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Universidade do Vale do Itajaí

CEJURPS – Centro de Ciências Sociais e Jurídicas


Curso de Relações Internacionais

Maquiavel Diplomata: Uma interpretação do papel da experiência de


chancelaria de Maquiavel para a formação de sua concepção política na
obra “O Príncipe”

Artigo de Conclusão do Curso de Graduação,


exigido como requisito final para obtenção do
Grau de Bacharel em Relações Internacionais
pela Universidade do Vale do Itajaí.

ACADÊMICO: José Antonio Fogolari


Orientador: Prof. Msc. Itamar Siebert

Balneário Camboriú (SC), junho de 2016


Resumo
Maquiavel é bastante conhecido como pensador político. Mas, antes de escrever a sua obra, o pensador
florentino ocupou, entre 1498 e 1512, o cargo equivalente ao de diplomata em sua cidade natal, aspecto
este que costuma ser pouco enfatizado, quando não simplesmente omitido ou apenas citado como
curiosidade biográfica. Contudo, é inegável que sua prática diplomática lhe oportunizou uma série de
conhecimentos sobre o funcionamento da política realizada na Europa do século XVI, sobretudo seus
grandes temas, problemas, desafios e feitos. Além disso, na condição de diplomata de uma das cidades
mais importantes daquele período, Maquiavel desfrutou de um privilegiado convívio e contato com
vários governantes e diferentes tipos de assessores e agentes políticos. Sua obra política é
frequentemente uma resposta direta àqueles problemas e desafios enfrentados pelos governos europeus,
respostas estas muitas vezes baseadas no êxito ou fracasso obtido por alguns governantes
contemporâneos seus. Sua obra mais conhecida, “O Príncipe” [1513], traz inúmeras alusões, explícitas e
implícitas, ao mundo político da Renascença, alusões estas que, pelo nível de detalhamento e de acurada
análise, pressupõem uma vivência íntima daquele universo. Para que tal relação entre a prática
diplomática de Maquiavel e a sua obra política não se limite a uma mera plausibilidade ou exercício de
inferência, é necessário tentar evidenciá-la, explicitá-la. Por sorte, sobreviveram alguns dos relatos e de
outros escritos que Maquiavel produziu no exercício daquela função. Assim, uma das formas mais
objetivas de se verificar aquela relação é o confronto atento entre estes escritos com o texto de “O
Príncipe”. A pesquisa bibliográfica foi realizada a partir das obras de Burckhardt, Larivaille, Skinner,
Mattingly, Braudel e, principalmente, Maquiavel, especialmente de seus relatos de chancelaria, que
foram tomadas como fundamento do trabalho. Da análise e interpretação do material consultado, é
possível concluir que, de fato, há uma relação deveras íntima entre as atribuições do autor enquanto
diplomata e sua obra posterior. A atividade pública do florentino, com suas nuances e desafios, parece
estar transcrita e sistematizada em seu pensamento político tão singular.
Palavras-chave: Diplomacia, Renascença, Maquiavel, “O Príncipe”.
Abstract
Machiavelli is quite known as a political thinker. But before writing his political work, the Florentine
thinker held between 1498 and 1512, the equivalent post of diplomat in his hometown, a key factor that
is often given little emphasis, if not simply omitted or only cited as biographical curiosity. However, it
is undeniable that his diplomatic practice provided him a lot of knowledge about the operation of the
policy conducted in Europe of the sixteenth century, especially in its main themes, problems, challenges
and achievements. Besides, in the condition of diplomat of one of the most important cities in that
period, Machiavelli enjoyed a privileged interaction and contact with various regents and different
types of advisors and politicians. His political work is often a direct response to those problems and
challenges faced by European governments, responses often based on success or failure obtained by
some contemporary rulers of his time. His best known work, “The Prince” [1513], brings numerous
allusions, explicit and implicit ones, to the political world of Renaissance, these allusions that by the
level of details and accurate analysis, imply an intimate experience of that universe. To avoid this
relationship between the diplomatic practice of Machiavelli and his political work to be limited to a
mere plausibility or exercise of inference, is necessary to evidence it, explain it. Luckily, survived some
of the reports and others documents that Machiavelli produced in the exercise of that function. Thus,
one of the most objective ways to verify that relationship is an attentive confrontation between these
writings with the text “The Prince”. The research, therefore, was carried out through bibliographical
research, mostly the works of Burckhardt, Larivaille, Skinner, Mattingly, Braudel and mainly
Machiavelli, especially his Foreign Ministry reports, that served as the basis of the present work. From
the analysis and interpretation of the consulted material, it is possible to conclude that, in fact, there is
a close relation between the actions of the author while diplomat and his later work. The public activity
of the Florentine, with its nuances and challenges, seems to be transcribed and systematized in his so
unique political thinking.
Key-words: Diplomacy, Renaissance, Machiavelli, “The Prince”.

2
Maquiavel Diplomata: Uma análise do papel da atividade de chancelaria de
Maquiavel para a formação de sua concepção política na obra “O Príncipe”

José Antonio Fogolari

Sumário: Introdução; 1 - Dinâmica dos Poderes na Itália Renascentista; 2 – A Prática


Diplomática Renascentista e a Chancelaria Florentina nos anos de Maquiavel; 3 - Práxis e
Teoria: Os relatos de Chancelaria confrontados com “O Príncipe”; Considerações Finais;
Referências Bibliográficas.

Introdução

Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, por trás dos escritos
aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas
daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar. Quem não
conseguir isso será apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom
historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali
está a sua caça (BLOCH, 2001, p.54).

Desde que publicou sua obra literária e política, no início do século XVI, Maquiavel
adquiriu renome extraordinário vinculado a associação de seu nome aos mais grandiloquentes
elogios – “pai da Ciência Política” – e, ao mesmo tempo, os mais mortificadores juízos que
envolvem a adjetivação de seu nome como sinônimo de perfídia e falsidade. Ao longo destes
últimos cinco séculos sua obra despertou interesse sempre renovado pelo avanço do
pensamento e da Ciência Política a procura de compreensão deste jogo que envolve o
exercício de poder nos Estados Modernos. Qual o mistério de Maquiavel? Por que sua obra
alcançou tamanha repercussão? O que se esconde por detrás da “fama” deste pensador tantas
vezes “maldito”?
Mesmo sem saber se estamos à altura do “Ogro” sugerido por Bloch, este artigo busca
compreender os escritos de Maquiavel a partir de sua trajetória de vida e do ambiente social e
político de Florença, da Itália e da Europa dos séculos XV e XVI. Estamos cientes dos
desafios, das armadilhas do caminho e dos falsos determinismos que podem influenciar a
interpretação. Mas para tentar minimizá-los, deixaremos que Maquiavel fale através de sua
obra principal — “O Príncipe” —, escrita em 1513. Ela traz inúmeras alusões implícitas e
explícitas ao mundo político da Renascença; alusões estas que, pelo nível do detalhamento e
de acurada análise, pressupõem uma vivência íntima com aquele universo.
Esta vivência Maquiavel adquiriu quando ocupou o cargo de segundo secretário da
Chancelaria da República Florentina, entre os anos de 1498 e 1512. No exercício desta função
Maquiavel desfrutou de privilegiado convívio e contato com os atores governamentais de
primeira grandeza na Itália e Europa, além de uma miríade de agentes políticos que, como ele,
3
jogaram o grande jogo que forjou a estrutura política da Europa no início da era moderna. As
missões que desempenhou a cargo da Chancelaria Florentina exigiam relatórios e missivas
através das quais percebe-se um Maquiavel analista da grande política de seu tempo.
Acreditamos que estes relatórios, escritos pelo diplomata Maquiavel, foram a base empírica
de sua obra intelectual posterior. Ao longo deste artigo faremos o Maquiavel diplomata
dialogar com o pensador que viria a se tornar após 1512. O próprio Maquiavel estava muito
ciente da influência de sua práxis diplomática na consolidação de seu pensamento político.
Veja-se, a título de exemplo, a dedicatória de “O Príncipe” ao herdeiro dos Médici:
Embora julgue esta obra indigna de estar à Vossa presença, todavia, porque eu muito
confio, que pela sua benevolência, ela deva ser aceita, considerando eu que não lhe
possa ter feito maior presente que dar-lhe a faculdade para poder, em brevíssimo
tempo, entender tudo aquilo que eu, em tantos anos e com tantos incômodos e
perigos, conheci e entendi (MAQUIAVEL, 2011, p.27).

Após o fim abrupto de sua experiência como secretário de chancelaria, que lhe
oportunizou “tantos incômodos e perigos”, Maquiavel se ocupou da escrita de sua obra,
sistematizando seu pensamento em livros de cunho político, como “O Príncipe” e
“Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio”. Grande parte de sua obra pôde ser por
ele vivenciada diretamente na prática cotidiana da turbulenta conjuntura europeia do
Renascimento. Portanto, a contribuição da função de chancelaria de Maquiavel para a
posterior formulação de sua concepção política parece merecer maior atenção e,
principalmente, ser investigada de modo que se possa oferecer mais nítidos contornos a esta
relação entre sua prática diplomática e sua original teoria política.
O objetivo deste artigo é, portanto, tentar compreender o pensamento de Maquiavel a
partir de sua experiência como diplomata e do ambiente político em que viveu. Sua obra
intelectual, nascida na maturidade de sua vida, reflete esta experiência. Para além das
polêmicas suscitadas a posteriori, acreditamos que a força duradoura e persistente de seu
pensamento resulte exatamente da sua capacidade de entender as forças políticas que estavam
em jogo no seu mundo contemporâneo. Neste sentido, ao longo deste artigo, será posto sob
análise os vínculos entre a experiência prática do diplomata e as ideias do pensador político.
Para tanto, este artigo divide-se em três partes. Na primeira far-se-á uma breve análise do
ambiente histórico em que Maquiavel viveu e escreveu, fundamentada em diversos autores
entre os quais se destacam Braudel, Burckhardt, Larivaille, Elias e Skinner. Na segunda parte
será apresentado de que forma se realizavam as atividades diplomáticas durante o
Renascimento, bem como as instituições florentinas em que Maquiavel atuou e suas
principais missões pela Itália e Europa, fundamentada, principalmente, em autores como
Gennaro Sasso, Mattingly e Mettenheim. Na terceira parte, por fim, é realizado o confronto

4
direto entre a prática diplomática de Maquiavel, materializada em seus “Escrítos Políticos”,
com sua principal obra, “O Príncipe”.

1. Dinâmica dos Poderes na Itália Renascentista

Comecemos com uma constatação óbvia: Maquiavel não é um “gênio perverso” num
mundo de tolos. Nosso autor é contemporâneo de Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael;
dois anos antes de assumir o cargo na chancelaria de Florença, Colombo descobrira a América
[1492]; enquanto escrevia suas obras, Lutero pregou suas noventa e cinco teses contra a
indulgência na porta do castelo de Würtemberg [1517]; e Nicolau Copérnico desenvolvia sua
teoria heliocêntrica do sistema solar. O que estava acontecendo com o ocidente cristão era a
profunda e difusa explosão do humanitas1 — uma centelha vital acesa no século XII com a
redescoberta, nas terras reconquistadas dos muçulmanos, da sabedoria antiga — enriquecidas
por séculos de reflexões islâmicas e judaicas (LE GOFF, 1995, p 21). Segundo nos ensina
Fernand Braudel, há muito estabelecido, o humanismo ganha força nova, torna-se onipresente
no ocidente, uma “pandemia contagiosa”. E, “em toda parte surgem homens apaixonados,
instruídos nas três línguas [latim, grego, hebraico], seguros de si, arrivistas como o diabo”
(2007, p 52).
Seria este o caso de Maquiavel? Para nos situarmos, vejamos sua brevíssima biografia:
Maquiavel nasceu em 1469, no momento de maior esplendor cultural e político da Florença
dos Médici. Na puerícia iniciou seus estudos de latim e grego antigo e estudava na
Universidade de Florença quando, após a queda dos Médici [1494] e o breve e traumático
governo de Savonarola [1494-98], foi empossado no cargo de segundo secretário na
Chancelaria Florentina, durante o governo republicano de Piero Soderini. Tinha 29 anos
quando assumiu o posto; quarenta e três anos quando foi sumariamente demitido após a queda
de Soderini, em 1512. Com a restauração dos Médici em Florença caiu em desgraça. Foi nos
anos de maturidade e ostracismo, entre 1513 e o ano de sua morte, em 1527, que escreveu sua
obra intelectual. Se esta breve biografia pouco revela, ela nos diz o essencial: Maquiavel era
um humanista, conhecia línguas clássicas e, como outros de sua espécie, “forçam as portas
das Universidades”, “disputam entre si sem pudor” fama e benefícios, “penetram mais
facilmente nas chancelarias”, ou “fazem fortuna na corte dos príncipes [mas quantos
perigos!]” (BRAUDEL, 2007, p 52). Para compreendermos quais seriam estes “perigos”,

1
Segundo Tarnas, com São Tomás de Aquino [1225-1274] houve uma conciliação entre fé e razão, quando a
trajetória essencial do humanismo no ocidente medieval foi fundamental para a primazia da razão em demonstrar
a racionalidade do universo. Pois, baseado na ciência antiga, afirmava que o mundo era um todo ordenado,
dirigido por uma finalidade inteligente. E, se o universo possuía leis naturais, regularidades dadas por Deus no
momento da criação, o mesmo Deus dotara o homem de capacidade racional para compreender estas leis e
intervir no mundo terreno (2008, p 202-213).
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necessário se faz compreender as linhas gerais da dinâmica das forças em conflito no
complexo jogo político da Itália e da Europa no século XV e início do XVI. Faz-se, portanto,
necessário para compreensão destas forças um escorço temporal.
Por volta de 1400, o mapa político do ocidente cristão estava muito diversificado. Os
dois poderes universais que regeram o mundo medieval, Papado e Império, passavam por
dificuldades. Embora alguns procedimentos e instituições tenham sido criados com a
elaboração da Bula Dourada de 1356, a “constituição” do Império ainda estava desorganizada
no começo do século XV, uma vez que as regras de como o rei, os eleitores, e os outros
duques deveriam cooperar careciam da maturação que só o tempo, e os Habsburgos, poderiam
dar. Quanto ao Papado, a crise inaugurada com o “Cativeiro de Avignon” [1309-1377],
aprofundou-se com o “Cisma Papal” que dividiu a cristandade ocidental entre Papas e
Antipapas [1378-1417]. O décimo sexto concílio ecumênico da Igreja Católica, realizado em
Constança [1414-1418], acabou com o Cisma, mas o Papado ainda teria que enfrentar grandes
incertezas antes que Sisto IV, os Bórgia e Júlio II, recolocassem, ainda que por um breve e
faustoso momento, antes de Lutero, Roma de volta no centro da cristandade.
Olhando para os demais poderes no Ocidente veríamos, por volta de 1400, uma
bipolaridade representada, por um lado, pelas pulsantes cidades da península itálica2; por
outro, pelas nascentes estruturas Estatais ao norte dos Alpes. Naquele momento as cidades da
Itália eram ainda superiores e as unidades territoriais do Norte se destacavam como uma
civilização ascendente e aberta ao diálogo. Uma alegoria criada por Braudel ilustra bem esta
situação:
A história da Europa desde muito é uma corrida: cidade contra Estado, digamos
lebre contra tartaruga. Ora, a lebre, a cidade mais ágil, ganhou logo no começo,
como era lógico. Mas [ao longo do] século XV, no Ocidente, assiste de novo à
subida e a chegada das lentas tartarugas (2007, p 38).

Se os italianos do início do século XV sentem-se diferentes dos outros povos da


Europa, isto não se deve tão somente a emergência espiritual de suas proezas culturais; “na
base do predomínio italiano descobrem-se desde logo superioridades econômicas”
(BRAUDEL, 2007, p 41). A partir das Cruzadas, do século XII em diante, as cidades italianas
— principalmente Gênova e Veneza — se impuseram progressivamente no comércio oriental.
Com a conquista de São João do Acre, em 1291, a cristandade perdeu seu último lugar
notável no continente asiático e assim, aparentemente, as cruzadas terminaram com o fracasso
da nobreza Europeia. “Mas o mar, em toda sua extensão, e notoriamente em seus espaços
orientais, permanece dos marinheiros e dos comerciantes da cristandade [diga-se italianos!]. E

2
As cidades, ou Cidades-estado italianas, são também conhecidas pelo nome de Comunas apesar de seu aspecto,
por vezes, pouco republicano. O presente artigo se utiliza das diversas denominações aqui apresentadas e já
consolidadas por diversos especialistas no Renascimento.
6
essa vitória anula tudo” (BRAUDEL, 2007, p 36). Foi assim que o Mediterrâneo foi colocado
sob dependência da estreita península, “que o corta em dois para dominá-lo melhor, como se a
geografia complacente estivesse a serviço direto de sua grandeza” (BRAUDEL, 2007, p 32).
Desde suas remotas feitorias instaladas nas ilhas e margens do Mediterrâneo e do Mar
Negro, os produtos orientais afluíam para as cidades italianas, para daí serem distribuídos pelo
interior feudal da Europa. A partir de Veneza, pelos grandes desfiladeiros dos Alpes,
chegavam a Basiléia, Augsburg, Nuremberg, Colônia, via Reno aos Países Baixos, Londres.
Desde Gênova outra rota cruzava a França, dando origem, na região de Champagne, a mais
famosa feira comercial do medievo. Sendo esta e todas as demais feiras, de ponta a ponta,
dominadas por transportadores, cambistas, agiotas e comerciantes da Itália. A partir de 1297,
Gênova estabeleceu uma ligação marítima direta e regular entre o Mediterrâneo o Mar do
Norte (BRAUDEL, 2007, p 41). Assim, as cidades italianas eram o “coração do conjunto”, o
centro de uma “economia mundo” organizada em seu benefício, que interconectava os
territórios bizantinos e muçulmanos à Europa ao norte dos Alpes.
Na Europa não italiana o crescimento do comércio e da circulação de riquezas
provocou profundas mudanças nas relações de vassalagem no interior da sociedade Feudal.
Norbert Elias — intérprete deste processo — entende que, enquanto força centralizadora, a
economia monetária beneficiou alguns poucos senhores de terras por onde passavam as rotas
em detrimento da imensa maioria de senhores secundários, ainda ligados à economia natural.
Isto provocou um desequilíbrio nas antigas relações feudais. A partir do século XII, Elias
distingue claramente três formas de existência na nobreza feudal: 1. As grandes e médias
cortes – Senhores de Territórios – ligadas ao setor monetarizado das rotas comerciais, que
exerciam um controle militar e fiscal sobre terras que se espalhavam por diferentes regiões,
obtidas por conquista, herança, doação ou casamento. 2. Os senhores feudais, propriamente
ditos, que continuavam ligados à economia natural, sobrevivendo da corveia de seus próprios
campos e que, quanto mais miseravelmente viviam, mais eram atraídos para a esfera de
influência das grandes cortes. 3. Os cavaleiros menores que, em consequência da excessiva
fragmentação do feudo paterno e da primogenitura não dispunham de terra e, armando-se
cavaleiros celibatários, colocavam-se a serviço das grandes cortes (2006, p 25-35).
Servidos por este novo exército de cavaleiros, as Grandes Cortes — ligadas ao setor
monetário — vieram a se constituir como nova força monopolista de poder político e
territorial, impondo sua autoridade aos demais senhores menores. Como contavam agora com
uma fonte de renda — as rotas, feiras e cidades situadas em seu território — estes Senhores
conseguiam escapar do perpétuo círculo de distribuição de terra em troca de serviços e da
subsequente apropriação da terra pelos vassalos. Braudel concorda com Elias, pois também
identifica na economia monetária o impulso geral “que precipita as relações, multiplica as
7
permutas e torna frágeis as formações políticas restritas em demasia”, que produziu “na
Europa não italiana Estados territoriais modernos: a França de Luís XI [1461-83], a Espanha
dos Reis Católicos [Isabel, 1474-1504; Fernando, 1479-1516] e a Inglaterra de Henrique VII
[1485-1509]” (2007, p 44). Importante salientar que, ainda para Braudel, não foi coincidência
que o Estado territorial tenha se instalado
Precisamente fora das regiões onde a lebre, isto é, as cidades já ganharam a corrida.
Diante dele, poucas ou nenhuma cidade, ou cidades não muito poderosas, ou então
isoladas. Foi uma sorte para as monarquias modernas essa ausência de obstáculo
urbano sério diante delas, diante de seus aparelhos de funcionários que conduzem ao
desenvolvimento horizontal das grandes formações políticas (2007, p 44).

Ao longo do século XV, enquanto que os Estados territoriais se estruturavam ao norte


dos Alpes, verificou-se a constituição de um novo mapa Italiano. Por este tempo, segundo
Larivaille, a política peninsular estava organizada como
Um mosaico de Estados de diferentes dimensões territoriais, regimes políticos,
estágios de desenvolvimento econômico, até culturas muito variáveis. Cinco grandes
Estados ― “regionais”, opostos por conflitos frequentes, dominavam a vida da
península: O Reino de Nápoles, nas mãos dos aragoneses; os Estados Pontifícios, o
Estado Florentino, há decênios sob o controle da família Médici; o Ducado de
Milão, e a República de Veneza. Em torno desses cinco Estados gravitam alguns
Estados menores, teoricamente independentes e soberanos, mas, de fato, obrigados,
para neutralizar as ambições e sobreviver, a alinhar, de acordo com seus interesses,
sua política à de um ou outro de seus poderosos vizinhos (1988, p. 9).

Neste novo mapa, múltiplas forças estavam em jogo. Para que o leitor não se perca nos
meandros desta trama narrativa, apoiamo-nos na periodização de Fernand Braudel ao
considerarmos a história da Itália Renascentista: 1. Período de consolidação territorial, de
1400 a 1454; 2. a Paz de Lodi, que se estabelece entre os anos de 1454 e a invasão francesa de
1494; 3. A Itália devastada pelas incursões francesas, espanholas e imperiais entre 1494 e
1559; e 4. Por fim, um período de paz duradoura e sólida estabelecido a partir de 1559. No
âmbito do artigo, que pretende analisar os anos de atividade pública e intelectual de
Maquiavel, será desconsiderado o último período mencionado.
Entre 1400 e 1450 pode-se distinguir na Itália duas regiões distintas: o sul arcaico e o
norte urbano. No sul da península Afonso de Aragão — o “magnânimo” — arrebatou o Reino
de Nápoles da casa de Anjou, em 1442. Domínio sempre contestado que, no complexo jogo
político peninsular, viria a ser o pomo da discórdia das guerras italianas, inclusive da invasão
francesa de 1494. Na esteira dos Aragoneses, também chegou na península Afonso de Borja,
cuja família — italianizando o nome para “Borgia” — viria a desempenhar relevante papel na
reconstrução da autoridade do papado e — o que mais nos interessa aqui — tiveram
significativa importância na vida e no pensamento de Maquiavel3.

3
“Gran parte de sus integrantes ocuparon posiciones muy destacadas, comenzando por los dos papas Borgia,
Calixto III y Alejandro VI, y por Francisco de Borgia, canonizado en 1671, que en vida llegó a ser virrey de
8
Já no norte da península, conforme Braudel, as cidades mais poderosas iniciaram um
processo de conquista das cidades secundárias, “submetendo-as a sua lei durante guerras,
umas fáceis, vencidas sem cerimônia, outras inexpiáveis. Veneza submete Pádua, Vicenza,
Verona, Brescia, Bergamo, Udine, aumentando assim seu território; Gênova destrói Savona;
Milão torna-se o Ducado de Milão; Florença abate Pisa, em 1406, com júbilo selvagem”.
Nestas intermináveis guerras onde as armas de fogo ainda não existiam,
Uma cidade é tomada ou por um longo bloqueio que reduz à fome seus defensores,
ou por astúcia, ou por traição: basta que uma de suas portas seja surpreendida ou
entregue ao inimigo. Os condottiere são empreendedores de guerras engenhosas,
raramente mortíferas. Alguns cavalos que se evadem ou perseguem um adversário
rápido, campos que se queimam ou que se ameaçam queimar [...] (2007, p 45-46).

Em meio a estas guerras expansivas que poderiam culminar a unidade peninsular, um


novo e colossal poder ergueu-se no oriente, os Turcos tomaram Constantinopla, em 1453. O
temor de que a ameaça otomana pudesse abater-se sobre a Itália propiciou a assinatura da Paz
de Lodi, em 9 de abril de 1454. Ao encerrar as guerras da Lombardia, este tratado foi assinado
pelos aliados de Milão [Florença, Mântua e Gênova] e aliados de Veneza [Nápoles, Savoia e
Monteferrato]. O acordo de Lodi estabeleceu fronteiras permanentes entre os milaneses e os
venezianos, confirmou Francisco Sforza como Duque de Milão e, mais importante, pretendeu
estabelecer e manter o balanço de poder entre as Cidades-estado italianas. Braudel considera
que a Paz de Lodi “instalando um longo período de paz inquieta e suspeitosa, concretizou o
equilíbrio italiano, do qual o equilíbrio europeu, mais tarde, será apenas uma retomada e uma
extensão” (2007, p 31). Tal equilíbrio teria resultado do fato de que no norte da península,
Mesmo transformadas em principados as cidades italianas não deixam de
permanecer cidades, formações de tipo especial: O Ducado de Milão é ainda Milão;
a Toscana, mesmo depois de 1434, é ainda Florença. Portanto cidades e já Estados,
elas retiram desse carácter hibrido sua força [seu dinamismo econômico] e sua
fraqueza, agora que se anuncia o reino ameaçador dos Estados compactos, de
exércitos numerosos, ao menos relativamente numerosos (BRAUDEL, 2007, p 45-
46).

Importante retomar aqui a alegoria braudeliana da lebre e da tartaruga. Já


mencionamos que Braudel considera uma “sorte” para as monarquias modernas [tartarugas] a
ausência de obstáculo urbano sério em seu território. Como acabamos de ver, o mesmo não se
pode dizer acerca do norte da Itália, território exclusivo das Cidades-estado [lebres]. Para
aprofundamos esta diferença alegórica nos servimos de Burckhardt, quando diz que
Não há na Itália um sistema feudal semelhante àqueles que encontramos no Norte,
com os direitos artificiais dele decorrentes, mas o poder que cada um possui, ele ao

Cataluña bajo Carlos V y fue el tercer general de la Compañía de Jesús. Igualmente relevante fue la función de
César Borgia, hijo de Alejandro, primero como obispo y cardenal, y luego como príncipe y duque de la Romaña.
Asimismo, en el plano social, la vida y reputación de Lucrecia Borgia, también hija de Alejandro, trascendió de
tal modo que dejó una significativa huella literaria en las obras de Víctor Hugo, Alejandro Dumas y Guillaume
Apollinaire, por mencionar sólo la literatura clássica” (GARCIA JURADO, 2013, p.242).
9
menos o possui [geralmente] de fato. Tampouco há ali uma nobreza a circundar o
príncipe e a manter vivo em seu espírito um senso abstrato de honra, com todas as
suas bizarras consequências; ao contrário, príncipes e conselheiros concordam em
que devem agir conforme a situação e os objetivos a serem atingidos. Inexiste um
orgulho de casta a excluir quem quer que fosse na escolha daqueles de quem se faz
uso ou na dos aliados, viessem de onde viessem. Do poder real nos fala
abundantemente, e com voz audível o bastante, a classe dos condottieri, no seio da
qual a questão de origem é absolutamente indiferente (2009, p. 117).

Em vez de concentrar-se em grandes propriedades territoriais, na Itália o poder habitou


nas cidades. Ao contrário do Norte, onde os governantes contemplavam o mundo do alto de
seu castelo, a Itália era governada por homens que abraçaram o destino e os prazeres da vida
urbana. Desde o século XII, a convivência de nobres e burgueses promoveu uma fusão, até
então inédita, das camadas sociais nas cidades italianas. Em seu estudo sobre a “Cultura do
Renascimento na Itália”, Burckhardt considerou ter encontrado nesse “traço distintivo” da
natureza de suas Cidades-estado “a mais poderosa razão do desenvolvimento precoce do
italiano em direção ao homem moderno” (2009, p. 111).
Em seu clássico estudo sobre o “Processo Civilizador”, Norbert Elias verificou que a
formação dos Estados Territoriais ocorreu através de dois organismos sociais distintos: a
cidade e a corte, onde os diferentes estamentos — burguesia e nobreza — viviam em
ambientes diferenciados, produzindo representações éticas com suas respectivas noções de
honra. A glória literária dos trovadores e Minnesänger — analisada por Elias — restringiam-
se ao interior da cavalaria e, em sua poética, os “vilões” eram representados com todos os
vícios da objetividade materialista dos habitantes da cidade. Devido ao precoce convívio
social das classes, nas cidades italianas inexistiam diferenças de castas, mas sim diferenças de
classe baseadas na riqueza e na cultura (1990, p 77-83).
Destaca-se ainda que, para Burckhardt, enquanto que nos Estados Territoriais a
autoridade do governante baseava-se exclusivamente na legitimidade dinástica, nas cidades
italianas, fossem elas Repúblicas ou Tiranias, muitos de seus governantes conquistaram sua
autoridade através de usurpações “embasadas em manifestos e bem calculados
fundamentos”4. Tal fato levou os príncipes italianos a considerar as questões de política
externa com a mesma atenção dedicada aos assuntos domésticos. Através do sistema de
agentes, espiões e “diplomatas”, cada governante buscava a estruturação de elaborados e
flexíveis sistemas de alianças que viabilizassem a consolidação da própria dominação. No
complexo tabuleiro da política italiana, Estado algum reconhecia o outro sem reservas e a

4
Burckhardt identificou, entre os humanistas italianos, uma intensa controvérsia sobre as características
filológicas e éticas da nobreza. Enquanto que na maior parte da Europa o conceito de nobreza estava associado a
palavra grega eugeneia — o bom nascimento; na Itália recorria-se a palavra latina nobilis, ou seja, notável.
Dante, por exemplo, desvinculava quase totalmente o conceito de nobile e nobilita de qualquer circunstância de
nascimento, identificando-o com a aptidão para a superioridade moral e intelectual do indivíduo (2009, p. 262).
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sobrevivência ou fatalidade da invasão dependiam do tratamento puramente objetivo das
questões de política externa. “Por fim”, nos diz Burckhardt,
Os governos, liderados por déspotas cultos, conhecem o próprio território e os
vizinhos com uma exatidão incomparavelmente maior do que seus contemporâneos
do Norte conheciam os seus, e calculam até os mínimos detalhes a capacidade de
ação de aliados e inimigos, tanto em seu aspecto econômico quanto moral (2009, p.
118).

Assim, a Itália do Renascimento inaugurou a prática diplomática que, somadas as


demais formas de conjugação persuasiva — armamentos, intrigas, subornos, traição —,
permitiam a seus governantes concertar, em Lodi, esta “paz inquieta e suspeitosa”. Ainda
segundo Burckhardt, a complexidade das relações políticas peninsulares resultou um novo
tipo de governabilidade, fundado no talento, que exigiu que cada governante se cercasse e
colocasse sob sua proteção, e exploração, pessoas também talentosas, independente do
nascimento: secretários, funcionários civis, diplomatas, condottieris, arquitetos, engenheiros,
poetas, artistas. Assim, o impulso em direção ao desenvolvimento do individualismo
disseminou-se no tecido social das cidades italianas. Evidentemente que tal individualismo
não tinha paralelo no Norte, ou não se revelava de maneira semelhante. Foi assim que, a partir
do século XV, na Itália, começaram a aparecer os milhares de rostos que adquiriram sua
feição própria, sua personalidade pessoal distinta, que ainda hoje nos impressionam por sua
criatividade totalmente inovadora.
Entre estes milhares de rostos está Niccolò di Bernardo dei Machiavelli, nascido em 3
de maio na Florença de 1469. Voltemos, pois, à sua biografia já esboçada no início do
capítulo. Quando nasceu nosso personagem, Florença vivia o esplendor cultural e político sob
os governos de Cosme de Médici. E, para retomarmos uma última vez a alegoria da lebre e da
tartaruga poderíamos dizer que, por esta época, enquanto as lebres italianas bloqueavam-se
uma as outras no cenário italiano, as lentas tartarugas foram tomando a dianteira. Portugal
descobriu na caravela a chave do mundo, tornada acessível através da navegação de longo
curso — em 1469 já estavam no Golfo da Guiné. A Flandres de Van Eyck aperfeiçoou a
pintura a óleo e inventou a perspectiva linear. Nas terras Alemãs inventa-se a pólvora de
canhão, o alto-forno, a xilogravura e a imprensa. Os cantões suíços reinventam a infantaria,
rainha das batalhas. Uma nova era se avizinhava quando, em 1492, a América foi descoberta.
A Espanha conquistadora e a França dos Valois aperfeiçoam a infantaria e introduziram a
artilharia que lhes dariam a supremacia das armas. O tempo das lebres havia acabado.
Quando Maquiavel tinha 25 anos, em 1494, Carlos VIII da França, apoiado pelos
Sforza de Milão e os Este de Ferrara, reivindicou seus direitos ao Reino de Nápoles. Velha
inimiga de Milão, Veneza e o Papa Alexandre VI não reconhecem os direitos franceses.
Iniciou-se para a Itália uma era de invasões. Na sua Florença natal, a invasão francesa levou a

11
queda dos Médici e a ascensão de Savonarola. Em 1495, a Florença de Savonarola recusa-se a
participar da Santa Liga formada pelo Papado Bórgia, Milão, Veneza, Sacro Império e
Espanha para conter a invasão francesa. Em 1497, os franceses são expulsos e fazem a paz
com a Espanha. O imprevidente Savonarola foi excomungado, enforcado e queimado em
praça pública em 23 de maio de 1498.
Maquiavel tinha 29 anos quando, em 1498, foi empossado no cargo de segundo
secretário na chancelaria Florentina pelo governo republicano de Piero Soderini. Começava
ali sua vida pública numa Florença que, em pouquíssimo tempo, alternou a forma de
administração da principesca, profética e republicana. Esta inconstância não era exclusividade
de Florença. Em diversos Estados Italianos ocorriam crises semelhantes, algumas superadas,
outras convertiam-se em revoluções. “O perigo era iminente: a ambição de Veneza, os papas
dispostos a fazer uso de armas para restabelecer a glória e a segurança temporais da Igreja, o
crescente poderio dos suíços, a curta experiência de César Bórgia que reuniu várias senhorias
semi-independentes em uma província administrativa centralizada na Romanha, criou um
quadro de profunda crise política e social” (HALE, 1963). Neste mesmo momento a França e
a Espanha passaram a ser vistas como inimigas impiedosas, com recursos humanos e
financeiros significativos, em constantes guerras para dominar as cidades italianas. Havia
ainda um jogo de poder entre as Dinastias Valois e Habsburgo pelo domínio da Europa e da
Itália. Tempos difíceis e perigosos este em que o jovem Maquiavel iniciou sua carreira
diplomática. Como se saiu? Vejamos no próximo capítulo.

2. A Prática Diplomática Renascentista e a Chancelaria Florentina nos anos de


Maquiavel

Como vimos no capítulo anterior, no complexo jogo de poder travado na Europa do


Renascimento a prática diplomática tornou-se ferramenta política imprescindível no
relacionamento entre instituições estatais. Conhecer as relações sociais estabelecidas em cada
sociedade, bem como os atores que nela estavam presentes, é de grande relevância para
analisar como se dava o convívio entre os corpos políticos existentes. Para melhor
compreensão de como se realizavam as relações diplomáticas nos anos em que Maquiavel
ocupou o cargo na chancelaria é preciso explicitar que, apesar de já haver experimentado a
necessidade de negociações entre os núcleos de poder e corpos políticos existentes, esta
sociedade ainda necessitava desenvolver melhor seus mecanismos diplomáticos. Por esta
razão, o surgimento de uma forma de diplomacia cada vez mais avançada e dinâmica também
foi parte deste movimento.

12
Com vista a atender às demandas da Renascença, as instituições diplomáticas se
moldaram conforme suas possibilidades e necessidades, tornando-se uma base para aquilo que
viria a tomar forma na modernidade. Segundo Mattingly,
No primeiro quartel do século XV as instituições diplomáticas do Ocidente Latino
estavam altamente desenvolvidas. Assim como a sociedade à qual elas serviam, elas
eram dinâmicas, não estáticas. Elas foram mudando junto com a sociedade ao longo
dos séculos desde a ascensão da civilização ocidental dos destroços causados pelas
invasões bárbaras (1955, p.17)5.

A fragmentação e dissensão entre aqueles que detinham o poder na península foi causa
de inúmeros conflitos que ou poderiam se resolver por via de guerra, ou então de acordos
realizados por meio das representações diplomáticas, visto que os governantes envolvidos
enviavam encarregados para negociações a tratar dos interesses em questão. Neste sentido,
intensificou-se na Renascença um movimento de profissionalização da atividade diplomática
que visava aumentar os ganhos por meio da negociação e evitar, desta forma, conflitos
militares que deveriam ser fatais àquelas unidades políticas que se serviam de exércitos
mercenários para o combate6. Como nos aponta Isabella Lazzarini,
Durante o século XV, fontes diplomáticas se multiplicaram a um ritmo sem
precedentes: esta explosão foi o resultado documental de uma mudança crucial na
diplomacia medieval, vinculada a evolução do sistema de poder peninsular e a
complementar mudança na comunicação pública escrita. Este crescimento ocorreu
principalmente devido ao enorme volume de despachos diplomáticos trocados entre
os governos e os encarregados enviados ao exterior para missões cada vez mais
prolongadas (2014, p.426)7.

A profissionalização da diplomacia na Renascença, aos moldes da praticada


posteriormente pelos Estados Modernos, pode ser caracterizada principalmente pela

5
Nas citações traduzidas em que a referência não indica presença de tradutor, a responsabilidade pela tradução é
do autor do artigo. Traduzido do original: “by the first quarter of the fifteenth century the diplomatic institutions
of the Latin West were already highly developed. Like the society they served, they were dynamic, not static.
They had been changing with that society throughout the centuries since Western civilization had risen from the
wreckage of the barbarian invasions”.
6
Os meios para resolução de impasses políticos da época muitas vezes se davam através de guerras, e, portanto,
a necessidade de bons exércitos era de extrema importância. Maquiavel fez em sua obra recorrentes críticas aos
exércitos mercenários utilizados por boa parte das Cidades-estados italianas, pois, como diplomata, o autor de
“O Príncipe” pode verificar na prática a ineficiência das armas emprestadas ou pagas para combater em conflitos
que não eram de interesse desses soldados. Além das responsabilidades diplomáticas que seu cargo na
Chancelaria lhe impunha, Maquiavel, entre os anos de 1505 e 1506, foi incumbido também de coordenar o
alistamento militar de Florença, com o objetivo de criar uma alternativa à contratação de mercenários para a
defesa da cidade (METTENHEIM, 2010, p. 7). Em “A Arte da Guerra”, seu livro destinado exclusivamente aos
assuntos militares, o autor apresenta de forma contundente os infortúnios que um exército mercenário pode
causar a um estado, para ele, “De fato, não há infantaria mais perigosa do que a composta de mercenários — o
príncipe será obrigado a fazer continuamente guerra, mantendo-os a soldo, ou correrá o risco de que o apeiem do
trono” (1994, p. 21).
7
Traduzido do original: “During the fifteenth century, diplomatic sources multiplied at na unprecedented rate:
this explosion was the documentar result of a crucial change in medieval diplomacy, linked to the evolution of
the peninsular system of power and to the complementary change in public written communication. this grow
was mostly due to the massive volume of diplomatic dispatches exchanged between governments and envoys sent
abroad for increasingly prolongeg missions”.
13
efetivação de embaixadores residentes e de missões prolongadas e permanentes em territórios
estrangeiros. Durante a Idade Média, principalmente, as missões diplomáticas tinham por
característica o estabelecimento de prazos e metas para os encarregados cumprirem. Nestes
casos a determinação essencial era a de que, tão logo os assuntos fossem resolvidos entre as
partes envolvidas, os embaixadores retornassem ao seu Estado de origem à espera de uma
nova missão. Na Renascença, entretanto, começa a surgir um novo modelo de administração
das questões diplomáticas que transformaram a diplomacia até então existente em um modelo
permanente, na qual os embaixadores passaram a viver em território estrangeiro como
representantes oficiais de seu Estado originário8.
Para Mattingly, este é um dos aspectos fundamentais da diplomacia moderna, e foi
iniciado no mesmo período que viu a ascensão dos primeiros estudiosos humanistas, que
detinham muita influência nas áreas políticas do Renascimento Italiano (1955, p. 55). Neste
período muitos humanistas foram indicados aos cargos importantes no setor de Chancelaria.
Em Florença, por exemplo,
Independentemente de quem exercia o poder, a cidade [...] possuía um importante
corpo diplomático que já era, havia algum tempo, também uma grande escola de
pensadores políticos. [...] desde meados do século XIV Florença tem nos quadros da
Chancelaria grandes pensadores políticos e humanistas como Coluccio Salutati,
Leonardo Bruni e Francesco Guicciardini, constituindo-se numa verdadeira escola
do pensamento político. O que revela a não pequena importância dos cargos na
Chancelaria, bem como da cidade como grande centro político e cultural da época
(MARTINS in MAQUIAVEL, 2011, p.10).

Durante o Renascimento a importância conferida às atividades de chancelaria na Itália


era tão intensamente sentida que diversas regras e normas quanto ao serviço dos encarregados
nas missões em território estrangeiro já haviam sido estabelecidas, e muitas dessas normas e
tradições diplomáticas realizadas na Renascença continuaram servindo como sustentação para
o modelo de relações entre Estados na Modernidade. A título de exemplo, as regras eram
estabelecidas no que concerne a quem caberia o direito de enviar encarregados de chancelaria,
a obrigatoriedade das credenciais dos enviados nas missões, ao tempo de permanência no
estrangeiro e, ainda, quanto aos privilégios e imunidades garantidos aos embaixadores.
Segundo Mattingly, em meados de 1430, “Foi aceito que apenas as grandes potências
europeias tinham o direito de enviar diplomatas do mais alto nível”9, e, além disso, o uso e
apresentação das credenciais emitidas pelo governo de origem se tornou obrigatório e parte da
rotina dos enviados para negociações (1955, p.29).

8
“[...] the first resident diplomatic activity of whon we have any published mention served Luigi Gonzaga,
‘Captain of the People of Mantua’, at the imperial court of Louis the Bavarian before 1341” (MATTINGLY,
1955, p. 71).
9
Traduzido do original: “It was already accepted that only the greater European powers were entitled to employ
diplomats of the highest rank”.
14
Com o passar dos anos os embaixadores da Renascença prosperaram em sua atividade
e ganharam, com isso, maior autonomia e capacidade para o exercício de suas funções cada
vez mais essenciais para as Comunas italianas. Segundo Lazzarini,
Suas prerrogativas se multiplicaram, sua autonomia aumentou, e eles foram
transformados de um simples instrumento de autoridade de seus superiores [nuntios]
em agentes dotados de autonomia definidas por mandato [procurator], e finalmente
em um oficial com papel público e autonomia completa na tomada de decisão
[orator ou ambassador] e com uma vasta e mutável variedade de competências
[diplomáticas, jurídicas, políticas] de acordo com a situação e o propósito de sua
missão (2014, p.430)10.

Os encarregados diplomáticos no período da Renascença, apesar dos inúmeros riscos e


das grandes responsabilidades que estavam expostos, tinham imunidade e privilégios
garantidos durante o desenvolvimento da missão para a qual eram enviados, e estes
privilégios foram mantidos, e ainda o são, em grande parte, até a atualidade. Entre os
privilégios estabelecidos se incluem a livre circulação, a isenção de taxas, garantias de sua
propriedade privada, e a segurança quanto à preservação de sua vida (MATTINGLY, 1955,
p.39).
Assim que os demais Estados europeus consolidaram seu poder internamente, como
foi o caso da França, Espanha e Inglaterra, [tartarugas], sua influência perante a diplomacia
realizada tornou-se cada vez mais visível e frequente, e isto também impactou as Comunas
italianas [lebres] que tiveram de se adaptar à presença de atores mais fortes no cenário
internacional europeu. Frente a esta complexa conjuntura de poder e soberanias os corpos
políticos existentes na Itália realizavam seu jogo diplomático de acordo com seus interesses e
necessidades, criando alianças e cooperação, de um lado, bem como inimizades e conflitos, de
outro. As ameaças se tornaram cada vez maiores e a diplomacia foi, mais do que nunca,
ferramenta política para a administração das situações externas de vulnerabilidade e força.
Inserido neste tenso cenário onde os jogos de poder ditavam e movimentavam a
política europeia, Nicolau Maquiavel foi — entre os anos de 1498 e 1512 — um dos
responsáveis pelas atividades de chancelaria da República Florentina, que vigorava entre as
mais importantes Comunas da península na época. A formação política de Florença, no
período renascentista, ocorreu, em linhas gerais, de forma turbulenta e instável, com
frequentes mudanças em seu regime político e administrativo que, nem sempre, se
caracterizou de fato como republicano. A partir de 1434,

10
Traduzido do original: “his prerogatives multiplied, his autonomy increased and he was transformed from a
simple instrument of his master's authority [nuntios] first to an agent provided with autonomy defined by
mandate [procurator], and finally to an official with public role and full decision-making autonomy [orator ou
ambassador] and with a wide and changeable variety of competencies [diplomatic, legal, political] according to
the situation and the purpose of his mission”.
15
Embora ainda fosse formalmente uma república, a cidade era de fato administrada
pela família dos Médici, que [...] assumira o controle das principais magistraturas 11 e
conseguira estabelecer com outros membros da aristocracia local um sistema de
rodízio nos cargos, o que acabava por conceder o poder aos que se associavam à
família dominante (BIGNOTTO, 2003, p.7).

O controle do poder florentino pela família Médici foi marcado de início pela
instauração de uma política pacífica entre as potências italianas que partilhavam de um
equilíbrio de poder para impedir o predomínio de uma comuna sobre outra12. Além disso, os
Médicis conseguiram, em grande medida, atrair a população interna e torná-los seus aliados e
defensores, minimizando assim as conspirações contrárias que, por vezes, eram motivadas por
famílias rivais13. Todavia, a estabilidade que detinham os Médicis no poder teve seu prazo de
validade encerrado e, aos poucos, foi se enfraquecendo devido as tensões internas que
tomaram forma contra a corrupção, a ditadura, que, instaurada aos poucos, eliminou a
liberdade republicana de Florença e as ameaças impostas pelas invasões francesas e
espanholas no final do século XV. Segundo Larivaille,
Não é menos verdade que o que resta das instituições que Cosme14 encontrara em
1434 só tem de republicano o nome e que Florença, na época do Magnífico, tornara-
se aos olhos de todos uma espécie de principado de fato, disfarçado sob uma
caricatura de regime republicano: nada mais, portanto, que uma pseudomonarquia
cuja fragilidade vai aflorar claramente após o desaparecimento de Lourenço, em
1492 (1988, p.28).

Em 1494, com o aumento da pressão interna e externa, o poder da Família Médici


sucumbe, quando então assume o governo da cidade o frade e profeta Girolamo Savonarola,
que recebeu, de início, um vasto apoio popular, fato este que, todavia, não lhe oportunizou a
permanência no cargo, pois acabou sendo acusado e morto na fogueira por conta de seus
ataques destinados ao papado e à Igreja. O controle de Florença passa, em 1498, às famílias
marginalizadas pelos governos anteriores quando, então, Piero Soderini é nomeado
Gonfaloniere da República, cargo equivalente ao de chefe de governo, reestabelecendo o
sistema, de fato, republicano na cidade15 (PINZANI, 2004, p.12). Como apresenta Bignotto, a

11
Como apresenta Larivaille, a complexidade da estrutura política-administrativa de Florença permitia a
existência de inúmeras magistraturas, mas no topo da hierarquia haviam três principais organismos, chamados de
i tre maggiori. A Senhoria, constituindo a suprema magistratura, o Colégio dos Dezesseis Gonfaloneiros, e, por
último, os Doze Anciões, composta por sábios de cada divisão da cidade (1988, p.17).
12
Período correspondente aos anos que se seguiram ao já abordado Tratado de Paz de Lodi, de 1454.
13
Uma demonstração das conspirações sofridas ocorreu em 1478 no caso da Família Pazzi, que tramou o
assassinato de Lourenço e Giuliano de Médici. A conspiração não foi bem sucedida e a população tomou o lado
dos Médicis, reforçando ainda mais seu poder (PINZANI, 2004, p.11).
14
Cosme de Médici governou Florença após a morte de seu pai Giovanni. De acordo com Maquiavel, Cosme era
um homem muito prudente, liberal e humano, nunca tentou fazer nada contra o partido ao qual pertencia, nem ao
seu estado; sempre buscava beneficiar a todos, e com isso conquistou muitos adeptos (MAQUIAVEL, 1998, p.
214).
15
“A partir deste momento, a vida pública se estabiliza por uns dez anos. Republicano convicto, Soderini se
empenhou em governar no estrito respeito às instituições, tomando o cuidado de não se deixar dominar pelos
interesses da oligarquia” (LARIVAILLE, 1988, p. 32).
16
queda de Savonarola seguida de sua trágica morte após um longo período de disputas entre a
aristocracia florentina e o papado pelo poder da Comuna pode ser considerado um marco na
história de Florença, que indica, também, o ingresso de Nicolau Maquiavel na vida pública da
cidade.
No mesmo ano em que Pierro Soderini assumiu o cargo para o qual foi eleito,
Maquiavel foi nomeado segundo secretário de chancelaria, incumbido de trabalhos
diplomáticos e negociações com os governos vizinhos, cargo e função estes que atualmente
poderiam ser comparados ao de Chefe de Gabinete do Ministério das Relações Exteriores
(PINZANI, 2004, p.12-13). Segundo Gennaro Sasso, um dos mais renomados especialistas
em estudos sobre Maquiavel, a chancelaria não representava apenas o centro do governo
florentino enquanto sua estrutura burocrática e administrativa, mas, era também, um espaço
repleto de cultura política, jurídica e literária, um centro vivo de saber, uma escola de
iniciação e um lugar de discussões, onde o diplomata florentino “sentiu o pulsar da grande
política; da interna, primeiramente, que já nos anos precedentes havia observado e estudado
com precisão [...] mas também aquela internacional, tornada, após 1494, tão tragicamente
viva e urgente nas proximidades” (SASSO, 1980, p. 40-41)16.
Apesar de não fazer parte da aristocracia florentina, Maquiavel se destacava na cidade
de Florença por já ter sido, desde muito cedo, um estudioso humanista, e sua formação
voltada a temas como latim, direito, retórica, história e, ainda, vasto conhecimento sobre a
antiguidade, o ajudaram a ser escolhido para ocupar o cargo para o qual fora nomeado aos 29
anos de idade, pois as qualidades intelectuais que detinha eram muito apreciadas pelos
florentinos da época. Conforme Skinner, “À medida que os florentinos se imbuíram de tais
convicções, passaram a chamar seus principais humanistas para ocupar as posições de maior
prestígio no governo da cidade” (2012, p.13).
O cargo ocupado por Maquiavel como secretário na chancelaria florentina lhe trazia
duas responsabilidades distintas. A primeira era relacionada à administração e controle dos
territórios ocupados e conquistados por Florença, como Pisa, Lucca e Arezzo. Este serviço se
concentrava, em grande medida, dentro de seu gabinete e ocorria, principalmente, por meio de
correspondências enviadas entre os governantes. A segunda responsabilidade para qual fora
incumbido foi a de “atender o Conselho dos Dez, a comissão responsável pelas relações
externas, diplomáticas e de defesa da república” (SKINNER, 2012, p.16). Neste caso, os
serviços de Maquiavel envolviam viagens ao exterior para negociações diplomáticas e

16
Traduzido do original: “[...] subito egli avrá avvertito il battito della grande politica; di quella interna,
innanzi tutto, che giá aveva osservata e studiata con la precisione [...] ma altresì di quella Internazionale,
divenuta, dopo il 1494, così tragicamente viva e urgente e vicina”.
17
elaboração de relatórios sobre assuntos estrangeiros que eram do interesse de Florença.
Segundo Bignotto,
Na condição de segundo secretário, ele era obrigado a viajar bastante e a visitar
personagens importantes. Suas cartas e relatos eram muito apreciados em Florença e
já relatavam as marcas do grande escritor no qual se transformaria depois de se ver
forçado a abandonar seu emprego na chancelaria (2003, p. 12).

Muitos dos relatos de Maquiavel nos revelam o cotidiano de sua vida, outros foram
escritos e enviados com o objetivo de tratar das representações diplomáticas e de suas missões
no exterior, o que muito nos ajuda a compreender em que consistiam e como eram realizadas
as missões diplomáticas na época. Segundo Guerini e Souza, “Nas cartas, além de detalhes da
vida pessoal, a rotina, é possível entrever muitos elementos de caráter político, mas também
literários do pensamento Maquiaveliano que se somam aos assuntos filosóficos, históricos,
sociológicos” (2011, p.324-325).
Enquanto secretário de chancelaria, Maquiavel teve de enfrentar grandes desafios,
visto que, neste período, não apenas Florença estava passando por dificuldades como também
todo o restante da Itália, pois as intervenções estrangeiras ocorridas no período,
principalmente francesas e espanholas, tornaram a península um campo de batalhas com um
cenário intenso de lutas, violência e devastação. A República florentina sofreu com muitas
ameaças e, por conta disso, Maquiavel foi por vezes enviado para tratar de alianças com os
soberanos e representantes estrangeiros. O autor florentino, inserido neste conturbado
momento, reconhecia a grandeza da posição que ocupava, bem como de suas
responsabilidades enquanto diplomata. Para ele,
A parte mais importante do trabalho de um embaixador que esteja no exterior ao
serviço de um príncipe ou república é conjecturar bem sobre o futuro, tanto das
tratativas como dos fatos. Porque quem sabe bem prever e bem explicar suas
previsões ao seu superior, permite que este possa sempre antecipar nas suas ações e
prevenir-se no devido tempo. Esta parte [do trabalho], quando é bem feita, honra
quem está fora e beneficia quem está em casa, e se dá o contrário quando é mal feita
(MAQUIAVEL, 2010, p.95).

Logo que as invasões francesas na península ganharam força e passaram a ameaçar os


interesses florentinos nas regiões dominadas pela Comuna, como Pisa, Pistóia e Arezzo,
Maquiavel foi incumbido diversas vezes de, pessoalmente, participar das missões e reportar
suas impressões e conselhos ao governo de Florença. Em Pisa, após a rebelião que a libertou
do controle de Florença e que gerou uma guerra de 14 anos entre as duas cidades, o autor de
“O Príncipe” esteve encarregado de averiguar o ambiente político e coordenar a reconquista
do território à força. Desta missão, realizada no ano de 1500, resulta o relatório “Providências
para a Reconquista de Pisa”, de 1509, complementar ao “Discurso Proferido ao Magistrado
dos Dez Sobre a Situação de Pisa”, escrito ainda um ano antes de sua missão in loco, e que,
segundo Sasso, além de já demonstrar no jovem secretário “[...] essa tendência para esgotar a

18
análise das possibilidades políticas inerentes a uma situação, que é um dos traços
característicos de seu estilo conceitual de sempre”, também “pode se afirmar que no
‘Discurso’ já é possível vislumbrar ‘O Príncipe’ e as outras obras maiores de sua maturidade”
(1980, p. 42-43)17.
Com relação a Pistóia cabe destacar a participação de Maquiavel como Comissário
oficial de Florença dotado de ampla autoridade para analisar e tentar resolver as rebeliões
instauradas pelos pistoianos, e os conflitos entre as facções da cidade, no ano de 1501. Com
objetivo definido, o pensador florentino foi enviado no mesmo ano a esta região em três
oportunidades: fevereiro, julho e agosto, quando, enfim, deu-se por finalizado um acordo
entre as facções em conflito. Desta missão despontam dois relatos de Chancelaria:
inicialmente o “Notícias das Medidas Adotadas pela República Florentina para Pacificar as
Facções de Pistóia”, e, posteriormente, de caráter complementar, “Sobre a Situação de
Pistóia”, ambos já contêm, de maneira incipiente, algumas análises que Maquiavel
posteriormente incorporou em “O Príncipe”.
Em Arezzo, região a qual Maquiavel também visitou enquanto diplomata por três
oportunidades, os motivos da missão muito se assemelhavam aos casos de Pisa e Pistóia.
Inclusive, como nos aponta Mettenheim, “Para Maquiavel, o avanço de César Bórgia sobre as
cidades da Toscana incentivou revoltas em Pistóia [1501] e rebelião em Arezzo [1502] que
ameaçavam espalhar-se por outras cidades”. Além disso, “Apesar da retomada de Arezzo e
Valdichiana18 pelo rei Luís XII, durante estas duas missões diplomáticas Maquiavel percebeu
a audácia militar de César Bórgia como também a astúcia das suas ordens para organizar
politicamente cidades tomadas por Veneza e seus aliados”, fato este que elucida a admiração
do autor florentino pelo virtuoso Duque de Valentois19, como Bórgia também era conhecido, e
que será evidenciado posteriormente (2010, p.10).
Para além da península, Nicolau Maquiavel também participou de quatro missões em
território francês, onde “[...] o jovem secretário teve contato com os problemas, as
dificuldades, a complexa vida interna, do mais moderno entre os Estados europeus” (SASSO,
1980, p. 45), e “onde se encontrava assim no centro da grande política europeia” (SASSO,

17
Traduzido do original: “[...] quella tendenza ad esaurire nell'analisi le possibilità politiche intrinseche ad una
situazione, che costituisce uno dei tratti caracteristici del sul stile concettuale di sempre”, e “potrebbe
affermarsi che nel Discorso già si intravvedano il Principe e le altre maggiori opere della maturità”.
18
Sobre a rebelião do Valdichiana, Maquiavel escreve, em 1503, o relato “Do Modo de Tratar os Povos
Rebelados do Valdichiana”, que também contém, como será posteriormente evidenciado, elementos presentes
em “O Príncipe”.
19
O cargo de Duque Valentino foi conferido à César Bórgia após este ter servido ao rei francês Luís XII em sua
empresa para reconquista do Reino de Nápoles ao final do século XV. Como forma de agradecimento, no
“mismo día en que César solicitara al Sacro Colegio la dispensa para dejar o cargo de cardenal de Valencia,
llegó a Roma el nombramiento del rey francês confiriéndole el Ducado de Valentinois, en la Valencia francesa”
(GARCIA JURADO, 2013, p. 260).
19
1980, p.50)20. De suas missões na França resultaram os escritos políticos: “Da Natureza dos
Gauleses”, de 1500, que revela o comportamento, a personalidade e o cotidiano dos franceses;
a “Nótula para alguém que será embaixador em França”, de 1504, que descreve como deve
agir e se comportar um diplomata na corte francesa; e, por fim, o “Retrato das Coisas de
França”, onde o autor explicita o funcionamento e a organização do emergente Estado
Moderno (METTENHEIM, 2010, p. 13).
Outros relatos de Maquiavel também são importantes para revelar a importância da
atividade diplomática nos anos em que ocupou o cargo na Chancelaria. Como exemplo, vale
destacar o aprofundado conhecimento adquirido pelo autor de “O Príncipe” sobre a situação
política vivenciada no fragmentado Sacro Império Romano Germânico após ter sido enviado
aos territórios alemães com o intuito de verificar a ameaça do Imperador Maximiliano em
uma possível invasão da Itália. Sobre esta temática, em seu “Relatório sobre as coisas da
Alemanha feito a 17 de junho de 1508”, Maquiavel transmite à Florença que em 1507 “o
imperador reuniu, em Constança, a Dieta, constituída por todos os príncipes da Alemanha, a
fim de que lhe fossem assegurados meios de invadir a Itália e coroar-se imperador” (1999,
p.193). E, ainda, que em sua empresa esperava obter auxilio dos venezianos e outros povos
italianos. Os florentinos, como exemplo, representados na figura de Nicolau Maquiavel,
haviam “concordado em dar a Maximiliano uma certa soma em dinheiro, pela sua proteção.
Seria paga, entretanto, em três parcelas: a primeira quando ele chegasse a uma cidade
totalmente italiana, a segunda ao penetrar em território toscano e a terceira [...] quando
realmente chegasse a Roma” (HALE, 1963, p. 95). Apesar do receio e da precaução florentina
quanto à possível invasão, a empresa acabou por não ser realizada e foi visto que “o perigo
alemão era menos grave do que se temia” (HALLE, 1963, p. 97).
Existem, ainda, diversos outros relatórios e cartas escritos por Maquiavel referentes a
inúmeras e variadas temáticas da política e da sociedade italiana e europeia no Renascimento.
Alguns deles tem sua autoria contestada, o que não diminui, entretanto, a importância do
conteúdo posto para a análise dos meandros vivenciados por Maquiavel na Chancelaria
Florentina. Por sorte, vários escritos políticos do autor de “O Príncipe” já apresentam
traduções para o português, o que facilita a pesquisa e a análise aqui proposta, pois estes
relatos já são, em grande medida, suficientes para demonstrar o acurado senso político de
Maquiavel, que a grande maioria dos textos, ainda disponíveis apenas no italiano do século
XV e XVI, confirmam.

20
Traduzido do original: “[...] il Giovane segretario a contato com i problemi, le difficoltà, la complessa vita
interna, del più moderno fra gli stati europei”, e “si trovava per ciò stesso al centro dela grande politica
europea”.
20
Apesar da grande capacidade demonstrada por Maquiavel nas missões enquanto
secretário da chancelaria florentina, a fragilidade militar das comunas italianas não resistiu à
força dos governos e exércitos estrangeiros. A cobiça dos Estados monárquicos vizinhos
impulsionaram cada vez mais as invasões ao território italiano, devastando diversas comunas
e depondo governos (LARIVAILLE, 1988, p.70). No caso de Florença, em 1512, Pierro
Soderini foi expulso do cargo após não suportar as pressões externas e internas da comuna e,
então, a Família Médici reassume o poder da cidade. Como consequência, Maquiavel foi
retirado da chancelaria florentina e detido sob a acusação de formar um complô contra o
governo restaurado (LARIVAILLE, 1988, p.144-145).
Após a sua demissão e detenção, Maquiavel foi liberado e se retirou para a
propriedade de sua família, ocupando-se da escrita de seu pensamento político. Foi neste
período que as obras do autor — como “Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio”,
“Mandrágora”, “História de Florença” — foram produzidas. “O Príncipe” é escrito logo no
ano seguinte ao seu afastamento, obra que trata dos grandes temas, problemas, desafios e
feitos que envolvem os estados italianos e o mundo político da Europa do século XVI e que
contém, como já apresentado, em sua dedicatória ao herdeiro dos Médicis, a alusão da relação
entre o conteúdo daquela obra e a atividade diplomática que Maquiavel anteriormente exercia.
Aquilo que ainda precisa ser elucidado em relação às obras de Maquiavel e sua atividade de
chancelaria se refere ao elo existente entre seu pensamento político, expresso em obras como
“O Príncipe”, e sua prática diplomática. O tópico seguinte apresenta, de forma mais explícita
e com contornos mais nítidos, esta relação entre sua prática diplomática e sua extremamente
original teoria política.

3. Práxis e Teoria: Os relatos de chancelaria confrontados com “O Príncipe”


Com o intuito de elucidar a relação apresentada entre a atividade de diplomata
realizada por Maquiavel enquanto secretário de chancelaria na República de Florença e sua
obra “O Príncipe”, é de caráter primordial confrontar documentos e relatos referentes à função
pública do autor com seu mais conhecido livro. Por se tratar de uma obra de cunho político
sobre os assuntos que assolavam o território italiano do Renascimento, em “O Príncipe” é
possível encontrar várias passagens observadas e relatadas anteriormente por Maquiavel em
seus escritos de chancelaria. O polêmico livro, escrito em 1513, na forma de um manual
prático da política italiana da Renascença — ou também conhecido como espelho para
príncipes21, formato muito comum na época — foi, como nos indica o próprio Maquiavel, um

21
Para Skinner, a maneira como os primeiros livros de conselhos surgidos “contribuíram a fixar um padrão para
a literatura posterior dos 'espelhos dos príncipes' esteve na ênfase que colocaram na questão de quais virtudes
deveria possuir um bom governante” (1996, p.55). E apesar de conter aspectos e elementos que se assemelham a
21
resumo, em forma de conselhos, daquilo que ele próprio pode conhecer e presenciar na
realidade em que estava inserido (MAQUIAVEL, 1999, p.35).
Durante a vida pública de Maquiavel nenhuma família ou facção política causou uma
influência tão intensa no pensamento do autor quanto o fizeram os Bórgias. Esta família
representou um papel de extrema relevância nos meandros da vida renascentista ao ocupar
importantes cargos e manipular a política a seu favor por toda a Europa, principalmente na
Itália, França e Espanha. Dentre os mais ilustres personagens desta família destacam-se os
Papas Calixto III e Alexandre VI, bem como seu filho César Bórgia que, apesar de ter
iniciado sua vida pública como Bispo e Cardeal da Igreja, foi, posteriormente, nomeado
Duque da Romanha e de Valentois. Todos os três causaram no pensador florentino uma forte
influência sobre sua perspectiva da política peninsular no Renascimento, mais detidamente
entre os anos de 1455, quando Calixto III assume o comando papal, até 1507, com a morte de
César Bórgia. Além disso, como nos apresenta Garcia Jurado, “os Bórgias e Maquiavel tem
um notável denominador comum, pois tanto em sua época como na posteridade, ambos foram
irremissivelmente condenados; os primeiros por condutas políticas e morais escandalizantes, e
o último por elevar ao nível da teoria política muitas destas condutas e atitudes” (2013, p.
242)22.
Calixto III, apesar de não ser contemporâneo da atividade de chancelaria de
Maquiavel, foi de grande importância para a compreensão do autor de “O Príncipe” com
relação ao papel desempenhado pela Igreja Católica e pelos Estados Papais na política
europeia. Antes de assumir o papado, Afonso de Bórgia, como era seu nome, foi um dos
principais responsáveis pela articulação da renúncia do Antipapa Clemente VIII, fato que
determinou o fim do Cativeiro de Avignon, em 1417. Ao assumir o cargo máximo da Igreja,
em 1455, Calixto III guiou esta instituição observando estreitamente seus interesses
particulares ao nomear para importantes cargos diversos membros de sua família, dentre eles
seu sobrinho Rodrigo Bórgia, que, posteriormente, assumiu o nome de Alexandre VI ao se
tornar Papa no ano de 1492. Durante o papado de Calixto III já era notável em suas atitudes e
alianças a forte pretensão dos Bórgias na tomada de Nápoles, que apenas se materializou com
Alexandre VI no final do século XV, o que incitou, como anteriormente observado, as
primeiras invasões francesas na península.

categoria dos convencionais espelhos dedicados a príncipes, a maneira em que Maquiavel trabalha o conteúdo
dos conselhos nos apresenta uma ruptura do autor com o próprio estilo, “não há sombra de dúvida - e dispomos a
esse respeito da palavra do próprio Maquiavel - de que ele tinha consciência de estar criticando vários
elementos-chave do gênero dos espelhos dedicados aos príncipes” (SKINNER, 1996, p.149-150).
22
Traduzido do original “los Borgia y Maquiavelo tienen un denominador común muy notable, pues tanto em su
época como em la posteridade, los han condenado irremisiblemente; a ellos por conductas políticas y morales
escandalizantes, a él por elevar al nível de la teoria política muchas de essas conductas y actitudes”.
22
Ao assumir o papado — nos anos precedentes a indicação de Maquiavel para a
chancelaria florentina —, em uma eleição marcada pela compra de votos e troca de favores,
Rodrigo Bórgia já se mostrou um grande estrategista com o intuito de, assim como seu tio,
assegurar para sua família os interesses políticos vinculados a ela. Conforme Garcia Jurado,
“desde o início de seu pontificado Alexandre VI deu mostras de seu apetite político, pois
somente em seu primeiro ano casou três de seus filhos com integrantes de importantes
famílias italianas e espanholas, duas delas governantes” (2013, p. 255)23. Foi durante seu
mandato, entre 1492 e 1503, que a Igreja Católica fortaleceu intensamente sua organização e
passou por um processo de empoderamento, tanto em Roma quanto fora da Itália. Por esta
razão, principalmente, o pensador florentino se refere a Rodrigo Bórgia com muita frequência
em “O Príncipe”, pois, como nos aponta Garcia Jurado,
[...] em grande medida, graças a ele Maquiavel prestou atenção a um tipo de
principados sui generis, quer dizer, os eclesiásticos, de cuja espécie somente existia
um no mundo ocidental, e que seguramente se fez mais visível para Maquiavel e os
homens de sua época devido ao protagonismo de Alexandre VI (2013, p. 254)24.

Entretanto, dentre os ilustres membros da família Bórgia aquele que mais


profundamente impactou e influenciou o pensamento político de Maquiavel foi, sem dúvidas,
César Bórgia. Sua presença em “O Príncipe” é constante e está materializada em uma das
temáticas mais caras na obra do florentino, que diz respeito às características que compõem o
conceito de “Virtú” e ao papel exercido pela “Fortuna” na vida dos homens. Quanto ao
primeiro, remete-nos a algumas características essenciais que, segundo o autor, os
governantes devem possuir para obter êxito em suas ações, manter ou conquistar o poder de
um estado. Para isso, é preciso agir de acordo com cada situação, e, a partir da adaptação,
tomar as atitudes corretas para garantir objetivos finais. Além disso, compondo seu conceito
de “Virtú”, está também a virilidade necessária para a arte de governar, ou seja, a convicção
das ações tomadas e a imposição da vontade do governante para atingir seus objetivos
(BIGNOTTO, 2003, p.24-25). Ainda que seja possível agir conforme a “Virtú” em
determinadas situações, Maquiavel nos aponta que não se pode ter garantias sobre as ações da
“Fortuna”, ou seja, a boa sorte e azar dos homens, o autor julga “ser verdadeiro que a fortuna
seja árbitra de metade das nossas ações, mas que ela nos deixa governar a outra metade, ou
quase” (2011, p.237).

23
Traduzido do original: “Desde el principio de su pontificado Alejandro VI dio muestras de su apetito político,
pues tan sólo em el primer año casó a tres de sus hijos com integrantes de importantes familias italianas y
españolas, dos de ellas governantes”.
24
Traduzido do original: “[...] en buena medida gracias a él Maquiavelo presto atencion a um tipo de
principados sui generis, es decir, los eclesiásticos, de cuya especie solo existía uno em el mundo occidental, y
que seguramente se hizo más visible para Maquiavelo y los hombres de su época debido al protagonismo de
Alejandro VI”.
23
Ambos os conceitos expostos foram cunhados por Maquiavel a partir da observação
do meio político em que vivia durante sua função pública, principalmente referente às atitudes
de César Bórgia na missão em que foi enviado para negociações diretas com o governante25.
O pensador florentino apreciava com intensidade as qualidades do duque e via nele o exemplo
de homem com “Virtú” (PINZANNI, 2004, p. 35). Apesar disso, a queda de Bórgia26 do
poder foi ainda, para Maquiavel, um exemplo de como a “Fortuna” age imprevisivelmente até
com o mais virtuoso dos homens e, no caso do Duque, “se seus modos de proceder não lhe
aproveitam, não foi por culpa sua, porque foi fruto de uma extraordinária e extrema
malignidade da fortuna” (MAQUIAVEL, 2011, p. 77).
Ainda com relação ao Duque Valentino vale ressaltar que dentre as principais
preocupações de Maquiavel em “O Príncipe” está em indicar e oferecer informações a
respeito de como deve agir um governante para que não fracasse em suas ações. Quanto a
isso, podemos observar, no capítulo XVII de sua obra, um conselho do autor a respeito de
como um governante não deve dar importância à fama de cruel se isso resultar na união e na
segurança dos súditos, “porque com pouquíssimas punições exemplares [o governante] será
mais piedoso do que aqueles que, por excessiva piedade, deixam que avancem as desordens,
das quais nascem os assassínios ou os roubos” (2011, p. 161). E, ainda, que a clemência, ou
piedade, podem ser características prejudiciais a um príncipe quando utilizadas erroneamente.
O fato de que a clemência pode ser prejudicial a um príncipe, o pensador florentino pôde
observar durante sua missão com César Bórgia na França. É possível verificar em seu relato
“Da legação ao Duque Valentino”, escrito em 07 de outubro de 1502, na resposta do duque à
indagação feita por Maquiavel acerca da situação do ducado de Urbino, o quanto agir de
forma piedosa e clemente foi danoso na ocasião:
A minha clemência e a pouca estima dos fatos me prejudicaram. Como sabes,
conquistei aquele ducado em três dias e não arranquei um fio de cabelo a ninguém,
exceto a messer Dolce e outros dois, que ofenderam a santidade de nosso senhor;
antes, o que é melhor, combinara algumas coisas com diversos funcionários daquele
Estado, com um encarregado de edificar um muro que mandei erguer na Fortaleza

25
A missão diplomática na qual Maquiavel foi enviado para tratar de uma aliança requisitada por Bórgia ocorreu
em 1502, quando o duque, que detinha grande poderio militar nos arredores de Florença, ameaçava
constantemente a segurança das Cidades-estado da região. Esta missão representou para o secretário florentino
uma observação e formação únicas sobre as questões políticas da época e sobre a maneira de agir dos
governantes. Para Skinner, “Essa missão marca o início do período de formação mais intensa na carreira
diplomática de Maquiavel, quando pode desempenhar o papel que mais lhe agradava: o de observador direto e
assessor do governo da época. Foi também nesse período que ele chegou a seus juízos definitivos sobre a maioria
das lideranças cujas políticas teve oportunidade de observar em fase de elaboração” (2012, p.19).
26
Segundo Pinzani, a enfermidade que assolou Bórgia e levou a óbito seu pai, o Papa Alexandre VI, deu início à
ruína do Duque. Após a morte de seu pai, “César Bórgia não conseguiu influenciar a eleição de um novo papa
favorável a ele, e pouco depois seu reino se desfez, e ele precisou fugir para a Espanha, onde morreu
combatendo como mercenário” (2004, p.36-37). Maquiavel ainda nos apresenta que “havia no Duque tanta
intrepidez e tanta virtú, tão bem conhecia como se podem conquistar e perder os homens, e tanto foram válidos
os fundamentos que tinha lançado em pouco tempo, que, se não tivesse tido aqueles exércitos contra si, ou
estivesse são [com boa saúde], teria resistido a todas as dificuldades” (2011, p.87).
24
de São Leão, e dois dias atrás este conspirou com alguns camponeses locais, sob o
pretexto de levantar uma trave, certa maquinação, de sorte que, forçada a cidadela,
rendeu-se (MAQUIAVEL, 1999, p.175).

Maquiavel nos apresenta ainda, em “Descrição do meio de que se valeu Duque


Valentino para matar Vitellozzo Vitelli, Oliverotto da Fermo e o Duque de Gravina Orsini”27,
mais uma nuance que posteriormente seria trabalhada em “O Príncipe”. Segundo o autor, após
frequentes guerras de conquista de território entre o Duque Valentino com Vitteli, Orsini e
seus aliados, o Duque — com sua grande habilidade de persuasão — convenceu seus rivais,
por meio de um acordo, a acabar com a guerra que vinha sendo feita, dando a eles, sem
objeções, os territórios já conquistados pela força das armas. Todavia, apesar do acordo
realizado, o Duque Valentino continuou aumentando seu poderio militar com cada vez mais
soldados e cavalos, e os mandando-os para diversos pontos da Romanha, onde se juntaram a
estes a ajuda militar francesa que recebera (MAQUIAVEL, 1999, p.181). O Duque, com a
grande força militar que mobilizara, “considerou mais seguro e mais proveitoso enganá-los e
não firmar, desse modo, as cláusulas do acordo. E tanto se empenhou que assinou com eles
um tratado de paz, no qual se confirmavam as normas citadas” (MAQUIAVEL, 1999, p. 181).
Até que, “Por fim, chegados os três [Orsini, Vitelli e Oliveroto] diante do duque e saudando-
o, foram recebidos de boa vontade; e logo em seguida, por aqueles aos quais fora cometida a
tarefa de observá-los, viram-se cercados” (MAQUIAVEL, 1999, p. 185). Foram tornados
prisioneiros e tiveram suas tropas saqueadas, sendo posteriormente estrangulados.
De forma melhor elaborada em “O Príncipe”, Capítulo XVIII, “De que modo os
príncipes devem conservar a palavra dada”, Maquiavel se utiliza de outros exemplos para
retratar que um governante não deve conservar a palavra dada caso isso não seja favorável e
possa lhe causar danos, tendo, desta forma, legitimado as ações do Duque expressas no relato
de chancelaria. Para o autor,
Não pode, e nem deve, portanto, um senhor prudente observar a palavra dada
quando tal observância se lhe volta contra e quando desapareceram os motivos que o
fizeram prometer [...]. Mas é necessário saber mascarar essa natureza e ser grande
simulador e dissimulador: e são tão ingênuos os homens, e tanto se sujeitam às
necessidades presentes, que aquele que engana encontrará sempre quem se deixará
enganar (2011, p.169-171).

Outra relação evidente entre a prática diplomática de Maquiavel e sua obra política
pode ser observada por meio do relato de chancelaria “Do Modo de Tratar os Povos do Vale
do Chiana Rebelados [1502]”, no qual Maquiavel discorre sobre a questão de que medidas se
devem tomar com os povos de territórios conquistados para que estes não se rebelem contra o

27
“Maquiavel fez esta descrição para dar destaque ao feito do duque Valentino, sob cuja influência começou a
pensar seriamente numa ciência do Estado, ´separada, independentemente de todo conceito moral’ (P. Villari, op.
cit., p. 388). “Deste modo, Valentino, nesta Descrição, é o praecursore de ‘O Príncipe’ (VILLARI in
MAQUIAVEL, 1999, p.177).
25
novo poder governante e lhe sejam submissos. Neste caso, respaldado pelo exemplo da
história romana, Maquiavel aponta duas linhas de ação para Florença: ou ganhar a confiança
do povo em questão por meio de benefícios concedidos, caso se mostrem passíveis de
conciliação, ou devastá-los e subjugá-los para que não voltem a se rebelar, caso sua índole
tenda a levá-los novamente a se revoltarem (MAQUIAVEL, 1999, p. 163-166). Segundo o
autor, em seu relato à República Florentina, “Resta-nos agora consultar [porque, rebelando-se,
eles constantemente nos põem em perigo] como nos assegurar para o futuro: ou nos tornamos
cruéis para com eles, ou os perdoamos livremente” (MAQUIAVEL, 1999, p.166). Em “O
Príncipe”, Maquiavel fará deste tema o núcleo de seu Capítulo V, cujo título expressa muito
bem o processo de transformação de um problema específico, localizado e datado, em
temática de natureza universal e capaz de aconselhar em geral: “Da maneira de conservar
cidades e principados que, antes da ocupação, se regiam por leis próprias”. Apesar de mais
elaborado e com caráter genérico de conselho, como era de se esperar de uma obra de caráter
teórico [se comparada com um relato de chancelaria], o capítulo do livro preserva o núcleo
daquilo que o diplomata redigira mais de dez anos antes: “Três maneiras há de preservar a
posse de Estados acostumados a governar por leis próprias: Primeiro, devastá-los; segundo,
morar neles; terceiro, permitir que vivam com suas leis arrecadando tributo e formando um
governo de poucas pessoas, que permaneçam amigas” (MAQUAVEL, 1999, p.53).
Outro ponto formulado em “O Príncipe”, capítulo XII, diz respeito à questão que
envolve o uso da força e das armas no Renascimento, pois os meios para resolução de
impasses diplomáticos da época muitas vezes se davam através de guerras e, portanto, a
necessidade de bons exércitos era de extrema importância. A crítica de Maquiavel aos
exércitos mercenários utilizados por boa parte das Cidades-estado italianas foi baseada em sua
experiência como diplomata, em que pode verificar a ineficiência das armas emprestadas ou
pagas para combater em conflitos que não eram de interesse desses soldados. Ao tratar do
assunto em “Relatos Sobre as Coisas da Alemanha Feito a 17 de Junho de 1508”, Maquiavel
apresenta as razões do fracasso de Maximiliano, imperador alemão, em invadir a Itália, e entre
as causas estaria o fato de que os povos da Alemanha “não desejam ir à guerra caso não sejam
bem remunerados [...] e assim ao imperador seria preciso muito mais dinheiro do que ao rei de
Espanha ou a outros que tenham ordenado o seu povo de maneira diferente” (1999, p.199-
200), o que encareceria qualquer tentativa de reunir um grande exército e, mesmo assim, tal
exército movido apenas por lucro não seria confiável. Em “O Príncipe” o autor expressa sua
opinião com uma severa crítica à maneira como as comunas Italianas se utilizaram de armas
mercenárias em suas batalhas e a forma como a Itália foi, por essa razão, assolada por estes
exércitos estrangeiros. Para Maquiavel, estas armas que não tinham amor à causa e apenas
lutavam para garantir seu salário, não se empenhavam em brigar pelos interesses dos estados
26
pelos quais foram contratados. O autor florentino ainda destaca que é essencial para um
governo que deseja ser forte militarmente ter seu próprio exército, constituído por seus
cidadãos, e saber comandar suas tropas, pois apenas elas serão capazes de realmente enfrentar
inimigos estrangeiros, uma vez que lutam não pelo lucro, mas pela necessidade de prover a
sua própria segurança e a de seus familiares e amigos (MAQUIAVEL, 2011, p. 249 - 251).
Todavia, é no capítulo XII de “O Príncipe” que Maquiavel nos apresenta de forma mais clara
como os exércitos mercenários podem levar um estado à ruína:
Digo, portanto, que as armas com as quais um príncipe defende o seu Estado ou são
próprias ou são mercenárias, ou auxiliares ou mistas. As mercenárias e auxiliares são
inúteis e perigosas; e se alguém tem o seu Estado fundado sobre armas mercenárias,
nunca estará nem firme nem seguro, porque elas são desunidas, ambiciosas, sem
disciplina, pouco confiáveis, valorosas entre os amigos, vis entre os inimigos: não
temerosas a Deus, não confiáveis para com os homens; e com elas se adia a ruína
enquanto se adia o ataque; na paz se é espoliado por elas, na guerra pelos inimigos.
A razão disso é que elas não têm outro amor nem outra razão que as conserve em
campo, senão um pouco de soldo, o qual não é suficiente para fazer com que
queiram morrer por ti (2011, p.125).

Ainda no mesmo Relato, feito a 17 de junho de 1508, sobre as coisas da Alemanha,


Maquiavel aborda algumas características presentes na personalidade do governante alemão.
Segundo o autor, “o imperador não solicita conselho a ninguém e é aconselhado por todos;
quer realizar tudo por si e nada faz à sua maneira” (1999, p.198). Em conjunto, a natureza
liberal e boa do imperador faz com que todos o enganem, sendo “estas as duas coisas, a
liberalidade e a facilidade, que o fazem louvado de muitos, que o destroem” (1999, p. 198).
Para Maquiavel, o Imperador
[...] é o homem mais dissipador de seu patrimônio do que qualquer um do nosso
tempo ou que existiu no passado. [...] é volúvel, porque hoje quer uma coisa e
amanhã não a quer, não se aconselha com ninguém e acredita em todos, [deseja] as
coisas que não pode ter e daquelas que pode ter se afasta, e por isso toma sempre a
decisão contrária àquela que deveria (MAQUIAVEL, 2010, p.95).

Do exposto, ao tratar da natureza dos governantes e a respeito de como devem agir para
aproveitar os bons conselhos e se esquivar dos ruins, em “O Príncipe”, capítulo XXIII,
Maquiavel nos apresenta que um príncipe deve escolher
[...] no seu Estado homens sábios e apenas a estes deve dar liberdade para dizer-lhe a
verdade, e apenas sobre aquelas coisas que lhes perguntar e não de outras — mas
deve perguntar-lhes sobre todas as coisas —, e escutar suas opiniões: depois
deliberar por si, a seu modo [...]. Fora aqueles sábios, não queira ouvir ninguém,
siga a deliberação tomada e seja obstinado nas suas deliberações (2011, p.227).

Assim como as características do Imperador alemão o destruíam e causavam males à


administração do Estado, Maquiavel, ainda no capítulo XXIII, exalta que quem age de modo
diverso ao aconselhado tende a ser pouco estimado por seus súditos, pois, ou muda
frequentemente suas decisões de acordo com os pareceres, ou acaba entregue aos aduladores
(MAQUIAVEL, 2011, p.227). Para elucidar ainda mais sua opinião de que um governante
27
que tenha apenas uma natureza liberal e boa pode ser levado facilmente à ruína, o autor de “O
Príncipe”, no capítulo XV, faz sua crítica mostrando que “um homem que deseja ser bom em
todas as situações, é inevitável que se destrua entre tantos que não são bons” (MAQUIAVEL,
2011, p.151).
Mais um confronto que pode ser realizado entre os escritos diplomáticos de Maquiavel
e seu livro “O Príncipe” está presente no relato “Discurso sobre a maneira de prover-se de
dinheiro”. Nele, o autor apresenta que para o governo das cidades é necessária uma
combinação entre força e prudência, “pois esta [prudência] não basta; e aquelas [força] ou não
conduzem as coisas a bom termo ou, quando as conduzem, não as conservam. Assim, essas
duas coisas constituem o nervo de todas as senhorias que há e que haverá sempre no mundo”
(MAQUIAVEL, 1999, p.243). Em “O Príncipe”, capítulo XVIII, Maquiavel apresenta que são
duas as formas de agir, com as leis e com a força, o primeiro sendo próprio dos homens e o
segundo dos animais, e ainda que, apenas um deles, isolado, não basta. Necessita, portanto,
um príncipe, saber agir tanto como homem quanto como animal, com a prudência e com a
força, conforme a situação lhe exigir (MAQUIAVEL, 2011, p.169).
Muitas são as observações de Maquiavel em seus relatos de chancelaria que podem ser
comparadas com sua mais conhecida obra. Ao apresenta-las é possível perceber com clareza a
influência que sua prática diplomática teve para formulação e sistematização de seu
pensamento em “O Príncipe”. Também é possível notar como, a partir dos exemplos reais em
que esteve presente enquanto diplomata, Maquiavel os elaborou em forma de teoria, como
conselhos a príncipes, e, ainda, nos brindou com seu consagrado pensamento político que
segue atual para diversas áreas do conhecimento.

Considerações Finais
O período histórico que compreende a transição da Idade Média para a Modernidade é
frequentemente estudado por diversas áreas do conhecimento e com variados e distintos
enfoques. Dentro deste espaço temporal, a Renascença italiana e o movimento renascentista
dos séculos XIV e XV, principalmente, desfrutam de destaque especial por conta de suas
inúmeras transformações em aspectos sociais, culturais, políticos, científicos, entre outros,
que moldaram a forma de pensar e agir de todo o Ocidente, até a atualidade. Incentivado
fortemente pela retomada dos estudos clássicos e, em grande medida, sedento por mudanças
na própria concepção de vida e estilo de sociedade, o movimento renascentista provocou uma
ruptura estrutural com a anterior tradição medieval e buscou se firmar com novos princípios
em tempos de grande turbulência política na Europa.
Em meio ao cenário de transição vivenciado neste período, dentre os tantos pensadores
da Renascença, talvez poucos tenham tido a oportunidade de conviver e participar tão
28
intensamente desta estrutura política quanto Nicolau Maquiavel, nos anos em que ocupou o
cargo público na de Chancelaria de Florença, antes de ter escrito sua aclamada obra política.
Enquanto diplomata, Maquiavel teve contato com diversos líderes e governos da Europa, e era
sua função analisar as políticas externas implantadas, as maneiras de agir de cada governante,
as alianças formadas e as pretensões de cada Estado em questão. Maquiavel exerceu sua
função em um momento em que a diplomacia estava ainda em processo de consolidação e em
que começava a substituir, por vezes, o uso da guerra e das armas nas relações entre os
Estados, oferecendo uma alternativa pacífica para a resolução de conflitos e interesses opostos
no tabuleiro europeu. Foi a partir das mudanças oportunizadas pelo Renascimento que a
diplomacia começou a tomar forma de maneira mais consolidada, o que oportunizou seu auge
durante a Modernidade. Portanto, Maquiavel teve grande participação no cotidiano do
desenvolvimento desta prática que impera até os dias de hoje nas relações entre os Estados,
fornecendo informações e orientações sobre o cenário político da Renascença à Comuna de
Florença.
Estudos sobre a vida e a obra de Maquiavel são, com frequência, realizados na área da
ciência política e filosofia. Sua relevância para a política renascentista e para a transição à
modernidade garantiu ao autor seu lugar de destaque entre os grandes clássicos do
pensamento político, ao fazer com que sua obra continue como referência teórica na área. No
entanto, devido à diversificada gama de estudos e serviços realizados por Maquiavel, suas
obras podem contemplar outras áreas do conhecimento além das acima citadas. Um exemplo
que muito nos ajuda a identificar este aspecto é o livro “História de Florença”, escrito pelo
pensador florentino no ano de 1525, revelando o lado historiador de Maquiavel 28, com
diversas contribuições não apenas à história de Florença, como também de toda Itália e grande
parte da Europa. Além disso, a forma como Maquiavel trabalha em sua obra o papel do poder
na sociedade permite ainda que diversas interpretações voltadas à área da administração e do
Marketing se utilizem de sua obra para estudos de estratégias gerenciais29. Outras áreas foram
também contempladas pelo autor em sua obra, como é o caso dos assuntos militares,
expressos em “A arte da guerra”, ou ainda na linha literária, em “A Mandrágora” e “Belfagor,
o arquidiabo”, entre outros.
Nas Relações Internacionais os estudos da obra de Maquiavel se limitam, muitas
vezes, a sua contribuição à Ciência Política, com vista a identificar os principais aspectos

28
De acordo com Bignotto, “O historiador Maquiavel foi herdeiro de uma rica tradição, que combinava os
escritores gregos e romanos com os humanistas do quattrocento que, desde Petrarca haviam-se interessado pelos
problemas históricos e historiográficos” (1991, p. 182).
29
Como nos apresenta Thiry-Cherques, as ideias chaves de Maquiavel podem ser transpostas para a área
administrativa e das organizações, oportunizando assim a aproximação com uma realidade observável (1993,
p.42).
29
relacionados ao funcionamento do Estado, a relação entre governantes e governados ou,
ainda, se utilizam do autor como base para a compreensão da Teoria Realista das Relações
Internacionais, visto que, segundo Leung, “Maquiavel é reconhecido como um dos
precursores do Realismo, uma das mais respeitadas e veneradas escolas de pensamento”
(2000, p.3)30. Todavia, além desta possibilidade de análise, é possível ainda identificar
diversos outros aspectos que colocam o autor mais próximo deste campo de estudo. A função
pública exercida por Maquiavel no cargo de diplomata florentino nos apresenta um exemplo
óbvio de como as Relações Internacionais podem se beneficiar de sua obra, uma vez que um
dos objetos de estudo desta área é a história da diplomacia e a sua prática contemporânea.
Deste modo, além de nos contemplar com seu conhecimento a respeito do Estado — ator
central nas Relações Internacionais, ainda que tenha, atualmente, parte de sua
responsabilidade dividida entre novos atores — Maquiavel nos oferece em sua obra o contato
com diversos outros assuntos dos quais obteve conhecimento por meio da prática cotidiana
das relações entre os governos da Renascença nas missões em que fora enviado como
representante diplomático de Florença.
É notável observar ainda que nas Cidades-estado italianas a constituição do aparato
governamental não ocorreu de maneira personificada e vinculada a figura do Soberano como
ao norte dos Alpes. A racionalidade humanista e as frequentes ameaças impostas as frágeis
Comunas da península oportunizaram a formação de um corpo de indivíduos capacitados a
operar de acordo com os interesses em questão, com um profissionalismo digno de uma
burocracia estatal recém instaurada, base da estrutura política atual. Maquiavel foi parte deste
setor burocrático e pôde, a partir de sua função, conhecer os meandros internos de um modelo
político que seria adotado posteriormente pelos Estados na Modernidade.
Como já expresso anteriormente, foi como secretário da chancelaria de Florença que
Maquiavel obteve parte de sua formação política que o motivou a elaborar sua obra posterior.
A convivência direta com os assuntos envolvendo as comunas italianas e até os demais
Estados europeus, serviram de inspiração para que, após sua saída do cargo público, o
embaixador florentino sistematizasse seu pensamento político. Aquilo que o confronto
proposto entre seus relatos de chancelaria e sua obra posterior nos prova é que as semelhanças
apresentadas não ocorrem por mero acaso, mas são, evidentemente, fruto de um aprendizado
adquirido por meio da práxis do autor, e sistematizado anos depois em forma de teoria, como
o presente artigo intentou elucidar.
As passagens que foram aqui evidenciadas nos relatos de chancelaria de Maquiavel
apresentam os fundamentos de algumas temáticas que viriam a ser tratadas em sua mais

30
Traduzido do original: “Machiavelli is recognized as one of the forefathers of realism, one of the most
respected and venerable schools of thought”.
30
conhecida obra. Entretanto, além dos relatos apresentados, existem ainda outros tantos, alguns
sem tradução para o português ou inglês, que podem nos revelar ainda mais relações entre sua
práxis e teoria. Não se pode, portanto, ignorar ou minimizar a atividade diplomática realizada
por Maquiavel na Renascença, nem tampouco sua tão original obra política, que nos permitem
utilizar frequentemente, e em diversas áreas do conhecimento, o pensamento Maquiaveliano.
Nas Relações Internacionais, inclusive, é possível se beneficiar de inúmeras contribuições do
autor de “O Príncipe” para estudos na área, tanto voltados à Diplomacia como também à
Teoria das Relações Internacionais, Ciência Política, entre outros. De fato, e sem qualquer
motivação demagógica, pode-se justificar a inscrição fúnebre que homenageia, para toda a
história, o ilustre florentino em seu leito derradeiro: tanto nomini nvllvm par elogivm31.

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31
Tradução aproximada: Para tão grande nome nenhum elogio é adequado.
31
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