assumir uma página de entrevistas na revista Manchete. Durante
plásticas e esportes passaram pela sabatina da escritora, entre elas amigos como Lygia
O que logo se percebe nas conversas com Clarice é sua total inadequação para a função
no tocante à técnica jornalística: é pessoal demais, por vezes indiscreta (sem contudo
soar invasiva), e, a pior das heresias, fala de si como se fosse ela a entrevistada. É claro,
não poderia ser diferente e a revista sabia disso — a sessão receberia o nome de
“Diálogos possíveis com Clarice Lispector”. Mais do que possíveis, talvez fosse melhor
dizer improváveis.
Na entrevista em questão, a primeira abordagem soa logo como um tapa na cara com
luva de pelica: “Vinicius, você amou realmente alguém na vida?”. Ora, em tese, isso não
é pergunta que se faça — ainda mais assim de sopetão — ao maior expoente da lírica
No melhor estilo morde e assopra, continua dizendo que telefonou para uma das
mulheres do poeta e elaque lhe disse que ele Vinicius quando ama se dá a tudo por
1
inteiro: crianças, mulheres, amizades; e. que por isso teria lhe vindo a ideia de que
amava o amor e nele incluía as mulheres. “Que eu amo o amor é verdade”, responde
Vinicius, “mas isso não quer dizer que eu não tenha amado as mulheres que tive. Tenho
homem e uma mulher se encontram num amor verdadeiro, a união é sempre renovada,
Bonita reflexão sobre o amor, no entanto, em tudo contrária à do poeta, que rebate: “É
claro, mas eu ainda acho que o amor que constrói para a eternidade é o amor paixão, o
mais precário, o mais perigoso, certamente o mais doloroso. Esse amor é o único que
A entrevistadora retoma a palavra sem peio: “Você acaba um caso porque encontra outra
“Na minha vida tem sido como se uma mulher me depositasse nos braços de outra. Isso
talvez porque esse amor paixão pela sua própria intensidade não tem condições de
sobreviver. Isso acho que está expresso com felicidade no dístico final do meu ‘Soneto
de fidelidade’: ‘que não seja imortal posto que é chama / mas que seja infinito enquanto
dure’”.
2
A entrevista prossegue, mas por enquanto quedemos aqui. Com perguntas tão óbvias
poeta. O amor paixão é um deles. Segundo o filósofo Alain Badiou*, no ideal romântico
do amor a ênfase recai sobre o êxtase inicial do primeiro encontro, que não seria para
ele o momento mais importante da relação amorosa, . *baseada sim em uma construção
Clarice concorda com Badiou. Para Vinicius, porém, o amor deve ser vivido no
paroxismo. “Mas amar é sofrer. Mas amar é morrer de dor”, canta em um de seus afro-
sambas, o “Canto de Xangô”, em parceria com Baden Powell. O poeta deseja fundir-se
com a amada. A consciência aguda do infortúnio lhe traz sofrimento e dor. Adentrando
as razões do coração que a própria razão desconhece, ele busca então no incessante
Vem daí a sensação de que sua vida tem sido como se uma mulher o depositasse nos
braços de outra. Por isso também há em muitos de seus versos acentuada analogia entre
mulher real e mulher ideal, em que a todo tempo uma assume qualidades da outra.
arquetípicas (Sombra / Alba, Vândala / Santa, Altiva / Suave), e outros que evocam
3
mulheres supostamente reais (prima Alice, Maria, Nina, Linda, Marina, Maja, Clélia)
Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu!
O “Sou eu!” que ecoa enfaticamente no último verso do poema traz uma ambiguidade
reveladora, pois pode tanto significar a resposta da mulher como a própria voz do poeta,
que se confunde com ela ou até mesmo com todas elas — nesse caso, a polifonia
proviria de tantas vozes quantas foram as mulheres arroladas. É uma resposta que junta
em um único sintagma poeta, mulheres reais e a mulher ideal (“a mesma em todas
vida real.
O amor devotado à mulher foi a via mais importante do poeta para a tentativa de
alcançar o absoluto da plenitude amorosa. Mas não a única. Em sua primeira resposta a
Clarice, esclarece: “por esse amor eu compreendo a soma de todos os amores, ou seja, o
amor de homem para mulher, de mulher para homem, o amor de mulher por mulher, o
4
amor de homem para homem o amor de ser humano pela a comunidade de
Vinicius rompe o silêncio: “Tenho tanta ternura pela sua mão queimada...”.
(Poucos anos antes, Clarice havia adormecido com o cigarro aceso e provocado um
incêndio em sua casa. Com graves queimaduras no corpo e correndo risco de morte,
passou dois meses hospitalizada na Clínica Pio XII, de onde saiu com sequelas,
A pedido de Clarice, Vinicius ainda faz um poema de improviso para ela. “Você escreve
Clarice
Lispector
A entrevista acaba e, , mas Clarice levando leva até o fim sua apuração,. aA escritora
telefona para uma das esposas do poeta e lhe pergunta: “Como é que você se sente
casada com Vinicius?” Ela responde: “Muito bem. Ele me dá muito. E mais importante
do que isso, ele me ajuda a viver, a conhecer a vida, a gostar das pessoas.” Conversa
também com uma “mocinha inteligente”: “Você teria um ‘caso’ com ele?”. “Não (...) eu
5
amo um outro homem. E Vinicius me revela ainda mais que eu amo aquele homem. A
música dele faz a gente gostar ainda mais do amor. E ‘de repente, não mais que de
transformador de outras vidas, que, por sua vez, não lhe seguem o exemplo, mas a
coragem de viver.