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DEUS É BOM

ENTÃO, POR QUE EXISTE O MAL?

Uma reflexão multidisciplinar


sobre o bem, o mal e a
liberdade

Antônio Mesquita Galvão


2

SUMÁRIO GERAL DO TRABALHO

Justificação acadêmica/7
Agradecimentos/9
Preâmbulo/11
Introdução/13

I A visão do mal no mundo [19–54]

1. O que é o mal?/21
2. O mal existe?/26
3. A identidade bíblica do mal com o mundo/33
4. As características do mal/41
5. A visão pessimista de Voltaire/48

II Mal: problema, mito ou realidade? [55-88]

1. O ―problema‖ do mal/57
2. O mal é uma realidade/64
3. O mal, um desafio, na visão de Paul Ricoeur/76
4. Por que temos medo do mal?/81
5. Noções de teodicéia/86

III O bem e o mal nas religiões [89-113]

1. Nas culturas neolíticas/91


2. No Oriente Médio/92
3. Na visão do Judaísmo/96
4. Nas mitologias e religiões Orientais/100
5. O enfoque Cristão/107
6. No pensamento dos ateus/109

IV O mal, na visão da filosofia [115-151]

1. Epicuro/117
2. Os gregos/118
3. A teodicéia de Leibniz/124
4. A idéia Cartesiana/132
3

5. Susan Neiman/134
6. Ana Arendt/137
7. Freud e Jung/139

V Livre-arbítrio: uma idéia humana para “defender” Deus?


[153-178]

1. A questão do mal segundo Santo Agostinho/155


2. O maniqueísmo/163
3. A formulação do livre-arbítrio/167
4. Ser livre para decidir/172
5. A teologia do livre-arbítrio/174

VI Liberdade: dom ou castigo? [179-210]

1. A liberdade do ser/181
2. A liberdade segundo os existencialistas/187
3. Onde buscar a libertação?/195
4. Somos livres para decidir?/198
5. A liberdade segundo Paul Ricoeur/203

VII Bondade de Deus e maldade do mundo: uma dicotomia


irreconciliável [211-243]

1. Deus é bom?/213
2. Então, por que existe o mal?/217
3. Quem é o autor do mal?/221
4. Como explicar o sofrimento do inocente?/227
5. Miséria, fome e exclusão são faces do mal/231
6. O bem e o mal: uma difícil convivência/238

VIII Mas livrai-nos do mal... [245-278]

1. Mentiroso e homicida/247
2. O que diz a Bíblia?/258
3. O magistério da Igreja/264
4. O pecado é uma criação humana?/270
5. Por que sofro, se tento ser bom?/273

Conclusão/281
Bibliografia/289
Índice onomástico/291
4
5

Justificação acadêmica

Quando se escreve um livro – a atividade do aluno, há cerca de vinte


anos – sabe-se que suas páginas serão lidas por um público heterogêneo,
alguns com conhecimento do assunto, outros em busca de alguma
(in)formação, e outros, ainda, a procura de lazer ou distração.

Quando, entretanto, se trata, como na espécie, de uma Tese de pós-


graduação, especialmente na hierarquia de um Doutorado, em que os
leitores não são mais um público leigo, mas especialistas e pesquisadores,
verdadeiros experts no assunto, a responsabilidade do acadêmico precisa
ser redobrada, visto o gabarito técnico e intelectual da banca
examinadora.

Um tema exarado dos meandros da Teologia Moral, como o


presente, por ser muito rico, inexplorado e suscetível a mais de uma
interpretação, coloca o doutorando em uma situação difícil que, para
suplantá-la, necessita da boa vontade e do apoio de seus mestres.

Sabe o acadêmico que esta tese não é uma obra acabada. Ela pode
apresentar erros, incompletudes e lacunas, oriundas de sua limitação,
divergências hermenêuticas e escassez de bibliografias. Assim mesmo, o
aluno conta com o discernimento dos analistas, cujos comentários e
pareceres irão aprimorar o estudo ora desenvolvido.

Que nossas primeiras palavras, portanto, seja de escusas pelas


eventuais falhas, bem como de agradecimento pela acolhida do
Departamento de pós-graduação da PFNSA.

O acadêmico.
6
7

Agradecimentos

Agradeço, de todo o meu coração

a DEUS
pelo dom da vida e pelo discernimento

a MEUS PAIS
João e Mercedes
pela vida biológica e pelo amor

aos PROFESSORES
que me auxiliaram

à MINHA ESPOSA
Carmen
pela inestimável ajuda,
nas revisões e sugestões
temáticas e exegéticas.
8
9

Preâmbulo

O grande problema de nossas hermenêuticas modernas (e o homem


moderno adora essas ―interpretações‖) é superar a contradição entre um
Deus, que aprendemos ser bom, e um mal cruel, que nos violenta e enche
de temor. Há muitos casos em que nossa estupefação, impotência e
indignação só permite que se pergunte: por quê? Para a maioria das
pessoas é possível estabelecer alguma relação entre o mal sofrido e algum
deslize cometido. No terreno das avaliações, o mal é quase sempre
desproporcional ao pecado cometido. Daí a questão (que vai perpassar
todo o conteúdo deste trabalho): por que eu?

Nessa perspectiva, o mal é e será como a imagem de uma aterradora


esfinge, que nos devora antes que possamos decifrar seus enigmas. O mal
é a realidade ligada à vida humana que temos mais dificuldade em aceitar,
entender e justificar. Ao que tudo indica, nossa cultura, social e religiosa
ainda não sabe lidar com o espectro do mal.

A pesquisa a respeito da origem do mal é algo demasiadamente


complicado para ser debatido em meia-dúzia de páginas de um artigo de
revista, uma tese, um dissertação ou mesmo de um livro. Sua
complexidade é tamanha que por muitos séculos, teólogos, filósofos,
pesquisadores e sábios têm buscado respostas e, como cavar na areia do
mar, quanto mais se cava, mais água (dúvidas) brota, ao invés de terra
seca (certezas). A questão básica ―por que o inocente sofre?‖, por suas
diversas nuanças, é um assunto que jamais se esgota.

Em certos momentos, ocasiões e circunstâncias, é desconcertante


falar sobre o mal, tentar explicar o inexplicável, como o padre que realiza o
ritual das exéquias de uma criança que foi assassinada por um
desconhecido. Há momentos em que a dura realidade de alguém, assolado
pelo sofrimento, não se satisfaz com nossas teorizações filosóficas ou
teológicas, mesmo que elas estejam fortemente embasadas no
conhecimento ou na fé,

Pretendemos, neste trabalho, desenvolver roteiro e pedagogia


próprias, a partir das questões levantadas sobre alguns casos reais,
ocorridos nos últimos tempos:

1. Um descomunal furacão, seguido de maremoto (chamado de


Tsunami) abateu-se sobre o Sudeste Asiático em 26 de dezembro
de 2004, matando mais de 300 mil pessoas, além de provocar
uma destruição material sem precedentes;
10

2. Um menina de quatro anos, num bairro pobre de Porto Alegre,


em março de 2005, sofreu violências sexuais e depois foi morta,
pendendo enforcada, em uma árvore;

3. No mês de maio de 2005, no Iraque, na cidade de Faluja, um


míssil americano, desgovernado, explodiu sobre uma escola,
improvisada em mesquita, onde 400 pessoas (homens, mulheres
e crianças) oravam pela paz; todos morreram;

4. Uma idosa foi morta, por uma ―bala perdida‖, no Rio de Janeiro;
seu apartamento ficava a 300 metros de um morro onde grupos
rivais disputavam a hegemonia do tráfico de drogas. Era dia de
Natal, dezembro de 2004.

Assistindo ou vivenciando estas tragédias, alguém, certamente terá


se perguntado: Por que, meu Deus? Ou, quem sabe, indagado, de uma
forma mais profunda:

Se Deus é bom,
ENTÃO POR QUE EXISTE TANTO MAL?
11

Introdução

Fiquem longe de toda a espécie de mal! (1Ts 5,22)

Não é difícil explicar ou entender o mal a partir do ato do agente,


daquele que pratica o mal. Em geral, aliado ao fator culpa, que no direito
tem três atributos (imperícia, imprudência e/ou negligência), pode-se
enxergar na liberdade, a porta aberta para a prática de uma ação dolosa.
Por que matou? matou porque quis! porque é bandido! por vingança! O
que leva um indivíduo a cometer um estupro? desajuste, tara, pressão
psicológica, etc. E o ladrão? roubou porque faz parte de sua natureza?
porque precisava? Ou porque deixou-se levar por más companhias?

Olhando-se, pois, sob a ótica do agente, sempre se encontrará o


motivo ou o móvel para a prática de um ato ilícito, imoral e criminoso.
Nessa conformidade, o mal é facilmente explicado. Por que fez? porque
tinha liberdade de fazer ou não; e preferiu fazer. Aí funciona integralmente
o livre-arbítrio, ou seja, o indivíduo é livre para fazer o que lhe vem à
cabeça, seja o bem ou o mal.

A dúvida, a questão e mesmo a indignação surge quando passamos


a enxergar o mal – o ato e seus efeitos – através da ótica da vítima, do
inocente, daquele que, sem fazer nada, sem concorrer para o evento,
sofreu em si todas as conseqüências. Porque o criminoso mata, a gente
sabe. E por que o inocente é morto? Essas questões, muitas vezes, nas
fráguas iminentes de um drama, escutamos traduzidas por um clamor
que sobe aos céus: por que, meu Deus?

A incidência do mal na vida humana – ocorrência esta que sempre


nos preocupou – foi-nos justificada nos catecismos preliminares, como
―vontade de Deus‖, quando as pessoas morriam porque havia necessidade
de mais anjos no céu. Depois, mais tarde, descobriram que ―Deus é amor‖,
é Pai e ―rico em misericórdia‖, e essa nova visão não se enquadrava com o
Deus vingativo, mais retributivo que misericordioso, do Antigo
Testamento.
Nesse contexto, foi-nos dito que o mal é fruto do pecado, e que este
ocorre, desde Adão e Eva, por culpa da má condução que o ser humano
vem dando à sua faculdade de agir livremente. Então a liberdade, ao invés
de um dom, uma graça, passou a ser uma perigo, uma ameaça? Sim, pois
se o homem não fosse livre, não cometeria as faltas que a liberdade lhe
faculta.

A grande verdade é que o mal existe, a despeito de nossos protestos


e reclamos. E existindo afeta diretamente nossa perspectiva de vida, uma
12

vez que o mundo infenso sempre nos apronta armadilhas. Estamos bem
agora mas podemos ser vítimas do mal daqui a pouco e, na maioria das
vezes, não temos explicações para o fato. O caso, assustador, é que muitos
de nós têm teorias sobre o mal, mas ninguém está preparado para
conviver com ele.

Em bibliografias, nacionais e estrangeiras, lê-se referências ao


problema do mal. Ora, entendo que a expressão problema não se presta ao
caso, pois todo o problema, como as equações matemáticas que fizeram
nosso tormento na escola (a não ser que estejam interpoladas de algum
erro) tem solução. E com o mal, tal não ocorre. Respostas e soluções são
insuficientes, parciais e via-de-regra respondem muito pouco. Assim,
neste trabalho vou procurar evitar aquela expressão, transmutando-a
para a questão do mal, uma vez que questão inflete mais na direção de
uma pergunta. E as perguntas, sabemos, nem sempre têm resposta
satisfatória ou compreensível.

As questões, no tocante à existência do mal, são várias, freqüentes e


recidivas. Quem criou o caos ou o mal? A resposta é imediata: ―Não foi
Deus! Pode ter sido o Diabo...‖. Ora, sabemos que o Diabo não é criador de
nada; ele não tem poder para criar. Deus podia ter evitado o surgimento
do mal? Por certo que sim, mas em função do mistério insondável não se
sabe porque motivo não o fez. Ah, dirão, então o mal é criação do homem,
que por uma mixórdia moral entre decisões e liberdade permitiu que o
mal.... O homem não poderia, pois o mal é anterior a ele. Além disto, o
homem é criador? E criador de algo tão forte que nem Deus consegue
erradicá-lo? A questão é complexa...

Por que existe o mal? De onde ele vem? Se do mais íntimo de seu ser
o homem deseja o bem e almeja a felicidade, por que ele pratica o mal?
Por que o mal o acompanha em todas as circunstâncias de sua vida, em
todos os seus atos, em todas as suas experiências? Se o homem foi criado
por um Deus bom não deveria existir apenas o bem? Essas perguntas
fazem parte dos mais importantes questionamentos que o homem pode
fazer a respeito de sua existência.

De fato, o mal é a outra face da realidade e a idéia que tivermos dele


constituirá parte considerável da idéia que construiremos de toda a
realidade. Ele precisa, pois, ser entendido para que se possa entender o
mundo. E também para que se possa limitar suas investidas, de maneira
mais eficaz.

Durante toda a história humana, várias respostas foram dadas às


questões sobre o mal. Em geral tais enunciados se apresentam ou de
forma insatisfatória ou com argumentos bastante negativos, estendendo
um véu sombrio, capaz de cobrir a existência do homem, gerando medo,
pessimismo ou um fatalismo irracional.
13

Mesmo sabendo que não teremos condições de responder a muitas


questões, pretendemos transcrever aqui uma série de indagações,
reproduzindo aqueles questionamentos que nossa relativa experiência,
como professor, evangelizador, conferencista, pregador de retiros de
espiritualidade e ministro das exéquias nos proporcionou.

A pergunta que se faz, neste início de trabalho, é se essas idéias


tradicionais, negativas muitas delas, poderiam ainda hoje ser
consideradas válidas. Ou há outra forma de compreender a questão do
mal? O surpreendente avanço do saber humano, a partir da filosofia, da
teologia e das demais ―ciências humanas‖, realizado nos últimos tempos
não estaria possibilitando e, mesmo, exigindo de nós uma nova
compreensão do mal?

O presente trabalho visa, através de farta bibliografia, compulsando


opiniões e experiências, manifestar um ponto de vista, uma tese, a opinião
do autor, a respeito do mal. Daquele mal que praticamos e sofremos, como
também o mal que inflete sobre o inocente.
14

ANJO ENFERMO
Afonso Celso († 1939)

Geme no berço, enferma, a criancinha


Que não fala, não anda, e já padece!...
Penas assim cruéis, porque as merece
Quem mal entrando na existência vinha?

Ó melindroso ser! Ó filha minha!


Si os céus me ouvissem a paterna prece,
E a mim o teu sofrer passar pudesse,
Gozo me fora a dor que te espezinha!

Como te aperta a angústia o frágil peito!


E Deus, que tudo vê, não t‟a extermina,
Deus que é bom, Deus que é pai, Deus que é perfeito...

Sim... é pai; mas a crença no-lo ensina:


Se viu morrer Jesus, quando homem feito,
Nunca teve uma filha pequenina!
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16

A visão do mal no mundo

Javé viu que a maldade do homem crescia na terra e que todo projeto do
coração humano era sempre mau. Então Javé se arrependeu de ter feito o
homem sobre a terra, e seu coração ficou magoado, e disse: ―Vou
exterminar da face da terra os homens que criei, e junto também os
animais, os répteis e as aves do céu, porque me arrependo de os ter feito‖.
(Gn 6, 7ss)
17
18

1. O que é o mal?

Paradoxalmente, quando se fala no mal, parece que todos têm a sua


definição, sua forma de enxergar a questão, ou suas definições próprias.
Embora o mal seja uma coisa dificilmente ―digerida‖ pela humanidade, ele
hoje é um assunto que muita gente pretende demonstrar conhecimentos.
Talvez, pensam, dizendo conhecê-lo, seja mais fácil de entender e
domesticar. A verdade é que o mal enseja perguntas e respostas, nem
todas respondidas satisfatoriamente.

Para orientar esta fase vestibular do trabalho, indaguei várias


pessoas – gente simples, pouca cultura, faixas etárias variadas, homens e
mulheres do povo – a respeito do mal. As respostas são interessantes: ―É
uma „coisa ruim‟ que a gente sofre, ou faz os outros sofrerem; é a doença, a
falta de dinheiro, a inveja, o roubo, as ofensas, as dores, as pisaduras, as
enchentes, a seca, as tempestades, as dores, o desprezo, a mentira, as
tentações, os vícios, o ódio, os pecados, os desvios morais, a morte e a
perdição eterna ―.

É curioso notar que, mesmo dentre as pessoas simples, de baixa


renda e escolaridade mínima, muitos têm uma noção prática do mal,
semelhante àquela elaborada por filósofos, teólogos e psiquiatras. Isto
revela que, pela vivência direta e cotidiana com a adversidade, certas
categorias sociais têm uma visão intuitiva (e porque não dizer dedutiva) a
respeito do mal.

Depois de escutar esse elenco de fatores que caracterizam o mal, foi


perguntado: e quem é o autor de todos esses males? Com o mesmo
desembaraço dos simples, as respostas fluíram: a gente mesmo; os outros;
a natureza, o diabo; ou a vontade de Deus. Nessas respostas (por isto eu
falei em ―conhecer por intuição e dedução‖), todas vindas de pessoas que
desconhecem a filosofia e a psicanálise, há curiosamente uma relação com
mestres do pensamento. Se não, vejamos:

 a gente mesmo (o si-mesmo – complexo de culpa – de Freud);


 os outros (―o inferno são os outros‖ – Sartre);
 o diabo (Dostoiévski);
 a vontade de Deus (Jung).

No campo das perguntas que se escuta-se por aí, a respeito do mal,


há algumas, que mais que crises de fé, apontam para aquela angústia
existencial de quem sofre, na carne e no espírito, o drama: Por que existe
o mal? De onde ele vem? Se do mais íntimo de seu ser o homem deseja o
bem e almeja a felicidade, por que ele pratica o mal? Por que o mal o
acompanha do berço ao túmulo, em todos os seus atos, em todas as suas
19

experiências? Por que sofro se tento ser bom? Não deveria existir apenas o
bem?.

Circulando tais questões, há um conjunto positivo e outro negativo.


Poderíamos dividir, preliminarmente, as questões em dois grandes grupos:
as respondíveis e as não-respondíveis.

As questões respondíveis:
 o que é o mal?
 de onde vem o mal?
 por que sofremos?

As questões sem resposta:


 por que os maus prosperam e os bons sofrem?
 por que o inocente sofre castigos injustos?

As ―respondíveis‖ são mais ou menos fáceis de equacionar. As não-


respondíveis vão perpassar todo este trabalho, onde a tônica vai girar em
cima do sofrimento do inocente. Se como ―advérbio‖ o mal é tudo aquilo
que é contrário as normas eticamente admitidas, qualquer que seja seu
campo de aplicação (um trabalho mal feito, por exemplo), como
―substantivo‖ ele designa tudo o que constitui um obstáculo à perfeição do
ser humano, e engloba as experiências em que predominam o sofrimento e
o dano.

Em geral concebido sob os auspícios de uma carência, pelo


pensamento teológico, ou de uma degradação progressiva do ser, o mal
está presente no movimento dialético sob a forma binária que erro que se
contrapõe à verdade, ou do trabalho necessário à luta do escravo por sua
liberdade, tornando-se assim o ―motor da história‖ 1.

Como questões respondíveis, embora não se queira afirmar nada


definitivo, ainda, relacionamos: a) o que é o mal? Ora, o mal é tudo aquilo
que contraria o bem, o equilíbrio, a felicidade e a plena realização de
nossos projetos. O mal é visto como uma ―privação do bem‖.

À outra questão, b) de onde vem o mal? Nós sempre temos respostas


prontas. Ele vem de nós mesmos, dos outros, da natureza e do
sobrenatural. Oriundo de nós mesmos, vemos o mal que é fruto das
doenças. Elas se maturam dentro de nós, como resultante de nosso
desleixo (falta de cuidado na alimentação, descuido com a forma física,
etc. ), também por problemas genéticos, congênitos ou hereditários
(doenças mentais na família, deficiências físicas, gestações em idade
avançada, vícios como bebida, tabagismo, drogas, país com sífilis ou
outros distúrbios capazes de prejudicar a posteridade). Isto tudo é capaz
de gerar organismos deficientes, pessoas fracas e suscetíveis às

1
Cf. G. DUROZOI et alli, Dicionário de Filosofia. Ed. Papirus, 1993.
20

enfermidades, e que, assoladas pelas doenças, atribuem-nas a outras


causas, como ―mau-olhado‖, ―inveja‖ ou até os irracionais ―carmas‖ das
doutrinas espiritualistas.

No tocante ao mal que ―vem dos outros‖, é aquele que acontece


através da violência, dos acidentes, e pelos descaminhos políticos que
geram sofrimentos, etc. A natureza, às vezes, produz o mal: são as
enchentes, os furacões, maremotos, secas, etc. Há também o
sobrenatural, o mistério do pecado (que a maioria dos especialistas chama
de ―mal moral‖), a influência negativa dos ―trabalhos‖ de macumba, do
―olho-grande‖2, e a influência dos ―espíritos maus‖ 3.
Por fim, c) por que sofremos? Sofremos porque somos fracos,
vulneráveis, frágeis às doenças, às agressões, aos fenômenos da natureza
e às ameaças metafísicas, o medo, o pecado e coisas do gênero. Estas
respostas é o que de mais superficial existe. Elas foram colocadas aqui, na
abertura do trabalho, para orientar o raciocínio e abrir caminho para uma
especulação mais concreta. Tudo faz parte de um contexto a ser mais
debatido e ampliado.

Nas questões, aqui classificadas como sem resposta, ―por que os


maus prosperam e os bons sofrem?‖ ou ―por que o inocente sofre castigos
injustos?‖ As soluções já não brotam com tanta facilidade, ensejando
respostas imperfeitas, ambíguas, às vezes contraditórias, e tendentes à
evasão. Falar em ―livre-arbítrio‖ e ―mistério‖ para justificar essas questões,
nem sempre satisfaz o coração das vítimas, ou de seus familiares. O
assunto é o fio-condutor do trabalho, cuja iluminação, pelo menos parcial,
se pretende estabelecer até as últimas páginas.

É interessante chamar a atenção no fato de, por causa da


problemática do mal, as religiões enfrentam grandes dificuldades em lidar
com a questão, especialmente na hora de explicar uma circunstância
trágica, justificar uma perda ou definir algo imprevisto. A alegação ―foi
vontade de Deus‖ não satisfaz mais os porquês do homem moderno.

O mais sério desafio ao teísmo foi, é e continuará sendo sempre o


problema do mal 4

2
Embora o autor, não creia em “trabalhos”, “feitiços” e “olho-grande” esses fenômenos existem, não como realidades
absolutas em si, mas fruto daquilo que a parapsicologia chama de “subjugação psíquica”, ou seja, alguém tanto
acredita no mal, na inveja, olho-grande, que seus inimigos são capazes de fazer “trabalhos” de feitiçaria, que a coisa
acaba acontecendo, não pelo poder dos outros, mas produzido pela subjugação da mente daquele que teme e
acredita. Ele próprio acaba gerando o mal que teme, contra si mesmo.
3
A influência dos “espíritos maus” (diabos, demônios) é uma realidade bíblica, e que deve ser encarada com seriedade.
Esse assunto será alvo de estudo no capítulo VIII, quando trataremos a “autoria do mal”.
4
R. NASH, Faith and Reason, Zondervan, 1988.
21

Por teísmo, é bom que se ressalte, entende-se todo aquele conjunto


de crenças, em um theós (Deus), uma divindade pessoal, transcendente,
relacional e causa das demais coisas. As religiões, precisamente as
monoteístas, são teístas.

No terreno das conceituações, parece que todo mundo tem sua


definição a respeito do mal. Cria-se a impressão, em muitos casos que as
pessoas têm uma resposta pronta, do tipo receita de bolo, para definir
intuitivamente o mal. Recordo que, quando digitava estas páginas, fui a
um churrasco na comunidade em que faço parte, e lá, entre um assunto e
outro, falei a algumas pessoas que estava preparando uma tese de
doutorado a respeito do mal. Incontinenti, um cidadão, de idade
avançada, que andou fazendo alguns cursos de teologia popular, tomou a
palavra e ―dissertou‖ sobre o bem e o mal, dizendo coisas inconsistentes e
incongruentes, com uma visão totalmente irracional, superficial e fruto de
uma espiritualidade distorcida. Fiquei imaginando a resposta de uma
pessoa dessas, na hora de uma adversidade ou de uma tragédia.

E nós, sabemos identificar o mal? Somos capazes de avaliar, de


forma cristã e inteligente, seu estrago na vida das pessoas e na nossa? As
pessoas, em geral, têm respostas e julgamentos para todas as
circunstâncias, sempre no aspecto empírico, na teoria dos achismos
cotidianos. Saberão converter a teoria, na hora do desastre?

O mal, antes de ser um problema ou mistério, é um fato universal


da experiência humana que dispensa demonstração. A todos afeta,
independentemente de raça, religião, status social, idade etc. Suas
manifestações são múltiplas, mas se afigura sempre como uma
realidade de dilaceramento existencial expressa na pergunta: por
quê? A lista das experiências é infinda e, talvez, cada ser humano
tenha a sua sob medida 5.

No campo da filosofia (e veremos mais esse enfoque no Capítulo IV e


no corpo de todo o trabalho) constata-se que como ―oposto ao bem‖, o mal
coloca em questão a responsabilidade da pessoa que cometeu o erro,
embora sua origem primitiva deva ser buscada, de acordo com a teologia,
nos poderes sobrenaturais intrinsecamente maus (o Diabo).

O filósofo alemão Immanuel Kant († 1804), considerado o pensador


mais influente da Idade Moderna, afirma que a ―malvadeza‖ está no ato de
fazer o mal acidentalmente, enquanto a ―malignidade diabólica‖ procede
do desejo de praticar o mal pelo mal, coloca em questão a ‖má vontade‖
quando a intenção é viciada 6.

5
G. ZAMPIERI (OFM. cap) – O mistério do mal. Entre a Teodicéia e a Teologia. (Tese de pós-graduação) PUCRS
2002
6
In: Crítica da razão pura, Ediouro – Coleção Universidade, 1972.
22

A razão filosófica não cansa de acompanhar a lógica aristotélica que


definiu o mal como uma privação (ausência) do bem 7. Para Orígenes (†
253), um pensador cristão, o mal é uma falta acidental da perfeição 8. No
pensamento de São Basílio Magno († 379) o mal, ―não sendo o bem,
decorre da perversão (mutilação) da alma ―9. A filosofia-teológica de Santo
Agostinho († 430) nos revela que ―o mal nada mais é que uma „privatio
boni‟ (privação do bem)‖ 10.

Na alta Idade Média, destaca-se o pensamento de Santo Tomás de


Aquino († 1274), que afirmou não existir no mal essência alguma. Ele
reafirma a teoria que aponta para uma mera privação do bem: ―Com efeito,
o mal [...] nada mais é que a privação daquilo que deveria ser e acaba não
sendo, pois, assim o nome mal é usado por todos. Ora, a privação não é
essência alguma, mas uma „negação‟ na substância 11.

Na modernidade, o psiquiatra suíço C. G. Jung († 1961) foi mais


longe, ao criticar a privatio boni de Agostinho: ―a separação entre o mal e a
divindade sempre causou prejuízo à humanidade. Bem e mal alternam-se
como uma „estética‟ que repousa equilibradamente sobre duas colunas‖ 12.
Para Jung, a doutrina da privatio boni tende a diminuir a realidade do
mal, tornando as pessoas vulneráveis às suas investidas.

2. O mal existe?

A trajetória histórica da maldade no mundo é uma coisa que dá o


que pensar. Mais ainda quando vemos que o mal não é um problema entre
outros, mas, ao contrário, ele rege todos os outros. A verdade é que o
mundo e a vida humana instauraram-se sob a dialética do conflito entre o
bem e o mal. A teologia moderna, diante de tantos questionamentos,
busca uma forma de ordenar o estudo e conscientizar a necessidade do
debate a respeito do mal e suas origens. O estudo se presta para dirimir
dúvidas e para trazer a luz sobre determinados assuntos, incluídos nos
tabus das religiões, seitas, culturas e filosofias da humanidade. Desde que
o ser humano abriu os olhos, na noite do tempo, ele convive com a
realidade dúbia, que oscila entre o bem e o mal.

Nas narrativas da mitologia palestina que compõem Gn 1-11 vemos


que Caim matou seu irmão Abel, configurando o primeiro homicídio que

7
ARISTÓTELES, Metafísica, I, 4. Col. Os Pensadores, Abril Cultural, 1973,
8
In: Contra Celso. Patrística, Buenos Aires, 1988
9
In: Contra Eunômio, 358.
10
In: Confissões, III, VIII, Ed. Paulus, 1994.
11
In: Suma contra os gentios. Vol. II Cap. VII.1. Edipucrs/EST; Cf. IV Metafísica 2, 1104a; Cmt 3, 565).
12
In: Aion, Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Ed. Vozes, 1982
23

se tem notícia, mesmo sabendo tratar-se de uma alegoria, que tenta


contar, milhões de séculos depois, um evento ocorrido na pré-história,
nitidamente dentro do período ágrafo.

Antes, porém, da narrativa do fratricídio dos filhos de Adão, houve o


episódio (não narrado na Bíblia) da revolta dos anjos rebeldes, quando
estes, por inveja do homem, por soberba e pelo desejo de usurparem a
função divina, tornaram-se desobedientes, perdendo suas prerrogativas
especiais, sendo expulsos da corte celeste. É a partir desse evento que se
instaura o mal no mundo. A tentação à qual sucumbiu Eva é fruto desse
esforço maligno de afastar o ser humano do projeto divino.

Depois, havendo perdido a condição de hóspede do paraíso, o


homem se tornou tão mau que Deus (outra linguagem figurada)
arrependeu-se de havê-lo criado. São aderentes a esse fato, os gigantes, o
dilúvio e a torre de Babel.

Os teólogos, desde cedo, reconheceram a presença do mal em um


mundo que busca seu significado moral. Por que – perguntam – Deus
procura levar seus filhos para o céu? Para ―livrá-los do mal‖, para
preservá-los do ataque das forças malignas. Desde o homem das cavernas,
observa-se um medo do mal, das forças incompreensíveis que atacam a
família humana, as pessoas e seus clãs.

Logicamente, isto tudo não nos impede de prosseguir questionando.


Não poderia Deus ter feito tudo de outro modo? Deus, em sua
infinita sabedoria e poder, não poderia ter esboçado um mundo
menos hostil que este, que parece tão severamente ingrato pelo
modo como muitas pessoas vivem? Esta é uma questão a que os
evangelhos não respondem. Eles simplesmente sugerem que as
coisas são o que são... 13.

A história humana é uma deplorável narrativa de guerras, raptos,


destruição de cidades, golpes de estado, traições, incêndios e toda a sorte
de violência, onde sempre houve vencidos e gente que levou a melhor, mas
também, na contrapartida, multidões de pessoas que perderam tudo, a
partir das propriedades, dignidade e vida. O mal é mal e nele não há
nenhum resquício de bem. Quando é freqüente ou demasiadamente forte,
ele acaba desgastando as resistências morais do ser humano. Ao homem
de hoje, especialmente ao cristão, não é cabível o acovardamento diante
do mal.

Se a história está, por tantos séculos, recheada de maldade, parece


que o século XX, e esse início do XXI extrapolaram todos os parâmetros de
egoísmo, perversidade e desrespeito com os direitos do ser humano.

13
J. A, SANFORD, O mal – O lado sombrio da realidade. Ed. Paulus, 1988
24

Parece que a humanidade nunca foi tão cruel e desdenhosa dos valores
humanísticos.

Na idade antiga, o povo temia a bruxaria, a peste e as guerras.


Depois passou a temer os inquisidores, os senhores feudais e continuou
temendo os conflitos armados. Na modernidade – que ninguém assume o
risco de dizer quando começou – as Guerras Mundiais foram o flagelo da
humanidade. Na Primeira, uso do gás letal, gerou mortes em largas
escalas. O que era uma invenção recente, o avião, empregado para matar,
a ponto de seu criador, o brasileiro Alberto Santos Dumont suicidar-se, ao
ver a deturpação de sua invenção.

A II Guerra Mundial tentou suplantar os genocídios da humanidade,


ocorridos até então. Os campos de concentração, a tentativa de
supremacia racial, e experiências genéticas dos nazistas, a agressão
japonesa e a resposta, pela bomba atômica, os campos de refugiados,
tudo serviu para mostrar que a maldade humana não tem limites. O
homem não cria nada, mas ninguém é tão pródigo em destruição como
ele.

Depois, quando pensávamos já ter visto tudo, quando esperava-se


que a humanidade houvesse aprendido tantas lições, veio a guerra da
Coréia, do Vietnã e ultimamente do Afeganistão e do Iraque. Era o império
da guerra química, os vírus, o napalm, as bombas de fragmentação, os
mísseis de longo alcance. Cidades foram destruídas – com incalculáveis
perdas das populações civis – por um simples sintonizar de rádio e apertar
de botões.

Junto com as guerras e o terrorismo, tivemos a exacerbação do mal,


através das manipulações genéticas, de tantos ―crimes do avental branco‖,
que fariam corar os carrascos de Auschwitz 14. Todos esses crimes que
―clamam aos céus‖ foram (e são) perpetrados em ―nome da tecnologia‖ com
um só fim: lucro e notoriedade.

Igualmente os tentáculos do mal manifestaram-se nos ―golpes de


estado‖ e nas ―revoluções‖ da América-Latina (especialmente no Brasil, na
Argentina, no Chile, no Uruguai e outros países),onde ditaduras ilegítimas
provocaram um banho de sangue no continente.

Igualmente as guerras civis da África, onde o truculento ditador de


Uganda, Idi-Amin-Dáda, comia a carne de seus inimigos, num nítido gesto

14
Sobre esse tema, atual e ignorado por muita gente, recomendo a leitura de meu livro, Bioética – A ética a serviço da
vida. Ed. Santuário, 2004., onde, na Parte II, Capítulo 2 (“As manipulações Científicas”), falo nos descaminhos do
mal, desde os Campos de Concentração até os campos de experiências com negros no Alabama, EUA (até 1972), ou
nos hospitais de Nova York, onde crianças deficientes (1982) e idosos (1986) foram sacrificados, como cobaias, em
nome do “progresso da ciência”. Diante do assombro dessas maldades, no auge da indignação eu clamei: “Faltou
alguém no tribunal de Nuremberg!”.
25

de bárbaro canibalismo. No Iraque, em 1988 Saddan Hussein mandou


matar milhares de pessoas, das minorias curdas. Como foge à proposta do
trabalho, não vamos elencar mais fatos dessa ordem. Estes já foram
suficientes para mostrar que o mal existe, desde sempre, apenas
mudando a cobertura, o enfoque da mídia e o silêncio da opinião pública
mundial.

Quando teólogos e biblistas se dispõem a especular a respeito do


mal, suas raízes e conseqüências, algumas pessoas, neófitas por certo,
ficam meio chocadas, aconselhando que não se mexa ―nestas coisas‖.
Outros acham que estudar a origem e as ramificações do mal na
sociedade humana, pode atrair maus fluídos, despertar bruxas ou
evidenciar uma tendência do pesquisador para este assunto. Ainda há
muito tabu – superstição até – envolvendo o debate e a especulação sobre
este tema, obscuro, assustador e controvertido. Há quem veja – como foi
aludido – heresia em questionar as origens do mal.

As tragédias humanas, em geral, parecem só acontecer com os


outros, lá adiante. Nossa falta de espírito crítico chega a criar em nós um
processo de anestesia ética e social, como se as coisas maléficas nunca
fossem acontecer conosco. Quando o mal ocorre aqui, perto de nós, com a
gente, ou com alguém de nosso grupo familiar, uma pergunta insistente
paira no ar: por que? Onde está Deus – costumamos perguntar – quando o
mal nos ataca?

Nesse particular, é curioso observar que o ser humano, capaz de


achar soluções e explicações para tudo, sempre tentou equacionar o
problema do mal, e mesmo não o conseguindo buscou ―domesticá-lo‖,
senão ignorá-lo. Nesse esforço, tem procurado o homem, através das
ciências particulares, como a filosofia, a sociologia, a história geral, a
psicologia, apresentar uma resposta, um conceito sobre o mal, esbarrando
sempre num relativismo circunstancial. Para tais disciplinas, adverte
Marcelo Galuppo,

...aquilo que é um mal em uma dada circunstância, pode ser um


bem em outra ou, simplesmente, se avaliado de outra perspectiva
pode nos levar a outra visão 15.

Na constatação global, enxergamos o mal no mundo, no coração


humano, e em todas as atitudes da sociedade. O mundo é mau?
Costumamos escutar essa pergunta, e nem sempre sabemos responder.
Isto, talvez, porque não sabemos conceituar o que é mundo?

O verbete mundo tem muitos significados. Desde ―quantidade‖ até


espaço pessoal de privacidade. Na versão filosófica, o conceito de mundo
gira em torno de dois eixos fundamentais. Por um lado designa o conjunto

15
O Mal. In: marcelogaluppo.sites.uol.com.br;
26

das realidades materiais que constitui o cosmos ou o universo e, em um


sentido mais restrito, o sistema planetário terrestre. Por outro lado,
aplicada à vida do homem, no aspecto psíquico, a noção remete aos
fenômenos de consciência, como na expressão ―mundo interior‖. Na
fenomenologia de E. Husserl († 1938), o mundo exterior e o das relações
humanas dão lugar a uma significação distinta do conhecimento objetivo e
científico 16. Não é esta definição que se presta a nossa especulação.

Nessa busca, a teologia busca o suporte da Ciência Bíblica, onde a


expressão mundo tem dois significados. Na maneira corrente, serve par
definir o tudo que Deus criou: o céu e a terra (Gn 1,1). Diferente do
paganismo helênico, a concepção bíblica aponta para as representações
cosmológicas como material secundário, posto a serviço, pela bondade
divina, de uma afirmação religiosa essencial: tudo está a serviço das
criaturas de Deus. Dentro desse enfoque vemos um mundo que é objeto
do amor de Deus: ―Deus tanto amou o mundo que lhe deu seu Filho
único‖ (Jo 3,16).

De outro lado, é preciso ver mundo como oposto de céu. Nessa


perspectiva, enfatizada por Jesus, nos evangelhos, o ―reino deste mundo‖
está em constante tensão com o ―reino dos céus‖. Esse é o paradoxo que
caracteriza as duas faces do mundo: a vitória de Jesus sobre o ―mundo
mau‖ (dominado por Satanás) que, renovado, apressa-se em assumir todo
o bem que as promessas messiânicas anunciaram.

O mundo é hostil na medida em que não acolhe o Filho de Deus (cf.


Jo 1,10), por isto os evangelhos afirmam que Jesus não era ―desse
mundo‖. Na mesma trilha de idéias, podemos encontrar a figura de
Satanás como ―príncipe deste mundo‖ (cf. Jo 12,31; 14,30; 16,11).

Assim, temos o mundo criado por Deus, cheio de bens e maravilhas,


disponível à criação e onde se desenrola a história humana. Aqui a
palavra mundo tem uma conotação eminentemente positiva e perfilada ao
projeto divino. De outro lado, encontra-se referências a mundo, como algo
―mundano‖, diferente (e até oponente) de céu, situação esta que é regida
por Satanás, o líder desse tipo de mundo, onde prolifera o egoísmo, o
pecado e o mal.

A teologia pastoral insta com o cristão para que este não se amolde
aos critérios ―desse mundo‖, mas transforme pela conversão à vontade de
Deus (cf. Rm 12,2).

Destarte, mesmo a quem não tenha sua crença religiosa ou


espiritual, não é lícito duvidar da existência do mal, pois as evidências à

16
In: Idéias: uma introdução à fenomenologia pura, Berlim, 1913
27

nossa frente, tornam-se irrefutáveis, atestando no dia-a-dia, sua insidiosa


ação no meio da humanidade.

Para a filosofia, mal é tudo aquilo que é mau na ordem ético-moral,


o que causa dano, sofrimento ou miséria. Em teologia, o mal surge
quando se verifica alguma tentativa (ato, pensamento ou omissão)
contrária ao projeto de Deus, um ser supremo que é, ao mesmo tempo,
bom e Todo-Poderoso.

As guerras, os genocídios, o terrorismo e todas as perseguições


desencadeadas na pós-modernidade, já aludidas, minaram a esperança de
um mundo justo e fraterno, e novamente confrontaram filósofos e teólogos
com o problema do mal. E as conclusões e respostas nem sempre são
satisfatórias. Por causas do crescimento desordenado de todo tipo de mal,
muitos se tornam céticos, perdem a esperança e acabam ―conformando ao
espírito deste mundo‖.

O mal – nunca é demais repetir - nos compêndios de filosofia,


teologia, psicologia e história das religiões, é aquilo que é realizado em
oposição ao que é lícito (mal moral) ou o que se contrapõe ao
desenvolvimento normal da vida e da natureza em geral (mal físico), ou,
ainda, ocorre a partir de ações negativas das forças/causas sobrenaturais
(mal metafísico). É em cima dessas três características (mal físico, moral e
metafísico) que vamos ordenar nosso estudo daqui para frente.
Dissertando sobre os aspectos das crenças, na luta contra o mal na
história humana, aos quais designa como ―veneráveis objetos da fé
religiosa‖, Jung chama a atenção, já no prefácio de sua emblemática obra,
sobre o risco de os leitores serem reduzidos a pedaços, no entrechoque
das partes que discutem essa dialética do bem e do mal 17.
No tópico seguinte, iremos ver a visão das Sagradas Escrituras
sobre o mal no/do mundo. Nota-se que a Bíblia, desde Gn 3, apresenta a
origem do mal na ação culpável do homem. Se Gn 1-2 narra a história do
bem, de acordo com o projeto de Deus, a partir de Gn 3, desencadeia-se a
desordem, com as criaturas tomando as rédeas da história.

Ao longo do Antigo e do Novo Testamento aparece com muita


freqüência a realidade do mal em suas diferentes formas: dor, guerras,
crueldades, traições, morte, desgraças materiais... Existe o problema do
mal, cruciante em muitos casos. Devemos ter presente que o mal físico é
condição natural do ser criado, sujeito a limitações por sua própria
essência. O mal moral provém de malícia do homem, e não de Deus.
Levanta-se a questão inicial: não poderia Deus, rico em misericórdia, ter
criado um ser humano mais resistente ao mal? Nessa conformidade, a
liberdade é um dom ou um risco? Mas, vamos adiante, há muito chão
ainda pela frente.

17
In: Resposta a Jó. Ed. Vozes, 3a. ed., 1990. Tradução de Dom Mateus Ramalho Rocha, O.S.B.
28

Quando mudamos de assunto, ocorre a questão: será tão fácil assim


a conceituação do mal e a justificação de sua existência no mundo? Se
conseguimos tão facilmente conceituar o mal, identificarmos sua
ocorrência, bem conhecer suas causas e conseqüências, por que não
conseguimos erradicá-lo de nosso mundo e de nossas vidas?

3. A identificação bíblica do mal com o mundo

Visando atenuar as questões vistas acima, os primeiros autores da


Bíblia introduziram outros personagens na história: o homem e a mulher
não estão sozinhos diante de Deus. A serpente significa o contraponto, o
tentador, o inimigo de Deus, que procura destruir o plano da criação e
provocar a desgraça da humanidade. Ele quer enganar e desviar. Comer o
fruto proibido é simplesmente ceder à tentação e desobedecer à ordem de
Deus. Daí vem todo o sofrimento da humanidade. O mal torna-se um
corolário da relação do tentador com a humanidade. Deus parece nada ter
a ver com isto...

É esta a grande lição das religiões a respeito do pecado de ―Adão e


Eva‖. Confiar em Deus, seguindo o caminho que ele mostra, é fonte de
bênção. Afastar-se de Deus para seguir os próprios caminhos, é a causa
de toda a miséria da humanidade. Por causa do seu pecado, Adão e Eva
são expulsos do paraíso, onde viviam felizes juntos de Deus. É uma
imagem das conseqüências da recusa de Deus e do seu amor. Mas a
bondade de Deus supera essa maldade. Ele promete a salvação por meio
da descendência da mulher. Jesus esmagará a cabeça da serpente...

A Bíblia ensina que Deus nos criou à sua imagem e semelhança,


para partilhar conosco sua vida e felicidade. Este é o sentido da história
do paraíso onde Deus colocou Adão e Eva. No homem sofredor se esvai a
imagem gloriosa de Deus. Se os primeiros homens tivessem aceito a
amizade de Deus – diz a pregação das Igrejas – a nossa existência seria
muito diferente. Haveria algum sofrimento, como entre os animais,
resultante dos processos da natureza, frio e calor, enchentes, terremotos,
acidentes.

Como fruto desse estado de benevolência, não haveria maldade no


coração humano, nem todas as suas conseqüências perversas. Reinaria a
justiça e a paz, no respeito por Deus e sua lei, e na ajuda solidária entre
todos. O nosso organismo seguiria o ciclo vital de crescimento e
decomposição. Mas o fim da vida não seria, como agora, uma ruptura
dolorosa com o mundo presente, nem um mergulho angustioso no vazio
da morte. Este momento final seria experimentado como uma passagem
suave e desejada para uma vida ainda melhor, de comunhão plena e
definitiva com Deus e com toda a família humana.
29

Um obra, envolvendo um tema instigante desses, não pode ficar sem


questionamentos. No caso, suscita-nos a questão: por que não foi dada
uma segunda chance a Adão, como o foi a Davi, a Pedro, por exemplo?
Hoje o homem não sabe tudo, e volta-e-meia se atrapalha nas
especulações e raciocínios que ele mesmo cria, imaginem um ―bronco‖
como o Adão mitológico, pouco mais que um primata, há milhões de anos
atrás? Que discernimento e noção de escolha teria aquele ancestral?

O caso é que, por causa do pecado, o projeto original de Deus nunca


chegou a se concretizar. Os primeiros seres criados, segundo a visão
legalista da Bíblia, rejeitaram desde o princípio a oferta de Deus. Por sua
culpa, perderam o privilégio de viver como filhos de Deus. Separando-se
do Criador, a fonte da vida, ficaram sujeitos a todo o tipo de males. Mas
esta nova situação de miséria não afetou só o primeiro par humano. Foi
herdada também por seus descendentes. Nascemos fora do paraíso, i.e.
como membros de uma família desterrada, cujos pais abandonaram a
casa de Deus, para seguir seu próprio caminho. Por isso, vivemos num
mundo marcado pela desordem, pecado e morte.

A morte entrou no mundo pelo pecado (Rm 5,12).

O fato é que, por mais piedosas que sejam estas afirmações, elas se
chocam com a crueza da realidade, onde o mal vitima inocentes sem que
se encontre explicações plausíveis. Deus é bom, por isto não é possível
que ele permita a incidência de certos fatos por demais cruéis e
inexplicáveis. Por que o Criador permitiu que o pecado (e suas
conseqüências) viesse assolar as criaturas? Na atividade pastoral, dizer
simplesmente ―foi vontade de Deus‖ nem sempre convence, por exemplo, a
uma mulher que teve sua filha de quatro anos violentada e assassinada
com requintes de crueldade.

Uma questão capaz de auxiliar a prossecução de nosso debate: O


homem de hoje, desde o jovem estudante ao grande estadista, é menos
maldoso que o adam pré-histórico? Tem menos tendência à ruptura? Por
certo que não! Por que não damos chance a Deus fazer o mundo como ele
projetou? Nós nos queixamos do mal, mas geralmente ficamos só no
discurso; fazemos pouco para melhorar as coisas. No entanto, repete-se a
questão crítica: por que Deus não deu outra chance àquele casal, a quem
ele criou e amava tanto? O que importava mais: ser justo ou ser
misericordioso?

As mulheres sentem-se discriminadas desde o Gênesis. E a


discriminação é um dos tantos males de nosso século. Hoje, a Teologia
Feminina tenta descobrir um lugar novo para as mulheres, ao lado dos
homens. Às vezes algumas exageram, querendo colocar-se acima, ou até
além. A esse respeito há um interessante texto, de autoria de duas
teólogas canadenses, que vale a pena ser refletido:
30

É por causa de Eva, se diz, por causa do fruto que ela mordeu, que
somos acusadas de encarnar as seguintes características:
tentadoras, provocantes, sedutoras, curiosas, frívolas, fofoqueiras,
sem cabeça... Impuras, perigosas para a vocação dos homens.
Astutas, com muitas armadilhas preparadas. Fracas, impotentes,
necessitadas de suporte, de sustentáculo, de um homem forte.

É por causa de Eva, que se julga que não se pode confiar em nossas
decisões; que nós somos muito emotivas, não racionais; que
choramos à-toa.
É por causa de Eva que nos fazem responsáveis por todos os males:
quando as crianças têm dificuldades na escola, é porque
trabalhamos fora; se nosso filho não tem autonomia, é porque
somos muito possessivas; se, ao contrário, ele é muito
independente, então somos por demais permissivas; se nosso
marido nos deixa, é porque não soubemos conservá-lo; se ele é
violento, nós o merecemos.

É por causa de Eva que nós estamos ―na retaguarda‖ dos grandes
homens, e não ao lado deles; Ah! Se Eva tivesse deixado Adão dar a
primeira mordida! 18.

Mas, a velha pergunta que assola a humanidade há milênios


continua sem resposta: Por que existe o mal? Deus não criou o mal, isto
se sabe, mesmo assim, por que permite que ele ocorra? O mal cometido
pode ser explicado através da formulação da liberdade. Praticamos o mal
porque somos livres. Podíamos fazer o bem mas preferimos o caminho
errado. É a condução equivocada e degenerada de nossas ações. Agimos
assim ou assado porque somos livres. O ser humano é tão livre que é
capaz de matar seu semelhante, torturar, abortar (só os humanos
abortam!). De tão livre, foi capaz de pendurar um Deus na cruz... Por que
fizeram isto? Porque quiseram; eram livres para fazê-lo! Valeu a pena
possuir essa liberdade?

Às vezes, uma leitura isolada da Bíblia nos leva a entender a coisa


pelo lado errado. Nos cursos bíblicos que assessoro por aí, recomendo
cuidado com relação aos textos pinçados ao acaso. Confundimo-nos
quando lemos que o Senhor Javé diz,

Eu formo a luz e crio as trevas; sou o autor da paz e crio a desgraça;


eu, Javé, faço todas estas coisas (Is 45,7).

Aceitamos como verdade inegável esta afirmação de Deus? É


possível entendê-la como uma verdade absoluta? Com que autoridade se
pode duvidar das Sagradas Escrituras? Aí entra a questão da
hermenêutica. Quando buscar a interpretação, subjacente ao texto, e

18
L. LÉPINE e D. CARON, Nossas irmãs esquecidas, Ed. Paulinas, 1993.
31

quando aceitá-lo integralmente, tal qual foi escrito? Não que se pregue a
―livre interpretação‖, pura e simples da Bíblia, mas quando o leitor, sem
maiores noções de exegese pode discernir, entre o que é, e o que parece
ser?

Algumas pessoas têm usado este versículo do profeta para definir o


caráter de Deus como um ser irado e mau, até sugerindo que o Deus do
Antigo Testamento é mau e vingativo em contraste com Jesus, o bom e
benevolente Deus do Novo Testamento. Tais conclusões contradizem as
claras afirmações da misericórdia de Deus, no Antigo e no Novo
Testamento:

Javé é bondade e retidão, e aponta o caminho aos pecadores (Sl


25,8)

Você não acredita que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As
palavras que eu digo a vocês não as digo por mim mesmo; mas o
Pai, que permanece em mim, É ele que realiza suas obras.
Acreditem em mim: eu estou no Pai, e o Pai está em mim (Jo
14,10s).

Outros tentam usar o mesmo texto de Isaías, visto acima, para


afirmar que Deus é um ser equilibrado, capaz de fazer tanto o bem como o
mal. É a teoria da estética. 19Tal idéia é representada pelos símbolos das
filosofias orientais, onde o "yin-yang", o bem e o mal, a luz e a escuridão, o
masculino e o feminino, vivem em harmonia, harmonia esta que também
ocorre no cosmo e no interior do ser humano. Mas, o Deus verdadeiro não
é um conjunto de forças opostas. Ele é perfeitamente bom, e nele não há
nenhuma maldade:

Deus é luz, e nele não há trevas (1Jo 1,5b).

Nas mesmas águas, surgem outras correntes e sistemas filosófico-


teológicos, em que Deus decreta tudo, e o homem é impotente para resistir
à sua vontade. É o fatalismo, alimentado por uma irracional visão
fundamentalista. Pessoas com estas idéias afirmam que Deus predestinou
cada pessoa para a salvação ou condenação, e que Jesus morreu somente
para salvar as pessoas eleitas pelo capricho de Deus, ou pertencentes a

19
A estética é uma expressão da filosofia (embora empregada pela arte) que retrata um equilíbrio (uma coluna igual à
outra....).Na arquitetura, coloca-se duas colunas, esteticamente dispostas que vão imprimir beleza ao edifício, dando-lhe
um suporte de segurança. Igualmente na contabilidade, o débito igual ao crédito, estabelece a igualdade estética, onde a
coluna da direita se iguala a da esquerda. Na filosofia essa igualdade se manifesta pela razão entre onus et bonus. Na
teologia, há um equilíbrio entre graças e desgraças. O corpo humano é estético: o que tem no lado direito também tem
no esquerdo.
32

esta ou àquela denominação. Esta visão é falsa, à medida que Deus


chama todos à conversão (At 17,30) porque não quer que ninguém pereça
(2Pdr 3,9).

No campo da interpretação, como já foi dito, é preciso não tomar um


texto de forma isolada, como que pinçado ao acaso, É preciso vê-lo dentro
do contexto em que está inserido. O que Deus fez? Outras passagens nos
ajudam. Deus não criou o mal no sentido moral.

Tu não és um Deus que ame a injustiça. O malvado não é teu


hóspede e os arrogantes não se mantêm na tua presença. Odeias
todos os malfeitores (Sl 5, 5s).

Deus não tenta ninguém nem cria armadilhas para a queda da


humanidade. As tentações vêm do maligno e do homem instrumentalizado
por ele. Cada um é tentado por seu próprio desejo. Do ‗Pai das luzes‘ só
vêm graças e dons (cf. Tg 1, 13-17).

 em Isaías 45,7 vem de uma


palavra original que, no hebraico pode ter vários sentidos. Neste contexto
e em outros onde Deus faz ou traz o mal, a palavra significa ―calamidade‖
e ―punição‖. Funciona como o oposto de paz. No contexto mais amplo teria
o sentido de mal mesmo, oriundo de ―maldade,   (kakah), que os
LXX traduziram por  simphoras (grego) e desgratia
(latim).

Dentro dessa idéia de calamidade punitiva, Deus usou Ciro, rei da


Pérsia, para ―abater as nações‖ (45,1). Um pagão instrumentalizado por
Deus, como um vingador, alguém para fustigar e depois libertar Israel. Em
45,8, Deus promete salvação (paz) e justiça (punição ou mal). Outros
trechos usam a mesma linguagem de dupla face: ora o bem, ora o mal. Os
males que Deus ameaçou trazer em 2Rs 22,16 foram punições e
calamidades (cf. Js 23,15, onde aparece a mesma palavra no original).

Jesus, através de sua incrível clarividência, enxergou o mal


assolando a humanidade por todos os tempos. Por este motivo ele
prometeu estar conosco ―todos os dias, até a consumação‖ (cf. Mt 28,20).
Por enxergar a criação cercada de mal, ele proclama como bem-
aventurados todos aqueles que sofrem essas agruras. Assim, serão felizes
os que sofrem a pobreza, a exclusão e a injustiça, porque ―deles é o Reino
dos céus‖ (cf. Mt 5, 3.10.7); os aflitos serão consolados (v. 4); os mansos,
que sofrem sem revidar, possuirão a terra (v. 5); os que têm o coração
puro e não se deixam contaminar pelo mal, verão a Deus (v. 8); os que
respondem com a paz sobre a violência serão chamados de ―filhos de
Deus‖ (v. 9). Na mesma perspectiva, Jesus alcança com a bem-
aventurança os perseguidos, injuriados e caluniados. Enfim, todos os que
sofrem os efeitos do mal (vv. 10ss). A Bíblia está cheia de indicativos a
33

respeito do mal no/do mundo. Vamos nos ater aqui a alguns tópicos do
NT:

1. As obras do mal ( dos instintos egoístas/da carne);


fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio,
discórdia, ciúme, ira, rivalidade, divisão, sectarismo, inveja,
bebedeiras, orgias e coisas semelhantes (Gl 5,5);

2. As obras das trevas:


imoralidade, impureza, avareza e idolatria (Ef 5,5);

3. As obras do mundo:
impureza, paixão, idolatria, maus desejos e cobiça (Cl 3,5);

4. As paixões sancionadas pela lei contra:


os iníquos, rebeldes, ímpios, parricidas, matricidas, impudicos,
pederastas, mercadores de escravos, mentirosos, os que juram
falso e se opõem à sã doutrina, (1Tm 1,9s).

5. Não entrarão no Reino:


infiéis, feiticeiros, imorais, assassinos, idólatras, e todos os que
amam ou praticam a mentira (Ap 22,15).

Como vimos, a Bíblia enfeixa seu conceito de mal, quase que


exclusivamente nas transgressões de comportamento, os pecados. A Igreja
tem ensinado, secularmente, que as dores e os sofrimentos dos cristãos
nesta vida tornam-se, assim, prazer e glória na vida eterna, e que o mal (o
pecado) pode ser vencido pela adesão a Jesus. São Paulo liga o mal físico
(morte) com o mal moral (pecado):

Assim como o pecado entrou no mundo através de um só homem


(Adão) e com o pecado veio a morte, assim também a morte atingiu
todos os homens, porque todos pecaram (Rm 5, 12).

Através do pecado de Adão (isto é, o pecado original), todos nós


pecamos e sofremos a morte; entretanto, Deus é misericordioso e o
Cristianismo aponta o caminho da esperança:

Pois assim como a morte veio por um homem, também a


ressurreição dos mortos veio por um homem. Pois assim como todos
morrem em Adão, assim todos serão vivificados em Cristo" (1Cor
15,21-22).

A morte de Cristo na Cruz preencheu aquele vazio aberto pelo mal,


causado pelo pecado da desobediência original. Mesmo sofrendo dor e
morte pelos pecados da humanidade, Jesus – que não possui pecado –
aceitou, como homem, experimentar a dor e a morte na cruz para nos
34

salvar. Amar envolve sacrifício e Cristo deixou um exemplo para nós:

Embora [Jesus] sendo Filho, aprendeu a obediência por meio


daquilo que sofreu e, tendo sido ele aperfeiçoado, veio a ser o autor
da eterna salvação para todos os que lhe obedecem (Hb 5,8-9).

Se alguém quiser vir após mim, negue a si mesmo, tome a sua cruz
e me siga" (Mc 8,34; 1Pd 2,20-21; Fl 1,29).

...tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para
comparar com a glória que em nós há de ser revelada (Rm 8,16-18)

A Igreja, há vinte séculos vem ensinando, pelas Sagradas Escrituras,


através de seu Magistério ordenado, pela produção de seus teólogos e
também pelos sinais dos tempos, que no sofrimento, o homem
compartilha do sofrimento de Cristo (Cl 1,24) e no céu compartilhará da
sua glória (1Pd 4,19).

4. As características do mal

Numa formulação a respeito do problema do mal, atribuída ao


filósofo grego Epicuro, conforme veremos mais detidamente adiante,
vemos que ele escreveu que,

Ou Deus pode impedir o mal e não o faz (e, com isso, não é bom),
ou então quer impedir o mal e não consegue (e, portanto, não é
Todo-Poderoso).

O problema do mal tem sido uma preocupação central dos filósofos


e de todas as grandes religiões. Em fins do século IV, Santo Agostinho
sugeriu que o mal, que não foi criado por Deus, é a privação ou ausência
do bem, filosofia que teve grande influência entre os pensadores cristãos
posteriores. No século XVII, G. W. Leibniz († 1716) afirmou que o poder de
criação de Deus se limitava a mundos logicamente possíveis e que o mal é
uma parte necessária do ―melhor de todos os mundos possíveis‖.

Curiosamente – há quem classifique como ―tragicamente‖ – lê-se nas


obras clássicas, máxime Santo Agostinho, que a morte vai nos livrar da
influência do mal. Ao que tudo indica, o triunfo do bem só vai ocorrer na
dimensão da escatologia. E os sessenta ou oitenta anos da vida terrena?
Fica tudo restrito a um ―vale de lágrimas‖? Os escritos cristãos, desde o
período medieval parecem assestar sua argumentação no sentido de que,
de todo o mal Deus faz brotar um bem maior. Nessa linha de
argumentação, devemos considerar o exemplo bíblico de José, no Antigo
Testamento.
35

Na narrativa, o filho preferido de Jacó foi vendido como escravo


pelos seus irmãos. Embora eles quisessem o mal dele – tinham inveja de
sua inteligência e sua influência junto ao patriarca –, as coisas se
encaminharam para um desfecho melhor possível. O mal estaria no
mundo, parcialmente, porque nós damos lugar a ele.

Em cima disto, os defensores dessas teorias, fazem outra pergunta


(e eles mesmos respondem): ―Poderia Deus fazer-nos perfeitos e ainda
assim sermos pecadores?‖ Ele já fez isso! Ele fez um anjo perfeito, Lúcifer,
mas ele pecou. Ele fez um homem perfeito, Adão, mas ele pecou. Ele fez
uma mulher perfeita, Eva, mas ela pecou. Todos provocaram uma ruptura
em sua amizade com o Criador. Deus sabe o que está fazendo. Ele nos fez
desta maneira com um propósito. Nós podemos não compreender
perfeitamente este propósito, mas ele pode. Instaura-se pois o mistério:
para viver (e a vida humana é atormentada pelo mal) é preciso ter fé?

Nesse aspecto, a fé cristã – parece-nos – é meio estóica, uma vez que


imprime à questão um desfecho inédito, no qual o mal não é problema a
solucionar antes de crer em Deus. Mesmo assim, mesmo sem ser
explicado – pelo menos em suas origens e causas – o mal converte-se em
um mistério a ser vivido através da fé. Para Ruiz de La Peña, o cristão
precisa enfrentar o mal orientado em dois eixos:

 crer a partir da experiência do mal é crer a partir da esperança


numa vitória sobre o mal;
 crer a partir da experiência do mal é alinhar-se contra o mal
experimentado 20.

O mal é uma das questões clássicas da moral e filosofia da religião.


Ao longo da tradição teológica e metafísica ocidental distinguiram-se três
formas de mal:

 Físico (malum physicum)


o sofrimento, dor, doença, violência e tristeza;
 Moral (malum morale)
o pecado, a imoralidade que fazemos e fazem contra nós;
 Metafísico (malum metaphysicum)
a finitude humana, tanto temporal (mortalidade) quanto cognitiva
(ignorância) quanto no tocante fatores externos (o mal
sobrenatural).

Vamos ver, no decorrer destas explanações, que alguns autores,


falam em apenas dois tipos (mal físico e mal moral), que causa alguma
confusão entre leitores e pesquisadores. Pois bem, por uma questão de
nomenclatura, a partir de agora, para facilitar nosso trabalho, vamos
uniformizar o estudo do mal, sob as três características: físico, moral e

20
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teologia da Criação, Ed. Loyola, 1989.
36

metafísico. É uma divisão insuficiente, eminentemente acadêmica, mas


que é capaz de ser melhor compreendida em nosso raciocínio ora
proposto.

Para outros filósofos modernos, a ignorância (que também


poderíamos chamar de mal epistemológico) não é, todavia, hoje tratada sob
título de mal, assim como a finitude humana também não é tida como
sendo realmente um mal. Ao contrário, a doutrina ética do filósofo Platão
(† 347) apontava a virtude como fonte de todo bem. Logo, o mal era fruto
da ignorância.

Para iluminar o tópico que trata das ―características do mal‖, há que


se buscar algumas formas, às quais chamaríamos de ―visões‖, umas
racionais outras nem tanto, que tentam explicar a ocorrência do bem e do
mal:

1. visão filosófica
o bem é ser-em-si; o mal é não-ser, logo, não existe;

2. visão pragmática
há males que vêm para o bem;

3. visão teleológica
Deus não quer o mal; apenas permite que ele aconteça, para
tirar dessa situação um bem maior: afinal, repetindo são Paulo,
tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus; no fim
tudo se ajeita;

4. visão simplista
o mal acontece pelo mau uso, por parte do homem, da liberdade;

5. visão fundamentalista
Deus sabe o que faz;

6. visão fatalista
tinha que acontecer; estava escrito; ―era o destino!‖.

Sobre a questão do mal, há que se buscar sempre a opinião dos


especialistas. No contexto das teorias do professor Sanford, um pastor
episcopal norte-americano, analista junguiano e teólogo (especialista em
―visões sobre o mal‖), encontramos referências ao mal natural e ao mal
moral:

 mal natural
calamidades da natureza, inclusive as doenças corporais;

 mal moral
37

motivações negativas, oriundas do coração do ser humano 21.

É interessante a idéia de Stanford. Mesmo omitindo o mal metafísico


(as teologias de corte britânico são resistentes às idéias de fatores
sobrenaturais, Diabo, espíritos maus, etc.), ele introduz uma idéia nova,
onde o que é mal para a vítima devorada pelo leão, é bem para a fera, que
assim mata sua fome. A prisão é um mal para o detento, mas é vista como
causa boa para a sociedade que puniu e viu-se teoricamente livre do
criminoso 22. Ele propõe, na obra aludida, buscar-se enxergar o mal por
outro lado.

Isto evidencia, que, pelo lado que se enxergar o mal, ele pode ser
bom para alguém, algum propósito ou alguma coisa. É como o caso de
uma catástrofe: muita gente morre – o que é mal sem precedentes – mas
alguém ganha com isto, nem que seja o agente funerário e a mídia que
vende os jornais e detém audiência. Para alguns, a despeito da tragédia, o
mal se converte em bem. O pior é quando tentamos identificar culpados:
pessoas, situações, entidades.

As vezes, tentar ―resolver‖ o problema do mal ou ―justificar‖ um


Deus no banco dos réus, gera uma atitude de ―escândalo‖ maior que
do que o próprio mal 23.

A arte mitológica do Oriente Médio, observada, entre outros sítios,


na Porta de Ištar (local histórico de Bagdá)24 representa o bem e o mal
como duas serpentes, enrodilhadas, que se cruzam, se misturam e se
interpenetram, uma tentando devorar a outra. Na dialética que contempla
o confronto entre o bem e o mal, nem sempre é possível identificar
contornos, princípios ou conseqüências.

Aliás, em se tratando dessa dialética do bem e do mal, há uma


história interessante, verídica ou não, inserta na vida do famoso pintor
Leonardo da Vinci († 1519). Contam que o consagrado artista estava
procurando homens, mais ou menos jovens, para servirem de modelos
para Jesus e Judas para uma de suas obras-primas, A última ceia
(1495/1497), um mural para o refeitório do mosteiro de Santa Maria delle
Grazie. Nesta busca, ele encontrou, num coral de igreja, um rapaz, de
seus trinta anos, de fisionomia alegre e serena, e convidou-o para posar. O
jovem aquiesceu e seu rosto foi retratado no contexto da tela, como Jesus
Cristo. Estava perfeita a imagem do Redentor, pintada.

21
J. A. SANFORD, O mal... op. cit.
22
Idem
23
J. P. JOSSUA. Verbete mal. In: Dicionário de Teologia. Ed. Paulus, 1997.
24
A “porta de Ištar”, uma maravilha arquitetônica do Oriente Médio, foi praticamente destruída pelos bombardeios
norte-americanos a Bagdá em 2004.
38

Para achar alguém que se parecesse com a imagem que o artista


concebera de Judas foi mais difícil. Por conta disto, a obra esteve parada
por três anos. Um dia, andando na rua, Leonardo viu um homem vestido
de farrapos, caído em uma sarjeta. E ainda por cima, bêbado. Tratava-se
de uma pessoa prematuramente envelhecida, face amargurada, com olhos
duros e frios. O artista viu em seu rosto as marcas da impiedade, do
egoísmo e do pecado. Convidou-o a posar e o mendigo aceitou. Quando
terminou a sessão, já mais sóbrio, o homem disse: ―Eu já vi este quadro
antes?‖. Da Vinci perguntou: ―Viu quando, se ele nunca saiu daqui?‖. O
jovem baixou a cabeça e com voz trêmula respondeu: ―Há três anos
atrás... antes de perder tudo o que eu tinha, eu posei para a face de
Jesus!‖.

Isto mostra que o bem e o mal podem ter a mesma face; tudo
depende da época em que cruzam o caminho do ser humano.

...se o bem e o mal existem, é preciso saber viver... (R. Carlos)

Olhando as catástrofes e tragédias do cotidiano de nosso mundo,


quando tanta gente morre – especialmente crianças – outros sofrem
mutilações no corpo e na alma, e tantos perdem seus haveres, suas
esperanças e um sentido mais claro para suas vidas, ficamos nos
perguntando: porque há tanto sofrimento? por que algumas pessoas
sofrem tanto? Será que as vítimas merecem, indistintamente, sofrer tantos
males?

Falando em catástrofes, teríamos que mencionar o terremoto de


1556, na cidade chinesa de Shaanji, que matou 800 mil pessoas (foi o
maior da história da humanidade), e o recente (dezembro de 2004), no
Sudeste Asiático, que matou cerca de 300 mil pessoas. A questão do mal
inflete para o sofrimento dos inocentes, crianças, turistas, trabalhadores.
Sabe-se que um evento assim é provocado pela natureza, movimentação
das placas tectônicas, que geram terremotos e maremotos. Isto tem
explicação. O que fica difícil de justificar é, mais uma vez, o sofrimento do
inocente. Enquanto escrevo estas páginas, há notícias do furacão Katrina,
que devastou o sul dos Estados Unidos (a cidade de New Orleans levará
dez anos para voltar a ser a mesma), com perdas significativas de vidas,
propriedades e economia em geral. Seria preciso que tanta gente
morresse, sem ter a mínima culpa? O mal físico (a natureza em fúria) é
imprevisível.

No terreno do mal natural, os fenômenos da natureza têm sua


explicação no tempo, quente, frio, frentes de instabilidade, choques
térmicos, etc. Explicação técnica existe. Mas, se temos uma Providência,
para a qual nem a queda de um fio de cabelo de nossa cabeça escapa, por
que é permitido ocorrer o fenômeno, se vai acarretar tanto sofrimento? E
as orações do povo, que clama ―livrai-nos do mal...‖, não são ouvidas
nestes casos?
39

O papel principal da compreensão do mal natural é tornar possível


aos seres humanos ter o tipo de escolha que a defesa do livre
arbítrio enaltece, assim como oferecer às pessoas, tipos de escolhas
particularmente valiosas. Um mal natural específico, tal como a dor
física oferece uma escolha à sua vítima – pode suportá-la com
paciência ou lamentar a sua sorte. Os seus amigos podem escolher
entre mostrar compaixão e ser indiferentes. As ações boas ou más
que realizamos face ao mal natural fornecem, elas próprias, a
oportunidade para outras escolhas de posturas boas ou más
relativamente às primeiras ações.. 25

Muita gente sugere que a ocorrência do mal é capaz de fornecer


oportunidades adequadas para a sociedade praticar grandes ações
(solidariedade, envio de remédios, água, comida, material de construção)
para remediar/minimizar os processos do desastre. Os males naturais –
em geral ocorridos com os outros – criam oportunidades para fazermos
várias escolhas entre o bem e o mal e a ocasião de desempenhar ações de
tipos particularmente valiosos e solidários. Mas será que o mal acontece
apenas para provocar a nossa solidariedade? São questões que
pretendemos costurar, no decorrer deste trabalho.

Antes de passarmos ao estudo do pessimismo de Voltaire, que,


diante de um ―mal natural‖ derramou sua indignação através de uma
obra literária que alcançou repercussão mundial, é interessante
buscarmos outras opiniões, como a visão protestante. É sempre bom
compulsá-la, avaliando sua forma de colocar o problema e estabelecer
pistas para encarar o fato.

O problema do mal foi o rochedo contra o qual debalde se bateu a


filosofia grega, como qualquer outra filosofia, visto ser o mal um problema
racionalmente insolúvel. Que coisa é, pois, precisamente este mal, que
tem o poder de tornar teoricamente inexplicável a realidade, e
praticamente dolorosa a vida humana? Não é, por certo, o mal assim
chamado metafísico, a saber, a necessária limitação de todo ser criado:
porquanto esta limitação nada tira à perfeição dos vários seres a eles
devida por natureza, mas apenas aquela plenitude do ser, que pertence
unicamente a Deus, rigorosamente, isto é, teisticamente concebido como
transcendente e criador, pois esse gênero de mal, no teísmo, é plenamente
explicável.

Não resta, então, senão o mal, o chamado físico e moral, porquanto é


limitação da natureza, verdadeira imperfeição de um determinado ser. O
mal, físico e moral, é um problema, precisamente se se considerar a
natureza específica do homem, a qual é a natureza do animal racional, o
que não significa certamente lhe pertença a racionalidade pura, devida ao
puro espírito; mas certamente exige a subordinação do sensível ao

25
R. SWINBURNE, Is there a God?, Oxford University Press, 1996
40

inteligível, do material ao espiritual. Isto significa exigir que os sentidos


sejam instrumentos do intelecto e o instinto seja instrumento da vontade,
naquele característico processo que é o conhecimento e a operação
humana; exige que o corpo humano e a natureza em geral sejam
submetidos às imposições do espírito, como deveria ser em uma
hierarquia racional dos valores.

Ora, considerando-se, sem preconceitos, o indivíduo e a


humanidade, a psicologia e a história, as coisas serão bem diferentes.
Com efeito, demais vezes o sentido - do qual o conhecimento deve no
entanto partir - sobrepuja o intelecto. E bem poucos homens e só com
muitas dificuldades e não sem graves erros, chegam ao conhecimento
daquelas verdades racionais - Deus, a alma, etc. - que são, entretanto,
indispensáveis para uma solução humana do problema da vida. E, mais
freqüentemente ainda, o instinto assenhoreia-se da vontade, e a maioria
dos homens viveu e vive cegamente, contra as exigências da própria
natureza racional, mesmo quando a verdade é conhecida pelo intelecto.
Este é o mal moral, espiritual (também chamado de pecado), que domina o
mundo humano.

Pelo que diz respeito ao mal físico, a coisa é ainda mais patente:
basta lembrar o sofrimento e a morte. Com isto, naturalmente, não se
quer dizer que a impassibilidade e a imortalidade sejam uma exigência da
natureza humana, como tal, mas unicamente se quer frisar que a dor e a
morte - bem como a ignorância e a concupiscência - em sua atual
intensidade, se evidenciam como um estado i-natural com respeito ao
nosso ser espiritual e racional. É antiga e famosa a objeção: de que modo
concordar a absoluta sabedoria e poder de Deus com todo o mal que há
no mundo, por ele criado? 26

5. A visão pessimista de Voltaire

Se há uma coisa que é capaz de colocar em dúvida tudo o que a


Teologia ensina é a questão do mal. A história está cheia de relatos a
respeito de pessoas cuja fé, tida como ―inabalável‖ vacilou (e até
sucumbiu) diante do tormento da dor, do sofrimento injusto e da morte.
Todas as conceituações que a Teodicéia consagra, a respeito da justiça,
bondade e misericórdia de Deus, parecem esboroar-se diante da tragédia
do mal. Por que o ser humano, criatura de Deus, sente a tentação da
ambição, da inveja, da violência? Será que Deus é responsável por tudo
isso? Se o Criador é ato-puro, amor e perdão, por que este mundo, por ele
criado, é tão duro, triste, ilógico e às vezes tão trágico? No início do
Gênesis já tinha ficado claro que tudo o que Deus criou era muito bom.
Então por que existe o mal?

26
L. BINSFELD, Über das Misslingen aller philosophischen Versuche in der Theodizee, Hamburg, 1995.
41

O filósofo François-Marie Arouet, chamado Voltaire († 1778) viu o


mal no mundo através do inverso das opiniões vigentes, em geral
religiosas. Seu trabalho Candide (Cândido) é uma das obras mais
conhecidas, insertas nos clássicos da literatura mundial, e que mais
controvérsia tem gerado. Não se sabe se o autor, um ateu confesso, titulou
o livro com um nome próprio, ou tratava-se de um indivíduo candide,
cândido, puro, ingênuo.

No mês de novembro de 1755, era feriado, dia da festa de ―todos os


santos‖, a cosmopolita cidade de Lisboa foi sacudida por um terrível
terremoto, cuja violência praticamente destruiu toda a cidade, deixando
consternada toda a Europa. Sobre esse incidente, o poeta alemão J. W.
Goethe († 1832) indagou em uma de suas obras:

Porventura em algum tempo o demônio do terror espalhou por toda


a terra, com tamanha força e rapidez, o arrepio do medo? 27.

A origem desse mal, que não pode ser determinada pelo povo
daquele tempo, iria, mais tarde, influenciar definitivamente o pensamento
de Voltaire. Ele tomou conhecimento da tragédia alguns dias depois,
quando teria escrita o poema ―Sobre o Desastre de Lisboa‖, onde, em um
trecho, ele afirma: ―Um dia tudo estará bem, eis nossa esperança. Tudo
está bem hoje, eis nossa ilusão‖.

Como incidente geológico, se as causas do terremoto não eram


totalmente conhecidas, pelo menos eram suspeitadas. Contudo,
para o filósofo francês, não foi nem o mistério, nem a dimensão do
sismo que, para ele, tornou o evento singular 28.
Usando sua capacidade de filósofo e ensaísta, Voltaire
transformaria, com grande criatividade, a catástrofe em um evento
notável, de múltiplas facetas, ao utilizá-lo como exemplo para criticar o
paradigma do ―otimismo filosófico‖ e a doutrina cristã da Providência
Divina. Voltaire era agnóstico e manifesta isto em seus trabalhos.

E foi através do terremoto de Lisboa, que a concepção leibniziana do


―melhor dos mundos‖ seria rechaçada pelo pensamento de Voltaire, que
julgava ser corroborado por aqueles que presenciaram o desastre. Se tudo
está bem, qual é o significado da tragédia? Se o mundo está em ordem,
nada garante que a ordem se faça para o bem-estar do homem. Qual a
razão do mal que vitimou tanta gente?

27
In: Werther. Frankfurt, 1774
28
Texto do filósofo brasileiro, prof. Marcelo Xavier, respigado na Internet, in www.rabisco.com.br
42

Como no exemplo bíblico de Sodoma e Gomorra, muitos diriam que


Deus castigou a cidade, e a desgraça foi o preço pago por sua luxúria.
Mas, e quanto aos inocentes? Ou, por outra, por que Lisboa e não Paris,
Roma ou Londres? Se Deus não poderia ter feito um mundo diferente,
inclusive melhor – eis a questão – como poderíamos restringir seu poder, a
ponto de questionar se ele não poderia ter concebido sua criação de outra
maneira? Se é Deus quem está por trás de tudo e ele é bom e justo, então
qual é a finalidade do sofrimento humano?

Recai-se na questão original: se Deus é bom, então por que existe o


mal? Se o mundo é um vale de lágrimas, então o universo contradiz o
otimismo: como compreender a lição de um Deus bondoso que permite a
existência do mal? Nessa argumentação, Voltaire cita Epicuro em sua
exortação a Lisboa ao concluir que ou Deus quer impedir o mal e não
pode, ou pode e não quer, ou nem quer e nem pode. Mas, se quer e não
pode, não é Deus; se pode e não quer, não é bom, o que é contrário a
Deus. Por fim, se quer e pode, o que é a única coisa compatível com a
divindade, ―qual é a origem de todos os males?‖, pergunta Voltaire,
fazendo coro ao pensador grego.

Voltaire admitia a idéia de uma ordem geral no mundo, mas


percebeu que Leibniz não respondeu a Epicuro, e que a maioria das
questões sobre o mal – especialmente o sofrido pelo inocente – ficava sem
resposta. Ele sabia que qualquer explicação científica para quaisquer
eventos funestos como desordens naturais não deixava de ser apenas uma
face do mal e do sofrimento. Segundo ele, o mal era a razão corrompida.

A teoria providencialista e a ciência explicam o incidente em Lisboa,


mas não o demovem da idéia de que o terremoto é um exemplo da ruptura
da razão, um exemplo de como o ser humano é frágil e vive num lugar
onde tudo pode acontecer, sem que possamos fazer nada. Ele usa uma
figura alegórica que ficou célebre: desordenado, o mundo mais parece um
relógio maluco, que não pode sequer ser compreendido pelo homem.

Pois foi a partir desse pensamento que Voltaire concebeu ―Candide‖


(em português, Cândido) uma de suas obras mais significativas. Na
história de Cândido ou ―O Otimismo‖, a alegoria é apenas um pretexto
para a sua investigação filosófica. O nome Candide, conforme já vimos,
tanto pode ser um nome próprio, como alusão a alguém cândido, ingênuo.
Por trás de eventos e personagens, o filósofo diz que afirmar que Deus tem
um plano-mestre para o mundo, além de ser uma idéia absurda, nos faz
cair em contradições se analisarmos sobre a questão do mal. A menção
―otimismo‖ que aparece no subtítulo da obra, é uma ironia, uma vez que é
o pessimismo do autor que perpassa todo o livro.

No romance, Cândido é um jovem criado por Pangloss, seu


preceptor, que lhe fornece uma visão otimista de que todos vivem no
melhor dos mundos. Um dia, eles são expulsos do castelo onde viviam, e
passam por terríveis atribulações - entre elas, Cândido presencia a
43

destruição de Lisboa. De fracasso em fracasso, o protagonista passa a


desacreditar na tese de Pangloss, uma espécie de representação alegórica
da teodicéia de Leibniz. Falaremos mais em teodicéia e Leibniz do próximo
capítulo.

No final, o jovem Cândido conclui – e esta é a convicção pessimista


de Voltaire – que, onde quer que esteja, o mal está por toda a parte. A
solução é ―cultivar o jardim‖ e trabalhar a fim de suportar todos os
revezes, de forma a tornar a existência um pouco mais suportável.
Ceticismo? Não de todo, pelo menos no sentido original. O ceticismo
clássico não acreditaria na razão e na ciência. Na verdade, Voltaire
inventaria ali o ―filósofo ignorante‖. Porém, essa ignorância seria o
reconhecimento dos limites da razão humana em debater-se sem jamais
encontrar uma resposta satisfatória. Ao filosofar sobre o mal em Cândido,
por exemplo, ele conclui que é melhor trabalhar a terra, o que não seria
uma forma de resignação, mas o reconhecimento da impotência, de sua
―ignorância‖ diante de um exagerado otimismo. Isso leva-o a acreditar, de
uma forma ―cândida‖, que o mundo não seria tão mau quanto parece.
Mais do que cético, parece-nos estóico.

De acordo com Maria das Graças do Nascimento29, em Cândido


existem três alternativas para se responder ao problema do mal. A
primeira reside no pensamento mágico de Pangloss, onde os males são
necessários em favor do bem maior, tese contestada pelo conto. ―Se tudo
foi feito por Deus tendo em vista um fim, esse fim é, necessariamente o
melhor‖, diz. A segunda aparece na boca de Martinho, companheiro de
Cândido. Para ele, tudo no mundo é regido por dois princípios, o bem e o
mal, sendo que o segundo se sobrepõe sempre ao primeiro, ou recalcando
qualquer bem incluso no curso dos acontecimentos. A última alternativa,
por sua vez, é apresentada por um religioso muçulmano. Cândido e
Pangloss perguntam a ele o motivo de existir tanto mal sobre a terra. O
homem responde: ―por que vocês se preocupam tanto com isso?‖.

Cândido (ele funciona como o ―outro eu‖ de Voltaire) não aceita o


otimismo de Pangloss, rejeita o maniqueísmo de Martinho e não aceita de
todo o fatalismo do fanático muçulmano. No final das contas, permanece o
impasse, que desnuda todas as teses mas não responde nada sobre elas,
apenas convidando o leitor a cultivar seu jardim. Fica claro que o filósofo
não quer evitar essa questão: ele a sustentou, e sustenta, ao apresentá-la
na alegoria.

Portanto, a posição de Voltaire em relação às velhas questões


metafísicas de manter-se na recusa de procurar respostas
definitivas não se deve apenas à sua aceitação dos limites da razão
humana para elucidar essas questões30

29
In: Voltaire: A Razão Militante. Ed. Moderna, 1993
30
Idem
44

A Europa e toda a Cristandade viveram uma grande crise com o


terremoto que devastou Lisboa, fazendo mais de 20.000 vítimas. Depois do
terremoto veio a ressaca do mar trazendo consigo a morte, e depois desta,
o fogo, a peste, a fome e os saques. Qual a visão dos nefastos ―quatro
cavaleiros‖ do Apocalipse, de repente, o cataclismo, qual um ataque
demoníaco, a cidade foi destruída. A tragédia foi inesperada. Tudo estava
bem, de repente ocorreu a catástrofe. Era ―dia de todos os santos‖...

Depois da tragédia, o povo lisboeta, tão afeito às coisas da religião


sentiu-se vítima da vingança de Deus, como, quem sabe, os habitantes de
Sodoma. No restante da Europa, a destruição súbita de uma cidade
inteira causou profundo abalo nas crenças otimistas geradas pela filosofia
de Leibniz, segundo a qual vivíamos "no melhor dos mundos possíveis",
amplamente satirizada por Voltaire, um ateu, que em seu romance
―Candide‖, além da ficção da obra, também dedicou trechos aos
devastadores efeitos do terremoto. Não apenas ao fenômeno, em si, mas
com relações às especulações religiosas que ele suscitou.

O texto do escritor-filósofo visa contrapor a ingenuidade do


personagem com a esperteza de seus conterrâneos, opondo
desprendimento e ganância, caridade e egoísmo, delicadeza e violência,
amor e ódio. Tudo isso mesclado com discussões filosóficas sobre causas e
efeitos, razão suficiente, ética, tendo como pano-de-fundo, a eterna luta
entre o bem e o mal.

Fiel ao estilo francês, Voltaire expõe suas concepções com fina


ironia, bordando tudo com uma fina crítica às instituições de sua época. O
romance, na maioria dos seus parágrafos, caracteriza-se como uma sátira
às idéias de Leibniz, que afirmara, pelo menos assim o entendeu Voltaire,
que este mundo é o melhor possível, que Deus não poderia ter construído
outro melhor, e que tudo corria às mil maravilhas. Os elementos de sua
teodicéia, baseada em Santo Agostinho, perdura até hoje.
Para Voltaire, diante das circunstâncias, era impossível
compartilhar com a idéia otimista, pois sua visão estava focada em prisões
e perseguições, a tal ponto que, por volta de 1753, ele já não podia fixar-
se, sem risco, em lugar algum da Europa. Nesse mundo atormentado, o
personagem Cândido, como tantas pessoas daquele tempo, foi expulso de
onde morava.

Preso e torturado, ele perdeu sua amada Cunegundes, e seus


melhores amigos. Em todos esses eventos ocorreram fatos
constrangedores, com requintes de crueldade. Mas a cada um desses
fatos, Cândido meditava sobre como explicar o melhor dos mundos
possíveis, sempre com um deboche mais ou menos sutil.

Como é peculiar a todos os seus trabalhos, a obra de Voltaire


também criticou frontalmente os costumes, a cultura, a religião e as artes
de seu tempo. Embora haja escassas referências ao fato, a obra questiona
45

a criação do melhor dos mundos possíveis na perspectiva do recém


ocorrido ―terremoto de Lisboa‖, onde milhares de pessoas perderam a vida.
O livro enfoca fatos desse jaez, perquirindo o porquê da morte do inocente.
46

II

Mal: problema, mito ou


realidade?

Procurem o bem e não o mal; então vocês viverão. Quem sabe, assim –
como vocês dizem – Javé, Deus dos exércitos, estará com vocês. Odeiem o
mal e amem o bem; restabeleçam o direito no tribunal. Quem sabe, assim,
Javé, Deus dos exércitos, terá misericórdia do resto de José (Am 5, 14s).
47
48

1. O “problema” do mal

Sob o aspecto terminológico, o que melhor se aplica à relação com o


mal: problema ou questão? Ao contrário de muitos autores, eu não gosto
de falar em problema do mal, pois sendo problema, o mal deveria ter
solução. E como, em muitos casos, a solução não existe, ele deixa de ser
problema para tornar-se uma questão. Mesmo assim, questão, também
não é um termo adequado. É um breve hiato filosófico para nos ajudar na
avaliação desse tropeço ontológico. Dentro dessa dramática realidade, o
homem se descobriu como um ser de extraordinária complexidade, cuja
compreensão exigiria a consideração de uma intrincada série de aspectos,
instâncias e circunstâncias até então ignorados pelos estudiosos.

Com esses novos dados, ao mesmo tempo em que se tomava


consciência das imensas dificuldades enfrentadas pelas religiões e pela
filosofia na explicação da existência do mal, mais amplos horizontes se
abriam para a sua investigação, o que deveria resultar, num segundo
passo, em maior aprofundamento do conhecimento do próprio mundo e do
homem.

Os especialistas enquadram o mal em três versões (embora possam


existir outras): o mal físico, o moral e o metafísico. Vamos analisar esses,
para uma compreensão do mal (pelo menos até onde é possível). Esse trio
conceitual vai acompanhar todo o nosso estudo.

Primeiro, o mal físico, ou natural. Ele pode atingir nosso corpo ou


nosso espírito. No tocante à parte somática (sôma é corpo), podemos
identificar a dor física, o mau funcionamento de órgãos e sistemas, a
fraqueza, o mal-estar, a perda do apetite, o desânimo, etc. O mal do corpo
pode resultar em um mal psíquico (psyque é espírito).

O espírito combalido sofre a depressão, o pessimismo e o mau


humor, que podem levar à indiferença e à perda da auto-estima que, por
sua vez, é capaz de acarretar problemas mais graves, falta de um sentido
de vida, desespero e até o suicídio. O mal físico é proveniente de doenças,
descuidos com a saúde, acidentes, violência ou problemas mentais. Em
sua maioria, esses males – exceto a morte – podem ser eliminados ou
corrigidos pela medicina, remédios, tratamentos psicossomáticos, terapias
psicológicas, fisioterapia, etc.

Mesmo sendo o tipo mais fácil de identificar, surge a pergunta: por


que sofremos o mal físico? As respostas são várias: ―culpa‖ nossa
(imprudência quanto à saúde e à segurança); violência dos outros (aí já
entra no mal moral); fenômenos da natureza; acidentes imprevisíveis;
fragilidade da matéria humana; doenças, contágios e epidemias, etc.
49

Que não se invoque para a ocorrência do mal físico o azar, a má-


sorte ou o destino. Esses fatalismos, do tipo ―estava escrito‖ não se
prestam às realidades humanas, muito menos aos modelos espirituais
cristãos que costumamos adotar. O mal físico acontece; o moral é
provocado por uma má ação (pecado); o metafísico tem causas mais
complexas.

Em segundo lugar, temos o mal moral, que é o pecado, no aspecto


religioso e o mau comportamento (crise da ética) no aspecto psicológico. O
mal moral (pecado) é multidimensional, pois é um ato cometido por pessoa
ou grupo, contra Deus, contra o outro (singular e plural), contra si-mesmo
e contra a natureza (crimes ambientais e contra a ecologia). O mal moral
(pecado) sempre resulta em mal físico contra alguém. A palavra pecado
tem o sentido de quebra, ruptura (hamartia, no grego), afastamento
(sünde, no alemão), desvio (hat‟at, no hebraico) e delito (peccatum, no
latim). O pecado é uma ação negativa: como um mal-feito ou um bem não-
feito (que se converte em mal). O mal cometido contra o(s) outro(s), ou
contra si-mesmo, pode vir caracterizado

a) pela violência
 maldade, assassinatos, crimes, terrorismo, seqüestro,
torturas, roubo, corrupção, crimes sexuais, etc.;

b) pela irresponsabilidade
 imperícia, imprudência e/ou negligência;
 erro técnico: sentença mal formulada; cirurgia ou diagnóstico
mal realizado; projeto incorreto e o prédio caiu; barco
superlotado, ônibus escolar ou estrada sem condições,
provocaram acidentes com mortes; etc.

c) pela omissão
 omitir-se diante do mal praticado: nas ditaduras e nos
genocídios, muitos ―cidadãos de bem‖ se escusaram: não vou
denunciar para não me incomodar;

d) pelo mau uso das palavras


 difamação, injúria, fofoca, bajulação, calúnia, e perjúrio.

Em muitas oportunidades, por detrás desse tipo de mal, está a


ganância, a ambição do ter mais, o egoísmo (só ver o seu interesse e o seu
bem-estar) e o nefasto desejo de superar, que tem provocado tantas
desgraças.

No tocante à morte deve-se ter um cuidado especial. Ela precisa ser


encarada (e ensinada), a partir da educação infantil, em uma realidade
entranhada na vida humana. Certos argumentos, ou ―mentiras piedosas‖,
às vezes podem gerar mais revolta do que consolo. Certa vez, no interior
do Rio Grande do Sul, escutei alguém dizer, nas exéquias de uma menina
50

de quatro anos, morta em um acidente de carro, que ―crianças morriam


porque Deus precisava aumentar o número de seus anjos‖. Esse tipo de
argumentação, insustentável diante das fráguas do mal, perde
consistência para justificar e/ou explicar a violência e o drama de uma
tragédia ocorrida.

Por fim, surge-nos o assim chamado mal metafísico. O parecer de


teólogos e filósofos não é unânime na conceituação desse terreno. Por
metá-physica os gregos entendiam algo ―além da física‖ 31. Mesmo assim,
dividiam a metafísica em concreta (ontologia, o estudo do ser) e abstrata
(algo sobrenatural, transcendente). No terreno da axiologia 32, o mal
metafísico refere-se, como já falamos aqui, às limitações do ser humano, à
sua finitude, tanto temporal (mortalidade) quanto cognitiva (ignorância)
quanto no tocante fatores externos (o mal sobrenatural ou supranatural).
Neste tópico (mal sobrenatural) podemos enquadrar:

 o mal oriundo de entidades maléficas e/ou diabólicas 33;

 subjugação psíquica (já aludida aqui) 34 e


 telergia 35.

Ainda no que se refere ao mal metafísico, não é preciso ver o Diabo,


ameaças ―espirituais‖ etc. em tudo o que acontece. Não é porque a gente
não entende um determinado acontecimento que vai classificá-lo como
―sobrenatural‖. Muita coisa tem explicação natural, física ou reflete meras
atividades paranormais. Assim como a influência diabólica não deve ser
descartada de todo, não é por isto que ela precisa ser vista em tudo.

Particularmente, como disse acima, eu não sou muito a favor da


expressão ―o problema do mal‖ usada por alguns autores e teólogos, pelo
simples fato de, todo o problema tem uma solução, e a equação do mal
nunca enseja uma solução, ou mesmo uma explicação lógica. Prefiro dizer
―a questão do mal‖, porque uma questão sempre deixa uma janela aberta,
revelando um final em aberto, de alguma coisa que inquieta mas nem
sempre tem uma resposta imediata ou completa. Assim como o mal nos
questiona, nós igualmente devemos questionar a existência, a origem e a

31
O verbete metafísica teria sido mencionado, pela primeira vez por Andrônico, de Rodhes, por volta do século IV
a.C., e depois ganharia livre curso na filosofia a partir de Aristóteles.
32
Parte da filosofia que estuda os valores morais.
33
O mal provocado pelos demônios é uma realidade atestada na Bíblia, que não pode ser desprezada; o “inimigo” é
capaz de praticar esse mal (possessões e exorcismos, mais ou menos freqüentes, atestam essa possibilidade).
34
Subjugação psíquica é uma figura de parapsicologia, que retrata o poder negativo da própria mente, capaz de causar
o mal que tanto teme. A pessoa teme a inveja e o “olho grande” e acaba produzindo nela mesma esses males.
35
Telergia é outra figura utilizada em parapsicologia. Tele (à distância) e ergos (esforço). Trata-se de um distúrbio
mental capaz de mover objetos à distância sem intervenção mecânica; o mesmo que telecinesia ou psicocínese.
51

extensão do mal. Nesse aspecto ele sempre vai se afigurar a nós como
uma verdadeira questão, uma pergunta, uma indagação em aberto.

O pensamento moderno se nos oferece visões diversas a respeito do


mal. Uns (pessoas religiosas) vêem o homem como agente do mal, a partir
do mau uso de sua liberdade. Outros, para defender qualquer imputação
de culpa a Deus, dizem que é Satanás, o ―autor e princípio de todo o mal‖.
Nessa premissa, Deus é inocente e o homem, vítima. Os ateus invertem a
equação, atribuindo culpa a Deus, posição de vítima ao homem e
neutralidade na posição do Diabo. Vamos dissecar isto, daqui para a
frente.

Suponhamos: alguém está a ponto de cometer um assassinato.


Deus teria que pará-lo, talvez sussurrando aos seus ouvidos, ou se isso
não funcionasse fazer algo um pouco mais drástico como fazer algo cair
em cima dele, ou parar o coração dele, ou fazer que as mãos dele de
repente parassem de funcionar. De qualquer maneira, Deus teria de fazer
alguma coisa. Igualmente, o que faria se alguém quisesse roubar? Deus
teria de impedi-lo também, certo? Sem dúvidas, a imaginação de Deus
criaria métodos mais práticos dos que eu estou sugerindo, mas o
resultado seria o mesmo. Sempre escutamos que ele fala às consciências
na iminência de um descaminho.

Dentro desse tipo de raciocínio, vamos mais adiante. Suponhamos


que alguém esteja planejando um ato perverso. Então, certamente, Deus
teria de ir um passo adiante e evitar que ele pensasse coisas erradas,
certo? O resultado final é que Deus não poderia deixar ninguém sequer
pensar livremente. Já que nem todos os pensamentos são pensamentos
puros Deus estaria um tanto ocupado e nós não estaríamos habilitados a
pensar. Assim mesmo, em que ponto a coisa deveria parar? A liberdade,
dada como dom e virtude, estaria cerceada. Essa é a responsabilidade: o
ser humano é tão livre que pode, se quiser, matar e destruir. Foi tão livre
a ponto de matar o Filho de Deus numa cruz.

Vimos que na Bíblia a ocorrência do mal, desde o Antigo Testamento


é uma realidade que se instaura a partir da sedução de Eva pela serpente
e vai desembocar na destruição de Israel pelos exércitos invasores, no
século VIII a.C. Ali o mal é mais um castigo das transgressões do povo e
de seus governantes (reis, sacerdotes, chefes e falsos profetas) do que uma
manifestação diabólica. O mal das guerras e do exílio tem lugar a partir da
―vingança de Deus‖ contra a idolatria do povo.
A razão de encontrarmos poucas referências a Satã no AT está no
fato de que aí o próprio Yahweh é o responsável pelo mal, de modo
que a figura de um demônio não é necessária. Há muitos exemplos
no AT mostrando que os antigos hebreus viam a Yahweh como a
origem tanto do bem como do mal 36.

36
J. A. SANFORD, Mal – o lado sombrio... op. cit.
52

Em vários textos do Antigo Testamento há referências a essa prática


de Yahweh. Vamos respigar apenas alguns:

Eu sou Javé, e não existe outro; fora de mim não existe deus algum.
Eu armei você, ainda que você não me conheça, para que fiquem
sabendo, desde o nascer do sol até o poente, que fora de mim não
existe nenhum outro. Eu sou Javé, e não existe outro: eu formo a
luz e crio as trevas; sou o autor da paz e crio a desgraça. Eu, Javé,
faço todas essas coisas. (Is 45, 5ss).

Veja! Fui eu quem criou o ferreiro que sopra as brasas no fogo e


produz
ferramentas de trabalho. Mas também fui eu quem criou o
exterminador para arrasar (Is 54,16).

Vem alguma desgraça sobre a cidade sem que Javé a tenha


enviado? (Am 3,6).

A dicotomia bem/mal pervade todo o Antigo Testamento. O avanço


triunfalista do povo hebreu que se processa, na direção de Canaã é um
bem, a morte dos povos que estavam no caminho é um mal. A tomada da
―terra prometida‖ é bem; a tomada da terra (que tinha dono) é mal.

A esperança contra o mal, como ensinam os grandes místicos,


busca romper o fatalismo do destino e da passividade resignada,
apostando na utopia da solidariedade e da fraternidade, como campos
contrários à iniqüidade. A utopia – sabe-se – se de um lado traz consigo a
esperança, de outro retrata idealismo e alguma dose de teoria.
Entre um problema e um mistério existe uma diferença essencial.
Um problema é qualquer coisa que se encontra inteiramente diante
de mim e que, por isso mesmo, eu posso de alguma forma cercá-lo e
compreendê-lo. O mistério, por sua vez, é alguma coisa em que eu
mesmo me encontro envolvido e, por conseguinte, só é pensável
como uma esfera onde a distinção entre mim e diante de mim perde
sua significação e seu valor inicial. Enquanto um problema
autêntico pode ser solucionado por uma técnica apropriada, um
mistério transcende, por definição, toda técnica concebível 37.

Fruto do mysterium iniquitatis (o mistério do pecado, segundo a


teologia), a questão do mal não responde às indagações maiores. Não
basta dizer que existe o mal por causa do pecado. Tal afirmação nos
remeteria a outra pergunta: Por que existe o pecado?. E se o pecado é uma
realidade que afeta as criaturas, por que Deus permite que ele ocorra? Se
alguém é mau, mata e fere, pode-se atribuir sua conduta a uma má

37
G. MARCEL, Être et Avoir. Paris, 1933.
53

escolha, a uma forma equivocada de viver sua liberdade. Até aí o mal é


compreensível.

Mas como explicar o mal que vergasta o inocente: a criancinha


torturada e assassinada; a dor de seus pais; o sofrimento de turistas,
vítimas de um furacão, etc. É como querer uma explicação para o
sofrimento de Jó. Mesmo sabendo tratar-se de uma parábola, surge a
pergunta: por que ele sofreu tudo aquilo? A devolução parcial de seus bens
(a vida dos filhos mortos não foi restabelecida) teria curado as feridas de
sua alma?

Muitas respostas, dadas em situações análogas, não satisfazem


mais, e são capazes de conduzir à descrença e – não-raro – ao ateísmo,
além de suscitar, mesmo nos crentes e fiéis, uma ponderável oscilação
entre o senso de culpa e a indiferença.

As supostas ―explicações‖ do mal, levadas a efeito pelas teodicéias e


teologias clássicas, redundam sempre em um saldo decepcionante,
entre outras coisas, porque estamos ainda por ver uma resposta
especulativa que possa explicar essa questão vivencial 38.

Hoje há uma tendência de estabelecer uma leitura do mal a partir


de uma visão acadêmica, que acaba dizendo o que todos já sabem, sem
entrar na essência da questão. O discurso daquele cidadão idoso, que
mencionei aqui, sintetiza esta idéia. Muitos julgam ter as chaves de
explicação do mal, que não passam de mera especulação teórica e
desencarnada. Dizer que o mal faz parte da problemática da moral ou da
liberdade, não responde mais, de forma satisfatória, às angustiantes
questões da humanidade.

2. O mal é uma realidade

Novos esforços de entendimento do mal foram realizados através dos


séculos, tanto no campo religioso, procurando-se outra interpretação para
o texto bíblico que havia dado lugar à afirmação da existência de um
pecado original, quanto na filosofia, deslocando-se o enfoque da razão
para a vontade. Alguns progressos, discretos, foram alcançados. No
entanto, parece-nos forçoso admitir que, até o momento, não se chegou à
solução que se mostrasse apta para abranger o problema em toda a sua
extensão e que recebesse a adesão de um grande número de estudiosos. A
filosofia aponta para o mal como o fracasso de uma criação com desejos
de perfeição. Para M. Heidegger († 1976) 39, o ente (o ser) ocorre entre o
antes (a inexplicabilidade do caos) e o nada (a improbabilidade do futuro).

38
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Teologia da Criação, op. cit.
39
In: Einfürhrung in die Metaphysik, Tübingen, 1953; cf. Sein und Zeit, Tübingen, 1986.
54

Essas duas instâncias vêm permeadas de mal.

O filósofo Gabriel Marcel († 1973) distingue ―problema‖ de “mistério‖


de uma forma precisa. Segundo ele um problema se caracteriza
essencialmente por ser uma dificuldade objetiva. Algo que se põe em
frente como que ―uma pedra no caminho‖. Tirada a pedra, a dificuldade
deixa de ser dificuldade e o problema deixa de ser problema. Assim, o
problema é uma dificuldade técnica à espera de uma solução. Problema é
uma dificuldade que está ―toda inteira diante de mim‖. O ―diante de mim‖
significa precisamente a possibilidade de ser objetivado. E o que é
objetivado, de alguma forma, não envolve o ser mesmo do sujeito
objetivante 40.

A realidade do mal revela sua existência em toda a sociedade


humana, desde todo o sempre. A história está cheia de narrativas
aterrorizantes, que atestam a realidade do mal, caminhando pari passu
com a vida humana. Se formos olhar em literaturas culturais, dados
históricos e pesquisas oficiais, vamos notar a existência de ―joguinhos
cruéis‖, nos quais sobressai-se a maldade. É claro que seu número é
ilimitado, mas vamos retratar aqui aqueles mais conhecidos da sociedade
humana e da opinião pública.

1. Roma
O imperador Nero († 68 d.C.) queimava os cristãos no Coliseu,
para que, como tochas, seus corpos iluminassem o jantar da
nobreza;

2. Alemanha
Na época do nazismo, o ditador Adolf Hitler († 1945) incentivou
pesquisas biogenéticas utilizando pessoas humanas, para
futuras ―conclusões científicas‖ sobre a origem das raças; O
médico-chefe em Auschwitz era o tristemente célebre Dr. Joseph
Mengele († 1991), que inoculou o vírus do tifo em vários presos
do campo de concentração, bem como retirou olhos, órgãos
internos, além de usar esqueletos de crianças para suas
experiências;

3. Estados Unidos
Enquanto os norte-americanos, no pós-guerra, enchiam a boca,
falando em ―direitos humanos‖, descobriu-se, em 1972, em
Tuskegee, no Alabama, um campo de experiências genéticas,
utilizando pessoas negras como cobaias, nas quais era inoculado
vírus da sífilis, para estudar como eles reagiam à doença. O
presidente americano era Herbert Clark Hoover (1929-1933).
Estima-se que, de 1932 a 1972 hajam morrido ali mais de 2000

40
Être et Avoir, op. cit.
55

pessoas, atraídas pela oferta de casa, comida, recreação e –


pasmem – enterro grátis 41;

4. Vietnã
Retratado na ficção do filme ―Apocalypse now‖ (1978) de F.F.
Copolla, temos um fato real de crueldade, quando um oficial
norte-americano teria devastado uma aldeia vietnamita, à beira
mar, apenas para que um fuzileiro, astro do surfe, recém
transferido para sua unidade, pudesse exibir sua técnica;

5. Afeganistão
Os relatos dessa sangrenta guerra, na segunda metade do século
XX contam a maldade de alguns oficiais soviéticos que
costumavam deixar os prisioneiros com uma granada (sem o
pino) na mão, para ver quanto tempo eles resistiam, antes de o
artefato explodir.

A história dos homens está cheia de narrativas de maldades e


atitudes desumanas, em que os mais fracos e – não raro – inocentes
tornam-se vítimas indefesas da crueldade dos mais fortes. Além das
guerras por domínio territorial e comercial, constrange-nos observar lutas,
mortes e torturas nas guerras religiosas, onde na busca de uma defesa da
fé, muita gente foi queimada, expurgada, morta. Assim foram as
―inquisições‖ (na Europa e na América), as lutas religiosas, desde o
assassinato de milhares de protestantes calvinistas (huguenotes), na
França (24 de agosto de 1571, a ―noite de são Bartolomeu‖), a mando do
rei Carlos IX e sua mãe Catarina de Médici, até a intolerância religiosa na
Irlanda (2001). Esses descaminhos do mal se vêem desde as guerras
expansionistas do Antigo Testamento, passando pelos Cavaleiros
Templários e pelas Cruzadas: todos queriam, na defesa da fé, matar ―em
nome de Deus‖.

Para Santo Agostinho, a origem do mal está no pecado. Já para


Leibniz, o mal tem sua gênese na imperfeição da criatura humana, que
possibilitou o surgimento do pecado, onde tudo retorna à situação
original. Por consistir na privação do bem, afirma, o mal não tem nada de
eficiente 42.

Pois a essência do problema do mal, levantado por Epicuro, visto


linhas atrás, e que ainda veremos mais, à frente (Cap. IV), perpassa as
culturas antigas e chega a nós, no século XXI, sem uma solução
satisfatória. O mal existe, mas a autoria é indefinida. Ora, não há ação
sem autores. Essa indefinição angustia. Além disto, questões sem
resposta ou mal respondidas, confundem os crentes e reforçam os
argumentos dos ateus. A Internet está cheia de sites de ateísmo,

41
Este assunto foi abordado em meu livro Bioética – A ética a serviço da vida. Ed. Santuário, 2004. 2a. edição.
42
In: Teodicéia, 22
56

afirmando (eles dizem ―provando‖) que Deus não existe. Justamente por
causa do mal.

Eis o tema do mal reduzido a problema. Tudo está claro, cada termo
se oferece com um seu significado preciso: nada mais resta senão
escolher. E o que se escolheu foi quase sempre – como é óbvio – o
primeiro vértice do dilema: Deus pode mas não quer. Mas ainda falta
algo ainda... Ainda que naturalmente fosse preciso escapar, logo em
seguida, da conseqüência de que, em tal caso Deus não seria bom.
Surge, assim, a atitude apologética: urge ―desculpar‖ Deus,
defendendo-o das acusações 43.

Como já falamos aqui, não há consenso a respeito da conceituação


preliminar do mal. Afinal, ele é problema ou questão? Ambos os verbetes
têm um certo nexo causal, sendo quase que sinônimos. Referir-se ao mal
como mistério dá-lhe uma feição de questão sem solução, algo que escapa
ao nosso entendimento.

Enquanto problema, ele (o mal) fecha todas as saídas de solução e


resiste a todos os esforços de compreensão. Por esta razão,
teologicamente, parece preferível abordar o mal como mistério 44.

O fato é que um ―problema‖ ou mesmo uma ―questão‖ é algo que


está diante de nós, e com a ajuda de alguns instrumentos é possível
encontrar a solução. Já com o ―mistério‖ é diferente. Por fugir de nosso
controle intelectual, ele nos confunde e nos envolve. Teologicamente,
sabemos, mistêrion é algo ao qual nosso entendimento não tem acesso.

Entretanto, existe outra faceta do mal humano que questiona e


inquieta: é o mal sofrido pelo inocente. O motorista bêbado atropelou e
matou a criança. Um fato comum em nossas metrópoles. E a criança
inocente, por que foi retirada do convívio dos seus? E a família, como
ficará sem a criança? Que fizeram para sofrer esse mal? Vontade de Deus?
Não creio que Deus quisesse um evento dessa ordem. Mesmo que o casal
tenha mais cinco filhos, a lacuna da menina morta jamais será
preenchida.

O exemplo típico do inocente que sofre, na Bíblia, é Jó. O sofrimento


de Jesus, como um ―servo sofredor‖ tem um propósito. Sua paixão e
morte, embora cruéis e descabidas, abrem o caminho para todos. Jesus
era inocente, mas foi o ―cordeiro‖ do Pai, para tirar os pecados do mundo.
Sua morte e ressurreição propiciou-nos morrer e ressuscitar com ele. É
inegável: Havia um projeto...

43
A. T. QUEIRUGA, Recuperar a Criação. Por uma religião humanizadora. Ed. Paulus, 2003.
44
A. MOSER, O pecado: do descrédito ao aprofundamento. Ed. Vozes, 1996.
57

E o sofredor Jó? Conhecem sua história? Ela está em um dos livros


sapienciais; são quarenta e dois capítulos. Parece que havia um ―joguinho‖
entre Deus e o Diabo (cf. Jó 1,6-12) para testar a fidelidade daquele
homem. A história, baseada numa antiga lenda semita, situa-se no gênero
das parábolas, mas o sofrimento de Jó, embora sintetize quem sofre
calado, é cruel. Ora, sabemos que Deus não quer o sofrimento nem a
morte do pecador (cf. Ez 18,23.32).

Tais agruras não pertencem ao repertório da misericórdia divina.


Então por que existem? Jó tinha tudo e perdeu tudo. Depois de Deus
―provar‖ a Satanás que ele era fiel, restituiu-lhe o que perdera, e um
pouco mais. Está certo que é uma parábola, mas mesmo assim: será que o
nascimento dos filhos posteriores apagaram a perda dos primeiros? Uma
mãe que perde um filho, consola-se com outro que nasce depois?

A mensagem final do livro de Jó leva a crer que, ao homem de fé, fiel


a Deus, tudo é restituído. Tal apologia aplica-se bem à volta do exílio,
onde a terra, as casas, a nacionalidade, o templo, tudo é devolvido àquele
resto que voltou. E o sofrimento? As perdas materiais recuperam-se. Mas
as pessoais, afetivas, de entes queridos, essas ficam marcadas. Pergunte-
se a pais que perderam sete filhos e três filhas (1,2) de uma vez só, como é
a coisa.

Conheci uma mulher que teve um filho com a síndrome de down.


Logo depois, ela foi abandonada pelo marido, e morreu logo em seguida. O
filho tinha quinze anos. Era praticamente um debilóide. Pois esta pessoa
rolou por asilos e cortiços, até morrer, por volta dos trinta anos. Quem viu
seu sofrimento perguntava: ―onde está a justiça? Deus, que tudo vê, por
que não faz nada?‖. Quando nos deparamos com o mistério do mal,
voltam-nos à cabeça as intrigantes questões do estoicismo de Epicuro:

Se Deus não vê, é cego;


se vê e não faz nada, é omisso;
se vê e não pode fazer, é impotente...
se não for cruel...

Não é esta a imagem de Deus que aprendemos e ensinamos. Será


que tudo se explica através da ―liberdade‖? Será que o sofrimento do
inocente, como o caso de Jó, serve para testar a solidariedade de
―terceiros‖ (seus amigos)? Há muita teoria a respeito, afirmando que o mal
não vem de Deus nem do Diabo, mas do próprio ser humano.

O mal não provém do Pai Criador nem de alguma outra suposta


divindade real. Sua explicação, ou melhor, seu mistério deve estar
em outro lugar: por exemplo, na condição limitada, finita, portanto
mortal, das criaturas. Ou na decisão criadora das próprias
58

criaturas, dotadas de liberdade que, por isso, podem perverter os


desígnios do Criador 45.

O certo, em toda esta história, é que Deus não criou o mal! Correto!
Ora, se não criou o mal, por que permite que ele exista e devaste os
grupos sociais? Estatisticamente, constata-se que mais pessoas sofrem
por causa do mal, do que são favorecidas por conta do bem. Tem gente
sofrendo, inocentemente, vítimas das guerras e confrontos, inocentes,
crianças, mães, missionários, etc. O indivíduo mau, via-de-regra, sofre (ou
deveria sofrer) as conseqüências do mal que praticou. Mas o inocente, por
que sofre? Já que ele é pessoa humana, como todos nós, não é remoto
demais acenar-lhe com uma recompensa só na ―vida eterna‖?

Por que o inocente sofre? Na verdade, não se sabe como Deus reage
ao sofrimento da humanidade. Sendo impassível, i.e., isento de
passibilidade (é uma das características da divindade), ele não pode sofrer
por nós. Se sofresse, deixava de ser Deus. Como não sofre, talvez não
consiga avaliar a dor de quem sofre injustamente. Mesmo que o
sofrimento seja ponte para a salvação de alguém, convenhamos, é um
caminho doloroso.

O homem, assim aprendemos, desde a Criação, foi dotado de


liberdade e responsabilidade. Ao criar, Deus viu que tudo era muito bom
(cf. Gn 1,31). A partir desse trecho, os judeus, desde suas primeiras
formulações, diante do mistério do mal, preferiram ―jogar a culpa no
homem‖ a admitir o poder de Satanás, como uma outra entidade, que iria
contra as teorias rabínicas do monoteísmo (mesmo que os primeiros
hebreus fossem henoteístas).

Esses dois princípios (liberdade e responsabilidade), de onde sairia


luz e trevas, colocaria em xeque a doutrina e a fé judaica. Dentro desse
esforço retórico (sobressai-se aí os discursos de Santo Agostinho e
Leibniz), os dons da liberdade e da responsabilidade serviriam para ―tirar
a culpa‖ de Deus, por nos ter criado tão frágeis e vulneráveis?

Nas relações humanas, quando o filho de uma família cai nas mãos
do mal (um traficante de drogas, por exemplo), o pai e a mãe sofrem.
Quando o poder do Maligno nos assalta, Deus não pode sofrer, pelo
princípio da impassibilidade, visto acima. Cria-se, desta forma, o
antropomorfismo da Criação: ―tudo é muito bom, perfeito, sem erros‖. Ora,
nesse conjunto de premissas, vemos que, se existem erros e desvios, a
culpa é do homem. A conseqüência desse silogismo aponta para o uso
desviado da liberdade humana como resultado da existência do mal.

A realidade nos mostra que a raiz do mal está no pecado, individual


ou social, que absolutiza seus próprios interesses. Aqui entra o poder

45
L. C. SUSIN, A Criação de Deus.. Ed. Paulinas, 2003
59

mortífero da ideologia, no seu sentido mais pejorativo. Nesses casos – esta


é a faceta do mal oriundo da política – o interesse do grupo é travestido
como o bem de todos, como se fosse o interesse de todos. Impõem-se,
então, essas ―verdades‖ como a verdade absoluta. Pode até ser mentira,
mas ela ganha foros de verdade.

A cada pecado pessoal unido a outros pecados vai criando um


dinamismo próprio, criando um plus de negatividade e de poder
destrutivo. É uma realidade a acumulação de forças maléficas. É
uma realidade que essa força fica como que plasmada e cristalizada
em estruturas a serviço da morte e não da vida 46.

Dizem que a sabedoria do mundo fala pela boca das crianças. Você
crê nessa assertiva? Vejam o questionamento que escutei da boca de uma
criança, uma menina de seis anos, a respeito da inexplicabilidade do
sofrimento de Jesus, na cruz:

Deus é pai de Jesus, né?


Por que ele deixou a ―mãezinha‖ (Maria) sofrer?
Ele viu tudo aquilo e deixou? 47

Sabemos que a paixão de Cristo, paixão no sentido de pathos,


sofrimento, tinha um objetivo: o resgate da humanidade. Mesmo assim o
sofrimento do inocente é uma dor gratuita que choca e questiona. Outro
exemplo, é o de uma criança que teve uma vida miserável, vivendo em
barracos insalubres, sofrendo fome, doenças e violência, e que morre
antes mesmo de compreender a extensão de sua desgraça. Fica difícil de
explicar, não fica? Se eu fosse espírita, jogava tudo para a ―lei do carma‖,
de penas a cumprir em face de crimes cometidos em ―vidas passadas‖ e
tudo se explicava. Mas não! Eu creio na ―ressurreição da carne‖... Mesmo
assim, assusta-me o mysterium iniquitatis, com o qual o ser humano se
debate dia-após-dia, desde a fundação do mundo.

O mal, na teologia contemporânea, tem uma colocação como que


emblemática. Deus sempre contou com o mal para testar os limites, a
persistência e a fidelidade do homem. Como coisa criada, já fica clara a
imperfeição do mundo. Deus não poderia criar algo perfeito, pois só ele é
perfeito. Nesse concerto criacional, a finalidade do mal, além da já
enunciada acima, é para ser vencida pelo homem, e assim ressaltar a
virtude. A grande questão da Igreja moderna não é saber de onde vem o
mal, mas de que forma podemos nos organizar para vencê-lo. O
importante é jamais assumir uma atitude de passividade diante do mal.
Sozinho talvez o homem não possa vencê-lo, mas com a ajuda divina, o
enfrentamento e a vitória são possíveis. O mal não se explica. Combate-se.

46
A. G. RUBIO, Elementos de Antropologia Teológica. Salvação cristã: salvos de quê? E para quê? Ed. Vozes, 2004.
47
Questão levantada por Ana Vitória (minha neta) à sua mãe Ana Maria (minha filha).
60

Na Idade Média, para a realização dos exorcismos, era preciso saber


o nome dos demônios para dominá-los. Hoje não se costuma mais
combater o mal do mundo com ritos. Guerras, fome, corrupção, isto se
ataca com persistência e consciência social.

Finalmente, mesmo que não se possa explicar (e até aceitar) a


incidência do mal, não se pode nunca perder de vista que nós cremos
firmemente que Deus é o Senhor do mundo e da história. Às vezes é
preciso – qual um Abraão – esperar contra toda a esperança; crer, muitas
vezes, ao arrepio das evidências. Mas também enxergamos que os
caminhos da sua providência muitas vezes não são conhecidos por nós. Se
o mal degenera as criaturas, há no amor de Deus, que as criou, o dom da
regeneração, que é a recriação de tudo o que foi criado, e que o pecado
deturpou. Pratica-se o mal em nome da honra, da cultura, e até da fé
religiosa. É o que nos ensina o filósofo B. Pascal († 1662);

Nós nunca fazemos o mal de forma tão convicta e alegre como


quando o fazemos por um falso princípio de consciência, seja ele
sectário ou religioso 48.

Nessa linha de raciocínio, nos vem o argumento do pensador francês


M. Montaigne († 1592) que afirma que nós somos os autores de quase
todos os nossos males, mesmo tendo à mão os meios necessários para
evitá-los 49.

Só no final, quando acabar o nosso conhecimento parcial, quando


virmos Deus ―face-a-face‖ (1Cor 13,12), teremos pleno conhecimento do
projeto pelos quais, mesmo através dos dramas do mal e do pecado, Deus
terá conduzido sua criação até o descanso desse sábado definitivo, em
vista do qual criou o céu e a terra. Há quem tente explicar (diante do
inexplicável) a ocorrência do mal entre a humanidade com um texto
paulino, um tanto quanto obscuro:
Agora eu me alegro de sofrer por vocês, pois vou completando na
minha carne o que falta nas tribulações de Cristo, a favor de seu
corpo que é a Igreja (Cl 1,24).

Preliminarmente, é verdade que o sofrimento infligido ao cristão, em


muitos casos, como boicote, inveja, perseguição, tortura e até morte, é
sinal de que ele está anunciando o verdadeiro evangelho. A verdade, por
aderente ao bem, incomoda os fautores do mal. Ora, sabendo-se que
Cristo sofreu e morreu ―de uma vez por todas‖ (cf. Rm 6,10), ninguém
precisaria ―completar‖ o que faltou, pois não faltou nada. Trata-se de um
eufemismo do apóstolo, uma solidariedade para com o sofrimento do
Mestre e dos demais cristãos. Ele quer ensinar aos que sofrem, que
entreguem seu sofrimento Àquele que sofreu por todos. A lição paulina,

48
In: Pensées, Paris, 1641
49
In: Apologia de Raimond de Sabunde, Paris, 1588
61

aqui plangente, situa-se na necessidade de o sofredor dar um sentido às


suas dores.

A questão (ou o mistério) do mal nos confunde, à medida em que se


converte em um assunto que parece não só tendente à recusa de
respostas lógicas e concisas, como até mesmo algo que escapa de nossas
mãos, como para fugir dos questionamentos.

O mal surge como uma questão que resistisse a si própria,


confessando assim uma radical irracionalidade. Os grandes
questionamentos (de onde vem o mal? por que ele existe?) acabam
tornando-se incompreensíveis, depois de fundidos e repetidos como
insolúveis 50.

As nuanças que envolvem a questão do mal são bastante complexas


e recheadas de tabus e temores. Em muitos casos, parece que as pessoas
consultadas sobre o assunto, parecem desconhecer a matéria, ou por
outros motivos têm prazer em escamotear as respostas. O caso é que –
quando se refere ao mal – nem todos verbalizam aquilo que pensam.
Alguns dizem coisas e proferem sentenças diferentes daquilo que têm na
mente. Medo? Receio de punição? Insegurança? Vergonha de dizer o que
pensam?

A dor, o sofrimento e a corrupção física são fatores a que o corpo


humano não está imune. Por isto é difícil entender o sofrimento.
Mais difícil ainda é buscar, de males físicos, explicações espirituais,
tais como ―vontade de Deus‖, ―trabalho de bruxaria‖, ―olho grande‖,
―carma‖ ou destino. Em uma revista cristã (recortei o texto mas não
tirei o nome da publicação), li a carta de uma jovem, Doris Lussier,
de dezoito anos, paciente terminal: ―...o que acho lindo na existência
humana, apesar de sua aparente crueldade, é que para mim morrer
não é terminar, mas continuar diferente. Um ser humano que se
apaga, não é um mortal que termina; é um imortal que começa. O
caixão é um berço. E a última noite de nossa vida temporal é a
primeira manhã de nossa eternidade. „Ô morte tão nova! Ô única
manhã!‟ dizia Bernanos. Pois a morte não é uma queda na escuridão,
mas um salto para a luz. Quando se tem a vida, só pode ser para
sempre... A morte não pode matar o que não morre. Ora, nossa alma é
imortal. Há somente uma coisa que pode justificar a morte: a
imortalidade‖ 51.

O mal é uma realidade humana inegável, inobscurecível, palpável no


dia-a-dia, nas ruas, nos jornais, nas delegacias de polícia, nos tribunais,
nos hospital e mesmo dentro dos lares de muitas famílias. É inexplicável,
entre outros, o mal que assola o inocente, a criança. Nesses casos, escuta-

50
A. GESCHÉ, O mal. Ed. Paulinas, 2003
51
A. M. GALVÃO, O Grão de Trigo – Reflexões cristãs sobre a vida depois da morte. Ed. Ave-Maria, 2000
62

se falar que esse sofrimento é ―conseqüência do pecado original‖, e que os


males, mesmo do inocente são ―hereditários‖. O mal sempre suscita
questões: por que ele sofre se é inocente? por que sofro se não fiz nada?
Se é natural e normal o sofrimento dos inocentes, das crianças, será,
então não tem fundamento o desabafo indignado do personagem Aliocha,
dirigido ao velho cura?:

Se o seu Reino subentende tudo isto, onde criancinhas são assim


sacrificadas, vou sair; quero meu ingresso de volta 52.

Escutei, há tempos, um pregador falar que ―o mistério do mal só


pode ser compreendido através do mistério da Igreja‖. Ora, nessa feição a
Igreja, tenha ela a denominação que tiver, assumiria assim uma feição de
pathos, sinônimo de sofrimento, mais kénos (aniquilamento) que dóxa
(glorificação). Uma questão puxa a outra: se Deus viu que a Criação era
muito boa (dóxa) por que ela, logo em seguida, foi impregnada pelo mal
(kénos)‖?

Tudo nos conduz a pensar que o mal é uma prática do ser humano.
Santo Agostinho vai nos dizer que o mal ocorre por uma subversão do
projeto divino, uma vez que, pelo livre-arbítrio, o homem ficou entregue à
liberdade dos seus atos. No entanto, observando o mal que há no mundo,
qualquer um se pergunta: que poder foi outorgado à criatura, capaz de
engendrar ações maldosas que, muitas delas, nem Deus consegue
reverter?

Antes de passarmos para o assunto seguinte, é salutar a observação


de que em determinadas correntes intelectuais, o mal é enxergado sob três
pontos de vista capitais. É claro que cada grupo, escola ou linha de
pensamento tem suas formas de ver a questão. Vamos contemplar aqui
mais algumas delas:

1. otimista
é uma a linha de raciocínio dos intelectuais, saciados, os que se
julgam imunes ao mal, ou pessoas que têm suas teorias
enquanto não sofrem a adversidade: ―é preciso acolher o mal de
forma estóica; se alguma coisa acontecer é porque era
merecida... tinham que passar por isto‖; a esta altura só falta
dizerem: ―é carma!‖;

2. dualista
nessa visão, em tudo há bem e mal: não se pode fugir (fatalista);
há na criação um duplo-princípio: bem e mal; São Clemente de
Roma († 96? 101?) chega a dizer que Deus tem duas mãos: com a

52
F. Dostoiévski, Os irmãos Karamázov, São Paulo, 1972.
63

destra (direita) ele distribui o bem, e com a sinistra (esquerda), o


mal 53;

3. pessimista
os pessimistas de todos os tempos afirmam que ―só o mal existe!
vivemos em um ‗vale de lágrimas‘‖. Outros dizem que ―a vida é
uma paixão inócua‖ (Sartre)... onde ―tudo acaba numa grande
náusea‖ (Camus).

Desde a antigüidade, os povos pedem proteção, contra o mal físico,


moral e metafísico:

Embora eu caminhe por um vale tenebroso, nenhum mal temerei,


pois estás junto a mim; teu bastão e teu cajado me deixam tranqüilo
(Sl 23, 4).

O que pode o homem contra mim? Em Javé eu confio e nada


temerei (Sl 56, 12).

Neste mesmo espírito de confiança, há mais de dois mil anos, os


cristão oram:

livrai-nos do mal...

Jesus ensinou que quem pede há de receber (cf. Mt 7,7), pois antes
de pedirmos, o Pai já sabe o que necessitamos (Cf. Mt 6,8) e que quando
duas pessoas estiverem de acordo sobre qualquer coisa que queiram
pedir, isto lhes será concedido pelo Pai que está nos céus (cf. Mt 18,19).
Então, se tantos pedem em orações e súplicas, por que, em certas
oportunidades, seus clamores não são atendidos, no que tange a uma
imunidade contra o mal? Tudo são questões...

3. O mal, um desafio, na visão de Paul Ricoeur 54

O filósofo francês Paul Ricoeur († 2005) talvez um dos que mais


fundo se aventurou na especulação a respeito do mal. Em sua
conceituação acadêmica, ele define o mal como defilement (malícia,

53
Sermo XX. Apud Epístola aos Coríntios (ano 95).
54
Paul Ricoeur morreu em 20 de maio de 2005, quando este trabalho já se encontrava em execução. Humanista de um
vasto conhecimento, atento à literatura tanto quanto às ciências humanas, viajante aberto à cultura anglo-saxã como
também à tradição alemã, Paul Ricoeur é um homem difícil de ser colocado numa escola ou numa corrente. O
cristianismo, a fenomenologia, a hermenêutica, a psicanálise, a lingüística e a história tem, em proporções diferentes,
contribuído para a formação do seu pensamento. Mas se ele pertence, para falar de maneira mais direta, ao movimento
do existencialismo cristão e do personalismo, ele não se deixa reduzir facilmente a um sistema. Ricoeur possuía mais de
trinta títulos de doutorados honoris causa. Sua lacuna fica irremediavelmente aberta...
64

corrupção), sin (pecado), guilty (culpa) 55. É indispensável salientar que


Ricoeur tem vários trabalhos sobre o tema56, mas aqui nos valeremos tão
somente de algumas intuições que aparecem na sua conferência sobre o
Mal, proferida na Faculdade de Teologia da Universidade de Lausanne em
198557. Pois quando Ricoeur nos fala em tristeza do finito 58, ele quer se
referir àquela factividade dolorosa da criação, onde tudo o que foi criado é
finito, e toda a finição das coisas criadas e também das pessoas e dos
animais, tende a ser traumática, dolorosa, com sofrimento. Finitude e mal
tornam-se juízos convergentes e, como tal, unívocos. Atributos que se
aplica a sujeitos diferentes, de maneira idêntica.

Nessa perspectiva ontológica, e é a única que a mim se suscita, é


impossível, em um mundo finito, que não exista o mal. O mal, nessa
conformidade, passa a ser parte integrante da finitude da matéria criada,
e que vai desaparecer. Isto se sabe: é lógico! Mas, por que existe o mal?
Por que o sofrimento? Por que sofre o inocente sem culpa nenhuma?

O mal consiste no fato de o homem abraçar deliberadamente o


pecado, voltando as costas a Deus e rejeitando sua amizade. Nessa
conformidade ele rompe de uma forma multidimensional, primeiro
com Deus, depois – e simultaneamente - com o próximo, a natureza
e consigo mesmo. O mal, como privação do bem, esvazia-se de sua
dimensão moral. Então, a questão desloca-se do plano ontológico (o
ser) para o axiológico (a moral): porque cometemos o mal 59.

Ricoeur repete outros especialistas, quando afirma que o mal, pode


ser metafísico (a imperfeição), físico (o sofrimento) e moral (o pecado) 60. O
mal metafísico é intrínseco a este mundo, e por isto afigura-se como o
―defeito fatal de todo ser criado‖, sendo essa imperfeição inerente ao fato
de o mundo, e tudo o que nele existe, inclusive nós, sermos criaturas, e
não Deus 61. Quais as causas – questiona - da desordem existente no
mundo? A desordem que impregna o nosso mundo, ocorre pelo fato de o
ser humano atribuir a algo um valor ou uma função diferente da que lhe é
devida. Se esta afirmação é correta, o mal passa a ser concebido como

55
The Symbolism of evil, Beacon Press, Boston, 1988.
56
P. RICOEUR, Finitude e culpabilité, vol I: La Symbolique du mal, Paris, 1963. Cf. também, P. RICOEUR, Conflito
das Interpretações. Cap. IV (A simbólica do mal interpretada), Imago, Rio de Janeiro: 1978.
57
A conferência foi traduzida para o português pela Papirus, com o título: O mal - um desafio à filosofia e à teologia.
Papirus, Campinas: 1988.
58
In: Philosophie de la volonté. Le volontaire et l’involontaire, Paris, 1967
59
Le mal - un défi à la philosophie et à la théologie. Genéve, 1986. (T. do A)..
60
Idem
61
Idem
65

aquilo ―que não deve ser‖, restando-nos, por conta disto, essa definição
provisória (nunca esquecendo que em filosofia tudo sempre é provisório) :

Mal é toda a ação que atribui a algo uma função, uma virtude ou
algum valor diverso daquele que lhe é devido. O mal nasce quando
subvertemos o valor de alguma coisa, levando-a a expectativas
diferentes daquilo para que foi criada 62.

É esta a concepção de P. Ricoeur, concepção esta que perpassa toda


a sua obra. Pois segundo seu pensamento, estritamente falando, a
teodicéia é um dos estágios percorridos pela especulação sobre a origem e
a razão de ser do mal. Estágio esse precedido pelo mítico, sabedoria, gnose
e gnose antignóstica. Nesse esquema de Ricoeur, Leibniz seria o
representante máximo da teodicéia (justificação de Deus), que falaremos
mais adiante.

Ricoeur principia a sua abordagem desmistificando a idéia que


generaliza o mal sob um único enigma. Não é possível unificar fenômenos
tão díspares como o pecado, o sofrimento, as demonizações e a morte. É
preciso – afirma – fazer a diferença entre o mal cometido e o mal sofrido.
Em outras palavras, pecado e sofrimento não podem ser associados
necessariamente. Há uma disparidade de princípios que os sustentam. A
lógica que rege o pecado, ou o mal moral, ―designa o que torna a ação
humana objeto de imputação, de acusação e de repreensão‖63. A imputação
ocorre devido a uma ação responsável do sujeito que viola códigos éticos,
morais e religiosos e, por isso, pode ser acusado e repreendido, isto é,
condenado pela sua culpa. E nesse particular o mal moral interfere no
sofrimento na medida em que a punição é um sofrimento infligido por
conta do mal cometido 64.

A teodicéia foi – segundo Ricoeur - o esforço de responder às


objeções que afirmam só serem possíveis duas das proposições, e nunca
as três (1. Deus é todo poderoso; 2. Deus é absolutamente bom; 3. contudo
o mal existe) conjuntamente. Na defesa da coerência nunca foi colocado o
problema em outro plano. A argumentação sempre se movimentou dentro
das regras da coerência. Mas, será esse o seu limite? Ricoeur acha que
não. E mostra isso movimentando-se através daquilo que chamou de
―fenomenologia da experiência do mal‖.

A pretensão de estabelecer um balanço positivo da balança dos bens


e dos males sobre uma base quase estética fracassa, desde que se é
confrontado a males, a dores, cujo excesso não parece poder ser
compensado por nenhuma perfeição conhecida. É ainda mais uma

62
Idem
63
Idem
64
Idem
66

vez a lamentação, a queixa do justo sofredor que arruina a noção de


uma compensação do mal pelo bem, como tinha antes arruinado a
idéia de retribuição 65.

A solução agostiniana, que nega substancialidade ao mal,


assinalando-o como privação, algo procedente da finitude do ser criado e
como resultado possível da nossa liberdade, dá ao mal uma inusitada
dimensão moral. A pergunta de Ricoeur desloca-se, assim, do plano
ontológico para o plano ético: todo mal é mal moral? todo mal é mal
cometido? Não se trata mais de discutir de onde vem o mal, mas de
esclarecer por que fazemos o mal 66. O filósofo, na impossibilidade de uma
resposta imediata sobre a origem do mal, empurra a questão para os
caminhos de teodicéia:

Como se pode afirmar conjuntamente, sem contradição, as três


proposições seguintes: Deus é todo poderoso; Deus é absolutamente
bom; contudo o mal existe. A teodicéia surge, então, como um
combate a favor da coerência, em resposta à objeção segundo a qual
somente duas das proposições são compatíveis 67

Para além desse preciosismo de análise e de diferenciação, Ricoeur


crê que, pelo menos num ponto, tanto Santo Agostinho quanto Leibniz
estão de acordo: na inocência de Deus. Neste particular concordamos,
com Paul Ricoeur, quando ele afirma que é preciso pensar de forma
diferente. E pensar diferentemente significa deslocar o tratamento do
âmbito estrito da lógica totalizante para o âmbito da ação prática.
Semelhante ao preconizado por Kant, esse deslocamento não é, em nosso
entendimento, um abdicar da razão teórica e nem uma renúncia à questão
da relação entre Deus e o mal. A questão não é tão simples como pode
sugerir uma visão apressada.

Nas grandes obras tradicionais (e Ricoeur por certo referia-se à


produção de Santo Agostinho e Leibniz) no final, Deus é inocentado e o
homem culpado pelo mal do mundo. A solução agostiniana dirige-se, pois,
em direção a uma solução estritamente moral (oriundo do pecado) do mal.
É uma solução, segundo Ricoeur, que deixa sem resposta o ―protesto do
sofrimento injusto‖, condenando-o ao silêncio, em nome de uma
inculpação em massa do gênero humano 68.

A relação permanecerá, porém desta vez não mais na busca de


justificação de Deus, mesmo que essa seja necessária para a nossa
consciência especulativa, mas na percepção de que diante do mal

65
Idem
66
Idem
67
Idem
68
Idem
67

podemos contar com um aliado de peso: Deus. Esta pode ser a resposta
da fé.

Apesar de todos os esforços para elucidar o problema, ele continua


como um mistério ponderável e um enigma desafiante ao pensamento. E
um desafio – ensina Ricoeur – é, passo a passo, um fracasso para as
sínteses sempre prematuras, e uma provocação para pensar sempre mais
e de modo diferente 69. O enigma e o mistério enriquecem o pensamento,
ao invés de convidá-lo a capitular. Trata-se, pois, não de pensar menos,
mas pensar mais e pensar diferentemente, sabendo-se sempre peregrinos
no caminho do estudo e dos confrontos da aporia.70

Nesse sentido – e esta é a lição de Ricoeur - não só o pensamento


está convocado a se colocar em movimento, mas também a ação e o
sentimento. Não para uma solução do enigma, mas para dar uma resposta
destinada a tornar a aporia produtiva, isto é, a continuar o trabalho de
pensamento no registro do agir e do sentir 71.
4. Por que temos medo do mal?

Em meu livro ―O grão de trigo‖ (Ed. Ave-Maria, 2000), que trata da


escatologia, eu emprego uma figura, na qual ―o medo que temos da morte
é igual ao medo que sentimos de Deus‖. Se tivéssemos uma confiança
segura na presença de Deus na eternidade, mesmo descontando nossos
receios humanos, não temeríamos a morte, pois nessa instância estaria
assegurado o encontro com aquele que é Pai e Criador.

Assim ocorre também em relação ao mal. Se o tememos tanto, a


ponto de assumirmos algumas atitudes irracionais de defesa, é porque
não temos a confiança que deveríamos ter na Providência divina. Essas
atitudes irracionais mencionadas, vão desde as superstições até cultos a
outras entidades, as quais, por descrermos da eficácia da Providência,
recorremos.

O clímax do terror ao mal é a morte. Por que o homem morre? Esta é


uma pergunta que deve existir desde que o mundo é mundo, e as
respostas sempre tergiversam a verdade, sem irem jamais a fundo na
questão. A Bíblia atribui a morte ao pecado e ao mal. Quando perguntam
―de onde vem o mal?‖, vem-nos sempre à lembrança, a fragilidade do ser
humano. Somos tão vulneráveis (apesar de alguns mostrarem tanta
soberba) que até uma simples gripe mal curada, ou uma leve batida de
mau jeito na cabeça pode nos matar. Na verdade, a morte é um dos
ápices do sofrimento humano. A aterrorizante idéia da morte sempre vem

69
Idem
70
O verbete aporia, como é usado na Teologia Moral, significa um conflito entre opiniões contrárias a respeito de um
mesmo assunto.
71
P. Ricoeur, Le mal.
68

ligada à imagem do mal. A grande constatação é que o ser humano traz a


morte consigo:

Quando o homem começa a viver, ele já é suficientemente velho


para morrer 72.

Para quem traz consigo o germe da eternidade, gerador do desejo de


viver mais, para quem foi projetado para ser eterno, a morte é um drama.
Mais que isto: uma contradição! Por causa dessa contradição, cria-se,
não-raro, no ser humano uma incrível dualidade psicossomática. É o caso
do romance ―O médico e o monstro‖ (título em português, escrito em
1886), produzido pelo escritor escocês R. L. Stevenson († 1894), um
trabalho sombrio e questionador que sugere que todo ser humano tem
uma personalidade dupla, onde se confrontam um Dr. Jekyll (o bem) e um
Mr. Hyde (o mal). O vigoroso trabalho de Stevenson trata da ambigüidade
da alma humana, onde há traços de um homem bom e de um perverso. O
autor, embora romancista, antecipa-se, no estudo da alma, a A. Adler (†
1937), a Freud em dez anos, e outros tantos de Jung.

Antecipando-se igualmente às correntes behavioristas (falaremos


delas mais adiante), Stevenson revela o insight psicológico da skiá
(sombra, no grego) no comportamento humano, que alterna luzes (bem) e
sombras (mal). No IV evangelho, São João emprega a mesma dialética ao
referir-se à luz e às trevas, como sinônimo do confronto entre o bem e o
mal.

Essa luz brilha nas trevas e as trevas não conseguiram apagá-la


(1,15);

O julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens


preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más (3,19);

Quem me segue não andará nas trevas, mas possuirá a luz da vida
(8,12b);

A luz ainda estará no meio de vocês por um pouco tempo. Procurem


caminhar enquanto vocês têm a luz, para que as trevas não
alcancem vocês. Quem caminha nas trevas não sabe para onde está
indo (12,35);

Eu vim ao mundo como luz, para que todo aquele que crê em mim
não fique nas trevas (12,46).

No evangelho de Mateus, também há um trecho a esse respeito, que


vale a pena ser meditado:

72
M. HEIDEGGER, Sein und Zeit. Tübingen, 1953.
69

Assim, se a luz que existe em você é escuridão, como será grande a


sua escuridão! (6,23b).

O binômio luz/trevas que caracteriza o bem e o mal aponta também


para a duplicidade de vida, onde convivem o vício e a virtude, enfim, o joio
e o trigo. Na história de Jekyll e Hyde, a figura da sombra e da dignidade
tentam mostrar que a prática do mal é tão fascinante quanto a do bem. É
esta a idéia que Stevenson quer passar a seus leitores. A obra, embora um
romance de ficção, por retratar uma realidade, presta-se para análises em
muitos campos da especulação científica. Sobre a dicotomia bem/mal
Santo Agostinho chega a afirmar em suas ―Confissões‟ que dentro do
coração humano mora um santo e um bandido.

Referindo-se ao mal, o psicanalista Jung afirmou 73 que só duas


coisas podem deter uma pessoa de praticar a maldade:

 se sua alma for preenchida com um poder maior que o


poder do mal;
 se a pessoa pertencer a uma calorosa e receptiva
comunidade humana.

É comum ver-se pessoas que havendo rejeitado o ―poder maior‖,


evadiram-se da comunidade humana, resvalando para os descaminhos do
mal, com abandono da família, divórcio, corrupção no campo profissional,
perda de amigos, etc.

Quando alguém sofre uma violência, a causa transfere-se para o


agente, seja o bandido, o motorista, ou qualquer outro irresponsável que,
por imprudência, negligência, imperícia ou mesmo má-fé provocou o dano.
As tragédias da natureza devem ser imputadas ao acaso, às leis naturais
ou a fatos fortuitos, embora algumas dessas manifestações sejam como
que uma ―vingança‖ da natureza agredida. É o caso das secas, de algumas
enchentes, ou da água poluída.

O certo é que tememos o mal cada vez mais. O ser humano, que
desde as cavernas tem medo de todas as manifestações do maléficas,
receia seus efeitos mais ainda hoje em dia, depois que tomou consciência
do mal-desgraça imerecido, aquele que desaba inexplicavelmente sobre o
indivíduo inocente, ou sobre uma coletividade, como o Tsunami ou o
furacão que destruiu New Orleans em 2005. O fato é que a pós-
modernidade em que vivemos, nega-se a aceitar, como na antigüidade,
que se possa recorrer à explicação da fatalidade (como nas tragédias
gregas), onde tudo ficava à mercê da môira (o destino) ou fatos
inexplicáveis, que se deve aceitar resignadamente (o heroísmo estóico). O
fatalismo estóico referia-se à história de dois cães amarrados, que eram

73
In: Letters, Zurich, 1975.
70

arrastados por um carro (talvez uma biga). Um deixava-se puxar


docilmente (o estoicismo), enquanto o outro, a despeito de seus protestos e
safanões, era conduzido à força, sob violência. A filosofia da stoá ensina
que não se deve resistir aos males, pois tudo faz parte da eimarméne (os
fados).

A fé dos discípulos, praticamente todos, sem exceção, foi abalada


pela morte de Jesus na cruz. Esse abalo foi logo dissipado pela visão do
sepulcro vazio e pelas primeiras notícias da ressurreição. A fé da
humanidade sofreu outro revés, bem sério, quando no final da II Guerra
Mundial descobriu-se as atrocidades cometidas pelos nazistas em seus
―campos de concentração‖, contra pessoas inocentes. Durante aqueles
momentos de desespero e massacre, uma pergunta muito escutada entre
as vítimas, foi: ―onde está Deus?‖.

Quando houve uma consciência universal da tragédia ocorrida,


muitos repetiram esta pergunta. Primeiro os protestantes alemães, que
mesmo desconhecendo o horror do holocausto de inocentes, sofreram
sérios danos em sua fé. Igualmente os católicos, que embora sendo
maioria, sentiram-se, de certa forma responsáveis, pois sua Igreja não
teria assumido a posição devida e tempestiva diante do massacre.
Diferentemente, daquilo que certamente teriam feito os papas Paulo VI,
João XXIII, João Paulo II ou Bento XVI se aqueles fatos tivessem ocorrido
nos séculos XX ou XXI.

Mas, a debacle da fé ocorreu mais profundamente entre os judeus,


que se viram, por um simples capricho, de fundo supostamente étnico, de
um louco chamado Hitler, perseguidos e exterminados de forma pertinaz,
cruel e sem explicação lógica. Para eles, a morte e o desinteresse da
sociedade mundial (inclusive a cristã) ocasionou a perda da fé, para
muitos. Pois a visão da insurgência do mal, sem as devidas explicações,
conduz o ser humano ao ateísmo, à revolta e à elaboração de
questionamentos, que acabam por minar as bases da fé.

O mal torna-se assim uma séria ameaça que aterroriza a


humanidade, um desafio constante que tem o poder de atacar e destruir,
não só corpos e coisas materiais, mas devasta igualmente a alma humana,
retirando das pessoas, muitas vezes, o sentido de viver. No dizer do
teólogo episcopal J. Sanford, o medo do mal faz parte do imaginário do
povo 74.

O mal praticado contra os inocentes foi um dos legados negativos da


II Guerra Mundial para o mundo moderno, e seu fantasma ainda assalta a
humanidade. Desesperados pela desatenção de seus clamores aos céus,
muitos se deixaram abater, julgando-se abandonados, chegando a duvidar
da existência de Deus. Essa descrença atingiu, não só as vítimas, mas

74
op. cit.
71

também àqueles que contemplaram seus sofrimentos. Em razão disto, o


pós-guerra trouxe o ateísmo existencialista, que da Europa estendeu-se ao
mundo todo, ensejando o surgimento de grupos e seitas gnósticas,
ateístas, bem como grupos de pessoas (principalmente jovens) descrentes
com a fé, com as instituições (especialmente a família), e com a ética.

Muitos judeus que sofreram, direta ou indiretamente o holocausto,


tornaram-se céticos, abandonando a fé de seus antepassados, largando a
religião e dedicando-se somente a amealhar riquezas. Sob esse enfoque,
vemos, especialmente os que se refugiaram na América, na hora de
retornar a Israel (então um estado reconstruído), preferiram as pátrias do
dinheiro à terra da ―promessa‖. Esta perda de fé e de referenciais
religiosos ocorreu por causa do mal que eles sofreram. Um mal injusto,
irreparável e sem uma explicação convincente. É claro que não é este o
único mal que a humanidade presenciou.

A respeito do terror do mal, há uma visão simplista do povo que,


muitas vezes, só pensando no mal metafísico, mais confunde do que
auxilia. Primeiro falam em liberdade e em livre-arbítrio como se ele
sozinho tivesse todas as chaves do problema. Em seguida, atribuem a
ocorrência do mal às pessoas ―sem Deus‖, quando vemos o contrário:
gente religiosa, também tem seus percalços. Depois, diante do infortúnio,
afirmam: ―todos merecem sofrer‖. Há os que simplificam ainda mais‖
sofremos o mal porque ele existe. E, por último, usando um
antropomorfismo, dizem que Deus ―sofre‖ com o mal sofrido pelos
homens, esquecendo-se que Deus, por uma de suas características
espirituais, é dotado de ―impassibilidade‖.

Por que temos medo do mal? Primeiro, pelo poder devastador que
ele possui, seja físico, metafísico ou moral. Suas conseqüências são
terríveis. Depois, porque falta-nos a fé suficiente para entender que nosso
Deus é maior que o mal e, por último, porque nos organizamos contra
tantas coisas, e nunca buscamos coesão para enfrentar a maldade, a
violência, a corrupção e o pecado.

5. Noções de teodicéia

Quando se fala, em conferências, aulas ou entrevistas, na palavra


teodicéia, constata-se que a maioria das pessoas desconhece seu real
sentido e funcionalidade. Deste modo, para estudarmos Leibniz, no
capítulo IV, precisamos conhecer alguma coisa a respeito da teodicéia.
Conceitualmente, teodicéia é o conjunto de argumentos que, em face da
presença do mal no mundo, procura defender e justificar a crença na
onipotência e suprema bondade do Deus criador, contra aqueles que, em
vista de tal dificuldade, duvidam de sua existência. bondade ou perfeição

O verbete teodicéia, em sua etimologia nos remete ao francês,


théodicée e ao alemão, theodicee, um vocábulo cunhado em 1710 pelo
72

filósofo germânico G. W. Leibniz. A palavra é originária do grego, onde


 theós, é ―deus‖ e  díke é ―justiça‖,

Nesse particular, teodicéia é um campo da teologia natural (alguns


afirmam ser da filosofia) que defende a onipotência, a onisciência, a
justiça e a bondade de Deus. É contra a idéia de que a presença do mal e
do sofrimento no mundo reduzem ou minimizam os atributos divinos. A
finalidade de teodicéia é falar sobre a justiça de Deus.

O grego Epicuro lançou, pela primeira vez, no século IV a.C., alguns


rudimentos de um raciocínio que mais tarde daria origem à teodicéia: se
existe um Deus que é bom, e que criou o mundo, como é possível a
existência do mal? Seria Deus (ou ―os deuses‖, Epicuro era pagão,
politeísta) verdadeiramente justo? Essa questão vem perturbando os
pensadores desde a mais remota antigüidade. O assunto há séculos vem
dando margem a controvérsias e debates, e serve de munição para os
argumentos dos ateus, para os quais, por causa da existência do mal,
Deus não existe, ou se existe, não é bom.

A expressão teodicéia foi criada, como vimos, por Leibniz em um


ensaio em que o filósofo debatia a bondade de Deus, tentando estabelecer
assim um tratado racional sobre Deus, sobre a liberdade do homem e a
origem do mal. Perante o problema do mal, o filósofo assumiu uma
posição otimista, concluindo que o mundo criado por Deus ainda é o
melhor dos mundos possíveis.

A teodicéia surgiu a partir dos rudimentos de uma ―tradição‖


vigente, eminentemente religiosa, onde a natureza era um sistema onde o
acaso é fruto de um determinismo que os homens desconhecem, e o mal é
um elemento necessário para que ocorra o equilíbrio (a estética, já vista),
uma perfeição da qual o ser humano conhece somente uma parte do todo.
Ou seja: dessa doutrina, se pode inferir que todo o mal particular concorre
para um bem universal.

Assim, se a sabedoria de Deus escolheu este mundo para ser o lar


de sua Criação, não é lícito duvidar que este seja o ―melhor dos mundos‖.
Dentro desse ângulo de visada, pode-se ler que, em seus ensaios sobre a
teodicéia, Leibniz afirmou:

A imperfeição original das criaturas põe limites à ação do Criador


que tende para o bem. E como a matéria mesma é um efeito de
Deus, não pode ser ela mesma a fonte do mal e de sua imperfeição.
Mostramos que essa fonte se encontra nas formas ou ideais dos
possíveis, e que não é algo oriundo de Deus 75.

Pois, assim como um mal menor é uma espécie de bem, do mesmo

75
In: Teodicéia, 31
73

modo um bem menor é uma espécie de mal, se criar obstáculos a um bem


maior; e haveria algo a ser corrigido nas ações de Deus, se houvesse um
meio de fazer melhor. Deus quer fazer um bem maior, mas esse desejo –
segundo Leibniz – às vezes esbarra na limitação humana. Isto não
significa cair na armadilha do otimismo leibniziano, onde tudo é para o
melhor, e até o mal contribui para isto. O homem é um ser de antecipação,
legítimo zôon proleptikon e não somente alguém amparado no presente e
saudoso do passado.

O que causa o mal não é a matéria, mas a limitação da natureza


criada. Essa referência ao chamado ―mal metafísico‖ (oriundo da limitação
humana) é a perspectiva principal do mal na concepção de Leibniz. Ela é,
sem dúvidas, a porta de entrada para abordar (e entender) tanto o mal
físico (a dor) quanto o mal moral (pecado).

A teodicéia – trocada em miúdos – se formos buscar o animus de


Leibniz, seu criador, é muito claramente uma teoria criada – como o livre-
arbítrio de Santo Agostinho – para ―defender Deus‖, muitas vezes
questionado (e até acusado) pela objeção do mal.

Na teologia protestante contemporânea, vamos encontrar o suíço K.


Barth († 1968) que afirmou que a teodicéia de Leibniz é uma ―lógica
quebrada‖, onde Deus traz o prêmio (o bem) com a mão direita, e o castigo
(o mal), com a esquerda 76. Voltaremos a falar em Leibniz e sua teodicéia
no Capítulo IV.

76
Gott und das Nichtige (Deus e o nada). Frankfurt, 1963. (T. do A.).
74

III

O bem e o mal nas religiões

Não paguem o mal com o mal, nem o insulto com outro insulto; pelo
contrário, abençoem, porque para isso vocês foram chamados, isto é, para
serem herdeiros da bênção. De fato, aquele que ama a vida e deseja ver
dias felizes guarde sua língua do mal e seus lábios de proferir mentiras;
afaste-se do mal e pratique o bem, busque a paz e procure segui-la (1Pd 3,
9ss).
75
76

1. Nas culturas neolíticas

O homem da Idade da Pedra já temia o mal. Atestam-no as pinturas


rupestres, uma arte bem primitiva, encontrada em cavernas da Europa
Central, da África Setentrional e da Ásia, em que aparecem pessoas, em
atitude súplice, de mãos estendidas para o alto, como a pedir proteção de
animais sagrados e entidades sobrenaturais.

Os homens das cavernas, incultos, desprotegidos e selvagens, quase


primatas, temiam o mal como ameaça à sua integridade e sobrevivência.
Nesses temores incluíam o relâmpago e a escuridão, a chuva, a inundação
e a seca, os animais predadores, a fome, os inimigos e os ―maus espíritos‖.
Mesmo assim, desenvolveram uma crença primitiva sobre a existência de
―alguém‖ invisível, que os defendia desses males.

As descobertas arqueológicas de fins do século XIX revelaram que


em algumas culturas neolíticas havia rituais específicas visando proteção
contra os males, bem-estar do clã, paz e descanso aos mortos. A mais
famosa descoberta nesse sentido, verificada na França, em Chapelle-aux-
Saints, no ano de 1908, nos mostra oferendas às entidades sobrenaturais,
objetivando uma defesa contra os males.

Desde essa antigüidade remota, há achados em cavernas77 que


também nos remetem à idéia de que aqueles povos primitivos já temiam o
mal metafísico (maus espíritos, animais sobrenaturais, bem como a volta
de inimigos mortos). O costume de cremação dos mortos aponta para este
temor: eles receavam que os corpos dos mortos (pessoas e animais) fossem
tomados por espíritos maus e voltassem para assombrá-los ou cometer
maldades. O homem da caverna temia vários males, principalmente os
que ele não podia enfrentar nem tampouco explicar. Em sua concepção
pouco esclarecida, tudo que não fosse percebido por sua experiência,
configurava uma ameaça, diante da qual eram necessários mecanismos de
proteção.

A humanidade antiga sofreu ponderáveis percalços, oriundos da


natureza (mal físico), cujas causas nem a ciência moderna sabe explicar
direito. Primeiro foi a glazialzeit (Idade do Gelo).

O período das glaciações teve início, segundo especulações


científicas (nada ainda bem comprovado) há 500 milhões de anos.
Glaciação (Ice Age ou Glazialzeit) é o processo de extensão e
intensificação da ação exercida pelas geleiras sobre a superfície da

77
As principais descobertas situam-se nos Montes Zagros, no Iraque.
77

terra. Estes episódios deixaram marcas na superfície do planeta [...]


provocando mortes e redução das áreas habitáveis 78.

As tragédias glaciais ocorreram em diferentes épocas na história


geológica da terra. A concentração desses períodos, no entanto, aparece
na era paleozóica. Depois do caos das glaciações, veio outro, talvez pior: o
degelo, que resultou nos ―dilúvios‖, com enormes e igualmente trágicas
inundações.

Com o degelo ocorreram enchentes e mortes, que podem ter dado


origens aos mitos dos ―dilúvios‖ existentes na maioria das civilizações
antigas, narrados, privilegiadamente, na Bíblia, Gilgameš e Vedas. O fim
das glaciações, que provocou as inundações, teria ocorrido por volta de
8000 a.C., quando o planeta alcançou o chamado optimun climático. Em
escritos e imagens antigas, com origem no período ágrafo, os arqueólogos
identificaram textos, tipo orações de impetração, ao estilo ―livrai-nos do
mal...‖, relacionando o frio, a inundação, a fome, os inimigos e a morte.
Estes eram os medos do homem neolítico, que diferem pouco de nossos
temores sobre os males modernos.

2. No Oriente Médio

A produção cultural do Oriente Médio oscila, em geral, entre


tradição, mitologia e religião. Deste modo, toda a pesquisa precisa estar
atenta a esses elementos, pois tomar um pelo outro pode induzir o
analista, o místico ou o leitor a erros ou desvios de interpretação, capazes
de invalidar todo o estudo.

A palavra mitologia vem de mythos, , que no grego aponta


para uma realidade fantástica, sobrenatural. geralmente simbólica. Por
enquanto ficamos com essa breve conceituação, pois iremos falar mais em
mitologia adiante.

Ponto alto da mitologia do Oriente Médio é o dilúvio, já mencionado


no tópico anterior. Os escritos religiosos e culturais dão conta, de forma
antropomórfica, que Deus ―cansou-se‖ dos vícios da humanidade,
―arrependendo-se‖ de havê-la criado. O maniqueísmo de todos os tempos
enfatiza a ―vingança de Deus‖ que salva os bons e deixa morrer aos maus.

Na arte sumeriana (a arte é uma forma eficaz se de estabelecer a


leitura da cultura de um povo), a partir das ruínas de Lagaš 79,
arqueólogos descobriram antigos túmulos de reis, sacerdotes e
funcionários do governo, onde em tabuletas de argila (óstracos), havia

78
A. M. GALVÃO, As antigas civilizações do Oriente Médio. História, cultura e religiões da Palestina pré-israelita. Ed.
Ave-Maria, 2003.
79
Na transliteração de palavras orientais, o š tem som de ch.
78

orações, onde era pedida aos deuses, proteção contra o mal. Entre os
acádicos, Gullah, a deusa da medicina, era invocada como aquela que
―livra o povo de todos os males‖, nesta e na(s) outra(s) vida(s) futura(s).

Dentre as divindades do Oriente Médio (Canaã, Ugarit, Fenícia,


Suméria, etc.), as que mais sobressaem, invocadas em cultos
impetratórios de paz, fartura e bonança, são os irmãos-amantes Baal
(deus agrário) e Anät (deusa da maternidade), filhos de El, o Deus-único.
O nome Baal é traduzido como o kyrios grego, senhor, marido, dono. É a
divindade da natureza, das colheitas, da chuva que fecunda. Enfim, é a
entidade do bem.

No contraponto dialético de Baal (o bem), surge Môt (o mal), um


satanás (inimigo), entidade adversária que traz a seca, a miséria, a
esterilidade (dos rebanhos) e a fome. Há outras deidades maléficas, como
Yâm (inundações), Rešef (pestes e doenças), etc.

Anät, como amiga, irmã e consorte, é a ajudante de Baal na


restauração da terra, depois da devastação levada a efeito por Môt e seus
companheiros. Ela é a intercessora junto a Baal, na defesa da
humanidade, contra os ataques dos seres maléficos. Como deusa da
fertilidade e da abundância, ela é em geral representada por uma mulher
grávida (vida), de seios grandes (alimento). Na mitologia da região, Anät
muda de nome, conforme o lugar onde ela é cultuada. Assim, vamos
encontrá-la como Aštarte, Astartê, Astarote, Ašera, Polimaste (seios
grandes), na cultura grega, e Ištar (Ishtar) no Irã-Iraque.

No confronto com Môt, Baal morre. Desesperada, depois de matar o


inimigo, Anät mói o corpo do irmão, semeando-o na terra, para que, como
nos ciclos da natureza, ele torne a nascer todos os anos, a partir da
primavera, alternando a fartura (o bem) com a miséria da seca (o mal) 80.
É o eterno ciclo da luta entre o bem e o mal.

A morte e o retorno à vida de Baal parece ter por base as


alternâncias das estações do ano, pois enquanto se experimenta a
seca, exterminando a vegetação e a vida animal, há o domínio de
Môt, e o deus Baal está morto. Mas quando há chuva, a terra torna-
se fecunda e a vegetação aparece exuberante. Isto significa que Baal
retorna à vida provocando o aniquilamento do deus Môt. É o bem
que supera o mal 81.

Na mitologia assíria, encontramos o deus Moloc (ma-lãk, rei), misto


de entidade maléfica e benfazeja, venerado e temido nas regiões de Mari,
Ur e Karkemiš. Para acalmar a ira de Moloc, o povo da antiga Canaã

80
Há uma teoria, abraçada por raros autores, na qual Anät mata e mói o corpo do próprio Môt.
81
P. KRAMER, A religião cananéia. Tese de Doutorado. PUCRS, Porto Alegre, 1996.
79

costumava sacrificar crianças, queimando-as vivas, num tofet (forno). Há


referências a Moloc, Baal e Anät (Astarote) no Antigo Testamento.

Na mitologia irânica (ou persa, como afirmam alguns estudiosos)


nos revela o embate entre Aura-Mazda (bem, luz, vida, verdade) e Arimã
(mal, morte, trevas, doenças, mentira). Após a luta, Aura-Mazda vence
Arimã, que passa a ser chamado de baal-zebub 82. A mitologia persa, por
sua proximidade com os judeus deportados na Babilônia, influenciou a
cultura e a religião judaica.

O conceito pós-vida do Zoroastrismo (Pérsia, séc. VI a.C.) era o mais


materialista de todos os sistemas mítico-religiosos do Oriente Médio.
Segundo essas doutrinas, tudo tinha fim na morte. Mesmo assim,
aquelas culturas possuíam seus amuletos e talismãs, capazes de
livrá-los de todo o mal. Físico e espiritual 83.

Da mesma mitologia do Oriente Médio vem-nos também,


personificando o mal, a lenda de Lilith, pertencente à tradição dos textos
da mitologia cananéia como também das regiões da Siro-Fenícia, Nínive,
até Nippur, nas planícies do Iraque. Na demonologia assírio-babilônica,
ela é vista como Lilitu, o demônio feminino da tempestade. Há uma
interpolação do mito Lilith na história do nascimento da mulher. Nas
crenças cananéias, com reflexos em algumas formulações esotéricas de
hoje, há relatos de que Lilith teria sido, antes de Eva, a primeira mulher
de Adão.

Como é fato comum entre as lendas, existem diferentes versões


sobre o caminho de Lilith, no Zohar, o livro do Esplendor (Cabala) e o
Talmude (o livro dos hebreus) e em outras literaturas.

Conta a lenda que, em contradição com a Bíblia, Eva não teria sido
a primeira mulher de Adão. Trata-se de uma visão primitiva das culturas
orientais. A Bíblia diz que Deus formou o homem Adão à sua imagem, e
depois dele, a mulher, a partir de uma costela. Os relatos mesopotâmicos
dão outra versão: Depois do homem, durante a noite, do mesmo barro, o
Criador teria feito a mulher, Lilith, linda e perfeita. Mas Lilith estava
disposta a viver de outra forma, diferente da qual era esperada pelo
Criador.

Na convivência com Adão, Lilith entrou em contradições com seu


companheiro, reivindicando igualdade de papéis, causando grande tensão
à relação. Vendo que seus desejos estavam impedidos por especificadas
regras e que não poderia atingir o que desejava, Lilith se rebelou e,
decidida a não submeter-se a Adão, tornou-se sua inimiga. Vendo que o

82
Baal-zebub (belzebu) quer dizer “senhor das moscas”. Arimã teria vindo ao mundo, sobre o esterco, em forma de
mosca.
83
As antigas civilizações... op. cit.
80

marido não atendia seus desejos, que não lhe daria uma condição de
igualdade (uma atitude ativa na relação sexual), ela resolveu abandonar o
companheiro. As narrativas sumérias contam que Lilith se revolta,
blasfema contra Deus, faz acusações a Adão e vai embora. É o momento
em que o sol se põe e a noite começa a descer o seu manto de escuridão. É
a hora em que os espíritos maus, talvez os ―anjos caídos‖, começam a
subir das trevas.

O homem-Adão – diz a lenda – sentiu a dor do abandono. Passando


por uma noite terrível de frio e pavor, sufocado pelas trevas e pela solidão,
sentindo-se como se tudo estivesse acabado. Lilith teria seguido no rumo
do Mar Vermelho, uma região de cavernas, habitada por demônios e
espíritos malignos onde, segundo a tradição cananéia, ela uniu-se a um
deles e, em conseqüência dessa união, teria dado à luz aos nefilim, e toda
uma descendência demoníaca. No folclore e mitologia oriental, Lilith está
sempre associada ao mal. Na fabula, Adão queixou-se a Deus sobre a fuga
de Lilith e, para compensar sua tristeza, Deus tomou-lhe uma costela e
criou Eva, moldada exatamente dentro das exigências da cultura
patriarcal semita. A mulher feita a partir de um fragmento de Adão, é o
modelo feminino especificado pelo padrão da ética judaico-cristã: uma
mulher submissa e voltada ao lar. Assim, enquanto Lilith é força
destrutiva, a personificação do mal, Eva é construtiva e mãe de toda a
humanidade.

Desatinada, Lilith desafiou o homem (o que era uma quebra radical


de paradigma nas sociedades semitas), profanou o nome do Criador e
juntou-se às criaturas das trevas. Já que ela não podia ser feliz, ninguém
seria... Estava declarada a guerra. Os homens, as crianças, os doentes e
os recém-casados, eram as principais vítimas de sua vingança. Ela
surpreendia os homens durante o sono e os envolvia com toda sua fúria
sexual (vingando-se por ter sido obrigada a ficar sexualmente submissa
nas relações com Adão). Esses mesmos relatos mitológicos suspeitam que
a serpente que tentou Eva, seria a própria Lilith. Há uma breve referência
a Lilith na Bíblia (cf. Is 34,14).

3. Na visão do Judaísmo

A questão do mal tem sido um desafio milenar para pensadores


ocidentais. Os antigos hebreus acenderam a chama da discussão com o
mito da Queda, no Gênesis, e provocaram reações extremas com o Livro
de Jó, que inspirou vasta literatura, levando Leibniz, no nascedouro do
iluminismo, a inventar a palavra teodicéia para sustentar a defesa de um
Deus bom e justo que, segundo o iluminista Pierre Bayle, estava em
julgamento por ter podido criar um mundo contendo menos infortúnios e
escolheu não fazê-lo.

No livro do Gênesis, o mal que sobrevem é mostrado como algo que


tem origem em um personagem até então desconhecido: o demônio-
81

serpente, único responsável pelo evento danoso da queda do ser humano.


Esse mal, que não faz parte do projeto criacional, deflagra uma
―desordem‖ no paraíso. Satã quer dizer desordeiro.

Para Santo Tomás de Aquino, essa ordo disordinis (a ordem da


desordem), essa incidência do mal, original e primeiro, não deve ser
procurada nem no lado de Deus nem no lado do homem. Essa
premissa precisa ser fartamente estudada. O problema do mal não
pertence nem a Deus nem ao homem, mas ao demônio-serpente-
enigma 84.

Na cultura hebraica do Antigo Testamento, tida, em alguns pontos,


como uma mitologia, encontramos referências a um ser ―iluminado‖, tanto
assim que ele recebe os títulos de ―estrela d‘alva‖, ―filho da luz‖,
descendente da aurora‖. Seria Baal? Ou seria Satã? E tudo culmina no
nome ―Lúcifer‖ (lux, luz + fero, trazer). O nome Lúcifer serve para
denominar o ―anjo da luz‖. A lenda de Lúcifer desvenda a essência da
práxis demoníaca: a ambição, a vaidade, o egoísmo e a busca desmedida
pelo poder. Coisas que existem hoje, sensíveis no vizinho da esquina, em
mim, em você...
Em um dos escritos de Orígenes († 254), um dos ―pais da Igreja‖,
referindo-se a Satanás, vamos encontrar:
Aquele que antes foi luz, perdeu-se, caiu, virando trevas, e sua glória
foi transformada em pó 85.

Deus-Javé propõe a Israel, assim como a nós, hoje em dia, dois


caminhos, duas alternativas, o bem ou o mal, a felicidade ou a desgraça: a
vida ou a morte. Quem escolhe o bem, tem vida; quem opta pelo mal,
colhe sementeiras de morte (cf. Dt 30, 15-18). Segundo o autor sagrado,
bem e mal, felicidade e desgraça, vida e morte, dependem da opção
histórica que se faz entre Javé e os ídolos.

Não se trata de visão depreciativa ou herética o fato de se falar na


existência de mitologias no Antigo Testamento. Sabemos que todo o
processo cultural e histórico de um povo ou de uma época, traz consigo
fatos, relatos histórico e alguma dos mitos que povoam o inconsciente
coletivo das pessoas. Pois a cultura judaica, de onde nasce o Antigo
Testamento, é historicamente permeada pelas idolatrias dos povos
vizinhos a Israel:

 criação de ―lugares altos‖ onde acontecia a adoração de

84
A. GESCHÉ, op. cit.
85
In: Tetraplas, 1
82

deuses, sátiros e ―árvores sagradas‖;


 prática da ofiolatria (adoração de serpentes);
 sacrifícios humanos (em geral de crianças);
 práticas sexuais como sinal de abastecimento de energia vital,
sob inspiração religiosa (a hierodulia).

A idolatria é, antes de tudo, um comportamento, uma prática. Por


isto, a pergunta-chave será: a quem se serve de fato? Ao Deus da
vida ou aos ídolos da morte? O Antigo Testamento descreve e
denuncia essas atitudes idolátricas, como cerne de todo o mal 86.

No panteão cananeu, Baal só faz o bem. Na Bíblia ele personifica o


mal. Tanto assim que ao ver o povo indeciso entre o bem (adoração a Javé)
e o mal (cultos às divindades pagãs), o profeta Elias chega a indagar:

Até quando vocês vão dançar, ora sobre uma perna ora sobre a
outra? Se Javé é o Deus verdadeiro, sigam a Javé; se é Baal, sigam a
Baal (1Rs 18,21).

Alguns autores bíblicos não fogem do tema da relação entre Deus e o


mal. É inadmissível para eles (como para nós) a idéia de um Deus Criador,
justo e misericordioso, e a existência paralela de um mal, muitas vezes
fora de controle. Sem saber como desvendar esse mistério, o profeta
Habacuc queixou-se:

Tu, que tens olhos tão puros que não podes ver o mal, nem
contemplar a perversidade, por que olhas para os que procedem
traiçoeiramente e te calas enquanto o ímpio destrói aquele que é mais
justo do que ele? (1,13).

Nas mesmas águas, o juiz Gedeão perguntou:

Ai, Senhor meu, se o Senhor é conosco, por que todo este sofrimento
nos sobreveio? (Jz 6,13).

No segmento helenista das Escrituras, o autor preconiza que a


superveniência do bom sobre o mal deve imperar nos corações daqueles
que são fiéis a Yahweh e querem seguir por seus caminhos. Nessa prática,
o perdão encaminha a vitória do bem sobre o mal:

86
G, GUTIÉRREZ, O Deus da vida. Ed. Loyola, 1990.
83

Perdoa a injustiça cometida por teu próximo: assim, quando orares,


teus pecados serão perdoados. Se alguém guarda raiva contra o
outro, como poderá pedir a Deus a cura? Se não tem compaixão do
seu semelhante, como poderá pedir perdão de suas faltas? (Eclo,
28,2ss).

Em outro trecho, no mesmo capítulo, fiel ao espírito sapiencial, o


autor adverte a respeito do mal, da vingança e de todos os atos que são
capazes de desencadear mais violência:

Quem cava um buraco, nele cairá; quem prepara uma armadilha,


ficará preso nela. O mal se volta contra quem o pratica, sem que a
pessoa saiba de onde ele vem (Eclo

A questão do povo judeu, na hora do sofrimento (por exemplo as


invasões estrangeiras e o exílio) é, se, de acordo com a Torá (a Lei), os
nebiim (os profetas) e os ketuvim (os demais escritos), Deus, que é
onipotente e bom, decretou desde toda a eternidade tudo o que vem a
acontecer, e se ele, soberana e providencialmente, controla todas as
coisas, não é de suspeitar que ele seja o autor do mal? Como pode o mal
existir no mundo? Como justificar as ações de Deus como causador do
mal, do sofrimento e da dor? Esta é a questão fundamental da ―teodicéia‖.

Santo Agostinho, também ponderou sobre a natureza do mal,


desvinculando-a totalmente de Deus. Em sua obra ―A Cidade de Deus‖,
como em seus outros escritos, ele sustentou que desde que Deus criou
todas as coisas boas (Gn 1,31), o mal não pode ter uma existência própria.
O mal é a ausência do bem, como a escuridão é a ausência da luz. O mal,
portanto, não é a presença positiva de alguma coisa. Desse modo, o mal
não pode ser a causa eficiente do pecado; trata-se, sim, de uma causa
deficiente na criatura. O mal, sendo a ausência do bem, ou a presença de
um bem menor, é o resultado de a criatura se afastar dos mandamentos
de Deus em direção a algo menos bom: a vontade da criatura.

O crente hebreu atribuía uma total soberania a Yahweh a tal ponto


de considerá-lo Senhor da salvação e também da perdição. Para eles, tudo
tinha origem, tanto o bem quanto o mal, tinha início em Deus.

Mesmo nos textos em que o mal é atribuído a Iahweh, de maneira


alguma se exclui a responsabilidade do ser humano na existência e
no desenvolvimento desse mal 87.

87
A. G. RUBIO, Unidade na pluralidade. Ed. Paulinas, 1989.
84

Tanto no judaísmo antigo, como no cristianismo, a figura do pecado


original retrata a irrevogabilidade do mal. O ser humano nasce, desde sua
origem, com essa mancha. Hoje, alguns teólogos proclamam a teoria (que
não é bem vista por certos segmentos da Igreja) de um mal não-
hereditário, mas uma propensão ao desajuste.

4. Nas mitologias e religiões Orientais

O termo mitologia refere-se ao estudo e a interpretação do conjunto


dos mitos de uma determinada cultura. Por mito entende-se um fenômeno
cultural complexo que pode ser encarado de vários pontos de vista. Em
geral é uma narração que descreve e retrata em linguagem simbólica a
origem dos elementos e postulados básicos de uma cultura. A narração
mítica conta, por exemplo, como começou o mundo, como foram criados
os seres humanos e os animais, bem como a origem de certos costumes e
formas das atividades humanas. Na mitologia encontramos as teogonias
(descrição do nascimento dos deuses) bem como as teocrasias
(características das ―fusões‖ de algumas divindades). Quase todas as
culturas possuem ou possuíram mitos algum dia. E viveram de acordo
com eles.

Antes de mais nada, o homem deste século tem sofrido ―lavagem


cerebral‖ por parte do pensamento materialista. Num mundo
racionalista e pragmático como o nosso, não há lugar para coisas
como o princípio da destrutividade, por exemplo, cuja existência não
pode ser admitida porque não se trata de algo nem racional nem
material. Ante a necessidade de considerar o mal como algo
possivelmente mais substancial do que a mera ausência do bem, as
pessoas são obrigadas a rever toda a sua visão de mundo, o que é
uma tarefa muito dolorosa e bastante difícil. O melhor é
simplesmente negar a realidade de um princípio assim tão acabado
.88

Em muitos casos, o homem não quer admitir-se menor que seus


males, sejam eles a doença, a covardia. a bancarrota, a impotência física
ou os demônios, dentro ou fora dele. Por causa disto, ele dá livre curso às
suas fantasias. Daí surgem os mitos, que são a otimização de uma
situação nunca desfrutada pelo ser humano. Para o indivíduo poderoso,
vaidoso e materialista, o mal surge como uma situação-limite, pois
confronta-o com suas limitações. De repente ocorre algo que o dinheiro
não compra, o argumento retórico não desfaz, os ―seguranças‖ não detém,
ou os advogados não conseguem sustar. Ante a inevitabilidade do mal, o
homem vê desabar seus arquétipos materiais. O místico deriva para a fé; o
descrente apela para os mitos.

88
T. K. MORTON, Myth. History and Faith, Nova York, 1974.
85

A seqüência do mito é extraordinária, desenvolvida num tempo


anterior ao nascimento do mundo convencional. Como a maioria dos
mitos se referem a um tempo e um lugar extraordinários, bem como a
deuses e processos sobrenaturais, têm sido considerados aspectos
originários da maioria das religiões. Porém, como sua natureza é
integradora, o mito pode iluminar muitos aspectos da vida individual e
cultural, num espaço de tempo bem à frente do tempo em que surgiu.

Desde os primórdios da cultura ocidental, o mito apresenta um


problema de significado e interpretação que tem gerado controvérsias
sobre o valor e a importância das formulações mitológicas. Do modo como
os seres humanos são forçados a reagir à vida em termos de bem e de
mal, não é nada surpreendente que as mitologias e as religiões do mundo
tenham sempre tentado, cada qual à sua maneira, explicar a origem e a
presença do mal. Por conta disto, a figura do mal, em suas diversas
características, também está presente nas mitologias, bem como nas
religiões-filosofias orientais.

Nos tópicos anteriores já falamos em mitologias. Aqui vamos


desenvolver mais um pouco o tema, analisando os mitos da cultura grega,
budista, hinduísta, egípcia, islâmica, escandinava, africana e americana.

Fatalista, o mundo antigo, especialmente o grego, cinco séculos antes


de Cristo vivia sob o signo do temor, onde o destino (a môira) e o
imprevisto (a eimarméne) praticamente ―davam as cartas‖ Já vimos isto,
antes. Esse imprevisto ia a tal ponto, que até Zeus, o ―pai dos deuses‖, foi
submetido aos ―fados‖. Esse império da fatalidade se traduz, na visão da
filosofia, pelo conceito de necessidade causal, presente na metafísica
helênica, máxime em Parmênides († 450 a.C.), Zenon, de Cítio († 425 a.C.)
e, mais tardiamente, em Aristóteles († 322 a.C.). No plano moral, a
questão incide para o lado da resignação estóica 89.

No plano estético, as façanhas dos semideuses e antigos heróis


gregos contrabalançavam os fados do destino e as desgraças. É o caso, no
terreno das tragédias de Édipo, Antígona, Sísifo, Prometeu e outros. Na
impossibilidade de retirar-lhes os males sofridos, os autores acrescentam-
lhes, para além do mal, a coragem, o valor moral e a notoriedade histórica.
E os deuses, como enfatiza Gesché, ―permanecem implacáveis, incapazes
ou cegos‖ 90.

É interessante observar que entre os gregos não havia uma entidade


que especificamente personificasse o mal, de uma forma isolada. Havia
seres que guardavam os infernos (a região dos mortos), mas não

89
Veja mais sobre mitologia em mithos.cys.com.br
90
Op. cit.
86

praticavam, eles, diretamente o mal. Cada divindade (e constata-se aí um


grande antropomorfismo) era capaz de praticar o bem, assim como o mal
(por ciúme, inveja, vingança ou capricho) 91. No terreno da maldade, nem
mesmo o Hades, soberano das ―regiões inferiores‖ (a morte) era mau. Ao
contrário do Diabo judaico-cristão, que domina as almas dos condenados
ao inferno, Hades era tão-somente o guardião do reino dos mortos.

Os deuses e deusas da mitologia grega eram vulgares, mesquinhos e


vingativos. Eles raramente se preocupavam com os seres humanos.
Derramavam bênçãos e pragas conforme seus humores. Observa-se que
apenas Asklépios (o deus da cura) preocupou-se com o bem-estar da
humanidade, assim como o titã (semideus) Prometeu, que roubou o fogo
do céu (Olimpo) para dá-lo aos homens. Num Olimpo assim, com bem e
mal tipificando as atitudes das divindades, não houve a necessidade de
um demônio (mau espírito) para ser paradigma e personificação do mal.
Talvez essa distorção celeste tenha forjado o caráter violento, belicoso e
trapaceiro dos antigos gregos.

Os deuses gregos não queriam nada da parte dos homens.


Detestavam ser incomodados. Queriam reverências sem transtornos. Não
amavam os mortais e não faziam questão de ser por eles amados. Yahweh
(Javé) conforme nos atesta o judaísmo, era diferente. Mesmo sem dar
explicações de muitos de seus atos, como o oleiro não dá contas à argila
(cf. Is 29,16s), ele se importa com seu povo.
No budismo, o mestre Sidharta Gautama, chamado de Buda, o
iluminado († 483 a.C.), ante a ameaça dos males, recomenda a seus
monges, entre tantas opções, o ―caminho do meio‖. Num, há satisfações e
prazeres vulgares e degradantes; em outro, uma vida de sofrimentos e
mortificações, onde tudo é igualmente ignóbil e de mínimo proveito. No
―caminho do meio‖ (a moderação), a vida é reta e conduz à perfeição (o
nirvana) pelas ―oito veredas‖:

1. fé reta;
2. desejos retos;
3. palavras retas;
4. conduta reta;
5. vida reta;
6. mentalidade reta;
7. memória reta:

91
Por antropomorfismo (ántropo, humano + morfé, forma) entende-se uma crença ou doutrina que atribui a Deus (ou
aos deuses) formas, comportamentos, vícios ou atributos humanos.
87

8. meditação reta 92.

No hinduísmo, o bem e o mal são entendidos como duas ilusões, e


seu oposto está na divindade Brama. Para eles, o bem e o mal são
contingências inevitáveis, que não tem espaço na natureza divina. Nesse
tipo de formulação onto-teológica, a salvação não é obtida pelo seguimento
aos preceitos morais, mas pela contenção que se faz dos vícios, que na
visão do bramanismo trinitário chama-se ilusão. Morrendo a ilusão, a
alma da pessoa capacita-se a uma evasão, para atingir a comunhão com a
divindade, que chamam de nirvana.

Os espiritualistas modernos (de origem hinduísta e budista)


atribuem a origem do mal ao carma, pecados cometidos em vidas
passadas, etc. Alguns teólogos, como se verá adiante, mesmo teorizando
ad nauseam, mostram-se incapazes de explicar a mecânica do mal,
limitando-se a remeter o debate para o terreno do mistério.

Na mitologia egípcia, repete-se o triângulo cananeu. No panteão


acádico, a história girava em torno de Baal (o positivo), Môt (o negativo) e
Anät (a força moderadora). Dentre os mitos do antigo Egito, a entidade
benévola é Osiris, a malévola Seth (seu irmão, ambos são filhos de Geb e
Nut) e a síntese é feita por Isis (irmã-esposa de Osiris). Nessa perspectiva,
o bem (Osiris) aparece como a chuva, a fertilidade das cheias do rio Nilo, a
reprodução dos animais, a água de beber e a luz. Dele vem – dizem os
antigos papiros egípcios – todo o bem.

O mal (Seth) tem a figura de um crocodilo e é inimigo permanente de


Osiris. Ele representa a seca, a quebra das safras, as pestes e as
inundações destruidoras. Tudo o que é maléfico vem dele.

O malvado Seth odiava e tinha ciúmes de seu irmão, por isto o


matou (semelhança com Caim e Abel), cortando-lhe o corpo em quatorze
pedaços. Isis embalsamou o corpo do marido com a ajuda de Anúbis,
que desta forma tornou-se o deus dos funerais. Os feitiços poderosos de
Isis ressuscitaram Osiris, que tornou-se rei do mundo inferior. Pelo
tribunal de Osiris passam todos os mortos. Mais tarde, Horus, filho de
Osiris e Isis destrói Seth assumindo a hegemonia de todo o Egito.
Quando nasce Horus, o crocodilo tenta matá-la, mas a mãe é resgatada
para o deserto. Há aqui certa semelhança com o Capítulo 12 do
Apocalipse, onde o Dragão quer matar o filho da ―mulher vestida de sol‖.
Na cultura mitológica do Egito, foi institucionalizada a maat, uma regra
ética, moral e religiosa, criada pelas divindades, que veda a prática do
mal. Quando comparece ao tribunal de Osiris, a alma deve estar limpa
de maldades, quando deve proclamar sua defesa, recitando os oito itens
da maat :

92
In: Sermão de Benares, 538 a.C.
88

 não cometi iniqüidades contra os homens...


 não maltratei pessoas...
 não menti em lugar de dizer a verdade...
 não explorei o pobre e o necessitado...
 não prejudiquei o escravo...
 não vendi com balanças viciadas...
 não defraudei medidas de terras...
 não cometi adultério...
Nas culturas do Islã, conforme preconiza a sura 18 do Corão, há um
certo estoicismo, do tipo ―há males que vêm para o bem‖. A esse respeito
há uma narrativa curiosa, enfocada por C. G. Jung. Contam que Moisés e
o anjo Khadir andavam pelo mundo. Lá adiante, o anjo resolve derrubar
um muro. Moisés reputa este ato como uma maldade contra o dono do
terreno. A surpresa vem quando encontram, debaixo do muro, um
tesouro: uma caixa cheia de moedas de ouro e prata. Moisés tem a visão
limitada de sua perspectiva, do seu ego; o anjo vê pelo ângulo mais amplo
do si-mesmo. Por esta razão, as leis muçulmanas rejeitam o julgamento
humano, deixando essa função para seu Deus, Alá.

Conforme Jung, a função do sentimento é determinar o que é bem e


o que é mal. As pessoas – prossegue o psicanalista – orientam-se na vida
por uma ou mais das quatro funções psicológicas: pensamento, sensação,
sentimento e intuição. É a função sentimento que nos impele a fazer
afirmações, avaliações, etc. Por esta razão é conhecida como ―função
valorativa‖ 93.

Igualmente na mitologia escandinava vamos encontrar o confronto


entre o bem e o mal, na eterna luta entre Baldur e Loki. Encarnando o
mal, Loki mata Baldur, fazendo-o cair em sua armadilha. Sem poder
resistir, Baldur morre e se transforma em um vegetal, que dá água,
alimento e sombra. Por seu amado pelo povo, sua morte é melancólica,
geradora de incertezas, que só se dissipam com a ressurreição. É o
clássico gotterdammerung, o ―crepúsculo dos deuses‖.

Os povos da África também têm sua mitologia. Naquelas culturas,


conforme pesquisas de Jung, a dialética gira em torno da luz e da
escuridão. O sol, porque dá calor e luz, personifica o bem. No oposto, as
trevas, porque trazem o frio, os ruídos da mata, os ataques dos animais
e os fantasmas, representam o mal. Na dialética do evangelho de são
João, encontra-se essa oposição da luz e das trevas.

93
C. G. JUNG, Memories, dreams, reflections. Nova York, 1961.
89

Por fim, entre os índios da América, há a busca de situação


otimizada, como a ―terra sem males‖ e o ―eldorado‖, locais como a
―Cidade do Sol‖ de T. Campanela († 1639), o ―paraíso perdido― de J.
Milton († 1674) e tantos xangrilás sonhados, onde a exuberância do bem
não permite o surgimento do mal.

5. O enfoque Cristão

O cristianismo propaga, pela ressurreição de Jesus, a vitória da vida


sobre a morte, e assim destaca a derrota do mal, que se instaura na
criação desde o primeiro pecado. Todo o desajuste criacional tem sua
gênese a partir do pecado. Induzido pelos argumentos falsos da serpente,
o primeiro casal viola os regulamentos de Deus, e assim perde sua
condição de hóspede do paraíso, perde a visão de Deus, é jogado no ―vale
de lágrimas‖, onde a natureza é hostil, obrigando-o ao trabalho
transformador.

Mais do que a expulsão do paraíso, o ser humano, segundo a


tradição bíblica, perde o atributo da imortalidade, que possuía no convívio
com o Criador. Sobre esta relação pecado/morte São Paulo diria mais
tarde:

O pecado entrou no mundo através de um [só] homem e com o


pecado veio a morte (Rm 5, 12).

Pois a morte é o salário do pecado, mas o dom gratuito de Deus é a


vida eterna em Jesus Cristo, nosso Senhor (6,23).

Havendo o homem experimentado aquilo que a teologia bíblica


chama de ―queda‖, de imediato Deus promove um projeto, destinado a
resgatar os seres humanos do império do pecado e, conseqüentemente, da
morte. Esse projeto tem na encarnação de Jesus Cristo seu ponto alto,
que culmina com a ressurreição, que é a vitória sobre o mal, o pecado e a
morte.

No entanto, e este é o cerne do mistério, enquanto peregrina pelo


mundo, por esta vida material, o homem está sujeito às injunções do
pecado (próprio e de terceiros) e do mal, cuja origem ele não sabe definir.
Pelo correr dos séculos, a origem do mal nunca foi suficientemente
compreendida pela humanidade. As religiões, as filosofias e as
formulações esotéricas têm tentado, cada uma a seu modo, definir, sem
sucesso, porém. Tudo vai muito bem, até a hora em que surgem questões
a respeito do sofrimento injusto, cruel, suportado pelo inocente.
90

Pastoralmente, o enfoque cristão remete para um estoicismo, no


qual a vítima, a exemplo do ―servo sofredor‖ (figura de Jesus) deve
suportar o mal e sofrer calado, pois desse mal advirá um bem maior,
nesta vida ou na futura. A figura paulina da cruz que deve ser assumida
com resignação faz parte desse modo de enfrentar o sofrimento. A questão
toda está numa pedagogia que ensina a suportar, a entregar, mas não
explica certos pontos obscuros nem dirime dúvidas quanto à erradicação
desses males no futuro.

Os escritos do início do cristianismo, endereçados à Igreja primitiva,


estabelecem, de forma clara, os critérios de Deus, capazes de favorecer o
bem e rejeitar as más ações do seu povo. Na pedagogia do apóstolo Pedro,
quase ao final do primeiro século, encontramos esses critérios, que
orientam até hoje o pensamento da Igreja.

Os olhos do Senhor estão voltados para os justos e seus ouvidos


atentos às suas preces. Ao contrário, o rosto do Senhor se volta
contra os que praticam o mal (1Pd 3,12).

Certa vez escutei um pregador, referindo-se ao mal sofrido por uma


pessoa, dizer que Deus é maior que todos os males, e não era preciso
contar a Deus a extensão do mal que ela sofria; mas importava dizer ao
mal o poder do Deus dela. Voltaremos a este assunto mais adiante.

Para concluir, observa-se que São Paulo, injetando esperanças nos


primeiros cristãos, afirma que o discípulo de Cristo não vive para si
mesmo, mas para Deus, a quem pertence. Assim, o mal é vencido e toda a
história humana vai desembocar, na eternidade, em Deus, aquele que é o
bem.

Portanto, vivos ou mortos pertencemos ao Senhor. Cristo morreu e


ressuscitou exatamente para isto: para ser o Senhor dos vivos e dos
mortos (Rm 14,9).

6. No pensamento dos ateus

Quando se fala em hereges, agnósticos ou ateus, há que se


estabelecer algumas diferenças conceituais. Embora muita gente
confunda um com outro, afirmando serem sinônimos, pode-se ver uma
diferença bem sensível e facilmente observável. O chamado ateísmo, na
dificuldade de estabelecer uma linha de raciocínio capaz de solucionar
certas questões – a do mal, por exemplo – assume uma atitude simplista:
exime-se da culpa, imputando-a a Deus que, havendo criado tudo,
também teria criado o mal. Aqui o ateu vai adiante: sabe que Deus existe
mas imputa-lhe defeitos: converte-se, pois, em um herege. Este tipo de
crítica é ilógica, pois se o ateu afirma que Deus não existe, como pode, na
hora do aperto, colocar a culpa em alguém que ele afirma não existir.
91

Neste caso, a afirmação ―Deus não existe!‖ revela-se uma premissa


semanticamente ilógica. Deste modo, o ateu, ao negar a existência de
Deus estabelece, na negação, volens nolens, uma relação de nexo causal.

O herege, por exemplo, não é um ―inimigo de Deus‖, explicitamente


declarado, já que ele admite sua existência plena, mas desmerece seu
poder e suas virtudes, à medida em que se afasta do ensinamento das
Escrituras e da Igreja. Cria para si um modelo de divindade, adotando o
que lhe agrada e rejeitando aquilo que não lhe convém. É o caso de
teólogos que vêem em Deus apenas um suporte para suas teses
sociopolíticas, ou coisa parecida. Para eles, a questão não é do homem
criado ―à imagem e semelhança‖ de Deus, mas o inverso: um Deus que
caiba em seu modelo de religião, de pastoral ou de práxis social. Os
fundamentalistas, encontrados em todas as religiões, têm um pouco de
heresia em seus postulados.

O agnóstico é aquele simpatizante do agnosticismo, a doutrina que


reputa inacessível ou incognoscível ao entendimento humano a
compreensão dos problemas propostos pela metafísica ou religião (a
existência de Deus, o sentido da vida e do universo etc.), na medida
em que ultrapassam o método empírico de comprovação científica. Ele
acha tão difícil o conhecimento de Deus (pelo lado racional) que torna-se
um quase ateu, não buscando um acesso pela fé. O ateu diz que Deus não
existe, e não estabelece com ele nenhuma relação. Desta forma, ele
apontam para a impotência, ou mesmo a ―maldade‖ de um Deus, cuja
existência, por essa razão, ele nega. Provavelmente o argumento mais
popular contra a existência de Deus seja baseado na eterna pergunta: ―Se
existe verdadeiramente um Deus bom, então por que existe mal no
mundo?‖.
Tipicamente, o argumento soa como ―Já que o nosso mundo é cheio de
desgraças, um Deus bom e Todo-poderoso jamais toleraria o mal; logo, Deus
não existe!‖. Logicamente, este argumento envolve muito mais emoção
(agravada por algum rancor) do que razão, mas a questão acaba sendo
importante de se analisar. Na verdade, ela pode ser expressada de
diversas maneiras.

Há, no contexto do pensamento humano, alguns filósofos modernos


que colocam o tema em termos mais radicais, do tipo ―Se Deus não vê o
que ocorre, é cego‖. Em sua reação à inexplicabilidade do mal, eles chegam
a negar a bondade de Deus, a partir de uma possível omissão da
divindade diante do sofrimento do homem. Não que se deva rotular todos
de ateus ou hereges, mas, em muitos casos, o desespero de pensar o mal
sem encontrar saída ou autoria, tem levado muitos pensadores a
situações-limite, quando chegam a atribuir à divindade a culpa pelo mal.
Ou pelo menos culpa pela não erradicação deste.

De um lado, o filósofo A. Camus († 1960), argelino naturalizado


francês, vê um tédio na vida, onde o homem é um marionete nas mãos do
92

Criador 94. Sua obra, com forte influência existencialista, retrata a


impotência humana diante do absurdo da vida Nessa perspectiva, ele luta
a vida inteira contra o mal e, qual um personagem da tragédia grega,
sempre acaba sucumbindo a ele. Pois Camus – afirmando ter outra idéia
de amor – recusa-se a amar uma ―criação‖ na qual as crianças são
torturadas 95. Ele referia-se ao extermínio dos judeus nos campos
nazistas. Na história de Sísifo, o mitológico herói grego, vítima dos
caprichos dos deuses, empurra, pela vida afora, um enorme pedra,
montanha acima. Sempre que vai atingir o cume, a pedra escapa, rola, e
tem que ser empurrada outra vez. Indefinidamente. Às vezes, algumas
empreitadas na vida do ser humano se parecem com esse castigo
mitológico. Quando o indivíduo parece que vai atingir a meta sonhada,
uma tragédia se abate sobre sua vida. Ai surge outra questão, de fundo
onto-axiológica: por que existe o mal se eu procuro ser bom?.

Na verdade, é por causa da ausência dessas respostas, que nasce o


desespero e a descrença, pelo menos em algumas pessoas. De acordo com
seu modo existencialista de julgar, o filósofo francês J. P. Sartre († 1980)
revela algumas formas, um tanto quanto nadificadas, (convertidas em
néant, nada) de ver a vida 96:

 uma náusea;
 um muro;
 uma paixão inócua;
 por não saber determinar-se, o homem, ser-em-si é
condenado à liberdade.

Há muito o que se especular na obra de Sartre. Falaremos mais


nele no Capítulo VI, quando iremos abordar o assunto ―liberdade‖.

Mais radical ainda, com relação à sua incompreensão quanto à


ocorrência do mal, são as formulações do filósofo argentino E. Sábato,
nascido em 1911 (segundo sei, ainda vive), um ateu confesso. Parar mim,
é mais herege do que ateu. Abaixo damos algumas de suas hipóteses,
nitidamente heréticas:

 Deus não existe;


 Se existe, é um canalha;
 Deus existe mas às vezes dorme: seus pesadelos são
nossa existência;

94
In: Le mythe de Sisyphe, Paris, 1942; Ensayos, Madrid, 1981.
95
In: La peste, Paris, 1947.
96
In: La nausée, Paris, 1938 (Esta obra foi composta, inicialmente, com o nome de “Melancolie”); Le mur, Paris, 1940;
L’être et le néant, Paris, 1943.
93

 Deus não é onipresente; não pode estar em todas as


partes: às vezes está ausente (em outros mundos?
em outras coisas?);
 Deus é um pobre diabo, com um problema
complicado demais para suas forças; luta com a
matéria como um artista com sua obra. Algumas
vezes, em algum momento, chega a ser um Goya,
mas geralmente é um desastre;
 Deus foi derrotado antes da história, pelo Príncipe
das Trevas; e, derrotado, convertido em suposto
diabo, é duplamente desprestigiado, posto que se lhe
atribui este universo calamitoso 97.

Há algumas referências a respeito do mal em F. Nietzsche (†1900).


Suas formulações não são muito esclarecedoras, mas vale observá-las no
contexto da anti-religião do filósofo alemão. Em Ecce Homo, Nietzsche
estabelece uma comparação entre o personagem Zaratustra e o semideus
Dioniso, da mitologia romana. Nessa formulação, ele concebe o primeiro
como o triunfo da afirmação da vontade de potência e o segundo como
símbolo do mundo como vontade, como um deus-artista, totalmente
irresponsável, amoral e superior ao lógico. Acima do bem e do mal.

Por outro lado, a arte trágica é concebida por Nietzsche como oposta
à decadência e enraizada na antinomia entre a vontade de potência,
aberta para o futuro, e o "eterno retorno" dos estóicos, que faz do futuro
uma repetição; esta, no entanto, não significa uma volta do mesmo nem
uma volta ao mesmo; o eterno retorno nietzschiano é essencialmente
seletivo.

Em dois momentos do ―Assim falou Zaratustra‖ (Zaratustra doente e


Zaratustra convalescente), o eterno retorno causa ao personagem-título,
primeiramente, uma repulsa e um medo intoleráveis que desaparecem por
ocasião de sua cura, pois o que o tornava doente era a idéia de que o
eterno retorno estava ligado, apesar de tudo, a um ciclo, e que ele faria
tudo voltar, mesmo o homem, o "homem pequeno". O grande desgosto do
homem, diz Zaratustra, aí está o que me sufocou e que me tinha entrado
na garganta e também o que a mim profetizara o adivinho: tudo é igual. E
o eterno retorno, mesmo do mais pequeno, aí está a causa de meu
cansaço e de toda a existência.

Dessa forma, se Zaratustra se cura é porque compreende que o


eterno retorno abrange o desigual e a seleção. Para Dioniso, o sofrimento,
a morte e o declínio são apenas a outra face da alegria, da ressurreição e
da volta. Por isso, "os homens não têm de fugir à vida como os
pessimistas", diz Nietzsche, "mas, como alegres convivas de um banquete
que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez mais".

97
In: Abaddón, o Exterminador, Madrid, 1974; Cf. do mesmo autor: Sobre héroes y tumbas, Barcelona, 1961.
94

De acordo com o pensamento de Nietzsche, o cristianismo concebe o


mundo terrestre como um ―vale de lágrimas‖, em oposição ao mundo da
felicidade eterna do além. Essa concepção constitui uma metafísica que, à
luz das idéias do outro mundo, autêntico e verdadeiro, entende o terrestre,
o sensível, o corpo, como o provisório, o inautêntico e o aparente. Não
podendo definir o mal – prossegue o filósofo – o cristianismo adia a
solução e a explicação para o futuro. Trata-se, portanto, diz Nietzsche, de
um ―platonismo para o povo", de uma vulgarização da metafísica, que é
preciso desmistificar.

O cristianismo é a forma acabada da perversão dos instintos que


caracteriza o platonismo, repousando em dogmas e crenças que
permitem à consciência fraca e escrava escapar à vida, à dor e à
luta, e impondo a resignação e a renúncia como virtudes 98.

São os escravos e os vencidos da vida, prossegue Nietzsche, que


inventaram a vida no além para compensar a miséria; inventaram falsos
valores para se consolar da impossibilidade de participação nos valores
dos senhores e dos fortes; forjaram o mito da salvação da alma porque não
possuíam o corpo; criaram a ficção do pecado porque não podiam
participar das alegrias terrestres e da plena satisfação dos instintos da
vida. Sob esse aspecto, Nietzsche duvidava da exatidão da filosofia:

Cada filosofia é uma filosofia de fachada; não se escrevem livros


precisamente para resguardar o que se guarda em si?. Cada filosofia
esconde também uma filosofia; cada opinião é também um
esconderijo, cada palavra também uma máscara. A exposição de
idéias pode, às vezes levar a uma armadilha 99.

98
In: Mais além do bem e do mal. Frankfurt, 1886
99
In: Para além do bem e do mal, Munique, 1886
95
96

IV

O mal, na visão da filosofia

Não fiquem admirados com isso, porque vai chegar a hora em que todos
os mortos que estão nos túmulos ouvirão a voz do Filho, e sairão dos
túmulos: aqueles que fizeram o bem, vão ressuscitar para a vida; os que
praticaram o mal, vão ressuscitar para a condenação (Jo 5, 28s).
97
98

1. Epicuro

A filosofia, ao contrário da ciências das religiões, tem buscado, ao


longo de sua cronologia, uma explicação definitiva e satisfatória para a
questão do mal. Perpassando praticamente todas as suas áreas, da
antropologia e da ética à teoria do conhecimento, cosmologia e metafísica,
quase todos os grandes filósofos escreveram, em algum momento, sobre o
mal. Neste capítulo vamos enunciar algumas soluções apresentadas para
a questão, por Pitágoras, Epicuro, Heráclito, Parmênides, Platão,
Aristóteles, Plotino, Santo Agostinho, Leibniz, Descartes e outros.

Preliminarmente, embora pareça um contra-senso, este capítulo


estuda Epicuro († 270 a.C.) em um tópico fora de ―os Gregos‖, como se o
filósofo do jardim não pertencesse àquele grupo. Acontece que, entre os
filósofos gregos, Epicuro é o que possui as idéias mais sui generis a
respeito do mal, razão pela qual optamos por isolá-lo daquele contexto,
colocando-o preliminarmente em evidência. Epicuro não é o primeiro a
levantar a questão, mas é o que o faz da forma mais contundente.

O mal, do ponto de vista filosófico, é um dano na ordem ético-moral,


que causa sofrimento, ruptura ou miséria. Na teologia, o mal surge
quando se aceita que existe um universo governado por um ser supremo
que é, ao mesmo tempo, bom e Todo-Poderoso. Numa formulação do
problema, atribuída ao filósofo grego Epicuro, ou Deus pode impedir o mal
e não o faz (e, com isso, não é bom), ou então quer impedir o mal e não
consegue (e, portanto, não é Todo-Poderoso). O problema do mal tem sido
uma preocupação central dos filósofos e de todas as grandes religiões.

Em fins do século IV, Santo Agostinho sugeriu que o mal, que não
foi criado por Deus, é a privação ou ausência do bem, filosofia que
teve grande influência entre os pensadores cristãos posteriores. Já
no século XVII, Gottfried Wilhelm Leibniz afirmou que o poder de
criação de Deus se limitava a mundos logicamente possíveis e que o
mal é uma parte necessária do ―melhor de todos os mundos
possíveis‖. As guerras e perseguições desencadeadas no século XX
minaram a crença secular num progresso inevitável e novamente
confrontaram filósofos e teólogos com o problema do mal 100.

Historicamente e hoje, inclusive, povos oprimidos pela guerra, pelo


desenraizamento, pelos conflitos étnicos, pelos genocídios atuais, pela
fome, pelas doenças e pelo descaso, repetem a secular pergunta de quem
se sente abandonado: Meu Deus, por que me abandonaste?‖. Do
estoicismo grego chegam-nos as conhecidas ―questões de Epicuro‖,
levantadas no século III a.C.:

100
In: Dicionário Essencial de Filosofia, Herder, Barcelona, 1981 (T. do A.)
99

Ou Deus quer eliminar o mal e não pode;


ou pode mas não quer;
ou não pode e não quer.

O próprio filósofo do jardim, um pagão no nosso modo de pensar a


religião, parece interpelar seu deus ou o conjunto de deidades que os
gregos reverenciavam (mais temiam que reverenciavam):

Se quer mas não pode, é impotente;


se pode mas não quer, é malvado: não nos ama;
mas, se pode e quer abolir o mal, então por que há o mal no
mundo?

Incrivelmente, este enunciado, as conhecidas e incômodas


―questões‖ servem para alimentar o debate filosófico e religioso atual, a
respeito do bem, do mal e da providência divina. O que Epicuro
questionou, lá pelo ano 280 a.C., ainda é escutado hoje, quando no
desespero de uma desgraça, alguma pessoa questiona a presença de Deus
na hora do fato danoso. As religiões, e em especial o cristianismo,
conforme vimos, tentam, por séculos, descaracterizar as questões,
apontando a solução a partir de outro enfoque.

2. Os gregos

Na filosofia grega, eminentemente especulativa, os pensadores


situaram a origem do mal numa deficiência do ser, que, de per si, estaria
sempre voltado para o bem. As ações más não derivariam de uma vontade
de praticar o mal, como na proposta religiosa, mas do erro ou da
ignorância do bem. O mal é um problema de conhecimento, ninguém peca
voluntariamente, afirmavam os filósofos. Nessa sugestão aparecem
componentes fundamentais do comportamento humano, como a unidade
de princípio e a dificuldade de apreensão da realidade, mas ela se revela
limitada.

Não são consideradas nesse conjunto, importantes experiências


relacionadas ao mal e adequadamente referidas no texto bíblico, como os
sentimentos de remorso e a aplicação de punições que levam a supor a
ocorrência de culpa, ou seja, de uma escolha livre e de uma decisão
voluntária. A pergunta básica, que nos é relatada pela história da filosofia,
aponta para a origem do ser. Ao indagar ―o que é o ser?‖ os primeiros
filósofos buscaram descobrir as origens da humanidade, e com elas a
incidência do bem e do mal.

Na môira, eles viam algo mais forte que eles, com a qual não se
podia lutar. Se o destino fosse benfazejo ou maléfico, nada podia ser feito.
É aquela história dos dois cães puxados pelo carro. Era preciso aceitar os
fados. Nas tragédias, por exemplo, alguns seres são fatalísticamente
100

―condenados‖ a praticar o mal, para cumprir o que ―estava escrito‖. Para a


maioria dos gregos, a vitória sobre o mal ficava restrita aos super-heróis,
com o apoio das divindades.

A primeira tentativa filosófica de definir o mal nos veio através do


orfismo 101 de Pitágoras († 580 a.C.). Pois o filósofo identificou o princípio
de todas as coisas com os números e suas proporções. Tais formulações
estabeleciam pares ordenados (que Descartes usaria depois) capazes de
estabelecer uma harmonia, determinada pelo equilíbrio estético dos pares
e dos ímpares. Nessa oposição de pares e ímpares, surge o ilimitado e o
limitado, a sombra (skiá) e a luz (fôs) e, por conseqüência, o bem e o mal.
Esta concepção dos pitagóricos a respeito do mal seria apropriada, mais
tarde, por vários pensadores, como Aristóteles 102, Plotino e Leibniz.

Apesar de imperfeito, reza a sabedoria dos discípulos de Pitágoras, o


mal é necessário, e assim torna-se um bem, à medida em que através dele
podemos admirar o que é perfeito. Tais idéias dialéticas dariam subsídios
posteriores à doutrina do maniqueísmo. Essa circulação do bem e do mal
também influenciaria, mais tarde, a exposição de Nicolau de Cusa (†
1464), chamada concidentia oppositorum.

Depois da filosofia mística e órfica (daí surgem os cultos mistéricos)


dos pitagóricos, o estudo sobre o mal iria ganhar novos caminhos, visões e
campos de debate.

Na filosofia de Platão († 347) encontram-se sentenças que afirmam


que o homem sem cultura é um malvado e responsável por todos os
desmandos. Como para o sábio grego, o bem é o saber, automaticamente
ele liga a ignorância ao mal. Segundo a concepção platônica de idéia,
como energia animadora do ser, no topós noetós (o mundo [lugar] das
idéias) é que ocorre a síntese entre a ignorância (o mal) e o conhecimento
(o bem). O centro de sua concepção filosófica original é a teoria das idéias,
uma especulação de base epistemológica e cosmológica. Para o
platonismo, a verdadeira sabedoria é preparar-se para a morte, onde o
homem livra-se do mal e aufere o bem em plenitude.

Platão também tem alguns tópicos interessantes. Tentando


responder esta questão, ele defende uma despotenciação ontológica do
mal. Ou seja: o mal, a rigor, não existe. O mal nada mais é do que a não-

101
O orfismo, era um culto místico da antiga Grécia, fundamentado nos escritos do lendário poeta e músico Orfeu.
Segundo esses princípios, os seres humanos procuram com esforço libertar-se do elemento titânico, ou representação
do mal, próprio da sua natureza, e procuram preservar o dionisíaco, como natureza do seu ser. O triunfo do
elemento dionisíaco pode ser atingido seguindo os rituais órficos de purificação e ascetismo. Se, de um lado, o
titânico (oriundo do titãs, elementos mitológicos, maus) indicava o mal, o dionisíaco apontava para o lúdico, a
bondade, o aconchego.
102
Metafísica, Ed. Loyola, 2002
101

existência de algo, a ausência do ser. É uma teoria que teve muita


influência posterior. Até hoje muitos especialistas tentam definir o mal
como uma ausência: a ausência do bem.

A respeito da dúvida humana, entre a bondade e a maldade, o


eleático Parmênides, de uma filosofia nitidamente pré-socrática, um dos
fundadores do idealismo platônico (ele chamava Platão de ―o grande‖) nos
diz em sua única obra 103, que ―o ser (o bem) existe; e o não-ser (o mal)
não existe‖. Para ele, influenciado pelos pitagóricos, todas as coisas se
dividem em luz e sombra. De um lado, o ―fogo etéreo da chama‖, suave e
muito leve, idêntico a si mesmo. É assim que ele vê as coisas positivas (o
bem) da vida e do cosmos. Na contrapartida, uma espessa estrutura, como
noite obscura e pesada (o mal). Como a maioria dos filósofos de seu
tempo, ele polariza o bem e o mal, na oposição das energias, cósmicas e
humanas. Parmênides não vincula-os às divindades, demiurgos ou
espíritos maus.

O filósofo Heráclito, de Éfeso († 476 a.C.), chamado de skoteinós, o


obscuro, afirmou que o mundo estava em constantes mudanças, por isto,
tudo evolui até a conflagração geral. Depois, tudo começa de novo. Por
esta razão ele é chamado de ―filósofo do devir‖ (ou vir-a-ser) e do
movimento (tudo passa!)

Sua obra ―Sobre a natureza das coisas‖ (Peri fyseos), como nos seus
demais fragmentos, encontram-se sentenças éticas sobre a vida humana,
na alternância entre o bem e do mal, Para ele, a substância única do
cosmo é um poder espontâneo de mudança, que se manifesta pelo
movimento. Tudo é mudança, tudo se move (―panta rei‖), isto é, tudo flui,
nada permanece do mesmo jeito. Para fortalecer a tese do cosmo em
permanente movimento, o efésio afirmou que ―"Não nos banhamos duas
vezes no mesmo rio" 104.

Segundo as leis filosóficas de Heráclito, um estóico pré-socrático, a


substância única do cosmo é o poder da mudança, que se manifesta pelo
movimento. Ao responder a questão latente na época, a respeito do ser, ele
afirmou que o ser é movimento; é mudança; as coisas estão numa
incessante mobilidade. A verdade da vida não se encontra no ser, mas no
vir-a-ser, no devir.

Para Heráclito, a unidade dos fenômenos da vida está situada entre


a tensão existente entre os opostos, vida e morte, bem e mal, luz e trevas,
calor e frio, etc. Da luta dos contrários nasce a harmonia. Em toda a
substância há um polo positivo (o bem) e um negativo (o mal) que se
ajustam para que aconteça a harmonia. Para o filósofo grego, as coisas
vão ser consumidas pelo fogo (ekpyrossis) para logo depois tudo acontecer

103
Sobre a natureza, Paris, 1988
104
Fragmento 91.
102

de novo, nas ―leis do eterno retorno‖, numa imanência sem


transcendência. A teoria de Heráclito é semelhante ao Yang (ativo) e o Yin
(passivo) da filosofia Oriental 105.

A mudança, o  (panta rei, tudo passa!) característico


da visão de Heráclito, por encaminhar tudo para um ―incêndio‖ final, faz
com que os efeitos do mal não sejam tão sentidos na vida dos seres
humanos.

Talvez baseado na enantiologia 106de Heráclito (―Tudo se faz por


contraste‖), que Nicolau de Cusa teria criado a idéia da coincidentia
oppositorum, já aludida, quando o doutor medieval afirmou que os
opostos, por opostos coincidem e se atraem 107. Por isto Heráclito afirma:

Tudo se faz por contraste; da oposição dos contrário nasce a mais


bela harmonia 108.

Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, abundância e fome


109.

Com base nessas afirmações, alguns estudiosos, baseados nas


teogonias gregas e na mitologia bíblica do Antigo Testamento, enxergam
em Deus, em equilíbrio, uma parcela de bem e outra de mal. No tocante
ao movimento e à coincidência dos opostos, diz Heráclito que, se nossos
sentidos fossem suficientemente desenvolvidos, veríamos a universal
agitação. Tudo o que é fixo é ilusão. Para ele, o pensamento humano deve
participar do pensamento universal imanente ao universo.
Posteriormente, a contribuição de Plotino († 270 d.C.), o fundador do
neoplatonismo, para o estudo do problema do mal, constitui a mais
avançada solução do problema fornecida pela Antigüidade 110. O filósofo,
nascido no Egito e cidadão romano tem o ponto alto de sua literatura nas
Enéadas, seis obras clássicas, contendo cada uma delas nove dos 54
tratados produzidos. Por nacionalidade e época, ele não faz parte do
elenco dos ―filósofos gregos‖. Como, no entanto, ele faz a ligação das
doutrinas de Platão com a filosofia do Ocidente, geralmente aparece no fim
dos gregos e no início dos ocidentais. É da lavra de Plotino que nos vem o
desenvolvimento de um dos maiores subsídios à metafísica. Ao invés de

105
Segundo a cosmologia primitiva dos chineses, todos os fenômenos são explicados através da alternância do Yang e
do Yin.
106
Estudo dos opostos
107
In: A Douta Ignorância, Edipucrs, 2002. Tradução, Prefácio e Notas, pelo Prof. R. A. Ullmann. Segundo Cusa, no
Uno (Deus) coincidem os opostos; nele existe a complicatio (enovelamento) e a explicatio (desdobramento).
108
Fragmento 8
109
Idem 67a
110
Cf. G. REALE. História da Filosofia Antiga, Ed. Loyola, 1995
103

questionar o Múltiplo, exarado dos escritos de Platão e Aristóteles, o sábio


romano inverte a questão, perquirindo: por que existe o Uno? Ele faz a
pergunta e dá a resposta: o Uno é o Bem, imanente, livre, infinito,
enquanto o Múltiplo traz consigo o peso do que é limitado. Sua teoria é
brilhante para seu tempo:

As coisas carregam em si suas causas. Nenhuma delas acontece por


sorte, acaso ou mera finalidade 111.

Entusiasta da vida ascética, Plotino despreza a matéria, a qual ele


chama de ―privação do Uno‖, atribuindo a ela uma total carência de
qualidades, o que a torna má. O autor das Enéadas é o primeiro a referir-
se ao mal como ―a falta do Bem‖. Igual ao platonismo, Plotino postula um
objetivo fundamentalmente ético e estético. O corpo é cárcere (sôma-sema)
da alma. Com isto ele quer afirmar que os deuses são justos (Plotino,
nunca esquecendo, era pagão) e tudo o que eles fazem é para o bem dos
homens.

A cosmologia plotiniana está ancorada numa ontologia monista que


explica tanto o mundo inteligível quanto o mundo sensível, ponto
nevrálgico da ontologia de Platão. A ontologia é monista pelo fato
que, para Plotino, tudo é explicado a partir de um único princípio
ontológico, o Uno. Em outras palavras, no princípio havia o Uno e
dele tudo passa a ser num processo de desdobramentos ou
processões. É sobre essa base ontológica que se constrói a
cosmologia plotiniana 112.
A esta altura, alguém pode perguntar: qual a contribuição de Plotino
à questão do mal? Como Santo Agostinho se apropria dessa explicação e
em que medida dela se afasta? Para responder a essas duas perguntas se
faz necessário reconstituir minimamente sua cosmologia, em seus pilares
mais salientes. Porém, antecipando a solução oriunda de Plotino,
poderíamos dizer que o mal é de ordem estético-natural. No fim, o mal
será um momento necessário no desdobramento na unidade primordial, o
Uno. Não se trata de um princípio originante ontologicamente, como no
maniqueísmo, mas um momento necessário no processo de emanações
que culmina com a matéria (característica desse pensamento), a causa de
todos os males.

3. A teodicéia de Leibniz

Conhecendo o pensamento de Plotino, podemos penetrar em cheio


no problema da teodicéia, o que, irreversivelmente nos remete à obra de

111
Enéada IV, 2.1
112
G. ZAMPIERI, op. cit.
104

Gottfried Wilhem Leibniz († 1716). O verbete teodicéia, como foi visto,


significa, etimologicamente, a justiça (díkaios) de Deus (Theós), e designa o
estudo sobre a possibilidade de se solucionar o problema de como se pode
afirmar conjuntamente, sem contradição, as três proposições seguintes:
Deus é todo poderoso; Deus é absolutamente bom; contudo o mal existe. A
teodicéia surge, então, como um combate a favor da coerência, em
resposta à objeção segundo a qual somente duas das proposições são
compatíveis.

Como é possível compatibilizar o poder e o amor de Deus com a


existência do mal? Pois em sua obra, Leibniz fala da existência de três
tipos de mal. Segundo ele, o mal pode ser metafísico, físico e moral. O mal
metafísico consiste na simples imperfeição, o mal físico no sofrimento e o
mal moral no pecado.

Nessa conjuntura, o mal metafísico é intrínseco ao próprio conceito


de criação. Segundo o autor, Deus criou o melhor dos mundos possíveis.
Não poderíamos, de modo algum, pressupor um mundo melhor que esse,
pois isso tornaria inconsistente o caráter de Deus: se fosse possível um
mundo melhor, ou Deus não o teria criado por ser impotente, ou por
desconhecê-lo ou, ainda, por ser mau, o que não se pode admitir. Assim,
por uma razão mais de ordem moral do que propriamente metafísica,
Leibniz afirma que Deus só pode ter criado o melhor dos mundos
possíveis:

O decreto de Deus consiste unicamente na resolução que tomou,


depois de ter comparado todos os mundos possíveis, de escolher o
melhor e de dar-lhe a existência pela onipotente palavra do Fiat,
junto com tudo o que este mundo contém‖ 113. Por isso Deus não só
resolve criar um universo, mas que também resolve criar o melhor
de todos 114.

Ora, o mal metafísico é intrínseco a este mundo pelo simples fato


deste mundo ser criado, uma vez que a idéia de criação implica a idéia de
limitação. Leibniz o explica de forma metafórica:

Assim como não é possível que exista um círculo infinito, dado que
todo círculo se vê delimitado pela sua circunferência, resulta da
mesma forma impossível que haja uma criatura absolutamente
perfeita‖ 115.

A admissão do mal metafísico não é um grande problema aos olhos


de Leibniz. A grande questão consiste em como explicar também o mal
113
G. W. LEIBNIZ, Teodicéia: Ensayos sobre la bondad de Dios, la libertad del hombre y el origen del mal. Buenos
Aires, 1946.
114
Idem
115
G. W. LEIBNIZ, Diálogo verídico en torno a libertad del hombre y la origen del mal. Madrid, 1990
105

moral e o sofrimento no mundo. Pois, não se pode negar que há no mundo


um mal físico (quer dizer, sofrimentos) e um mal moral (quer dizer,
crimes), e que o primeiro não se distribui nesta terra na proporção do
segundo, como, ao que parece, exige a justiça.

A questão é, então, como Deus permite o mal moral e o sofrimento.


A solução de Leibniz consiste em recorrer a um conceito fundamental de
sua filosofia, o conceito de harmonia preestabelecida. Leibniz postula que
o universo é composto de uma substância simples primordial chamada
mônada. Para ele não pode haver causalidade no universo porque as
mônadas são fechadas em si mesmas, e portanto não reagem diretamente
umas às outras. Para explicar então que seja possível que, por exemplo,
eu fale (ou seja, que aquilo que desejo se realize), é preciso que haja uma
harmonia preestabelecida por Deus de modo que uma mônada reaja à
outra mônada, não por causalidade, mas por algo que poderíamos chamar
de ―programação finalística interna‖.

Para que uma mônada cumpra um determinado fim, é preciso que


outra mônada reaja de modo complementar e orgânico à primeira.
Desenvolvendo a tese do ocasionalismo de N. Malebranche († 1715),
Leibniz pressupõe que isso é possível porque Deus, desde sempre, foi um
‗programador competente‘, havendo então uma harmonia preestabelecida
no universo. Assim, há uma necessidade que não é inerente à natureza,
mas lhe foi impressa por Deus. Ora, se há uma harmonia preestabelecida
no universo, o conceito de mal tem que se inserir na idéia dessa própria
harmonia.

Santo Agostinho reduzirá o mal ao mal moral, fruto do pecado do


homem. Leibniz, por sua vez, porá todos os males sob o guarda-
chuva do mal metafísico. Porém, e aí está o problema que nos
interessa, a inocência de Deus e a explicação desde a totalidade
harmônica têm o seu calcanhar de Aquiles, qual seja, deixar
descoberto e enfraquecido o mal sofrido e experimentado
existencialmente. Quem se interessa por um Deus inocente, mas
distante e ausente da ação prática do homem? As duas respostas
que analisaremos são tentativas válidas, mas insuficientes e cheias
de aporias 116.

Como Agostinho, Leibniz está convencido que o mal moral e o


sofrimento só são mal da perspectiva da criatura que, por causa do mal
metafísico, não pode percebê-los como um bem. Deus não pode de modo
algum querer o mal, nem pode ser concebido como um ser incapaz de
evitá-lo. A única solução possível é imaginar que o mal na verdade não é
um mal, mas um meio para se realizar um bem, como no caso de José do
Egito. Por isso Leibniz afirma que

116
G. ZAMPIERI, op. cit.
106

Deus quer antecedentemente o bem, (...) e com respeito ao mal,


Deus não quer de nenhum modo o mal moral, e não quer de
maneira absoluta o mal físico e os sofrimentos (...) Pode-se dizer do
mal físico que Deus o quer muitas vezes como uma pena devida pela
culpa e com freqüência também como um meio próprio para um fim,
isto é, para impedir males maiores ou para obter bens maiores‖ 117.

No entanto, a inserção do mal moral e do sofrimento na harmonia


preestabelecida não elimina a responsabilidade do homem pela sua
execução. Para compreendermos porque, é preciso termos em mente a
idéia leibniziana de liberdade. Para defini-la, o autor lança mão de três
conceitos: inteligência, espontaneidade e contingência: a inteligência é o
conhecimento da finalidade da ação, daquilo que se deve fazer; a
espontaneidade é o fato de uma ação proceder do próprio agente, e não lhe
ser externamente imposta; a contingência é a exclusão da necessidade
lógica ou metafísica.

Se o homem é concebido como livre, se suas ações são concebidas


como inteligíveis, espontâneas e contingentes, então o homem é também
causa do mal, mais precisamente, sua causa imediata. Como diz Leibniz,

O livre-arbítrio é a causa próxima do mal (moral e do sofrimento), se


bem que seja certo que a imperfeição originária das criaturas (...) é a
primeira (causa) e a mais distante‖ 118.

A teodicéia de Leibniz não é apenas um novo nome para a filosofia


da religião, porque foi escrita por um dos filósofos mais representativos da
filosofia alemã. Hoje se diz que a Teodicéia é uma reabilitação teológico-
filosófica da práxis da divindade. Como diz o poeta popular,

...você que inventou a tristeza, ora tenha a fineza de desinventar...


119

O pedido de desinventar a tristeza, é o clamor do sofrido a seu Deus-


Criador, todo-poderoso, que sendo autor de tudo, não pode ficar alheio ao
surgimento da tristeza, da dor e do mal. Na prática, constata-se que a
teodicéia se apresenta classicamente como um processo jurídico: Deus é
colocado no banco dos réus por permitir (ou ser causa) o mal no mundo. A
razão humana desempenha um papel triplo; ela é simultaneamente
promotora, defensora, e juíza. O empreendimento da teodicéia não é
primeiramente o de acusação contra Deus, e sim o da sua defesa frente a
ocorrência do mal no mundo. Mas só se defende alguém, contra quem
pode ser levantada uma suspeita e processo. A partir da premissa, que

117
Teodicéia... op. cit.
118
Idem
119
CHICO BUARQUE, Apesar de você, 1968
107

Deus não precisa de defesa, evidencia que a acusação assacada contra ele
é uma heresia.. Este é um dos motivos pelos quais muitos teólogos
rejeitam o direito do ser humano sequer colocar tal questão.

Algumas vezes as soluções sugeridas acabam demonstrando


fraquezas epistemológicas imanentes inesperadas, outras vezes elas se
apresentam incompatíveis com outros desenvolvimentos internos
ulteriores da ciência em questão, ou, em alguns casos mais otimistas, os
avanços estruturais da ciência permitem uma solução ainda mais elegante
para o mesmo problema. As ciências críticas como a filosofia e a teologia
sistemática apresentam, além destes motivos, uma razão ainda mais
profunda para sua constante revisão, a saber, que grande parte dos seus
problemas não exigem soluções definitivas, e sim, simplesmente, nos
desafiam a uma constante reflexão.

Um destes problemas clássicos, que pertence ao âmbito


interdisciplinar da teologia e da filosofia, é a antiga questão da teodicéia.
Uma das maiores dificuldades da questão da teodicéia é a justificativa
pela sua própria existência, posto que muitos negam não apenas o dever,
mas também o direito de se colocá-la. Classicamente se compreende a
teodicéia como a pergunta pela justificativa do mal no mundo, dada a
existência de um Deus onipotente e bom. Expresso de uma forma
universal, o problema é até mesmo anterior ao cristianismo. Epicuro, por
exemplo, elabora-o de forma precisa e ao mesmo tempo sucinta, lançando
duas perguntas elementares:

 Pode Deus eliminar o mal existente no mundo?

 Quer Deus, de fato, eliminar este mal?

À lógica humana (abstraída a questão do mistério) apenas quatro


respostas são possíveis:

1. Ele consegue, mas não quer... Neste caso Ele não é


realmente bom;
2. Ele quer, mas não consegue... Então Ele não é onipotente;
3. Ele nem quer, nem consegue. Pior ainda, neste caso Ele não
é bom, nem onipotente;
4. Ele consegue e quer. Mas então, por que ainda existe mal
no mundo?

A formulação de Epicuro, que provocou o start da teodicéia


moderna, é especialmente urgente no contexto da teologia cristã, a qual
postula explicitamente a existência de um Deus não apenas bom, mas
também onipotente.

A maior parte dos escritos de Leibniz, autor sempre muito citado,


foram ocasionais, não muito extensos, mas em grande quantidade,
havendo sido reeditadas com freqüência na forma de Obras Completas, ou
108

quase completas. Os livros são geralmente breves, por vezes quase como
artigos. Neles construiu uma filosofia racionalista, utilizando as linhas
fundamentais do cartesianismo, este por sua vez mais platônico do que
aristotélico. As idéias são alcançadas independente da experiência.
Todavia, a tese leibniziana da idéia inata é mais moderada que a do
Descartes. Não são inatas as formas atuais do pensamento, mas apenas a
potência ou disposição para fazê-las surgir ao contato com a realidade. A
correspondência das idéias com as realidades exteriores decorre da
harmonia preestabelecida entre as idéias e as realidades.

Ao sustentar que o mundo que está aí é o melhor possível, Leibniz


tenta escapar dos problemas que vinculam males naturais e males morais
(a idéia de que a natureza castiga a humanidade por conta dos pecados de
nossos ancestrais). Entender que os males naturais decorrem de males
morais e, com isso, pecado e sofrimento vêm do Criador é fazer de Deus
um tirano. Mas, de qualquer forma, resta a pergunta: como explicar o
sofrimento?

A resposta dada por Leibniz é a seguinte: Deus criou a matéria, mas


não a forma. A verdade de tudo, incluindo a essência de qualquer objeto
possível, está contida nas formas eternas. Antes de Deus decidir qual dos
mundos possíveis escolheria para torná-lo real, ele olhou para todas as
formas, calculou qual delas deveriam encaixar-se entre si e escolheu a
melhor de todas as combinações possíveis. Ao escrever uma justificativa
de Deus, Leibniz deu-lhe o nome de teodicéia, termo que passou a
significar por extensão toda a teologia natural, isto é, a filosófica. Nesse
terreno, dois são os princípios resultantes da análise racional das idéias:

 o princípio de contradição, que rege o possível; e


 o princípio de razão suficiente, que rege as existências.

A partir destes princípios se formulam os argumentos da existência


de Deus. Leibniz admitiu prova a priori da existência de Deus; formulada
por Santo Anselmo († 1109), que foi logo depois refutada por Kant, naquilo
que denominou prova ontológica.

O mundo criado por Deus é o melhor possível, sendo o mal um


destaque do bem, como a sombra em relação ao objeto. Relativo ao bem,
que o limita ou enfraquece, o mal não possui realidade clara. Sua
natureza é relativa ou privativa: ―o mal é uma privação do ser, ao passo
que a ação de Deus é positiva‖ 120. Leibniz o compara com a inércia
natural dos corpos. Sem realidade ontológica, corresponde a uma
limitação de perfeição do ser. Para o filósofo, o mal, estritamente falando,
não é nada.

120
Teodicéia, 29. Op. cit.
109

Se a teodicéia de Leibniz está correta, então o mal metafísico está na


origem do mal moral e do sofrimento: a imperfeição do homem é a causa
dele discernir equivocadamente seus fins e, assim, de escolher de modo
errado seus meios, praticando o pecado (mal moral) e reclamando o
sofrimento como pena, sobre si ou sobre outros. Como ele mesmo diz,

...de um modo prévio a todo pecado, existe em todas as criaturas


uma imperfeição original procedente de sua limitação‖ 121.

Segundo Leibniz, a perfeição de Deus é plena em três atributos


essenciais: o poder, a sabedoria e a vontade 122. A potência de Deus é
fonte de tudo, o conhecimento contém o detalhe das idéias, e a vontade
produz tudo segundo o princípio do melhor. É assim que Leibniz introduz
na sua lógica argumentativa o conceito de ―o melhor dos mundos
possíveis‖. E desse conceito ele tentou fazer aparecer a resposta ao
problema do mal.
Aqui está a essência do mal: é a criatura, e não Deus, o autor do
pecado. Mas isto também não nos oferece uma solução. Como o teólogo
anglicano T. Clark escreveu:

Causas deficientes, se as há, elas nos não explicam porque um


Deus bom não abole o pecado e garante ao homem sempre escolher
o bem mais elevado 123

As premissas da teodicéia de Leibniz são filosóficas, por isto não


têm maiores sustentações teológicas. Ele fala da responsabilidade moral
de Deus de criar o melhor dentre os mundos possíveis. Entendemos tratar-
se de uma visão invertida. Deus não escolheu este mundo porque ele é o
melhor; ao invés, ele é o melhor porque Deus o escolheu.

Nesse aspecto, as escolhas de Deus não são determinadas por nada


ou ninguém fora dele mesmo. Assim, a visão de Leibniz também tende a
eliminar a responsabilidade do homem pela ruptura, ao representar o
pecado por pouco mais do que um infortúnio que lhe sobreveio.
Novamente, a Bíblia é muito clara ao declarar que o homem é responsável
pelo seu pecado. Na oração de arrependimento de Davi, no Salmo 51, ele
põe a culpa não em Deus, nem em sua mãe, nem em Adão, embora todos
fossem elos na cadeia que levava às suas ações pecaminosas. Ao
contrário, com sinceridade Davi põe a culpa no pecador: ele mesmo.

Algumas idéias de Leibniz são confusas, ensejando críticas e


discordâncias de seus contemporâneos, dos teólogos das igrejas e dos
intelectuais de ontem e de hoje. Por exemplo: ele diz que o mal não é

121
Diálogo veridico en torno a la libertad del hombre, Madrid, 1990.
122
In: Monadologia, Lisboa, 1987
123
In: God and evil (Deus e o mal), Londres, 1952.
110

oposto do bem, mas a falta dele. Não é a mesma coisa? Tais premissas são
pontos de teologia exarada da cabeça do filósofo. O caso é que suas teorias
são pouco aceitas pela maioria. Para uma melhor compreensão delas,
damos abaixo uma panorâmica geral:

Deus podia ter escolhido em mundo sem males, mas se assim não o
fez é porque o mundo com males é muito superior ao mundo sem
males. É verdade que se pode imaginar mundos possíveis sem
pecados nem misérias, fazendo com eles utopias e novelas, porém
esses mesmos mundos seriam muito diferentes do nosso quanto ao
bem, pois Deus quer antecedentemente o bem e conseqüentemente
o mal. 124.

Entendemos que o autor peca, aqui, por uma certa arrogância


(querer saber o que Deus podia ter escolhido), por uma visão pueril (o
mundo com males é muito superior ao mundo sem males) e por uma
distorção teológica (Deus quer antecedentemente o bem e
conseqüentemente o mal). É bom frisar que Leibniz é um filósofo, razão
pela qual sua obra é meramente apologética. Não questiona.

Por fim, cabe-nos concluir que o Deus que emerge da teodicéia de


Leibniz é uma divindade racional, diverso do Deus dos cristãos, que é
graça e misericórdia acima da justiça.

Os teólogos mais tradicionais entendem que o núcleo de qualquer


teodicéia aponta para a ―defesa do livre arbítrio‖, que se ocupa,
inicialmente, do mal moral (pecado), mas que pode ser distendido para se
ocupar de grande parte do mal natural. A defesa do livre arbítrio preconiza
que a possibilidade de os seres humanos terem certo tipo de liberdade,
uma escolha livre e responsável, que é um grande bem, mas, para quem a
possui, haverá a possibilidade natural do mal moral. A partir dessa
premissa, Sartre disse, por causa do livre-arbítrio, que o ser humano
nasce condenado à liberdade.

4. A idéia cartesiana

A chamada idéia cartesiana, oriunda do filósofo francês R. Descartes


(† 1650), anterior a Leibniz, organiza o bem e o mal, como faz com a
matemática, em pares ordenados, buscando aquela harmonização
geométrica, aquele equilíbrio das duas colunas, onde uma equivale à
outra. Nessa disposição, bem e mal aparecem aos pares, igualando
colunas, como já vimos aqui, de modo estético. Ao antigo conjunto de mal
físico e moral, Descartes inclui o malum metaphysium , que caracteriza a
finitude humana, tanto temporal (mortalidade) quanto cognitiva
(ignorância).

124
Teodicéia, 10. Op. cit.
111

Na verdade, esta terceira forma de mal deveria ser mais


diferenciada: além do malum metaphysicum existe o que se poderia
chamar de malum epistemicum, exatamente o problema da ignorância, do
não saber, o do falso conhecimento. Por isso poderia se considerar o
problema da ignorância como a versão cartesiana da teodicéia.
Especialmente porque no caso de Descartes se coloca a questão: se Deus é
bom e nos criou, por que então ele não nos equipou de tal maneira que
nunca nos enganemos? Ele poderia ter nos criado como seres
cognitivamente perfeitos.

Mas, então, voltando à questão, por que erramos? Segundo


Descartes o erro cognitivo surge como resultado da liberdade humana.
Deus não é culpado pelo nosso erro. Ele, com razão, achou que um ser
livre é mais perfeito que um ser sem a liberdade de errar. Justamente
nesta liberdade reside nossa (imagem e) semelhança com Deus. O ser
humano é capaz (―é livre para―) de não apenas julgar sobre o que ele pode
reconhecer com certeza, mas ele pode também aceitar como válido um
conhecimento não assegurado. E quando ele faz isso pode cair (e de fato
muitas vezes cai) em erro. Justamente este „descuido― é a origem do erro.
Descartes vai mais longe: a partir deste conhecimento ele desenvolve
o seu famoso método da certeza: só aceitar como verdadeira uma
afirmação sobre a qual se tenha absoluta certeza (m um conhecimento
claro e distinto, em sua terminologia: idea clata et distincta). O primeiro
conhecimento desta forma é o famoso: cogito ergo sum, penso logo existo.
Sobre a própria existência (em primeira linha como um ser pensante – res
cogitans – e não como ser físico extenso – res extensa) não se pode duvidar
consistemente. Uma vez que o ser humano aceita e se mantém fiel a esta
regra, ele é capaz de construir uma ciência isenta de erros (por isso
muitos consideram Descartes um otimista, um megalomaníaco ou um
fetichista da certeza).

No campo da moral vale quase o mesmo. Descartes não desenvolve


nenhum grande sistema ético ou moral. No seu Discours de la methode, na
terceira parte, ele desenvolve a chamada moral provisória (ele nunca
escreveu uma moral definitiva depois!), em três máximas
(resumidamente):

1. obedecer as leis e costumes do país de sua origem,


permanecendo fiel a religião na qual se foi criado;
2. quando se decidir por uma ação fazê-la de forma conseqüente
até as últimas conseqüências (para evitar devaneios);
3. procurar aceitar o destino: é mais fácil mudar os meus
desejos do que mudar o mundo.

5. Susan Neiman
112

A filósofa norte-americana Susan Neiman125 inicia sua especulação,


qual Voltaire, a partir do terremoto de Lisboa para mostrar como o mal
deixou de ser divino para se tornar criação da humanidade. Ela começa
seu estudo, referindo-se ao mal nosso de cada dia..., dando destaque a um
texto do poeta Alexander Pope († 1744), que, com o poema ―Ensaio sobre o
homem‖, de 1734, recoloca o problema filosófico acerca do "melhor dos
mundos possíveis" (todo o mal leva ao bem do todo), desenvolvido nos
―Ensaios de Teodicéia‖, de Leibniz, obra de 1710.

Em defesa do Criador, quando posto diante da questão da origem do


mal, vimos, Leibniz sustenta que o mundo criado por Deus não poderia
ser melhor do que este em que vivemos, pois se assim o fosse, se houvesse
a possibilidade de um mundo melhor do que este que foi criado, isso
entraria em choque com a natureza de Deus.

Até o terremoto de Lisboa em 1755 prevaleceu, segundo Susan


Neiman (filósofa com passagem por Harvard, Yale, Berlim e Tel- Aviv,
atualmente dirigindo o Einstein Fórum em Potsdam) a visão de males
naturais (físicos) como punição para males morais (pecados). O mundo
pré-moderno experimentava terremotos e relâmpagos com um medo tal
que serviam para reforçar o temor punitivo-religioso. Mas o de Lisboa, com
seus 20 mil mortos, ocorreu num contexto de atividade intelectual
intensa, e o tremor de dez minutos sincronizado com maremoto que
impedia a fuga pelas águas, seguido de incêndio de uma semana que
destruiu o resto de um patrimônio incalculável, deixou petrificada a
Europa do século XVIII. A cidade teve uma reação igual a do ministro
Pombal, que, indagado pelo rei sobre o que poderia ser feito depois do
terremoto, respondeu: ''Enterrar os mortos e alimentar os vivos‖.

Neiman detecta com maestria que a empreitada da modernidade


atinge o impasse com o Holocausto. Se a humanidade perdeu a fé na
natureza em Lisboa, é provável que tenha perdido a fé em si mesma em
Auschwitz, que foi conceitualmente devastador porque revelou uma
possibilidade que esperava-se não ver: seres humanos comportando-se
como demônios. Para Neiman, no entanto, caso pudesse ser provado que
alguma coisa em Auschwitz era essencialmente alemã, a vida seria mais
fácil. Ao contrário, todas as discussões filosóficas sobre o assunto
insistem no ponto de que as condições na Alemanha apontavam não para
uma barbárie em que crianças são assassinadas em câmaras de gás, mas
para uma genuína civilização.

Lisboa chocou o século XVII [de uma maneira] como terremotos


maiores e mais destruidores não comoveram o século XX. E embora
a Guerra dos Trinta Anos [séc. XVII] tenha sido bárbara e
125
SUSAN NEIMAN nasceu em Atlanta, Geórgia, USA, em 1940, e estudou filosofia em Harvard, onde recebeu
graduação em doutorado em 1986. Na década de oitenta graduou-se na mesma área na Universidade Livre de Berlim.
113

devastadora, não deixou seus sobreviventes sentindo-se


conceitualmente devastados. Auschwitz deixou. A diferença entre as
duas respostas está na diferença entre as estruturas que cada época
usou para dar sentido ao sofrimento 126

A distinção entre mal natural e mal moral, tão evidente hoje em dia,
nasceu com o terremoto e foi alimentada por J. J. Rousseau († 1778), que
preconizou que os males não faziam parte da natureza, mas eram uma
conseqüência das ações humanas. Certas certezas sucumbiram, depois de
Lisboa, sob a suspeita de que havia algum mal radical, numa discussão
que envolveu pensadores como Voltaire, projetou Kant e inaugurou o
moderno.

Para Neiman, Lisboa marca o nascimento da humanidade, porque o


alcance da tragédia exigiu o reconhecimento de que natureza e moralidade
são separadas. Como ponto de partida do pensamento moderno, Lisboa
aboliu as causas morais, absolveu Deus e os pecados coletivos, e os
terremotos passaram a ser vistos como desastres naturais, algo fora da
intenção divina ou responsabilidade humana. Explicar o terremoto como
processo natural, implicando mais a natureza em si, foi uma forma de
tornar o mundo menos ameaçador.

Se antes de Lisboa, os males dividiam-se em questões de natureza,


metafísica ou moralidade, depois a palavra mal ficou restrita àquilo que
antes era chamado de mal moral. O mal moderno passa a ser um produto
da vontade. Como mostrou Freud, um dos objetivos para desencantar o
mundo foi resolver o problema do mal natural. Com este reduzido a
infortúnios desprovidos de força moral, e o mal metafísico transformado
no reconhecimento dos limites que espera-se que todo adulto assuma, o
mal no limiar do século XX parecia um problema filosófico no caminho da
dissolução.

No problema de Lisboa ainda há um ingrediente de folclore. Há


quem vincule ao terremoto, ocorrido no ―dia de todos os santos‖
justamente quando, por motivos não sabidos, a procissão foi transferida.
O desastre de Lisboa trouxe de volta discussões sobre o mal, reavivando
perguntas do tipo ―como pode um Deus bondoso e onipotente criar um
mundo com sofrimento?‖. Ou, por que coisas ruins parecem acontecer a
pessoas boas? Isso sem lembrar que Deus arruinou a vida do pobre Jó
para provar sua fé.

Susan Neiman mostra que isso ocorre porque algo na essência do


mal parece mesmo resistir a explicações. ―Designar algo como mau é uma
maneira de assinalar que aquilo abala nossa crença no mundo‖. O fato é
que o terremoto de Lisboa e seus milhares de mortos abalou bastante a
argumentação teísta.

126
S. NEIMAN , O mal no pensamento moderno, Difel, 2002.
114

Não é surpresa, portanto, que o sofrimento seja um tema tratado


por religiosos, filósofos e poetas em nosso tempo. E não é descabido que
se tente traçar as linhas gerais do modo como ele tem sido concebido
desde que entrou em cena o chamado modo moderno de vida, desde que a
racionalidade iluminista reivindicou um espaço para explicar qual é a
fonte das dores humanas e, por conseguinte, de seu nexo com o mal. Ou
seja, está no escopo de nosso tempo refletir acerca do entrelaçamento
entre o sofrimento humano e o papel do mal nesses três últimos séculos;
de refletir como esse entrelaçamento foi feito por filósofos, a partir de
acontecimentos históricos que lhes exigiram um posicionamento, à luz dos
problemas filosóficos com os quais se depararam. Essa é a tarefa a que se
propõe Susan Neiman em seu livro já aludido.

6. Ana Arendt

Da famosa escola de Frankfurt, o filósofo alemão Th. Adorno (†


1969) expressou que após Auschwitz o silêncio é a única reação civilizada
diante do mal. Do outro lado, a filósofa Hannah Arendt 127escreveu que o
mal seria o problema fundamental e constante da vida intelectual
européia do pós-guerra. Mas, como observa S. Neiman, nenhuma obra
filosófica importante sobre o assunto, com exceção de Eichmann em
Jerusalém (1968), da própria Arendt, foi editada em inglês.

Tomar os fatos ocorridos em Lisboa e Auschwitz como pólos centrais


de investigação é uma maneira de localizar o começo e o fim do moderno,
pois uma das alegações do livro é que o problema do mal é a força
condutora do pensamento moderno. A premissa de Nietzsche de querer o
mundo sem desejar que ele seja diferente (abolindo a esperança), o que
inclui a vontade de viver com todos os seus males, é uma proposta
impossível depois de Auschwitz. A exigência de querer o mundo como um
todo não pode incluir todos os mundos.

A visão de Nietzsche apoiava-se em modelos de sofrimento que o


século 20 tornou obsoletos. Neiman sublinha que Auschwitz nada
produziu além de possibilidades que jamais deveriam ter sido abertas,
feridas que nunca podem cicatrizar. Nesse aspecto, a exigência de querer
a realidade sem ideais depende do caráter dessa realidade, pois para
algumas formas de mal, a exigência não pode ser cumprida.

A reação inicia em Camus (que Neiman ordena com Sade e


Dostoiévski para discutir o mal moderno na literatura). Sua imagem da

127
HANNAH (Ana) ARENDT († 1975) é uma filósofa e cientista política alemã, de origem judaica, famosa por seus
estudos sobre o totalitarismo e o mundo judaico. É naturalizada norte-americana. Entre suas obras, destacam-se
Origens do totalitarismo (1951), A condição humana (1958) e Sobre a revolução (1963).
115

peste para representar a propagação do nazismo levou Hannah Arendt à


metáfora do fungo:

O mal não possui profundidade nem alguma dimensão demoníaca.


Pode crescer demais e destruir o mundo inteiro justamente por se
espalhar como um fungo por sua superfície 128.

A metáfora indica que o mal pode ser compreendido e controlado.


Mas também que pode ser desprovido de intenção. Esta visão é a maior
ruptura com a tradição filosófica moderna, particularmente com a obra de
Kant e com a ausência de segurança que é marca do moderno. Chamar o
mal de banal (um fungo de superfície), como fez a sofisticada Arendt, é
oferecer não uma definição dele, mas uma teodicéia. No sentido amplo,
Neiman explica que a teodicéia é uma forma de dar significado ao mal que
nos ajuda a encarar o desespero; ela insere os males em estruturas que
nos permitem continuar a viver no mundo. Em Arendt, consiste em que as
origens do mal não são misteriosas, estão ao nosso alcance.

Assim, não infectam o mundo com profundidade capaz de nos fazer


perder as esperanças no mundo em si. Como um fungo, podem devastar a
realidade destruindo a superfície; porém, as raízes são rasas o bastante
para serem arrancadas. Afirmar que o mal é compreensível é uma forma
de negar que as forças sobrenaturais - divinas ou demoníacas - sejam
necessárias para explicá-lo.

Na verdade, quando Arendt, fornece uma visão sobre a estrutura de


sua obra, ela quer revelar como os maiores crimes podem ser executados
por pessoas sem marca de criminosos 129, argumentando que o mal não é
uma ameaça à razão em si. Crimes como os dos carrascos nazistas não
dependem de que haja uma intenção de perpetrá-los, mas, isto sim, do
descaso, da recusa em usar a razão como seria de se esperar. Ao resistir à
tentação de continuar conferindo ao mal uma grandeza satânica,
trocando-o pela banalidade superficial que independe até de intenção,
Arendt, como B. Brecht († 1956) escolhe a comédia como forma de
ridicularizar o mal, minando-o, assim, mais eficazmente.

Se o mal é banal, seu poder de atração será limitado. Um fungo -


ironiza Neiman - raramente é erótico. Assim como uma expressão do mal
na natureza, o mosquito nada tem de glamuroso. O problema, observa, é
que o banal não despedaça o mundo; o compõe. Por banalizar o mal, o
sofrimento e a morte, é que as pessoas banalizam a vida 130.

128
In: Eichmann em Jerusalém, Frankfurt, 1968
129
Idem
130
Sobre esse tema, banalização da vida e da morte, recomendo a leitura do meu livro O grão de Trigo: reflexões cristãs
sobre a vida depois da morte (escatologia), Ed. Ave-Maria, 2000.
116

A surpreendente frieza do carrasco nazista Adolf Eichmann († 1962)


no julgamento, afirmando que o que visava era obter prestígio na
burocracia nazista – sem ódio anti-semita ou intenção assassina – trouxe
uma lição que pôde ser compreendida por Arendt: a de que sob condições
de terror, a maioria das pessoas vai obedecer, mas algumas não (como o
teólogo-mártir Dietrich Bonhöffer, um protestante, executado em
Auschwitz 1945). Também, nos países em que a solução final foi proposta,
Neiman observa que o extermínio ―poderia ter acontecido‖ na maioria dos
lugares, mas não em todos os lugares.

7. Freud e Jung

Embora Freud e Jung não sejam precisamente filósofos, há que se


compulsar seu pensamento, pois as teorias oriundas dessas grandes
figuras, cuja especialidade vincula-se ao estudo do comportamento e da
mente humana. Hoje não se fala em ética, comportamento, desvio de
conduta, consciente ou inconsciente, sem que se vá buscar, em um dos
dois, opiniões, subsídios e/ou apoio bibliográfico.

O contributo de ambos para o pensamento moderno, especialmente


do Ocidente, é inegável.

Médico e neurologista austríaco, fundador da psicanálise,


especializado em tratamentos para doentes mentais, Sigmund Freud (†
1939) criou uma nova teoria que estabelecia que as pessoas que ficavam
com a mente doente eram aquelas que não colocavam seus sentimentos
para fora. Segundo Freud, este tipo de pessoa tinha a capacidade de
fechar de tal maneira esses sentimentos dentro de sua mente, que, após
algum tempo, esquecia-se de sua existência.

Enquanto que a felicidade é impossível de ser alcançada, limitada


pela própria constituição do ser humano, o sofrimento ataca o homem por
três flancos: o primeiro, a partir do próprio corpo ―condenado à
decadência e à dissolução‖; o segundo através das forças destruidoras e
poderosas do mundo externo e finalmente o sofrimento decorrente do
relacionamento com outros seres humanos, classificando este último
como o mais penoso de todos.

Diante destas forças o ser humano se vê obrigado, como uma forma


de defesa diante delas, a moderar as suas expectativas domesticando o
princípio do prazer, reduzindo-o a um mero princípio de realidade.
Colocando em primeiro plano a já árdua tarefa de evitar o sofrimento, a
busca pelo atendimento ao princípio do prazer passa a ser secundária.

Escrito em 1929, e publicado em 1930, O Mal-estar da Civilização,


uma de suas principais obras, tem como tema principal o conflito
117

irremediável entre as exigências da pulsão131 do ser humano e as


restrições impostas pela civilização, podendo ser considerada como uma
síntese do pensamento social de Freud.

Fazendo uma sinopse das diversas formas e métodos pelos quais a


humanidade vem tentando buscar o prazer, apesar de em nenhuma delas
ter-se a garantia de sucesso, identifica a intoxicação química, a religião e a
fruição das obras de artes como formas legítimas de se conseguir prazer,
colocando em primeiro plano uma importante técnica à arte de viver, que
é o amor este conjunto de processos mentais internos que dirigem a sua
libido a um objeto para extrair satisfação deles.

É que nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como


quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como
quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor. Isso, porém,
não liquida com a técnica de viver. Há muito mais a ser dito a
respeito 132.

Finalmente, Freud situa o ser humano diante de um dilema


existencial. Apesar de não se poder realizar o programa do princípio do
prazer o homem não pode abandonar o esforços de conseguir aproximar-
se da consecução do mesmo, passando a ser um desafio essencialmente
subjetivo que perpassa o indivíduo ao longo de sua existência

Tendo apresentado a concepção do Eu, com as implicações que a


psicanálise traz e tendo apresentado o princípio do prazer e o princípio de
realidade como duas forças que movem e moldam o ser humano na sua
relação com o mundo externo, Freud dá início a uma reflexão sobre as
relações sociais, o que ele chama de a ―fonte social do sofrimento‖.

Identificadas as origens do desenvolvimento do homem e de sua


civilização nas restrições às liberdades individuais, e principalmente na
restrição à realização dos seus desejos sexuais, a sexualidade passa a ter
importância fundamental no pensamento social de Freud. Esta, definida
por ele como o `protótipo da felicidade', sendo a felicidade o propósito da
vida, vai se encontrar acuada e restringida diante da civilização, sendo
frustrada em suas ambições de cumprir o programa do princípio do prazer

O ser humano, diferentemente do que a moral cristã prega - e não


percebe-se em Freud nenhuma crítica à moral, apenas uma incapacidade
desta em reconhecer certas verdades – é cheio de pulsões inconfessáveis.
Freud joga as suas luzes sobre o lado negativo desta natureza humana :

131
O termo pulsão, na psicanálise de Freud, é processo dinâmico, força ou pressão, que faz o organismo tender para
uma meta, a qual suprime o estado de tensão ou excitação corporal que é a fonte do processo.
132
S. FREUD, Das Unbehagen in der Kultur, Viena, 1929. (O Mal-estar na Civilização. Viena).
118

Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que,
no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são
criaturas entre cujos dotes pulsionais deve-se levar em conta uma
poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo
é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual,
mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua
agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem
compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento,
apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento,
torturá-lo e matá-lo 133.

Assim, para Freud, a civilização se funda à medida que constrói a


capacidade de regular, impondo severas restrições, a dois impulsos
estruturais da vida humana: a sexualidade e a agressividade. São estes
dois impulsos que movem o ser humano na sua busca incessante em
realizar o programa do princípio do prazer, e que jamais será possível
realizar, pois a vida em sociedade, resultado do desenvolvimento da
civilização, só é possível graças às restrições reguladoras sobre estes
impulsos.

Já tendo apresentado a pulsão sexual, classificada como


responsável pela permanente tarefa de unir a vida orgânica, o qual ele
chamou de Eros 134, Freud apresenta o que considera o antípoda à pulsão
da sexualidade, que é a existência de uma pulsão de morte a qual opera
igualmente na vida orgânica, só que no sentido contrário ao de Eros,
relacionando-se com este em um permanente e incansável conflito. Foi em
sua obra Além do Princípio do Prazer 135 que, pela primeira vez apresentou
a existência dessa pulsão de morte (Tánatos) nas estruturas das coisas
vivas.
Ao contrário do ponto de vista estático e determinista com que Th.
Hobbes (†1679) imagina o seu modelo de Estado como solução para a
humanidade, Freud apresenta uma visão dialética (Eros x Tánatos) e
dinâmica, sem nenhuma certeza se haverá algum dia uma civilização
capaz de resolver os conflitos estruturais entre o ser humano, com as suas
forças pulsionais, e a civilização, esta última resultante do processo de
regulação das pulsões do homem.

Desta forma, ao longo da história, as várias gerações reproduzem


esta agressividade contra o pai, sendo ela sempre acompanhada de um
`sentimento de culpa' equivalente em intensidade a primeira. A

133
S. FREUD, Jenseits des Lustprinzips, Viena, 1920 (Além do Princípio do Prazer)
134
Na mitologia grega, Eros é o filho de Afrodite, a deusa do amor. Em particular do amor erótico, romântico. Ele é
sempre representado com uma venda nos olhos, uma vez que o amor é sempre cego. Sua arma são dardos ou flechas.
Em ambos os casos as pontas destes são magicamente tratadas para produzir ou um amor incontrolável, ou um
insuperável desinteresse sobre a primeira pessoa vista pela vítima de Eros após ter sido atingida pela sua arma.
135
Jenseits des... op. cit.
119

humanidade foi constituindo um superego social, cada vez mais


fortalecido por cada parcela de agressividade que era reprimida.

Toda renúncia à pulsão torna-se agora fonte dinâmica de


consciência, e cada nova renúncia aumenta a severidade e a
intolerância desta última. Se pudéssemos colocar isso mais em
harmonia com o que já sabemos sobre a história da origem da
consciência, ficaríamos tentados a defender a afirmativa paradoxal
de que a consciência é o resultado da renúncia pulsional, ou que a
renúncia pulsional (imposta a nós de fora) cria a consciência, a
qual, então, exige mais renúncias pulsionais 136

Deste modo, o mal-estar da civilização aponta para uma frustração


afetiva e sexual, em que a libido se torna reprimida. As religiões, dando
espaço aos postulados de uma consciência reta geram bloqueios. Isto para
Freud reprime.

A ética moderna demonstra, pelo menos na parte em que trata da


questão do mal, influências da psicanálise de Freud e das doutrinas
behavioristas 137. Freud atribuiu o problema do bem e do mal em cada
indivíduo à luta entre o impulso do eu instintivo para satisfazer a todos os
seus desejos e a necessidade do eu social de controlá-los ou reprimi-los. O
behaviorismo, de Skinner, através da observação dos comportamentos
animais, reforçou a idéia da possibilidade de mudar a natureza humana,
facilitando as condições que favoreçam os desejos de mudança.

Para Freud, merecidamente chamado de ―o pai da psicanálise‖, o


mal que afeta a civilização humana é uma ameaça imaginária, metafísica,
que brota da contrariedade que nasce do confronto entre a ética religiosa e
o desejo de ser feliz, que é capaz de gerar um ―mal-estar‖. Esse

136
Das Unbehagen... op. cit.
137
O behaviorismo é uma corrente da psicologia que defende o emprego de procedimentos estritamente experimentais
para estudar o comportamento, considerando o ambiente como um conjunto de estímulos. No começo do século XX,
John B. Watson († 1958) propôs estudar-se a psicologia empregando somente procedimentos objetivos para estabelecer
resultados estatisticamente válidos. Este enfoque levou-o a formular a teoria psicológica do estímulo-resposta: todas as
formas de comportamento (behavior) podem ser analisadas como cadeias de respostas simples que podem ser
observadas e medidas. Até 1950, B. F. Skinner († 1990) baseou suas teorias em experiências de laboratório e não em
observações introspectivas. Contudo, seu enfoque era mais radical e diferenciava-se de Watson no que dizia respeito aos
fenômenos internos, como alguns sentimentos que não deveriam ser alvo de estudos. Desde então, a chamada
psicologia behaviorista (comportamental) se preocupou em compreender como aparecem e se mantêm as diferentes
formas de comportamento: as interações, as mudanças ou as condições que prevalecem sobre a conduta. Assim mesmo,
aplicam esses princípios em casos práticos (de psicologia clínica, social, educacional ou empresarial), impulsionando o
desenvolvimento das terapias de modificação de comportamento. O behaviorismo moderno introduziu o emprego do
método experimental para o estudo de casos individuais, e demonstrou que estes princípios são úteis para resolver
problemas práticos em diversas áreas da psicologia aplicada.
120

sentimento, confrontando o positivo e o negativo, cria um complexo de


culpa, que acompanha o ser humana, pela vida afora.

Em ―O mal-estar na civilização‖, ele investiga as principais causas


psicológicas que originam o sofrimento humano, analisando, ao mesmo
tempo, algumas formas mais comuns de se lidar com ele. Em suma, Freud
identifica com profundidade os fatores determinantes da insatisfação
humana, colocando as complexas exigências do atual modelo cultural,
egresso da civilização judaico-cristã, que funciona como o principal
entrave às satisfações dos instintos naturais:

Nascemos com um programa inviável que é atender aos nossos


instintos, mas o mundo não o permite 138.

Dessa forma, o ser humano é obrigado, desde o início de sua vida, a


conviver com a frustração, por sua vez representada pela exigência
primordial de castração dos instintos básicos, pré-requisito fundamental
para a vida em sociedade. Num primeiro momento, na infância da
humanidade, a natureza que nos cerca é incapaz de ceder aos nossos
―apelos‖ espontâneos pela sobrevivência e preservação de nossa própria
espécie; mais tarde, num segundo momento, quando o homem desenvolve
tecnologia suficiente para subjugar a natureza, ou seja, quando a mesma
parece se encontrar sobre nosso controle, a própria sociedade nos impõe
novas restrições. E isto parece ser um círculo-vicioso.

De acordo com J. Lacan († 1981), a obra ―Mal-estar na civilização‖ é


um tratado definitivo naquilo que diz respeito à questão ética, uma vez
que evidencia que a felicidade é o objeto que deve ser proposto como termo
a toda busca, seja ela ética ou não 139. Mas para essa felicidade não há
nada absolutamente preparado, em nenhuma dimensão do cosmos. É por
isso que a ética da psicanálise reflete, via-de-regra, uma dimensão trágica
da vida, porque, se por um lado deve visar a uma aproximação do sujeito
em relação ao desejo e a um distanciamento do divino, por outro deixa
bem claro que não há realização (plena) de desejo e que a psicanálise não
tem nada a ver com adaptação ao que o senso comum chama de
realidade.

Sigmund Freud é pioneiro da ―psicologia do profundo‖, que depois


ganharia o nome de psico-analítica e, modernamente, psicanálise. Seu
trabalho lançou ponderáveis luzes sobre o estudo do inconsciente. Sua
obra tem méritos, sem dúvidas, como também apresenta algumas
sombras, à medida em que trabalhou quase que exclusivamente com
situações de patologia, supervalorizando a força quase que exclusiva da
libido. Por causa dessa visão unilateral, Freud lançou, pelo menos em um
primeiro momento, a psicologia no rol das ―ciências sob suspeita‖, assim

138
In: Mal-estar da civilização, Viena, 1937
139
In: Escritos, Paris, 1977
121

como a linha filosófico-econômica (leia-se Marx) e a comportamental


(Skinner).

Freud deixou nas sombras muitas das dimensões importantes da


sexualidade. Por exemplo a dimensão sociocultural, bem como a
dimensão política, isto sem falar da dimensão religiosa sadia 140.

Ser bem sucedido na vida, do modo como o conformismo burguês o


propõe, é um mero acidente (e seria um enorme reducionismo por parte
da psicanálise se esta tivesse apenas como objetivo a adequação da
personalidade do indivíduo para a necessária convivência dentro de
determinado sistema social).

A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós;


proporciona-nos muito sofrimento, decepções e tarefas impossíveis.
A fim de suportá-las, não podemos dispensar as medidas paliativas.
‗Não podemos passar sem construções auxiliares‘, diz Theodor
Fontane. Existem talvez três medidas desse tipo: a) derivativos
poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; b)
satisfações substitutivas, que a diminuem; e c) substâncias tóxicas,
que nos tornam insensíveis ao mal 141

A outra personalidade é Carl Gustaf Jung († 1961). Segundo ele, a


sombra (skiá) é ―aquela personalidade oculta, recalcada, freqüentemente
inferior‖ 142, que em geral tem um valor afetivo negativo. É como que o
nosso lado escuro, ali onde moram todas as coisas que desagradam em
nós, que queremos esconder, ou mesmo nos assustam 143.

Nesse contexto, a sombra é um conceito psicológico que aponta para


o lado obscuro da personalidade humana, aquela reprimida pelo
comportamento idealista do ego. Os ideais do ego funcionam como freios
que inibem, de forma inconsciente, o comportamento, gerando culpas,
traumas, desajustes e, não-raro, desejos de fuga e até de delinqüência. Na
relação Fausto/Mephistófeles (o Diabo) 144, aparece nítida essa mudança,
em que o primeiro faz um acordo de poder e prazer, trocando papéis de
sua vida. Fausto troca a luz pela sombra. É o mesmo que ocorre no
dualismo Jekyl/Hyde. A dualidade de ações e emoções, onde bem e mal se
confundem, acompanha o ser humano, fazendo-o tender ora para um ora
para outro.

140
A. MOSER, O Pecado: do descrédito ao aprofundamento. Ed. Vozes, 1996. Cf. A. PLÉ, L’apport du freudianisme à
la morale chrétienne. Paris, 1974.
141
O mal-estar... op. cit.
142
O Eu e o inconsciente. Ed. Vozes, 1987 (Obras Completas de C.G. Jung).
143
N. SILVEIRA, Jung, vida e obra., Ed. Paz e Terra, 1981.
144
J. W. GOETHE, Fausto, Frankfurt, 1832.
122

Pois a sombra faz parte da totalidade da personalidade humana, é a


metade obscura da alma. São as coisas que não aceitamos em nós, é a
nossa fragilidade deplorável e condenável, 145. Para Jung,

...com compreensão e boa vontade, a sombra pode ser integrada de


algum modo na personalidade, enquanto que certos traços [...]
opõem obstinada resistência ao controle moral, escapando portanto
a qualquer influência. De modo geral, estas resistências ligam-se a
projeções, que nem sempre podem ser reconhecidas como tais pela
pessoa 146.

Na visão de Jung, projeção é o ato de atribuir a uma outra pessoa,


animal ou objeto as qualidades, sentimentos ou intenções que se originam
em si próprio. É um mecanismo de defesa por meio do qual os aspectos da
personalidade de um indivíduo são deslocados de dentro deste para o
meio externo. A ameaça é tratada como se fosse uma força externa. A
pessoa pode, então, lidar com sentimentos reais, mas sem admitir ou
estar consciente do fato de que o mal temido nasce a partir dela. A
psicologia de Jung trata o fenômeno da projeção como uma identificação
no objeto externo de um componente psíquico. Nessas águas, Jung diz
que não curamos medos e neuroses; eles é que nos curam.

Ao contrário de Freud, que menospreza a religião, Jung demonstra


que a religião (e a religiosidade) não é constitutiva dos arquétipos
psicossociais do homem, como afirma nunca haver conhecido ninguém
que tivesse conseguido harmonia psíquica sem harmonia religiosa.
Segundo Jung, só um auto-conhecimento, amplo e severo, torna
possível que se olhe o mal e o bem numa relação correta e seja-se capaz
de ponderar todos os aspectos, o que oferece uma certa garantia de que o
resultado final não será muito ruim 147. Talvez por esta razão, ele formula
uma objeção, que imagina lógica, à doutrina da privatio boni, quando
percebe que o ser humano é com-pelido a pensar em termos de bem e
mal, embora tais conceitos esbarrem na limitação dos conceitos humanos:

Bem e mal formam um par de opostos logicamente equivalentes. O


mal, assim, como o bem, estabelece sua pertença à categoria dos
bens e valores morais 148.

A nível prático, Jung nos diz que a doutrina da privatio boni é


moralmente perigosa, porque ela subestima e não se dá conta do mal e, ao
145
Aion – Estudos sobre o simbolismo... op. cit.
146
Idem
147
Idem
148
Aion, op. cit.
123

mesmo tempo, enfraquece o bem, porque o priva de seu oposto necessário.


Esta é a razão – conclui – pela qual sustento que a privatio boni é ilógica,
irracional, e até bobagem 149. Curiosamente, embora não se confesse ateu
ou herege, Jung afirma que o modelo trinitário divino (Pai, Filho e Espírito
Santo) estaria incompleto, à medida em que sendo Deus o símbolo da
totalidade, ela não pode ser representado por uma fórmula trinitária, que
o 3 é um número incompleto, mas quaternária, sendo Satã o quarto
elemento, capaz de estabelecer o contraponto estético do bem e do mal.

A simbólica da totalidade é representada, no Oriente pelo 2 (Yin-


Yang), no cristianismo pelo 3 (a Trindade) e em outras visões (como a de
Jung, por exemplo), pelo 4 150.

Jung não inventa o símbolo quaternário para a totalidade, mas é


capaz de mostrar que ele advém espontaneamente dos símbolos do
inconsciente para representar o todo 151.

Para Jung, invocando raízes psíquicas, o mal vem do daimon


(espírito mau), que nada mais é que a ―outra face de Deus‖, ou seja, ―sua
mão esquerda‖, que enquanto a direita distribui as graças, derrama as
penas. Pois é dentro dessa linha de raciocínio que vamos tecer
considerações sobre um importante trabalho de Jung, no qual ele aborda
frontalmente o problema do bem e do mal, da justiça e da retribuição. O
trabalho mencionado, do qual vamos nos envolver daqui para a frente,
trata da relação do homem sofredor (Jó) com seu Criador 152.

O livro de Jó, contido na seção dos ―sapienciais‖, serve de


paradigma a uma forma de experiência íntima com Deus, experiência esta
que possui um significado peculiar a cada época da humanidade. Como
todos sabem, a narrativa é uma parábola que conta a história de–um
homem justo e rico, que viveu na imaginária ―terra de Hus‖, e que ficou no
meio de uma disputa entre Deus e Satã. Para provar que Jó era temente a
Deus, só porque este o havia cumulado de riquezas (filhos, propriedades,
saúde), Satã é ―autorizado‖ por Deus para tirar todas essas coisas de Jó,
reduzindo-o a um farrapo humano, pelas perdas, pelo abandono e pela
doença (lepra). Mesmo assim, revelando fé e confiança no seu Deus, Jó
aceita tudo de forma estóica, e não repudia seu Criador. A história
termina com Satã derrotado, e Deus ―restituindo‖ em forma de novos bens
(outros filhos, mais riquezas e a devolução da saúde) tudo o que Jó havia
perdido. A obra de Jung é interessante à medida em que relaciona outros
argumentos ao fato. Com disse, a história de Jó é uma parábola, e como
tal deve ser interpretada.

149
In: Letters, New Jérsei, 1957.
150
C.G. JUNG, O homem e seus símbolos, Ed. Nova Fronteira, 1994.
151
J. A SANFORD, op. cit.
152
Resposta a Jó, Ed. Vozes, 1990. 3a. edição. Tradução de Dom Mateus Ramalho Rocha, O.S.B.
124

Nos discursos de Jó, a justiça responde à injustiça, a fim de


propiciar ao leitor de todos os tempos, compreender a razão ou a
finalidade pela qual Jó foi ferido e quais as conseqüências
decorrentes deste acontecimento, não somente para Javé mas
também para o homem 153.

Usando mais a visão psicanalítica que o enfoque místico, Jung


revela uma certa indignação ante o sofrimento (que ele reputa como
injusto) de Jó. Na verdade, a questão toda parece uma ―aposta‖ entre
Deus e Satã, para ver quem tinha razão; Jó seria fiel ou não? Na verdade,
Deus não precisaria de provas, pois, onisciente, ele tinha conhecimento do
comportamento futuro do pobre Jó. Em um determinado momento da
narrativa, Jó exaspera-se diante do sofrimento que ele julga não merecer.
Mesmo assim, ele é estóico e paciente; não se revolta. Como muitos
homens de hoje, que padecem de fome, doenças e exclusão, Jó sofre mais
ou menos calado, sem dizer tudo aquilo que pensa sobre suas dores.

Eu me sinto arrasado. O que posso replicar? Vou tapar a boca com


a mão. Falei uma vez e não insistirei; falei duas vezes e não vou
acrescentar mais nada (Jó 40,4s).

Segundo a redação do hagiógrafo, Javé chama os desabafos de Jó de


algo obscuro, destituído de inteligência (38,2). Jung contrapõe:

A ―resposta‖ que Jó deve dar à pergunta de Javé é que ele mesmo é


quem obscurece e revolta o próprio desígnio. Obscuro é o problema
de saber como é que Deus pôde fazer uma ―aposta‖ com Satanás...
Jó não compreende Deus fora de um ser moral. Nunca duvidou de
sua onipotência. Ele confiou no caráter justo de seu Deus [...]. Seria,
porém, justo e eqüitativo que Ele tivesse esclarecido a Jó a respeito
do problema (a aposta com Satanás) e a injustiça que a ele foi
infligida. Ele inverte: Jó é que é o ofendido 154.

Jó rende-se ao mistério. Ele sabe que é inocente. Conhece o


sofrimento mas duvida que alguém possa ter razão contra Deus no terreno
do direito e da moral. Ele confia na sua restauração:

Eu sei que o meu redentor está vivo, e que no fim se levantará acima
do pó. Mesmo com a pele em pedaços e em carne viva, eu verei a
Deus (19,25s).

Mesmo dizendo-se cristão, ante o sofrimento de Jó, Jung traça, a


respeito do Deus-Javé do Antigo Testamento, uma imagem contraditória,

153
Idem
154
Idem
125

ou seja, ―a imagem de um Deus excessivo em suas emoções, que sofria por


causa dessas emoções, um Deus que reconhecia a cólera e o ciúme que o
corroíam, o que lhe era doloroso 155‖

Discordando da privatio boni (o mal como uma ausência do bem),


Jung elabora uma longa dissertação a respeito da origem do mal, onde
coloca elementos de sua psicanálise, aliados à visão histórica da
humanidade, culminando com um enfoque teológico nitidamente
germânico. É interessante a análise que o texto oferece:

Sou contrário à idéia da privatio boni em conexão com a discussão


desses problemas e da doutrina da redenção, pois essa idéia não se
coaduna com os conhecimentos psicológicos. A experiência mostra-
nos que aquilo que chamamos de bem se contrapõe a um mal
igualmente substancial. Se o ―mal‖ não existe, então tudo o que
existe seria forçosamente bom. Segundo os dogmas, nem o bem nem
o mal têm origem na origem do homem, pois o ―maligno‖ existiu
antes do homem, como um dos ―filhos de Deus‖. A idéia da privatio
boni só começou a desempenhar um certo papel na Igreja depois do
aparecimento de Manes (Mani). Antes do maniqueísmo, Clemente de
Roma ensinou que Deus governava o mundo com a mão direita e a
mão esquerda. Pela mão direita ele entendia Cristo e pela mão
esquerda, Satanás. A concepção de Clemente é evidentemente
monoteísta, pois une os ―contrários‖ em um só Deus 156.

Jung encerra sua obra dizendo que o livro de Jó pretende apenas


ser a voz indagadora de um indivíduo que espera e mesmo aguarda a
reflexão de seus leitores. Tanto o texto bíblico quanto a obra de Jung não
têm uma conclusão tácita. Embora com mil palavras, ambos ficam abertos
à reflexão,

155
Idem
156
Idem
126
127

Livre-arbítrio:
Uma idéia humana para
“defender” Deus?

Ai dos que dizem que o mal é bem, e o bem é mal, dos que transformam as
trevas em luz e a luz em trevas, dos que mudam o amargo em doce e o
doce em amargo! (Is 5,20).
128
129

1. A questão do mal segundo Santo Agostinho

Diversas correntes filosóficas, bem como um ponderável número de


teólogos, cientistas, pesquisadores, místicos e exegetas tentaram, a partir
das formulações literário-teológicas de Aurélio Agostinho, o Santo
Agostinho de Hipona († 430), obter respostas sobre a questão do mal. As
obras desse ―doutor da Igreja‖ nos remetem a algumas pistas sobre esse
intrincado mistério. A produção místico-religiosa, bem como filosófico-
teológica de Agostinho, considerado um pensador completo, é
fundamental, não só para o cristianismo e a filosofia ocidental, mas
tornou-se a base de todo o pensamento universal.

A grande obra agostiniana, De Libero-Arbitrio (o Livre-arbítrio), tem,


como ponto de partida, um diálogo que teve lugar em Roma, por volta do
ano 388 d.C., em que os interlocutores eram o próprio Agostinho e Évodio,
discípulo e amigo. Os dois homens já tinham sido iniciados na Igreja e
recebido o batismo, mas não tinham ainda tido a oportunidade de
aprofundar os ensinamentos eclesiais. O próprio Agostinho não estava
ainda bem familiarizado com as Escrituras e sabe-se que até a data de
sua ordenação sacerdotal, ele tinha alguma dificuldade com os Livros
Sagrados. As questões que mais o interessavam eram de ordem filosófica e
reportavam-se ainda à refutação do maniqueísmo.

Em segundo lugar, é necessário observar que a obra Livre-Arbítrio


não tem como objeto o problema do livre-arbítrio filosófico, mas o
problema do mal que desde o testemunho das Confissões já preocupava
Agostinho. A obra é composta de três grandes capítulos, que o autor
prefere chamar de ―livros‖. Curiosamente, ao longo do livro I, veremos que
não é sobre a liberdade que se desenvolve a reflexão, mas sim sobre o mal.
É só depois do livro II fornecer uma prova racional da existência de Deus,
aceita como uma verdade evidente, que o livro III põe e debate a questão
da liberdade. Tendo em conta somente o livro I, seria mais lógico a obra
chamar-se ―De Malo” (A respeito do mal) ou qualquer coisa análoga. Os
especialistas em santo Agostinho insistem no fato que só o livro I foi
terminado em Roma em 388. Os livros II e III foram concluídos mais tarde,
entre 393 e 395 após a ordenação sacerdotal de Agostinho. Isto explica
divergências literárias na obra. E até – em alguns casos – de interpretação
teológica. No livro II, o autor declara que Deus não é o autor do mal, mas
do livre-arbítrio, que é um bem.

Na abertura de O Livre-Arbítrio aparece a pergunta: é Deus o autor


do mal? A resposta dada por Agostinho a Evódio, que tematiza todo o
trabalho, é paradigma para o cristianismo de todos os tempos:

Sendo Deus bom, como tu sabes e acreditas, nem é possível ser de


outra forma, não pode fazer o mal. Mais ainda, se declararmos que
Deus é justo, e o contrário seria blasfêmia, de tal maneira que assim
130

como premia os bons condena os maus; condenação que para os


que sofrem é um mal. Entretanto, se ninguém é castigado
injustamente, como necessariamente devemos crer, uma vez que
acreditamos ser a Providência quem governa o mundo, de nenhuma
forma poderá ser Deus o autor da primeira espécie de mal, muito
embora o seja da segunda 157.

Só, a fé também não chega; é preciso ainda a compreender; e o


Livre-Arbítrio é um esforço da inteligência em direção à verdade. Esta obra
importante tem como objeto o problema da origem do mal como aliás já o
dissemos. Sabemos que Agostinho desde a sua adolescência se preocupou
com esta questão e uma das causas da sua adesão ao maniqueísmo foi de
ter tido a esperança de encontrar a solução. Entretanto os heréticos não o
satisfizeram e continuou a procura da verdade que nos descreveu nas sua
obra-prima 158

Religiosamente convicto, Agostinho não podia suportar a idéia que


Deus fosse a causa do mal, mas sabia que, afirmando que a origem fosse
o nosso livre-arbítrio, várias questões se levantariam, contrárias a esta
resposta. É fácil mostrar que o mal físico é substituído pela divina
providência porque visto no conjunto não é mais um mal, mas contribui
ao bem comum e à ordem cósmica: a tese neoplatônica é até aqui
satisfatória. Mas que poderemos dizer do mal moral que se opõe
diretamente à vontade de Deus? Examinando minuciosamente esta
questão Agostinho propõe uma solução racional dentro dos limites que a
cultura da época e sua fé lhe permitiam. A partir deste ponto de vista, o
projeto geral do Livre-Arbítrio aparece claramente.

Agostinho é o mais exímio filósofo dentre os Pais da Igreja e, sem


dúvida, o mais insigne teólogo da Igreja daquele tempo. Já em vida
suas obras lhe granjearam numerosos admiradores. Exerceu
profunda influência na vida da Igreja ocidental, e que perdura até a
época moderna. Isso não só na filosofia, dogmática, na teologia
moral e mística, mas ainda na vida social e caritativa, e também na
formação da cultura medieval 159.

Agostinho desenvolve, em um conciso tipo de considerações, as


relações entre o pecado e a Providência. Ali ele demonstra que não
podemos de maneira alguma – sob pena de sermos hereges – censurar a
Deus de ter criado a livre vontade mesmo falível, mesmo pecadora. A
insistência a enviar seus leitores em direção a Deus para resolver o
problema do mal, faz a unidade desta obra e é o método eficaz para obter
uma solução clara. Como não nos abandonarmos com plena confiança à

157
In: O Livre-Arbítrio, I, 1. Coleção “Patrística”, Ed. Paulus, 1995
158
In: Confissões, op. cit.
159
B. ALTANER et alli. Patrologia. Ed. Paulinas [Paulus], 1972.
131

vontade toda poderosa de Deus, quando compreendemos, com Agostinho,


que é a bondade incapaz de nos querer outra coisa senão o bem?

Agostinho paga muito caro a sua conciliação entre a metafísica


neoplatônica e o cristianismo, com a culminância na ontoteologia
do ser e conseqüente negação da positividade do mal. Negar a
substancialidade do mal se impunha como premissa necessária
para poder afirmar a bondade da criação desde o ―nada‖. Esse
casamento lhe possibilitou superar o dualismo metafísico do
maniqueísmo, porém não lhe permitiu mais poder se mover sem o
contágio da filosofia helênica. Tendo como ponto de partida a
racionalidade da metafísica grega, o resultado só poderia ser uma
helenização da fé, que, por sua vez, irá legitimar teologicamente essa
mesma filosofia 160.

O modelo quase racionalista que Agostinho imprime ao longo do


livro I manifesta-se melhor quando ele afirma que tudo deve desembocar
em Deus, que possui a opinião mais excelente. Agostinho desenvolve o seu
pensamento; e manifestamente apoia-se sobre o texto do símbolo que
professou na Igreja no dia do seu batismo; mas deste símbolo, encontra o
meio de dar uma expressão filosófica.

De fato, o Deus que emerge da teodicéia agostiniana é um Deus


justo, supervenientemente a um Deus misericordioso. Trata-se de uma
teodicéia que combina a teoria da retribuição, onde Deus castiga os
pecados da humanidade pecadora, em virtude de um pecado inicial
anterior à vida pessoal de cada um, com uma concepção moralista do mal,
culpabilizando a todos e, dessa forma, tirando o direito de apelação do
homem diante do sofrimento pelo qual não tem consciência de culpa. Esse
é, efetivamente, o resultado da teodicéia de Santo Agostinho, no esforço de
explicar todo o mal desde a ação humana na sua articulação de pecado e
castigo. Uma teodicéia que pretende deixar tudo explicado e esclarecido
sem sombra de dúvidas. O mal deixa de ser colocado desde o âmbito do
mistério, para ser colocado desde o âmbito de um problema a ser
resolvido. Embora brilhante, o bispo de Hipona não consegue atingir todo
o objetivo didático.
Fiel e devoto, Agostinho não podia suportar a idéia que Deus fosse a
causa do mal, mas sabia que, afirmando que a origem fosse o nosso livre-
arbítrio, várias questões se levantariam, contrárias a esta resposta. É fácil,
mostrar que o mal físico é substituído pela divina providência porque visto
no conjunto não é mais um mal, mas contribui ao bem comum e ao
encanto da ordem: a tese neoplatônica é até aqui satisfatória. Mas que
poderemos dizer do mal moral que se opõe diretamente à vontade de
Deus?

160
G. ZAMPIERI, op. cit.
132

Examinando minuciosamente esta questão Agostinho propõe uma


solução racional dentro dos limites que a cultura da época e sua fé lhe
permitiam. A partir deste ponto de vista, o projeto geral do Livre-Arbítrio
aparece claramente. Segundo os dados da fé, todas as coisas criadas por
Deus são boas. O pecado não pode ser imputado à criação. Trata-se de
compreender a origem do pecado e o seu papel na contrário ao projeto de
Deus.

Antes de tudo para descobrir a origem do pecado é necessário saber


a sua essência; e aqui Agostinho chega a este encadeamento
conclusivo: fazer mal não é mais do que submeter a vontade às
paixões ou preferir aos bens propostos pela lei eterna uma
satisfação pessoal; ora isto só é possível por uma livre escolha da
nossa vontade. Por outro lado a prova aprofundada da existência de
Deus mostra-nos este como fonte de todo o bem: e não podemos
recusar à vontade mesmo falível uma situação honorável entre os
bens. É necessário então louvar a Deus por ter criado esta vontade
livre, mesmo pecadora, como um elemento da ordem universal.
Vendo o problema mais de perto o pecado não é necessário à ordem,
mas a sua presença não torna a ordem atual indigna de Deus: a
última palavra na questão do mal, em relação ao pecado como em
relação ao mal físico, será sempre o louvor a Deus pela ordem
universal, do qual o livre-arbítrio é um elemento positivo, ainda que
sujeito ao pecado 161

A psicologia agostiniana está em harmonia com o neoplatonismo


cristão. Certamente o corpo não é essencialmente mau, visto que é uma
criatura de Deus, que fez boas todas as coisas. Mas a união da alma com
o corpo é, de certo modo, extrínseca, acidental. A alma e o corpo não
formam a unidade metafísica, substancial, como na concepção
aristotélico-tomista, graças à doutrina da forma e da matéria. Entre as
faculdades da alma, a vontade tem a primazia e não o intelecto. Entra aí a
questão da liberdade.

Quanto à cosmologia, mencionamos a famosa doutrina agostiniana


das rationes seminales (razões-sementes). Segundo esta doutrina, Deus na
criação originária e simultânea das coisas, teria criado algumas
completamente realizadas; de outras coisas teria criado apenas as causas
necessárias para produzi-las, predispondo estas causas de maneira que
dessem origem, mais tarde, desenvolvendo-se, às coisas. Naturalmente a
moral agostiniana é teísta e cristã e, portanto, transcendente e ascética.
Ele até acentua estes caracteres, devido ao seu rigorismo e a sua
concepção do pecado original. Nota característica da sua moral é o
voluntarismo, quer dizer, o primado da ação, do prático - próprio do
pensamento latino - contrariamente ao pensamento grego, que reconhece
o primado do teorético, do conhecimento.

161
S. AGOSTINHO, O Livre-arbítrio, Livro III, Coleção “Patrística”, Ed. Paulus, 1995
133

A virtude essencial é o amor de Deus; as outras virtudes são


especificações, a partir deste amor de Deus. A vontade humana é,
entretanto, livre e pode fazer o mal, porquanto é vontade de um ser
limitado. Em tal caso, a vontade é má; não é, porém, causa eficiente, e sim
deficiente, da ação viciosa, visto que o mal não tem realidade metafísica. O
pecado, pois, tem em si mesmo imanente a pena da sua desordem: com
efeito, não podendo a criatura lesar a Deus, prejudica-se a si mesma,
determinando a dilaceração da sua natureza. Embora restrita, em boa
parte, ao zeitgeist medieval, a solução do problema do mal constitui,
talvez, a maior glória especulativa de Aurélio Agostinho.
O mal é, fundamentalmente, privação de bem - privação de ser. Tal
bem pode ser não devido (mal metafísico) ou devido (mal físico e moral) a
uma determinada natureza. Se o bem é devido, nasce o verdadeiro
problema do mal. A solução desse problema é estética, para o mal físico; é
moral (pecado original e redenção pela cruz), para o mal moral e, também,
físico. A solução do problema da história constitui outra grande glória
especulativa de Agostinho. Tal problema é, fundamentalmente, o problema
do mal na história.

Agostinho resolve-o, naturalmente, mediante os dogmas do pecado


original e da redenção pela cruz, isto é, mediante a Revelação, a Teologia.
Ele trata desse assunto na Cidade de Deus, que se pode considerar a
obra-prima especulativa do grande doutor. Quanto à natureza de Deus,
Agostinho tem uma idéia perfeitamente exata: Deus é poder racional
infinito, eterno, imutável, espírito, pessoa. Assim sendo, Deus também a
Trindade do Pai, Verbo e Espírito Santo, esforça-se por descobrir
filosoficamente as imagens da Trindade em todo o mundo; toda criatura
seria, essencialmente, ser, saber e vontade. Para a fenomenologia de
Santo Agostinho, o mal não é ser, mas privação do ser, como a
obscuridade é ausência da luz. Por não-ser, o mal não pode ser visto como
criatura, mas mera contingência de atitudes. Sobressai-se de sua obra, a
teoria da privatio boni.

Já que Deus é o Bem Supremo, ele não permitiria a existência de


mal algum no mundo, a menos que sua onipotência e bondade
fossem tal, que conseguisse tirar algo bom até do mal 162.

Para o teólogo de Hipona, o mal só pode provir do homem, livre


porém limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser.
Mesmo assim, o testemunho dos santos não cessa de confirmar que do
mal Deus sempre tira um bem: assim, santa Catarina de Siena († 1380)
nos diz textualmente que:

162
In: A natureza do bem: contra os maniqueus. Obras completas. BAC, (T. do A.)Madrid, 1947.
134

Aqueles que se escandalizam e se revoltam com que lhes acontece:


tudo procede do amor, tudo esta ordenado a salvação do homem,
Deus não faz nada que não seja para esta finalidade 163.

Pois é santo Agostinho 164 quem afirma que Deus pode tirar do mal
um bem maior. É um paradoxo, mas mesmo assim algo possível. Para
Deus, nada é impossível. Conheci uma família, sem um sentido de vida,
de pessoas fúteis, que só viviam para si, para festas e amenidades, até que
um dia aconteceu-lhes algo, inesperado, aparentemente uma tragédia: o
casal teve um filho deficiente, com síndrome de Down. A princípio foi um
―Deus-nos-acuda‖, a partir daqueles porquês que em geral ficam sem
resposta: ―Por que eu?‖, ―por que comigo?‖, e por aí vai. Com o passar do
tempo, a rotina e o ponto de interesse da família se modificou. O menino
passou a exigir mais de todos, que, esquecendo-se das futilidades,
entraram a valer na causa do pequeno. O depoimento da mãe (quando o
menino tinha já uns cinco anos), confidenciado a mim, confirma a tese do
Doutor de Hipona: ―A vinda do Paulinho (o nome é fictício) serviu para
unir nossa família e dar às nossas vidas um outro sentido‖. É como diz a
filosofia popular: ―Deus pode, de um limão azedo fazer uma gostosa
limonada‖.

Para Santo Agostinho, a ocorrência do mal no mundo é resultado da


liberdade humana. Uma liberdade mal conduzida. Deus criou o homem
livre. e este, por ser livre escolheu o pecado. Com isso surgiu o mal moral
e o mal físico. O mal metafísico é, apenas uma conseqüência, o castigo de
Deus. Embora o cristianismo aposte mais na capacidade misericordiosa
de Deus (ao invés da teologia do castigo), esta interpretação situa-se muito
próxima da instrução bíblica.

Sob a visão teológica, Agostinho foi um dos que mais profundamente


impressionou-se pelo problema do mal. Tal preocupação refletiu
sensivelmente na fenomenologia que adensa algumas de suas obras. Ao
contrário dos postulados dos maniqueus, ele, antes de tudo, nega a
realidade metafísica do mal. Para o bispo de Hipona, o mal não é ser, mas
privação de ser, como a obscuridade é ausência de luz. Tal privação é
imprescindível em todo ser que não seja Deus, enquanto criado, limitado.

Desta forma, ele busca explicar o assim chamado mal metafísico,


que não é verdadeiro mal, porquanto não tira aos seres o lhes é devido por
natureza. Quanto ao mal físico, que atinge também a perfeição natural dos
seres, Agostinho procura justificá-lo mediante um velho argumento,
digamos assim, estético: o contraste dos seres contribuiria para a
harmonia do conjunto. Esta, segundo os especialistas, é a parte menos
afortunada da doutrina agostiniana do mal.

163
Obras, Bologna, 1971
164
In: O Livre-Arbítrio, op. cit.
135

Quanto ao mal moral, finalmente existe realmente a má vontade que


livremente faz o mal; ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente,
sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem,
livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser.

A teologia bíblica revela que o mal moral entrou no mundo humano


através do pecado, original e atual, razão ;pela qual, a humanidade foi
punida com o sofrimento, físico e moral, além de perder os dons gratuitos
de Deus. Como se pode observar, o mal físico tem, deste modo, uma outra
explicação mais profunda. Remediou este mal moral a redenção de Cristo,
Homem-Deus, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a
possibilidade do bem moral; mas deixou permanecer o sofrimento,
conseqüência do pecado, como meio de purificação e expiação. A
explicação definitiva dessa questão (do mal moral e de suas
conseqüências) estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o
bem do mal, do que não permitir o mal.

Sintetizando a doutrina de Agostinho a respeito do mal, se poderia


afirmar que: o mal é (embora muitos não concordem), fundamentalmente,
uma privação do bem (de ser); este bem pode ser não devido (mal
metafísico) ou devido (mal físico e moral) a uma determinada natureza; se
o bem é devido nasce o verdadeiro problema do mal; a solução deste
problema é estética para o mal físico, moral (pecado original e Redenção)
para o mal moral (e físico).

2. O maniqueísmo

O maniqueísmo é, a grosso modo, uma forma de pensar simplista


em que o mundo é visto como que dividido em dois: o do Bem e o do Mal.
Este pensamento não admite meio-termo nem retratação. Tal
simplificação é uma forma primária do pensamento que reduz os
fenômenos humanos a uma relação de causa e efeito, certo e errado, isso
ou aquilo, é ou não é. A simplificação é entendida como forma deficiente
de pensar, nasce da intolerância ou desconhecimento em relação a
verdade do outro e da pressa de entender e reagir ao que lhe apresenta
como complexo.

O pensamento maniqueísta é uma forma religiosa de ver a realidade;


não como uma religião autônoma, mas como um conjunto de comandos
camuflados que influenciam os discursos do cotidiano, inclusive as
religiões formais e seitas. Tudo tem início com Mani, um mago nascido na
Pérsia, no século III, que fundou uma espécie de religião, o maniqueísmo,
após ter sido – conforme ele afirma – visitado duas vezes por um anjo que
o convocou para esta tarefa, fato este comum entre aqueles que fundam
religiões e seitas até hoje. A crença maniqueísta se difundiu pelo Império
Romano e pelo Ocidente Cristão, combinando elementos do zoroastrismo,
uma antiga religião persa, e de outras religiões orientais, além do próprio
cristianismo. Possui uma visão dualista radical, segundo a qual o mundo
136

é acionado por duas forças: o bem (luz) e o mal (trevas) como entidades
antagônicas em perpétua luta.

Luz e trevas no sistema maniqueísta não são figuras retóricas, mas


representações concretas do bem e do mal. O reino da Luz e o reino das
Trevas estão em permanente conflito. É dever de cada ser humano
entregar-se a esse eterno combate para extinguir em si e nos outros a
presença das Trevas afim de poder alcançar a Luz, que é o Reino de Deus.
No maniqueísmo, os homens eleitos irão purificar o bem, com uma vida de
castidade, renúncia a família, alimentação especial, etc. O espiritismo
kardecista usa esses dois extremos em suas fórmulas de identificar o bem
(o atraso) e o mal (o progresso).

A expressão maniqueísmo ganhou uso corrente ao definir aquele tipo


de pessoa ou aquele tipo de pensamento de estruturação dualista
que reduz a vida (ou alguns de seus aspectos) a pares dialéticos,
antagônicos irreconciliáveis, tipo: direita x esquerda, corpo x mente,
reacionário x progressista, belicista x pacifista, fiel x infiel,
capitalista x comunista, individualismo x coletivismo, branco x
negro, ariano x judeu, raça superior x raça inferior, objetivo x
subjetivo e assim por diante 165.

A propaganda nazista contra os judeus plantou no inconsciente do


povo alemão o que este já continha de preconceito e racismo.
Primeiramente, o alemão ariano e cristão tinha herdado a crença de que
os judeus eram os assassinos de Cristo e representavam o Diabo ou todas
as forças do mal, na terra. Assim como Cristo comanda o mundo
espiritual, o Diabo comanda o mundo material: dinheiro, poder e sexo.
Segundo, os judeus foram associados a esses três elementos materiais,
principalmente o dinheiro. No período nazista, as crianças alemãs eram
educadas para estigmatizar os judeus, com desenhos e histórias
associando-os ao mal ou ao Diabo. Terceiro, a propaganda nazista foi
sistemática contra os judeus, explorando o simplismo do pensamento
maniqueísta.

O maniqueísmo nazista começou associando os judeus a traças,


piolhos e vermes que ―corroíam a economia alemã‖, em verdade, tal
propaganda preparava o espírito coletivo alemão para a chamada
―solução final‖ ou medida ―higiênica‖ de extermínio em massa de todo o
povo judeu.

As teorias maniqueístas não se sustentam por muito tempo, devido


ao seu dogmatismo, isto é, sua incapacidade de colocar à prova da
realidade ou da lógica, suas verdades simplificadas. Como seu
pensamento está reduzido a um par de verdades antagônicas, aceitar o
raciocínio do outro, discordante, significa deixar-se arrastar para o
domínio do mal e ser por ele tragado. A vida do maniqueísta se converte
165
R. DE LIMA, In: revista Espaço Acadêmico. Ano I, no 7 dezembro de 2001.
137

em uma prontidão de vigilância (paranóia) constante para não se deixar


iludir com os ―discursos sedutores‖.

Santo Agostinho, que inicialmente foi maniqueísta, depois de ter se


afastado desses grupos, escreveu no ano 400, em suas ―Confissões‖ (livro
7) que, nessa doutrina ―não tinha encontrado paz e apenas expressava
opiniões alheias‖.

Portanto, mais que uma forma simplista e dogmática de pensar, o


maniqueísmo propõe uma ação, uma luta eterna contra o Mal,
personificado em algumas coisas, pessoas e situações. Na ação
maniqueísta ―vale tudo‖, até mesmo a violência extrema contra um
improvável Mal. A guerra e a tortura foram os principais meios da atuação
do maniqueísmo moderno. Adolf Hitler († 1945), um dos paradigmas do
mal na Idade Moderna, afirmou, na primeira metade do século XX, que
também acreditava ter uma grande missão de purificação da humanidade:

As lágrimas da guerra prepararão as colheitas do mundo futuro 166

O poeta e filósofo britânico, um moralista por excelência, de origem


austríaca, K. Popper († 1994) constata, com muita propriedade, que

toda a vez que o homem quis trazer o céu para a terra, fez reinar o
inferno 167.

Ora, sabemos pela história que o pior inferno é aquele que mata,
oprime e ordena, em nome do bem contra o mal, ou do seguimento de
religiões capazes de radicalizar em seus dogmas. Nada é tão perigoso
quanto a certeza, o dogmatismo, a fé cega ou louca. O filósofo Nietzsche
propõe pensarmos para além do Bem e do Mal:

Perguntai aos escravos quem é o ―mau‖?, e apontarão a personagem


que para a moral aristocrática é ―bom‖, isto é, o poderoso, o
dominador 168.

É muito pobre a divisão de todas as coisas e situações em apenas


dois blocos, luz e trevas, criação e destruição, bem e mal. Para os
maniqueus, o bem e o mal são iguais, inseparáveis e equilibrados. Esta
visão vem do passado e é encontrada em nossos dias, nossos grupos,
sociedade, etc.

O bem e o mal, dependem da perspectiva e dos interesses de quem


julga. Deveríamos nos colocar no lugar do outro. Por exemplo, por

166
In: Mein Kämpf (Minha luta), Munique, 1928
167
In: A Sociedade Aberta e seus inimigos, Londres, 1946.
168
In: Genealogia do Mal, Pref. XI. 1887.
138

que Bin Laden é um ―homem mau‖ para o Ocidente cristão e, é herói


―bom‖ no Oriente islâmico? Por que algumas igrejas fazem show
contra o Mal, mas terminam mais falando das terríveis forças do
Mal do que do Bem?169.

Em sua doutrina, o maniqueísmo sustenta que o homem vive


aprisionado no mundo das trevas porque não consegue libertar-se de seu
corpo (teoria platônica). A libertação consiste em separar-se do corpo,
através do conhecimento verdadeiro (teoria gnóstica), respeitando vícios e
paixões. A atitude cética parece ser o melhor remédio contra o
maniqueísmo. O cético suspende o juízo, não toma partido, não se rende
ao simplismo de encurralar o pensamento entre as paredes do Bem e do
Mal, do certo e errado. Suspender o juízo não quer dizer inação; significa
elaborar um melhor pensamento para além da solução dualista, ou seja,
um agir com sabedoria. A educação e a cultura tem uma grande tarefa
pela frente para prevenir o maniqueísmo.

O maniqueísmo significou um especial desafio ao cristianismo, em


parte porque parecia-se muito com ele. Para combatê-lo é que Santo
Agostinho, seu principal adversário, no século IV d.C., reformulou a
idéia do mal, enquanto privatio boni (privação do bem) 170,

De acordo com o ponto-de-vista de vários autores, o que


fundamentalmente seduziu o jovem Agostinho, fazendo-o abraçar a
doutrina maniquéia, foi justamente a promessa dessa doutrina na solução
dos problemas morais, máxime o mal. P. Brown assim se expressa nessa
questão:

Para Agostinho, naquele período de sua vida, só esta seita poderia


trazer uma resposta à questão que o tinha começado a ―atormentar‖
desde sua conversão àquela filosofia: ―Por que nós fazemos o mal‖
171. A resposta maniquéia ao problema do mal constitui uma

instância que acalmou, pelo menos por algum tempo, o irrequieto


coração do jovem Agostinho‖ 172.

Engana-se, porém, quem situa o maniqueísmo – como uma forma


de pensamento perdido no passado. Lendo os jornais, vendo televisão ou
conversando com as pessoas, vamos encontrar remanescentes bem ativos
do radicalismo da doutrina de Mani, nos dias de hoje, em pleno século
XXI.

169
R. DE LIMA, op. cit.
170
J. A. SANFORD, Mal: o lado sombrio... op. cit.
171
In: O liv. arbítrio, op. cit. I, 2,4
172
P. BROWN, La Vie de Saint Augustin. Paris, 1971,
139

É o caso, por exemplo, da política externa de G. W. Bush. Naquela


visão, o bem, a ética e a verdade são valores representados pelos Estados
Unidos e seus aliados. Fora dessa coalizão, tudo é hostil, demoníaco,
personificação do mal. Isto é um nítido enfoque maniqueísta do mundo e
das relações internacionais.

No terreno religioso também se nota distorções análogas, à medida


em que religiões e seitas adotam uma maneira fundamentalista de
enxergar a fé, e tudo que escapa dos limites de suas crenças, dogmas e
regulamentos, vem do Diabo, e é capaz de jogar os ―desviados‖ no mais
profundo dos infernos. Nas Igrejas cristãs tradicionais, o movimento
ecumênico é uma tentativa (débil, ainda) de banir o maniqueísmo.

O maniqueísmo moderno é encontrado em idéias, ideologias e


atitudes, do tipo

eu sou x você é
bom mau
santo pecador
um ser moral imoral
―mocinho‖ ―bandido: .

Nestas características, encontramos pessoas, pródigas em julgar os


outros, que se imaginam ―certinhas‖, imunes aos erros, donas na verdade,
conhecedoras das ciências, capazes até de avaliar, definir e mensurar a
espiritualidade, moral e a fé dos outros. Enfim, gente que se julga sábia,
doutra e santa, bem acima dos ―pobres mortais‖. Quem está do lado de cá
é santo; os do lado de lá são pecadores: vão se perder, serão jogados no
fogo. Esta é uma lamentável manifestação do maniqueísmo nos tempos
atuais.

3. A formulação do livre-arbítrio
Por livre-arbítrio entende-se aquele poder ou capacidade que o
indivíduo tem de escolher uma linha de ação ou de tomar uma decisão
sem estar sujeito a limitações impostas por causas antecedentes, pela
necessidade ou por predeterminação divina. Um ato inteiramente livre é,
em si, uma causa, e não um efeito; está fora da seqüência causal ou da lei
da causalidade. A questão da capacidade do ser humano de determinar
suas próprias ações é importante na filosofia ocidental, particularmente
em metafísica, ética e teologia. Em geral, a doutrina mais radical na
afirmação da liberdade da vontade é denominada voluntarismo. Seu
contrário, o determinismo, é aquela em que a ação humana é resultante de
influências como as paixões, os desejos, as condições físicas e as
circunstâncias externas, fora do controle do indivíduo.

Entendemos, como a maioria dos filósofos e teólogos de nosso


tempo, pelo menos academicamente, o livre-arbítrio como aquele poder ou
aquela capacidade que o indivíduo tem de escolher uma linha de ação ou
140

de tomar decisões sem estar sujeito a limitações impostas por causas


antecedentes, pela necessidade ou por predeterminação divina (fatalismo).

Trata-se, deste modo, de um ato inteiramente livre, que é, em si,


uma causa, e não um efeito. Por esta razão está fora da seqüência causal
ou da lei da causalidade. A questão da capacidade do ser humano de
determinar suas próprias ações, como no caso de livre-arbítrio, é
importante na filosofia ocidental, particularmente na metafísica, na ética e
sobretudo na teologia. Em outras civilizações, oriental, islâmica e da
antiga Grécia, é privilegiado o fatalismo do ―estava escrito‖ ou maktub.

Em geral, a doutrina mais radical na afirmação da liberdade da


vontade é denominada, como vimos acima, voluntarismo. A filosofia define
o voluntarismo como uma liberdade da vontade. Uma preeminência desta.
Os filósofos definem o voluntarismo como uma teoria, segundo a qual,
qualquer juízo é um compromisso e um ato de liberdade para o espírito.
Resume-se, por fim, como doutrina que faz da vontade-de-viver a essência
do universo, assim como a substância de qualquer realidade 173.

Ao contrário do voluntarismo, o determinismo, é aquela em que a


ação humana é resultante de influências como as paixões, os desejos, as
condições físicas e as circunstâncias externas, fora do controle do
indivíduo. É um fatalismo, como o aludido maktub dos árabes. Sob a
pressão das paixões, da coação moral ou do fatalismo, o indivíduo não
tem liberdade de agir, mas o faz no improviso da emoção ou conforme um
script prévio.

Um sistema ético pressupõe o livre-arbítrio, uma vez que a negação


da liberdade implica em anulação da capacidade de estabelecer juízos
morais. No entanto, as posturas têm sido muito diferentes ao longo da
história, desde Sócrates e Platão, para os quais a ação livre é a que
coincide com o bem, até a autodeterminação de Baruch Spinoza e o
imperativo categórico de Immanuel Kant. No âmbito teológico, o problema
fundamental consiste em conciliar a teoria da predestinação com a
responsabilidade moral. A organização do sistema ético, do modo que foi
concebido por Santo Agostinho, pressupõe a necessidade do livre-arbítrio,
uma vez que a negação da liberdade implica em anulação da capacidade
de estabelecer juízos morais.

Como já dissemos aqui, Agostinho não podia suportar a idéia de que


as pessoas fizessem uma ligação de Deus com o mal ocorrido. Por esta
razão ele enfatiza a liberdade do homem (o livre-arbítrio) para, tirando a
culpa das costas de Deus, colocá-la em cima do homem. Deus não faz o
mal; quem o faz é o homem, que é livre para fazê-lo. Livre para fazer o mal
ou o bem.

173
G. DUROZOI et alli. Op. cit.
141

A privatio boni de Agostinho enfoca o mal moral (o pecado do


homem) que resulta num mal físico (um castigo natural oriundo do
pecado), mas esquece-se do mal metafísico. Não se trata – creio eu – de
descobrir culpados. Há casos em que o mal acontece, nem por ―vontade de
Deus‖ nem como resultado ―da ação livre do homem‖. Há males que
acontecem naturalmente. Se Deus permite ou não que eles aconteçam,
isto já é outra coisa. Vamos tratar desse mistério mais adiante.

Na teologia agostiniana encontramos um pouco da influência


pitagórica a respeito dos números e do equilíbrio. A estética de Santo
Agostinho, no tocante aos dons de Deus, ao bem como um todo, às penas
e os males, nos revela a influência daquelas especulações. Qual Plotino e
Leibniz, Agostinho é verdadeiramente um otimista. Esse otimismo é
característico de duas vertentes: o neoplatonismo e – sobretudo – de sua
fé cristã. Pois Agostinho é otimista, embora sem reconhecer o mundo de
seu tempo (e o atual, quem sabe) como absolutamente o melhor possível,
reconhece, em termos do mal, humildemente, sua limitação diante do
mistério da liberdade 174.

No mundo, por incrível que pareça, o bem e o mal atraem-se, e às


vezes ocorrem simultaneamente. As fórmulas escriturísticas da maiorias
das religiões e filosofias místicas estatui que quem pratica o mal, sempre
terá percalços em sua vida e, ao contrário, aquele que faz o bem, sua vida
será cumulada de dons e bênçãos. Pregando à Igreja primitiva, o apóstolo
Pedro indaga:

E quem lhes fará mal, se vocês se empenham em fazer o bem? (1Pd


3,13).

Os místicos tentam mostrar que o mal físico é compensado pela


divina Providência, porque visto no conjunto, ele não é mais um mal, mas
contribui para o bem individual e comum. Esta tese neoplatônica é, até
aqui, satisfatória. Mas o que se poderá dizer a respeito do mal moral que
se opõe diretamente à vontade de Deus? E onde encaixar o mal
metafísico? No que a liberdade (ou o livre-arbítrio, para usar a expressão
agostiniana) influi nessa provação?

Examinando minuciosamente esta questão, Agostinho propõe uma


solução racional dentro dos limites que a cultura da época e sua fé lhe
permitiam. Segundo os dados da fé, todas as coisas criadas por Deus são
boas. O pecado não pode ser imputado à criação. Trata-se de compreender
a origem do pecado e o seu papel na contramão ao projeto de Deus.
Agostinho desenvolve, em um conciso tipo de considerações, as relações
entre o pecado e a Providência. Ali ele demonstra que não podemos de
maneira alguma – sob pena de sermos hereges – censurar a Deus de ter
criado a livre vontade mesmo falível, mesmo pecadora.

174
O Livre Arbítrio, 5,12. op. cit.
142

A insistência a enviar seus leitores em direção a Deus para resolver


o problema do mal, faz a unidade desta obra e é o método eficaz para
obter uma solução clara. Como não nos abandonamos com plena
confiança à vontade toda poderosa de Deus, quando compreendemos, com
Agostinho, que é a Bondade incapaz de nos querer outra coisa senão o
bem? É preciso, a partir da compreensão da bondade de Deus, ir buscar
as raízes determinantes do mal. A maioria delas nós sabemos, e somos
capazes – mais que pela lógica – pela fé de entender e aceitar.

O que fica pendente é o entendimento a respeito do sofrimento, do


mal cometido contra o inocente. Podemos saber porque o perverso
estuprou e matou a menininha de quatro anos. Porque o delinqüente
cometeu o crime, a polícia, a sociedade, a psicologia, todos sabem,
atribuindo o ato criminoso a desajustes de toda ordem. O que não se sabe
explicar é a razão de um sofrimento tão cruel haver sido infligido a uma
criança inocente.

Não se poderia deixar de mencionar o fato de Santo Agostinho ter


uma ―solução‖ para o sofrimento, a qual é vista como demasiadamente
simplista:

 Deus, pretende, às vezes, corrigir ou ensinar os adultos pelas


dores ou morte das crianças;
 As aflições temporárias das crianças servem para tornar
melhores os adultos;
 A criança que sofre é feliz, recompensada por Deus pela ajuda
que prestou ao ensinamento dos adultos 175.

Essa teoria dá a impressão de, na falta de um argumento mais


convincente, o ―doutor de Hipona‖ cria uma fórmula que, na Idade Média,
quem sabe, tenha tentado minimizar a dor dos pais que perderam algum
filho. A teoria do livre-arbítrio, como é colocada em algum trecho,
transfere para o ser humano toda a culpa do que acontece de mal. A
alegação ―foi vontade de Deus‖ ou ―o homem, por pecador, merece o
sofrimento‖ não mitiga a dor de uma perda tão significativa.

Segundo os hereges e os ateus, o livre-arbítrio e a declaração da


onisciência de Deus se contradizem. Como pode Deus – questionam os
agnósticos – conceder liberdade ao homem, se já é sabida
antecipadamente sua queda? Se Deus sabe antecipadamente o que o
homem vai realizar, este não tem liberdade, mas está incurso em algo que
já ―estava escrito‖. Cai-se naquela questão do fatalismo de Omar
Khayyam, que no poema Rubayyath questiona:

Se conheces as minhas limitações,

175
O Livre-Arbítrio... op. cit. Livro III Cap. 23,68.
143

e preparaste tão meticulosamente minha queda,


por que, Alá, me chamas pecador?

4. Ser livre para decidir

Vivemos em um tempo de descobertas e duvidas, euforia e


ansiedades, certezas e enganos. Com a abundância de informações (livros,
bibliotecas, Internet, congressos, seminários, simpósios, graduações
universitárias, especializações, etc.) criou-se uma espécie de império da
cultura. Nessa instância, alguns institutos elegem seus ―especialistas‖,
cuja palavra assume conotações dogmáticas, gerando a ilusão da idéia
acabada, da causa finita, e do ―estamos conversados‖. Isto, além de gerar
um imobilismo de pensamento, que bloqueia o debate e a pesquisa,
assume, em muitos casos, uma feição de fanatismo radical e
fundamentalista. A esse respeito, há uma importante advertência do
pensador, um judeu francês Edgar Morin (nascido em 1927, ainda é vivo),
cuja filosofia se aplica à maioria das nossas questões :

Tenho constatado em mim um crescente desconforto! É que passei a


desconfiar de quem só tem certezas absolutas. Na melhor das
hipóteses, este infalível é um despreparado e na pior hipótese,
mesmo que não o queira, é uma pessoa perigosa, porque sua visão é
delimitada por aquilo que ele pensa que sabe! 176
Na contramão do raciocínio, há que os que afirmam que o ser
humano não é livre, mas condicionado a fatores, circunstanciais
(emoções), acidentais (casos fortuitos) comportamentais (interesses) e até
irremovíveis (o destino). Havia há tempos, quando chegaram ao Brasil os
primeiros carros estrangeiros (isso, segundo me contaram, lá pelos idos de
1930) uma piada: você tem liberdade – dizia o vendedor – para escolher a
cor do carro, desde que seja preto. O comprador pensava que era livre;
mas não era. Imaginava decidir, mas agia filiado à decisão do fabricante.

Historicamente, a ―liberdade‖ de decidir, sempre foi algo relativo, e


não-raro condicionado: em uma grande empresa, perguntaram a um
gerente qual era a decisão dele. O executivo não titubeou: eu voto de
acordo com a proposta do superintendente. O interesse pessoal, o desejo
de fazer carreira, até mesmo a ambição, serviram de limitador para o
exercício da liberdade.

Vejamos outros exemplo: na política as pessoas se deixam levar pela


propaganda, pelas ―doações‖ materiais, pela falácia dos discursos e pelos
argumentos da mídia. Não é difícil ver-se pessoas, de certa forma,
reproduzindo o discurso da mídia, para justificar sua adesão ou repúdio a
esse ou àquele assunto. No comércio, ocorre coisa parecida. O

176
In: Um ano de Sísifo, São Paulo, 1994.
144

consumidor, embora não necessite, acaba comprando um produto que


lhe foi sugerido pelo marketing. Não agiu por liberdade, mas por impulso.

Como se vê, a propalada liberdade de agir, é relativa. Relativa à


medida em que vem condicionada por vários fatores sociais, culturais e
psicológicos. Também nas crenças religiosas, a virtude, em alguns casos,
é praticada não por vocação, mas por temor. Muitas vezes, por detrás
daquilo que as pessoas afirmam agir com isenção ou liberdade, está um
poderoso condicionamento ou uma irresistível coação.

Na psicologia, existe a figura curiosa da ―síndrome de Estocolmo‖,


em que o seqüestrado apaixona-se pelo seqüestrador, para assim livrar-se
da tortura e da morte. Há muita gente que age, não livremente, mas
perfilada a um programa preestabelecido, para não sofrer represálias e
não ser excluída do grupo. Isto pode ser tudo, menos liberdade.
Para contornar esse mascaramento da liberdade, onde a pessoa age
até de forma incoerente, com o objetivo de obter algum proveito, é preciso
que se estabeleça um ponderável ―senso crítico‖, pois só assim o agente
pode avaliar se age livremente ou induzido pela ideologia de outrem. O
condicionamento, com o tempo, anestesia a capacidade de refletir, e a
pessoa age segundo escolhas dos outros.

5. A teologia do livre-arbítrio

Quando se estabelece uma análise teológica sobre o livre-arbítrio,


uma pergunta sempre aparece: por que existe o mal? Santo Agostinho
formula uma questão que caracteriza seus argumentos religiosos: o mal
existe porque o homem não sabe usar adequadamente sua liberdade.
Sendo dotado de livre-arbítrio – prossegue o santo – ele não consegue
administrar esse dom. Esta é provavelmente a resposta mais comum dada
pelos cristãos, de todos os tempos, à questão do mal.

A essência deste argumento é mais ou menos a seguinte: Deus


concedeu o livre-arbítrio aos seres humanos, e eles escolheram o mal por
livre e espontânea vontade. Assim, o mal foi criado livremente pelos
humanos, e, por conseqüência, não é atribuível a Deus. Aqui a teologia
converte-se em uma teodicéia justificativa. Terá, e a pergunta é crucial, o
ser humano, condições de discernir entre a mão direita e a esquerda?
Sabe a pessoa, a essência valorativa de todos os atos que pratica?

Naturalmente, se a teodicéia do livre-arbítrio conseguisse


estabelecer que os humanos foram a origem do mal, ela de fato refutaria a
inconsistência lógica que o problema do mal sugere. A questão aqui é que,
para isso, a teodicéia deve de algum modo conseguir quebrar a corrente
causal – ou cadeia de relações de causa-e-efeito – entre as ações humanas
e Deus. O mal é criação do homem; o homem, criação de Deus. Há alguma
relação entre Deus e o mal? A questão é que, propor o livre-arbítrio não
145

vai realmente quebrar essa corrente causal, simplesmente porque a


mesma resposta admite que o livre-arbítrio é algo criado por Deus.

Esclarecendo este ponto, vamos supor que o mal tenha sido mesmo
introduzido no universo pelos seres humanos. Então, por que eles criaram
o mal? Porque eles tinham o livre-arbítrio para fazê-lo, de acordo com a
teodicéia do livre-arbítrio. E por que, sendo assim, eles tiveram essa
capacidade de livre-arbítrio? Porque Deus os fez tê-la. Por que o homem
não disse não ao mal primevo?

Se o homem pecou por causa da liberdade, então o livre-arbítrio é a


causa da introdução mal. Ora, se Deus criou o livre arbítrio, ele criou
também o mal. A questão, entretanto, não é tão simples assim. Mas se
Deus ainda assim criou o mal, ele apenas teria feito uso de causas
intermediárias. Nesse particular, a única diferença entre esse cenário com
livre-arbítrio agostiniano e o da predestinação calvinista seria que, ao
invés de criar o mal diretamente, aqui Deus cria o livre-arbítrio – o qual,
por sua vez, cria o mal para ele.

Mas, a teologia cristã, esse é o ponto crucial, vai refutar: Deus não é
a causa do mal, e portanto o mal não pode ser algo pelo qual ele é
responsável. Para essa objeção ser correta, de qualquer forma, deve-se
crer que não se deva responsabilizar alguém pelos atos dos quais não é
causa direta.

Certas variações da teodicéia do livre-arbítrio tentam resolver esse


problema dizendo que, apesar de Deus saber que a criação do livre-
arbítrio iria, por sua vez, criar o mal, Ele tinha de criá-lo de qualquer
maneira, pois o livre-arbítrio é, em algum sentido, necessário.
Geralmente, pensa-se que esse é o caso porque é preciso haver livre-
arbítrio para que as criações de Deus possam criá-lo livremente... e fazer
esse tipo de amor possível é, segundo a teodicéia, tão inerentemente bom
que a criação do mal é um infeliz mas aceitável efeito colateral.

A questão inteira da responsabilidade individual humana pelos atos


– uma área importante na teologia tradicional – é posta na berlinda aqui.
Mesmo considerando que o livre-arbítrio tinha de ser criado a fim de
estabelecer a melhor situação possível, a existência do mal ainda
permanece como conseqüência de algo que Deus fez. Mesmo que o
homem seja ―o senhor do mal‖, ele é criação de Deus. Para o debate em
tela, o porquê de Deus fazer algo é mais ou menos irrelevante: o prioritário
é obter-se uma declaração que os seres humanos não são responsáveis
por esse mal. A história humana nos mostra a realidade que fez do mal
uma conseqüência necessária do livre-arbítrio. Assim, como punir as
pessoas por algo que está além do controle delas?

É inevitável observar que existem objeções muito importantes à


teodicéia do livre-arbítrio como solução para o problema do mal segundo a
teologia tradicional. Os apologistas do livre-arbítrio parecem propor uma
146

situação onde ninguém seria moralmente responsável pela existência do


mal, e, contudo, um Deus justo, virtuoso e benevolente ainda pune as
pessoas por isso. Assim, para essa teodicéia se tornar relevante, deve-se
admitir que Deus não deseja realmente responsabilizar as pessoas pelo
mal.

O fato conciso é que, a incidência do mal, o desespero diante do


sofrimento (principalmente do inocente) e a falta de respostas, têm
investido contra a fé e a convicção de um Deus misericordioso. Se
buscamos o livre-arbítrio para explicar toda a ocorrência do mal, resta a
questão basilar: por que o ser humano recebeu essa faculdade, se não
sabe usá-la? É como entregar um revólver na mão de uma criança. De
quem é a culpa? do menino? da arma? ou de quem deixou o perigoso
artefato ao seu alcance? Em alguns casos, a liberdade é um perigo... Não é
logicamente possível – isto é, seria auto-contraditório supor – que Deus
possa dar-nos esse livre arbítrio e que, no entanto, garanta que iremos
usá-lo sempre bem.
Há correntes teológicas e eclesiais – de ontem e de hoje - que, na
falta de argumentos mais consistentes, negam qualquer alusão de culpa a
Deus. Por esta razão, afirmam que embora ele não crie o mal, ele permite –
em alguns casos - que ele aconteça.

Quando estes afirmam que ―Deus permite o mal‖, parece que estão
tentando resolver um mistério, talvez o mais complicado da existência
humana. Tentam resolver com fórmulas, silogismos, respostas curtas e
especulações do tipo dois-mais-dois. Outros, buscam racionalizações que
se escuta/lê por aí:

 Deus nos criou finitos; ele colocou o mal em nossa origem e


existência (mal cósmico);
 Deus nos criou seres sensíveis e vulneráveis (mal físico);
 Deus nos criou seres livres, capazes de rejeitá-lo através do
pecado (mal moral).

A grande questão é que as teorias sobre a origem do mal e sua


disseminação no mundo são confusas, contraditórias e geralmente
capazes, mais de dificultar o raciocínio do que auxiliá-lo. Esses tempos,
lendo G. Crespy († 1999), um teólogo protestante contemporâneo,
encontrei em sua obra 177, uma tentativa de silogismo que mais é um
sofisma do que qualquer outra coisa:

- Deus é criador.
- Ora, mal existe,
- Logo, Deus criou o mal.

- Deus é bondoso,

177
La pensée theologique de Teilhard de Chardin, Paris, 1967.
147

- Ora, o mundo é mau,


- Logo Deus não é o criador do mundo.

- Tudo o que Deus cria é bom,


- Ora, o mal existe no mundo,
- Logo, o mal é bom.

Nesses casos há que se ter cuidado com certas construções da


lógica filosófica, pois uma premissa mal colocada altera todo o juízo. Há
casos em que ocorrem erros nas premissas ou na conclusão, assim como
também há situações, e não são poucas, que os autores da
―demonstração‖ constróem sofismas, isto é, raciocínios falsos para induzir
o leitor/ouvinte ao erro.

Finalmente, a teodicéia agostiniana fecha-se com a idéia de que,


como sucedeu a José, filho de Jacó (cf. Gn 37...), todo o mal que ocorre só
pode ser tal da perspectiva do homem, e não do próprio Deus, pois isso
esvaziaria o Criador de sua onipotência ou de seu amor. Como diz
Agostinho, refutando os Maniqueus,

se alguém quiser usar um bem para praticar o mal, ―nem por isso
vencerá a vontade de Deus, que sabe como inserir os pecadores na
ordem universal, de maneira que, se eles, pela perversidade de sua
vontade, abusaram dos bens da natureza, Ele, pela justiça de seu
poder, tirará bens dos males 178.

Não é difícil identificar algumas raízes de livre-arbítrio nas páginas


do Antigo Testamento:

Desde o princípio, Deus criou o homem e o deixou livre, ao sabor de


suas próprias decisões (Eclo 15,14).

O direito natural e a Bíblia já estatuíam: tens dois caminhos à tua


frente... escolhe o bem, o caminho reto e serás feliz... O homem sabe
escolher? Se sabe, por que a maioria escolhe tão mal? Por sua capacidade
de ser livre, o ser humano pode escolher outros caminhos, rejeitando sua
finalidade, abafando sua consciência, adotando outros valores. Nessa
gama de escolhas, o bem retrata a construção do próprio ser; é um crescer
e, portanto, algo real. O mal é um vazio; é a inexistência do bem, a falta do
ser. Se o ser é, e o ser é o bem, o mal – por negação do bem – não é.

No contraponto, é possível argumentar: se não tivéssemos liberdade


(a faculdade do livre-arbítrio) seríamos como robôs, presos a um fatalismo
inexorável, onde tudo estaria escrito e só cumpriríamos o script. Sem o
risco do mal e da perdição, seria o homem mais feliz? Ou é esse risco-de-
vida (ou seria risco-de-morte?) que torna a existência mais emocionante?

178
In: A natureza do bem... op. cit.
148
149

VI

Liberdade: dom ou castigo?

Ergo os olhos para os montes: de onde virá o meu socorro? O meu socorro
vem de Javé, que fez o céu e a terra. Ele não deixará que o seu pé tropece,
o seu guarda jamais dormirá! Sim, não dorme nem cochila o guarda de
Israel. Javé guarda você sob a sua sombra, ele está à sua direita. De dia o
sol não ferirá você, nem a lua de noite. Javé guarda você de todo o mal, ele
guarda a sua vida. Javé guarda suas entradas e saídas, desde agora e
para sempre (Salmo 121).
150
151

1. A Liberdade do ser

O que é ser livre? Esta, parece uma pergunta simples, mas quando
se busca um aprofundamento na resposta, constata-se sua complexidade.
Apanhados meio de surpresa nas primeiras aulas de filosofia, os alunos
geralmente respondem: ser livre é não estar preso! E não estão errados
nessa simplificação. Resta saber o que é esse estar preso. Aí pode residir a
chave-de-leitura da questão da liberdade. Para avaliarmos se somos livres
ou não, precisamos identificar as correntes que nos prendem.

No contexto da vida humana, biológica e transcendente, há duas


questões interligadas de suma importância: a liberdade e a
responsabilidade. No cristianismo, a palavra liberdade aparece muitas
vezes. E, em muitas ocasiões, aparece unida a outra, que é mais freqüente
ainda: a palavra verdade. Aletheia, verdade, no grego neotestamentário,
aparece muitas vezes ligada a eleutheria, liberdade, ou a seus derivados.
Há, portanto, uma conexão sumamente importante que pode ser
recordada a partir daquele texto-chave do evangelho de São João, em que
―verdade‖ e ―liberdade‖ aparecem juntas de um modo central:

Se vocês guardarem a minha palavra, vocês de fato serão meus


discípulos, conhecerão a verdade, e a verdade libertará vocês (8,31s).

A verdade é que, e historicamente se constata tal realidade, houve


uma tendência a afirmar a predestinação, que no protestantismo tem
muito mais força e, especialmente no calvinismo. Em todo o pensamento
de predestinação há uma restrição à liberdade. Esta tendência, porém,
não é exclusiva apenas do calvinismo. Martinho Lutero († 1546) por sua
forma de entender a espiritualidade, também pode ser visto como um
―adversário da liberdade‖.

E é, precisamente por causa dessa visão que ele rompe com Erasmo
de Roterdã († 1536), que alimentava o desejo de uma reforma da Igreja e,
em princípio, não viu com maus olhos o movimento reformista.
Entretanto, o De servo arbitrio de Lutero lhe pareceu absolutamente
intolerável e o ponto de ruptura entre ambos foi justamente esse problema
de cada um enxergar a liberdade.

Como antigo professor, gosto de adotar aquelas questões cognitivas


elementares, que através de definições podem dar luz ao estudo proposto:
o que é liberdade? o que significa ser livre? liberdade é um bem? uma
conquista? ou um ―abacaxi‖ que nem todos sabem descascar? Acho que
para adentrarmos no debate é preciso, se não dominar os conceitos, pelo
menos conhecer a interdisciplinariedade deles.

Ser livre, preliminarmente, é poder desfrutar integralmente da


liberdade, sem fraquezas, condicionamentos, pressões ou complexos de
152

culpa. Isto, convenhamos, é uma condição rara entre os seres humanos.


Muitos, sob esse prisma, conseguem ser livres; outros não.

Mesmo que não se queira dogmatizar a compreensão sobre o ato de


ser livre, tem-se que buscar juízos aproximados, como a
possibilidade de uma pessoa fazer suas próprias escolhas e pô-las
em execução. Ser livre é um direito natural que todo o homem tem.
Então, o que é ser livre? É fazer tudo o que pode ser feito (definição
axiológica); é fazer tudo o que se tem vontade de fazer (definição
existencialista); é fazer aquilo que se nos parece útil (definição
pragmática); é fazer aquilo que se deve fazer (definição ontológica). A
vida social, regulada por normas de comportamento, não permite ao
homem fazer tudo o que pode, muito menos tudo aquilo que quer.
Ser livre é controlar seus próprios atos, de forma autodeterminada,
e implica sempre uma relação de ordem ética. Nesse contexto, a
liberdade exige sempre condições de ordem econômica, social,
política e cultural que tornam possível seu pleno exercício 179.

Como não podia ser diferente, cada grupo ou ideologia tem sua
definição. No dia-a-dia, define-se liberdade como aquele grau de
independência, legítimo e necessário, que um cidadão, um povo ou uma
nação elege como valor supremo, como ideal. No estudo da Ciência Política
e de algumas das chamadas ―ciências sociais‖, o verbete liberdade aponta
para aquele conjunto de direitos reconhecidos ao indivíduo, considerado
isoladamente ou em grupo, em face da autoridade política e perante o
Estado; poder que tem o cidadão de exercer a sua vontade dentro dos
limites que lhe faculta a lei.
O homem – e isto é dito pelos estudiosos do comportamento e das
ciências sociais – é um animal ético, político, cujas ações, no entanto,
tangenciam o chamado ―mínimo ético‖. É teoricamente ético, mas fazê-lo
chegar à compreensão da ética é que é mais difícil. A partir daí afloram as
questões: o homem é suficientemente capaz de distinguir a verdade? de
viver a moral? de usar adequadamente a liberdade? Liberdade não é algo
que se ganhe (desejo), mas uma conquista (prática). Em Simone Weil, uma
filósofa contemporânea, judia francesa, convertida ao cristianismo,
encontramos uma definição ajustada à pós-modernidade em que se vive:

A verdadeira liberdade não se define por uma relação entre o desejo e


a satisfação, mas por uma relação entre o pensamento e a ação 180.

Como o mito do Prometeu grego, a história de Adão fala uma verdade


clássica, de geração em geração, não porque se refira a evento histórico,

179
A. M. GALVÃO, Jesus Cristo: a libertação de Javé. Ed. Ave-Maria, 1994
180
In: O peso e a graça. Paris, 1947
153

acontecido de fato, mas porque representa uma profunda experiência


anterior, uma perda, quase uma decepção – o paraíso perdido – partilhada
por toda a humanidade. Esse erro de escolha, onde é imputada ao homem
uma falha no tocante ao bom uso de sua liberdade, gerou castigos à
humanidade, a partir dos míticos Adão e Eva. O homem teve que
trabalhar a terra inóspita; a mulher, desejar sexualmente seu marido e ter
filhos em dores. A ambos foi dado o castigo da mortalidade. A liberdade é
um bem inegociável. Trocá-la por outros valores é demitir-se da vida:

Os homens cedem sua independência para dar origem à autoridade,


mas o fazem de tal forma que não mais recuperam a liberdade. Isso
leva-os a um absolutismo estatal completo 181.

Ao contrário dos existencialistas, o romancista russo F. Dostoiévski (†


1881) fala, em uma de suas mais expressivas obras182, da liberdade, de
um outro jeito. É uma obra densa, tão cheia de paixão e de pensamentos,
que a crítica mundial, reconheceu nela, a obra prima do grande
romancista russo. Ele refere-se ao mito da queda do homem como uma
queda ascendente, a partir da qual a humanidade adquire consciência de
sua limitação e finitude. O problema angustiante e essencial da existência
de Deus, que penetrou extremamente a sabedoria e a alma de Dostoiévski
nos últimos anos de sua vida, é neste romance ilustrado de maneira
impressionante e terrível.

A capacidade crítico-literária de Dostoiévski, um cristão ortodoxo,


ressalta, neste romance, uma série de personagens de primeira grandeza
que debatem, em termos da vivência humana, o problema do bem e do
mal, da liberdade de salvar-se ou condenar-se, do livre arbítrio e
consequentemente da responsabilidade humana. No homem
―dostoievskiano‖, a alma é puro caos. O amor e o ódio, a volúpia e a
fraqueza confundem-se em ―transposições‖ ininterruptas. O autor
decompõe a volúpia e remonta às suas raízes, às suas composições mais
misteriosas, insistindo na antinomia entre o ―mundo‖ e o ―eu‖, o
aniquilamento do homem em favor de forças invisíveis. É o profundo
sentido do ―absurdo da vida‖, que tem suas raízes em Dostoiévski,
ramificando-se em Albert Camus com A Peste 183 num sentido
imanentista, e assumindo ―traços transcendentais‖ em Franz Kafka (†
1924)

181
T. HOBBES, Leviathã. Matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil, (1651): Parte I, 4. Coleção “Os
Pensadores”, Abril Cultura, 1979.
182
O grande Inquisidor, Paris, 1878 (a última obra do autor, escrita 3 anos antes de sua morte).

183
Livro publicado em 1947, denunciando a barbárie nazista contra a Europa, e especialmente contra os judeus.
154

No enredo de ―O Grande Inquisidor‖, Cristo desce à terra na época da


inquisição espanhola e começa a curar. O Inquisidor justifica sua missão
terrena mostrando a Cristo que ele dando liberdade ao homem – ―a
verdade vos tornará livres‖ – ―eu sou a verdade‖ – deu-lhe um fardo
pesado para suas costas fracas e o Grande Inquisidor ―tirando-lhe a
liberdade em troca da segurança‖ revelou-se seu amigo, ao mesmo tempo
em que transferia toda responsabilidade dos atos humanos na terra para
si, deixando para o homem o pão terrestre. Em nome do homem e do
cristianismo o Inquisidor mostra que poderia atirar Cristo à fogueira. O
Grande Inquisidor dirige a Cristo uma pergunta – que resume o livro –
deveras desconcertante:

Por que voltaste para prejudicar nossa obra? Há 2000 anos que nós
delimitamos a vida dos homens, com dogmas e regulamentos, e eles
se submeteram alegremente a nós... pois isto os salvará de tomarem
suas próprias decisões 184

Revelando a necessidade de uma ―liberdade para o bem‖, Jesus


sugere a opção pela ―porta estreita‖ da virtude (cf. Lc 13,24). Esta é a ética
do Ressuscitado, que ensina como agir (bem) e como evitar (o mal). Jesus
mostra o caminho (a prática) ao invés de admoestar (teoria). Essa troca de
mal por bem, de teoria por prática tem feito a diferença na exposição do
que é a ética do cristianismo. Abrir mão da liberdade, seja em troca do que
for, tem sido causa dos maiores desastres da história humana.

Este tema, por sinal, foi desenvolvido no discurso do Grande


Inquisidor, personagem de Dostoiévski retro mencionada. Na ficção do
grande escritor russo, Cristo volta à terra, como vimos, e ao invés de uma
recepção gloriosa por parte dos cristãos, é mal recebido, pelo Inquisidor,
que é líder de uma Igreja que aprisiona o Filho de Deus, acusando-o de
subverter a doutrina dos ―notáveis‖, e assim destruir o trabalho que era
feito em nome do Messias. A Igreja diz que o Inquisidor estava ali para
―corrigir‖ o trabalho de Cristo, adaptando-o às necessidades da
humanidade, que ansiava por liberdade.

Esta obra, que trata de forma cristalina e contundente a dicotomia do


ser humano, livre e fraco, é originária de outra obra (―Os irmãos
Karamázov‖), de onde o autor ampliou os diálogos entre Aliocha (um
místico, ingênuo, cheio de sonhos) e Ivan (um racionalista). Os finais de
Dostoiévski (―O Grande Inquisidor‖) e de Kazantzakis (―O Cristo

184
In: O Grande Inquisidor, op. cit.
155

Recrucificado‖) têm semelhanças. O mal, travestido de bem, vence. A


figura do Grande Inquisidor – conclui Dostoiévski - existe em qualquer
lugar onde os homens substituam a liberdade pela submissão.

Como Dostoiévski deixa claro, o elemento destrutivo da atitude do


Grande Inquisidor é que ele retira a liberdade do homem. A ética
cristã, ao contrário, apesar de exigente, não retira a liberdade, mas
reforça a necessidade de ele assumir o peso de suas escolhas 185.

Os filósofos oriundos ou influenciados pelo racionalismo alemão e da


chamada ―esquerda hegeliana‖ também vêem a liberdade – a exemplo de
Sartre – como uma ―armadilha‖, enfatizando que, para ser completa, a
liberdade humana deveria ocorrer não apenas no terreno da utopia, mas
especialmente do crer, do agir e também do duvidar.

Para que Deus seja tudo, o homem tem que ser nada...186
A liberdade humana fenece ao contato com o Absoluto 187.

Não posso compreender o que seja uma liberdade doada por um dono
ou
um ser superior. Liberdade é direito; é conquista 188.

Às vezes os esquemas humanos, sociais, políticos, econômicos,


religiosos, etc. tornam-se opressores à medida em que tentam impor suas
vontades (e não-raro ideologias), impedindo que o ser humano seja feliz,
convivendo com o resultado de suas escolhas. O mal assume, muitas
vezes, a figura falsamente ética do Inquisidor mencionado, impedindo que
a liberdade se transforme em bem, um dos mais expectados valores da
vida humana.

A sensibilidade ante a liberdade e o mal não ocorre de forma


uniforme, em épocas ou civilizações. Os antigos gregos, v.g., davam muita
atenção ao mal cruel, à fatalidade (isto é atestado no conteúdo das
―tragédias‖). No renascimento (séc. XVII), com B. Pascal († 1662) e J. B.
Racine († 1699), só para citar dois, o mal trágico parece ter despertado
mais sensibilidade a esse tipo de desgraça. É como hoje, damos mais
atenção ao mal-espetacular, contido nas grandes manchetes da mídia, que

185
J. A. SANFORD, op. cit.
186
L. FEUERBACH, La essencia del cristianismo, Salamanca, 1971.
187
M. MERLEAU-PONTY, Sens e non-sens, Paris, 1952.
188
A. CAMUS, Le mythe de Sisyphe, op. cit.
156

no mal-silêncio, que é igualmente mal, mas não desperta tanto a nossa


curiosidade e sensibilidade. Para a concepção de muitos, não há mal sem
autor. Não resta dúvida que a tradição ocidental está irreversivelmente
centrada no binômio mal/culpado. Quebrou-se uma vidraça (um mal), e
nós perguntamos logo; quem foi? (o culpado). No tocante à liberdade
também pensamos assim:

Se cometi um mal é porque sou livre; ora, se sou livre, a culpa é de


quem me deu a liberdade que eu não sei usar...

Temos lido nos compêndios de Teodicéia que o mal entrou no mundo


porque todos pecaram (exceto Cristo). Todos pecaram porque tiveram a
liberdade de fazê-lo. Aí vem a pergunta crucial: não seria, portanto, a
liberdade um dom mal doado? Se todos pecaram, é porque tinham
liberdade. Há todo um corredor negativo: liberdade  pecado 
infelicidade  morte. É como, já foi falado aqui, dar uma arma a uma
criança, ou um automóvel a alguém sem habilitação. No caso do homem,
não podia ter sido diferente? Deus, ao nos criar, fez-nos uns ―fracos com
liberdade‖, e essa fraqueza diante das alternativas que a liberdade propõe,
abriu-nos a porta do mal.

São questões que, há milênios, sob uma ótica isenta, sem melindres
ou radicalismos, a Teologia, a Filosofia e outras ciências ainda não
responderam satisfatoriamente.

2. A liberdade segundo os existencialistas

Por existencialismo, entende-se o movimento filosófico que ressalta


o papel determinante da existência, da liberdade e da opção individual.
Teve grande influência em diferentes escritores dos séculos XIX e XX, e
não só na literatura, como também na teologia.

Se partirmos do pressuposto de que a liberdade constitui-se numa


das principais questões da nossa civilização, pois diz respeito aos limites
da vida coletiva, levantaremos como hipótese a possibilidade de tomarmos
como parâmetro para a reflexão sobre a liberdade o pensamento do
filósofo existencialista Jean-Paul Sartre. Ninguém mais do que ele
abordou os limites da liberdade humana.

Jean-Paul Sartre († 1984) nasceu e morreu em Paris. Filho de pai


católico e mãe protestante, diplomou-se em filosofia e foi professor no
Liceu de Paris. É considerado o ponto alto da chamada ―filosofia
existencialista‖, que nada mais é que um processo intelectual que entende
o homem em sua existência material, onde o mesmo é condenado à
liberdade.
157

Pois o filósofo francês, J. P. Sartre, um existencialista ateu, afirma,


em um texto já referido aqui, que Deus criou o homem e o condenou à
liberdade 189. Tal afirmação, vista assim de chofre assusta em um primeiro
momento. Depois, analisando na prática, as capacidades virtuais e
psicossociais do ser humano, iremos descobrindo quão terrível é o dom da
liberdade, pela grandiosidade de alternativas de escolha, boas ou más, que
ele pode ensejar. Uma análise mais apurada pode nos levar a concluir – ou
pelo menos suspeitar – que a liberdade é, como diz o povo, uma ―faca de
dois gumes‖.

No entender de Sartre, estamos irremediavelmente ―condenados à


liberdade‖190; não há limite para nossa liberdade, exceto o de que ―não
somos livres para deixarmos de ser livres‖. Esta é a premissa maior que
pervade toda a obra. Porque não há nenhum Deus e portanto não há
qualquer plano divino – afirma o filósofo – que determine o que deve
acontecer; não há nenhum plano ou projeto pré-determinado. Para ele,
estar condenado à liberdade é ter ganho uma coisa que ele não
conquistou, não sabe como lidar em ela, mas sabe que vai sofrer com isto.

Nas formulações filosóficas de Sartre, a liberdade (para o bem e para


o mal) não é uma conquista, mas um peso, pois sua atitude não fica
condicionada a nenhum pressuposto, mas aberta à liberdade de agir. É
por isto que ele afirmou que o homem, pela responsabilidade que lhe é
cometida, está condenado à liberdade. As ações, decorrentes da liberdade
sempre irão prejudicá-lo.

A visão ontológica (refere-se ao ser) e axiológica (refere-se a valor) da


liberdade humana torna-se essencial à compreensão das realidade que
nos revelam sempre seu caráter de ambigüidade. Ora, se sou livre –
segundo Sartre – sou responsável, e como tal pode a mim ser imputada
qualquer pena pelo mal que eu cometer. A cada dia temos que nos libertar
diante das mais variadas situações. Mas estas manifestações da liberdade
só se tornam compreensíveis à luz da liberdade essencial, ou seja, a partir
do pressuposto de uma liberdade originária: nasci livre; nasci para a
liberdade. Nascer livre é visto pelo filósofo como um peso. Mais que isto:
uma condenação.

O homem moderno – em função dos compromissos – traz consigo


esse medo de ser livre. É por isso que várias ciências, como o direito, a
psicologia e algumas teologias afirmam um compulsão ao pecado e ao mal,
para negar dessa forma, o comportamento ilícito, antiético, anti-social.
Para muitos, o ser humano é capaz de delinqüir porque não está apto a
usar sua liberdade. Há um componente sartreano nessa premissa.

189
O ser e o nada – Ensaio de ontologia fenomenológica. Ed. Vozes, 1999/
190
Idem
158

A escolha livre e responsável não é apenas o livre-arbítrio no estrito


sentido de podermos escolher entre ações alternativas, sem que a nossa
escolha tenha sido causalmente determinada por uma qualquer causa
anterior. Ter a possibilidade da escolha livre e responsável é antes ter o
livre arbítrio para fazer escolhas entre o bem e o mal que sejam
significativas, profundas e importantes para o agente, para a alteridade e
para o mundo. Nessa perspectiva, vemos que os seres humanos têm
oportunidade de provocar em si mesmos e nos outros, sensações
agradáveis e negativas.

Oponente a qualquer tipo de crença sobrenatural, Sartre rejeita


qualquer tipo de determinismo: O homem é livre. Nada o força a fazer o
que faz. ―Nós estamos sozinhos, sem desculpas ‖. O homem não pode
desculpar sua ação dizendo que está forçado por circunstâncias ou
movido pela paixão ou determinado de alguma maneira a fazer o que faz
ou fez. Ele é livre e vai pagar por isto.

Nas pegadas do argelino Camus e do dinamarquês S. Kierkegaard (†


1885), um dos precursores do existencialismo, Sartre usa o termo
angústia para descrever essa consciência da própria liberdade. Mais que
consciência, chegam a falar em náusea. Nós estamos livres porque nós
não podemos confiar em um Deus ou na sociedade para justificar nossa
ação, ou para nos dizer o que e quem nós somos. Nessa crise de
identidade ontológica, nós estamos condenados porque sem diretrizes
absolutas, nos é dado sofrer agora toda a agonia de nossa tomada de
decisão e a angustia de suas conseqüências. Usando a expressão de
Sartre, em uma de suas obras, é caminhar por uma viela escura que
acaba em um muro.

A angustia surge então pela consciência da própria liberdade. Ela é


a certeza lúcida dessa liberdade de escolha, como a consciência da
imprevisibilidade última do próprio comportamento. Sartre usa uma
alegoria instigante: uma pessoa à beira de um penhasco perigoso tem
medo de cair, e sente angustia ao pensar que nada o impede de se jogar lá
embaixo, de se lançar no abismo. O pensamento mais angustioso de todos
é quando, num dado momento, nós não sabemos como nós iremos nos
comportar no momento seguinte.

A liberdade está no cerne da vida coletiva na medida em que viver


no público significa conviver com o outro, ou seja, em toda a vida
social é subjacente à relação entre o eu e o outro. Ora, é exatamente
nesta relação eu-outro, fundante e fundamental da vida social, que
encontramos, inerente a esta relação, o problema da liberdade.
Assim, nas relações interpessoais, podemos questionar quais os
limites da minha liberdade sobre o outro e a do outro sobre a
minha? Quais os valores subjacentes à ação livre são necessários
para a convivência com o outro? O modo de vida do outro impõe
limites à minha liberdade, e até que ponto esta limitação constitui-
se num bem para mim? E, se ao afirmar livremente minha forma de
159

viver, e em decorrência desfrutar de momentos felizes, esta forma


acarretar um dano ao outro? Este dano é um Bem para mim, pois
afirma a minha felicidade, mas é um Mal para o outro, pois lhe trás
dores. Como, então, conviver com esta situação? 191

Até que ponto o fato de ser livre para agir não implica no fazer do
outro um meio para a minha liberdade? O sentimento de ódio, e suas
decorrências como a vingança, a luta, o assassinato, não são inerentes ao
relacionamento eu-outro, na medida em que o outro impõe limites à
minha liberdade, a minha felicidade e ao meu prazer, e por isso, odiamos
o outro e desejamos exterminá-lo? Estaria certa a célebre afirmação
sartreana de que ―o inferno são os outros‖, contida na peça teatral Hui clos
(Entre Quatro Paredes).
Os argumentos escapistas do ser humano são classificados por
Sartre como um ato de ma fé. É como querer, mesmo reconhecendo a
culpa, querer imputá-la ao determinismo fatalista. No entender do filósofo
existencialista, a má fé é a tentativa de fugir da angústia fingindo que não
somos livres. Tentamos nos convencer que as nossas atitudes e ações são
determinadas pela nossa personalidade, por nossa situação, ou por
qualquer outra coisa fora de nós mesmos .

Como o existencialismo de Sartre coloca abaixo qualquer tipo de


determinismo, o que é aprendido, os propósitos futuros, as experiências
passadas, não determinam o comportamento do ser. Segundo ele,
nenhum motivo ou resolução passada determina o que fazemos agora,
onde cada geração deve formar e viver suas próprias experiências. Cada
momento requer uma escolha nova ou renovada, pois como dizem os
poetas, em um momento se vive uma vida.

Nestas circunstâncias, negar a liberdade é, aos olhos do


existencialismo, uma tomada de posição covarde, a fim de fugir da
angústia da escolha, e achar o repouso e a segurança na confortável
ilusão de ser uma essência acabada. Ateu, Sartre não cansa de afirmar
que Deus não existe, e porque ele não existe, o homem não foi criado para
nenhum propósito particular, essência alguma. Dizer que estamos
obrigados por nossa natureza, nosso papel na vida, a agir de certo modo
constitui má fé.

A teoria existencialista afirma que, para muitos, a liberdade é motivo


de crescimento, mas para outros, é ocasião de queda. Isto suscita uma
questão emergencial: o ser humano está preparado para desfrutar
integralmente a liberdade? Todos estão? E se estão, por que se verificam
tantos descaminhos na vida social, onde um dos diagnósticos das
tragédias aponta, justamente para uma corrupção no modo de usar a
liberdade?

191
M. DANELON, O conceito sartreano de liberdade: implicações éticas. UEM, 2002.
160

No tocante ao conflito da liberdade humana, o poeta persa Omar


Khayyam († 1122), com a peculiar irreverência dos persas, inquiriu a
divindade:

Oh Alá, encheste de armadilhas os meus caminhos,


semeaste sobras em todas as minhas trilhas,
e depois me advertiste:
―Cuidado! Pobre de ti se chegares a cair!‖
Se conheces as minhas limitações,
e preparaste tão meticulosamente minha queda,
por que, Alá, me chamas pecador? 192

Nesse modo de ver o resultado das ações humanas, constata-se o


risco irreversível que assalta o ser, pelo fato de ele ser livre. Na concepção
sartreana, tal qual a formulação de Khayyam, a liberdade, em muitos
casos, converte-se numa verdadeira armadilha: é dada ao homem como
uma ―carta marcada‖ para vê-lo cair.

Há outros existencialistas, além dos já mencionados (Pascal,


Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Camus, etc.) mas o principal deles,
que sintetiza o pensamento é Sartre.

O existencialismo revela-se então como a revolta do homem


consciente contra o conhecimento tradicional institucionalizado (estudo,
vida, família, religião, teorias sociais, etc.). No postulado sartreano, a
responsabilidade gera a liberdade, que condena o homem a ser livre e a
tomar, por si, suas próprias decisões. O existencialismo rejeita o
aprendizado tradicional, e postula que cada geração deve buscar aprender
com suas próprias experiências. O homem aprende melhor de si do que de
todas as ciências e experiências humanas.

Em sua obra ―O ser e o nada‖ (1943) ele evidencia o dualismo de ser e


parecer, em que o homem é algo para si mesmo e nada no concerto
cósmico, onde é apenas um pequeno grão de areia, de onde conclui a
existência, no ser humano, de dois pólos: o ser-para-si (a consciência) e o
ser-em-si (o fenômeno).

Em ―A náusea‖ (1938) 193, cujo título inicial foi ―A melancolia‖, o


filósofo critica o modelo humanista de uma sociedade que, perplexa,
descobre a ausência de um sentido da vida. Para Sartre, esta obra (sua
primeira), visa acusar de hipocrisia a burguesia de todos os tempos, que
não crendo na liberdade, toma-a dos outros.

192
In: Rubayyath, Ed. Astra, 1981
193
Ed. Nova Fronteira, 1988.
161

Nessa conjuntura, o ser-para-si é, e o ser-em-si, traduz-se em uma


náusea, um nada. Pessimista, Sartre vê a vida humana em tensão com o
mal e a morte, numa situação-limite, uma via sem solução, que termina
em um muro, cuja única saída é a morte. É a náusea de uma liberdade
que não serve para muita coisa.

As gerações de jovens problematizados do pós-guerra (a partir de


1945), sentindo-se desorientadas, aderiram a vários modismos, a partir de
um modelo existencialista que grassou em todo o mundo, a partir da
Europa devastada pelo conflito. Eram livres os jovens, mas escolheram
maus caminhos. Isto por que? Eram maus? Desconheciam as outras
opções? Ou eram desorientados? Nesse período de desorientação, surge a
―geração beatnik‖, organizada por escritores americanos da década de
1950. Os beatniks caracterizavam-se pelo anti-convencionalismo de suas
obras e pelo estilo de vida que refletia um profundo desencanto ante a
sociedade. A literatura deste período é pessoal e subjetiva. Quando a
sociedade mundial pensava haver digerido esses desvios de
comportamento, surge, a partir dos Estados Unidos, como uma
avalancha, o movimento hippie.

Esse movimento, uma legítima ―contracultura‖, teve origem naquela


náusea que a guerra do Vietnã (1959-1975) fez cair sobre a juventude
mundial, especialmente na americana. Ele alcançou seu auge na década
de 1970. Os hippies, geralmente jovens, tinham como lema o dístico paz e
amor, pregavam a liberdade sexual, a vida comunitária, a desobediência
civil, a recusa à civilização industrial e um estilo de vida voltado para a
natureza, as artes e a contemplação mística. Sua visão do mundo era
marcada pelo misticismo oriental e pela poesia dos beatniks norte-
americanos. A partir dos hippies acentuou-se o consumo de drogas, em
todo o mundo, bem como o sexo livre, a apologia do aborto, do feminismo
e da invalidade da família formal.

Na ―história da queda de Adão e Eva‖, por exemplo, parece que tudo é


apenas culpa do ser humano. Ele deve aceitar a acusação e o castigo sem
defesa ou argumentação. Todos os que acusam pessoas, gerações e épocas
de desvios, esquecem-se de elencar aquilo que falou Ortega y Gasset: as
circunstâncias que impelem a pessoa às escolhas indevidas. O homem
não é só aquilo que ele faz, mas vem cercado de motivações que o levam a
fazer. Adão colocou a culpa na mulher, esta na serpente, e todos foram
alijados da comunhão. Deus criou o homem fraco e volúvel, tornando-o
presa fácil da sedução da serpente. Estaria o homem preparado para
decidir com liberdade? Neste caso, a liberdade foi um dom ou uma
armadilha?

Depois que a psicanálise passou a assessorar os confessionários, um


162

ponderável número de atitudes, vistas antes como pecado, passaram a ser


diagnosticadas como desvios de conduta, deficiências e até patologia
psíquica, ressaltando-se aí a incompetência de administrar sua liberdade.
Hoje, a moderna Teologia Moral aceita a intervenção da psicanálise no
debate do comportamento humano, envolvendo liberdade, desajustes,
decisões, traumas, pecado etc.

Na psicanálise de R. May († 1994), um teólogo, psicanalista e escritor


americano, a liberdade é como algo a ser descoberto a partir de si mesmo.
Ele emprega a expressão self:

O passo fundamental para a conquista da liberdade interior é ―optar


por si mesmo‖. Esta estranha expressão de S. Kierkegaard afirma a
responsabilidade de cada um por seus próprios atos (o self) e sua
própria existência. É a atitude oposta ao impulso cego ou à
existência rotineira; trata-se de uma atitude de vivacidade e decisão;
significa que a pessoa reconhece existir naquele determinado ponto
do universo, e aceita os riscos de sua existência 194.

Em uma de suas obras, talvez a última, Rollo May coloca no seio de


sua produção, as quatro idéias bíblicas, fundamentais para a vida
humana: liberdade, mudança, consciência e responsabilidade:

Vivemos a morte de uma época, sem perspectivas de uma nova era.


Tudo é prova disto: a mudança radical nos costumes sexuais, na
educação, na religião, tecnologia, e em quase todos os outros
aspectos da vida moderna. E, por trás de tudo, a ameaça distante da
revolta da natureza. Temos uma escolha. Fugir em pânico ante a
iminência do desmoronamento das estruturas ; acovardar-nos com
a perda dos pontos conhecidos; ficar paralisados, inertes, e
apáticos. Fazendo isto estamos abrindo mão da oportunidade de
fazer parte do futuro. Estamos negando a característica mais
distintiva do ser humano - influenciar a evolução por meio do
reconhecimento consciente - capitulando frente à força destrutiva e
cega da história, desistindo de moldar uma sociedade futura mais
justa, mais humana e mais libertária, ou então , lançar mão de
toda a coragem necessária para preservar nossos sentimentos,
nossa consciência e responsabilidade ante a mudança radical.
Participar conscientemente, mesmo em pequena escala, da formação
da nova sociedade: livre e responsável 195.

194
In: O homem a procura de si mesmo, Ed. Vozes, 1986.
195
Liberdade e destino, Rocco, São Paulo, 1977.
163

Do ponto de vista do pessimismo dos existencialistas, além de


condenado à liberdade, o homem torna-se, muitas vezes, vítima da
liberdade, sua e alheia. Nessa perspectiva, a liberdade, ao invés de um
dom, converte-se em ameaça, sobressalto e, porque não dizer, numa
tragédia. Seria como um pai dar ao filho adolescente, um brinquedo
perigoso; uma arma, por exemplo. Mas a questão permanece: De onde
vem o mal? Quem é o responsável pelo mal que existe no mundo, em
todos os tempos?

3. Onde buscar a libertação?

Confuso diante da crise da liberdade e da existência, o ser humano,


premido pelo mal que o rodeia, anseia por libertar-se, por usar
adequadamente a liberdade que recebeu, sem que esse uso lhe acarrete
dano algum. Essa busca nem sempre é ordenada, pois muitos indivíduos
ignoram os caminhos, derivando para o mal, usando assim, de forma
equivocada a liberdade que receberam.

Santo Tomás de Aquino († 1274), com a sabedoria peculiar de um


Doutor da Igreja, fez uma leitura adequada, do problema da liberdade em
muitas de suas obras e sermões. Ele se preocupou em demonstrar, antes
de tudo, a sua existência e depois, também, em esclarecer a sua
verdadeira natureza, determinando com precisão as suas correlações com
o intelecto e com as outras faculdades da alma. Também ele, como
Clemente, de Roma, dá muita importância ao argumento das
conseqüências absurdas, investindo contra aqueles que sustentam que o
homem não é livre, mas vive por impulsos, onde a vontade humana se
move por ação das necessidades. Com relação à liberdade, o aquinate
(aquele que é natural de Aquino) escreve:
Essa opinião deve ser contada entre aquelas alheias (extraneae) à
filosofia, porque não é somente contraditória à fé, mas subverte
também todos os princípios da filosofia moral. De fato, se nós
partirmos para a ação, necessariamente, se suprime a deliberação, a
exortação, o comando, o louvor e a reprovação, que são coisas pelas
quais existe a filosofia moral... Tais opiniões, que destróem os
princípios de alguma parte da filosofia, dizem-se posições
extravagantes (positiones extraneae), como a afirmação de que nada
se move, a qual demole os alicerces da ciência natural 196.

Contra os que afirmam que as ações humanas não são


integralmente livres, pois são determinadas por outros fatores, Santo
Tomás faz a seguinte declaração, com uma sutileza muito aguda:

A nenhum ser é dada em vão uma faculdade como a liberdade. Logo,


o homem tem a capacidade de julgar e de refletir sobre tudo quanto

196
In: Summa Theologiae, I-II
164

pode operar, seja no uso das coisas exteriores, como no favorecer ou


rejeitar as paixões internas; e isso seria inútil se o nosso querer
fosse originado pelos astros e não pela nossa faculdade. Não é,
portanto, possível que os astros sejam causa da nossa eleição
voluntária 197.

Mas a razão mais profunda com que São Tomás justifica a presença
da liberdade na determinação das ações humanas é outra e tem como
base a possibilidade que o homem tem de avaliar os limites e as carências
das coisas que se oferecem à sua atenção e, conseqüentemente, de elegê-
las ou repeli-las. A análise é muito rica:

A eleição humana não é necessária. E isso porque nunca é necessário


o que pode não ser. Ora, pode-se demonstrar que é coisa indiferente
eleger ou não partindo das faculdades de querer, ou de cumprir, esta
ou aquela coisa. E disso temos a confirmação na mesma estrutura da
razão humana. De fato, a vontade pode tender para as coisas que a
razão aprende sob aspecto de bem. Ora, a razão pode considerar
como bem não somente o querer e o agir, mas também o não querer e
o não agir. Além disso, em todos os bens particulares a razão pode
observar o aspecto bom de uma coisa, ou as suas carências de bem,
que se apresentam como um mal; e, com base nisso, pode considerar
cada um de tais bens como digno de eleição ou de fuga. Somente o
bem perfeito, ou seja, a felicidade, não pode ser considerado pela
razão como um mal ou um defeito. E é por isso que o homem, por
necessidade, quer a beatitude e não pode querer a infelicidade e a
miséria. Mas a eleição não tem por objetivo o fim, mas os meios; não
diz respeito ao bem perfeito, ou seja a beatitude, mas aos outros bens
particulares. Por isso, o homem não cumpre uma eleição necessária,
mas livre 198.

Cada escola, grupo social ou ideologia, tem suas pistas para obter a
libertação. Desde que o mundo é mundo, ante a ameaça do mal, têm
surgido muitas teorias a respeito do pleito mais plangente da
humanidade: a libertação do mal.

No socialismo utópico, preconizado por K. Marx († 1883) vê, na


revolta do proletariado a única forma de livrar o pobre da tirania do rico.
Aqui a libertação ocorre, não-raro, pelas vias da violência e da insurreição.
Para Sartre, conforme vimos, não há como fugir da vida, que se torna uma
náusea; tudo acaba no nada, num muro. Não há libertação, pois o ser
humano, condenado à liberdade, deveria possuir meios de libertar-se do
ser livre. Igualmente pessimista é M. Heidegger († 1976), onde a vida é um

197
Idem
198
Idem
165

―beco-sem-saída‖, e o homem, por não ser livre, torna-se um ser-para-a-


morte.

Fazendo uma justaposição da liberdade com a noção cristã do bem,


o teólogo medieval, meister (mestre) Eckhart († 1328) conta que teve uma
visão, na qual via que Deus não era feliz sozinho (mesmo na pericórese
trinitária) e para isto tinha desejos de nascer no coração do ser humano. A
encarnação de Cristo tornava-se protótipo daquela situação escatológica,
em que o Espírito transformará progressivamente, do transcendente para
o humano. Por essa visão prelomática (de plenitude), o místico alemão
ensina que Deus quis ser homem para o homem ser livre.

Jesus abre sua vida pública anunciando a libertação dos cativos e


oprimidos (cf. Lc 4, 18b), bem como a restituição da visão aos cegos e a
instauração de um tempo de graça. Esse conjunto libertário que Jesus
vem implantar junto à humanidade visa atender ao pedido ―livra-nos do
mal‖, pois realiza a libertação de quem está cativo (pecado, egoísmo,
doença, maus espíritos, ameaças da natureza, limitações humanas, etc.),
de quem está oprimido (sistemas políticos, econômicos, sociais, religiosos,
etc.), enfim, vem libertar a todos dos males físicos metafísicos e morais. Se
há um projeto do mal contra o ser humano, Jesus vem trazer a dinâmica
do Reino, para dissipar o temor e a ação do mal.

Para os cristãos, Jesus Cristo, através da Verdade, é o autêntico


libertador (Jo 8,32). Enquanto o mal é agente da mentira, Jesus é a
―verdade que liberta‖. Ora, a mentira escraviza, bloqueia, faz sofrer, trai e
provoca uma derrocada na vida e nos projetos da humanidade. Quando
ele traz a Verdade (―eu sou... Verdade...‖), seu desejo é banir a mentira, e
com ela todo o mal que separa os homens, de Deus e dos outros homens.
Jesus é aquele que realiza a nossa libertação do mal.

Para que haja uma libertação ampla e integral, alguns requisitos são
necessários:

 que se reconheça uma situação de cativeiro e opressão;


 que exista um Libertador;
 que se tenha confiança em seu poder;
 que o oprimido queira se libertar.

Destarte, sem liberdade a Verdade não aparece, e ficamos com


aquela impressão que o mal venceu. A pureza e a abertura do nosso
coração nos liga àquela liberdade de ver as coisas velhas de outro jeito, de
dizer coisas novas, de ir contra a maré das ―idéias prontas‖. É a liberdade
de discordar, dissentir, decidir.

Não se sabe até que ponto o livre-arbítrio é adequado às limitações


do ser humano. Se todos estão aptos a assumir a liberdade de agir e
responsabilizarem-se por tais ações, ainda é um assunto um tanto quanto
166

obscuro. O que será mais condenação: a liberdade ou a falta dela? Somos


livres para decidir entre o bem e o mal?

4. Somos livres para decidir?

O homem, sabemos, é um ser social e racional. Ele traz consigo uma


especial vocação para a ética, aqui entendida como bom comportamento. O
não-cumprimento dessa ética revela desvios sociais e equívocos de razão.
Assim, o ser humano foi criado livre, para o bem, com capacidade de
escolha. Enfim, foi criado para ser feliz. Esta é sua finalidade. Saber
escolher e assumir responsabilidade por suas decisões. Ser livre, desta
forma, é assumir capacidade e liberdade de escolha, entre o bem e o mal.
A opção de quem pratica o mal explica-se o mal pela ótica do agente. Por
que alguém faz mal a outra pessoa? Porque é mau; é desajustado; perdeu
o controle; agiu por vingança ou emoção. Vista pela ótica de quem pratica
o mal, sempre há uma forma de explicá-lo. Justificar não, mas explicar...
entender.

Já a tentativa de enxergar a drama pelo lado da vítima, nem sempre,


ou raramente, ou quase nunca é possível. Que mal fez uma criança de
quatro anos para ser cruelmente torturada e assassinada? Por mais que
se busque respostas, elas não aparece. Talvez se fôssemos espiritualistas,
poderíamos alegar um cumprimento de ―carma‖, quando se purga pecados
de ―vidas passadas‖, o que, positivamente, não é o nosso caso nem nossa
crença.

O pragmatismo 199, a partir dos filósofos norte-americanos, informa


que temos liberdade para fazer aquilo que nos convém, que nos dá prazer.
É uma visão muito estreita, pois sabe-se que nem sempre é feito o que
convém, mas o que aparece, induzido por essa ou aquela emoção. Um
pouco diferentemente de Sartre, sabemos que temos alguma liberdade
para decidir. Eu disse alguma, pois às vezes os eventos em nossa vida vêm
como cartas marcadas de um baralho, onde vamos fazendo coisas
erradas, e deixando de fazer as certas. São Paulo – leremos mais adiante,
na Carta aos Romanos – sentiu esse desajuste:

Não faço o bem que quero, e sim o mal que não quero!

No idealismo, de I. Kant († 1804), G. Berkeley († 1753) e G. W. F.


Hegel († 1831), só para citar estes três, liberdade é a condição daquele que
não se acha submetido a qualquer força constrangedora física ou moral.
Essa mudança axial (não se acha submetido...) coloca uma condicionante
de comportamento. É livre quem não sofre condicionamentos. Para Henri

199
O pragmatismo é uma doutrina filosófica, desenvolvida no século XIX, nos Estados Unidos, segundo a qual a prova
da verdade de uma proposição é sua utilidade prática. O idealizador desse pensamento é William James († 1910).
167

Bergson († 1941) e Sartre, liberdade é a potencialidade (nem sempre


concretizada) de escolha autônoma, independente de quaisquer condições
e limites, por meio da qual o ser humano realiza a plena
autodeterminação, constituindo a si mesmo e ao mundo que o cerca.
Numa crítica a Leibniz, Kant afirma 200 que vê a teodicéia como algo
privado de um suporte ontológico, funcionando como uma ―ilusão
transcendental‖.

Para o estoicismo, bem como nas teorias de Spinoza, ou mesmo no


idealismo alemão (eles falam em freiheit), liberdade é a capacidade
inerente à ordem cósmica, também concebida como natureza, universo ou
realidade absoluta, de existir com autonomia e autodeterminação
ilimitadas, que corresponde a um poder semelhante, alcançável pelos
seres humanos, desde que consigam agir e pensar como parte dessa
realidade primordial e abrangente, harmonizando-se conscientemente com
seus desígnios. Ser livre, nesse emaranhado de juízos é um agir isento de
condicionamentos. Essa isenção reflete na ausência do ―complexo de
culpa‖. Alguns sistemas postulam uma liberdade vigiada, como aquela,
religiosa, denunciada por Khayyam: cuidado! pobre de ti se chegas a cair!
É uma liberdade parcial; o indivíduo é livre mas condicionado a um
comportamento padrão estatuído pelo doador da liberdade.

Para o marxismo do século XIX, que envolve a sociopolítica daquele


período, liberdade seria a aptidão por meio da qual as coletividades ou
classes, compreendendo a necessidade das leis da natureza e os
condicionamentos que pesam sobre a história universal, transformam o
real, com o objetivo de satisfazerem suas necessidades materiais e
determinar a organização geral da sociedade.

Mais modernamente, a definição de liberdade surge, no empirismo e


no utilitarismo, especialmente em J. Bentham († 1832), como a capacidade
individual de autodeterminação, caracterizada por compatibilizar
autonomia e livre-arbítrio com os múltiplos condicionamentos naturais,
psicológicos ou sociais que impõem predisposições ao agir humano. Nesse
aspecto, liberdade mantém vínculos estreitos com o comportamento
pessoal e com as atividades de agentes externos. Sou livre para mim na
medida que essa minha liberdade contempla o outro. Por último, duas
definições mais, acadêmicas de liberdade, respigadas em bibliografias
formais:

Estado do ser que só obedece à sua vontade, independentemente de


qualquer coerção externa (o homem livre é o contrário de um escravo)
201.

200
In: Crítica da razão pura, op. cit.
201
G. DUROZOI et alli, op. cit.
168

A autodeterminação, o autocontrole, ou a auto-regulamentação. É a


capacidade de o agente de agir ou não agir de acordo com sua
vontade, preferências, desejos, impulsos. Ser a causa das próprias
ações 202.

Se concordarmos que o mal consiste em uma desordem, e que a


ordem consiste na igualdade e na liberdade, então podemos compreender
que o mal humano consiste em tratar alguém de modo a retirar-lhe sua
liberdade ou a conceber-lhe como desigual a nós ou a outrem,
reintroduzindo uma ordem hierárquica onde ela foi suprimida. Assim,
tanto um ladrão que pratica um latrocínio quanto o próprio sistema
capitalista que explora a classe trabalhadora são maus, porque negam a
alguém a liberdade e a igualdade.

A verdade é que o modelo da chamada ―liberdade humana‖ torna-se


às vezes uma figura, como que para ―defender‖ Deus, deixando o homem
entregue às suas escolhas (cf. Eclo 15,14). Alguns dizem: ―Deus criou a
humanidade livre para decidir...‖. Será que o homem está capacitado para
ser livre? Senão, vejamos: o homem, politicamente falando, tem liberdade.
Pelo menos em muitas nações do mundo. E ele sabe usá-la. votando bem?
Por que tantos usam mal essa liberdade, ocasionando tantas vítimas e
tanto sofrimento? Isto ocorre por conta da maldade. Por que Deus criou o
homem na encruzilhada da ambigüidade das escolhas, sabendo que
tantos não saberiam como decidir? E que outros iriam se prevalecer do
dom liberdade...

Se o homem foi criado na  (sarx, carne), porque alguns só


vão conseguir ser felizes na outra vida, no pnêuma (espírito)? Aqui lhes é
negada essa benesse. Isto é justo? Nos glossários de Teologia, a liberdade
aparece como um dom de Deus, algo que o Criador dá ―de graça‖,
pressupondo que todos estejam aptos a administrá-la convenientemente.
Jesus apresenta-se como aquele que vem trazer a liberdade (libertação)
aos cativos e aos dependentes de tantos esquemas sociopolíticos de seu
tempo (cf. Lc 4, 18-21).
A Bíblia não dá uma definição de liberdade/libertação, mesmo assim
afirma implicitamente que: I) o homem está dotado de capacidade de
responder por uma livre opção; II) Deus-Javé mostra o caminho de
liberdade a seu povo; III) no Novo Testamento, a graça de Cristo traz
a todos os homens a liberdade de filhos de Deus 203.

A Bíblia não se mostra tão preocupada com a liberdade psicológica


como com as forças opressoras, múltiplas, que podem impedir o homem

202
T. R. GILES, Dicionário de Filosofia, E.P.U, 1993
203
VTB (Vocabulário de Teologia Bíblica), Ed. Vozes.
169

de agir livremente, constrangendo-o a ações que ele não queria praticar.


Essas forças são exteriores ao homem, geralmente de ordem
sociopolíticas. Mas também surgem no coração humano: o pecado e a
adesão à sedução do Maligno.

É pelo prisma do homem em face do pecado, tendo ao mesmo tempo


liberdade para cometê-lo ou rejeitá-lo, e sendo oprimido por ele que
se coloca a questão da liberdade. O homem é carne, isto é, dotado de
uma vida frágil e transitória, de uma constituição limitada, mutável,
fraca na fidelidade e na obediência a Deus, que o torna um pecador,
autor de um mal que exerce sobre ele real autoridade 204.

É dentro deste raciocínio que o apóstolo Paulo temia o pecado, capaz


de conduzi-lo àquilo que ele não desejava, e diante do qual ele se sentia às
vezes impotente, e para cujo desajuste sua liberdade às vezes o
empurrava. Sabendo-se fraco, o apóstolo temia a liberdade que lhe fora
outorgada:

Sabemos que a Lei é espiritual, mas eu sou humano e fraco, vendido


como escravo ao pecado. Não consigo entender nem mesmo o que eu
faço; pois não faço aquilo que eu quero, mas aquilo que mais
detesto. Ora, se eu faço o que não quero, reconheço que a Lei é boa;
portanto, não sou eu que faço, mas é o pecado que mora em mim.
Sei que o bem não mora em mim, isto é, em meus instintos egoístas.
O querer o bem está em mim, mas não sou capaz de fazê-lo. Não
faço o bem que quero, e sim o mal que não quero. Ora, se faço
aquilo que não quero, não sou eu que o faço, mas é o pecado que
mora em mim. Assim, encontro em mim esta lei: quando quero fazer
o bem, acabo encontrando o mal. No meu íntimo, eu amo a lei de
Deus; mas percebo em meus membros outra lei que luta contra a lei
da minha razão e que me torna escravo da lei do pecado que está
nos meus membros. Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo
de morte? (Rm 7, 14-24).

A humanidade está cheia daquele egoísmo provocado pelos que não


temem a Deus, mas também pelos que, temendo, deixam-se levar no
torvelinho das paixões, muitas vezes supervenientes à ética e à moral. Ser
livre torna o homem vulnerável. Sendo livre, ele nem sempre usa essa
liberdade para o bem. O próprio Paulo, predestinado à santidade, temia as
armadilhas da liberdade que buscavam seduzi-lo, perguntando: Quem me
libertará deste corpo de morte?. Nós, confrangidos por nossa miséria,

204
L. MONLOUBOU et alli, DBU (Dicionário Bíblico Universal), verbete “Liberdade”. Ed. Vozes/Santuário.
170

aquela que em geral não queremos, também perguntamos: quem nos


livrará desses impulsos de morte? Com a perda da ―inocência‖ surgem os
primeiros rudimentos da sensibilidade ética. O mito adâmico indica – a
par dos castigos – que a pessoa herda determinados encargos de
autoconsciência, ansiedade e sentimento de culpa.

A psicanálise, em fins do século XX, chegou à conclusão – a partir de


Françoise Dolto († 1988) – de que o ser humano tem extremas dificuldades
para lidar com a sua liberdade, chegando por isto, em muitos casos, a ser
considerado como alguém ―relativamente livre‖, tamanho os
condicionamentos que o sufocam. É da conceituada psicanalista francesa
a afirmação abaixo:

Hoje em dia, as pessoas têm tanto medo de usar sua liberdade, de


se arriscar que terminam por não correr o risco de ser felizes ... 205

5. A Liberdade segundo Paul Ricoeur

O filósofo francês, Paul Ricoeur entende a liberdade como uma


tarefa, como uma exigência de efetividade, de esforço do ser, de
compromisso, de realização, considerando que em Kant se deu um curto-
circuito entre a liberdade e a lei. Para ele haveria um fundamento da
liberdade anterior à própria lei moral e que passaria pelo conceito de
pessoa e de respeito e que se traduziria em alteridade. Considera a
hermenêutica como prática de desmistificação, compreensão e
interpretação dos símbolos. Daí que a lógica da práxis esteja a um nível
antropológico e psicológico, diverso tanto do pensamento especulativo
como do nível irracional da paixão. Com efeito toda esta hermenêutica, ao
ultrapassar o formalismo kantiano, recupera, de Hegel, o espírito objetivo
e de Aristóteles, a filosofia prática.

A política tem uma vocação fundamental e capacidade para


reagrupar os interesses e as tarefas da existência humana; é no
poder político que se move o destino de um conjunto geo-histórico:
cidade, nação, grupo de povos 206.

Neste sentido, o ínclito filósofo francês, considera que o labirinto do


político é o lugar por excelência da ambigüidade do nosso tempo, onde o
ser interpreta sua vida, estabelecendo dela uma leitura, adequada àquilo
que imagina como parâmetros de liberdade. Ser livre é sê-lo em função do
outro, do mundo e das opções da vida. É obrigatório ao estudioso dizer
205
In: A causa dos adolescentes, Idéias & Letras (Santuário), 2004
206
In: Finité et Culpabilité. 2 vols., I. L'Homme Faillible, II La symbolique du Mal, Paris, 1960.
171

que Paul Ricoeur é um fenômeno! Ele é o pensador moderno que mais se


aprofundou na análise do mal, ao qual ele classificou como um desafio,
tanto à filosofia como à teologia. Ricouer faleceu em Paris, na primavera
de 2005. Eu estava, casualmente, na ville lumiére naqueles dias.

Ao contrário do que alguns afirmam, ele não era teólogo, mas


filósofo. Talvez o maior dele, na pós-modernidade, nessa área de
especulação. Protestante por formação, e católico por afinidade, sempre
andou às voltas com a questão do mal. Seu contributo a essa linha de
pesquisa ainda será notada por muitos anos, quem sabe séculos, à frente.
Os títulos de suas obras, ensaios e conferências o atestam. Sua atenção
ao problema do mal é incisiva:

Não se leva em conta que a tarefa de pensar Deus, e de pensar o mal


perante Deus, pode não estar esgotada através de nossos raciocínios
de acordo com a não-contradição e a nossa inclinação para a
totalização sistemática 207.

O problema reside, e essa premissa perpassa a obra de Ricoeur, no


modo de tratamento do mal. As tentativas fracassadas da teodicéia são
por conta da pretensão de querer pensar o problema justamente desde as
exigências da lógica da não-contradição, pretendendo dar uma resposta
sistemática e total ao dilema já formulado por Epicuro. Ou seja, como
afirmar sem contradição as três proposições: Deus é Todo-poderoso; Deus
é absolutamente bom; contudo, o mal existe.

Liberdade é agir sem condicionamentos. Antes da ação, porém, é


necessário o ato de pensar livremente. Segundo Ricoeur, por causa da
inculpação em massa do gênero humano, todos têm medo do mal, foram
penalizados após ele, e esse temor, ressentimento, complexo de culpa vai
balizar as atitudes, cerceando a liberdade, seja de pensar seja de agir. A
chamada ―liberdade vigiada‖ não é liberdade. É preciso, diz Ricoeur, fazer
a diferença entre o mal cometido e o mal sofrido. Em outras palavras,
pecado e sofrimento não podem ser associados necessariamente. Há uma
disparidade de princípios que os sustentam208.

A lógica do pecado, ou do mal moral, designa o que torna a ação


humana objeto de imputação, de acusação e de repreensão. A imputação é
devido a uma ação responsável do sujeito que viola códigos éticos e, por
isso, pode ser acusado e repreendido, isto é, condenado pela sua culpa. E
nesse particular o mal moral interfere no sofrimento na medida em que a
punição é um sofrimento infligido.

207
Le mal - un défi à la philosophie et à la théologie. Genéve, 1986. (T. do A)..
208
Idem
172

Antes de acusar Deus ou de especular sobre a origem demoníaca do


mal no próprio Deus, cabe-nos atuar ética e politicamente contra o
mal 209.

Quando o mal se manifesta, há no ser humano uma irreversível


tendência de se opor diretamente a ele. Isto, às vezes é possível fazer. Em
outras circunstâncias, corre-se o risco de nos tornarmos iguais ao mal
que queremos combater. É o caso, primeiramente, da ―pena de morte‖.
Julgando-se ferida, a sociedade decide vingar-se, matando o matador. Que
diferença há entre os dois?

O mal é contagioso, frisa Ricoeur. Dificilmente nos aproximamos


dele sem nos contaminarmos e sermos afetados por ele. Um outro exemplo
pode ser encontrado na guerra de Bush contra o Iraque. A nação árabe foi
acusada de terrorismo e da fabricação de armas biológicas. A ocupação
norte-americana fez mais danos que qualquer ―guerra química‖, as armas
não foram encontradas e o Iraque ficou pior que antes.

Ao revés, certas campanhas pacifistas ou de não-violência que se vê


por aí, criam uma espécie de paranóia coletiva, tão danosa quanto o mal
que combatem. A causa do sofrimento é a violência, onde sobressai-se o
aspecto da liberdade mal conduzida. Minha liberdade é valor desde que
empregada em favor de todos. Se uso a liberdade para praticar o mal, ela,
ao invés de um dom, torna-se uma conduta viciosa e viciada 210.

Em muitos casos, certos julgamentos, sociais, filosóficos e mesmo


teológicos, para atenuar a culpa e disfarçar a intensidade do mal sofrido,
estabelecem uma relação confusa entre o agente e a vítima, estabelecendo
uma confusão entre os vários estágios da liberdade. Como resultado dessa
experiência, o mal se apresenta em forma de passividade. Este é o lado
obscuro e tenebroso, nunca suficientemente desmistificado, que faz da
maldade um enigma. A partir da Idade Média começou-se a dizer que todo
o sofrimento, toda a violência sofrida, é merecido porque é retribuição,
punição até, de um pecado individual ou coletivo, conhecido ou
desconhecido. Será? O caso é que Ricoeur discorda de Leibniz e Voltaire.

A noção de melhor dos mundos possíveis, tão divulgada por Leibniz,


em sua Teodicéia, e Voltaire, em Cândido, depois do desastre do
terremoto de Lisboa, só são compreendidas quando apreciadas pelo
nervo racional, isto é, o cálculo de máximo e mínimo, do qual nosso
modelo de mundo é o resultado 211.
Ao não concordar com as teses da teodicéia de Leibniz, Ricoeur
enfatiza que a pretensão leibniziana de estabelecer um balanço positivo (o

209
Idem
210
Idem
211
Idem
173

melhor dos mundos), no cotejo dos bens e dos males, sobre uma base
quase estética, fracassa quando a constatação da incidência do mal e das
dores não pode ser compensada por nenhuma perfeição oferecida. É o
caso de Jó. Ou que consolo ou explicação se pode fornecer à mãe, cuja
filhinha de quatro anos foi estuprada e enforcada por um maluco?

O desastre da Teodicéia, no próprio interior do pensamento


delimitado pela onto-teologia, é o resultado de um entendimento
finito que, não podendo ceder aos dados desse cálculo grandioso,
junta apenas os signos dispersos do excesso de perfeições em
relação às imperfeições, na balança do bem e do mal. É necessário,
então, um robusto otimismo humano para afirmar que o balanço é
na totalidade positivo. E como sempre possuímos unicamente as
migalhas do princípio do melhor, devemos nos contentar com seu
corolário estético, em virtude do qual o contraste entre o negativo e
o positivo concorre para a harmonia do conjunto 212.

Nesse particular, a queixa, o lamento do justo sofredor arruina a


noção de uma compensação do mal pelo bem, como já tinha arruinado
antes a idéia de retribuição ou castigo, quando disseram que todo o
castigo era merecido.

Há um ensaio de Freud – lembra Ricoeur – chamado ―Luto e


melancolia‖, onde o psicanalista descreve o luto como ―a perda de nós
mesmos‖. É pela vivência do luto que nos tornamos livres para novos
investimentos afetivos. O estado de perda (luto) nos faculta a liberdade de
reclamar. Até de Deus. Três são os estágios espirituais do trabalho de
luto.

O primeiro estágio liberta a vítima de culpa. Aqui é preciso dizer:


não, Deus não quer a minha punição. A teoria da retribuição deixa lugar,
então, para a ―ignorância‖ da causa geradora do mal. Essa postura liberta
a vítima do peso cruel do sentimento de culpa. Para isso é preciso se
libertar da teoria da retribuição e assumir a própria ―ignorância‖ da causa
do mal sofrido. E assumir a ―ignorância‖ do por quê do mal é condição de
possibilidade de livrar, tanto a Deus quanto a vítima, da culpabilidade.

Um segundo estágio da espiritualização é deixar-se expandir numa


―queixa contra Deus‖. Acusação contra Deus é aqui ―impaciência da
esperança‖. Tem origem no grito clamoroso do salmista: ―até quando,
Senhor, até quando?‖.

Há ainda, para completar, um terceiro estágio da espiritualização da


lamentação é descobrir que podemos acreditar em Deus apesar do mal.
Acreditar em Deus nada tem em comum com a necessidade de explicar a
origem do sofrimento. É preciso, diz Ricoeur,

212
Idem
174

...acreditar em Deus, apesar de... é uma das maneiras de integrar a


aporia especulativa no trabalho de luto 213.

Em sua obra, Ricouer faz profundos questionamentos sobre o que a


filosofia chama de liberdade. Nesse sentido, ele toma como modelo uma
favelada, analfabeta e ignorante, fruto de um meio cruel e miserável. Teria
ela condições de julgar seus atos e decidir pela ética? Ou fala só a
linguagem do instinto? O filósofo aprecia a liberdade, e esse parecer
perpassa toda a sua obra, mas restringe-a aos freios ou estímulos dos
condicionamentos diversos que infletem sobre a ação da pessoa.

Pode-se mesmo dizer que é na medida em que o sofrimento é


constantemente tomado como ponto de referência, que a questão do
mal se distingue do pecado e da culpabilidade 214.

Ricoeur traz luzes à questão do mal ao dizer que, antes de dizer o


que é diferencial, no fenômeno do mal cometido e no do mal sofrido, há um
mistério profundo, ininteligível, a maioria das vezes, é necessário que se
insista na disparidade onde giram esses dois eixos. Por causa disto, cada
um dos eventos precisa ser analisado sob enfoques diferentes.

O que fornece o caráter enigmático ao mal é a nossa posição de


colocarmos numa primeira aproximação, sob o mesmo plano, pelo
menos na tradição judaico-cristã do Ocidente, fenômenos tão
díspares como o pecado, o sofrimento e a morte 215.

Ricouer ensina que, como um princípio da liberdade humana, não


basta reclamar o mal sofrido; é preciso combatê-lo, denunciar suas
origens, estancar seus caminhos. Não se pode ficar imaginando o mal
como algo imaterial ou inserto nas realidades espirituais. É preciso
identificá-lo dos eventos de nosso dia-a-dia. A esse respeito, transcrevo
abaixo, fragmentos de um artigo jornalístico que publiquei recentemente;

Uma pesquisa em que ando trabalhando, que será a base para


minha tese de Doutorado em Teologia Dogmática (Moral), e vai
render um livro, futuramente, tem por base The Symbolism of evil,
de Paul Ricoeur. Para o consagrado filósofo francês, os mais
primários e espontâneos símbolos do mal – ele emprega três
palavras inglesas – defilement (a malícia, corrupção), sin (pecado) e
guilty (a culpa, ou a ausência dela). Meu trabalho vai se basear no
mal sofrido por um inocente, como o Jó bíblico, que nada fez para
merecê-lo. Neste terreno, há um ponderável confronto entre

213
Idem
214
Idem
215
Idem
175

místicos, racionalistas e ateus, o que torna apaixonante a busca


pela síntese, no meio de tantas teses. Nas fráguas da pesquisa, o
estudo não pode ater-se apenas à ocorrência do mal metafísico,
intrínseco a este mundo, uma vez que a idéia de criação implica
uma certeza de limitação. Ao especialista cabe identificar mal moral,
ou seja o pecado, cuja fonte está na vontade má, que não tem uma
causa eficiente, mas uma causa deficiente. O mal moral, mais que o
físico e o metafísico é o que mais danos causa à sociedade humana.
É preciso vê-lo no cotidiano, ao ler as notícias dos jornais. Pecado,
não é apenas ―pular a cerca‖, bater no coleguinha ou jogar pedra em
santo. O pecado faz parte da vida humana... O plantio do fumo, no
Brasil, traz um componente perverso. Tramita no Congresso um
projeto visando erradicar as lavouras de fumo. Será que não há
algum golpe, algum interesse internacional atrás disto? O fumo faz
mal? Faz, como faz a cerveja, a cachaça e as frituras. Vão proibir o
plantio da cana, da cevada ou do soja? É igual à campanha do
―desarmamento‖. Tem coisa por detrás; só resta saber o quê. Acaba
o fumo mas não vão acabar os usuários do cigarro. Aí o que se faz?
Importa-se fumo dos Estado Unidos. Vejam o componente
defilement (corrupção) nessa possibilidade... Com relação ao
desperdício de alimentos, uma chaga nacional, observa-se que os
técnicos da Embrapa afirmaram que, por armazenamento
inadequado, excesso de manipulação, falta de transporte e
burocracia, há 46% de perdas na produção nacional de alimentos.
Tal desperdício poderia alimentar 40 milhões de pessoas, ou seja,
acabar com a fome no Brasil. É o sin (pecado pessoal e social) que
permite a comida estragar, sob algum pretexto escuso, deixando
gente com fome... No Brasil se superfatura tudo: remédios, merenda
escolar, até computadores para escolas. Agora, a moda das
empresas de telecomunicações é, alegando não encontrar o nome
solicitado, pedir que se forneça o endereço. Isto onera a pesquisa em
R$ 1,40. Imaginem 300 mil pesquisas vezes R$ 1,40 por dia. É uma
ruptura sem ética e com guilty (culpa) 216.

Finalizando, vê-se que, para Ricoeur, a liberdade é causa de


elevação e queda do ser humano. Aquele que cultiva a virtude, é
enaltecido pelo fato de, tendo liberdade de seguir pelos ―dois caminhos‖
bíblicos, escolhe o do bem. Ao contrário, o descuidado fracassa
justamente quando, tendo opção de uma escolha sábia e benévola, prefere
as trilhas do mal. A liberdade precisa ser conquistada e exercitada todos
os dias.

216
Artigo “O bem e o mal”, Caderno “Cultura”, pág. 4, jornal Diário de Canoas, Canoas/RS. 28/02/2005.
176

VII

Bondade de Deus e maldade


no mundo:
uma dicotomia
irreconciliável?

Não participem das obras estéreis das trevas; pelo contrário, denunciem
tais obras (Ef 5,11).
177
178

1. Deus é bom?

Na teologia cristã tradicional, Deus nos é apresentado como


possuidor de determinadas virtudes, ou qualidades, bem definidas. Mais
especificamente, crê-se que Javé é onisciente (conhece tudo), onipotente
(todo-poderoso), e rico em misericórdia (totalmente bondade e gratuidade).
Estas qualidades, envolventes do Deus Trinitário, embasam a fé que
professamos.

Naturalmente, já que tanto a onipotência quanto a misericórdia são


consideradas qualidades essenciais de Deus, cria-se, a partir das
formulações da gnose (algumas de difícil refutação), um problema de
lógica. Como essas duas afirmações – de que Deus é Todo-Poderoso e
todo-bondoso, e a de que o universo contém o mal – podem ser
reconciliadas?

A primeira visão que temos de Deus, de acordo com a Bíblia e os


fundamentos do kérygma e da catequese, é sua dimensão criadora, onde
tudo o que ele fez/faz é muito bom (cf. Gn 1,31). Deus, como tudo o que ele
criou, é muito bom. A idéia inicial da criação é de bem, mas...

 antes de Gn 1
os anjos se revoltaram, tornaram-se maus e perderam a condição
de ―filhos de Deus‖, sendo expulsos, conservando, porém, a
imortalidade;

 na leitura mitológica de Gn 1–11


o homem (criado inicialmente para a imortalidade) desobedece,
descrê, mata, transgride, sendo expulso, perdendo, no entanto, a
imortalidade. É o mal banhando a criação divina.

É sabido que o homem escolheu o mal, induzido por Satanás.


Escrevi escolheu em itálico, pois é questionável se ele poderia ter feito
outra escolha, frágil como ele era/é, indefeso diante de um inimigo
poderoso. O corolário dessa escolha foi o sofrimento, os frutos amargos, a
necessidade de transformar a terra inóspita, as dores e a morte. A questão
– que ouvi, há muito tempo, uma criança fazer a uma catequista – e se
Adão/Eva tivessem dito não ao mal? A história podia ter sido diferente, ou
estava tudo marcado para ser assim mesmo? Sendo Deus – como sabemos
que ele é – onisciente e sobretudo benévolo, por que não os amparou, só
aparecendo em cena depois, como um ―inspetor de disciplina‖, pronto
para punir os faltosos?

Para salvar o homem, o Deus onipotente deverá vencer o Mal e o


Maligno (cf. Ez 38-39; Ap 12,7-17). Sabemos que Jesus se encarnou para
libertar a humanidade. Trata-se de uma libertação futura, escatológica.
179

Os homens anseiam pela vitória do Bem sobre o Mal ainda nesta vida.
Sabemos que Deus é bom; quando ocorrerá esta vitória, se o ser humano
ainda sofre penas tão cruéis?

De qualquer modo, sabe-se que a questão do mal, não passou


despercebido pelos grandes teólogos da Igreja, e tem havido muitas
tentativas de resolvê-la, ou pelo menos explicá-la. É necessário examinar
cuidadosamente os argumentos. Como sustentar, por exemplo, a resposta
de que ―tudo é bom‖ ? Esta é uma tentativa de negar a questão pela
simples sugestão de que não existe o mal. Isso é conhecido pelo outro
nome de uma teoria do "melhor dos mundos possíveis", proposta por
Leibniz (e celebremente satirizada por Voltaire, em sua obra Candide).

O mal ofende a Deus, antes de mais ninguém, e se coloca como seu


adversário [...]. Mesmo assim, estou convencido de que o problema
do surgimento do mal é uma questão ainda não resolvida. Nunca
será resolvida? O unde malum (de onde [vem] o mal) continuará
sendo um enigma absoluto para todos nós?217

Sabendo que o mal ofende a Deus, em primeiro lugar, injuria e age


contra o projeto divino, cabe ao teólogo o dever de mostrar a legitimidade
do grito daquele que sofre, desnudando assim o lado cruel da maldade e a
face paterna de Deus. Neste terreno, os outros podem calar; o teólogo não.
Na hora de perquirir a origem do mal é que os raciocínios se
confundem. Sabemos que Deus não é criador do mal. Mas, assim como
sabemos isto, questionamos o fato de ele prever sua incidência e não
evitá-la. Os teólogos oficiais vinculam o mistério do mal ao sofrimento de
Cristo. Respeitando a liberdade dos maus, o Pai permitiu a paixão 218 e a
morte do Filho. Este sofrimento tinha um propósito, o resgate da
humanidade (pelo binômio morte/ressurreição). O sofrimento do inocente
é uma dor gratuita. Sabendo-se – como já vimos lá atrás – que Cristo
sofreu e morreu ―de uma vez por todas‖ (cf. Rm 6,10), ninguém precisaria
―completar‖ o que faltou, pois não faltou nada na obra da redenção.

A questão da autoria do mal poderia conter dentro de um raciocínio.


Por exemplo, o revolver é um bem econômico e material: serve para a
defesa das pessoas, custa dinheiro: pode ser vendido. Matar é um mal;
isto é indiscutível. Um revólver na mão de uma criança, ou de um
inexperiente, pode matar alguém. Se ocorre um acidente desse tipo, a
culpa é de quem? da criança que foi imprudente? do pai que não zelou
para evitar o acidente, ou não ensinou a criança a manejar a arma? ou do
fabricante que criou e comercializou a arma ?

As coisas materiais operam de acordo com as leis físicas. Por


exemplo, o fogo opera segundo as leis da termodinâmica. As mesmas leis

217
A. GESCHÉ, op. cit.
218
A palavra paixão tem raiz em pathos: sofrimento físico e moral.
180

naturais que permitem aquecer as nossas casas durante o inverno podem


fazer com que ocorram incêndios de grandes proporções. Para impedir o
mal físico é necessário o milagre - ou seja, a suspensão das leis físicas.
Deus permite o mal físico à medida que Ele não executa um milagre atrás
do outro para suspender o sofrimento, fazendo com que o ordinário se
transforme em extraordinário. Assim, as leis físicas se aplicam igualmente
para bons e para maus (cf. Mt 5,45).

É provável que a real questão não seja por que Deus permite o mal
físico, mas por que Deus nos criou em um mundo material? Alguns
sugerem que Deus nos criou em um mundo materialmente imperfeito
para que não pudéssemos confiar em nós mesmos mas vir a amar e
confiar em Deus, que é perfeito (cf. 2Cor 1,8-9). Nós fomos criados com
um desejo e fome que só podem ser satisfeitos por Deus. Este vazio da
felicidade nos chama e impele a Deus. Isto é admiravelmente definido nas
palavras de Santo Agostinho:

..para ti, que nos criastes para ti mesmo, ó Senhor, nossos corações
estão impacientes até que descansem em ti 219.

Santo Ireneu de Lyon (190 d.C.), outro ―Pai da Igreja‖ já tem uma
outra opinião:

..onde não há esforço, não há apreço. A visão não nos seria tão
desejável se não conhecêssemos o grande mal que é a
cegueira; a saúde também torna-se mais preciosa pela experiência
da doença; assim a luz pela comparação com as trevas; a vida com a
morte. Assim o reino celeste é mais precioso para os que
conheceram o terreno. Quanto mais precioso é, tanto mais o
amamos e quanto mais o amamos tanto mais seremos gloriosos
junto de Deus. O Senhor permitiu tudo isso para nós a fim de que
fôssemos instruídos em tudo e permanecêssemos para sempre fiéis
em todas as coisas e radicados em seu amor, tendo aprendido a
amar a Deus como homens racionais 220.

O nosso mundo, cheio de vícios e pecados, é o infeliz resultado da


escolha humana. Nossas escolhas geralmente são desastradas. Nem
mesmo Satanás pode nos forçar a pecar. Nosso coração é um santuário
onde só Deus pode penetrar. O Maligno pode influenciar nosso agir,
induzir-nos ao desajuste, mas jamais saber o que vai dentro de nosso
coração. As dores, os sofrimento e mesmo a morte são partes integrantes
do mundo material em que vivemos, tudo ocorre devido ao pecado de
Adão. O cristianismo, no entanto, oferece a esperança através do
sofrimento de Jesus Cristo. O mal deste mundo não é prova de que Deus

219
Confissões, 1,1. op. cit.
220
In: Adv. Haer., IV, 37,7.
181

não existe, mas uma constante lembrança da nossa necessidade do Deus


perfeito revelado na Bíblia (cf. 2Cor 1,8-9).

Há outra explicação a se buscar: por que os ―milagres‖ de Deus não


seguem uma lógica? Se formos examinar detidamente, veremos que não
existe nenhuma lógica nos milagres de Deus: pessoas sofrem pequenos
acidentes, às vezes domésticos, e morrem ou ficam inválidos; outros,
passam por problemas gravíssimos, onde o esperado é a morte, e alguns
escapam ―por milagre‖. Deus tem um projeto para o homem, sabemos. A
questão é: a quem ele contempla com seu socorro? Às vezes os descrentes
se dão bem, em outras, devotos sofrem. No evangelho Jesus diz:

Se dois de vocês, na terra, estiverem de acordo sobre qualquer coisa


que queiram pedir, isso lhes será concedido por meu Pai que está no
céu (Mt 18,19).

Os pais ficaram em casa, orando pela boa viagem da filha. Estavam


todos felizes: a jovem tinha se formado, possuía um emprego; eram suas
primeiras férias. A moça não chegou à praia nem voltou para casa. Morreu
em um acidente de carro. E a gente sabe, não duvida, que Deus é bom,
sabemos, mas então, por que o mal existe?

2. Então, por que existe o mal?

Os teólogos e os pregadores tradicionais, padres ou pastores, cuja


atuação é balizada por uma nomenklatura hierárquica, geralmente
conduzem a resposta para o caminho da fé, do mistério, do ―Deus sabe o
que faz com suas criaturas‖, etc. A questão sobre o mal, repetida tantas
vezes, em muitos casos fica pendente de uma resposta satisfatória. A
exegese oficial, no que se refere à narração bíblica, explica que a culpa da
existência do mal é do próprio ser humano: ele prefere seguir o seu desejo
egoísta a obedecer à orientação de Deus. Em vez de comportar-se como
uma criatura, pretende ser como Deus, decidindo o que é bom e o que é
mau, segundo o seu capricho. Seguramente, nenhuma outra questão
minou de forma tão funda e ameaçadora a fé e a confiança nessa bondade
e, por via-de-conseqüência, a própria existência de Deus. A visão do mal,
embutida no cotidiano do mundo, é um dos maiores entraves à aceitação,
por parte da humanidade, de um Deus amor, amigo, Emanuel.

De outro lado, os místicos, os teólogos independentes, e os


pesquisadores, têm buscado, de outras formas explicar a origem, a
ocorrência e a incidência do mal na vida dos seres humanos. A grande
questão é que o temor do mal, a constatação da fragilidade, a suspeita de
um certo abandono, gera um ponderável medo no ser humano, capaz de
causar aquela náusea, que às vezes pode chegar às raias do desespero.

O ato de saber-se fraco e vulnerável, pode levar o ser humano a


vários tipos de reação: a) torna-se angustiado por sua fragilidade; b) por
182

um exacerbado complexo de culpa, passa a ver pecado em tudo; c)


assume atitudes de um misticismo exagerado, como se tudo cheirasse a
―fim-do-mundo‖, ou d) assume um ―deixa a vida me levar‖, perdendo
referenciais, por sentir-se vítima de uma situação para a qual ela não tem
solução nem resposta.

A palavra angústia, para o contemporâneo M. Heidegger, surge do


confronto do indivíduo com o nada e com a impossibilidade de encontrar
uma justificativa última para a opção que cada pessoa tem de fazer. O
desesperançado Sartre, emprega a palavra náusea para descrever o
reconhecimento, pelo indivíduo, da contingência do Universo. Essa náusea
torna-se um fastio de viver.

Mesmo que se diga que o mal é simplesmente a ―ausência do bem‖,


isso não significa que ele deixa de ser um problema, ou que é menos
danoso por causa desta forma de defini-lo. Uma conceituação como
―ausência do bem‖ é uma falha tão notável quanto a existência do mal.

Feita essa distinção, estabelece-se um acordo para se buscar o


autor do primeiro gênero do mal, visto que, não sendo Deus, deverá ser
alguém, pois a maldade não poderia ter sido cometida sem que houvesse
um autor. Aqui se dá propriamente o deslocamento da problemática
centrada em Deus para a problemática centrada no homem. Observa-se
aqui uma visão unilateral de Agostinho: o autor do mal é o próprio homem
pois,

cada pessoa ao cometê-lo é autor de sua má ação 221.

Se o homem é o autor do mal, a pergunta que se impõe, e Evódio a


fará: ―Unde male faciamus?‖ - de onde vem o praticarmos o mal?‖. A
resposta a essa pergunta será a culminância do tratamento da
problemática do mal em Agostinho, e ele a faz limpidamente, sem deixar
dúvidas. A causa de procedermos mal está no livre arbítrio da vontade:

o mal moral tem sua origem no livre arbítrio de nossa vontade 222 .

Ora, para Agostinho o mau uso da vontade livre, ou seja, o mal, é o


mesmo que pecado. Se o mal é sinônimo de pecado, então se trata de
explicar o que seja o pecado. Na verdade, este trabalho não se propõe
especificamente a conceituar o pecado nem à discussão da autoria do mal,
mas sua incidência e conseqüências sobre inocentes. Sobre a liberdade do
agente praticar o mal, por causa do pecado, isto nós sabemos e
concordamos. Falta-nos a explicação: por que o inocente sofre? Em certas
(e muitas) circunstâncias, somos indagados a respeito do sofrimento: por
que existe o mal? quem é o autor do sofrimento no mundo.

221
In: O livre Arbítrio, I, 1
222
Idem I, 6, 35
183

Por que, então, existe o mal e o sofrimento no mundo? É o tipo da


pergunta que não quer calar. A questão bate de frente com nossa fé, que
afirma a existência de um Deus bondoso. Ora, constatada a existência de
um Deus bom e Todo-poderoso, o mal não deveria existir, já que Deus,
com seu poder e benevolência, poderia eliminá-lo.

Para penetrar no âmago da questão, nós precisaríamos responder a


duas questões. Primeiro, o que é o mal? É tudo o que se manifesta
contrário ao projeto de Deus. Isto é, qualquer coisa moralmente ruim,
injuriosa, depravada, ou má. Alguns exemplos aceitáveis poderiam ser
assassinato, estupro, roubo, mentira e engano. Segundo, se nós queremos
que Deus aniquile o mal, nós queremos que ele aniquile todo o mal ou só
uma parte dele? Em outras palavras, somente uma parte dele por quê? Se
Ele fosse acabar apenas com uma parte do mal ainda permaneceria a
questão "porque existe mal no mundo?". E permanecendo apenas uma
parte do mal, não restariam alguns remanescentes de nossos (maus)
projetos humanos?

Suponhamos que alguém esteja a ponto de cometer um assassinato.


Deus teria que pará-lo, talvez sussurrando aos seus ouvidos, ou se isso
não funcionasse fazer algo um pouco mais drástico como fazer algo cair
em cima dele, ou parar o coração dele, ou paralisar suas mãos. De
qualquer modo, Deus teria de fazer alguma coisa, quem sabe até indo
contra as leia da natureza. Ou, o que faria se alguém quisesse roubar?
Deus teria de impedi-lo também. Sem dúvidas, nesse sentido a
imaginação de Deus criaria métodos mais práticos dos que ora estamos
sugerindo, mas o resultado seria o mesmo.

Vamos mais adiante. Suponha-se que alguém esteja planejando


alguma coisa ruim. Então, certamente, Deus teria de ir um passo adiante
e evitar que ele pensasse coisas erradas, correto? O resultado final é que
Deus não poderia deixar ninguém sequer pensar livremente. Já que nem
todos os pensamentos são pensamentos puros, Deus estaria um tanto
ocupado e nós não estaríamos habilitados a pensar. Assim mesmo, em
que ponto a coisa deveria parar? No nível do assassinato, no nível da
mentira ou do pensamento? Como a sua questão implica, se você quer que
Deus acabe com o mal, então deveria ser consistente e desejar que ele
fizesse tudo em todo o tempo. Assim, não existiria trabalho, e nossos
processos de ―conversão‖, já que insertos num total determinismo, não
teriam nenhum mérito. A vantagem talvez esteja em nos mantermos
virtuosos, quando há opções contrárias. Escolhemos o bem, mas
poderíamos ter optado pelo mal. O mal está no mundo de forma parcial,
justamente porque nós demos lugar a ele, mas certamente porque Deus
na sua soberania o permite e o mantém sob seu controle.

Isto posto, alguém iria nos perguntar: Poderia Deus fazer-nos


perfeitos e ainda assim sermos pecadores? Ele já fez isso: fez os anjos
perfeitos, mas eles pecaram. Ele fez um homem perfeito, Adão, mas ele se
184

desviou. Fez uma mulher perfeita, Eva, mas ela deixou-se seduzir pela
falácia do mal. Deus sabe o que faz. Ele nos fez desta maneira com um
propósito. Nós podemos não compreender este propósito, mas ele conhece
nossa história. Ele tem o direito de permitir o mal a fim de realizar a sua
vontade: veja a cruz. Foi por meio do mal que os homens prenderam e
crucificaram a Jesus. Ainda assim, Deus na sua infinita sabedoria, tornou
este mal em bem. Foi na cruz que Jesus levou os nossos pecados no seu
corpo (1Pd 2,24) e é por causa da cruz que nós podemos ter o perdão dos
pecados, e novo acesso à imortalidade. O mal da cruz foi transformado no
sumo bem da ressurreição. De Jesus e nossa.

Lembram do exemplo bíblico de José, no Antigo Testamento, já


aludido aqui?. Ele foi vendido como escravo pelos seus irmãos. Embora
eles quisessem praticar (por ciúme e inveja) um mal contra o irmão, Deus
transformou isso em bem, para José, para a família, para o Egito e para
todo o Israel (Gn 50,20). Deus é tão grande que nada acontece sem a sua
permissão, e nesta permissão ele descortina o seu plano perfeito. No seu
plano de amor ele usa para o bem aquilo que foi intencionado como mal.
O mal existe, por causa da inveja que o Maligno tem do ser humano.
Também existe por conta da limitação da nossa finitude. Com o mal (que
ele não criou), Deus tem a oportunidade de nos fazer bens maiores. Ele
sempre está no controle da história. A gente é que às vezes não atina
essas realidades.

3. Quem é o autor do mal?

Uma vez que os clássicos da teologia, o magistério eclesial e os


ditames da nossa fé nos dizem, enfaticamente, que Deus não é o autor do
mal, pois sendo ele essencialmente bondade, seria contra sua natureza
criar algo diferente do bem, cabe-nos descobrir, então, para fins de estudo
e docência, aquela origem, pois é indiscutível que o mal existe, e se existe
deve ter causa e autor.

Nosso dia-a-dia está impregnado de mal. Vê-se nos meios de


comunicação, pela rua, em notícias familiares, que alguém matou alguém,
roubou, agiu de forma dolosa e irresponsável, abortou, injuriou, caluniou,
defraudou, agrediu, discriminou, etc. É só olhar para os lados, que se vê
desgraças, tragédias e coisas do gênero. Todas estas atitudes (e outras
mais) denotam a maldade impregnada no cotidiano do povo. Como foi dito,
ad nauseam, no decorrer deste trabalho, algumas dessas ações malévolas
é fácil compreender (compreender sim, justificar não) quanto ao animus do
autor, e quase tudo vai desembocar na liberdade mal administrada. Mas
há males, e volto a falar no dano ao inocente e ao justo, que não têm
explicação teológica nem ontológica. Isto nos mostra que o mal pode ter
raízes lá adiante, metafísicas, etc., mas imputa a nós humanos, pelo
menos se não a autoria, mas uma ponderável responsabilidade de
erradicá-lo, denunciá-lo ou minimizá-lo.
185

Devemos assumir, sim, nossa responsabilidade sobre o mal.


Assumir nossa parcela não equivale a admitir autoria. Assume-se uma
responsabilidade, parcial, não toda, pois sabemos que não somos
responsáveis pelo todo do mal que ocorre neste mundo, e muitas vezes
nem somos culpados, mas vítimas de um determinado processo (mal
físico, moral ou metafísico), do qual o(s) autor(es) está(ão) a salvo na mais
plena impunidade. Quem sabe, até rindo de nós...

É preciso autocrítica para a identificação do mal, da culpa, do autor


e das conseqüências. Às vezes o ser humano, em nome de ideais, projetos,
de uma fé cega ou religiosidade irracional, comete desvios de escrúpulos,
baseados em um atávico complexo-de-culpa, que se instala, não-raro,
indiscretamente, através de meios psicológicos, pressões emocionais,
fanatismo, lavagens cerebrais e coações, geralmente endereçadas ao
inconsciente, nas instâncias da sensibilidade. Quanto mal se cometeu (e
ainda se comete) – a história está aí para atestar- em nome da fé ou dos
princípios religiosos. Os processos de lavagem cerebral, capazes de alterar
até a personalidade das pessoas estão aí, entranhados em muitos
―sistemas‖:

O Dr. Brock Chrisholm, primeiro diretor-geral do United Nations


World Health Organization (OMS) e integrante da seita dos
―iluminados‖, disse, durante uma reunião: ―Para formar um governo
mundial é preciso tirar da mente dos homens seu individualismo,
sua lealdade às tradições familiares, seu patriotismo e seus dogmas
religiosos‖ 223.

A busca do porquê das coisas, das razões do mal (unde malum) não
é a famosa questão agostiniana ―de onde vem o mal?‖ que perpassa todas
as Confissões do Doutor de Hipona? O Ocidente cristão tornou-se,
inexplicavelmente, e é Freud quem detecta isto, no continente em que
mais se sobressai a ansiedade (eu diria até a angústia) da culpa. E não é
raro imputar-se às pessoas, culpas pelos sofrimentos recebidos. ―Está
sofrendo, decerto porque alguma coisa ele fez!‖ Não é isto que às vezes se
escuta por aí, na boca do povo? É bom lembrar, no tempo de Jesus, diante
de um cego de nascença, os interlocutores indagaram:

Mestre, quem foi que pecou para que ele nascesse cego? Foi ele ou
seus pais? (Jo 9,2).

Uma questão desse jaez nos revela e existência de uma cultura de


prêmio/castigo, onde tudo fica condicionado a um ato anterior, e para
tudo tem que haver algum culpado. Não se trata apenas de uma distorção
do judaísmo antigo. Hoje, sempre buscamos os culpados e as causas:
Fulano morreu! Morreu de quê?

223
R. RUITER, O Anticristo. Poder oculto por trás da Nova Ordem Mundial. Ed. Ave-Maria, 2005; Cf. P.
ROBERTSON, The New World Order – It will change the way you live. Dallas, 1991
186

Jesus responde aos discípulos, sobre a inexistência de culpa no


caso do cego de nascença:

Não foi ele quem pecou, nem seus pais, mas ele é cego para que nele
se manifestem as obras de Deus (v. 3).

O desconhecimento do projeto de Deus, instaura uma teologia da


culpa, do medo. No interior do Rio Grande do Sul se diz ―teologia do
cagaço‖, onde tudo serve para atemorizar. Assim, é comum a justificativa
do mal, através de um castigo. À mulher do ―malandro‖ ou à criança
traquinas, se costuma dizer: ―sabem porque estão apanhando... se
apanham é porque mereceram!"‖ Estoicamente, alguns, na descoberta de
um mal (em geral físico), dizem: ―eu mereço!‖. A tradição ocidental sobre a
liberdade e a responsabilidade corre o risco, como se viu, de derivar para a
culpa:

A insistência da culpabilidade nos fez entrar num ―universo de


culpa‖, donde uma ―pastoral do terror‖ que embora seja ao mesmo
tempo e paradoxalmente misericordiosa, causou os estragos que
conhecemos 224.

Há outras tantas teorias. Numa delas, o mal teria sua origem na


disputa material entre classes que radicalizam a busca de seus objetivos.
Segundo alguns exegetas, o conflito fratricida entre Caim e Abel retrata,
entre outras coisas, uma disputa entre lavradores e pastores. Hoje, o
espectro da violência brota do uso diferente da terra, como bem de
produção, da forma como ela é explorada, e a inconformidade sobre esse
uso, de um dos agentes.

Diante da indefinição da origem do mal, surge uma pergunta


oportuna, que desde o princípio ficou para ser pensada: é possível
identificar uma relação entre o mal e o caos inicial? Depois da perda do
paraíso, o casal é expulso, a terra se torna agreste, a água difícil, e tudo
culmina em um homicídio. Não parece um retorno ao caos primevo? Essas
perguntas estão certamente entre as mais importantes que o ser humano
possa se fazer. De fato, o mal é a outra face da realidade e a idéia que
tivermos dele constituirá parte considerável da idéia que construiremos de
toda a realidade. Ele precisa, pois, ser entendido para que se possa
entender o mundo. E também para que se possa limitá-lo de maneira mais
eficaz. Há casos em que, por vergonha, medo ou temor de exclusão,
algumas pessoas têm essas dúvidas mas não são capazes de verbalizá-las.
Durante a História várias respostas foram dadas às questões sobre o mal.
Em geral elas se apresentaram em formas bastante negativas, e como um
véu sombrio cobriram as existências dos homens. Moldaram seus atos e

224
J. DELUMEAU, La péché et la peur: la culpabilization en Occident. Paris, 1983.
187

atitudes em cada momento presente. E também suas expectativas em


relação às suas próprias pessoas, à Natureza e a toda a Humanidade.

Sempre que se fala em mal sofrido, em justo sofredor ou vítima


inocente vem-nos à mente a figura bíblica de Jó. A história de Jó, incluída
entre os livros Sapienciais, é uma parábola, escrita por volta do século VI
a.C., na época em que Israel estava desterrado na Babilônia. Desconhece-
se seu autor. O objetivo do livro não é enfocar o problema do mal, nem o
sofrimento do inocente e muito menos a ―paciência de Jó‖. O tema central
do livro discute a natureza da relação entre o homem e Deus, ao estilo
judaico, de uma religião de retribuição, onde Deus paga o bem com o bem,
e o mal com o mal. Ao contrário dessa idéia, o autor inova, demonstrando
que a religião verdadeira é mistério de fé e graça. O homem entrega-se a
Deus, e este, vindo a seu encontro, envolve-o com sua amizade e seus
dons.

Mesmo assim, a história, antes dos aspectos da fé e da confiança,


atemoriza por seus ingredientes às vezes inexplicáveis daquilo que alguns
biblistas chamam de ―joguinho‖ que se desenvolve entre Deus e Satã. No
livro, Satã aparece como o lado sombrio de Deus (Jung diria o alter ego),
quando é representado como companheiro dos anjos, amigo e interlocutor
de Deus. Por causa desse insólito diálogo, que as desgraças vão se abater
sobre Jó. Satã (adversário, acusador, aquele que testa) acusa Jó, perante
Deus, de ser interesseiro: só é fiel porque Deus o encheu de bens. Para
provar que Satã está errado, Deus permite que ele cubra o inocente Jó de
incalculáveis desgraças. Embora a história de Jó seja uma ficção (uma
parábola), há alguns desencontros doutrinários, pois parece que o autor
desconhece a onisciência de Deus, uma vez que, enxergando à frente, ele
sabe(ria) da fidelidade de Jó, sem necessidade de provar coisa alguma ao
Diabo.

A respeito dessa dualidade bem/mal que os povos primitivos viam


nas atitudes de Deus, há um texto interessante, do grego N. Kazantzakis:

Alguém veio. Decerto foi Deus. Deus... ou foi o Diabo? Quem pode
separá-los? Eles trocam suas faces. Deus às vezes se torna silêncio
e escuridão; o Diabo, luz total, e a mente do homem se torna
confusa 225.

A despeito de nossa ignorância a respeito do mistério do mal, a


relação paterna de Deus com o ser humano permeia toda a Escritura:

Dêem ouvidos a mim, venham para mim, me escutem, que vocês


viverão. Farei com vocês uma aliança definitiva, serei fiel à minha
amizade com Davi (Is 55,3).

225
In: The last temptation, Creta, 1955
188

Entretanto, como costumam dizer os jornalistas, há uma pergunta


crucial que não quer calar: Por que Deus não criou um mundo perfeito que
nele não pudesse existir o mal? De acordo com seu poder infinito, Deus
poderia criar algo melhor. Todavia, na sua sabedoria e bondade infinitas,
ele quis livremente criar o mundo em estado de caminhada para sua
perfeição última. Este dever comporta, no desígnio divino, juntamente com
o aparecimento de determinados seres, também o desaparecimento de
outros, com o mais perfeito também o menos imperfeito, e com as
construções da natureza também as destruições. Deus não é o autor do
mal, e por isto (ou mesmo assim) poderia ter dado um jeito de erradicar os
efeitos do mal. No aspecto ontológico vemos que, juntamente com o bem
físico existe, paralelamente, o mal físico, enquanto a criação não houver
atingido a sua perfeição. São Paulo traz alguma luz para este argumento:

Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam (Rm 8,28).

Pois, no meio do debate, de uma aula, ou conferência, alguém pode


levantar a mão e proferir a questão crucial: por que existe o mal e o
sofrimento no mundo? Esta questão, por complexa, aponta para aquela
indagação, do tipo se existe um Deus bom, então o mal não deveria existir,
já que Deus, sendo Todo-Poderoso, poderia eliminá-lo. Para ingressar na
órbita desse debate onto, áxio e teo-lógico, nós precisaríamos responder
duas questões: primeiro, o que é o mal? É tudo que é contra Deus. Isto é,
qualquer coisa moralmente ruim ou errada. O que é injurioso, depravado,
egoísta ou mau.

Alguns exemplos compreensíveis, bem perto de nós, homens do


século XXI, poderiam ser assassinatos, estupros, roubos, corrupções e
enganos; segundo, se nós queremos que Deus aniquile o mal, nós
queremos que ele aniquile todo o mal ou só uma parte dele? Sim, porque
há males que produzem bem logo ali adiante... E se eliminássemos todo o
mal, ficaríamos sem esse bem. Como é que vai ser?

Assim, a limitação original de toda a criatura faz parte intrínseca do


ato criatural. Não significa disso deduzir que Deus queira e atue em
vista do mal. Pelo contrário, Deus age e quer o bem e tudo o que faz
tende para o bem. Porém, como ele não pode querer um círculo
quadrado, pois seria contra o seu entendimento, assim também não
pode não fazer o mundo sem que este seja essencialmente limitado
no ato mesmo da criação. E essa limitação é pois o que se entende
por mal metafísico. A imperfeição original é a condição de
possibilidade de todo mal. Isso poderia fazer pensar que Leibniz vai
na linha de Plotino que afirma ser a matéria a fonte da possibilidade
do mal 226.

226
G. ZAMPIERI, op. cit.
189

Diante da ameaça do mal, da morte, do erro ou da culpa,


estabelece-se um jogo-de-empurra; todos querem mascarar o fato;
ninguém quer assumir a autoria:
Adão: ... a mulher que me deste...
Eva: ... foi a serpente!
Serpente: ... não, ao contrário...
Caim: ... não sei! acaso sou guarda do meu irmão?
Davi: ...quem é este homem?
Marta: ... se estivesses aqui meu irmão não teria morrido!
Chefe: ... a culpa é dos subordinados...
Alguém: ... se ele não tivesse apanhado aquele avião...

Há sempre uma evasiva, uma desculpa, alguém a culpar. O ser


humano é pródigo em fugir da responsabilidade, atribuindo a outrem a
culpa pelos seus erros.

Como foi observado de maneira mordaz, não foi por acaso que o
―romance policial‖ nasceu no Ocidente, onde o que não conta é a
vítima, mas o culpado 227.

A pergunta que se coloca neste início de século XXI é: as idéias


tradicionais, como certos ensinamentos protelatórios da teodicéia, por
exemplo, poderiam ainda hoje ser consideradas válidas? O surpreendente
avanço das ciências e sobretudo do saber humano, realizados nos últimos
tempos não estariam possibilitando e, mesmo, exigindo de nós uma nova
compreensão do mal? Sabe-se que, em muitos casos, a ocorrência do mal
é fruto de uma liberdade mal administrada.

4. Como explicar o sofrimento do inocente?

Esta é uma das questões mais complicadas, o legítimo calcanhar de


Aquiles da filosofia, da teologia e de todas as teodicéias. Mesmo que não se
queira, é imperioso retornar ao assunto e questões correlatas. Se os Livros
Sagrados de todas as religiões apregoam que o mal é um castigo, uma
retribuição ao mal cometido, como explicar – especificamente às vítimas –
os porquês do sofrimento do inocente. Diante do mal, da tragédia, nossa
primeira atitude é perguntar: quem é o culpado? É a primeira questão que
levantamos. Nesse particular, a teologia e filosofia ocidental adquiriram
uma consciência própria do mal/desgraça e estabeleceram um método
discursivo a partir dessa consciência. Esse discurso manteve-se
secularmente centrado no binômio mal/castigo. O mal que nos afeta – na
impossibilidade de um conceito melhor – é reputado como ―castigo dos
céus‖. O mal/desgraça (físico) que vem ―de fora‖ (doenças, guerras,

227
A. GESCHÉ, op. cit.
190

acidentes, terremotos, etc.) acabou fornecendo à nossa civilização uma


chave-de-leitura essencialmente fatalista dos fatos: ―isto ocorreu porque
‗tinha que ser assim‘, a gente mereceu!‖.

As penas do mal são aceitas como algo devido e merecido. É aquela


história do ―o outro pode nem saber porque está batendo, mas ele sabe
porque está apanhando‖. É o chamado malum poenae (mal da pena) que
vem ―de cima‖, e por isto torna ―razoável‖ o castigo sofrido. Ainda mais se
for visto como ―a vontade de Deus‖ ou ―um castigo dos céus‖.

Contudo, a partir da consciência do ―mal merecido‖, as teodicéias


ocidentais ocultaram o sofrimento do inocente. O mal não é mais
―imerecido‖. Muito ao contrário: ele é a sanção de uma culpa, visível
ou invisível. Faltou assim um encontro com o mal incompreensível e
inocente com a desgraça. No fundo, nesse tipo de visão, não há
outro tipo de mal senão o culpável 228.

No livro de Jó – voltamos a falar nele - o problema do sofrimento do


justo e do inocente é tratado de maneira poética. Embora se trate de uma
parábola, uma leitura alegórica escrita com um fim determinado, o autor
mostra que Jó é um uma pessoa justa, homem temente a Deus (1,1).
Mesmo assim, Deus permite que Satanás cause terrível sofrimento a ele,
por meio de desastres e doenças, para testar sua lealdade. Satanás, no
papel de ―promotor‖ (acusador) quer provar a Deus que a fé de Jó é falsa
(2,3-7). A histórica de Jó é temática no estudo do mal. Sob intenso
sofrimento, Jó discute com seus amigos sobre o sofrimento dos inocentes.
Quase no final, Deus entra no debate e responde:

Quem é esse que escurece o meu projeto com palavras sem sentido?
Se você é homem esteja pronto; vou interrogá-lo e você me
responderá. Onde você estava quando eu colocava os fundamentos
da terra? Diga-me, se é que você tem tanta inteligência! (38,2-4).

Quem critica a Deus irá responder? (40,2a).

Deus responde dizendo a Jó que a sua sabedoria e poder estão além


da compreensão humana. É o adensamento do mistério divino. O homem
também não mantém controle sobre o universo: suas virtudes não
garantem a felicidade sobre a Terra. Jó humildemente encerra o debate:

Eu reconheço que tudo podes e que nenhum dos teus projetos fica
sem realização. Pois bem, eu falei sem entender, de maravilhas que
superam a minha compreensão. Por isso, eu me retrato e me
arrependo, sobre o pó e a cinza (42,2.3b.6).

228
A. GESCHÉ, op. cit.
191

Aqui a Bíblia lembra que devemos aceitar os sofrimentos e confiar em


Deus. Mais adiante, e os evangelhos no-lo revelam, Jesus Cristo responde
desta forma na cruz. Ele aceita o sofrimento, mergulhando no mais
profundo do mistério, sabedor que lá adiante está o projeto do Pai. Só a
causa do sofrimento do inocente, daquele que não concorreu em nada
para o efeito danoso, que fica, muitas vezes, sem uma resposta que
satisfaça. Que não se diga, em momento algum, que esse ou aquele evento
foi ―vontade de Deus‖. Seria a associação de uma blasfêmia com uma
heresia.

Deus quer o homem feliz. Para isto ele nos deu seu Filho (cf. Jo 3,16).
O que, volta-e-meia, foge à compreensão é a questão em que, sendo Deus
Todo-Poderoso e ciente de tudo, por que ele não impede certos males?
Teria o mal sua origem na liberdade? Nem sempre... No episódio, por
exemplo, do turista em férias que morreu, engolfado por uma onda,
gigantesca e imprevisível, não ocorre o componente liberdade.

Deus criou/cria tudo por bondade e por absoluta liberdade em fazê-


lo. Por seu poder ele pode criar coisas novas a qualquer instante.
Referindo-se à Criação, Santo Tomás de Aquino, para refutar, talvez, os
erros da predestinação de Scotus Erígena († 877) e da dialética do sic et
non de Abelardo († 1142), insiste na liberdade de Deus ao criar, bem como
na conseqüente contingência do que foi criado 229. Diante do mal, das
desgraças inexplicáveis e às vezes injustas, até o crente duvida,
desespera-se e questiona. Mesmo que a gente seja uma pessoa de fé,
nosso lado filósofo às vezes nos faz pensar. Não se trata de acusar Deus
ou negar sua existência, mas como humanos, colecionamos, com
coragem, questões, próprias ou escutadas da boca de terceiros, em geral
pessoas inocentes, assoladas pelas tragédias do cotidiano. Tragédias estas
que ficam, na maioria das vezes, sem explicação.

A verdade é que o ser humano nunca esteve convenientemente


preparado para esse (re)conhecimento. As religiões, as filosofias ou
sistemas de pensamento tentam há séculos mostrar caminhos, colocar
limites e impor padrões, nem sempre com a eficácia esperada. A
progressiva escalada do mal, em todos os segmentos da sociedade
humana atesta a assertiva. Ora, se o homem não é absolutamente capaz
de reconhecer a necessidade ética de suas ações, pode-se dizer que suas
decisões não são integralmente livres. E, em alguns casos, pelo aspecto da
contingência e da fragilidade, a liberdade torna-se para ele aquela
armadilha que, à saciedade, mencionamos aqui.

Nos acidentes, nos desastres ecológicos, muitos inocentes perdem a


vida. A pessoa foi ali para se divertir, curtir umas férias e acaba morrendo
inexplicavelmente, vítima de um capricho da natureza, como ocorreu com

229
In: S.Th I, q. 19, a.3
192

o Tsunami da Ásia, ou com o furacão Katrina, em New Orleans. As vítimas


ou familiares delas têm várias visões sobre esses acidentes:

 foi ―vontade de Deus‖ (fatalista);


 má sorte dos que estavam lá (racionalismo pessimista);
 técnica (placas tectônicas que se moveram);
 supersticiosa (foi um ―aviso‖);
 político-religiosa: ―o Katrina foi a ‗mão de Alá! – disse um mulá
afegão – um castigo pelas crueldades que os americanos têm
infligido aos países do Islã‖.

O ateu ou o descrente vai fundo: onde estava a ―misericórdia‖ que


permitiu? Ou, ―se‖ Deus é onisciente, por que não previu, não evitou, ou
poupou tantos inocentes? É a mesma lógica ilógica das tragédias gregas
(Antígona, Édipo-rei, Medéia): por que as divindades do Olimpo, que tudo
vêem, não impediram o mal?

5. Miséria, fome e exclusão também são faces do mal

Quando andamos pelas ruas, cansamos de ver opulência e sinais


exteriores de riqueza de tanta gente que circula por aí, indiferente da
miséria alheia. Vendo-os, seria de perguntar: por que existem tantos que
têm fome, não têm um teto para se abrigar, sem saúde, infelizes,
excluídos? Seguramente porque algum princípio ético mais elementar foi
rompido, algum juízo de consciência foi alterado e – com isto –
desenvolveu-se um processo equivocado de escolha, houve mais instinto e
menos consciência, mais interesse e menos afetividade, mais acumulação
e menos participação. A finalidade de vida foi desvirtuada, e o mal tomou
o lugar do bem. Não é porque é escolha que alguma ação assume um valor
em si. Precisa ser uma escolha com valor; ética.

A concepção que Hobbes tem do Estado, distancia-o da maior parte


dos filósofos políticos. Uma análise, mesmo superficial, nos revela que Th.
Hobbes é partidário do poder absoluto. Embora reconheça nesse
absolutismo um mal, o filósofo entende que só esta forma de governar é
capaz de conter outros males maiores. Sob esse ângulo de visão, Hobbes
não via solução para os conflitos sociais a não ser pela entrega de toda
autoridade (civil, social, econômica e religiosa) ao soberano absoluto, a
quem ele chama de Leviathã. Caso contrário, os poderes sociais se
converteriam em um mal capaz de ameaçar a paz civil. Mesmo assim,
Hobbes reconhece que o poder absoluto é perverso, pois dimana de um
―contrato social‖ equivocado, com a transferência do poder para as mãos
do Estado. Nessa discordância, o filósofo vê na ambigüidade do poder,
traços, ora do bem ora do mal.
193

Cada homem deve procurar com esforço a paz e bem, enquanto tiver
esperança de adquiri-los. Quando não, deve procurar e usar todos
os meios e vantagens da guerra 230.
No pensamento de Th. Hobbes vemos referências ao Leviathã, que
abarca vários campos do social, como uma instituição artificial, feita pelos
homens que têm sede de poder e riqueza, onde homo hominis lupus (―o
homem é o lobo do homem‖), e por isto impera entre os homens o
egoísmo, a guerra e as contendas.

A idolatria (do poder, prazer e riqueza) é o mal que devasta as


sociedades humanas. Quem pratica uma ação ilícita, imagina que comete
uma falta simples, uma vez que busca apenas satisfazer seus interesses,
como quem gosta de ―levar vantagem em tudo‖. No entanto, a bem da
verdade, essa ―falta simples‖ está eivada de outras conseqüências, que vão
gerar atos de maldade, como os que são inspirados/praticados por quem
segue o Maligno. No campo social, o mal exclui o homem, a fim de fazê-lo
perecer, física, moral, social e espiritualmente. Na evolução assimétrica da
pobreza, por exemplo, encontramos aquela perversão já denunciada pela
Igreja, onde ricos tornam-se cada vez mais ricos, às custas dos pobres,
cada vez mais pobres. A mão-invisível, que personifica o mercado que tudo
quer, na visão do economista escocês Adam Smith († 1790), opõe-se à
mão-visível do faminto que mendiga o bem.

Há dez ou quinze anos, via-se o chamado neoliberalismo (a


exacerbação do capitalismo) e a globalização como prefiguras do mal
político-econômico que ameaçava as populações mais pobres. Aos poucos
aquilo foi se tornando uma realidade massacrante e irreversível, a ponto
de ninguém mais denunciá-la. Até as Igrejas cristãs, tão engajadas nessa
denúncia, lá pela década de 90, arrefeceram e decidiram calar, buscando
um discurso mais litúrgico, espiritualizado e menos sociopolítico. Por
causa disto, sem oposição, o mal cresceu ainda mais, sem perspectivas de
retroceder.

A presença do mal afigura-se, no mundo todo, mas especificamente


na África, na América Latina e mais ainda no Brasil, não como aqueles
pecados usuais (matar, roubar, cometer adultério), mas através de um
mal social, em que não são as armas que matam, mas a fome, a miséria,
as doenças, a ignorância. Esta forma de mal é mais sutil, seus
argumentos mais sofistas afirmam que a exclusão é necessária para o
progresso. De outro lado há quem diga que a exploração é que exclui e
mata É nesse terreno escorregadio que vamos instalar agora nossa
pesquisa. Por que os pobres sofrem? Por que passam fome? Por que seus
idosos e crianças morrem nas filas dos hospitais, sem assistência? Por
que o acesso do filho do rico é facilitado nas escolas? Por que os barracos
da periferia, volta-e-meia incendeiam?

230
O Leviathã, op. cit.
194

A (re)descoberta da defesa dos mais fracos é um assunto que, de


uns tempos para cá, silenciou no seio das Igrejas cristãs. Parece que nos
esquecemos dos pobres, de suas dores, seus males e suas misérias. Ou,
cansados de um pretenso apostolado, nos deixamos seduzir por uma
espiritualidade menos discernida e pouco encarnada. Quem sabe? Numa
atividade eclesial, em um desses movimentos que agregam cristão da
classe-média, escutei: ―Ah, eu gosto mesmo é de orar e ler a Bíblia; aos
pobres Deus proverá o necessário!‖. Isto é mais ou menos o que se escuta
por aí...

O mal da fome, do desemprego, das doenças, da falta de escolas e


hospitais é um mal físico (oriundo de um mal moral: o pecado) que conduz
a quem dele padece, a um tipo de mal moral, que é a decepção, a
amargura, a falta de fé e – não-raro – à violência social. Cansados de
sofrerem, com as portas que lhes batemos no rosto (às vezes pela pressa
de ir à igreja), os excluídos vão perdendo raízes e referenciais, e hoje – por
culpa de nossa omissão (que é um mal!) –incharam as seitas. E nós,
―caridosos‖ e piedosos, dizemos que nas outras Igrejas só há oportunistas.
Esquecemos de mencionar que lá eles estenderam a mão que nós
negamos.

Já se viu que não se pode professar fé no Deus revelado por Jesus e


se manter insensível ao sofrimento dos irmãos 231.

O grande desafio que os tempos modernos impõem aos cristãos é


formular uma crítica ao mal social, defendendo a vida, utilizando como
modelo uma matriz pedagógica de inspiração cristã. A linguagem religiosa
é nitidamente marcada pelo simbolismo e pela esperança, e entroniza o
Sumo Bem (Deus) como centro do discurso e da práxis. Conscientes da
extensão do que o mal provoca entre os pobres, fracos e oprimidos, como
miséria, fome, exclusão e humilhação, muitos cristãos têm-se dedicado a
obras assistenciais, levantando a voz, denunciando os descaminhos dos
sistemas e das estruturas. Isso evidencia que estas pessoas têm
consciência dos sofrimentos dor irmãos, e querem minimizar seus males.
O fato é que o problema, em geral é mais profundo do que imaginamos. É
preciso comprometer, contaminar, ligar esforços, entrar de cabeça no
problema. Afinal – como dizia Dom Helder,

Da praia não se salva ninguém...

De fato, quem quiser salvar vai ter que entrar na água e arriscar-se,
pois é justamente essa ação conjunta e discernida que falta aos que
querem enfrentar o mal da sociedade. Os sistema socioeconômicos, com a
unção da política viciada, criaram um cada-um-por-si, onde o deus é o
mercado, e a celebração é o consumo. Quem é pobre quem não pode
comprar num shopping, não matricula filhos em escolas particulares, não

231
J. M. SUNG, Se Deus existe, por que há pobreza? A fé cristã e os excluídos. Ed. Paulinas, 1995.
195

tem dinheiro para se associar em ―plano de saúde‖. Pois quem pode


consumir, é dispensável, dentro da visão contextual da sociedade de
consumo.

Sob essa premissa, em que só quem tem dinheiro é o que vale,


pessoas são desrespeitadas, excluídas, deixadas à margem. Como uma
verdadeira ―sinagoga de Satanás‖, certos segmentos de nossa sociedade
desvalorizam a vida daqueles que não servem para azeitar a máquina da
economia e das grandes finanças.

Diante deste outro tipo de mal (moral), é necessária uma visão ético-
crítico-teológica sobre a miséria em que alguns são jogados, por seus
semelhantes. Descartável, o pobre é minimizado, passa a ser considerado
―gentinha‖, ―pé-de-chinelo‖, ―bagaceira‖, ―vagabundo‖, que só sabe pedir,
fazer filhos e querer a terra dos outros. Esta forma de pensamento,
oriunda de uma ideologia elitista, tem origem econômica, a partir do
capitalismo (selvagem), do latifúndio, dos bancos e das empresas
transnacionais.

A crueldade do mal social é tão grande que os arautos dessa


avalancha maléfica chegam a dizer que ―quem não produz não tem
direitos, quem não tem direitos não pode exigir, quem não pode exigir deve
morrer, pois não contribui em nada para a sociedade‖. Neste aspecto,
esse discurso acaba convertendo-se em atitudes práticas, não para acabar
com a pobreza (como seria lícito), mas para ―acabar com os pobres‖. Se
alguém duvida da conjunção maléfica do sistema, observe esse projeto
mundial para eliminar os pobres:

 falta de saúde (morrem nas filas do SUS, dos transplantes, dos


remédios, etc.);
 falta de educação (a pessoa sem escolaridade é candidata à
violência das periferias);
 a falta de emprego e oportunidades encaminha à marginalidade;
 falta de segurança (as ―chacinas‖ só vitimam negros e filhos de
pobres) e violência policial;
 até o lixo, no qual muitos buscam alimentos, passou a ser
reciclado para dar mais lucro: fecharam até a lanchonete do
miserável 232.

Há no poder econômico, na ordem social excludente, no acúmulo


desmedido da riqueza, um ponderável instrumento do mal. O absurdo de
confiar no poder que vem da riqueza, é a fonte de muitos aportes do mal
na pós-modernidade. Esses fetiches são como um lixo, fruto e causa do
mal, que brota do coração do egoísta e do usurário.

232
Este assunto está desenvolvido em meu livro Ética Cristã e Compromisso Político. Ed. Ave-Maria, 1997.
196

Hoje, tornou-se inquestionável o papel de maléfica exclusão que


desempenha o mercado na vida da população. Os mecanismos de
proteção, monopólio, subvenção, congelamento de preços, barreiras
alfandegárias, são geralmente nocivos à saúde do povo, que acaba
pagando um preço muito alto para subsidiar a minoria. Isto sem
falar nos privilégios e na corrupção 233.

O modelo social nos países pobres (inclui-se aí o Brasil, que não é


pobre, mas é onde se pratica a mais perversa distribuição assimétrica, de
renda e propriedade) é excludente e multiplicador do mal. cerca de 65% de
nossa população está fora do mercado de consumo. Há, em certas
campanhas filantrópicas, uma visão bitolada, quando não hipócrita e
discriminatória: vou ajudar a criança, pois ―ela não tem culpa!‖. E quem
tem culpa? os pais, por terem filhos? ou a família, por ser pobre? É a
questão da análise moralista (e moralizante) da vida dos outros. Na Bíblia,
o profeta denuncia os que praticam o mal:

São vocês os inimigos do meu povo: de quem está sem o manto,


vocês exigem a veste; a quem vive tranqüilo vocês tratam como se
estivesse em guerra; vocês expulsam da felicidade de seus lares as
mulheres do meu povo, e tiram dos seus filhos a liberdade que eu
lhes tinha dado para sempre. Vamos! Andem! Porque este não é
mais um lugar de repouso. Por um nada vocês exigem uma hipoteca
insuportável (Mq 2,8ss).

Esta denúncia é uma súmula acusatória contra todos os que


praticam o mal, violam o direito e defraudam a esperança. Na Bíblia,
desde o Antigo Testamento, há críticas e acusações àqueles que oprimem
o mais fraco, o órfão, a viúva, o doente e o sem-terra. Tais crimes
constituem pecados que clamam aos céus (cf. Eclo 34, 18-22). Quando
praticamos (ou nos omitimos) a corrupção social, desvios de verbas
públicas, tráficos de influências, esquemas de propinas, por exemplo,
estamos assassinando crianças, idosos, doentes, pois a verba
criminosamente desviada, deixa de atender o hospital, a maternidade, a
UTI neonatal, a creche, o asilo, a merenda escolar, etc. A grande distorção
desses regimes, orientados por critérios economicistas (como o Brasil, por
exemplo) é que se privatiza o lucro e se socializa o prejuízo. Sobre essa
maldade, há um texto, pequeno porém incisivo, do jesuíta peruano G.
Gutiérrez:

O mal é contrário ao projeto de Deus; ele é um atentado ao desígnio


de vida de Deus 234.

O mal aparece, no aspecto socioeconômico ou político, no fato de


muitas pessoas sacrificarem-se, viverem mal, apenas para ter mais, para

233
P. N. THAI HOP, Pobres e excluídos. Neoliberalismo e libertação dos pobres. Ed. Santuário, 1995.
234
In: O Deus da vida, op. cit.
197

juntar. Trata-se de um escandaloso ―sacrifício‖ que se converte em


sacrilégio, na proporção em que o avarento é mau para si próprio e para
os outros. A distorção proveniente do mau uso dos recursos, gera miséria
e marginalização. Esta é uma forma sociopolítica entronizada há mais de
um século na América Latina, e que apesar de campanhas, denúncias e
congressos, não se logrou um milímetro de avanço no sentido de uma
depuração ética. Sobre isto, questiona-nos o teólogo latino-americano:

Sobra-nos ainda alguma utopia? Ou resta-nos apenas o gosto


amargo de mais uma decepção? 235

Quando se fala na virulência do mal, a auditórios culturais,


religiosos ou universitários, o que mais vem à cabeça é a morte, assaltos,
estupros, tragédias da natureza ou mesmo o Diabo. Será só esta a faceta
do mal que devasta a sociedade humana? O mal social é visto em duas
versões: a ação negativa e a omissão. Como arautos desse mal, súditos da
mentira, encontramos:

 boa parte da mídia nacional (interesses de audiência);


 uma significativa parcela dos congressistas (interesses políticos e
econômicos escusos);
 os ―institutos liberais‖ (instrumentos ideológicos da elite, que
preconizam a ―competência‖, a ―qualidade total‖, a ―escolaridade
acima do terceiro-grau‖ além da ―depuração etária: profissionais
entre 25 e 35 anos) ;
 o modelo universitário nacional (reproduz a cartilha das elites e
do poder econômico).

Insistem os ideólogos neoliberais, através de premissas sofistas, em


querer demonstrar que o mercado – mesmo que nocivo à saúde
socioeconômica da população, que sempre acaba ―pagando a conta‖
– é o caminho para a prosperidade. Só deixa de dizer que essa
prosperidade é de uma minoria, e mesmo assim, quando da
ineficiência do empresário, seja do ramo bancário, industrial ou
rural, o povo é chamado a assumir, de uma forma ou de outra, o
prejuízo, incentivando, desta forma, a incompetência, a impunidade,
o conservadorismo, o laxismo e a corrupção 236.

Afogado pelo mal, que pode ter vários nomes, o empobrecido entra
em uma atmosfera negativa, que interfere não só em sua vida biológica
(qualidade de vida) quanto na espiritual (perda da fé e da esperança). Ele
fica pobre para o outro enriquecer:

235
J. M. VIGIL. La ética del hombre latino-americano y Dios. Barcelona, 1995.
236
A.M. GALVÃO, Crise da Ética, - O neoliberalismo como causa da exclusão social no Brasil. 4a, edição. Ed. Vozes,
2002
198

A riqueza também é resultado de uma ação humana. Cai-se no mal


da idolatria quando se põe o ouro e a prata acima de quem os fez,
deixando-se seduzir pelo logro e pela malícia de sua própria
produção. O dinheiro torna-se assim um deus que escraviza quem o
fabricou. O fetichismo do dinheiro é idolatria e veneração do
antideus 237.

Na política constata-se práticas de opressão, o mal social em má


administração do dinheiro público. Há nisso um desrespeito ao cidadão e
uma perversão ao mandato outorgado pelo povo. Quando um desonesto,
governante, legislador ou funcionário, deixa-se corromper, apropriando-se
ou desviando o dinheiro público, ele é o paradigma do mal, pois em algum
lugar alguém pode morrer por causa de uma verba ou recurso que não
chegou onde devia. Igualmente, um magistrado que julga contra a justiça
(já não se fala na lei, que fruto de legislativos sob suspeita, pode ser
injusta), é capaz de praticar um mal irreparável

6. O bem e o mal: uma difícil convivência

Primeiramente, devemos considerar a essência do mal. Muitas


correntes afirmam a existência de dois tipos de mal: o mal moral e o mal
físico. O mal moral é o pecado voluntário; já o mal físico, é um dano
natural. Exemplos de mal moral são aqueles vinculados às más ações (o
pecado), como os assassinatos, o adultério, a fornicação, o roubo, a
feitiçaria, o aborto, etc. 238. Vimos aqui que a maioria dos especialistas
reconhece a existência de um terceiro tipo de mal: o metafísico. Como
exemplos de mal físico temos, a fome, as doenças, os desastres naturais e
a morte. Vemos, então, que o mal não é nada em si mesmo, mas a
ausência de alguém que deveria estar presente, como, por exemplo, o ódio
que nada mais é que a ausência do amor. Assim, Deus não cria o mal,
pois o mal não é uma coisa a ser criada; o mal é uma imperfeição,
ausência ou vazio na criação de Deus.
Analisemos, então, o mal moral, que pode ser assim expresso: ―Se
existe um Deus bom, então por que Ele criou pessoas moralmente más?‖.
Para compreendermos esta matéria, devemos entender que Deus não
criou pessoas más (Gn 1,26-31). Sendo todo sabedoria e amor, Deus criou
compulsoriamente pessoas que desejam voluntariamente ser pecadoras,
porém com inteligência e atitudes diferentes. Deus nos criou com o dom
do livre-arbítrio, a habilidade de livremente optar em aceitá-lo ou rejeitá-
lo. Podemos, assim, optar por sermos pecadores – rejeitando Deus –
desobedecendo-o intencionalmente. Esta rejeição, por sua vez, é um vazio
no plano que Deus fez para nós.

237
G. GUTIÉRREZ, O Deus...op. cit.
238
Didaquê, 2,2
199

Os místicos medievais costumavam ensinar que Deus quer que o


amemos. Isto está no primeiro mandamento da Torá. No entanto, sem o
livre-arbítrio, nós não poderíamos amá-lo com sinceridade. Não podemos
ser forçados a amar alguém... Se Deus nos criasse sem o livre-arbítrio,
seríamos máquinas vivas e não feitas segundo sua imagem e semelhança.
Logo, Deus permite o mal moral como extensão do livre-arbítrio que ele
nos dá. Desta forma, o mal moral que existe no mundo é resultado da
nossa própria escolha! Estas são sentenças discutíveis, pois se o nosso
Deus sabe, antecipadamente, o que vamos fazer (a onisciência), nossas
ações já foram conhecidas por ele antes de acontecerem. Se conhecidas,
há um fatalismo. Se há fatalismo, não podendo escapar dele, não há
liberdade.

Podemos analisar agora o mal físico, que pode ser expresso assim:
―Se existe um Deus bom, por que existe dor, sofrimento e morte no mundo?‖
Talvez uma versão mais grave desta pergunta seja: ―Se existe um Deus
justo, por que tantas pessoas boas e inocentes sofrem?‖. A partir daqui as
respostas passam a ser menos eficazes. Ora, dirão, o sofrimento serve a
um propósito no mundo material. A dor retarda os danos em nossos
corpos. Eu não coloco a mão no fogo porque conheço o sentimento da dor;
a dor causada pela angina nos adverte de um ataque cardíaco iminente; o
atleta enfrenta sofrimentos físicos extremos para disciplinar seu corpo a
garantir uma melhor performance nos eventos esportivos, de forma que,
sem dor também não há ganhos. Logo, o sofrimento enfrentado por
pessoas boas não soa como um total absurdo... será?

O mal é uma força nociva, contrária ao bem, e a tudo que é


organizado. O mal que se comete contra a pessoa é fruto da ambição, da
violência, do desrespeito, do egoísmo e do individualismo. Contra a família
há diversos tipos de males: o divórcio, o aborto, a limitação irracional de
filhos, e outras expressões da sexualidade, como o adultério, o
homossexualismo, a pornografia e outros. Contra a sociedade, temos o
enfraquecimento da família e das instituições. A educação é agredida
pelas tantas ―reformas do ensino‖ de cunho politiqueiro e mercantilista,
descaso e sucateamento, além das danosas ―mensalidades escolares‖. No
campo da saúde o mal aparece pelas deficiências orçamentárias, pela
perversão da medicina pública, pelo sucateamento de hospitais, pela baixa
remuneração de alguns serviços, etc. No campo das atividades do Estado,
temos a corrupção, a inércia, a má qualificação funcional, e a descrença
popular em torno da eficácia técnica e moral dos Poderes da República. A
dicotomia do bem e do mal, na antigüidade era representada por uma luta
insana entre as duas facções, onde o bem tinha feições celestiais,
enquanto o mal era tipificado por monstros (Leviathã, Behemot, etc.).
Nesse confronto, o homem mostra-se incapaz de definir/decidir sozinho.
Talvez tenha esquecido que Jesus prometeu:

Estarei com vocês todos os dias... (Mt 28,20);


Enviarei o Paráclito que vai ajudar, esclarecer... (Jo 16,8).
200

Quem pratica o bem deve lutar para desmascarar o mal, advertindo


o mau, o ímpio e o egoísta quanto aos danos de suas condutas maldosas
(cf. Ez 33,7ss). É preciso ter sempre em mente que o amor é o ponto alto
do bem, ou como diz São Paulo, o vínculo da perfeição (cf. Cl 3,14). O amor
não faz o mal mas alegra-se com a justiça (cf. 1Cor 13,5s), quem ama
pratica o bem e não quer o mal do outro, e cumpre toda a lei (cf. Rm 13,8).
O mal do mundo ocorre de várias formas. É o mal que se pensa (pensar o
mal já é realizá-lo), que se faz (praticar o mal é rejeitar o bem), e o que se
aprova (pelo consentimento ou pelo silêncio omisso). Não é lícito ao
homem deixar de fazer o bem, ou denunciar o mal, por medo de ficar
malvisto ou malquisto, como advertem alguns. O salmista nos encoraja:

Ainda que eu ande pelo vale das sombras da morte, nada temerei,
pois estás comigo... (Sl 23, 4).

Nas alternâncias do mal, e São Paulo denunciou esse confronto (cf.


Rm 7,19), deixamos de fazer o bem devido para praticar o mal que tanto
execramos. Isto faz parte de nossa frágil natureza humana, que nos coloca
nesse choque de idéias e atitudes. A ambigüidade humana aflora muitas
vezes em nosso comportamento, levando-nos a fazer exatamente o
contrário do que queríamos fazer. Em certas oportunidades, nossa forma
de relacionamento com as pessoas, especialmente as mais íntimas
(cônjuges, filhos, irmãos), sofre esse tipo de percalço. Querendo o bem,
corremos o risco de fazer o mal. É o caso dos pais, que querendo o melhor
para os filhos (o bem) acabam por conferir-lhe uma educação deficiente,
cheia de lacunas (o mal). O ponto crítico pode estar na forma como
queremos o bem.

Queremos o bem do outro, ou o nosso? Às vezes, para proteger,


criamos um filho sem liberdade de escolha, e isto vai representar um
grande mal em sua vida futura. Em muitos casos, o nosso bem (egoísta) é
capaz de gerar o mal do outro. É oportuna uma sentença de Santo Tomás
a respeito do amor:

Amar é querer e realizar o bem do outro; mesmo com sacrifício


próprio 239.

Os ateus e os hereges – e já falamos bastante neles aqui – têm feito


florescer suas teorias à sombra do mal. Em um mundo em que o mal
parece suplantar o bem (só não o supera em valor), as idéias de certos
pensadores, desde o antigo Epicuro, ganham corpo. Assim como há uma
estranha convivência entre o bem e o mal, também se estabelece uma
difícil convivência entre os pensamentos dos místicos e crentes, com o dos
que fazem tudo para dizer que Deus é responsável por todos os males do
mundo, passados, atuais e futuros.

239
In: Summa Theologiae, I.1, 5
201

O dualismo bem/mal aparece nas figura bíblicas dos ―dois


caminhos‖ (cf. Dt 30, 19s) e do pai que tinha dois filhos (cf. Mt 21,28-32).
Sempre há, na frente do ser, duas alternativas de escolha. Em toda a
cultura humana desponta a necessidade de o homem ser bom, de semear
o bem, para transformar:

Não paguem a ninguém o mal com o mal; a preocupação de vocês


seja fazer o bem a todos (Rm 12,17).

Onde estaria, então, a causa do insucesso da humanidade, vítima do


mal? A nosso ver, na falta dos dados preliminares indispensáveis para o
entendimento do mundo em geral e do homem em particular. Para se
compreender o mal fazia-se necessário um conhecimento do mundo e do
homem suficientemente amplo a ponto de comportar também a
compreensão do mal neles existentes. E esta compreensão não existia.

De fato, o mal, em todas as suas formas, como da destruição, do


erro, da prevaricação, da violência, da morte, da dor, não é um
fenômeno circunscrito a uma área específica da realidade. Ele faz
parte de toda a natureza. Ora, até o início do século passado, a
visão que se tinha do universo e do homem era bastante limitada.
Não se conhecia ainda qual seria a sua ―matéria-prima‖. A idéia de
evolução estava circunscrita aos seres vivos 240.

O que nos resta? Esperar por um milagre, onde todos se tornassem


bons e o mal fosse banido dos corações e da face da terra? De outro lado,
há que se discernir o funcionamento do mundo de uma maneira
ponderada. Se as coisas viessem a funcionar como muitos querem, o
mundo teria que se converter num milagre contínuo. Assim, teríamos a
necessidade de repetidos milagres para curar doentes, evitar acidentes,
resolver questões de negócios, conseguir empregos para as pessoas, deter
tempestades e avalanchas. Tudo seria um cenário, onde Deus regeria uma
infinidade de marionetes. Seria o império do non sense. O mundo mudaria
de real em virtual.

Acho que se poderia inverter a tese de P. Ricoeur que afirma a


finitude (morte) por causa da culpabilidade (pecado). Invertendo, teríamos,
pelo lado oposto, que o homem é pecador, trilha os caminhos do mal
(culpável) por causa de sua finitude (imperfeição). É por demais
complicado!

Não se quer dizer aqui que o mal não existe. Ele nos assola em cada
circunstância de nossa vida, a cada virada de esquina. Diz-se,
filosoficamente, que o mal não é, a partir de uma estratificação de valores.
A idéia do bem está ligada a valor; a do mal, ao contrário, ligada ao nada.
E o nada não é. No terreno axiológico, pertence ao homem, com sua

240
L. P. LEITE, O problema do mal, op. cit.
202

capacidade de decidir, o ser feliz, o viver com dignidade, alimentar-se, ter


uma casa para morar, vestir-se, desenvolver-se social e intelectualmente.
Esta é sua finalidade de vida. Isto é o bem. Assim, a liberdade é vista
como um valor maiúsculo. Inalienável.

Uma das ―armas‖ da humanidade diante do mal, é a esperança que,


convenhamos, é uma virtude de difícil seguimento para o homem,
massacrado pelo mal do cotidiano. Mesmo assim, ela brota qual flor
enigmática no espinheiro das contradições e dialéticas – especialmente do
bem e do mal – da existência humana. Nesse contexto, a esperança
também torna-se um enigma que, em um mundo tão conturbado,
converteu-se na especulação de vários intelectuais, como por exemplo, E.
Bloch († 1977), que buscou decifrá-lo, usando como chave-de-leitura, a
cultura judaico-cristã, em permanente diálogo com a filosofia medieval.
Nesta reflexão, surgiria a utopia social da ―terra sem males‖.

Bloch interpreta Joaquim de Fiori, sob o ponto de vista social e


histórico, como expressão do fanatismo próprio da burguesia
nascente, em que tudo ia se ajeitar, que as coisas iam ficar
melhores, e o mal seria vencido [...]. Joaquim de Fiori espera o reino
neste mundo, com a vitória total do bem sobre o mal[...]. A
resignação ao medo, à servidão e à promessa do ―outro mundo‖, são
princípios da utopia social 241.

Os mestres orientais dizem, àqueles que desejam respostas sobre o


mistério do mal, que é preciso, primeiro e acima de tudo, desenvolver um
ponderável auto-conhecimento, que é o conhecimento mais abrangente
que existe. Ele é capaz de informar o bem e o mal que o indivíduo é capaz
de levar a efeito. É necessário reconhecer que ambos são elementos
situados no interior da natureza humana. Conhecer essa potencialidade é
afastar-se do auto-engano e da auto-ilusão. Ao procurar o mal do mundo,
deve-se, antes, conhecer o mal que está em nós mesmos.

241
S. ALBORNOZ. O enigma da esperança. Ernst Bloch e as Margens da História do Espírito. Ed. Vozes, 1999.
203
204

VIII

Mas livrai-nos do mal...

Caríssimo, não imite o mal, mas o bem. Quem faz o bem, é de Deus.
Quem faz o mal, não viu a Deus (3Jo 11).
205
206

1. Mentiroso e homicida

Por ciúme e inveja dos dons entregues ao homem (graça, filiação,


irmandade, herdeiro do Reino, felicidade eterna... etc.) os espíritos maus
investiram, desde o princípio contra a humanidade, procurando derrubar
a todos, da amizade com Deus à perdição eterna. Diabo, Demônio,
Satanás, Lúcifer, Príncipe das Trevas, esses são alguns dos nomes do
inimigo.

Igualmente, algumas expressões do Novo Testamento, como ―filhos


do mundo‖ (do pecado) e ―filhos da luz‖(na graça de Deus) retratam
as forças em confronto na terra. São Paulo fala em ―mundo mau‖ (cf.
Gl 1, 4) para evidenciar o domínio do mal sobre os corações dos
homens. Satanás é chamado de ―rei deste mundo‖(cf. 2Cor 4, 4). O
―mundo futuro‖, na contrapartida, é aquele em que Cristo vai reinar
242.

Em Confissões , Santo Agostinho se pergunta, a respeito de Lúcifer,


que foi criado bom e perfeito e acabou se evadindo do projeto original. A
indagação situa-se na linha de, como o bem pode se converter em mal:

E se por uma decisão de sua vontade perversa, se transformou de


anjo bom em demônio, qual é a origem daquela vontade má com que
se mudou em diabo, tendo sido criado Anjo perfeito, por um criador
tão bom?‖ 243.

Como se observa, o Bispo de Hipona não ignora o problema da


origem do mal tal qual a Igreja o explica, mas vai ainda além, perguntando
a origem da perversão da vontade nos seres criados originariamente bons
por Deus. A argumentação segue considerando que, naturalmente, o mal
não provém de Deus, mas está nas coisas criadas e na matéria. As coisas
criadas, prossegue Agostinho, não existem absolutamente nem totalmente
deixam de existir 244
Há muitos temores de falar nos demônios ou aludir a eles a maldade
do mundo. Já vi/ouvi alguns ―superiores‖ recomendando seus
―subalternos‖ que se escusem de falar em diabo ou inferno, para não
atemorizar as crianças e as pessoas menos crescidas na fé. O teólogo, o
biblista e o exegeta que militam nas comunidades, têm por obrigação,
longe de esconder, revelar; ao invés de ―enrolar‖, ensinar, mostrar a luz.
Temos que, diante das trevas, ―trocar em miúdos‖ as questões obscuras
que se afiguram como mais complicadas. É como nos ensina Mesters:

242
In: O Grão de Trigo... op. cit.
243
Capítulo 3 do livro VII
244
Idem. Capítulo 11 do livro VII
207

Esta luz, não é privilégio de alguns ―peritos‖, mais sabidos ou tidos


como hierarquicamente superiores, mas trata-se de um dom de
Deus, concedido à comunidade e, através dela, às pessoas que dela
fazem parte 245.

No universo, as coisas existem enquanto participam da suma


existência, daquele que é, do Imutável, assim como deixam de existir
quando se afastam dele. As coisas que se corrompem são boas ao menos
em parte, pois não haveria o que se corromper se fossem totalmente más.
Porém – prossegue Agostinho – elas não são como Deus, absolutamente
boas, pois se assim fosse seriam incorruptíveis.

Deste modo, vemos que o mal ocorre quando as criaturas se


afastam do projeto original para sua existência, ou seja, o mal não existe
propriamente, mas é um não-ser. É aquela ―ausência do bem” (privatio
boni) já aludida. Tudo é verdadeiro enquanto existe e a falsidade só ocorre
quando se toma por existente o não existente. Agostinho, concluindo sua
linha de reflexão teológica, define o mal como uma perversão da vontade
desviada da substância suprema, que é Deus.

E não é de estranhar: o próprio Satanás se disfarça em anjo de luz


(2Cor 11,14)

Curiosa (ou sintomaticamente?), embora o assunto não seja


debatido como deveria, há mais bibliografias falando em demônios e anjos
maus do que nos anjos, mensageiros de Deus. A verdade é que há
menções ao mal, serpente, satanás, demônios, dragão, besta, espíritos
maus, do Gênesis ao Apocalipse, o que nos leva a crer, ao contrário do que
alguns teimam em negar, que o Demônio é um personagem real, não é
fábula, mas uma verdade bíblica, em cuja existência devemos acreditar.
Acreditar, temer e evitar. Vamos à nomenclatura:

satã  šaitan, hebr.: acusador, inimigo, adversário


(Jd 6; 2Pd 2,4; Tg 1,13; 1Jo 1,5; Ap 12,7-9);

Diabo  diábolos, , gr.: desordeiro;


(Mt 4,1; 13,39; Tg 4,7; Ap 20,10);

demônio daimon, , gr.: basicamente, quer


dizer
espírito; (Mt 8,29; Mc 1,24); só mais tarde que
passou a significar um ―espírito mau‖.

Ao que tudo indica, satanás, satã, diabo, demônio trata-se de uma


mesma pessoa, ou, pelo menos, de seres do mesmo gênero. A Bíblia

245
In: Paraíso Terrestre: Saudade ou esperança. 10a. edição. Ed. Vozes, 1985
208

nomeia, explicitamente, cinco espíritos maus: Belial (o ―malvado‖ ou


Beliar, cf. Jz 19,22; 1Sm 2,12; 2Sm 16,7; Pv 6,12, etc.); Asmodeu (o pior
dos demônios, cf. Tb 3,8; 8,2s); Baalzebub (o ―senhor das moscas‖);
Mámon (demônio siro-fenício que dava riquezas ao homem até destrui-lo;
cf. Mt 6,24); e Satanás (cf. Jó, 16; Zc 3,1; Lc 10,18;1Cor 7,5; 1Tm 5,15; Ap
20,2, etc.).

Atualmente, quais são as maiores necessidades da Igreja? Não


deveis considerar a nossa resposta simplista, ou até supersticiosa e
irreal, mas uma das maiores necessidades é a defesa daquele mal, a
que chamamos Demônio. Antes de esclarecer o nosso pensamento,
convidamos o vosso a abrir-se à luz da fé sobre a visão da vida
humana, visão que, deste observatório, se alarga imensamente e
penetra em singulares profundidades. E, para dizer a verdade, o
quadro que somos convidados a contemplar com realismo global é
muito lindo. É o quadro da criação, a obra de Deus, que o próprio
Deus, como espelho exterior da sua sabedoria e do seu poder,
admirou na sua beleza substancial (cf. Gn 1,10 ss.) 246.

É interessante notarmos que no quadro da criação, tudo tem uma


finalidade, uma ordem que deixa entrever uma presença-transcendência,
um pensamento de vida e amor, de tal modo que o universo, por aquilo
que é e por aquilo que não é, se apresenta como uma preparação
entusiasmante e inebriante para alguma coisa ainda mais bela e mais
perfeita (cf. 1Cor 2,9; Rm 8,19-23). A visão cristã do universo e da vida é,
portanto, triunfalmente otimista; e esta visão justifica a nossa alegria e o
nosso reconhecimento pela vida, motivo por que, celebrando a glória do
Pai e a vitória do Filho, cantamos a nossa felicidade.

Há também a entidade Lilith, da qual já falamos. Em algumas


culturas de Canaã, ela é na‟has (a serpente), que veio tentar Eva. A
serpente é uma figura ambígua. Ela é sinal de astúcia, veneno e morte,
mas, ao mesmo tempo de cura (o episódio no deserto) e de mudança (troca
a pele todos os anos, em sinal de renovação). Lilith seria uma deidade
mitológica, cuja memória é paralela a alguns relatos bíblicos. Ela inclusive
é citada na Bíblia, no texto apocalíptico de Isaías, como uma ―entidade
demoníaca‖ (34,14) ou ―rei dos terrores‖ (cf. Jó 18,14), um fantasma.
Trata-se de um personagem fantástico, cuja fenomenologia mítica dá
margem a muitas especulações. No folclore rabínico tardio, aparece como
um vulto feminino e sedutor, que vaga à noite, pelas ruínas e locais
abandonados 247, a procura de homens, para ter relações sexuais,
esgotando-os e, não-raro, matando-os. Embora se desconheça uma
representação pictográfica dessa entidade, ao contrário de outras (Ašera,
Anat, etc.), sabe-se que Lilith, nas antigas culturas de Canaã e da

246
PAULO VI. A existência do Diabo. In: Audiência do dia 15 de novembro de 1972. Alocução " Livrai-nos do mal".
Publicado em L’Osservatore Romano, edição em. português, em 24/11/1972.
247
DEB
209

Palestina, teria alguma relação com as serpentes. Fontes culturais


afirmam – como vimos – que ela veio, por inveja, tentar Eva e ocasionar a
queda do primeiro casal. Tudo surge como lenda, fantasia, sem o mínimo
conteúdo de verdade. Os textos bíblicos falam nela, uma ou duas vezes
(conforme a tradução), encravada no terreno da mitologia de algumas
tribos remotas do Oriente Médio.

Encontra-se aqui (Gn 2–3) a presença de um ser (animal) que sugere


a outro ser (a mulher) que tome uma atitude contrária à orientação
de seu Criador. A serpente não precisa ser vista aqui como o
símbolo do demônio, mas como o ser do convencimento, da
persuasão e de engano. Desta forma, a serpente significa oposição a
Deus e oposição ao ser humano 248.
A história da serpente é curiosa. Nunca houve, como se sabe,
serpentes falantes. E, como ela foi condenada a rastejar (cf. Gn 3,14b),
imagina-se que, anteriormente, tivesse pernas. Ela, como a maioria das
fábulas que vêm do Oriente Médio, abarca o mistério da sedução, presente
em todos os tempos. O teólogo G. von Rad tem uma idéia interessante com
relação à questão da serpente e da mulher:

O hagiógrafo tentou, de certa forma, minimizar a responsabilidade e


culpa humana, transferindo o peso maior do erro para a serpente. A
culpa da queda é atenuada pelo fato de o ser humano haver sido
enganado 249.

Embora não haja referências diretas a Lúcifer (lux = luz; + fero=


trazer; o ―anjo da luz‖, cf. Is 14,12ss) sabe-se, pela tradição medieval, que
se trata do principal dos anjos, caído por causa de sua soberba e pela
inveja da amizade de Deus pelo homem. Seu pecado é identificado até
hoje, na sociedade, nas famílias, nas comunidades... Em algumas
passagens, com referência à sua beleza original, ele é mencionado como
―estrela da manhã‖ (Tst Judá 24,5; 1Pd 1,19; Ap 6,13; 8,11; 12,4).

Parece que o máximo que poderíamos dizer sobre a origem de


Satanás é que ele é um ser criado, mas espiritual, que decidiu opor-
se a Deus, e que ele recruta outros seres espirituais e seres
humanos em seus esforços. Mais do que isto é só especulação. Num
sentido muito significativo, não importa de onde Satanás veio. A
ênfase na Bíblia cai no que ele faz. Não é como ele veio a existir que
preocupa. É o fato que ele existe que nos preocupa. Ele continua a
trabalhar contra nós em sua tentativa de dominar a humanidade
250.

248
I. MAZZAROLO, Gn 1–11... op. cit.
249
In: Genesis... op. cit.
250
D. MCCLISTER, www.estudosdabiblia.net
210

A Igreja afirma, como dogma de fé, a existência de demônios


(espíritos maus, poderes e forças malignas exteriores ao homem) que
exercem seu influxo no mundo 251. Nessa perspectiva, podemos
depreender que os ―espíritos maus‖ andam, até o fim dos tempos, em
busca de um erro do ser humano para acusá-lo (daí satã, acusador) e
mostrar a Deus a inutilidade de sua criação. Desde o Antigo Testamento,
a idolatria, era vista como imagem do mal, da prostituição, da
transgressão e da ofensa a Deus, fruto da inspiração maléfica:

Não sigam os deuses estrangeiros, para servi-los e adorá-los, e não


me provoquem com as obras das mãos de vocês, e eu não lhes farei
mal. Mas vocês não me obedeceram - oráculo de Javé - e vocês me
provocaram com as obras de suas mãos para sua própria desgraça.
Por isso, assim diz Javé dos exércitos: Já que vocês não ouviram
minhas palavras, eu mandarei buscar todas as tribos do Norte -
oráculo de Javé - e também o meu servo Nabucodonosor, rei da
Babilônia, para virem contra este país, contra os seus habitantes e
contra todas as nações vizinhas. Vou condenar todos ao extermínio,
vou fazer deles um objeto de horror, de vaia e de vergonha
permanente. Eliminarei do meio deles o som da música, os gritos de
alegria, a voz do noivo e da noiva, o barulho do moinho e a luz da
lâmpada. O país inteiro será entregue à destruição e desolação, e o
povo ficará escravo do rei da Babilônia durante setenta anos (Jr 25,
6-11).

Em muitos textos proféticos, a idolatria (culto a demônios, espíritos


ou outras divindades) era vista como uma forma de prostituição, aquele
em que a mulher deixa a casa do marido (Deus) e vai refestelar-se nos
locais de meretrício. Há vários trechos em Ezequiel que comparam a
idolatria de Israel à prostituição. Citamos apenas um:

Por todo canto você fez um nicho e um lugar alto, construiu um


lugar de pecado nas encruzilhadas, desonrando sua beleza e
abrindo as pernas para qualquer transeunte e multiplicando assim
seus atos de prostituição (16,24s).

A questão dos espíritos maus se coloca na inexatidão cronológica do


nada, do caos e da criação. Seria o caos primordial (Gn 1,2) um reflexo da
queda de Lúcifer e seus comparsas? Há uma certa discrepância entre Gn
1–2 e Jó 38,4-7. Alguns teólogos protestantes falam numa segunda
criação (Gn 1–2) que sucedeu à primeira (seres invisíveis) cuja revolta teria
desencadeado um caos. A criação nova (Gn 1–2) seria a restauração da
primeira, que teria resultado em desordem. Já que os seres perfeitos
(anjos) não deram uma resposta adequada, quem sabe outros (homens)
menos perfeitos dariam? A Bíblia, mesmo sem fornecer a cronologia dos

251
Dz. 428, 806, 894, 907, 909; J. E. TERRA, A demonologia de Karl Rahner, apud VV.AA., Anjos e demônios na
Bíblia, Ed. Loyola, 1981.
211

fatos, revela que houve no céu uma batalha, entre os anjos fiéis e os
dissidentes (cf. Dn 10,13-21; 12,1; Lc 10,18; Jo 12,31; Ef 6,12; Ap 12,7-
9), que resultou na expulsão e queda desses últimos. Essa luta entre o
bem e o mal é perene, como nos mostra o biblista Mesters:

Será uma luta de vida e de morte. O homem que segue a serpente,


comendo da fruta proibida e fechando-se no seu próprio mundo. tal
homem morre e é germe de morte para os outros. O homem que
segue a lei de Deus, reagindo e resistindo contra o mal, esse vence a
morte e conquista a vida, e é germe de vida para os outros. No fim
da história, a serpente, i.é, a humanidade que seguiu a serpente,
procurando dar o golpe final, será esmagada pelo calcanhar da
mulher que gera homens de fé 252.

É preciso ver o que diz São Paulo em Cl 1,20; o plano de Deus visa a
reconciliação de todos os seres, pelo sangue da cruz de Cristo; O sacrifício
encaminha o resgate dos homens mas exclui tudo o que mau e tenebroso.
Esses, por própria opção, já se excluíram.

Ademais, fortaleçam-se no Senhor e na força do seu poder. vistam-


se da a armadura de Deus, para poderem resistir às manobras do
diabo. A nossa luta, de fato, não é contra homens de carne e osso,
mas contra os principados e as autoridades, contra os dominadores
deste mundo de trevas, contra os espíritos do mal, que habitam
regiões celestes" (Ef 6,10-12).

De qualquer forma, o problema do mal, visto na sua complexidade


em relação à nossa racionalidade, torna-se como que uma obsessão.
Constituí a maior dificuldade para a nossa compreensão religiosa do
cosmo. Foi por isso que Santo Agostinho penou durante vários anos:
"Quaerebam unde malum, et non erat exitus". Ele procurava de onde vinha
o mal e não encontrava a explicação 253. A questão do mal hoje, excluindo
Deus dessa autoria, recai sobre os demônios, que induzem o ser humano.
Este, por vulnerável, geralmente cai na armadilha.

Como ato pensado do Diabo, o mal já não é apenas uma deficiência,


mas uma eficiência, uma atitude um ser vivo, espiritual, pervertido
e perversor. Trata-se de uma realidade terrível, misteriosa e
medonha. Sai do âmbito dos ensinamentos bíblicos e eclesiásticos
quem se recusa a reconhecer a existência desta realidade; ou
melhor, quem faz dela um princípio em si mesmo, como se não
tivesse, como todas as criaturas, origem em Deus, ou a explica como
uma pseudo-realidade, como uma personificação conceitual e

252
op. cit..
253
In: Confissões, VII,5 ss.
212

fantástica das causas desconhecidas das nossas desgraças. As


origens mitológicas do maligno são equivocadas 254.

Quando pensamos no mal que se opõe ao bem, vem-nos à mente a


significativa parábola do joio e do trigo, síntese e explicação do ilogismo
que parece presidir às nossas contrastantes vicissitudes: Inimicus homo
hoc fecit (Mt 13,2). As ações praticadas pelo inimigo do homem revelam-no
como assassino desde o princípio. E mais: ele é o ―pai da mentira‖, como o
define Jesus (cf. Jo 8,44s). Trata-se do desordeiro, aquele que semeia
dúvidas capazes de subverter o equilíbrio moral do homem. Ele é o pérfido
e astuto encantador, que sabe insinuar-se em nós através dos sentidos,
da fantasia, da concupiscência, da lógica utópica, ou de desordenados
contatos sociais na realização de nossa obra, para introduzir neles
desvios, tão nocivos quanto, na aparência, conformes às nossas
estruturas físicas ou psíquicas, ou às nossas profundas aspirações
instintivas.

Conhecemos, todavia, muitas coisas deste mundo diabólico, que


dizem respeito à nossa vida e a toda a história humana. O Demônio
é a origem da primeira desgraça da humanidade; foi o tentador
pérfido e fatal do primeiro pecado, o pecado original (cf. Gn 3; Sb
1,24). Com aquela falta de Adão, o Demônio adquiriu um certo
poder sobre o homem, do qual só a redenção de Cristo nos pode
libertar. Trata-se de uma história que ainda hoje existe: recordemos
o exorcismo do batismo e as freqüentes referências da Sagrada
Escritura e da Liturgia ao agressivo e opressivo "domínio das trevas"
(Lc 22,53). Ele é o inimigo número um, o tentador por excelência.
Sabemos, portanto, que este ser mesquinho, perturbador, existe
realmente e que ainda atua com astúcia traiçoeira; é o inimigo
oculto que semeia erros e desgraças na história humana 255.

Este tópico, relativo ao Demônio e ao influxo que ele pode exercer


sobre cada pessoa, assim como sobre comunidades, sobre inteiras
sociedades, ou sobre acontecimentos, é um capitulo muito importante da
doutrina católica, que deve ser estudado sempre mais e mais, dado que
hoje o é muito pouco, seja nas igrejas, na catequese e nas casas de
formação. Algumas pessoas julgam encontrar nos estudos da psicanálise
ou da psiquiatria e no espiritismo, hoje tão difundidos em alguns países,
uma compensação suficiente. Receia-se cair em velhas teorias
maniqueístas, ou em divagações fantásticas e supersticiosas.

O texto que transcrevemos abaixo é de autoria de uma teóloga


pentecostal (Assembléia de Deus), doutora Maria de Fátima Moreira de

254
PAULO VI. A existência do Diabo. In: Audiência... op. cit.
255
Idem
213

Carvalho 256, uma amiga e irmã, da Igreja de João Pessoa/PB. Achei


interessante compulsá-lo aqui, para enriquecer nosso estudo com o modo
de ver o problema a partir da ótica de irmãos de outras Igrejas.

A Bíblia afirma que Deus, o Altíssimo, detém o domínio universal


sobre todas as coisas, porque tudo é Dele (Dn 4,2,3; Sl 24,1;
103,19). Ele a tudo criou. Encontramos na Bíblia declarações que
levam ao entendimento de que Deus criou primeiro os anjos, ou
seja, os seres espirituais, depois criou o Universo (Jó 38,1-7; Is
14,12), e entregou aos anjos a guarda de toda criação (compare: Ez
28,12-14; 1,4,24; Hb 1,7; Ap 7,1,2; 8,7-12; 16,1-12; 19,17).
Entretanto, Lúcifer (...) rebelou-se contra Deus (Is 14,12-16; Ez
28,11-19), e levou após si a terça parte dos anjos, que aderiram à
sua rebelião (Ap 12,3,4). Comparando alguns versículos, podemos
compreender que Deus explodiu os astros administrados pelos anjos
rebeldes, destruindo as suas moradias (compare: Jd 6; Lc 11,24;
2Pd 2,4-6). Esta foi a causa do caos terrestre de Gn 1,2.

Juntamente com o impacto da explosão, Deus lançou sobre a Terra


os anjos caídos (Ap 12,3,4), estando uma parte deles em prisão no
interior da Terra (Jd 6), enquanto os demais encontram-se soltos,
sobre a terra (Jó 1,6, 7; 2,1,2), e nas regiões celestiais em derredor
(Ef 6,12), constituindo o reino das trevas e o império da morte (Hb
2,14), (...). Os anjos revoltosos serão julgados pelos homens santos,
os santos do Altíssimo (Rm 16,20), quando o Senhor lhes entregar o
Reino (Dn 7,18.21s; 1Cor 6,3; Ap 20,4).

Esta foi mais uma, entre as muitas causas porque Deus criou o
homem: para compor o Tribunal que julgará os anjos caídos (Dn
7,22; Lc 22,30; Jo 12,31; 16,11; 1Cor 6,3; Ap 20,1-4). E este
propósito o Senhor Deus já guardava em seu coração, antes da
fundação do mundo (Ef 1,4.9,10s.20-23). É por isto que ele
restaurou a terra e o espaço cósmico atingido pelo cataclismo, para
entregar ao homem a administração da terra, e o domínio sobre
tudo que nela há, e sobre toda a criação animal e vegetal (Gn 1,26-
30; 2,19s; Sl 8ss).

A partir da bem elaborada angelologia (ou demonologia) da teóloga,


observa-se que, sua síntese sobre a Criação é mística e ao mesmo tempo
racional, com clara visão escriturística, pois analisa o texto sagrado à luz
do objetivo de Deus, que é criar, dar vida, multiplicar e ditar um sentido
para a existência de tudo o que foi criado, imunizando sua Criação do
mal, do pecado e do isolamento.

256
E-mail: maryfmc@ig.com.br
214

Hoje, algumas pessoas preferem mostrar-se fortes, livres de


preconceitos, assumir ares de positivistas, mas depois dão crédito a
muitas superstições de magia ou populares, ou pior, abrem a própria
alma - a própria alma batizada, visitada tantas vezes pela presença
eucarística e habitada pelo Espírito Santo - às experiências licenciosas
dos sentidos, às experiências deletérias dos estupefacientes, assim como
às seduções ideológicas dos erros na moda, fendas estas por onde o
maligno pode facilmente penetrar e alterar a mentalidade humana.

Não quer dizer que todo o pecado seja devido à ação direta dos
diabolos; mas também é verdade que aquele que não vigia, com certo rigor
moral, a si mesmo (cf. Mt 12,45; Ef 6,11), se expõe ao influxo do chamado
mysterium iniquitatis (mistério do mal) ao qual São Paulo se refere (2Ts
2,3-12) e que torna problemática a alternativa da nossa salvação. O Diabo
não comete o pecado, mas como autor do mal, pode induzir o homem a
cometê-lo. Sempre há uma ação do Malvado por detrás do pecado que
cometemos. Por uma série de deficiências cognitivas, nossa doutrina
torna-se, em determinados momentos, incerta, obscurecida pelas próprias
trevas que circundam a pessoa maléfica do Demônio. Mas a nossa
curiosidade, excitada pela certeza da incidência do mal, torna-se legitima
com duas perguntas: Há sinais da presença da ação diabólica no mundo?
Quais são os meios de defesa contra um perigo tão traiçoeiro?

Com relação à ação maligna do Demônio contra a humanidade, a


resposta à primeira pergunta, requer muito cuidado embora os sinais do
Malvado às vezes pareçam tornar-se evidentes. Podemos admitir a sua
atuação sinistra onde a negação de Deus se torna radical, sutil ou
absurda; onde o engano se revela hipócrita, contra a evidência da verdade;
onde o amor é anulado por um egoísmo frio e cruel; onde o nome de Cristo
é empregado com ódio consciente e rebelde (cf. 1Cor 16,22; 12,3); onde o
espírito do Evangelho é falsificado e desmentido; onde o desespero se
manifesta como a última palavra, etc. Mas é um diagnóstico demasiado
amplo e difícil, que agora não ousamos aprofundar nem autenticar; que
não é desprovido de dramático interesse para todos, e ao qual até a
literatura moderna dedicou páginas famosas. O problema do mal continua
a ser um dos maiores e permanentes desafios para o espírito humano.

Nós sabemos que todo aquele que nasceu de Deus não peca; Jesus,
que foi gerado por Deus o guarda, e o Maligno não o pode atingir
(1Jo 5,18s).

O cristão, como integrante do ―povo de Deus, não pode/deve, sentir-


se abandonado. Sua defesa contra aquele aspecto pernicioso do mundo
(do mal) está na sua fé em Jesus:

Porque todo aquele que nasceu de Deus venceu o mundo. E esta é a


vitória que venceu o mundo: a nossa fé. De fato, quem pode vencer o
215

mundo senão aquele que acredita que Jesus é o Filho de Deus? (1Jo
5,4s)

A Igreja ensina, baseada nas Escrituras, que o Diabo é autor e


princípio de todo o mal, homicida e mentiroso desde o princípio (cf. Jo
8,44). Ele é responsável pela frouxidão de caráter de muitos, pelas
doenças (cf. Lc 13,16) e pela alienação (cf. Lc 8,28-34). Como inimigo da
boa seara, ele vem semear a má semente (cf. Mt 13,19; Mc 4,15). Os
biblistas enxergam a destruição do mal somente na dimensão
escatológica.

Jesus parecia encarar o mal como parte inevitável da criação, e não


achava necessário oferecer explicações para sua presença no
mundo. Por exemplo, na parábola do joio, ele assume a presença do
Diabo [...]. ―Neste mundo, o bem e o mal crescem juntos‖. Apenas no
fim o mal será separado do bem e destruído257.

A outra pergunta, que defesa, que remédio, há para combater o mal,


isto é, a ação do Demônio? A resposta é mais fácil de ser formulada,
embora seja difícil pô-la em prática. Poderemos dizer que tudo aquilo que
nos defende do pecado nos protege, por isso mesmo, contra o inimigo
invisível. A graça é a defesa decisiva. A inocência assume um aspecto de
fortaleza. E, depois, todos devem recordar o que a pedagogia apostólica
simbolizou na armadura de um soldado, ou seja, as virtudes que podem
tornar o cristão invulnerável (cf. Rm 13,13; Ef 6,11-14-17; lTs 5,8). O
cristão deve ser militante; deve ser vigilante e forte (lPd 5,8); e algumas
vezes, deve recorrer a algum exército ascético especial, para afastar
determinadas invasões diabólicas; Jesus ensina-o, indicando o remédio
"na oração e no jejum" (cf. Mc 9,29). E o apóstolo indica a linha mestra
que se deve seguir:

Não se deixe vencer pelo mal, mas vença o mal com o bem (Rm
12,21).

Conscientes, portanto, das presentes adversidades em que hoje se


encontram as almas, a Igreja e o mundo, é salutar procurarmos dar
sentido e eficácia à usual invocação da nossa oração principal: "Pai
nosso... livrai-nos do mal".

2. O que diz a Bíblia?

257
J. A. SANFORD, op. cit.
216

Nos ensinamentos bíblicos encontramos a figura maléfica do Demônio


como um adversário do ser humano, ou melhor ―inimigo desde o
princípio‖.

Esta visão, porém, é completa, é exata? Não nos importamos,


porventura com as deficiências que se encontram no mundo, com o
comportamento anormal das coisas em relação à nossa existência,
com a dor, com a morte, com a maldade, com a crueldade, com o
pecado, numa palavra, com o mal? E não vemos quanto mal existe
no mundo especialmente quanto à moral, ou seja, contra o homem
e, simultaneamente, embora de modo diverso, contra Deus? Não
constitui isto um triste espetáculo, um mistério inexplicável? E não
somos nós, exatamente nós, cultores do Verbo, os cantores do Bem,
nós crentes, os mais sensíveis, os mais perturbados, perante a
observação e a prática do mal? Encontramo-lo no reino da natureza,
onde muitas das suas manifestações, segundo nos parece,
denunciam a desordem. Depois, encontramo-lo no âmbito humano,
onde se manifestam a fraqueza, a fragilidade, a dor, a morte, e ainda
coisas piores; observa-se uma dupla lei contrastante, que, por um
lado, quereria o bem, e, por outro, se inclina para o mal, tormento
este que São Paulo põe em humilde evidência para demonstrar a
necessidade e a felicidade de uma graça salvadora, ou seja, da
salvação trazida por Cristo (Rm 7); já o poeta pagão Ovídio tinha
denunciado este conflito interior no próprio coração do homem:
Video meliora proboque, deteriora sequor 258. Encontramos o pecado,
perversão da liberdade humana e causa profunda da morte, porque
é um afastamento de Deus, fonte da vida (cf. Rm 5,12) e, também, a
ocasião e o efeito de uma intervenção, em nós e no nosso mundo, de
um agente obscuro e inimigo, o Demônio 259.

Desde o Antigo Testamento já se lê referência aos maus espíritos, que


têm por escopo desviar o homem do caminho do bem e das relações com
Deus. Nestes textos há menção de gatos selvagens, hienas, sátiros e
serpentes (cf. Is 34,14) representando as forças do mal. A diaba Lilith,
vista como mãe dos malvados e entidade das trevas pertence a esse
elenco.

Diversas passagens do Evangelho dizem-nos que não se trata de um


só demônio, mas de muitos (cf. Lc 11,21; Mc 5,9), um dos quais é o
principal: Satanás, o inimigo; e, ao lado dele, estão muitos outros, todos
criaturas de Deus, mas decaídas, porque rebeldes e condenadas;
constituem um mundo misterioso transformado por um drama muito

258
In: Metamorfosis, 7,19
259
PAULO VI. A existência do Diabo. In: Audiência... op. cit.
217

infeliz, do qual conhecemos pouco 260. Mentiroso e homicida desde o


princípio, o Diabo é inimigo oculto, cuja ação mais intensa é separar os
homens de Deus.

Utilizando-se de diferentes materiais e métodos, religiões e filosofias


têm procurado, séculos afora, oferecer visões, perspectivas e soluções para
a problemática da existência do mal. Segundo a doutrina tradicional
cristã, fundada em textos das Sagradas Escrituras, os primeiros pais da
humanidade, Adão e Eva, foram tentados por um espírito maligno, e foram
levados a revoltar-se contra uma ordem dada por Deus. O mal começa
com a revolta dos anjos e a posterior violação (por parte do homem) das
recomendações divinas, quanto à ―árvore do conhecimento do bem e do
mal‖ (cf. Gn 2,17). Como resultado dessa desobediência, toda a natureza
foi degradada e cada ser humano nasceria marcado com a culpa, devendo
sofrer os pesados castigos por sua falta original.

Os anjos são seres espirituais, invisíveis e poderosos. Sua criação não


tem, na Bíblia, uma cronologia definida. Lemos nas Sagradas Escrituras,
relatos de atividades angélicas, mas desconhece-se dados de sua criação.
Sabe-se que eles são seres puros, perfeitos, legítimos 
(ánguelos, mensageiros). Ao que tudo indica – por serem criaturas –
surgiram junto com a criação do mundo e a criação do homem, uma vez
que em Jó 38,8 encontramos que ―os filhos de Deus aplaudiam a Criação‖.

A Bíblia fala (Gn 1,1), vimos aqui, em no princípio. Pois na situação


compreendida nesse princípio, contemplamos a criação do mundo,
do cosmos, dos vegetais, animais, e do ser humano, sem que se leia
nada a respeito da criação dos anjos. Teriam esses seres sido
criados antes do princípio? 261

A não-referência à criação dos anjos, na Bíblia, abre todo um leque


de especulações, onde nossa curiosidade, junto com o resultado de
estudos paralelos, fica, em geral, sem respostas satisfatórias. Mesmo
assim, resta-nos a certeza de que a verdade escriturística é mais prática
do que especulativa. A verdade é que o livro do Gênesis narra a criação do
homem, das coisas da terra e omite as invisíveis.

Hoje em dia, há segmentos da hermenêutica cristã, católica e


protestante, que colocam em dúvida a existência dos anjos como seres
criados, relacionando-os apenas como uma forma de Deus se manifestar e
agir. Embora alguns possam achar estranho, resolvi colocar neste tópica
uma breve noção sobre os anjos. Não acho lícito falar em demônios (anjos
maus) e esquecer os mensageiros (os bons). Ademais, as literaturas

260
DS 800
261
A. M. GALVÃO, ¿Angeles, Existen?, Ed. Lumen, B. Aires, 1995
218

religiosas dão mais espaço aos primeiros do a estes. O teólogo L. C. Susin


denuncia a existência dessa distorção de exegese:

A exegese moderna se perguntou sobre a hipótese de tantos anjos,


atravessando de um canto a outro da Escritura, inclusive o Novo
Testamento, em particular os evangelhos e a vida de Jesus, sejam
apenas uma ―linguagem‖, um gênero literário para falar de forma
amena sobre a presença de Deus, conservando zelosamente a sua
transcendência. Deus se conservaria além, na transcendência
absoluta de sua divindade, e enviaria representantes! Seria,
portanto, um ―modo de falar de Deus‖, da sua revelação ou
presença. Essa é uma escolha reducionista, minimalista, que pode
ser anêmica e empobrecedora 262.

As funções dos anjos precisam ser vistas, a partir do estudo bíblico,


como um modo de servir de mensageiros (a expressão ánguelos, nos
remete a esse juízo) e pontos de ligação entre o mundo invisível e o visível.
A doutrina da Igreja (com base bíblica) ensina que Deus coloca anjos (o
―anjo da guarda‖) para proteger os homens, a partir das crianças. Sobre o
serviço prestado pelos anjos, há um interessante texto de Agostinho:

Os anjos estão a serviço de Deus e – por determinação deste –


também a serviços dos homens 263.

Nada nos impede de admitir que a angelologia bíblica e cristã dos


primeiros tempos foi influenciada, em parte, por doutrinas similares,
vindas das culturas assiro-babilônicas e irânicas, como veremos mais
adiante.

Deve-se observar que as idéias extrabíblicas relativas aos anjos


derivam-se de uma revelação original, havendo-se mesclado no
transcurso do tempo com especulações míticas, supersticiosas e
fantásticas. No Concílio de Latrão (1250 d.C.) foi definida claramente
a existência dos anjos, ao se afirmar que Deus criou duas espécies
de seres: os espirituais, ou invisíveis (os anjos) e os corporais, ou
visíveis (os homens e os animais), reafirmando assim a carta de São
Paulo aos cristãos de Colossos, onde é afirmado terem sido criações
de Deus todas as coisas visíveis e invisíveis, e apresentada a
hierarquia angélica. O apóstolo conclui: ―Tudo foi criado por Ele e
para Ele‖ (cf. Cl 1,16) 264.

Além da natureza espiritual e função de mensageiros, encontra-se a


expressão anjos na linguagem figurada para exprimir o profeta, o pregador

262
In: A Criação de Deus, op. cit.
263
In: Sermo VIII, 3
264
A.M. GALVÃO, ¿Angeles, Existen?, op. cit.
219

e até os chefes das Igrejas primitivas (cf. Ap 2–3). Este uso aparece nas
Escrituras e nas literaturas cristãs. A doutrina cristã, embora não
esclareça convenientemente quando foram criados os anjos (e este fato é
irrelevante) nos mostra que cada um dos anjos tem sua tarefa bem
precisa. Alguns são encarregados de cuidar dos homens para ajudá-los na
luta contra os demônios, protegê-los das dificuldades da vida e orientá-los
para o caminho do bem. Cada ser humano – diz a tradição cristã – desde o
dia de seu nascimento, é confiado a um anjo-da-guarda. Ele possui, como
tarefa específica: o cuidado do seu protegido. Deus confia a pessoa ao zelo
do anjo.

A angelologia judaica das Escrituras, mais ou menos ordenada,


surgiria após a volta do cativeiro da Babilônia, no século V a.C.
Doutrinariamente, pode-se afirmar que os anjos não são apêndices
celestes, criados a vagar pelos ares ou a ilustrar obras de arte
renascentista. Eles são uma realidade sobrenatural, uma verdade de fé
(―Creio... Deus criador... coisas invisíveis...‖), intimamente ligados ao plano
de salvação. Conforme o nome, eles são os mensageiros de Deus.

Nos textos antigos do AT, até o tempo da realeza (séc. X a.C.) o anjo
encontra-se quase que exclusivamente como ―o anjo de Javé‖ (cf. Gn
22,11; Ex 3,2; Jz 2,1, etc.). Esse anjo não é um ser subsistente em
si, criado por Deus, mas identifica-se com Javé, segundo muitos
textos, sendo sua manifestação. Depois do tempo da realeza é que
os anjos são concebidos como criaturas, tendo existência própria
265.

Reportando-nos às crenças pré-bíblicas assiro-babilônicas e


irânicas, retromencionadas, vamos encontrar no zoroastrismo persa (séc.
V a.C.) uma crença dualista que admite a existência de seres espirituais
benfazejos e maléficos. Os seres bons são chamados de kãrabu (acádico),
que vai dar kãribu, seres com corpo de homem, pernas de leão e asas de
águia, mediadores entre os deuses e a humanidade. É provável que da
palavra kãribu haja saído o vocábulo kerubim, querubim.

Junto com a mitologia mesopotâmica, há relatos da existência de


seres invisíveis também na mitologia grega. Na Teogonia de Hesíodo 266,
por exemplo, há textos que falam da criação de seres sobrenaturais, que
os gregos chamavam de , demiurgos, semelhantes aos
anjos, surgidos num princípio, na época em que o caos a tudo dominava.
Mesmo sem agregar nada à fé, é interessante, pelo menos do ponto de
vista cultural, ler algumas dessas formulações, que começam anunciando:

265
DEB: A. Van Den Born; cf. G. Von Rad, In: THAT, 1,72-87.
266
Sua cronologia não é exata; Hesíodo teria nascido em Ascra, hoje Palaiopanaguia, Grécia, na metade do séc. VIII
a.C. A data de sua morte é desconhecida.
220

E então, primeiramente, surgiu Caos...267

A Teogonia 268, , a grande obra de Hesíodo Sobre o


nascimento dos deuses, escrita no dialeto jônico, compõe-se de 1022
versos hexâmetros e detalha a origem e genealogia dos deuses gregos.
Tradicionalmente atribuída a Hesíodo, a data de sua composição é tão
imprecisa quanto a data em que o poeta deve ter vivido. A idéia em si não
é original, pois já havia sido desenvolvida pelos egípcios (séc. XXIV a.C.),
pelos babilônios (2000/1500 a.C.) e pelos hititas (1400/1200 a.C.) alguns
séculos antes. Hesíodo, no entanto, foi o primeiro a sistematizar os antigos
mitos da criação e a organizar os mitos gregos numa seqüência lógica.

Sendo uma realidade presente no mundo, a origem do mal tem duas


principais explicações simbólicas. Na primeira delas, Satanás fazia parte
da ―corte‖ de Deus. Ele não era mau, e funcionava como um assessor, um
conselheiro, com a função de descobrir as faltas dos humanos e denunciá-
los. A outra versão é mais épica. Antes da criação da humanidade, havia
quatro grandes arcanjos: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. Por ser o mais
belo de todos, Lúcifer deixou-se levar pela soberba, desafiando o Criador.
Houve uma grande batalha no céu, e Lúcifer derrotado e expulso. Desde
então, ele procura semear o mal nos caminhos do homem, a fim de desviá-
lo do bem.

O inferno foi criado pelo mal. Quando Lúcifer269 se auto-excluiu e


rompeu a comunhão com Deus, ele criou um estado de trevas para
ele e seus seguidores. Deus não é o criador do caos (cf. Is 45, 18).
Consumada a sua condenação, Satanás tenta criar na terra, através
de tantas estruturas de poder, de corrupção, de luxúria e de
violência um pseudo-céu, material, sem Deus. Mais do que
nenhuma coisa, o inferno é uma escolha: Escolhe o bem e viverás (Jr
21, 8) 270.

Escrevendo aos cristãos do primeiro século, São Pedro destaca as


características nocivas e até predadoras do Demônio, exortando o povo à
confiança, pois após o sofrimento virá a glória. A resposta a ser dada é a
fé:

267
Hes. Th., 116
268
Teogonia, do grego theói (deuses) + goné (geração) refere-se ao “nascimento dos deuses”
269
A fim de que se compreenda os nomes, é bom esclarecer que Lúcifer (Lux-fero = aquele que traz a luz = iluminado),
foi o primeiro anjo caído, que na rebelião do princípio levou consigo “um terço das estrelas (dos anjos) jogando-as
no cosmo (cf. Ap 12, 4). Os nomes satã, satanás e diabo são meros qualificativos, como acusador, inimigo,
desordeiro. A palavra demônio (do grego daimon), espírito criado, usava-se, nos primeiros séculos, em uso geral. Só
depois do século IV-V d.C. é que passou a significar “espírito maligno”.
270
O Grão de Trigo... op. cit.
221

Coloquem nas mãos de Deus qualquer preocupação, pois é ele quem


cuida de vocês. Sejam sóbrios e fiquem de prontidão! Pois o Diabo,
que é o inimigo de vocês, os rodeia como um leão que ruge,
procurando a quem devorar. Resistam ao Diabo, permanecendo
firmes na fé, pois vocês sabem que essa mesma espécie de
sofrimento atinge os seus irmãos que estão espalhados pelo mundo.
Depois de sofrerem um pouco, o Deus de toda a graça, aquele que
os chamou em Cristo para a sua glória eterna, ele os restabelecerá,
firmará e fortalecerá, e fará com que vocês sejam inabaláveis. A
Deus pertence todo o poder para sempre. Amém (1Pd 5,7-11).

3. O Magistério da Igreja

Nas formulações teológicas do chamado ―Magistério da Igreja‖


vamos encontrar várias citações e sentenças a respeito do mal, e a
atribuição de sua autoria aos espíritos maus. A menção aos anjos, como
criaturas de Deus, alerta a literatura patrística do séc. IV, nem sempre
aponta apenas para o bem. Há os anjos do céu, os mensageiros de Deus,
mas há também os espíritos maus, chamados ―anjos caídos‖. Para começo
de conversa, cabe dizer que Deus não criou essas criaturas mergulhadas
na maldade. Elas foram criadas boas, perfeitas, cheias de luz e amigas do
Criador. No entanto, como eram livres, muitas delas resolveram se
insurgir contra a autoridade de Deus, ocasionando uma ruptura
irreversível. Assim, os anjos foram expulsos do céu, jogados no abismo,
condenados a vagar eternamente, longe da presença de Deus. A queda dos
chamados ―espíritos maus‖ deve-se ao uso errado que eles fizeram de sua
liberdade. A gravidade desta queda é agravada substancialmente pelo fato
de serem esses seres possuidores de uma inteligência excepcional.

Muito tempo depois, os homens – embora possuidores de uma


inteligência bem abaixo dos seres espirituais – também fazendo escolha de
caminhos errados, quebraram a comunhão com o Criador. Há quem veja
semelhança nessas duas rupturas. Eu não concordo! Os anjos eram
―seres superiores‖, inteligentes, sabiam muito bem a diferença entre bem e
mal. O homem não! Este era, como se diz, ―um pobre coitado‖, incapaz de
avaliar corretamente – até hoje – seus atos. O exemplo típico dessa
deficiência é o apóstolo Pedro. Ele foi chamado por Jesus, era figura
proeminente no grupo e predestinado à santidade, mas na hora de decidir,
não soube discernir, acabando optando pelo mais fácil. Sabendo Deus que
o homem não seria capaz de decidir e salvar-se sozinho, encarnou-se na
humanidade para plenificar seu projeto.

Quanto aos ―anjos caídos‖, a Tradição é clara ao dizer que muitos (o


Apocalipse afirma, em sua linguagem figurada, no Cap. 12, em ―um terço
das estrelas‖) pecaram ao se revoltarem contra Deus. Isso ocorreu, diz a
maioria dos textos paralelos, porque essas criaturas espirituais eram
dotadas de liberdade e responsabilidade, liberdade que lhes possibilitava
222

participar ou recusar a natureza divina que lhes era proposta. Alguns


anjos, portanto, recusaram a graça divina, e pecaram ao procurar serem
como Deus: independentes. Nisto consiste o ato de orgulho por excelência
que Santo Tomás de Aquino explica:

O anjo pecou da seguinte maneira: ao se voltar, por seu livre-


arbítrio para seu próprio bem, sem ordená-lo segundo a regra
suprema, que é a vontade divina 271.

O Diabo sabia, desde o início, que ―o salário do pecado é a morte‖ (cf.


Rm 6,23), por isso enganou Eva, acenando com vida, conhecimento e
poder. Essa é a estratégia do mal: acenar com um bem para ante o vacilo
humano introduzir o mal. O caçador coloca carne fresca na armadilha,
para atrair suas presas. É como oferecer uma fruta, bonita e vistosa por
fora, mas podre e cheia de bichos por dentro. Ao dizer ―certamente vocês
não morrerão...‖(cf. Gn 3,4), o Malvado queria encobrir toda uma gama de
conseqüências negativas, como ruptura, dor e morte, que se originaria a
partir da desobediência. O objetivo egoísta do Diabo, é perder e separar;
jamais viver o amor e o bem. A questão situa-se na dúvida se o homem
sabia, de fato, o que estava fazendo, ao deixar-se levar pelo mal, ao invés
de prosseguir na trilha do bem. Dentro dessa perspectiva, sobre tantas
dúvidas, vamos encontrar, em Santo Ireneu de Lyon († 202), um
importante contributo a respeito da finitude do ser humano:

Se alguém perguntasse: ―Por acaso, Deus não poderia ter feito o


homem, desde o princípio, perfeito?‖, seria bom que soubesse que,
em relação a Deus, que é ingênito e imutável, tudo é possível; mas
quanto às suas criaturas, precisamente porque tiveram início num
tempo determinado, eram inferiores ao Criador (...). A mãe poderia
subministrar alimento sólido ao bebê, mas este não seria capaz de
digeri-lo, por ser o alimento mais forte do que ele. Assim, Deus
poderia ter dado a perfeição ao ser humano desde o princípio, mas
este não teria sido capaz de recebê-la. Por isso nosso Senhor, nos
últimos tempos, recapitulando tudo em si mesmo, veio ao nosso
encontro, não como ele poderia ter-se apresentado a nós, mas como
nós podíamos vê-lo. Ele poderia ter vindo até nós em sua glória
indescritível, mas sendo assim não poderíamos ter suportado o peso
de sua majestade. Por isso, aquele que era o Pão perfeito do Pai
apresentou-se nos como uma criança. Em sua segunda vinda à
natureza humana, apresentou-se como leite, a fim de que,
alimentados, por assim dizer, nos peitos de sua carne e
acostumados com tal amamentação a comer e beber do Verbo de
Deus e do pão imortal que é o Espírito do Pai, pudéssemos recebê-lo
e guardá-lo em nós 272.

271
In: Summa Theologiae, II, 2a.
272
SANTO IRENEU DE LYON, Contra os hereges, IV, 38,1; cf. A. M. GALVÃO, Os Pais da Igreja, Ed. Recado, 2003.
223

O santo de Lyon escreveu o texto acima aos hereges de seu tempo (e


quem sabe a nós, também) que o questionavam a respeito da origem do
mal. Em certas ocasiões, quando nos deparamos com escaladas de
violência e maldade, parece que o mal e o pecado estão acima da graça,
pois mesmo varridos por conversão e penitência (frutos da graça), volta-e-
meia vêem-se pessoas aparentemente piedosas, caindo fragorosamente
nas laçadas do pecado, como naquela parábola do espírito mau (cf. Mt
12,43) que resolve voltar à antiga casa, trazendo consigo outros seres mais
tenebrosos. Assusta-nos ver, ler e escutar que o mal cresce e se difunde;
pouco se escuta dizer que ele foi dominado. Até que limites o mal vai se
expandir e afrontar a humanidade?

Alguns ―pais da Igreja‖ (e este pensamento pervade o tempo


Medieval) referem-se ao mal como um instrumento capaz de gerar um bem
maior. Justificando tal premissa, afirmam que Deus teria,
deliberadamente, permitido a ocorrência do mal, a fim de criar um
universo no qual as virtudes morais do homem pudessem ser exercitadas,
e a alma purificada. Santo Irineu afirma que, mesmo o pecado não
obscurece a destinação original do ser humano. Para ele, a queda do
homem foi uma bênção, peça essencial para a condução da humanidade à
perfeição.

O destino original do homem não foi ab-rogado pela queda. A


verdade é que a queda tem em seu significado mais profundo, a
intenção de levar os homens a atingirem a perfeição à qual se
destinaram 273.

Os grandes sermões da patrística são unânimes em alertar contra a


ingerência perniciosa do Demônio, ―autor e princípio de todo o mal‖ na
caminhada do homem na direção da casa do Pai. Neste contexto literário-
teológico ressaltam-se as manifestações de Clemente romano († 212),
Justino († 165), Orígenes († 253), Lactâncio († 330), Ambrósio de Milão
(†397), Basílio de Cesaréia († 379), Crisóstomo († 407), Gregório de
Nazianzo († 390),Theodoro de Mopsuéstia († 428), Leão Magno († 461),
Isidoro († 636) e outros, afirmando a periculosidade do Diabo, que
procura, de todos os meios, afastar as almas do convívio da graça.

Para os ―pais da Igreja‖, o bem é teo-lógico (vem de Deus), enquanto


o mal é onto-lógico (vem das criaturas). Em muitos desses autores
sobressai-se aquela idéia do ―mal necessário‖ para que se dê valor ao bem.

Deus destinou que deveria haver distinção entre coisas boas e más;
que devemos conhecer, através do que é mau, as qualidades do que
é bom, bem como do que é bom a partir do que é mau. Não pode ser
entendida a natureza de um sem a existência do outro 274.

273
Contra os Hereges, op. cit. 4
274
LACTÂNCIO. Divina Institutes, 7
224

Os mestres João Crisóstomo, Gregório e Basílio, enxergam o mal


moral (pecado) de inspiração demoníaca, na exploração, ganância, usura e
insensibilidade social.

Mata seu próximo quem lhe nega a comida, a vestimenta e o


amparo, A prata que cria ferrugem em teu cofre pertence ao
indigente 275.

A avareza é uma paixão tão funesta que não é mesmo possível ficar
rico sem ser ladrão ou explorador. Honesta é a pequena propriedade
que é adquirida pelo trabalho de toda uma vida, sem dependência
de roubos pessoais ou praticados pelos pais 276.

Quando damos aos indigentes o que eles precisam, estamos lhes


devolvendo o que lhes pertence e não é nosso. Mais do que
misericórdia, estamos fazendo justiça, pagando uma dívida 277.

Dizemos que é ladrão aquele que leva as coisas alheias. E o que


dizer de você que transforma em sua exclusiva propriedade aquilo
que recebeu de Deus, e que deveria ser comum a todos? 278.

Aquele que despoja o homem de sua roupa é um ladrão. O que não


veste a nudez de um indigente, quando pode fazê-lo, merece outro
nome? 279

Atuando modernamente como uma síntese do Magistério, o


Catecismo da Igreja Católica, refere-se ao mal como um escândalo. É ele
que nos ensina que a Providência divina atua também através do agir de
suas criaturas. Aos seres humanos Deus também concede a cooperação
livre em seus desígnios.

Se Deus Todo-Poderoso, Criador do mundo ordenado e bom, cuida


de todas as suas criaturas, por que existe o mal? A essa questão tão
urgente quanto inevitável, dolorosa quanto misteriosa, nenhuma
resposta rápida será suficiente. E: o conjunto da fé cristã que
determina a resposta a tal questão: a bondade da criação, o drama
do pecado, o amor paciente de Deus que vem ao encontro do homem
pelas suas Alianças, pela Encarnação redentora de seu Filho, pelo

275
SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, séc. IV – Sermão, PG 39,102; Cf. J. P. MIGNE, Patrologie. Cursos Completus. Series
Latina et Graeca. Paris, 1880. Cf. A. M. GALVÃO, Os pais da Igreja, op. cit.
276
idem. Homilia, XIII
277
SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO. Patrem tacentem propter plagam grandinis, 18. PG 35,957.
278
SÃO BASÍLIO MAGNO (de Cesaréia). Homilia sobre a Primeira Epístola a Timóteo, 12,4.
279
Idem. Sermão II – Contra a avareza.
225

dom do Espírito Santo, pela união da Igreja, pela força dos


Sacramentos, pelo chamado a uma vida bem-aventurada à qual as
criaturas livres são desde logo convidadas a consentir podendo,
entretanto, também-mistério terrível - se furtar ao convite. Não há
um único traço da mensagem cristã que não seja, de alguma forma,
resposta à questão do mal 280.

Por que Deus não criou um mundo tão perfeito, que nenhum mal
nele pudesse existir? No seu poder infinito, Deus poderia sem
dúvida ter criado alguma coisa melhor (Cf. Santo Tomás de Aquino,
Suma 1,25-6). Todavia na sabedoria e bondade infinitas, Deus quis
livremente criar um mundo "em processo", a caminho da perfeição
última. Essa evolução supõe, segundo o desígnio de Deus, a
aparição de certos seres e o desaparecimento de outros, o mais
perfeito e o mais imperfeito, tanto a construção da natureza como a
destruição. Com o bem físico existe também o mal físico, enquanto a
criação não houver atingido sua perfeição 281.

A respeito do pecado, sofrimento e mal, há um interessante


pronunciamento do papa João Paulo II, cujo pontificado esteve muito
atento a essa problemática:

A realidade do mal e do sofrimento presentes sob tantas formas na


vida humana constitui para muitas pessoas a principal dificuldade
em aceitar a verdade acerca da Divina Providência 282.

Há pessoas que acusam Deus como causa do mal e do sofrimento


no mundo. Outras não chegam a tanto mas fazem muitas interrogações
críticas a Deus. De fato o problema do sofrimento é muito constante e
angustiante para o mundo. Por isso a Sagrada Escritura com tanta
freqüência fala dele, já que o mal e o sofrimento são em si mesmo
multiformes. Prossegue João Paulo II:

Comumente se distingue o mal físico e o mal moral. 0 mal físico não


inclui necessária e diretamente a ação do homem embora isso não
signifique que possa ser causado pelo homem ou ser efeito da sua
culpa. O sofrimento nasce no homem, pela experiência dessas
múltiplas formas do mal. No contexto da verdade integral acerca da
Divina Providência somos ajudados a compreender melhor as duas
afirmações: "Deus não quer o mal como tal‖, mas ―Deus permite o
mal‖. A propósito desta afirmação é oportuno recordar as palavras
do livro da Sabedoria: ―Deus não é o autor da morte e a perdição dos

280
CIC 309
281
CIC 310; Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, Suma aos gentios, 3.71
282
JOÃO PAULO II - L'Osservatore Romano de 08/06/86
226

vivos não lhe dá nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a
existência (Sb 1,.13s)‖ 283.

Com todas essas colocações, conhecedores da estratégia dos


demônios, em ameaça à vida da graça, podemos concluir que Deus não é
o autor do mal. Também o ser humano, pelas características de sua
composição e imperfeição, não poderia ser autor de nada. O homem pode,
eventualmente, praticar o mal, embora com isto não faça parte de sua
constituição inicial. Vulnerável e suscetível a induções, ele pode praticar o
mal, sim, mas sob a inspiração de outrem, daquele que, justamente é
conhecido como ―autor e princípio de todo o mal‖. A respeito do mal, o
Magistério da Igreja resume, dizendo:

A permissão divina do mal físico e do mal moral é um mistério que


Deus esclarece pelo seu Filho, Jesus Cristo, morto e ressuscitado
para vencer o mal. A fé nos dá a certeza de que Deus não permitiria
o mal, se Ele não
fosse capaz de tirar o bem, mesmo do mal, por caminhos que só
conheceremos plenamente na vida eterna 284.

4. O pecado é uma criação humana?

O homem é criador de alguma coisa no sentido estrito do verbo


criar? A resposta é não. Ele inventa, fabrica, organiza, elabora, tudo a
partir de matérias ou idéias preexistentes, mas é incapaz de tirar alguma
do nada, ex nihilo. O homem pode, por lapsos de vigilância, cometer
pecados, mas a criação do mal, não é humana, mas metafísica, ou seja,
vem de alguma coisa sobrenatural, além da física. E se essa
sobrenaturalidade não vem de Deus, só pode ter origem no Diabo.

Como não foi Deus que criou a desordem, ela nasce de algum
espírito desordeiro, ou seja, de algum diabolos. Lemos no livro de Henoc
(um texto apócrifo, escrito por volta de 100 a.C.), o episódio da expulsão
dos ―filhos de Deus‖ (cerca de 200 demônios, anjos caídos) para o mundo
dos homens (terra). No livro do Gênesis (cf. 6,4) lê-se que os ―filhos de
Deus‖ (anjos caídos) seduziram as ―filhas dos homens‖ (mortais), de cuja
união nasceram ―gigantes‖ (nefilim). Após o dilúvio, intentado por Deus
para erradicar a maldade do mundo, os nefilim teriam ensinado aos
homens a comer a carne dos animais, o que até então era proibido.
Instaura-se a desordem, definitivamente, a partir da práxis dos espíritos
maus.

283
JOÃO PAULO II - L'Osservatore... idem
284
CIC 324
227

É bem provável que os judeus hajam sido influenciados pela


demonologia dos babilônios, quando do exílio do século VII a.C., pois é a
partir desta época que a religião hebraica se interessou pela visão dualista
do bem e do mal. Esta visão se estenderia pelo Novo Testamento, até a
idéia da Besta do Apocalipse.

Considerando o papel importante de Satã no Novo Testamento,


notamos que ele tem diversos nomes. Trinta e cinco vezes nos
evangelhos ele é chamado de ―satã‖; trinta e sete vezes ele é o
―diábolos‖ (ou diabo); muitas vezes ele é o ―inimigo‖, e sete vezes é
referido como ―belzebu‖, que significa ―senhor das moscas‖, e se
refere à divindade persa, Arimã. No quarto evangelho também
encontramos freqüentes referências ao diabo, citado muitas vezes
como ―o príncipe deste mundo‖ 285.

Em muitos trechos do AT, Satã não é visto como ―autor do mal‖,


mas um ―acusador‖ (como em um tribunal). Trata-se de uma figura
ambígua, não definida como maléfica. Há narrativas (cf. Zc 3,11) que, de
um lado Satã acusa e de outro o anjo defende a fidelidade de alguém. Em
alguns casos, ele está como que a serviço de Deus:

O espírito de Javé afastou-se de Saul, e ele começou a ficar agitado


por um espírito mau, enviado por Javé. Então os servos de Saul lhe
disseram: ―Você está sendo agitado por um espírito mau enviado por
Deus‖ (1Sm 16,14s).

As antigas culturas da Europa e Ásia sempre temeram os ―maus


espíritos‖, vistos como autores de toda a maldade e terror. Apenas a
civilização judaico-cristã insiste em ver a origem do mal, mais no ser
humano do que nos espíritos e nas ameaças metafísicas. O índio
americano crê em Tupã ou Manitu, mas teme, na mesma intensidade as
ameaças do Curupira, de Anhangá e de animais endemoniados. Na África,
as tribos da região central cremavam os mortos, para que seus corpos não
fossem tomados por ―espíritos maus‖. Na crença do vodu, da América
Central, os zumbis, chefiados pelo Sr. Sábado (samedi), uma entidade
maléfica, são mortos-vivos, que voltam do ―mundo das sombras‖ (morte)
para aterrorizar as pessoas e cometer maldades.

Os verdadeiros cristãos não podem excluir o Diabo das coisas em


que acreditam. Ele está claramente exposto nas páginas da Bíblia,
que trata o tema com detalhes. Os crentes não podem se opor ao
ensinamento apostólico. Desde Moisés até o apóstolo João, os
escritores sagrados escreveram a respeito desse assunto da maneira
mais eficaz, para que os leitores da Bíblia soubessem e entendessem
que Satanás é um espírito mau, sobre-humano e muito real 286.

285
J. A. SANFORD, O Mal... op. cit.
286
R. RUITER, O Anticristo, op. cit.
228

Na prática, mal e pecado se confundem, assim como bem e graça.


Praticar o mal é exercer uma ação de pecado. Nesse particular, vemos que
o pecado é ação humana, mas não criação do homem. Já havia pecado (a
rebelião dos anjos) antes de o homem ser criado. Funciona como na
confecção. Quem faz a roupa é o alfaiate ou o camiseiro. O homem é o
consumidor, que se agrada do produto e compra-o para usar. O mal, neste
caso, por metafísico, vem dos demônios, e o homem, por fraco e vacilante,
adere a ele. Pior que o mal cometido é o mal consentido:

Lembra-te de que não serás sempre e exclusivamente responsável


pelo que tiveres feito, senão pelo bem que tiveres deixado de fazer
287.

Os crentes e os fiéis temem o pecado, pois não querem romper a


amizade com Deus, nem expor-se às perdas decorrentes dessa ruptura. O
homem – e essa definição é socio-lógica – foi criado intrinsecamente bom.
O mundo, o convívio com os maus, as desordens psicológicas, as faltas de
fé, ânimo e vigilância, aliadas à fragilidade e à propensão à ruptura, é que
permitem o florescimento, do mal e do pecado. O homem nasce bom, não
cria o mal, mas traz consigo uma natural propensão ao desajuste,
chamada de ―pecado original‖.

O fato é que Satanás injetou tamanha desordem no mundo, que


certas coisas não podem ser consertadas na hora, mas carecem de algum
tempo, um kairós, para serem ordenadas e vencidas.

5. Por que sofro, se tento ser bom?

Volta a questão de Epicuro e o drama de Jó. Por que Deus não evita
o mal? Por que não salvou o Filho na cruz (meu Deus, por que me
abandonaste?). É preciso ver com olhos de fé; só com fé se pode
compreender e enfrentar o mistério do mal. Na hora do desespero, pessoas
clamam (e até blasfemam), reclamando alguma providência que entendem
que Deus deveria ter tomado e não tomou: Meu Deus, por que?

O Deus-em-si (o deus dos filósofos e dos racionalistas) não é o Deus-


para-nós (o Deus dos que têm fé). Não se pode pensar em Deus isolando-o
do mal. Se assim fosse, a quem recorreríamos?

O cristão sabe e crê que seu Deus não pode e não deve ser poupado
do problema do mal. É isto que devemos fazer: depositar o problema
in Deo. Passar o problema para ele 288.

287
TH. KEMPIS. A imitação de Cristo
288
A. GESCHÉ. O Mal... op. cit.
229

Sobre esta questão, há um aforismo profundo e questionador, que


diz: ―Não diga a seu Deus o tamanho do seu sofrimento (ele sabe); diga ao
sofrimento, o tamanho do seu Deus‖.

Jesus deixa que experimentemos a nossa incapacidade, certamente


não com a intenção de nos desencorajar, mas para fazer-nos
experimentar o extraordinário poder da sua graça, que se manifesta
justamente quando parece que nossas forças não vão resistir, a fim de
nos ajudar a entender melhor o seu amor. Porém, com uma condição:
que tenhamos uma total confiança nele, como uma criancinha que
confia na sua mãe 289.

A parábola do trigo e do joio nos fala do Reino de Deus na etapa


atual do seu desenvolvimento: hoje, a semente boa do Reino convive com o
joio. O bem e o mal crescem juntos. Aceita essa condição e perspectiva; é
fundamental saber assumir as ambigüidades da própria vida. Assumindo
essa condição, a atitude que se espera é de luta contra o mal de forma
realista. Para isso é preciso superar o instinto de vingança que paga o mal
com o mal. Neste sentido a resposta de Jesus é clara: trata-se de retribuir
o mal com o bem, numa atitude de amor-serviço gratuito, que é fruto da
experiência da gratuidade com que Deus nos ama. Esse vencer o mal com
o bem não significa resignação passiva. Implica, ao contrário, um
empenho positivo que compromete muito mais radicalmente do que as
atitudes de vingança ou a aplicação da velha lei judaica do Talião.

Nisso Jesus é paradigmático, pois agiu contra a doença, curando


(Mc, 1,34); contra o pecado, perdoando (Lc 23,34) e não cometendo ele
mesmo nenhum pecado (Jo 8,46). Jesus agiu contra o mal fazendo
unicamente o bem (Mc 3,4). Agiu contra o ódio (Jo,7,7; 15,18), amando até
a morte. E morte de cruz. Ao invés de julgar o mundo, o salvou (Jo 3,17).

Mas devemos propor-nos outra questão: Que pensar de quem,


apesar de tudo, não cura? Que não tem fé, ou que Deus não o ama?
Se a persistência de uma enfermidade fosse sinal de que uma
pessoa não tem fé, ou de que Deus não a ama, haveria que concluir
que os santos eram os mais pobres de fé e os menos amados por
Deus, porque alguns passaram a vida na cama, sofrendo dores
atrozes. A resposta é outra. O poder de Deus não se manifesta só de
um modo – eliminando o mal, curando fisicamente – senão também
dando a capacidade, e às vezes até a alegria, de levar a própria cruz
com Cristo, completando o que falta a seus padecimentos. Cristo
redimiu também o sofrimento e a morte. Esta já não é sinal do

289
CHIARA LUBICH, As façanhas do amor, Revista Cidade Nova, julho de 2005.
230

pecado, participação na culpa de Adão, mas que é instrumento de


redenção290.

Vários textos bíblicos, e a cruz é o mais claro deles, revelam que


diante da perspectiva do mal, Deus não procurou ser poupado, o non
pepercit de São Paulo (cf. Rm 8,32) no-lo revela. Assim, seria uma
descomunal blasfêmia até, na hora do perigo, o crente não lançar as
trevas do mal que o assolam à luz do poder divino. Por maior que sejam, a
dor e o sofrimento, eles não podem nos fazer esquecer a ação de Deus,
pelo poder, pela presença, pela esperança e pelo consolo.

A última das imprudências é a prudência, quando ela nos prepara


suavemente para dispensar Deus 291.

Não há meios de entendermos o mal e o sofrimento enquanto não


mergulharmos profundamente em Deus, entendendo-o. Assim como ao fiel
não é lícito negar a Deus, igualmente ele não deve poupar a Deus,
excluindo-o da solução do problema de seus males. As frases bíblicas
―Deus onde estás?‖ e ―Meu Deus, por que me abandonaste?‖, devem fazer
parte de nosso repertório de clamores. Um dia, julgando-se perdido e
abandonado, o povo clamou a Deus. Algum tempo depois, breve, ele
escutou a resposta:

Eu ouvi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o
seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos.
Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios... (Ex 3,7s).

A pessoa que tem fé deve, na hora da angústia, inquirir a Deus, ou,


para usar a linguagem profética, ―abrir processo contra‖, dirigir-se a ele
com respeito mas também com veemência de quem sabe que só dele pode
vir a resposta e a solução. Em um determinado momento, no desespero do
sofrimento, o salmista bradou (no que foi, mais tarde, repetido por Jesus):

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Sl 22,2; Mt 27,46).

Esta veemência, ao contrário do que alguns puristas possam


argumentar, é nítida expressão de fé. O erro seria fechar-se, dizer ―não
tem mais jeito‖, ―não adianta mais... sem solução‖. Não! Tem solução,
sim. Deus é a nossa solução. Só com ele podemos vencer o mal.

O mal é algo monstruoso para que se possa olhá-lo sem se


escandalizar. Ao menos sem se espantar e sem se surpreender. O
erro de certas teodicéias é encobrir, logo de início, esse espanto e
esse escândalo. A esse preço, a defesa de Deus se torna totalmente
inoperante, o que, evidentemente, não nos alegra. O discurso sobre

290
Trecho da homilia de R. CANTALAMESSA (pregador da casa Pontifícia), em 23/01/2004 sobre Mt 4, 12-23.
291
G. BERNANOS. Diário de um pároco de aldeia. 22a. edição. Ed. Paulus, 2004.
231

Deus e o mal, não pode impedir o grito que o homem dirige a Deus
292.

Ao pretender inocentar Deus, de forma tão radical, não estariam


alguns expulsando-o do problema, quando o salutar seria que ele aí
estivesse presente? O ateu o exclui por falta (Deus não existe!). O
inconseqüente o exclui por excesso (vamos deixar Deus fora disto!). E com
isto, o homem sofre sozinho, fica órfão de consolo. A resposta à questão do
mal – por que sofro? - pode ser for formulada em três etapas concêntricas:
eu sofro,

 porque sou pecador (mal moral);


 porque sou fraco, física e psicologicamente, e por certos males
inevitáveis como enchentes, furacões, etc. (mal físico);
 porque o Diabo tem inveja de mim (mal metafísico).

Questionado por Jó (cap. 38), a respeito do sofrimento injusto, Deus


responde com outra pergunta:

Onde você estava quando eu coloquei os fundamentos da terra? (v.4)

Diante do mistério, Jó não sabe o que responder. Ele se curva e se


entrega; é incapaz de desvendar a questão do mal. O ser humano pode ser
muito inteligente, estudar, ter um raciocínio brilhante, possuir uma
enorme biblioteca. Mas tem uma hora, que, como Jó, ele precisa
reconhecer que não pode compreender tudo. Então é a hora de baixar a
cabeça e entregar-se ao mistério.

Uma vez, numa celebração de exéquias, uma pessoa mostrava-se


muito triste, por haver perdido o pai. Foi quando alguém lhe falou a
respeito dos navios que avançam mar adentro. Primeiro, como a vida, o
navio está diante de nós, enorme, bonito, colorido. Depois vai diminuindo
até desaparecer. Na verdade, ele não desapareceu, apenas avançou e
agora singra águas mais profundas. Nós não o enxergamos (por deficiência
de nossa visão), mas ele está lá, do mesmo jeito que o vimos antes. A
pessoa que morre, não desaparece; apenas singra outras águas: as águas
de Deus. Nós, às vezes – diante de uma contrariedade – perguntamos: ―O
que eu fiz pra merecer isso?‖ ou, ―Por que Deus tinha que fazer isso justo
comigo?‖. Aqui vai uma belíssima explicação (de um autor desconhecido)
que um amigo mandou-me pela Internet.

Na vida, a cruz aparece como um gesto corajoso da livre decisão de


Jesus, à medida em que ele decidiu ser fiel ao projeto do Pai e do Reino.
Deus não quis a morte do seu Filho, mas não poderia evitá-la sem
contrariar a liberdade humana e alterar os caminhos da história. O que
parecia ser uma vitória do mal, acabou sendo revertida em glória.

292
A. GESCHÉ, op. cit.
232

Ressalta-se na Ressurreição de Cristo, mais que nunca, a luta de Deus


contra o mal. Vamos à historieta:

A garota disse à mãe como tua ia errado na sua vida. Ela não se
saíra bem na prova de matemática. Brigou com o namorado. E sua
melhor amiga estava de mudança para outra cidade.

Em horas de amargura, aquela mãe sabia como agradar a filha,


preparando-lhe seu bolo predileto. Naquele momento não foi
diferente. Abraçou a menina e levou-a à cozinha, conseguindo
arrancar da filha um sorriso sincero. Logo que a mãe separou os
utensílios e ingredientes que usaria, a mulher perguntou à filha:
―Querida, vai querer comer do meu bolo?‖. A filha respondeu de
pronto: ―É claro que quero, mamãe, seus bolos são maravilhosos!‖.
Disse a mãe; ‖Então está bem, beba um pouco deste óleo de
cozinha!‖. Assustada, a moça respondeu: ―Credo, mãe!‖ E o diálogo
prosseguiu: ―Que tal, então, comer ovos crus, filha?‖. ―Que nojo,
mãe!‖. ―Quer então um pouquinho de farinha de trigo ou
bicarbonato de sódio?‖. ―Mãe, isto não presta!‖. A mãe então, com
aquela ternura que só as mães têm, respondeu: ―É verdade, filha,
todas essas coisas parecem ruins sozinhas, mas quando as
juntamos, na medida certa, ficam uma delícia... Deus trabalha do
mesmo jeito. Às vezes a gente se pergunta por que ele quis que nós
passássemos por momentos difíceis. Mas Deus sabe que quando ele
coloca todas as coisas na ordem exata, elas sempre nos farão bem. A
gente só precisa confiar nele e todas essas coisas ruins se tornarão
algo fantástico. Deus é louco por você! Ele te manda flores em todas
as primaveras... faz nascer os sol todas as manhãs... E sempre que
você quiser conversar, ele vai te ouvir! Ele pode viver em qualquer
lugar do universo, e escolheu o seu coração‖ 293.

Acho que esta mensagem é endereçada ao coração de todas as


pessoas (inclusive ao meu), que não têm uma noção exata sobre a origem
do mal. O grande desafio do teólogo, na questão do mal, é ir até o fim, pelo
menos até onde sua inteligência alcança, e o bom senso fixa limites. A
questão do mal, como problema do homem também interessa a Deus.

Parece-me que uma dor verdadeira que afeta o homem, passa


primeiro por Deus 294.

A teologia – diferente do que costuma acontecer com outras ciências


– deve fazer da questão do mal um debate prioritário, um problema
interior à sua própria forma de sentir, porque assim ela induz o sofredor a
pensar Deus até o fim. Se aceitamos o que Deus tem para nós, nosso mal
se transforma em bem, e o nosso dia-a-dia torna-se como um ―pedaço de

293
Texto recebido pela Internet. Autor desconhecido.
294
G. BERNANOS, op. cit.
233

bolo‖. Daquele bolo que mais gostamos, feito pela nossa mãe. Se nos
entregamos ao amor de Deus, nossos fantasmas se convertem em anjos, e
nossas dores em alegria.
234

O bem e o mal
são duas serpentes
enrodilhadas,
que se cruzam, se misturam
e se interpenetram,
tentando devorar uma à outra.

Antigo provérbio mesopotâmico


do séc. VIII a.C.
235
236

Conclusão

O ponto alto da oração cristã de todos os tempos desemboca no


clássico ...mas livra-nos do mal (cf. Mt 6,13b), pedido este que,
praticamente faz o fecho da oração do ―Pai Nosso‖. Pois tal pleito revela
que o mal, além de um mistério, é uma ameaça e um ponderável desafio
que o ser humano não sabe enfrentar. Os conflitos, incompreensões e
ambigüidades da vida apontam para uma etapa da obra ainda não
concluída. Santo Tomás disse, em um de seus sermões, que ―de Deus
sabe-se mais o que não é do que o que é ‖. De fato, certas manifestações de
pessoas, diante do sofrimento, do mal e da morte, evidenciam que eles
conhecem muito pouco a Deus.

Falta-nos, em muitos casos, uma compreensão mais apurada sobre


o amor de Deus. Nós, geralmente, confundimos amor com poder.
Entendemos que, porque ele nos ama, deve colocar todo o seu poder a
nosso serviço. Como se tudo girasse ao nosso redor. Queremos que ele
seja conosco como uma ―super-mãe‖, dessas que pensando amar os filhos,
sufocam e impedem seu crescimento integral. Pensam quem amam, e
querem o melhor para o filho, porém, o que fazem não é expressão (e
prática) de amor, mas de domínio. Nosso Deus é um Deus de amor,
misericórdia e perdão. Esta é a certeza inabalável que deve nortear nossa
vida, mesmo que ―as águas do mar da vida‖ queiram nos afogar‖, é preciso
ver sua presença a nosso lado. O cristão deve confiar, mesmo quando a
dúvida o assalta, mesmo diante das grandes calamidades, da violência,
das enfermidades, da morte. O salmista encoraja os fiéis:

Javé ampara todos os que caem e endireita todos os curvados (Sl


145,14)

O amor de Deus atua de forma partidária, assumindo a causa dos


sofridos e colocando-se ao lado dos oprimidos que invocam seu nome, em
processos contra o mal e todo tipo de opressão. São Paulo disse que a
razão da existência do mal no mundo se encontra nas ações do próprio
homem, que em geral deseja o bem mas não o pratica, dando lugar ao mal
em sua própria vida (cf. Rm 7,19). Mau é todo o comportamento humano
que se opõe à esperança criada por Jesus em um mundo novo, onde
impera a justiça, a ordem e o amor.

A verdade é que neste ―vale de lágrimas‖ onde o bem e o mal se


alternam como o trigo e o joio naquela lavoura bíblica, nunca estaremos
completamente livres do mal. Ele faz parte de nossa natureza propensa ao
desajuste, vem com nossas fraquezas materiais, e faz parte das
armadilhas criadas pelo Maligno, ciumento da amizade do homem com
seu Criador. Dessas três fontes nos vêm o mal, e não dá para evitar sua
237

ocorrência. Uma vida reta, de fé, amor, esperança, fidelidade ao projeto


divino, tudo pode minimizar seus efeitos, mas vencê-las totalmente, só na
dimensão escatológica, onde/quando Deus será tudo em todas as coisas
(cf. 1Cor 15,28).

Com o olhar desviado, dirigido à fenomenologia dos mitos e das


fantasias, algumas pessoas costumam questionar: ―de onde vem o mal?‖,
ou ―por que isto aconteceu comigo?‖. Como tais perguntas não irão ter,
jamais, uma resposta satisfatória, o caso é reformulá-la: ―o que o cristão
deve fazer contra o mal?‖ Com o olhar assim voltado ao futuro (para onde
aponta a esperança e onde pode estar a resposta) e não ao passado (onde
ocorreu o mal), é possível encaminhar alguns raciocínios capazes de levar
à compreensão e solução daquilo que, até então é mistério. A luta contra o
mal não diminui as perdas já sofridas, mas pode evitar/diminuir as dores
futuras. Pode até trazer consolo para o sofrimento passado. Se
conseguirmos retirar os sofrimentos do mundo, aqueles causados pelos
homens, veremos que vai restar uma dose bem menor de penas. Às
pessoas de bom coração, cabe uma luta incessante contra o mal. Que tipo
de mal? Primeiro o mal dos corações, inveja, ódio, egoísmo, intolerância,
incapacidade de perdoar. Depois, o mal das estruturas, ganância,
opressão, exclusão e morte. Que armas vamos empregar nessa luta? A
verdade, a justiça, a Palavra de Deus e a fé (cf. Ef 6,10-17).

Muitos reclamam do abandono de Deus em certas circunstâncias da


vida. Não será antes um abandono de nossa parte? Ele está sempre em
nosso interior, mediante seu Espírito, agindo e mostrando—se vivo e
atuante. Não se pode confundir o silêncio de Deus com a ausência de
Deus. Para escutá-lo é necessário silenciar a voz do nosso egoísmo e auto-
suficiência. Diante da ocorrência assustadora do mal, aparecem várias
formas de reação:

 Adão ―passa a bola‖, acusando Eva...


 Jacó sem saber, lutou com Deus, e este santificou sua luta,
chamando-o de Israel (Itz-rah-el, ―aquele que lutou com Deus‖);
 Jó protesta...
 Saul vai consultar necromantes...
 Pedro grita: ―Senhor, salva-me!‖...
 Judas se enforca...

A mensagem central, o sitz im lebem deste trabalho é a certeza de


que Deus não é o criador nem o responsável pelo mal que existe no
mundo. A maldade é fruto das criaturas, materiais (seres humanos) e
sobrenaturais (os maus espíritos) e também os acontecimentos da
natureza (o mal físico). Os jornais nos mostram, todos os dias, atitudes de
maus motoristas, imperitos, imprudentes, embriagados, negligentes e
irresponsáveis que trafegam por nossas estradas, protagonizando
acidentes terríveis. Parece que quanto maior a advertência, maior o desejo
de praticar infrações. Ora, o construtor da estrada não quis os acidentes,
238

mas que todos trafegassem em paz, alegria e segurança, na direção de


seus destinos e objetivos. O engenheiro que projetou a estrada não é o
autor dos acidentes, Ele construiu a rodovia em plenas condições de
trafegabilidade, sinalizada e com refúgios, de tanto em tanto, além de
agentes que fiscalizam. E mesmo assim existem acidentes. De quem é a
culpa?

Na conclusão desde trabalho, se pode estabelecer uma tese a


respeito do mal, especificamente o mal sofrido pelo inocente, aqui referido
desde as primeiras páginas. Por que, queremos saber, o ―tarado‖, em Porto
Alegre, mencionado aqui, torturou, estuprou e matou a menina de quatro
anos? Quais os tipos de mal que catalogamos? O mal físico, o moral e o
metafísico. Vamos dissecá-los à luz do crime praticado.

mal físico
tratava-se de uma menina fraca, frágil não teve as mínimas
condições de reagir, de correr; talvez nem soubesse, no início, o que
estava efetivamente acontecendo; o mal físico foi a violência que
atacou seus sistemas vitais, provavelmente o respiratório (ela
morreu enforcada), ocasionando sua morte. A causa mortis é física;

mal moral
o mal moral é o pecado, cometido por um indivíduo malvado,
instrumentalizado pelo Diabo, por certo com problemas mentais
(psicopata), socialmente desajustado (sociopata), contaminado pelo
erotismo, gratuito e barato que é produzido pela mídia, usando mal
sua liberdade;

mal metafísico
o mal metafísico ocorre pela fragilidade do ser humano: ele é criado
vulnerável, sujeito à morte; depois, pela inveja que o Demônio teve
da inocência da menina, sinal da pureza das almas fiéis; assim, ele
instrumentalizou a ação do maníaco, a fim de levar a família – no
desespero – a rejeitar a Deus. Não esqueçamos que é ―homicida‖ e
age por maldade, buscando desviar as pessoas que se revoltam,
atribuindo a Deus as causas de seus males.

Judas faz o tipo do ser humano que sofre o assédio do mal e não
consegue se libertar. Por isto ele experimenta o mal (metafísico, moral e
físico).

 o Diabo coloca a má semente no seu coração (cf. Lc 22,3; Jo


13,2)  metafísico;
 ele ―vende‖ (pecado) Jesus aos fariseus (cf. Lc 22,4ss)  moral;
 de seu pecado brotam dois males físicos: Jesus é assassinado e
ele se suicida.
239

A vida humana, muitas vezes, no confronto com o mal, sofre, em


seqüência, essas vicissitudes (em geral nessa ordem):

 mal metafísico (indução do Maligno, inspirações extrínsecas,


limitação de vontade, propensão ao desajuste e/ou incapacidade
psíquica); o metafísico leva ao
 mal moral (o pecado, a ação ou omissão maldosa); deste, brota o
 mal físico (o sofrimento, a violência, a agressão, a tortura e a
morte); também existem danos físicos, em geral sem as causas
acima (fenômenos da natureza, desastres ecológicos ou acidentes
naturais).

Já que o mal, geralmente apresenta-se sob estas três


características, cabe ao ser humano sempre uma atenção à iminência
desses males. É por isto, que na Missa, quando é renovado diariamente o
sacrifício vicário de Jesus, a Igreja toda pede por libertação:

Quando fizermos parte da nova criação, enfim libertada de toda


maldade e fraqueza, poderemos cantar a ação de graças do Cristo
que vive para sempre. (trecho final da ―Oração Eucarística‖).

Desta forma, o mal, por mistério naquela acepção mais estrita que a
teologia usa, nunca será integralmente por nós, nesse status viator. Como
humanos, não temos visão suficiente para enxergar e decifrar sua
essência. Só podemos ver pela fé e aguardar o eterno bem, pela
esperança. Assim como o mal é mistério, também os desígnios de Deus,
para evitá-lo aqui e acolá, em casos esporádicos ou aleatórios, naquilo que
chamamos de ―milagre‖. Sob essa perspectiva, na hora do desastre
algumas pessoas perguntam: ―por que Deus não fez um milagre?‖
Entender a dinâmica do fato taumatúrgico (o milagre) é tão complicado
quanto compreender o milagre. Durante sua vida pública, Jesus fez
muitos sinais, que serviram para dar um realce à sua co-divindade com o
Pai e o Espírito, para ajudar algumas pessoas, e para colocar, de forma
clara e pedagógica a perspectiva do Reino:

Jesus fez um sinal Porque no Reino

salvou a festa em Caná a festa nunca tem


fim
curou doentes não há doença nem
sofrimento
expulsou demônios o mal é
vencido
multiplicou pães há fartura
absoluta
perdoou e ensinou a perdoar o homem está reconciliado com
Deus
240

reintegrou os excluídos ninguém é


marginalizado
transfigurou-se no Tabor Deus é uma presença
sensível
fez refeição com os pecadores na mesa do Pai tem lugar para
todos
ressuscitou a vida é abundante
É preciso entender o dilema divino. Deus não cria brinquedos e
robôs para manipular. Ele criou pessoas capazes (e responsáveis) de fazer
suas escolhas. Por causa do pecado, o ser humano é mortal, fraco,
vulnerável e falível. Nessa contingência, o mal sempre é fruto do desajuste
físico (fenômeno da natureza, doenças, etc.), moral (pecado, violência, falta
de responsabilidade), e metafísico (as forças do mal, a limitação humana,
etc.). A despeito de conhecer o risco de entregar a terra a criaturas tão
frágeis e falíveis, o plano da criação foi mantido, apesar da revolta das
primeiros criaturas (os anjos rebeldes). Nesse mundo infenso, Deus
colocou o ser humano, homens e mulheres, dotados de liberdade e
inteligência, para fazer o bem, evitar o mal e aceitar eventuais tragédias
inevitáveis, fatos inerentes à fugacidade e fragilidade da vida. Mesmo
assim, o Criador olhou para sua obra e achou que tudo estava muito bom
(cf. Gn 1,31).

O milagre é um fato sobrenatural que contraria a lógica e a


natureza. Deus não pode andar por aí contrariando a natureza. O ser tem
suas limitações: seu coração às vezes é fraco; ele não pode respirar
debaixo d‘água; uma batida muito forte cria lesões mortais; certas
enfermidades avançam demasiadamente rápidas, impedindo a cura. E
assim por diante. Seria demais exigirmos que Deus andasse por aí, qual
um ―rebatedor‖ de beisebol, com o taco na mão, rebatendo males,
ameaças e enfermidades de todos. Isto seria contrário ao processo natural
da vida. Às vezes milagres acontecem. A intercessão da Virgem Maria,
santos e beatos tem ensejado essas maravilhas (tauma, milagre,
maravilha), mas sempre em circunstâncias anormais, aleatórias e
eventuais. Como Deus é mistério, igualmente o é sua atividade e desígnio.

A ocorrência de seus milagres foge a qualquer especulação lógica.


Milagres não acontecem todo o dia. O agraciamento do milagre, em favor
de alguém é algo inserto no mistério de Deus. Por causa desse mistério, a
defesa contra o mal pode não acontecer, mas Deus nunca nega seu
consolo e o dom da fortaleza para que a pessoa supere a dor de alguma
ocorrência.

O mal, nunca é demais repetir, é um mistério. Deus sabe porque ele


ocorre e, se permite sua incidência, não é por maldade ou omissão, nem
tampouco por vingança ou castigo (essas características negativas não
fazem parte da essência divina), mas para que o homem viva com cuidado
(corpo, alma, próximo e natureza) e tire, mesmo das circunstâncias
negativas, uma lição, ou mesmo, um bem maior. Imediatista e
materialista, o ser humano geralmente não tem essa visão à vista do mal
241

ou da tragédia. É impossível entender as desgraças sem compreender a


extensão do conflito cósmico entre o bem e o mal, em andamento, desde o
princípio até a consumação. O sofrimento, sem os olhos da confiança em
Deus, nunca será entendido e aceito. Ele é um mistério que Deus aos
poucos nos revela. Somos afligidos pela triste tendência humana de
creditar a nós, todos os sucessos da via, culpando a Deus por aquilo que
não deu certo. Há uma singela história que conta os apertos de uma
criança, na analogia do mal:

Ela brincava no chão enquanto a mãe bordava. A criança olhava


para cima e não conseguia distinguir o bordado, pois tudo não
passava de um emaranhado de fios. Quanto mais a mãe bordava,
mais a criança ficava intrigada, por causa daquilo que via, não
gostava e não entendia. De repente ela falou à mãe: ―Por que este
seu bordado está tão feio?‖. A mãe respondeu-lhe: ―Não te
preocupes! Vais ver que no fim, quando tudo estiver pronto, tu vais
entender e gostar!‖. A criança, do chão, olhava para cima e não
gostava do que via. Mais tarde a mãe disse: ―Está pronto o bordado!
Vem para o meu colo!‖. A criança deu um salto e foi para o colo da
mãe, curiosa para ver o fim do bordado. Ela contemplou a obra e viu
que estava uma beleza, que só a mamãe podia fazer uma coisa
daquelas...

Assim também ocorre com a gente. Somos meninos no chão,


tentando olhar para cima, enxergando a obra de Deus pelo lado humano,
por baixo, pelo avesso (nossa forma limitada de ver as coisas). Um dia
Deus nos chama, e sentados no seu colo, vemos seu trabalho do jeito que
ele realizou, coisa que ―daqui debaixo‖ era impossível admirar e
compreender. O Deus da Bíblia é o Senhor que vem ao encontro do seu
povo para libertá-lo do mal (cf. Ex 3,8; 18,10). O Apocalipse começa (1,4.8)
e termina (22,20) com a promessa do Cordeiro que vem fazer justiça. Ao
afirmar que os que choram serão consolados (cf. Lc 6,21) e os que têm
fome e sede de justiça serão saciados (cf. Mt 5,6), Jesus se coloca contra o
mal, e ao lado daqueles que sofrem. O anúncio do Reino é o centro da
mensagem amorosa do Cristo. É a utopia mobilizadora da vitória do bem
sobre o mal. Na Igreja, a liturgia eucarística é uma efeméride de caráter
festivo, pois celebra a vitória da luz sobre as trevas, da vida sobre a morte.
Do bem sobre o mal. Jó afirmou amar a Deus por nada, apenas por causa
da fé e da confiança, fazendo Satã perder sua aposta. Amar a Deus por
nada, apenas pelo que ele é, é sair do círculo vicioso e interesseiro da
retribuição, e penetrar na órbita do amor, onde nada carece de provas ou
confirmações.

O sofrimento do inocente sempre é injusto e tem origem naquele que


é injusto desde o princípio. O Diabo se revolta contra quem é inocente,
fere-o cruelmente na esperança de ver os demais (especialmente a família
da vítima) repudiarem a Deus e amaldiçoarem seu Nome.
242

Quando às vezes, diante do mal sofrido por alguma pessoa,


deixamos de lembrá-lo do amor de Deus, estamos aumentando seu mal,
na medida em que nos omitimos de alimentar sua fé e esperança,
deixando-lhe, no lugar do consolo, o desespero. Não somos responsáveis
só pelo mal que fazemos, mas também por sua continuidade e
prossecução, através das conseqüências que resultam desse mau
comportamento.

Deus é bom? Sim, claro que ele é bom! Então por que existe o mal?
Sendo amor (cf. 1Jo 4,8) Deus não é autor do mal! O mal existe? Sim, o
mal existe; é inegável sua existência. Se Deus não é o autor do mal, quem
é então? Desde o princípio, com a rebelião dos anjos, o mal passou a
existir, fruto dessa queda. Ciumento, o demônio contaminou a
humanidade, instaurando também um regime de pecado e maldade.
Seduzido pelo mal, o homem cai em pecado, praticando toda a sorte de
maldades. Mas Deus não ficou indiferente. Sabendo da existência do mal,
e o perigo que ele representa para os homens, deu-nos Jesus Cristo (cf. Jo
3,16) para que todo que nele crer não pereça, mas tenha a vida. Por causa
de Jesus, a humanidade vence o pecado, o temor e a morte. Deus não
criou o mal, mas dá o ―remédio‖ contra ele.

Mesmo sem entender na totalidade o mistério do mal, o inocente


sofredor sabe que tem em Deus o consolo e o lenitivo para suas dores. O
certo é que, a despeito da virulência da maldade, o bem, porque vem de
Deus, sempre haverá de triunfar. Ao ser humano – não só o cristão – cabe
crer em Deus, amando-o, apesar do mal.
243

BIBLIOGRAFIA
Outras obras consultadas

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A. Touraine, Crítica da modernidade. Ed. Vozes, 1994.
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R. Verneaux, Problèmes et mystères du mal. Paris, 1956.
T. Chardin, Comment je crois. Paris, 1934
244

ÍNDICE ONOMÁSTICO

A. ADLER, 82 C. LUBICH, 274


A. ARENDT, 137 C. MESTERS, 248,253
A. CAMUS, CATARINA DE SIENA (Santa), 161
75,110,137,184,186,192 CHICO BUARQUE, 127
A. CELSO, 17 CLEMENTE ROMANO (Santo),
A. EICHMANN, 137 75,195,267
A. G. RUBIO, 71,100
A. GESCHÉ, 93, 97, 103, 214,
227, 228, 273, 276 D. BONHÖFFER, 139
A. HITLER, 65,84,165 D. CARON, 36
A. M. GALVÃO, 74, 92, 182, 237, D. MCCLISTER, 251
260, 261, 266
A. MOSER, 67 E. BLOCH, 243
A. POPE, 134 E. HUSSERL, 31
A. SMITH, 232 E. MORIN, 172
A. T. QUEIRUGA, 67 E. SÁBATO, 111
A VAN DEN BORN, 262 EPICURO, 69, 117, 129, 205
AGOSTINHO (Santo),26, 41, 53, ERASMO, 181
66, 70, 74, 79, 80, 83, 88, 100,
117, 124, 126, 155, 156, 157,
158, 159, 160, 161, 162, 164, F. DOLTO, 203
166, 169, 170, 171, 174, 177, F. F. COPOLLA, 65
216, 218, 219, 247, 248, 253, F. KAFKA, 184
261 F. M. AROUET (Ver Voltaire)
AMBRÓSIO (Santo), 267 F. M. DOSTOIÉVSKI, 22, 74, 137,
ANSELMO (Santo), 130 183, 184, 185
ARISTÓTELES, 26, 120, 123, 204 F. W. NIETZSCHE,
112,113,137,192

B. ALTANER, 157
B. CHRISHOLM,222 G. BERKELEY, 199
B. F. SKINNER, 143,144,145 G. BERNANOS, 275,278
B. PASCAL, 72,186,192 G. CRESPY, 177
B. SPINOZA, 169 G. DUROZOI, 23,201
BASÍLIO (Santo), 26,267 G. GUTIÉRREZ, 98,236,238
BENTO XVI, 84 G. H. HEGEL, 199
BIN LADEN, 165 G. MARCEL, 63,64
G. REALE, 123
C. G. JUNG,22, 26, 32, 44, 82, G. VON RAD, 262
83, 106,1 39, 146, 147, 148, 149, G. W. BUSH, 167
150, 151
245

G. W. LEIBNIZ, 41, 50, 51, 53,


66, 70, 78, 79, 80,86, 87, 88, 97, K. BARTH, 88
117, 120, 124, 125, 126, 127, K. MARX, 145, 197
129,130, 131, 132, 134, 170, K. POPPER, 165
200, 206, 207, 214, 226 K. RAHNER, 251
G. ZAMPIEIRI, 25, 123, 126, 157
GREGÓRIO DE NAZIANZO L. BINSFELD, 48
(Santo), 267 L. C. SUSIN, 69, 260
L. DA VINCI, 45
L. FEUERBACH, 186
H. BERGSON, 200 L. LEPINE, 36
H. C. HOOVER, 65 L. MONLOUBOU, 202
HESÍODO, 262,263 LANTÂNCIO, 267
LEÃO MAGNO (Santo), 267

I. AMIN DÁDA, 29
I. KANT, 25, 169, 199, 200 M. DANELON, 190
I. MAZZAROLO, 250 M. ECKHART, 197
IRENEU (Santo), 216, 266 M. F. M. CARVALHO, 255
ISIDORO DE SEVILHA (Santo), M. G. NASCIMENTO, 52
267 M. HEIDEGGER, 64, 81, 197, 218
M. LUTERO, 181
J. A. SANFORD, M. MONTAIGNE, 72
28,44,62,85,148,186,257,271 M. RAMALHO ROCHA, 148
J. B. RACINE, 186 M. SADE, 137
J. B. WATSON, 143 M. XAVIER, 49
J. BENTHAM, 200 MANI, 151,163
J. CRISÓSTOMO (Santo), 267
J. DELUMEAU, 223
J. E. TERRA, 251 N. DE CUSA, 120, 122
J. DE FIORE, 243 N. KAZANTZAKIS, 185, 225
J. J. ROUSSEAU, 135 N. MALEBRANCHE, 126
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, 42,63 N. SILVEIRA, 146
J. LACAN, 145 O. KHAYYAM, 172 191, 192, 200
J. M. SUNG, 233 ORFEU, 119
J. M. VIGIL, 237 OVÍDIO, 259
J. MENGELE, 65 P. BAYLE, 97
J. MILTON, 107 P. BROWN, 166
J. ORTEGA Y GASSET, 193 P. KRAMER, 94
J. P. JOSUA, 44 P. N. THAI HOP, 235
J. P. MIGNE, 268 P. RICOEUR, 76, 77, 78, 79, 80,
J. P. SARTRE, 21, 75, 111, 132, 203, 204, 205, 206, 207, 208,
186, 187, 188, 189, 190, 191, 209, 210, 242
192, 193, 197, 199, 200, 218 PARMENIDES, 102, 117, 120
J. W. GOTHE, 49,146 PAULO (Santo), 40, 84, 107, 108,
JOÃO PAULO II, 84, 269, 270 199, 202, 203, 226, 240, 247,
JOÃO XXIII, 84 253, 256, 259, 261
JUSTINO (Santo), 267 PAULO VI, 84, 249, 254, 259
PEDRO ABELARDO, 229
246

PEDRO (Santo), 170, 264, 265


PITÁGORAS, 117, 119, 120
PLATÃO, 43, 117, 120, 123, 169
PLOTINO, 117,120,123,124

R. A. ULLMANN, 122
R. CANTALAMESSA. 274
R. CARLOS, 45
R. DESCARTES, 117, 129, 132,
133
R. L. STEVENSON, 82
R. MAY, 194
R. NASH, 24
R. RUITTER, 222, 272
R. SWINBURNE, 46

S. ALBORNOZ, 243
S. ERÍGENA, 229
S. FREUD, 21, 82, 139, 140, 141,
143, 144, 145, 207
S. KIERKEGAARD, 189, 192
S. NEIMAN, 134, 135, 136, 137,
139
S. WEIL, 183
SIDHARTA, 104
SÓCRATES, 169

T. AQUINO (Santo), 26, 195, 196,


229, 240, 265, 269, 281
T. CAMPANELA, 107
T. CLARK, 131
T. K. MORTON, 101
T. R. GILES, 201
TH. ADORNO, 137
TH. HOBBES, 142, 183, 231, 232
TH. KEMPIS, 272
TH. MOPSUÉSTIA, 267

VOLTAIRE, 47, 48, 49, 50, 51, 52,


53, 54, 206, 214

W. JAMES, 199

ZENON, 102

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