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2 Este paper traz alguns dos resultados de duas diferentes pesquisas: o projeto
Relations among “race”, sexuality and gender in different local and national contexts, com
Laura Moutinho (coordenação geral), Júlio Simões (coordenação São Paulo), Simone
Monteiro (coordenação Rio de Janeiro), Elaine Salo (coordenação Cidade do Cabo),
Brigitte Bagnol (coordenação Johannesburgo), Cathy Cohen (coordenação Chicago) e
Jessica Fields (coordenação São Francisco), financiado pela Fundação Ford; e o projeto
Entre a exclusão, o reconhecimento e a negociação: (homos)sexualidade e raça em uma
1 Docente do Departamento de Antropologia, da perspectiva comparada Brasil e África do Sul, financiado pelo Edital Gênero\CNPq e
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da coordenado pela professora Laura Moutinho. Uma primeira versão desta reflexão foi
Universidade de São Paulo. publicada nos Cadernos Pagu, ver Moutinho et al. (2010).
A ideia nesta comunicação é seguirmos as narrativas de três jovens mulheres de diferentes raças,
origens sociais e orientações sexuais igualmente distintas. Acompanharemos trajetórias femininas que
se posicionam de modo não unívoco no interior de redes circulatórias, relacionais, desiguais e contíguas.
Objetiva-se com esta reflexão colocar em perspectiva novos regimes de verdade que autorizam sujeitos
e identidades, mas são igualmente permeados por recusas e novos modos de subjetivação que operam
concomitantemente com formas atualmente desautorizadas, porém presentes de modo tenso no
cotidiano.
Não se pretende neste paper, entretanto, “repertoriar” as leis e normas hegemônicas, aferindo “a
realidade contra esse parâmetro” (FONSECA, 2005), tampouco ignorar as complexas controvérsias que
acompanharam (e ainda se fazem presentes) a implementação dessa malha de regulações e reparações
(ou mesmo os dispositivos de acesso à justiça) que vem administrando, e igualmente produzindo, novos
conflitos, hierarquias e formas de poder.
As múltiplas narrativas do feminino (e seus agenciamentos) são aqui compreendidas numa relação
espaço-temporal específica, articuladas às novas hierarquias de poder que vêm ganhando espaço no
país a partir da transformação concomitantemente legal, moral e ontológica (MOUTINHO, 2009) que
foi (e vem sendo) construída após o fim do regime racial e a instalação da democracia (uma ordem
Laura Moutinho
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1. Cena 1
Cindi, 22 anos, lésbica e black, que cresceu em Phillipi e atualmente mora com a parceira em
Khayelitsha (outro township), vivencia em sentido diverso o domínio de uma língua e suas chances no
mercado dos afetos e prazeres. Ela afirma que,
apesar de não ter problemas com outras raças, eu não teria, por exemplo, uma parceira white nem
indian, porque detesto falar inglês o tempo inteiro. Eu adoro a minha língua [xhosa], e meus amigos sabem
que eu tenho limites para falar inglês4.
alguns dos aspectos que estou mencionando ao dizer que a entrevista que mais apreciou foi com uma
mulher “urban black”, de 22 anos e heterossexual como ela. Bsy nasceu em Soweto, Johannesburg. E
afirmou que: “in terms of ethnicity I’d be Zulu, but I was raised in a pretty much sort of intercultural
house with Sotho, Xhosa and English”. A mãe é professora e “she teaches at Family Cross, it is a
Catholic School” disciplinas como história e ciências sociais. O pai é medico e Tswana de origem.
Anne notou no processo grande semelhança entre as duas trajetórias5. Elas vivem nos subúrbios
de Cape Town, respectivamente em Claremont e Woodstock (um bairro coloured), numa espécie
de “república” com estudantes e pessoas de diferentes backgrounds. Ambas são “muito parecidas”:
elas gostam de livros, gostam de ler e ela (a entrevistada) “pensa realmente” sobre o mundo. Anne
afirmou que elas tinham opiniões similares. Ambas possuem background familiar parecido: a Bsy vem
de uma família negra católica, ou seja, uma família extremamente religiosa. Anne foi criada na Igreja
Holandesa Reformada (que sustentou o apartheid) e atualmente é metodista. Ambas vieram de um
espaço profundamente segregado, ambas cresceram sem pai.
Anne diz que Bsy é “muito consciente”. Isso significa, entre as pessoas com quem convivi, que elas
são conscientes da forma como o racismo se constituiu. Anne explicita (e vislumbrou este movimento
5 Anne, que vem acompanhando minhas pesquisas há anos, fez a seguinte “observação de campo”: “We got on really well and so we laughed
a lot throughout the interviews. She uses a lot of slang which I interpreted in brackets. Generally the interviews were very comfortable and
70 uninhibited.”. Sobre si mesma, Anne fez o seguinte registro: “Economic class – In terms of income I probably fall into the class of the average
school teacher, in terms of family history status – poor white (in South Africa this was the official label).”.
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em Bsy) a necessidade de se mover para fora de (ou mesmo contra) um universo profundamente
instintivo e arraigado que se resume em se ver e perceber primeiramente como black ou white. Anne se
diz preconceituosa, pois acredita que não é possível ser sul-africano sem ser preconceituoso. Mas elas
são críticas do racismo que marcou suas trajetórias. Ambas são, sobretudo, profundamente conscientes do
código cultural ao qual estão atreladas.
A dúvida sobre o vocabulário que suas famílias e os grupos de origem possuem para se expressar
e pensar o mundo marca a fala dessas moças. Foi possível entrever um novo “campo de possibilidades”
Há jovens e situações que parecem se situar em um espaço “in between” – como disse, um
espaço de intersecção entre distintos sistemas –, e a ideia de “Forgiveness” parece ocupar um lugar
central nesse cenário: uma possibilidade de perdão/reconciliação através da história das vítimas do
apartheid e da conversa frente a frente entre as vítimas e seus algozes com o objetivo de enfrentar o
passado e reconduzir o país.
Esse não é, portanto, um processo de hibridismo que aniquila as diferenças, mas um processo que
as retém e na sua radicalidade amplia a possibilidade de identificação, troca e solidariedade, porém não,
faz-se necessário destacar, do contato sexual.
Ao se postular a “igualdade de todos”, há que se perguntar os sentidos que essa noção adquire
em contextos diversos. No discurso de Anne, a “igualdade” se configura como um espaço possível
de trocas e afinidades. Anne e Bsy caminham para um terreno comum. Não se trata de dizer: “somos
iguais”, mas “você é igual a mim” ou “eu sou igual a ti”? Não está em jogo a “conversão” a um sistema de
referências distinto7. No caso de Anne e Bsy, a força de uma experiência tradicional distinta em termos
culturais mas com uma lógica que elas leem como similares possibilita a criação ou a emergência desse
terreno comum de identificação.
Em resumo, se por um lado, a retórica do apartheid como outras operou em um registro
72 7 Ver, em especial, Larissa Pelúcio (2009) numa sensível análise sobre os modelos de prevenção às DSTs/Aids e as travestis em São Paulo.
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essencializador no qual a religião e as sanções morais foram fundamentais na construção das identidade
raciais rígidas, pela narrativa de Anne, pode-se observar que a experiência pós-apartheid (e situações
ou espetáculos sociais como a Comissão de Verdade e Reconciliação) abriu espaço para a produção de
um tipo de identificação cujo foco não é a identidade (na sua especificidade ou singularidade), mas de
recomposição do tecido social. Laços emocionais e afetivos foram acionados como base no sentido de
criar uma experiência comum não marcada ou amarrada aos elos raciais estimulados (e estipulados) pelo
apartheid. Nesse contexto, a oportunidade que temos, portanto, é a de observar como o apelo a uma
experiência comum ou a uma similitude alimenta não uma diferença ou divisão imutável que atende a um
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