Vous êtes sur la page 1sur 75

CM7 Adoção e

\M7 parental idade:


fDITORft
questões atuais
As questões provocadas pela adoção comparecem fr<•q111 1111 111 11 V'I
na atualidade social: nas associações para a adoção de crianç.,.,, 11,1 •. 111<, n,
internacionais das estrelas, nos julgamentos relativos às cri, n~,1·, 11,1• 1 111 ....n,::::s
mães de aluguel, nos pedidos de adoção dos casais homo•, ,1• 11 11
O campo da adoção constitui efetivamente uma observaç; o p1 lvili•HI 111 1
V'I
cu Nazir Hamad
evolução de nossa civilização e particularmente da f rnlll.i 1111 ....
10
V'I
ocidental. cu
::::s
Ultrapassando as posturas tradicionais muitas v z ., , xpI
especialistas, o autor propõe uma abordagem pragmáti ca cl,1 ,1d11~ ..
Q)
C"

mutações na família. Suas contribuições sobre a adoção S<-' l>,1•,Pl,1111 111 11


larga experiência clínica, em numerosos testemunhos d f,111111I,1· 1d111 Ili ""O
de suas crianças e em trabalhos recentes, especialment cl1· pc •.q11I 1 1
anglo-saxões. De modo muito vivo, ele não vacila em m scl,11 11 te 1111111 J

filmes e recortes clínicos. Em Adoção e parenta/idada, 1 111 11111.1 11111111 11
acessível e direta, o autor percorre as questões que as f,11nfll,1•. • 11111 1111
qualquer que seja sua configuração, sejam famílias adotiv,1~ m111, 11 1 ,, 1I, 1
de seu trajeto de vida.

Q)

Nazir Hamad é doutor em psicologia clínica, p<,I1 ,111,ill l,I , 11111


o
11 H'O
clínica em Paris, diretor de um Centro Médico Psicop{'(l.1w1 :h 11 1 111 1
o
Ele trabalhou com Françoise Dolto, com a qual publi ou nc 1/1111 ,1, r 1/ 111
(Gallimard, 1995). Ele é membro da Association Lac niC'IHH l11t1 111,11li111 lc
""O
<( ,M7
fDITORft
ISBN 978-85-88640-25-2

li li Ili l 1111 111111111111


9 788588 640252
É claro que só a experiência clínica e o
trabalho de pesquisa nos permitem sair de
posições não fundamentadas e ter uma
abordagem mais pragmática da adoção e da
evolução familiar tal como a encontramos
hoje em dia, para grande escândalo de uns e
felicidade daqueles que a desfrutam
plenamente.
Este trabalho contém em princípio a
contribuição da clínica . Ao longo de meus Nazir Hamad
numerosos debates com as famílias
adotivas e suas crianças, coletei múltiplos
testemunhos. Vem a seguir meu trabalho
de clínico. Além disso, consultei muitos
trabalhos anglo-saxões conhecidos ou
menos conhecidos e devo admitir que essas
publicações levaram -me a reconsiderar
minhas posições sobre algumas questões-
chave.
A família clássica com os dois pais
genitores corresponde cada vez menos à
realidade. A estrutura patriarcal da
sociedade encontra-se assim seriamente
abalada .

NazirHamad
Adoção e parentalidade:
questões atuais

Prefácio de Charles Melman

Tradução:
Maria Nestrovsky F'olberg
Maria Fleig
Jasson Martins

,M7
fDITORfl
Livraria do
Psicanalista

Porto Alegre, 201 O


©Érés 2006

Título no original:
Adoption et parenté: questions actue/les

A presente obra faz parte da coleção Psychana/yse et


Sumário
clinique fundada por Jean Bergés, dirigida por Marika Bergés-
Bounes e Jean-Marie Forget.

Editor: Caio Beltrão Schasiepen Prefácio ..... ..... ......................... ... ....... .......... .... ...... ...... .7
Crianças na estante - Charles Melman
H198a Hamad, Nazir
Adoção e parentalidade : questões atuais/ Nazir
Hamad ; tradução, Maria Nestrovsky Folberg, Mario Fleig ,
Introdução ... .......... ....................... .. ................................ 9
Jasson Martins. - Porto Alegre : CMC, 2010.
152p. 1. A adoção à imagem da evolução familiar .... .. .. .... .... 13
- A ideia de uma sociedade culturalmente homogênea não
ISBN 978-85-88640-25-2
se sustenta mais
-A adoção é muitas vezes internacional
1. Psicanálise. 2. Adoção . 3. Criança. - Dois tipos de procedimentos para adotar no exterior
4. Família. 1. Folberg , Maria Nestrovsky.
-A imigração é seletiva?
li. Fleig, Mario. Ili. Martins, Jasson. IV. Título.
-A adoção não garante mais viver em uma família clássica
CDU 159.964.2 -As demandas de pessoas sozinhas são cada vez
mais numerosas
Catalogação elaborada por: Evelin Stahlhoefer Coita - CRB 10/1563
- Como se consegue a aprovação
Capa: Henrique Oliveira
Motivo da capa: Goya (1746-1828), Duquesa d 'A/ba com criança 2. A criança e suas famílias ........ ....... ...... .... .......... ....... 23
negra - desenho do álbum Sanlúcar; acervo do Museu do Prado, - O caso de Woody Allen
Madri. - Branca de Neve
Revisão de língua portuguesa : Lia Cremonese - Quando a adolescente lembra a mãe jovem a seu pai
-A carne fresca
Reservados todos os direitos de publicação em - Édipo e Cronos, uma história geracional
língua portuguesa para : -A adoção e o incesto
- Quando as posições se embaralham
CMC Editora
Praça Marechal Deodoro, 130/802
3. Meu coração entre dois ... .. ........ .. .... ..... .................... 31
CEP: 90010-300 - Porto Alegre - RS
(51) 3062.0522 - A palavra a mais
cmceditora@cmceditora .com .br - Reconhecida por toda vida
www.cmceditora .com .br - "Eu não pedi nada, eu não devo nada"
- Demasiado ou não suficiente
Proibida a reprodução total ou parcial
- "Eu tenho o direito de dizer sim ou não"
Depósito legal
Impresso no Brasil - Printed in Brazil -A dívida não é a que se crê
4. Construir suas ficções individuais ..... ........................ 39 - A noção de castração no bebê
- O verdadeiro destino -A separação precoce e suas consequências
- O particular é um enigma - O perigo é quando o bebê deixa de fazer demais
- "Eu sou uma criança adotada"
- Falar de sua adoção para uma criança sem lhe impor um estatuto 10. O caso de Karine ........ ... ..... ........ ....... ..... ........ ........ .83
- O dizer não deverá ir contra sua intimidade -Identificação e objeto libidinal
- Quando a criança quer entrar na normalidade -O luto da perda do primeiro objeto de amor

5. A busca da origem ...... ... ........ .......... .......... .. ..... ... ... .. 49 11. A adoção e o trabalho escolar ..... .... ...... ... .............. .89
-A função da marca - O fracasso escolar é uma realidade?
- Os três índices -A criança adota a voz e a língua materna inicialmente
- Só a genitora abandona -A língua materna
- O que legitima uma família? -A adoção não significa fracasso escolar
- Como conceber a natureza da busca da origem? - As pesquisas anglo-saxônicas
- Tendências gerais
6. O encontro entre pais e filho, - O ideal em adoção nem sempre é seguro
um mal-entendido permanente .. ............. ............. ... ..... 55 - Os trabalhos franceses
- O narcisismo ferido - Um caso de fracasso escolar, ou fracasso face ao ideal
- Meu pai, este herói
- O fantasma de salvamento 12. A escolaridade entre saber e verdade ........... .... ..... 99
- Como saber que é seu filho? - O caso de Tânia
- Salvar a honra -Algumas dificuldades correntes
-A falha dos outros - A queda da letra ou a queda do anjo
- A letra em todas as suas formas
7. A clínica da criança adotiva ..... .... ...... .. ............ ........ .61 -A leitura é uma responsabilidade do sujeito
- Como considerar essas dificuldades na adoção? - A criança caligráfica
-O dejeto -A letra não é uma aprendizagem como as outras
- "Eu não os quero" - O saber da mãe faz barragem
- Saber a verdade sobre a verdade - Se mudássemos o sistema de nota escolar
-A verdade é um significante
13. Há consequências em criar
8. As crianças adotivas são crianças em risco? ............ 69 sozinho(a) uma criança? ............................................. 107
- O menosprezo de si - A realidade da adoção por um só dos pais
- O beijinho de Chloé - Quais são os inconvenientes?
- "Você não é como as outras" - Um peso econômico
-A agressividade - O isolamento social
- Partir sem poder se separar -O estresse
-A incógnita
9. Quando os males se tornam a linguagem do corpo ... .77 - Um caso exemplar
-A criança separada e seu estado depressivo -Algumas consequências já assinaladas
- O desejo humano é o apelo à comunicação - Quando a presença física se torna insuportável
14. Adoção e homossexualidade ................................ 117
- O mal já está feito?
- Uma homossexualidade cultural latente Prefácio
- Quando o homossexual convém às normas sociais
- Nada de educação nova, antes conservadorismo Crianças na estante
- Uma "população marginal", uma adoção marginal
- Há lésbica e lésbica
- Reconsiderar as candidaturas

15. O sujeito é a hipótese de um Outro materno ......... 127


-A trindade não é uma família humana Existe atualmente na França uma considerável
- É preciso que a cria humana encontre uma mãe demanda de adoção - dezenas de milhares de casais à espera - ,
- O sexo é a alteridade que o mercado não chega a fornecer.
-A história familiar Tal formulação parecerá, espero, aberrante. Entretanto,
- A responsabilidade do sujeito ela descreve muito bem a realidade, a qual nos instiga a
- O amor não constitui a família descobrir, entre outros traços, o notável estudo de Nazir Hamad.
- A família como conhecemos tende a se marginalizar Com efeito, os numerosos casos que ele relata com a fineza
- Permaneçamos zen, o impossível se imporá sempre de análise que lhe é própria não perfazem simplesmente
catálogo. Os casos testemunham, graças a ele, uma
16. Ninguém é inocente quanto à sua vida ................. 137 modificação profunda do relacionamento ocidental com a
procriação e permitem prever uma era próxima em que a
Conclusão .................. ................................................. 143 criança em casa será um produto de importação. A velha
brincadeira segundo a qual papai e mamãe foram à loja buscar
o irmãozinho ou a irmãzinha presta-se cada vez menos ao
sorriso cúmplice. E a cor do recém-chegado justificar-se-á
tanto pela ambição mantida de um paternalismo planetário
quanto pelas obrigações da caridade.
É evidente que uma criança nascida da caridade não
é o produto do desejo. Também não nos admiremos de que,
quando crescido, o pequeno adotado venha a contestar um
serviço que ele não pediu mais do que se dispôs a prestá-lo.
Porque ser a criança de uma esmola que se sabe forçosamente
conveniente dispõe mal às identificações, de modo que, na idade
da ingratidão, esta se expressará habitualmente pela busca
desesperada, tão frequente quanto desastrosa pelas
consequências, da mãe biológica.
Por que tantos casais no mundo ocidental estão em
falta de criança, quando as condições se prestam à sua
concepção, compreendidos aí os meios de assistência médica
8 Adoção e parentalidade: questões atuais

quando são necessários? Certo, sabemos que a natalidade baixa


com a elevação do nível de vida. Mas pode-se suspeitar que o
investimento profissional também não suscita uma verdadeira
delegação de encargos, como aliás será o caso a seguir com a
criação do pequeno, confiada muitas vezes a uma imigrante. Introdução
Este surpreendente deslocamento se observa enquanto
cerca de 230 mil nascimentos são voluntariamente
interrompidos em nosso país. O que suscitam, no sociólogo,
vetores tão opostos?
Um psicanalista estaria tentado a ver aí uma ruptura Desde a publicação de meu livro A criança adotiva e
entre o simbólico da filiação e o real da fecundação, tornada suas familias 1, o campo da adoção transformou-se com uma
assim veterinária, ao passo que a concepção seria enfim rapidez inesperada.Na época, eu havia destacado alguns sinais
puramente espiritual. A aspiração de ter uma criança penderia precursores das modificações a vir. Apenas dez anos passados,
assim para o lado de uma demanda cuja nova legitimidade esses sinais tornaram-se uma realidade incontornável que
gostaria que não pudesse ficar sem resposta. mistura nossas referências habituais.
Os movimentos contraditórios que evocamos A adoção se aplicava então principalmente a casais
manifestarão assim a tendência contemporânea de tratar o casados, em torno dos trinta anos de idade e sem filhos. Este
desejo como uma necessidade e o objeto de satisfação como privilégio correspondia à concepção que tínhamos da família
simplesmente material. clássica e obtinha um amplo consenso entre os profissionais,
O brilhante estudo de Nazir Hamad nos mostra como mesmo se demandas marginais viessem às vezes suscitar o
esse objeto se revoltará assim que o espírito o tiver atingido. debate.
A adoção, dados médicos, psicológicos e sociais 2
era há muito tempo o livro de referência das equipes
Charles Melman
especializadas em adoção. Nele era dito explicitamente que a
adoção se destinava prioritariamente aos casais estéreis e que
almejassem de comum acordo adotar uma criança pequena.
Aos poucos, o termo "casado" foi descartado, posto
que o concubinato se impôs como um fato social frequente.
Em troca, a adoção por uma pessoa sozinha ou por um casal
homossexual suscitava - e ainda suscita - reticências de ordem
moral, religiosa ou psicanalítica. Em todo caso, essas categorias
de demandas eram pouco frequentes e raramente obtinham
satisfação.
Quando eu comecei a reunir os documentos tendo em
vista a redação deste livro, o debate se tornara agitado.

1
HAMAD, N. L 'enfanl adoptif et sesfamilles. Paris: Denoel, 2001.
2
LAUNAY, C.; SOULÉ, M. ; VEIL, S. L 'adoption, données médicales,
psychologiques et sociales. Paris: ESF, 1978.
10 Adoção e parentalidade: questões atuais Introdução 11

Entre os que estavam a favor e os que denunciavam tais ainda mais difícil quando concerne à estrutura da família em
diligências, a adoção atravessou um período agitado. Para a sua mutação atual: pode-se tratar de uma pessoa sozinha, muitas
reflexão, o desencadeamento no discurso era inevitável. vezes uma mulher, ou de uma pessoa homossexual sozinha ou
A adoção era o domínio sensível em que a evolução social e a vivendo em casal, que cria urna criança;
mudança de costumes que a acompanhava produziram um - o segundo problema concerne à inquietação geral
debate crucial. O livro de Charles Melman O homem sem
gravidade 3 (entrevistas com J.-P. Lebrun) é um exemplo típico I no tocante à evolução familiar. A adoção não garante mais à
criança um casal parental, e mesmo quando a solicitação é
do tom que esse debate assumiu com o tempo. Em todo caso,
as questões que se levantam no campo da adoção fazem desta
última um observatório da evolução da civilização atual e,
l feita por um casal, este não será forçosamente mais duradouro.
A família está mais e mais frágil, ela se rompe, se recompõe e
às vezes em tal recomposição não se sabe mais como
sobretudo, da mutação que conhece a família no mundo denominar o elo que une as crianças entre si, e, às vezes, aos
ocidental. As demandas de criança dirigidas aos serviços de adultos. A adoção não escapa mais a essa realidade. Ela tem
adoção muitas vezes detém os primeiros elementos das mesmo a tendência a tomar ainda mais complexas situações
mudanças em gestação, pois a adoção é aí confrontada em já frágeis.
primeiro lugar. Na França, os especialistas se posicionam muitas vezes
No momento em que me interessei por essas em petições de princípio, sem tornar a distância necessária
modificações, os serviços de adoção discutiam sobre essas para julgar a adoção pelos homossexuais ou pelas mulheres
candidaturas que se tornaram numerosas. As equipes não sozinhas. Outros países, corno os Estados Unidos, o Canadá, a
chegavam a encontrar uma posição comum porque, como a Inglaterra e os países escandinavos, precederam-nos nessa
própria sociedade, elas estavam mais ou menos sensibilizadas, via, e devemos prestar atenção ao que lá acontece.
mais ou menos receptivas a tal ou qual demanda, estando É claro que só a experiência clínica e o trabalho de
completamente fechadas para outras. pesquisa nos permitem sair de posições não fundamentadas e
A partir daí, a adoção internacional veio despojar o .... ter urna abordagem mais pragmática da adoção e da evolução
lado quente deste debate. Procurar a criança no estrangeiro familiar tal como a encontramos hoje em dia, para grande
externou o problema e o tornou menos tributário dos escândalo de uns e felicidade daqueles que a desfrutam
especialistas. As candidaturas de pessoas sozinhas representam plenamente.
hoje em dia 40% dos casos tratados e acordados em Paris. Este trabalho vem completar A criança adotiva e
A maioria desses candidatos volta-se para a adoção suas famílias. Contém em princípio a contribuição da clínica.
internacional pelo viés dos organismos especializados. Ao longo de meus numerosos debates com as famílias adotivas
As pessoas sozinhas contam com os homossexuais e suas crianças, coletei múltiplos testemunhos. Vem a seguir
entre elas. Por esse fato, é dificil avaliar com exatidão o número meu trabalho de clínico. Além disso, consultei muitos trabalhos
'\ de acordos concedidos a esses candidatos. O debate na França, anglo-saxões conhecidos ou menos conhecidos e devo admitir
como aliás no Ocidente, interessa-se por dois problemas que essas publicações levaram-me a reconsiderar minhas
essenciais: posições sobre algumas questões-chave.
- o sucesso da integração de crianças adotadas em A família clássica com os dois pais genitores
sua família e na sociedade de acolhimento. É um problema corresponde cada vez menos à realidade. A estrutura patriarcal
da sociedade encontra-se assim seriamente abalada.

3
Paris: Denoel, 2002.
1

A adoção à imaaem da evolução


familiar

A segunda metade do século XX conheceu uma


evolução rápida no plano tecnológico, bem como mudanças
por vezes radicais nas normas sociais e culturais que presidiam
1
a educação das crianças. A estrutura familiar em si perdeu os
arcos perpetuados ao longo dos séculos. A endocentricidade
li que foi sempre a pedra angular de nossas referências culturais
está em más condições , e ninguém pode prever as
consequências para o futuro da família como entidade de base
na estrutura social.
Essas mudanças fragilizam nossas sociedades e
deixam a família em um estado de confusão quanto às escolhas
a fazer. Devemos aceitar os valores que começam a desenhar
novas tramas no tecido social ou é preciso defender os antigos?

A ideia de uma sociedade culturalmente homogênea não


se sustenta mais

É evidente que o nosso mundo está cada vez mais


múltiplo no plano étnico, cultural e religioso. O mito da
sociedade culturalmente homogênea foi atacado vivamente.
A miscigenação dos povos , devida essencialmente aos
movimentos de população, e a mestiçagem que acarreta impõem
a cada cultura o desafio de assumir suas mutações.
Essa transformação é acelerada pela clivagem cada
vez mais evidente entre a economia e o social, que tende a
empobrecer qualquer discurso e a romper o laço de
solidariedade entre as classes e entre as gerações. A instabilidade
econômica e a incerteza que ela deixa planar sobre o futuro de
cada um se traduzem por uma espécie de pânico geral que

J#I• •
14 Adoção e parentalidade: questões atuais 1 - A adoção à imagem da evolução familiar 15

transforma a sociedade em grupos de indivíduos prestes a A adoção é muitas vezes internacional


assumir o que preferiam repudiar enquanto membros de uma
classe social ou de um corpo profissional constituído. Procurar Só em Paris, estima-se que em2005 o número de
sua salvação fora é cada vez mais tentador para milhões de ~ s à espera d~ uma adoção seja de 1.620, casais e solteiros _
pessoas ao redor do mundo. Que se abram as fronteiras , misturados. Esse numero quase dobrou em dez anos. O número
como no seio da União Europeia, ou que elas se fechem para ) fie crianças a serem colocadas sofreu uma curva inversa: elas -
os que emigram dos países pobres, isso não muda nada o fato eram 87 em 1994, e não são mais que 46 em 2005. 1 _
de que muitas categorias sociais tendem a migrar, a mudar de Essa tendência se confirma em todo território francês,
lugar ou de país em busca de melhores oportunidades de bem como nos outros países ocidentais.
trabalho e de promoção social. As grandes cidades, No plano nacional, estima-se que os DDASS 2 aceitam
como Londres, Nova York, Paris, e outras não tão grandes, 8 mil casos por ano. fu!! 2003, 5 mil crianças foram adotadas,
como Dubai, são verdadeiras torres de Babel. E se nada vem 4 mil dentre elas vinham da adoção internacional. Eram 2.971
corrigir a distribuição de riqueza que cavou perigosamente a c rianças em 2000 e 4.136 em 2005. No ano de 2006, ocorreu ~
distância entre os países ricos e os países pobres, o movimento uqia pequena baixa, 3.977 crianças, mas isso se explica1 n~
das populações corre o risco de se tornar o verdadeiro drama meu ponto de vista, pela vontade de diversos países implicados
dos decênios futuros. na adoção de pôr ordem em certas práticas que tinham saído
A adoção internacional participa em parte dessa do controle.
mestiçagem das populações. Nos países ocidentais, a adoção Os continentes de origem são a Europa (1.073
interna se marginaliza devido ao pequeno número de crianças crianças), a África (1.083 crianças), a América (1.062
que precisam ser alocadas. Os candidatos à adoção se voltam crianças), a Ásia (861 crianças). Isso representa 77 países
para o estrangeiro, para os flªÍses gue não dese-J1Yolveram um pelo mundo, um número que também aumenta rapidamente.
sistema de proteção social capaz de vir em socorro da criança No que se refere à idade, J4% dessas crianças foram
e d ~ família. Milhões de crianças ao redor do mundo não adotadas com menos de um ano, 22!¾ tinham entre um e dois
se beneficiam da menor atenção por parte das autoridades de anos de idade, J9% tinham entre dois e cinco anos e 18%
seu país e de outras estruturas sociais privadas. Segue-se que tinham cinco anos ou mais. (Esses números me foram
numerosas• crianças crescidas ou jovens adolescentes são fornecidos pela EFA (associação "Infância e famílias de
perseguidos, exatamente como se perseguem espécies nocivas, adoção".)
nas ruas das grandes cidades ou nos bairros pobres. Atualmente, segundo as informações da EFA, haveria
(Uma amiga psiquiatra de um país da América do Sul, cerca de 25 mil casos (27 mil segundo uma petição publicada
que trabalhava em um lugar de acolhimento a jovens em Le Monde, de 4 de abril de 2007) de famílias e pessoas
delinquentes, trouxe-nos este testemunho terrível: ela tinha sozinhas que esperam encontrar uma criança por intermédio
conhecido uma dúzia de adolescentes com quem ela havia da adoção internacional.
começado um trabalho com vistas à sua reinserção social. Esse Então é fácil imaginar que a adoção participa de certa
trabalho durou algum tempo, e esses jovens mostraram sinais maneira da mestiçagem da sociedade francesa. Mas essa
mais ou menos tranquilizadores quanto à sua evolução. Tendo mestiçagem é, em princípio, fenotípica. Ela não é nada cultural.
deixado seu trabalho, ela perdera esses adolescentes de vista As crianças adotivas em geral são introduzidas na língua e na
durante um ano. Quando, de passagem pelo lugar, ela entrou 1 Documento da Direção da ação social da infância e da saúde, "A adoção em
para pedir notícias deles, ficou sabendo que apenas um tinha Paris", 2005.
sobrevivido. Os outros tinham sido liquidados pela polícia local.) 2 Direction Départamentale des Atraires Sanitaires et Sociales. N.T.
16 Adoção e parentalidade: questões atuais 1 - A adoção à imagem da evolução familiar 17

cultura de seu país de acolhimento desde sua mais tenra idade. de se expatriar. Essas duas correntes nunca chegarão a um
São criadas e educadas como toda criança francesa e se acordo, e o problema é tanto econômico como psicológico e
beneficiam de um acolhimento familiar e de uma abertura narcísico. Não enxergamos transformação na aparência de
cultural que lhes permite adaptar-se rapidamente ao modo de nossas cidades e de nossos bairros sem nos sentirmos
vida de sua nova família. preocupados pela interferência em nossas bases familiares.
Assim, a família adotiva é a imagem de nossas Não assistimos indiferentemente às incisões em nosso ideal
sociedades, ela é múltipla. Em nossos dias, é frequente ver identitário pelo que a imigração impõe como novos costumes e
pais brancos criando uma criança de fenótipo diferente. como novos traços fisicos. A ideia de um limiar de tolerância
Além disso, essa diferença não desperta mais a curiosidade em relação ao outro diferente foi invocada inúmeras vezes
das pessoas, como era o caso antigamente. A adoção torna-se para explicar o sentimento de rejeição em relação ao
tão frequente que é raro discutir essa questão com qualquer estrangeiro. Ainda que essa ideia mereça atenção,
um sem descobrir que ele conhece uma criança adotiva na sua exploração conhece, e conhecerá sem dúvida,
família ou em seu ambiente. um deslizamento ideológico. Não entraremos aqui nos detalhes
desse debate, mas mesmo assim é interessante notar que cada
Dois tipos de procedimentos para adotar no exterior lugar de adoção é, à sua maneira, partidário da segunda
corrente. Uma família adotiva não está diretamente implicada
O procedimento individual é o mais frequente.
nas preocupações econômicas; por outro lado, ela responde
Os candidatos a adotarem preenchem um formulário na
de maneira humana aos problemas da tenra infância no mundo,
Agência Francesa de Adoção. A agência trabalha com os
ainda mais que ela é motivada por seu desejo de criança.
países signatários da convenção de Haia e com outros países
Os que se candidatam a adotar estão como pais
que tenham assinado uma convenção bilateral com a França.
Se os candidatos se orientam para os países não-signatários, potenciais de uma criança nascida em qualquer lugar e
eles se dirigem às autoridades competentes nesses países ou vivendo em condições precárias, abandonada por seus
aos orfanatos, diretamente ou por intermédio de pessoas pais biológicos.
competentes, advogados por exemplo. A adoção não conhece fronteiras geográficas e menos
O segundo procedimento passa pelos organismos ainda culturais, e, por esse fato, ela se mostra de alguma maneira
autorizados para a adoção. Eles se encarregam dos como fazendo parte de uma sociedade utópica na qual os
procedimentos que geralmente resultam na adoção de uma homens são animados pelo cuidado em se abrir ao outro e em
cnança. acolhê-lo como um dos seus.
Essa visão idílica é verdadeiramente possível?
A imigração é seletiva?
Examinaremos isso por meio da experiência clínica que tivemos
oportunidade de adquirir neste domínio.
O debate sobre a imigração nunca é tranquilo.
Talvez seja preciso acreditar que jamais o será. Haverá sempre A adoção não garante mais viver em uma família clássica
em jogo duas correntes de pensamento e de sensibilidade
diferentes; entre esses que se alarmam e que se investem como A instabilidade dos casais, a taxa elevada de divórcios,
defensores da identidade e da cultura nacional e aqueles que o grande número de famílias recompostas, a normalização dos
nos anunciam que o Ocidente, por manter o ritmo de seu laços entre homossexuais e seu direito a ter crianças fazem
desenvolvimento, tem necessidade de reforçar sua capacidade que uma criança criada por seus dois pais biológicos vivendo
demográfica fazendo apelo aos homens e mulheres desejosos juntos não seja mais a norma nos países desenvolvidos.
18 Adoção e parentalidade: questões atuais 1 - A adoção à imagem da evolução familiar 19

A adoção não escapa a essa realidade. Ela não garante Em troca, o que me parece condenável é a adesão de
mais à criança viver numa família composta por um casal muitos ao discurso que faz da sexualidade uma preferência,
parental heterossexual, nem muito menos em um ambiente como se se tratasse no fundo, de uma escolha consciente.
estável. Antes eram consideradas duas condições como Eu me lembro de uma discussão com um grupo de famílias
incontornáveis para qualquer colocação de uma criança residentes nos Estados Unidos que defendia a ideia, já posta
abandonada. A ideia subjacente a essa prática vinha de uma em prática, de reagrupar os pré-adolescentes e adolescentes
hipótese simples: não se submete a uma segunda separação que manifestassem sensibilidades julgadas femininas nas
uma criança que já sofreu o traumatismo de uma separação escolas que os preparam para sua futura vida de homossexual.
precoce. Muitos clínicos ainda se apoiam na concepção Quando eu tentava lhes explicar que não é homossexual quem
tradicional de família. Alguns tendem a resistir frente ao que quer e que nem toda "sensibilidade feminina" em um
eles consideram uma derivação perigosa que ameaça o futuro pré-adolescente é obrigatoriamente sinal de uma evolução
da família e da sociedade em geral. homossexual, suscitei certa hostilidade de sua parte.
O debate sobre o PACS 3 e o direito dos homossexuais A ambiguidade sexual nos pré-adolescentes ou adolescentes
de adotar uma criança fez correr muita tinta e desencadeou não é a homossexualidade propriamente dita. Essa posição,
paixões. Muitos psicanalistas foram tratados como homófobos no fim das contas banal, valeu-me ser tratado como homófobo
e retrógrados porque consideram a diferença entre os sexos por alguns exaltados. No que concerne a essa diligência
como uma referência incontornável no que constitui uma família assombrosa de segregação de crianças pretensamente
para um sujeito humano. Eu participei deste debate no meu diferentes, é evidente que um desejo de homossexualidade nos
livro A criança adotiva e suas famílias e coloquei as coisas pais se aloja atrás dos argumentos que se pretendem
em termos de respeito a cada um dos pais, a cada tutor, para a compreensivos e tolerantes.
sensibilidade da criança quanto ao outro sexo e quanto à sua O perigo ligado à homossexualidade é a militância,
identidade sexual. a impossibilidade para a criança de tomar a distância necessária
Para mim, uma mulher que não tem filhos em razão que lhe permita evoluir com toda segurança em seu meio
de sua preferência sexual não apresenta necessariamente natural, sua família. A experiência clínica nos ensina que a
problemas como poderia apresentar outra mulher que se diz homossexualidade de uma criança pode estar intrinsecamente
heterossexual, mas "passeia com um saco de pimenta moída ligada ao desejo contrariado dos pais, ou de um dos pais,
em sua bolsa, com o objetivo de atirar seu conteúdo na cara do a respeito do sexo de seu filho. Quando tal é o caso, é possível
homem que ousar abordá-la com outras ideias na cabeça". ver os pais funcionarem em uma espécie de recusa da identidade
A homossexualidade não é uma contraindicação maior para a sexual de seu filho e orientarem, sem sabê-lo, suas opções.
adoção, pois ela não é a invenção de um casal homossexual. Eis um pequeno exemplo banal, mas suficientemente eloquente
Por outro lado, um casal heterossexual não induz seus filhos para apoiar nossa afirmação: o de uma jovem mulher que era
necessariamente a um devir heterossexual. a terceira filha de um casal frustrado por não ter um menino.
A terceira e última criança foi sua última chance de ver
3PACS (Pacte civil de solidarité), pacto civil de solidariedade é, na França, realizado esse desejo, mas, para sua infelicidade, foi uma
uma forma de união civil entre duas pessoas maiores (os parceiros),
independente do sexo, tendo como objetivo organizar a vida em comum,
menina. Os pais, decepcionados, encontraram uma fórmula
com direitos e deveres em termos de herança, descontos em impostos, consoladora que fazia rir todo mundo, menos ela. O pai se
direitos de habitação e segurança social, assim como responsabilidade mútua habituara a apresentar suas duas primeiras crianças como
no tocante a dívidas e contratos. A lei do PACS não dá direitos de adoção ou "suas duas filhas" e a terceira se via qualificada de "aquela
custódia. Alguns dos direitos previstos na lei são válidos apenas três anos que não é um menino". Essa história, felizmente muito mais
após o registo. N.T.
20 Adoção e parentalidade: questões atuais 1 - A adoção à imagem da evolução familiar 21
anedótica do que dramática, aborreceu muito essa jovem Para fazê-lo, os postulantes são convidados a encontrar
mulher. Ela não conseguia rir dela até poder fazer uma leitura mediadores pertencentes aos campos psicológico e
pessoal do desejo de seus pais: "Eu tenho um desejo de ter um socioeducativo. A aprovação é liberada ou recusada pelo
menino, mas minha filha não pode sê-lo". presidente do conselho geral, após o parecer da comissão de
aprovação. 4
As demandas de pessoas sozinhas são cada vez mais
numerosas

Em Paris, em 2005, a comissão julgadora entregou


quinhentas decisões distribuídas da seguinte maneira:
- casais casados ou não: 338 positivos, três recusados;
- pessoas sozinhas: 151 positivos, oito recusados.

31 % das decisões favoráveis foram, então, para


pessoas sozinhas, cuja grande maioria se dirige para a adoção
internacional.
Algumas dessas pessoas sozinhas já tinham um filho e
procuravam um outro.
É evidentemente dificil pintar o quadro psicológico
dessas pessoas e situar a razão de sua pretensa vida de solteiro;
sempre ocorre que inúmeras pessoas homossexuais, mesmo
quando vivem em casal, têm a tendência de se apresentar como
uma "pessoa sozinha". Por outro lado, a adoção se faz por
uma pessoa sozinha quando o casal vive fora do vínculo de
casamento.

Como se consegue a aprovação

Os postulantes devem em princípio fazer sua solicitação


por escrito ao Departamento de adoções. Após a recepção
dessa carta, os postulantes são convocados para uma reunião
de informação ao fim da qual lhes é entregue um formulário
que eles devem preencher e entregar ao serviço respectivo.
É na volta desses documentos que a demanda é
oficialmente registrada e que começa o procedimento
propriamente dito, durante o qual a administração deve se
certificar que os solicitantes apresentam condições suficientes
de acolhimento no plano familiar, educativo e psicológico. 4
Documento divulgado pela Direção da ação social da infância da saúde,
"A adoção em Paris", 2005.
2

A criança e suas famílias

A questão da adoção nos confronta permanentemente


com a da família, no que a instaura para um homem, para uma
mulher e para uma criança. Por que é preciso para nós crer
que o fato de que dar uma criança a uma pessoa sozinha ou a
um casal constituirá necessariamente uma família?
Será suficiente pôr duas gerações juntas para que cada uma
se reconheça na outra e a apoie, apesar das dificuldades que a
vida em conjunto lhes apresenta, como acontece muitas vezes?
Viver junto constitui a melhor condição para construir uma
família? Se sim, o que torna essa vida possível?
A experiência nos ensina que a chegada de uma criança
adotiva, ou simplesmente a chegada de uma criança na vida
de um casal, submete cada um dos parceiros a uma série de
abalos afetivos e psicológicos, cujas consequências são difíceis
de prever. Elas são muito delicadas para avaliar por estarem
intimamente ligadas à história familiar do indivíduo e à
singularidade de sua estrutura psíquica. Essa chegada sempre
tende a cruzar elementos vivos da história de cada indivíduo
com sua problemática inconsciente, produzindo nele uma
espécie de mutação que determina para ele a particularidade
da função parental. É justamente isso que Lacan chama
"os complexos familiares". 1 Não é preciso confundir complexo
e conflito, como se diz, por exemplo, o "conflito edipiano".
O conflito deve ser considerado como um resto quando o
complexo, por uma razão ou por outra, apresenta algumas
falhas. O complexo representa o núcleo de base de um processo
que Freud denomina "processos de normatização". Trata-se
1
LACAN, J. Les complexes familiaux dans la formation de l 'individu.
Paris: Navarin, 1984.
24 Adoção e parentalidade: questões atuais 2 - A criança e suas famílias 25
de um processo que ordena as relações entre as gerações e Branca de Neve
permite a cada um se identificar a seu sexo e estar, em princípio,
de acordo com seu desejo de homem ou de mulher para o Tudo leva a supor que Woody Allen não desejou adotar
outro sexo. esta filha por meio de uma solicitação a dois, em que cada um
A família não se constrói sem o desenrolar de um se reconhece no desejo do outro parceiro. A adoção deve ser
conjunto de complexos que designam a cada um de seus feita a dois, bem antes da chegada da criança. Trata-se de
membros um lugar e uma função que constituem o suporte do uma posição inconsciente em que ter uma criança em
que está em jogo no édipo. comum ocupa o lugar de fazer uma criança junto. Fazer e
ter terão assim o mesmo impacto sobre a disposição de cada
um de acolher e reconhecer a criança como a criança do desejo.
O caso de Woody Allen
O ator amou essa filha, certamente, mas a proibição não
Interrogar-se assim sobre o que constitui a família desempenhou seu papel para retirar desse amor seu caráter
levanta outra questão: o que acontece em primeiro lugar? É a sexual. A proibição é inerente ao desejo da criança. Precede
lei da proibição do incesto que funda a família ou é a família portanto a chegada da criança e opera para sua inscrição no
que instaura essa proibição? laço familiar.
A história de Woody Allen é eloquente e pode nos servir Nós fomos muitas vezes convocados a testemunhar
de exemplo. O ator casou-se com sua filha adotiva. As opiniões pais tomados de inveja por seus filhos adotivos quando estes
sobre esse caso foram inúmeras e contraditórias. Alguns o atingem a idade da maturidade sexual. As mães, como no conto
julgaram severamente: "um pai incestuoso". Outros da Branca de Neve, sentiram-se destronadas pelas filhas
encontraram escusas para ele, afirmando que a filha tinha sido tornadas núbeis, negligenciadas por seu parceiro que se torna
adotada por sua companheira e que isso não fazia de repente mais próximo da jovem ninfeta. Eu escutei até
necessariamente dele um pai adotivo. mesmo algumas me dizerem: "Isto seria desleal de parte de
Para nós, não se trata aqui de julgar o caso do cineasta, nossa filha, ainda mais que ela tem a vantagem da juventude."
mas antes de afirmar que a adoção, que nos institui pai ou mãe Eu não acredito que essas mulheres falassem do
de uma criança, é em princípio uma questão de desejo que incesto propriamente dito. Mas, tal como a rainha, elas sabiam
marca um casal de adultos com seu selo e que faz que se seja que não eram mais "as mais belas", e que a geração jovem,
pai/mãe, pouco importa que a paternidade seja adotiva ou sua filha no caso, atrai o olhar dos homens - o mesmo olhar de
biológica. Dito de outra maneira, se não somos incestuosos, admiração ou desejo que lhe era reservado até há pouco.
isso não depende de um comportamento intencional. Respeitar Trata-se de um ferimento narcísico que todo pai e toda mãe
a proibição não requer um esforço cotidiano destinado a conhecem em um momento ou outro de sua vida. Mas, se não
observar a lei como uma parada diante de um semáforo se sente uma inveja destrutiva como a da madrasta no conto,
vermelho, por exemplo. A proibição rege, sem nos darmos conta, é porque nos identificamos com nossos filhos e nos sentimos
as relações entre as gerações, e isso faz com que ela seja o orgulhosos ao vê-los lindos e inteligentes. É justamente o sentido
núcleo de base da estrutura familiar. que atribuímos ao elogio quase ridículo que fazemos aos novos
Ora, a chegada dessa filha no casal de Woody Allen pais quando se lhes diz que a criança é "lindo ou linda como
não gerou o que deveria inscrevê-la em uma relação baseada sua mãe e inteligente como seu pai".
obre a proibição do incesto. Para Woody Allen, Branca de
Neve destronou uma mãe que esqueceu de desconfiar de sua
filha. Branca de Neve revelou-se uma rival poderosa.
26 Adoção e parentalidade: questões atuais 2 - A criança e suas famílias 27

Quando a adolescente lembra a mãe jovem a seu pai pouco estão destinados à sua perda. A mulher mãe aparece na
mitologia ou nos contos ora meio disfarçada, executando a
Esta identificação é possível pelo fato que aceitamos
ordem de seu parceiro sexual, ora cúmplice com uma das
o golpe que a geração jovem inflige ao nosso narcisismo de
crianças, obrando para destronar o pai.
homem e de mulher. Nós ganhamos de qualquer maneira no
plano do nosso narcisismo de pais o que perdemos enquanto Édipo e Cronos, uma história geracional
homem e mulher em declínio.
Mas isso não acontece sem mal-entendido e sem dor. A mitologia grega nos familiarizou com tais roteiros.
Aconteceu de Françoise Dolto aconselhar as jovens Entre Reia e Édipo, a história da sucessão entre as gerações
adolescentes a deixar a casa de seus pais para ir morar com não faz mais que renovar o mal-entendido funesto.
os avós ou outro membro da família, quando seu pai tinha se Cronos castrou seu pai, Urano, com a cumplicidade de sua
tornado inexplicavelmente agressivo a seu respeito. mãe. Cronos, advertido por seus pais que seria por sua vez
Dolto explicava que essas meninas, tornando-se jovens destronado por um de seus filhos, engolia os filhos que sua
mulheres, despertavam em seu pai as primeiras excitações mulher/irmã Reia lhe dava. Esta perdeu a paciência e salvou o
amorosas que ele tinha vivido com sua mulher no início de sua último, Zeus. Aconselhada por sua mãe Gaia, enrolou uma pedra
vida juntos. As jovens adolescentes tornam-se de repente nas fraldas de seu bebê e deu ao pai. Este se apossou dele e o
perigosamente invasivas para pais que não suportavam mais engoliu sem mastigar. Depois, com o estômago um pouco
vê-las deixar suas calcinhas jogadas em seu quarto ou ainda pesado, foi dormir. Zeus cresceu e, mais tarde, venceu seu pai
se mostrarem um pouco impudicas em casa. Sob considerações e obrigou-o a vomitar seus irmãos e irmãs.
educativas diversas, os pais tinham dificuldades em esconder Mas por que ela não imaginou isso antes? Por que ela
o embaraço que a nudez e os atributos sexuais de sua filha entregou todo o tempo seus bebês a seu marido ogro sem
provocavam neles. A agressividade inexplicável desses pais reclamar? O mito não nos diz em termos claros. Somente que
era o reflexo de seu constrangimento. um Cronos que não diferencia entre uma pedra e a carne fresca
deixa todo espaço à sua parceira para salvar suas crianças.
A carne fresca Reia descobriu finalmente que seu voraz marido engolia tudo
que ela lhe oferecia com o mesmo apetite. Reia se tomou a
Por que contamos histórias de ogros e ogras a nossas mãe para seus filhos no momento em que ela aceitou o risco
crianças? Que mensagem lhes transmitimos quando mobiliamos de seu desejo de criança para sua descendência. Com essa
suas noites com fadas, lobos e ogros eternamente ávidos de pedra, ela não funda uma igreja, como fez Jesus, ela faz mais,
carne fresca? 2 O ogro sente a presença de uma criança antes ela dá nascimento a uma nova raça: os deuses do Olimpo.
mesmo de enxergá-la. Basta que ponha o pé em casa para Não somente Zeus, contrariamente a Édipo, não matou
sentir o odor particular da carne fresca, à qual nenhum ogro é seu pai, mas Cronos, segundo o mito, toma-se o pai de uma
capaz de resistir. Isso desperta seu apetite, que não cessa nova idade de ouro. Entre Zeus e Cronos houve uma história
enquanto ele não devorar a criança ou as crianças que, para de mãe. A mãe de Urano, Gaia, convida seu filho a castrar seu
infelicidade delas, cruzarem seu caminho. Só sua mulher pai. Ela mesma organiza o roteiro dessa castração horrível.
consegue às vezes retardar seus prazos. Ele está então É justamente no momento em que o pai, Urano, vai penetrá-la
condenado: os ogros que as esposas conseguem frustrar um que seu filho, Cronos, lhe corta o sexo com uma foice. A mãe
de Zeus, Reia, queria somente dar a seu filho uma oportunidade
2
Todos os pais e mães brincam de morder a barriguinha de seu bebê ou os de sobreviver, e não tinha nenhuma intenção de castrar o pai.
pezinhos quando lhe trocam as fraldas.
28 Adoção e parentalidade: questões atuais 2 - A criança e suas famílias 29

Ela salvou um filho, e este filho não matou seu pai, ele o Quando as posições se embaralham
destronou enquanto todo-poderoso. Destronar assim seu
É difícil qualificar como incestuosa a confusão de
genitor o torna pai. Trata-se então de uma castração
posições, mas é certo que isso não ajuda a criança a fixar suas
simb_ólica, e não real, como fez Cronos com seu pai Urano,
referências em sua identificação com seu sexo ou na construção
ou Edipo com seu genitor.
de seus ideais. Eis um caso que eu considero exemplar e que
Édipo seria então o equivalente de Cronos no sentido
nos dá uma ideia clara das dificuldades que um casal adotivo
em que cada um aparece como destinado a destituir o pai para
se arrisca a encontrar quando um dos dois parceiros não leva
tomar seu lugar com a cumplicidade mais ou menos tácita da
em conta a ausência de desejo de criawnça no outro.
mãe. A mãe biológica de Édipo, segundo Sófocles, não deixava
A senhorita F. e o senhor K. viviam juntos há cerca de
~e saber que se tratava de seu filho. Pior ainda, cada vez que
dez anos antes que esta decidisse tomar uma providência para
Edipo lhe fazia perguntas que deixavam a descoberto suas
adotar uma criança. O senhor K. nunca quisera filhos.
dúvidas a seu respeito ou a respeito de sua história, ela se
Cada vez que ela lhe expressava o desejo de ter um filho dele,
organizava para escamoteá-las.
ele respondia ora que não era o momento, ora que ele não
estava pronto para assumir uma criança com a história familiar
A adoção e o incesto
que acarretava. Magoava a senhorita F. ver que seu parceiro
Nós não pensamos que a adoção aumente o risco do lhe negava um filho que ela desejava tanto dele, mas, fazendo
laço incestuoso. De qualquer forma, nenhuma estatística séria contra a má sorte bom coração, ela aceitava sua opção
nos permite validar tal ideia. Os autores que se interessaram resignadamente.
por esse problema raramente o consideram como espinhoso. Um dia, seguindo o conselho de uma amiga, ela fez
Eis um exemplo de caso como encontramos em nossa um pedido de adoção como mulher sozinha e, finalmente,
experiência clínica: um homem de seus trinta anos, que sempre ela adota uma criança através de um organismo especializado
tivera problemas de impotência com as mulheres, atribuía isto na adoção internacional. Inútil dizer que durante todo tempo
a seu estatuto de criança adotiva. Homem jovem, tinha de encaminhamento do pedido de sua companheira, o senhor
dificuldades em se defender de uma mãe intrusiva, que queria K. fazia de tudo para desencorajá-la, até mesmo sabotar seu
saber sobre sua sexualidade e sobretudo sobre suas relações projeto, mas sem sucesso.
com as mulheres. Quanto mais ele se defendia dela, mais Finalmente, a criança chega, uma menininha linda de
suscitava sua cólera. Ele terminava por lhe contar histórias um ano e meio. O senhor K., que ficara no aeroporto para
que inventava de propósito, e isso parecia acalmá-la, e até recebê-las e levá-las para casa, se apaixona rápido pela filhota.
mesmo satisfazê-la. Um dia, comenta ele, sarcástico: Dia após dia, ele se revela ciumento e possessivo a ponto de
"Felizmente ela estava mal! Isso me salvou dela." não mais ter a menor confiança na sua companheira.
Conhecemos outras histórias mais dramáticas, mas Cada vez que a mãe fazia ou dizia qualquer coisa, ele estava lá
elas não podem ser qualificadas de específicas da adoção. para repreendê-la e corrigir o que julga errado ou perigoso
Elas poderiam também atingir o seio de uma família biológica. para a evolução da criança. Quanto mais ele interfere dessa
Entretanto, é possível afirmar que a adoção poderia favorecer maneira, mais a mãe reage para se defender e defender seu
certa confusão entre os lugares que cada um dos pais se atribui lugar junto à filha pequena. O tempo passa, e nenhum tem
junto à criança ou em sua educação. mais confiança no outro e menos ainda nesse algo que os
distingue enquanto homem e mulher e, mais precisamente,
enquanto pai e mãe.
30 Adoção e parentalidade: questões atuais

O senhor K., de sua posição de homem e de pai,


acredita conhecer tudo sobre as necessidades de sua filha,
a ponto de negar qualquer iniciativa válida por parte da mulher
e mãe. 3
Nesse contexto, logo não existe mais lugar para o que
poderia ser a intuição feminina ou masculina, paterna ou
materna. Tanto um como outro dos pais pensam estar fazendo Meu coração entre dois
o que devem, e a diferença entre os sexos, para eles, não tem
papel algum a desempenhar na educação de crianças ou no
estabelecimento de limites para o papel de cada um.
Pouco a pouco cada um perdeu a especificidade de
sua função junto à criança. Eles se tornaram pedagogos,
educadores, em síntese, tudo menos pai e mãe. Eles assumiram Essa questão do lugar e da função dos pais remete-nos
muitas funções, menos aquelas que mais precisavam, as funções àquela que se colocam muitos homens e mulheres adotivas: se
paterna e materna. existem duas espécies de pais, os biológicos e os adotantes,
Esse caso não é raro. Além disso, não se encontra só quais são os verdadeiros? Quais presidem a inscrição da
em adoção. Mas quando o roteiro se apresenta dessa maneira, criança no laço social e em seu surgimento como sujeito
é evidente que o que está em jogo implica cada um naquilo que humano capaz de se questionar e de questionar sua história?
tem de mais íntimo. Representar o papel de pai ou de mãe Se essa interrogação adquire um ar grave, ela é no
não faz a função paterna ou materna. Pois se é o desejo do fundo supérflua. Porque se alguém, de seu lugar de sujeito,
outro sexo que faz o heterossexual, é o desejo de criança de arriscou-se a se apoiar sobre o ambiente que lhe foi oferecido
nosso parceiro sexual que estabelece nossos limites de homem para crescer e viver, é porque teve uma família para si.
ou de mulher. Teve pelo menos um homem, uma mulher, que lhe assegurou
uma função protetora. Teve pessoas que o apoiaram e amaram.
Talvez até tenha crescido perto de irmãos e irmãs com os quais
rivalizou e com quem foi ao mesmo tempo feliz e infeliz.
Se a questão se coloca mesmo assim, é porque há
alguma coisa que interessa a toda criança adotiva privada de
seus genitores e de sua história original. Muitos querem saber
o porquê e o como de seu abandono. Querem rever seus
genitores e situá-los fisicamente, no espaço e no tempo de um
grupo humano que os tinha contado, e que talvez ainda os conte
entre seus membros.

A palavra a mais

Eis o testemunho da senhora F., uma mulher jovem de


trinta e sete anos de idade, nascida em Paris, abandonada com
dezoito meses e adotada aos vinte e seis meses de idade:
32 Adoção e parentalidade: questões atuais 3 - Meu coração entre dois 33
As palavras podem colocar problemas quando se foi "Eu não pedi nada, eu não devo nada"
adotado, a começar por essa palavra mágica que é o nome.
Depois , essas outras palavras mágicas , " p apai ", O senhor R. foi adotado na África com um ano e meio
" mamãe" ... : que designam elas especificamente? Sensação de idade por um casal que teve uma filha biológica logo em
confusa de uma mentira, de uma artificialidade, e mesmo seguida. O senhor R. tinha a pele negra. Na pequena cidade
de uma fraude quando estou encolerizada, e eu ainda o do interior onde ele foi criado e educado, durante muito tempo
estou frequentemente . Não que me tenham escondido ele foi a única criança negra de sua escola e o único de seu
minha adoção, desde os quatro ou cinco anos de idade bairro.
que eu fui informada disso, certamente no momento em
que se coloca a questão crucial: "De onde vêm os bebês?", Eu desempenhei perfeitamente meu papel de criança
"De onde eu vim?". É aí que isso se complica. Entra-se na africana dificil. Eu sempre me perguntava como a criança
idade do "fazer como se", porque acontece, e este foi o que eu era podia ser o filho de uma mulher e de um homem
meu caso, que não se acredita mais verdadeiramente na brancos. Eu me habituei a me olhar longamente no espelho
adoção, na substituição. Acontece como se esta segunda em busca de um traço, de alguma coisa que pudesse nos
vida estivesse contaminada por uma dúvida permanente. ligar e pudesse me convencer que eu era em alguma parte
Acontece que a gente escuta dizer "eu te amo como minha seu filho, mas no conjunto eu não me sentia em minha
filha". Nessa frase, algumas palavras são demais. casa. Eu não os queria. Eu os fiz pagar caro o gesto de me
terem adotado. Eu sentia que não lhes devia nada.
Principalmente, não precisava agradá-los e dar-lhes a
impressão de terem sido bem-sucedidos comigo.
Reconhecida por toda vida
Esses três testemunhos ilustram o lado aleatório da
A senhora L. foi adotada na América Latina com um adoção. Nenhuma dessas três pessoas se posiciona da mesma
ano de idade por um casal sem filhos: maneira com respeito à sua família adotiva. Cada uma
apresenta argumentos e emite julgamentos que estão em
A gente pode se sentir estranha na família adotiva. contradição com os dos outros. Que relação existe entre aquele
Com efeito, eu penso que meus pais, já que eu era sua que não se reconhece em dívida frente a seus pais e aquela
filha, rapidamente apagaram a palavra "adotada". que se considera em dívida por toda vida para com eles?
Consciente ou inconscientemente, eu não sei, eles sempre Como cada um de nós se inscreve na relação com seu meio,
agiram comigo ocultando minha identidade, minhas raízes, e como se envolve com a responsabilidade sobre a própria
minha história, minha cultura de origem. A relação que se vida? Não está aí o mistério da vida de cada um no que ela
instalou, e que durou muitos anos, era uma relação muito tem de mais íntimo e de mais complexo?
ambígua. Para eles, que vieram me procurar, me socorrer,
pois eu ia morrer, eu era então uma privilegiada. Eu tive a
oportunidade de tê-los e por isso eu deveria ser-lhes grata Demasiado ou não suficiente
durante toda a vida, sem jamais me queixar e, sobretudo, Talvez algumas palavras sejam sempre demais! O que
sem nunca fazer perguntas. dizemos justamente quando se emprega a expressão:
"como meu filho"? É este meu "verdadeiro" filho ou não?
O que se entende quando se apresenta seu filho com o adjetivo
34 Adoção e parentalidade: questões atuais 3 - Meu coração entre dois 35

"adotado"? O que preocupa o espírito dos pais quando eles Sr. R.: Sim, mas isto se inscreve na vida de muitos.
nos perguntam se é preciso dizer a escola que seu filho é Não há nada para dizer disto. Ao contrário, lá eu tinha o direito
adotado? de dizer não à herança.
"Quando se tem um filho de outro fenótipo, há sempre Eu: Tomar tal posição implica uma outra questão que
alguém que vem nos perguntar se ele é uma criança adotada. você não formula: "O que é que você pediu a seus genitores
Isso suscita muitas vezes a curiosidade das pessoas, e essa para nascer?"
curiosidade às vezes nos constrange, e às vezes nos irrita." Sr. R.: Sobre isso, somos todos iguais. Mas no momento
''Na escola, quando nos veem chegar com nosso filho, de minha adoção eu estava lá, presente.
sabe-se de imediato que somos pais adotivos." Eu: Não há a menor dúvida sobre isso, mas não há
"Nós informamos aos professores que a criança é sombra de dúvida de que você estava presente para eles,
adotada, porque ela corre o risco de encontrar algumas e que eles estavam presentes para você.
dificuldades escolares." Se eu me refiro a esse pequeno diálogo, é para propor
Quando a criança se distingue por uma língua de origem uma leitura dessa posição que antes ressalta uma confusão
diferente da nossa, parece-me bem justificado informar às entre lugar e função. Existem dois lugares: o lugar destes que
professoras que a criança é adotada, à medida q~e ~la coi:re o nos deram a vida, digamos os genitores, e o lugar daqueles que
risco de encontrar dificuldades escolares. Isso se Justifica amda nos educaram, ou seja, os pais adotivos. Mas há uma função
mais quando a criança chega à idade escolar e não fala o que só os pais adotivos garantiram, a função de pai ou de mãe
francês. no cotidiano que é nossa vida com eles.
Além desse caso, em que a informação se impõe, A confusão vem do que senhor R. não chega a
apresentar a criança com o adjetivo "adotada" testemunha formular: ele tem duas posições certamente, mas enquanto
certo mal-estar. Dizer à criança que ela é adotiva e contar-lhe essas duas posições permanecem fechadas, é a função que
sua história faz parte de nosso dever de pais. Mas, à força de anda errante sem jamais encontrar endereçamento.
dizer: "É nossa filha adotada", corre-se o risco de promover Os genitores não fizeram o que era necessário, criar seu filho,
este significante como para advertir de um estado particular.
e os pais adotivos fizeram talvez o que era necessário
Os efeitos de tal comportamento são difíceis de calcular.
criando-o, mas não foram eles que o conceberam. A confusão
Entre eles, acontece que um homem ou uma mulher de certa
é inerente a essa fórmula, que se reduz a duas partes.
idade continue a se apresentar como sendo "uma criança
A abertura não é possível senão à medida que um terceiro
adotada". Essa criança está sempre lá, congelada no
elemento entre em jogo no que se poderia resumir como segue:
significante. se eu estou lá é porque existem dois que fizeram seu trabalho
por mim. Dito de outra maneira, o endereço não é mais nem o
"Eu tenho o direito de dizer sim ou não" endereço dos genitores, nem aquele dos pais adotivos, mas
É a frase que o senhor R. me disse quando soube que são seus papéis consecutivos que dão à função parental seu
seus pais adotivos tinham a intenção de lhe fazer uma doaç~o, valor simbólico. Nessa fórmula, uns e outros são pais, com a
como tinham feito para sua irmã biológica. Ele não quena. condição de autorizarem a criança a levar a vida que é a sua,
Ele considerava que não estava inscrito na história dessa família, naquilo que ela tem de mais singular. Compete à criança
o que queria dizer para ele que não tinha nada a dar ou a encontrar essa abertura.
receber dela. Eis nosso diálogo: É o valor simbólico desse endereçamento que vem
Eu: Isto supõe que você não recebeu nada dela em em terceiro lugar e que lhe permite propor questões sobre o
todo este tempo?
36 Adoção e parentalidade: questões atuais 3 - Meu coração entre dois
37
sentido de sua vida. E se ela está à altura de fazê-lo é porque se e~tender mais ou menos mal. Nós veremos no capítulo
foi ajudada e porque essa ajuda a fez crescer e ainda a interroga. segumte que a família é a terra de paixões contraditórias e
que isso não está para mudar. '
A dívida não é a que se crê . . Brevemente, existe algo que nos escapa, algo que
A senhora L. e o senhor R. não estão tão distantes Jamais poderá depender de um poder ou de uma vontade e que
1
disso em suas interrogações. Não se sentir em dívida, ou sentir-se faz co~ que a família seja ao mesmo tempo suportável e
1 em dívida por toda vida, volta a propor a mesma questão: decepc10nante. Devemos alguma coisa a nossos velhos?
o que se deve e a quem se deve? Certamente. Mas como fazer para que essa dívida nos tome
li
1.
1
Deve a vida apenas aos pais biológicos, ou aos seus responsáveis por nossa vida e nos inscreva como transmissores
"salvadores", seus pais adotivos. Os genitores não se referiram à nossa maneira para as gerações futuras? Trata-se de uma
à sua onipotência para conceber à "sua imagem" ou "homem dívida, mas essa dívida é simbólica. Com essa dívida é possível
e mulher", como nos mitos bíblicos da criação do mundo e da responder a um pai que nos diz: "com tudo O que eu fiz por
espécie humana. Deus é onipotente. Ele não tem de prestar vo_cê"; "Você fez o necessário para que eu esteja onde estou.
contas senão a ele mesmo. Ele criou e se encontrou satisfeito Nao tenho nada para te reprovar, nem para me gabar.
com sua criação. Certamente poderíamos ter feito melhor, mas, por ora,
estou aí."
Nenhum pai possuindo um mínimo de bom senso pode
dizer isso. Fazer uma criança requer um homem e uma mulher
unidos no ato de amor, mas a chegada de uma criança ao mundo
é tudo menos um caso de vontade ou de poder. Quantos casais
dizem que farão uma criança quando tiverem encontrado um
trabalho estável ou uma casa grande, para descobrir que a
criança não chega apesar da realização de seus objetivos
materiais? Outros terão filhos porque a mulher esqueceu uma
pílula, embora seu companheiro ainda não tenha encontrado
um trabalho.
Na adoção aparece uma queixa permanente. "Quando
se pensa que há aqueles que fazem filhos com tanta facilidade
e que os rejeitam!" "Algumas pessoas legais, pessoas como
se deve ser, não conseguem fazer uma criança e ainda
precisam aguentar toda essa gente e todos seus formulários.
Não há justiça!"
A clínica nos confronta também com discursos
amargos: "Com tudo o que se faz, com nossa disponibilidade, a
despesa que se faz por ele ... Tudo isso para fazer o quê?"
Não há justiça. Não se tem jamais o que se merece.
A educação é do domínio do impossível. Freud não
cessou de nos dizer que quase nunca, para não dizer nunca,
se tem o que se quer. Pais e filhos estão sempre condenados a
4

Construir suas ficções individuais

11

Para construir suas ficções, cada um tem necessidade


de alguns pontos de referência simbólicos, tais como uma data,
um nome e um endereço , para designar um grupo de
pertinência ou simplesmente um grupo social. Uma montagem
ficcional que tem por objetivo manter uma relação com a
:\ verdade. A verdade, nos diz Lacan, tem a estrutura de uma
ficção.
Entretanto, às vezes isso não funciona. Os jovens
adotivos não chegam a construir sua ficção individual a partir
do que eles encontram. Eles têm a tendência a se interessar
mais pela origem suposta em seu enlace com o corpo, com o
corpo da mãe genitora por exemplo, pensando que, se alguma
coisa lhes falta, é deste lado. É justamente isso que defende
Christian Demortier em seu último livro, A adoção e sua face
oculta. 1 Ele diz claramente: "Eu acredito na impregnação nas
células de meu corpo, do meu espírito, da minha alma, de minha
mãe biológica e dos meus ancestrais; agora é minha alma que
escolhe os dominantes do caráter, as sensações, as tendências
e as escolhas importantes de minha existência". 2
O interesse desse discurso está em uma espécie de
sacralização do objeto perdido, a genitora. Esta está situada
como o paraíso perdido dos homens, e nada vem preencher
essa perda.
As dificuldades residem na confusão entre uma
necessidade imperiosa para cada um construir seus mitos
individuais e aquilo que inevitavelmente se disjunta deles.

'DEMORTIER, C. L'adoption et saface caché. Paris: Jubilée, 2007.


2
Ibid., p. 189.
40 Adoção e parentalidade: questões atuais 4 - Construir suas ficções individuais 41

Cada um põe seus mitos como marcos de referência que lhe Christian Dernortier, sempre no seu livro, sugere que
permitem viver como Um no grupo a que pertence, no seio do a adoção se faça no próprio seio do grupo de origem de urna
qual aprende a construir seu lugar próprio por perdas e ganhos. cnança:
Mas nenhum grupo, nenhum mito é capaz de garantir o seu
estatuto de sujeito. Como suprir esta perda fundamental que é Uma criança adotada por pais da mesma origem se sentirá
o "paraíso perdido"? Existe alguém ou alguma coisa que menos estrangeira por causa da semelhança física .
poderia nos devolver o que foi a mãe de nossa primeira Ela não recalcaria mais sua personalidade profunda para
infància? Christian Demortier nos diz que a encontrou no espírito viver sob uma "falsa identidade", mas desenvolveria sem
e nas células. Pobre consolo. Se espírito e células representam vergonha seus reflexos , sua sensualidade, sua
as condições necessárias para nos inscrever enquanto seres sensibilidade em um contexto familiar e cultural que
vivos, elas não são, em compensação, suficientes para definir valorizaria seu direito à semelhança.3
o que é específico à nossa humanidade, à nossa escala de A experiência clínica nos ensina que uma criança
sujeito humano único entre todos semelhantes. O sujeito, branca nascida na França e adotada por franceses brancos
o homem como pessoa única, se constitui, por um lado, de um como ela, não escapa a esse mal-estar. É muito provável que
saber e de urn patrimônio comuns partilhados com.os membros ela ponha a mesma questão quanto ao estatuto da verdadeira
de seu grupo, e mesmo além de seu grupo; por outro lado, de ou da falsa mãe, ou dos verdadeiros e dos falsos pais.
urn outro saber que opera nele antes de ser sabido. E é este Quer seja branca ou não, ela não escapa ao sentimento de
1

,1
saber que constitui sua verdade de sujeito, urna verdade que perda inerente ao ato de seu abandono.
pode ser acessível somente no desvio de urna fala que só ele O resto é cultural, adquirido junto da mãe, dos pais e
'I emite, e muitas vezes sem saber. de seu grupo familiar e cultural. Urna criança hindu nascida na
O mal-estar da criança adotiva, seu mal-estar na Índia e adotada por uma família francesa branca é convocada
cultura, é projetado para o exterior. Conhecer sua história junto a gostar do queijo camernbert, talvez mesmo das rãs,
de sua mãe biológica, em seu odor, na prosódia de sua língua e e tornar-se assim alvo da chacota dos ingleses. Ela se
na atmosfera de um meio ern urn lugar dado, permanece uma comportaria corno a criança Dupont, mesmo se não tiver seu
reivindicação. E à medida que a reivindicação da origem fenótipo. Mas não deixa de ser verdade que urna criança negra
mobiliza toda sua energia, é possível que a criança adotiva criada em urn meio branco pode, ao descobrir sua diferença,
permaneça fechada à sua própria verdade de sujeito. O mal- integrá-la de maneira desfavorável, pois é vão negar o racismo
estar na cultura, corno Freud diz, representa uma escolha que grassa em toda sociedade.
impossível para todo hornern. Nosso estatuto de ser falante só Meu amigo Christian Demortier sabe certamente do
se faz ao preço de urna perda fundamental, a de urn saber que eu falo. Conhecendo seu humor, penso que ele me perdoará
inato que guiaria nossos atos e garantiria nossa sobrevivência, relatar esta anedota que nos aconteceu em junho de 2001,
em uma palavra, o instinto. A linguagem articulada abole o por ocasião das jornadas da UNESCO sobre adoção em Paris.
instinto, e nada mais poderá preencher essa perda. As células, Christian Demortier acabara de publicar seu livro Adotado no
o espírito ou a alma são inconcebíveis fora dos significantes vazio e figurava no programa como participante. Alguém na
que os designam. Igualmente, toda demanda é inconcebível sala, querendo lhe falar, tinha rne pedido para apresentá-lo.
sem a possibilidade de articulá-la. Mas, uma vez formulada, Neste exato momento, Christian estava sobre o estrado, e eu
toda demanda é condenada a perder seu objeto. E é nesse disse a meu interlocutor que ele poderia se aproximar para lhe
plano que a questão sobre o estatuto da verdadeira mãe
permanece insolúvel. 3
Ibid. , p. 203 .
42 Adoção e parentalidade: questões atuais 4 - Construir suas ficções individuais 43

falar. Esse homem, examinando o estrado, não o enxergava. Nós todos somos trabalhados pela questão do destino.
Eu mostrei então Christian Demorier. O homem, surpreso, Se eu não sou o mestre de meu destino, haveria alguém que
comentou, sem se dar conta do que dizia: "Mas ele é negro!" cuida de mim e que determina minha vida? Sim, Deus, poderia
Longe de mim considerar esse homem racista. me responder o crente. Mas quando não é Deus, quem poderia
Mas entre a conotação branca do nome Demortier e o fenótipo ocupar esse lugar para mim? Talvez seja nesse lugar indefinido
preto do homem que o encarnava, as referências desse homem que o vidente encontra um fundamento que dá crédito à sua
ficaram um pouco embaralhadas. palavra quando se o consulta.
Tem-se a tendência a reduzir a adoção à experiência Por parte da criança adotiva, a questão poderia ser
feliz de uns ou infeliz de outros e procurar extrair conclusões, formulada da seguinte maneira: "Este que vos fala da boca do
algumas às vezes prematuras. Não há nada que garanta uma adulto que eu sou é essa criança que nasceu na África e que
vida feliz, nem a vida na família biológica, nem muito menos na estava destinado a viver em sua cidadezinha com seus
família adotiva. É verdade que na adoção, os candidatos são semelhantes? Ou pode-se acreditar que meu verdadeiro destino
selecionados, mas será suficiente para pôr toda adoção ao é um outro destino?"
abrigo de uma má surpresa? Não. Uma adoção que acaba Assim como essas interrogações são legítimas, assim
mal, isto existe e existirá, não importa o que se faça. Mas será a resposta continua impossível. Perguntar-se, por exemplo, qual
preciso renunciar a ela? Os que pensam assim estão presos teria podido ser sua vida se tivesse ficado em sua cidadezinha,
no fantasma particular que eles têm da adoção. Para el~s, no seu país de nascimento, faz parte há muito tempo (talvez
a adoção rima com a grandeza e a nobreza de um ato que é toda a vida) das preocupações da pessoa. Pode-se imaginar a
destinado a ter sucesso. Em decorrência disso, eles são em resposta inspirando-se no futuro dos membros de sua geração
princípio vítimas de seu próprio fantasma. no lugar de seu nascimento, e considerando que a pessoa em
questão teria podido ser um pouco mais isto ou um pouco menos
aquilo. Estatisticamente, a resposta continua passível de ser
O verdadeiro destino considerada. Mas o destino não é um elemento de estatística.
E se partimos da ideia que seu destino está na imagem dos
Existe alguma coisa que nos destina a ocupar um lugar outros de seu grupo, com mais ou menos desvio possível, se
designado para nós? Há sempre alguém para acreditar nisso, desemboca em uma pista falsa. Descartar-se-ia desde já o
um outro para escarnecer. Entretanto, e pouco importa a reação elemento essencial, seu afastamento ou sua adoção, que faz
que se possa ter, todo mundo se comporta como se tivesse indiscutivelmente parte do destino individual.
uma força indeterminada que exercesse certa influência sobre
seu destino. O exemplo típico é o gesto tão corriqueiro de O particular é um enigma
consultar o horóscopo. Acredita-se no que se lê? Se não, por
que o fazemos? "Por curiosidade", ouvimos dizer Não existe outra vida senão a que vivemos no dia a
frequentemente. dia. Não há outro destino senão aquele que se constrói elemento
Políticos que exercem postos importantes e que por elemento de maneira consciente ou inconsciente. E então
consultam videntes, isso acontece. Espíritos que se dizem existe a incógnita, como sua adoção por exemplo.
cartesianos e que recorrem ao que existe de mais irracional Há uma perda certamente, mas como avaliar seu
para se tranquilizar em sua vida e na gestão de sua função, alcance na vida de homem ou de mulher? Considerando o que
isso também acontece. É preciso se alarmar e gritar como alguém se tomou neste ínterim, como saber se é ganhador ou
louco por causa disso? perdedor?
44 Adoção e parentalidade: questões atuais 4 - Construir suas ficções individuais 45

Qualquer resposta a tais interrogações será demais. qual ele chegou resume-se em uma frase: "O país não é o
Sem dúvida, é preciso aceitar a ideia de que a resposta é mesmo se o deixamos por escolha pessoal ou se você é obrigado
impossível. a partir".
Não deixa de ser verdade que o questionamento a Eu diria a mesma coisa quanto à família de nascença.
respeito da particularidade de seu destino próprio é legítimo. Não é a mesma coisa deixá-la por escolha ou sofrer a
Um homem que afirma que "nada mais é como antes desde separação.
meu acidente" é tão digno de crédito quanto outro que sustenta
que "minha partida de meu país foi um fator decisivo no meu "Eu sou uma criança adotada"
sucesso". Expressão de lástima ou de satisfação, uma e outra
afirmativa colocam a ideia de uma ruptura com o itinerário Eu sempre me fiz a pergunta sobre qual sentido dar ao
suposto ser o caminho natural de sua descendência. ato de um homem ou de uma mulher adultos de se apresentar
O senhor L. considera que não tem do que se queixar como sendo "uma criança adotada". Por que um homem e
das condições materiais de vida com seus pais adotivos. uma mulher maduros acham ainda necessário se apresentarem
Ele até mesmo crê que recebeu deles mais que muitas outras desse modo? Dão a entender que não são mais que isso?
crianças vivendo com seus pais de nascimento. Ele não pode Outra hipótese: o "eu sou uma criança adotada" seria o que
negar esta oportunidade. Por outro lado, ele não pode dizer a circula no tempo da história de um sujeito sem encontrar seu
mesma coisa sobre o plano afetivo. Sua mãe não é muito tempo para se escrever? Trata-se de um acontecimento do
amorosa, e seu pai estava frequentemente ausente. Ele teria passado que se anuncia no presente e que suscita uma dor
preferido ter um pai menos rico, mas bem mais presente. sempre atual? Uma reivindicação que seria quase identitária,
Ele está mais ou menos feliz do que se tivesse ficado no seu reclamando-se de uma perda, a perda do objeto materno,
país de nascença com seus genitores? Ele se arriscou a passar e que se caracteriza pela busca de um gozo que se pretende
algumas semanas na cidade em que nasceu e descobriu que a especifico?
vida era dura para muita gente. Ele se sentiu próximo das É justamente esse gozo que a criança exige de sua
1
pessoas, mas teve dificuldades de se identificar com elas. mãe adotiva, e é por isso, creio, que esta última se encontra
1

Ainda que pobres, mostravam-se simpáticos, às vezes muitas vezes em dificuldade pelo que eu qualificaria de "busca
generosos de certa maneira, e no entanto ele se sentia do Santo Graal" na criança adotiva. As queixas de mães
estrangeiro entre eles. Partilhar de seus traços físicos não adotivas fundam um pensamento assim. Quando nos
constituía necessariamente uma ligação com eles. Acreditavam-no encontramos frente a um casal e que ouvimos a mãe adotiva
o emigrado X que voltava ao blecf para passar as férias, como expressar suas dificuldades com a criança enquanto o pai
fazem outros emigrados. Escutar reduzir a busca de suas afirma não conhecer tais problemas, compreendemos que a
origens a um procedimento banal partilhada por milhares de criança reatualiza na sua relação com a mãe adotiva coisas
pessoas tendo voluntariamente deixado seu país lhe fez mal. antigas que estão em jogo.
O cúmulo foi atingido quando ele acreditou necessário desfazer
o mal-entendido a respeito de seu retorno ao país. É justamente Falar de sua adoção para uma criança sem lhe impor um
quando revelou a alguns sua adoção por uma família francesa estatuto
que descobriu que muitos teriam amado estar no seu lugar.
Ele aprendeu a relativizar as coisas? Talvez! A conclusão à Uma outra constatação merece ser evocada aqui.
Dizer-se ou apresentar-se como uma "criança adotada"
4
Termo africano que significa o interior do país. N. T. cola-se a uma realidade cotidiana de muitas crianças e de suas
46 Adoção e parentalidade: questões atuais 4 - Construir suas ficções individuais 47

familias adotivas. Desde que os especialistas em adoção insiste e repete sempre, dia após dia, e ano após ano? Termina
admitiram a necessidade de dizer a verdade às crianças e de seguramente por dizer outra verdade: "Há duas categorias de
restituir-lhes os elementos de sua história, esta recomendação filhos, os biológicos e o adotado".
parece tomar às vezes a feição de um mandamento em que Persistindo em lembrar à criança que ela é adotada,
dizer toma-se um imperativo de salvação. os pais, acreditamos, não cessam de remetê-la em seu estatuto
"Senhor, nosso filho vai entrar na escola este ano, particular. Ser adotado toma-se, no fim das contas, um elemento
e nós gostaríamos de saber se é preciso informar a professora de sua identidade no seio de sua família.
que ele é adotado ... " Estamos de acordo em reconhecer que é preciso
Nada lhes obriga a revelá-lo, sobretudo se seu filho dizer a verdade às crianças, mas é preciso também saber
1
1 não o deseja. Chega um momento em que é preciso dar mais esquecer que uma criança é adotiva para inscrevê-la como
atenção à sensibilidade de nossa criança que a qualquer outra um membro pleno na família. Uma criança que nos pede
consideração. Contudo, se seu questionamento reflete a para lhe contar sua história não está na mesma disposição de
preocupação de fazê-lo para seu bem, saiba que não é seguro escuta da verdade que uma criança que não pede. Além disso,
que o bem esteja onde se pensa. Colocar sua adoção como responder ao pedido da criança e dizer-lhe continuamente não
uma particularidade arrisca fazer de seu filho um caso particular. implica nem o sujeito nem a verdade do mesmo jeito.
Uma criança que descobre os beneficios secundários de seu
estado de criança adotada corre o risco de querer ser adotada Quando a criança quer entrar na normalidade
por todos que ocupam para ela um lugar importante.
Qual o propósito da revelação para sua professora ou A experiência das alocações familiares nos ensinam
para outras pessoas que não fazem parte do círculo familiar? que, em um momento ou em outro, a criança procura ser como
Trata-se para você de antecipar eventuais dificuldades de todo mundo e vai chamar o casal de acolhimento "papai e
inserção ou de aprendizagem? Se sim, a atenção que se vai mamãe" para grande escândalo dos pais biológicos ou dos
prestar em um primeiro momento não corre o risco de trabalhadores sociais. Acontece até de ela pedir para ser
voltar-se contra ele como argumento de base de sua orientação chamada por seu sobrenome e que ela afirme a seus colegas
escolar a seguir? Beneficiar-se da boa vontade da equipe que a senhora que a acompanha é sua mãe.
escolar no momento de entrada não o protege entretanto da Isso não é uma mentira. É antes a verdade de seu
rejeição se sua integração apresenta dificuldades em classe. desejo de normalizar sua situação. A criança adotiva está na
Em todo caso, dizer ou não é uma decisão que se toma mesma configuração. Há um momento em que ela não quer
com a própria criança. Ela mesma pode dizer se assim o quiser. mais ouvir falar de sua adoção. Ela é a criança dessa história
familiar que se constrói no dia a dia. Enquanto ela se encontra
O dizer não deverá ir contra sua intimidade como sujeito, ela está na verdade de seus sentimentos e de
sua relação estruturante com seu ambiente imediato.
Essa questão revela o sentimento de obrigação de
muitos pais de dizer que seu filho é adotado. Alguns até
apresentam seus filhos dizendo, por exemplo: "Nós temos três
filhos, dois biológicos e um adotado". Fazendo isso, os pais
dizem a verdade, seguramente, e nesse ponto eles concordam
com os especialistas. Mas o que diz mesmo um casal quando
5

A busca da origem

Adão tem uma origem? Se sim, o que o comprova?


Ele tinha um traço de que ficou a cicatriz, um umbigo por
exemplo? Se não, a partir de que geração o umbigo tomou
lugar no meio da barriga do homem? O umbigo é um sinal de
pertencimento humano. Quando, diante do espelho, você olha
sua imagem e o vê ali, diante de você, você compreende sem
nenhuma dúvida que você não foi modelado como Adão, nem
talhado como Pinocchio, nem clonado como ... Você sabe que
nasceu de uma mulher que um homem, salvo exceção,
conheceu.
Assim se tranquilizava uma menininha filha adotiva de
seis anos de idade, feliz de admirar seu umbigo no espelho,
pois que ele sozinho significava para ela, para além de tudo o
que lhe tinham dito de sua história, que ela tinha tido uma mãe
geradora e que ela tinha sido carregada como todas crianças
do mundo.
1 1
Isso parece evidente para você, seguramente.
Mas esse não é o caso de todo mundo. Quando você se encontra
sozinho desde o nascimento, e inúmeras mãos, às vezes
calorosas, às vezes anônimas, se ocupam de seu pequeno corpo,
você não pode saber quem é quem, nem por que cada um
tomou este lugar ao seu lado, mas você de repente se
conscientiza de relance que a vida continuou para você e que
você está aí, o rapaz grande ou a moça grande que se põe
essa questão inteligente.
Adoção e parentalidade: questões atuais 5 - A busca da origem 51
50
~u qualificaria de "captura da origem". Isso lhes permite balizar
A função da marca
o espaço-tempo de sua história e dá ao relato familiar uma
Trata-se então de uma marca que demarca seu corpo trama, uma direção, e mesmo um fim. Esse saber os inscreve
e que, apesar do corte que separou você de sua mãe de como mortais, assim como seus genitores. Basta às vezes que
nascença, funciona sempre para alguns como que um cordão um desses índices falte ou apresente uma particularidade
fantasma que nada veio romper. inesperada para desencadear reações também imprevistas.
O testemunho desta menininha é um exemplo eloquente
da maneira como se coloca a questão sobre a origem. Só a genitora abandona
Essa marca representa a motivação de base que impele os
jovens adotivos a buscar suas origens. É suficiente alguns casos O segundo elemento que motiva sua pesquisa me
anódinos para compreender o que está em jogo no que sua parece de um grande interesse para o trabalho clínico.
história inicial representa para estes jovens. Basta, por exemplo, Os testemunhos das crianças adotivas revelam que pai e mãe
que um médico pergunte, por ocasião de uma consulta médica, genitores não parecem carregar a mesma responsabilidade no
se os pais tiveram alguma doença particular para deixar um ato de abandono da criança. Só a mãe genitora abandona.
jovem constrangido. Ouvi alguns afirmarem que eles O pai genitor só aparece em segundo lugar. Ele é
trapaceavam, mencionando as doenças ou a ausência de acessoriamente abandonador e, de toda maneira, seu ato
doença de seus pais adotivos. Outros se sentem um pouco em concerne em princípio à mulher. "Ele a seduziu e a abandonou",
dificuldade quando seus colegas de classe lhe perguntam se "Era um rabo de saia". Ouvem-se muitos comentários dessa
eles se parecem com seu pai ou com sua mãe ... ordem, destinados não a desculpar o genitor, mas a relativizar
Essas certamente são anedotas banais, mas elas seu lugar na trama familiar da criança adotiva.
podem assombrar a vida de uma pessoa adotada. É ainda mais Essa posição me parece de acordo com a hipótese
grave quando estes homens e estas mulheres fazem como_ se lacaniana sobre o lugar do pai na economia psíquica da criança.
seu vivido não fosse sua verdadeira vida e que seu destmo O pai é introduzido como terceiro à medida que o desejo de
fosse obrigatoriamente outro. Conhecer sua história lhes é uma mulher, de uma mãe no caso, dirige-se para ele. Pode-se
necessário a fim de tomá-la possível de contar. Mas quanto franquear um passo suplementar e supor consequentemente
mais levam adiante sua pesquisa, tanto mais seu objeto lhes que só a mãe adota e se faz adotar? A questão é talvez
escapa. Alguma coisa fica fora do alcance, impossível de dizer precipitada, mas começamos a discerni-la subjacente ao
aumento significativo da adoção internacional por mulheres
ou de localizar.
sozinhas. Dito de outra maneira, os elementos teóricos nos
chegam com um efeito de retorno. Se Lacan tem razão uma
Os três índices mulher poderia então adotar sozinha, e o pai se introd~ziria
No contato com estes homens e estas mulheres que posteriormente como terceiro, significante do desejo da mãe
eu tive inúmeras ocasiões de escutar, eu aprendi que três na vida de sua criança. Brevemente, o pai pode esperar que
elementos aparecem frequentemente, além do aspecto fisico. uma mulher aceite introduzi-lo em sua vida.
Eles procuram uma data, sua data de nascimento, por exemplo,
um lugar, uma comunidade que os tenha contado como membro, O que legitima uma família?
e um endereço, o que implica um lugar e um nome.
Para reflexão, esses três índices são menos banais, Esta é a questão que a senhora C. me propõe em sua
pois não aparecem na primeira abordagem. O fato de primeira visita. À época, a senhora C. tinha 55 anos de idade e
reuni-los representa para esses jovens uma liberação do que era mãe de um jovem adolescente adotado com a idade de
52 Adoção e parentalidade: questões atuais
5 - A busca da origem
53
alguns dias na Tailândia. Ela não tivera filho biológico com seu
marido e somente tinha pensado em adotar após sua separação. .
Como conceber a natureza da busca da origem?

O rapaz apresentava-lhe muitas dificuldades e, . Como explicar essa diligência nas crianças adotivas e
de tempos em tempos, ela se sentia completamente quais são as implicações na estruturação da família humana
transtornada pela violência de seu filho e por suas explosões ou ainda de um grupo social? '
imprevisíveis. Ele era grande e fisicamente forte, e ela, frente Uma primeira resposta me foi inspirada pela leitura do
a um jovem encolerizado capaz de quebrar tudo, sentia-se fraca quadro de Ambrogio Lorenzetti, Os efeitos do bom governo. 1
e indefesa, sobretudo tinha medo. O quadro se lê da esquerda para a direita. Ele começa
O rapaz rejeitava qualquer limite e, quando tinha uma pela figura da sabedoria, que segura a Bíblia. De lá, desce
demanda para satisfazer, ele não parava de insistir até sua ur:ia corda ~ue _vai à justiça. Em seguida, a corda passa pela
mãe submeter-se. Ele era invasivo no espaço de sua residência, mao_ da concord1a, apresentada com uma plaina sobre os joelhos,
a ponto que a senhora C. achava-se acossada a se refugiar no ?esti~ada a aplainar as disputas. Depois, a mesma corda chega
seu pequeno quartinho e só sair quando seu filho dignava-se a as m~os d: v_mte e quatro cidadãos, que simbolizam o governo
aceitá-la na sala. de S1ena a epoca. Enfim, a corda termina nas mãos de um
Apesar de tudo ela continuava a ter, contra a má sorte, v_elho :estido de ~reto e branco, as cores da cidade, e que
bom coração; mas o fato de ver seu filho enfurnar-se em seu simboliza a comunrdade. A seus pés, encontram-se os gêmeos
quarto sem avisar e jogar-se sobre sua cama tinha e a loba que lembram a origem romana da cidade.
definitivamente tornado insuportável sua vida a dois. Eis o ideal de um dispositivo sólido que une o grupo e
"Cada vez que ele faz isto, eu me sinto violada". assegura a cada um dos membros um sentimento de
Essa senhora responde à questão que ela mesma me perten_cim~nto. A corda está presa em suas duas pontas pelo
fizera. O que legitima uma família é o sentimento de segurança que_ ~a ongem. Essa origem é ao mesmo tempo biológica e
que experimentamos em presença de nossos filhos, mesmo espmtual. Entre ~s duas, o cidadão segura alguma coisa que
quando o parceiro sexual está ausente. Esse sentimento para ele faz elo, digamos elo social.
depende de nossa aptidão para respeitar os limites que separam Pode-se dizer que o desejo de conhecer a origem
as gerações e para integrar o interdito, que tem por função encontra aí seus limites? De que corda se trata quando os
principal levar a aceitar a ideia de que uma demanda homens e as mulheres empreendem buscas a fim de encontrar
endereçada aos pais só tem resposta parcialmente suficiente, seus pais de nascença ou traços deles? Será que somente a
às vezes frustrante. A "mãe da realidade" é a única mãe, cord_a real, o elo de sangue por exemplo, lhes devolve um
à medida que ela destitui a mãe todo-poderosa da primeira sentimento de pertença? Ou então se trata de outra coisa
infância. A mãe da realidade só é mãe pelo próprio fato de sua a nostalgia do corpo da mãe no momento em que ela ocupav~
inscrição naquilo que impõe os limites. o lugar do Outro materno para a criança? Veremos adiante
A violência dos adolescentes em relação à sua mãe q~e essa hipótese tem de ser mantida, pois ela poderia nos
adotiva aparece algumas vezes como uma manifestação de onentar na escuta dos "loucos da origem" ( como se diz, por
exasperação; sempre com demandas voltadas para a mãe exemplo, o "louco de Elsa" deAragon ou "os doidos de Deus").
genitora, cujo abandono lhes dá ainda o sentimento de serem Uma segunda resposta nos é fornecida pelo trabalho
privados de seu amor; eles se ressentem de tudo o que vem da de luto das crianças adotivas. Como o luto da história original
111 mãe adotiva como forçosamente insatisfatório. De onde decorre acontece para elas?
uma maré de demandas intermináveis.
1 1
Esta pintura se encontra no Museu Cívico em Siena.
Adoção e parentalidade: questões atuais
54
Nos seus testemunhos eu creio ter ouvido ~lguma coisa
que merece nossa atenção. O luto a~o?tece à medida que uma 6
história se torna subjetiva e transm1ss1Vel. . .
Eis a explicação interessante que a senhonta K., dezoito
anos de idade, de origem ucraniana, me deu: O encontro entre pais e filho,
O senhor sabe por que existem sempre furos nas p~liçadas um mal-entendido permanente
dos canteiros de obra? Não? Os furos constituem a
resposta para os curiosos que se interrogam acerca do
conteúdo de um canteiro. A gente sempre se pergunta o
que acontece atrás, o que se constrói. Dá-se ui~a olhada Se, por acaso, o leitor se recorda do filme Capitão
e se vê alguma coisa. E muitas vezes é suficiente para Bill Jr, com Buster Keaton, ele se lembra do famoso encontro
acalmar a curiosidade dos passantes. . entre pai e filho sobre o cais do porto de uma pequena cidade
É a mesma coisa para mim. Há uma espécie de paltçada no estado de Mississipi. Eles tinham se perdido de vista quando
que me separa de minha história ..Nada mais qu~ u~ _furo o filho era uma criança pequena. O pai, capitão de um velho
sobre meu passado permitir-me-ta contar-me h1stonas e navio a vapor, navegava no Mississipi e tinha dificuldades para
inscrever-me numa continuidade. Não saber nada sobre enfrentar um temível concorrente que procurava se outorgar
minhas origens é como se eu estivesse sempre prestes a o monopólio da navegação no rio.
ficar de fora de meu próprio canteiro. O pai era durão. A confrontação não o assustava.
Quando eu ouço meus amigos cont~rem m_ontes de Seu aspecto fisico impressionava. Alto, robusto e temível, ele
histórias sobre sua família, eu tenho a impressao de que imaginava ver chegar um jovem de sua têmpera. Tinha pedido
nasci depois do dilúvio e que eu sou a sobrevivente sem ao marujo que o tinha acompanhado para ajudá-lo a encontrar
o jovem que poderia se assemelhar a ele, a fim de não se
memória.
Em resumo, pouco importa o que me aconteceu , enganar de filho. Ele deveria estar usando um cravo branco
o mais importante é ter conhecimento disso e saber como sobre o avesso de sua capa como sinal de reconhecimento.
eram os atores dessa história. Mas, falta de sorte, o encontro caiu no dia da festa das mães e
todo mundo no cais do porto usava um cravo branco. O pai e
A senhorita K. ilustra perfeitamente o que se cha11:a seu companheiro chegavam para os jovens que eles julgavam
" de luto" É a descoberta de relance que nao dignos de ser seu filho e perguntavam se eles estavam
um processo . h. , . . lar
existe história boa ou má história, mas uma tstona smgu_ . procurando um pai. Uns e outros os despediam, sem dar
E toda história é singular à medida que ~e chega a torna-la atenção, surpresos pela pergunta e impressionados por seu
suportável. Ela se toma suportável ~ _partlf do momento em aspecto fisico.
que o equívoco, como nos ditos espmtuosos, vem _de~fazer_ o
domínio dos significantes que se congelam em ~a s1gmficaç~? O narcisismo ferido
que nos causa vergonha, como "eu sou uma cnança adotada ,
Do outro lado do cais, um jovem fraco e encolhido,
por exemplo.
de um jeito engraçado, andava também em busca de homens
que ele julgava serem da idade de seu pai. Ele parava diante
de homens bem-vestidos e lhes mostrava o avesso de sua capa
56 Adoção e parentalidade: questões atuais 6 - O encontro entre pais e filho , um mal-entendido permanente 57

enfeitada com um cravo. Sua busca se revelou um fracasso O marujo, inconscientemente, tinha reprovado o pai por seu
total. Pai e filho desistiram e se dirigiram para a saída, cada filho , dando-lhe a oportunidade de se defender.
um de seu lado. Willy, o filho , largou sua mala para esperar em Em síntese, o filme, nas idas e vindas que se seguem,
frente à estação. Uma etiqueta com seu nome pendia da mala. dá a cada um a oportunidade de vir em socorro do outro, e,
O olhar de Bill, o pai, caiu-lhe em cima, e ele descobriu que para encerrar, no último momento faz triunfar o filho que salva
este magricela era o filho esperado. Ficou chocado, mas não o pai, sua namorada e seu futuro sogro.
ousou confessá-lo diante do velho marujo. Quis ir embora,
depois voltou sobre seus passos. Assumindo-se, caminhou até O fantasma de salvamento
seu filho e se apresentou. Pegou a mala e fez com que o marujo
O sucesso desse filme se prende ao fato de que ele
a carregasse. Deu a mão a seu filho exatamente como se segura
relata com muito humor um fantasma muito conhecido, que é
uma criança e o arrastou atrás de si de forma brutal. O filho o
o fantasma do salvamento. A adoção nos leva a tais coisas.
seguiu um pouco impressionado, mas deixou-se levar sem
O desejo de encontrar suas origens se explica às vezes pelo
contestação. fantasma da criança adotiva de salvar seus pais biológicos.
Trata-se de um fantasma de "pequeno Polegar". O pequeno
Meu pai, este herói indefeso, abandonado por seus pais pobres, termina por superar
No caminho, o pai levou o filho ao barbeiro e, dando todas suas dificuldades e volta para salvar estes últimos.
urna moeda a este último, pediu-lhe para raspar o bigode de O amor triunfa e faz esquecer a infelicidade que foi origem da
Willy que, segundo seus critérios pessoais lhe davam um ar separação.
ridículo. O bigode desapareceu, mas as coisas não pararam Mas o reencontro nem sempre é fácil. Na Antiguidade,
por aí. Bill não aceitava também a boina que seu filho usava. se expunham as crianças e, muitas vezes, dissimulava-se um
Ele o arrastou, sempre da mesma maneira, até a chapelaria e objeto entre suas vestes ou se bordavam aí suas iniciais às
'
se pôs a lhe colocar chapéus sobre a cabeça até que escolhesse vezes se colocava uma carta que fornecia alguns elementos
um que agradasse. A terceira etapa foi a loja de roupas. O pai da história da criança. Esta prática durou muito tempo, ela
queria comprar uma roupa de trabalho para seu filho para realmente nunca desapareceu. Ela é encontrada em certas
mantê-lo com ele. Ele optou por um uniforme comum de culturas , em países diversos. Jean-Jacques Rousseau
trabalho. Mas o acaso se intrometeu. Willy encontra sua permanece para mim o melhor exemplo. Ele nos revela em
namorada, uma colega de classe, a filha de King, o temível suas Confissões ter confiado seus filhos ao Estado, não porque
concorrente de seu pai; eles estavam apaixonados para não os amasse, mas porque ele sabia não ser o bom pai de que
infelicidade dos dois pais. É ela que escolhe a roupa de seu eles precisavam. Entregando-os à educação pública, ele os
namorado. E quando esse aparece com uma roupa de oficial destinava a serem bons cidadãos e bons trabalhadores
da marinha, o marujo estende uma pistola ao pai e lhe diz: - fazendo isso ele se tomou um membro da república de Platão.
"Nenhum júri o condenará se o matar. É suficiente vê-lo neste Este arranjo, diz ele, parece-lhe tão sensato e tão bom que ele
estado para desculpar teu gesto". poderia se gabar dele. Se não o fizesse, seria por consideração
O pai joga a pistola no chão e trata severamente o à mãe. No fundo, ele sabia que tinha razão em confiar seus
marujo. Este não compreende o que lhe acontecia. No fundo , filhos, pensando que eles teriam gostado de serem educados e
ele só fizera expressar os sentimentos do pai! Só que ele não alimentados corno foram. 1 Nós sabemos ainda que Madame
sabia que se o pai tem o direito de ficar decepcionado com seu
1
filho , ele não permitiria que alguém lhe faltasse com o respeito. Rousseau, J.-J. Confissões . Pari s: H. Beziat, v. 2, p. 14-15 .
58 Adoção e parentalidade: questões atuais 6 - O encontro entre pais e filho, um mal-entendido permanente 59

de Luxemburgo se propôs um dia ajudá-lo a encontrar um de do sarcasmo dos outros e de seu colaborador mais próximo
seus filhos. Ela sabia que ele tinha posto um número nas fraldas para ele reencontrar seu reflexo de defesa. Precisaria pô-lo
do mais velho e confiou a busca a seu criado de quarto. assim à prova para que ele adotasse seu filho, ou, pelo menos,
Este se atrelou a consultar os registros de crianças encontradas, que ele adotasse urna estratégia de proteção a seu respeito?
mas em vão. Jean-Jacques Rousseau ficou aliviado.
Como poderia estar seguro, se lhe apresentassem uma criança, Salvar a honra
que se tratava de uma das suas? E como ele poderia estar
seguro de poder ter por ela sentimentos verdadeiros, quando O filme é engraçado e terno ao mesmo tempo.
não tivera oportunidade de "degustar em todo seu encanto o Fala de nós, pais e criança, nas situações mais corriqueiras.
1
verdadeiro sentimento da natureza"? 2 Tomemos um caso banal, o encontro com os professores na
1 escola. Quando um professor observa a vocês, em presença
de dezenas de outros pais, que seu filho não trabalha, ou, pior
li Como saber que é seu filho?
ainda, quando ele se pergunta o que seu filho faz na escola,
Jean-Jacques Rousseau não se arriscou, como o velho vocês perdem sua soberba de pais. Quaisquer pais, maus
Bill, reencontrando seu filho. Digamos que aquilo foi mais perdedores, reagem criticando a pedagogia do professor em
choque que reencontro. O reencontro se faz no dia a d!a e não questão, e mesmo da escola. Tal reação não tem nada de
para de se renovar em nossa vivência cotidiana. E nesse maldoso, trata-se somente de uma luta de honra de um homem
reencontro no cotidiano que pais e filhos encontram o tempo ou de uma mulher ferido(a).
de combater as figuras do filho ideal e dos pais ideais. Sua criança faz igual. Ela tem vergonha de vocês
A realidade nos ensina a ser modestos e a fazer concessões. quando vocês falam muito na reunião. Tem vergonha quando
Dizer a seu filho que não rende na escola: "Nós não te pedimos vocês falam com o sotaque de origem estrangeira ou ainda
para ser o primeiro da classe, mas te pedimos de estar na quando vocês tentam bancar os originais. Brevemente,
média" é um exemplo típico de concessão, feito pelos pais no entre criança e pais, os encontros são muitas vezes marcados
domínio da escolaridade quando suas crianças trabalham mal. pelo mal-entendido. Isto não tem nada de grave, pois basta um
Se essa modéstia tem um sentido, é porque ela implica que os pouco de humor, um mínimo de recuo e seu narcisismo de
pais aceitem destituir a criança narcísica, sem entretanto homem ferido cicatriza rapidamente.
rejeitar a criança real, apesar das decepções que ela lhes inflige. Mas o que acontece quando o recuo não é possível?
O velho Bill, de sua parte, sofreu a prova da realidade Você fica inconsolável. Seu narcisismo de homem ou de mulher
em toda sua dureza. Isso foi mais duro porque ele não teve o permanece marcado por uma ferida que lhe causa dor e
tempo de se habituar e de fazer aos poucos o luto da criança preocupação. Você termina assim mesmo por se recuperar,
rei. Seu olhar ia para os outros jovens, os que apresentavam dizendo que somente os estudos contam.
traços de natureza que acariciavam seu narcisismo de pai no
sentido do pelo. Ele não via aquele que não correspondia a A falha dos outros
nenhum de seus valores de homem rude habituado a rixas
contra os indivíduos e contra os elementos da natureza. Essa tese é verdadeira com seu filho biológico como
Entretanto, se seu narcisismo foi atingido, ele conservou seu com seu filho adotivo. Só que, com este último, é possível dar
amor-próprio de homem. Foi preciso que seu filho fosse motivo um passo a mais, com suas vantagens e seus inconvenientes.
A vantagem é em princípio narcísica. Se a criança não trabalha,
2
Ibid. não é sua a falha. A adoção oferece a você uma margem de
I!
1
60 Adoção e parentalidade: questões atuais
1

manobra confortável, permitindo rejeitar a falha sobre os pais


biológicos, dito de outra maneira, sobre o desconhecido.
"Se ele é assim é porque ... ". Você tem a resposta, e isso salva 7
a honra. Acontece até de você retrucar ao professor:
"Com tudo o que essa criança já passou, seu desinteresse pela
escola só pode ser normal". A clínica da criança adotiva
Respondendo desse modo, você defende sua criança,
e você se parece com a imagem do velho Bill. Infelizmente,
nem todos os pais adotivos reagem desse modo. Nós temos
encontrado pais adotivos que reagem mal, desinvestindo a Em meu livro A criança adotiva e suas famílias,
criança. Eles fazem como se tivessem sido enganados com a eu escrevi que a criança adotiva não é uma criança com
mercadoria e merecessem melhor. dificuldades específicas. A adoção, enquanto ato, não tem por
A adoção é efetiva quando não há mais álibi natureza fragilizar uma criança. Entretanto, para ser adotada,
desculpando um comportamento ou sublinhando um outro. uma criança deve passar por uma perda, a de seus pais
Enquanto os pais afirmarem que "é porque é uma criança biológicos. Mas atrás da perda coexistem situações diversas
adotiva", a adoção permanece problemática. Quando a criança que não se assemelham necessariamente. À diversidade das
sofre, é como sujeito que lida com sua história, tão singular histórias familiares se junta a das histórias singulares;
quanto possa ser. Uma história não se reduz a um ato ou a um uma criança separada não se assemelha a outra criança a não
fato. Que um ato venha dar uma nova orientação à vida de ser no ato que visa a inscrevê-la em um novo laço familiar.
alguém, isso não quer dizer que a vida não é mais que isso. A problemática da adoção, ou melhor, do que a tomou
A função do álibi é de confundir o traço de uma história possível, fica para toda criança como uma questão sem resposta
particular com a estrutura. Pode-se sofrer por ter sido e não é por falta de respostas. Todos especialistas estão de
abandonado ou ter sido adotado, mas isso não quer dizer em acordo sobre uma ideia básica: é preciso dizer a verdade de
caso algum que não se é responsável pela própria vida, como sua adoção à criança adotiva. Em nossos dias, muito raramente
qualquer pessoa, seja homem ou mulher. se encontram situações em que os pais fazem cara feia para
revelar o segredo da adoção de sua criança. Mas contar a
verdade sobre a verdade da adoção permanece uma missão
impossível pela simples razão de que a perda, a separação ou
o abandono, é uma história que se subjetiva, por mais que ela
seja contada de uma vez por todas. O exemplo típico é a história
que você conta a seu filho. Ele lhe pede sempre a mesma.
Você lhe conta noite após noite, semana após semana e, ainda
li
que ele conheça de cor, até as vírgulas, ele continua a exigir de
você a mesma história, não tolerando qualquer desvio. E depois,
1 um dia, isto tudo cai. Inútil tentar contar de novo. Ele não se
interessa mais. É tudo. É justamente isso que eu chamo de
subjetivação de uma história, ou melhor, a subjetivação do que
essa história representa para ele e que escapa completamente
aos pais.
62 Adoção e parentalidade: questões atuais 7 - A clínica da criança adotiva 63

Contar toma-se assim o suporte de qualquer coisa que acreditar que essas crianças são para serem consideradas como
se constrói, e que constrói ao mesmo tempo o sujeito que escuta todo mundo, mas como lhes tirar a ideia de que elas são os
você e que surpreende pela necessidade imperiosa de sempre dejetos e impedi-las de viver como dejetos?"
ouvir a mesma coisa, o mesmo relato. É sempre difícil tirar alguma coisa da cabeça de alguém,
mais ainda quando esse alguém se julga com tamanha
Como considerar essas dificuldades na adoção? severidade. Por que um homem jovem ou uma mulher jovem
que foi bem-sucedido em ultrapassar mais ou menos as
A adoção serve às vezes de álibi para justificar toda dificuldades de sua vida no seio de uma família que o adota e
espécie de dificuldades que surgem em uma família adotiva. o mantém continua a se julgar assim? A resposta, se existe
Um adolescente que causa problemas à sua família encontra uma resposta, é para se ver com a pessoa em questão.
desculpas naquilo que sua família denomina muitas vezes crise Isso não impede de formular hipóteses construídas a partir de
de adolescência. O adolescente adotivo é ao mesmo tempo diversos testemunhos.
este adolescente e aquele, cujas crises querem sempre dizer "Se me rejeitaram quando bebê é porque havia algo
mais do que as dos outros. em mim que devia desgostar minha mãe." Este segundo
Um simples mal-entendido pode suscitar às vezes testemunho ainda é mais direto: "Eu imagino, com tudo que
angústias injustificadas. Tivemos muitas vezes a ocasião de acontece na América do Sul com as pobres mulheres, que minha
encontrar adolescentes e sua família muito alertados pelo saber genitora tenha conhecido homens e que me carregou talvez
que granjearam nos livros e junto a especialistas. Eles liam sem jamais ter consciência de sua gravidez nem da minha vinda
signos e interpretavam em lugar de inventar como sua ao mundo".
cumplicidade os autorizava fazer. Esse estado de alerta provém, Será necessário multiplicar os testemunhos para
na minha opinião, deste sentimento de ser devedor ao corpo compreender que não é o ato de abandono que é o mais duro
social e às autoridades que lhes confiam crianças. Fazem como para os abandonados, mas antes o roteiro que acompanha e
se não tivessem o direito de errar, e todo conflito aparece assim que dá a esse abandono seu caráter insuportável? Há uma
como o sinal de que eles não estão à altura da missão que lhes espécie de precariedade narcísica que permanece viva e que
foi confiada. A opinião pública reforça esta tendência. os coloca como seres nascidos do lado mau do que constitui
Comentários do tipo "eles são corajosos", para designar um valor comum entre os homens. Françoise Dolto teria qualificado
casal que decidiu adotar, são frequentes. Que se diz exatamente seu estado de fragilidade do narcisismo fundamental,
quando se qualifica seus vizinhos adotivos de corajosos? responsável pela instauração da segurança de base de toda
Trata-se de sublinhar sua inconsciência das dificuldades de criança bem pequena rodeada e envolvida numa troca
seu ato, ou se quer dizer que eles são corajosos por realizar o estruturante com seu Outro materno. Esse narcisismo é,
que eles não se autorizam a si mesmos? Difícil de dizer. Pouco de qualquer maneira, o fruto da educação do desejo da criança
importa a resposta pela qual se opte, em todo caso se faz da para a comunicação e para sua inscrição no registro do
adoção um ato pouco comum. simbólico. É a este preço que ele sai do anonimato e se faz
reconhecer, reconhecendo por sua vez seu primeiro Outro,
O dejeto sua mãe ou sua babá. Na falta desse reconhecimento, a criança
se arrisca a soçobrar no anonimato e ficar ausente de seu
Em seguida a uma de minhas conferências no quadro desejo de sujeito.
das atividades da Associação Infância e Famílias de Adoção, Essa precariedade narcísica rejeita às vezes o amor
um senhor se levanta e me faz a seguinte observação: "É lindo dos pais adotivos. Pior ainda: quanto mais esse amor se faz
64 Adoção e parentalidade: questões atuais 7 - A clínica da criança adotiva 65

ouvir, mais ele remete estes jovens a seu abandono. Quanto ao desejo de encontrar suas origens, a senhorita
Quando são amados, ou quando não são amados, isto tem muitas M. me diz que isso jamais a preocupou, porque ela considera
vezes a tendência a confortá-los em seu sentimento de que só tem uma família, e que essa família foi sempre, para
desprezo que têm por si próprios. Quando são amados, eles se ela, a boa. Depois ela encadeia: "A única má surpresa que
perguntam por que o merecem, e, se descobrem que são poderia me acontecer é encontrar meus genitores. Eu ficaria
mal-amados, fazem como se isso fosse normal. Felizmente, muito constrangida se eu cruzasse com eles no quadro de uma
isso não é frequente. ação para me retomar".
Como fazer quando se é pai ou mãe de um jovem Eu: Que idade você tem?
assim? É preciso ir ao seu encontro e crer no seu estado de Srta. M.: Trinta e três anos, por quê?
"criança-dejeto"? Não, o mais importante é ensinar a nossos Eu: Porque eu me pergunto como seus genitores fariam
filhos , quer sejam adotivos ou biológicos, a serem responsáveis para retomar uma filha de trinta e três anos?
por sua vida. Podemos sustentá-los, certamente, mas ninguém Srta. M.: Sim, de fato, eu poderia lhes dizer não.
pode substituí-los para sustentar seu próprio desejo. Eu: A mulher de trinta e três anos certamente poderia
lhes dizer não, mas será que a filhinha pequena seria capaz de
"Eu não os quero" lhes resistir?
Srta. M.: De que filhinha pequena você fala?
A senhorita M. é uma jovem mulher de 33 anos de Eu: Daquela que pensa que seus pais podem vir
idade, nascida na Etiópia e adotada com a idade de seis meses. retomá-la.
É uma linda mulher que foi bem-sucedida na escola e Essa é uma linda história. No fundo, a senhorita M.
profissionalmente. Ela deixou seus pais adotivos e ~e ins~alou não tem uma posição radicalmente diferente da dos outros,
perto, desejando adquirir sua autonomia e se assumir sozmba. apesar de sua primeira afirmativa com respeito à sua escolha
Ela trabalha e ganha bem sua vida, mas ela não presta atenção definitiva por sua família adotiva. Seus genitores continuam a
nas despesas. Ela está sempre endividada e frequentemente estar presentes, por vezes ameaçadores, à medida que são
tem dificuldades com o banco. ainda capazes de retomar a filhinha pequena que abandonaram
há trinta e três anos. Se esse fosse o caso, poderia ela
Eu não compreendo o que acontece comigo. É impossível repeli-los? Porque, no fundo, está aí seu verdadeiro dilema.
para mim controlar minhas contas. Isto já dura anos, e A filhinha pequena se esconde ainda por trás da jovem mulher.
cada mês eu tenho a mesma surpresa com o banco. E, nessa breve troca, interessante, a senhorita M. fala a duas
Escrevem-me ou me telefonam para me comunicar que eu vozes e mantém dois discursos quase contraditórios.
ultrapassei o limite autorizado. Isso me deixa seriamente Sua relação com seu pai embasa essa hipótese.
aborrecida, mas é mais forte do que eu, reproduzo o mesmo Ela quer se tornar autônoma, mas não muito. Ela quer gerir
roteiro mês após mês. sua vida, mas o piloto não é ela. O todo é uma questão de
Isso se acalmou há algum tempo, porque meu pai decidiu cálculo, calcular suas contas, contar consigo mesma, quer dizer,
gerir minha conta em meu lugar. Eu lhe envio todos os reconhecer-se com seus próprios olhos ou manter a demanda
documentos, os saldos bancários, as faturas e os canhotos inconsciente em relação a seu pai de sempre fazê-lo, nem que
dos cheques, e ele me põe regularmente a par do estado fosse em seu desejo de pai por ela.
da minha conta. Meu pai é formidável. Como manter a corda, para retomar a metáfora de
Ele toma conta dessa tarefa brilhantemente, e eu fico "bom governo", estendida entre o antes, o depois e o cotidiano?
protegida das más surpresas. Não é uma questão menor. Como se organiza uma origem
66 Adoção e parentalidade: questões atuais 7 - A clínica da criança adotiva 67

para uma criança adotiva a fim de fazer a ligação entre a mãe abre um horizonte novo. Ele nos diz que, se existe uma dívida
de origem, a mãe afetiva e o cotidiano da adoção no seio de com respeito a alguém, é em princípio com respeito à língua,
uma família que ela interroga permanentemente para saber a aquela na qual nós somos recebidos e criados. E ele acrescenta:
verdade sobre a verdade de sua história?
Atualmente me parece, considerando o que aconteceu
Saber a verdade sobre a verdade com tantas outras crianças judias de minha geração, que
se tratava deste encargo de ter de quitar uma dívida
Saber a verdade sobre a verdade é esta cenoura que simbólica para com a língua e as instituições republicanas
faz andar. Pode-se apostar que nenhum relato, nenhuma que nos ofereceram o lugar do Outro que nos permitiu
resposta, tão pertinente quanto possa ser, poderá desviar a existir como sujeitos.4
criança adotiva de sua busca. Contar sua história a alguém e
subjetivar sua história pode ser confundido, mas a verdade Nós nos inscrevemos como sujeito à medida que o
não está onde se acredita. Meu amigo Cyril Veken, no seu Outro se revela a nós como um lugar, o lugar da linguagem,
artigo "Meu pai é alfaiate" 1, ilustra nossa formulação com um e não mais como uma garantia, aquela que sabe qualquer coisa,
testemunho-chave que nos ajuda a compreender como um o verdadeiro sobre minha verdade por exemplo. Este Outro,
relato se transmuta em verdade subjetiva. Sobrevivente da colocado enquanto lugar, introduz a falta como alguma coisa
Shoah, ele foi criado por um pai adotivo, alfaiate de profissão. de estrutural no sujeito humano, e, nesse sentido, pais adotivos
11
e pais de origem estão alojados na mesma insígnia.
1 Depois de muito tempo, quando criança, ter repetido a Pouco importa o lugar que ocupem no fantasma da criança,
frase ("Meu pai é alfaiate") ao pensar em falar da profissão eles só podem responder por sua falta. E é muitas vezes a
de meu pai, eu me dei conta um dia de que o que eu dizia verdade incontornável a que certas crianças adotivas
podia-se ouvir de outra maneira: "Meu pai está longe" 2 •
permanecem surdas durante um certo tempo.
Ela abria assim o espaço entre o alfaiate, o homem que eu
sempre considerei como meu pai (meu tutor, pois
rapidamente deixei de usar o sobrenome, pois eu já tinha
11' um) e este outro pai que não era alfaiate, mas professor (o
homem de quem carrego o sobrenome). 3

A verdade é um significante

Esse testemunho é ainda mais pertinente porque nos


diz simplesmente que a verdade de nossa história se encontra
nos significantes, no equívoco e por aquilo que termina por ser
um chiste. E essa verdade ninguém pode encontrá-la em nosso
lugar, simplesmente porque ninguém pode viver nossa vida em
nosso lugar. Cyril Veken não para por aí, pois seu testemunho
1
VEKEN, C. "Mon pere est tailleur", Clinique lacanienne, n. 7.
2
O autor se refere à homofonia em francês entre "mon pere est tailleur" 4
lbid., p. 58.
(meu pai é alfaiate) e "mon pere est ailleurs" (meu pai está longe). N.T.
3 Ibid., p. 57-58.
8

As crianças adotivas são crianças


em risco?

Bernard Penot, em seu artigo intitulado "Quando a


adoção é uma armadilha", nos revela que quando o fantasma
dos pais adotivos vem dar, de uma maneira ou de outra, um
fundamento à representação que as crianças fazem de sua
história de origem, isso pode acarretar um efeito desastroso
sobre seu narcisismo, sobretudo no momento de sua passagem
para a adolescência. Ele nos diz:
Eu tinha assim frequentemente podido me dar conta até
que ponto tais representações são capazes de prescrever,
de uma parte, a imagem que a criança adotiva pode fazer
de si mesma - e tão inteiramente que esses fantasmas
permanecerão inconscientes nos adotantes. 1

O autor, diretor do hospital dia para adolescentes do


CEREP-Montsouris2 em Paris, constata com admiração que
os jovens adotivos representam por vezes um décimo dos
adolescentes hospitalizados. Uma porcentagem relativamente
importante em relação àquela das crianças adotivas no conjunto
das crianças que vivem com a família.
Segundo ele, a patologia desses adolescentes remete
frequentemente a "sintomatologias comportamentais". Ele as
classifica como "com problemas de caráter, personalidades
limitadas com despersonalização" e alguns são julgados
"como entrando na esquizofrenia". 3

1
PENOT, B. Clinique lacanienne, n. 7, p. 111-112.
2
Centre de Readaptation Psychothérapique, Hôpital de Jour pour
Adolescents du Pare Montsouris. N.T.
3
Ibid., p. 112.
70 Adoção e parentalidade: questões atuais 8 - As crianças adotivas são crianças em risco? 71

Essa constatação de Bernard Penot relança a questão na folha e, por vezes, viram para continuar no outro lado. Inútil
colocada no início deste capítulo: a adoção comporta um fator comentar a inutilidade desse esforço, visto que a criança vai
de risco particular? Para responder com conhecimento descobrir pessoalmente que, se a expressão "eu te amo" não
necessário, eu consultei estudos anglo-saxões a esse respeito garante sua função a seus olhos, nada mais pode fazê-lo
e fiquei surpreso por constatar que esses estudos comparativos suficientemente.
entre a Inglaterra, os Estados Unidos e a Suécia nos abrem O que é verdade para a criança é igualmente para o
horizontes interessantes. adulto. Eis um exemplo que me parece tão enternecedor quanto
divertido.
O menosprezo de si
O beijinho de Chloé
O sentimento de "menosprezo de si" aparece de
maneira frequente em numerosos estudos que consultei. Chloé é uma moça de origem vietnamita que foi
Esse sentimento está diretamente ligado ao ato de abandono adotada muito cedo. Os pais se separaram alguns anos após
sentido duplamente pelas crianças adotadas por estrangeiros. sua chegada, e Chloé foi criada por sua mãe na sequência.
Elas são inicialmente abandonadas por seus genitores e em Eu a vi com catorze anos de idade. Uma moça alta, que era
seguida pelo seu país de origem, que consente lhes dar em muito sociável, trabalhava bem na escola, mas tinha tendência
adoção a pessoas que venham de outro lugar. Elas têm a a ser muito agressiva com sua mãe. Esta última sofria com
impressão de terem sido abandonadas coletivamente e de que seu repúdio de beijar ou se deixar beijar, ao passo que ela o
ninguém se levantará para manifestar qualquer interesse por fazia sem a menor dificuldade com seus amigos e os amigos
elas. "Eu era amado e desejado antes de ser dado em adoção?" de sua mãe.
é uma questão que retoma na boca de muitas crianças. 4 Enquanto a mãe lamentava a incapacidade da sua filha
Tanto "Eu fui desejado e amado?" é uma questão em manifestar sinais de afeto por ela, Chloé comentou:
recorrente, quanto o fato de desafiar seu meio social a responder
"Eu não gosto dos beijinhos, e depois isso não quer dizer nada".
permanece uma coisa totalmente específica da criança adotiva.
A mãe: Mas você dá beijinhos em todo mundo, exceto
Que garantia pode-se dar àquele ou àquela que quer uma emm1m.
prova? Quando se pergunta a uma criança o quanto ela ama
Chloé: Não é a mesma coisa. Você é minha mãe.
seus pais, ela tem a tendência de abrir os braços e responder
A mãe: E por que eu não teria direito a eles tanto quanto
"tanto assim". Mas quando os braços não se abrem o tanto
os outros?
suficiente para dizer o amor que ela tem por eles, ela acrescenta
"muito, muito". Todavia, "muito, muito" pode igualmente se Chloé: Porque você sabe que eu te amo.
revelar aquém do sentimento de amor. Então, é a própria A mãe: E isso exclui os beijinhos na nossa relação de
mãe e filha?
garantia que se torna problemática.
O trabalho analítico com as crianças nos coloca diante Chloé: Se eu desse uns beijinhos em você, isso provaria
desse impossível de resolver. Quando a criança nos diz que que eu te amo mais?
quer fazer um desenho para sua mãe e acrescenta um coração A mãe: A questão não é essa. Minha questão é antes:
para expressar seu amor por ela, em geral não demora a por que os beijinhos entre nós não podem ser consentidos
descobrir que um único coração não é o suficiente. Existem normalmente, e sem segundas intenções?
aquelas que vão justamente encher todo o espaço que existe Eu: Senhora, eu lhe aconselho a ler para ela a história
da princesa e do sapo.
4
TRlSELIOTIS, J.; SHIREMAN, J.; HUNDLEBY, M. Adoption: theory, Chloé: Por quê?
policy and pratice. Londres: Cassei, 1997, p. 40-41.
72 Adoção e parentalidade: questões atuais 8 - As crianças adotivas são crianças em risco? 73
Eu: Com isso Chloé comprenderá porque o beijar A agressividade
devolve ao sapo seu estatuto de príncipe charmoso.
Dirigi-me a Chloé para lhe dizer: "Você vê, Chloé, Mede-se a profundidade desse sentimento pela
o beijar devolveu ao sapo o seu estatuto de homem. O beijar é agressividade que essas crianças têm tendência a manifestar
o amor. Os humanos se beijam quando se amam. Eles se beijam para com sua mãe adotiva. Ora, quanto mais esse sentimento
quanto estão apaixonados, como fazem todos os homens e é forte, maior é a necessidade de se defender do sofrimento
mulheres do mundo, e eles se beijam para manifestar ternura psíquico. A agressividade contra aquela ou aqueles que
àqueles que lhes são próximos e caros. O sapo é aquele que encarnam o primeiro objeto de amor é uma realidade
está privado de amor. Seria preciso que alguém o beijasse, incontornável. O lugar vazio deixado pelo primeiro objeto de
porque havia um beijo a lhe dar. E lhe dar um beijo como esse, amor se revela desconfortável para qualquer recém-nascido,
sem condição, lhe devolveu seu estatuto de homem. Pois bem, quando a criança não fez o trabalho de luto. Querer ocupar
é isso que sua mãe tenta lhe dizer, e você tem tendência a esse lugar sem tomar as precauções necessárias para ajudar
ouvir que ela reclama de você algo devido." a criança a se apoiar em seus novos pais para iniciar um trabalho
Então, Chloé se dirige à sua mãe e lhe diz com certo que ela sempre recusou fazer corre o risco de atualizar a
humor: "Mamãe, vamos transformar nossos sapos em boa mãe angústia e a dor que a criança sentiu quando da separação,
e em boa filha". E ela se inclinou em direção a mãe para lhe e cuja lembrança perdura.
dar um beijinho caloroso. No texto Inibição, sintoma e angústia6 , Freud lembra
que a ausência da mãe desencadeia no bebê uma reação na
"Você não é como as outras" qual angústia e dor estão intimamente ligadas e se separam
somente mais tarde. Como eujá havia dito, um bebê não sabe
Quando Chloé diz à sua mãe "você não é como as distinguir a ausência temporária da ausência duradoura.
outras", ela quer dizer "os beijinhos dados em você não são Cada vez que a mãe se ausenta, a criança reage como se ela
como os outros beijinhos. Eles são verdadeiros, e é isso que os tivesse verdadeiramente desaparecido e como se jamais fosse
toma difíceis. Os beijinhos dados nos outros são fáceis e sem voltar a revê-la. A criança assimila essa diferença unicamente
consequências. Eles são convencionais." graças à experiência que ele tira dessa repetição das fases
"Você é minha mãe, eu sei, e é isso que me inquieta. presença/ausência e sobretudo pela segurança que o saber
Adotá-la desse modo, sem ambiguidade, requer o abandono prático da mãe faz reinar em sua relação com ela.
total daquela que estava lá antes de você, minha progenitora." Freud nos explica como angústia e dor se intrincam
É só a mãe de nascimento que abandona, escrevi mais num estado complexo que torna o trabalho de todo luto
acima, e é justamente porque uma outra mulher, a mãe adotiva igualmente completo. Ele escreve: "A dor é uma reação própria
ou simplesmente a protetora, ocupa seu lugar, que esta mulher
e a criança têm de lidar com um mal-entendido que por vezes 5
Annemarie Hamad, voltando ao significante Arbeit (trabalho), diz que ele
é duradouro. O beijinho destinado à mãe é importante porque significa " pena" , "tormento", portanto aquilo que alguém sofre
é diferente. Ele legitima, de algum modo, sua mãe adotiva nesse passivamente. A raiz germânica é o verbo arbejo, que significa "eu sou uma
criança órfã, e esse fato obriga ao trabalho penoso". Em "Luto e melancolia",
lugar. Ora, o sentimento de perda, de amputação de uma parte
Freud atrela na melancolia uma grande variedade de combates individuais
de si e, por vezes, de vazio, está ligado à experiência de em tomo do objeto, nos quais ódio e amor lutam, um para liberar a libido do
separação precoce que não cessa de se manifestar naquilo objeto, o outro para defender essa posição libidinal contra o assalto.
que os autores chamam "menosprezo de si" 5 ou ainda Daí esta hesitação entre a revolta contra a origem e o sentimento de
"desvalorização". menosprezo como uma tentativa de conservar o objeto.
6
FREUD, S. Jnhibition, symptôme et angoisse. Paris: PUF, 1926, p. 100.
74 Adoção e parentalidade: questões atuais 8 - As crianças adotivas são crianças em risco? 75
à perda do objeto; a angústia, a reação ao perigo que comporta Ao partir, eu sei uma coisa ao menos: ninguém me espera
essa perda e, ao termo de um deslocamento complementar, e ninguém me conhece. Eu entro nessa cultura totalmente
a reação ao perigo da própria perda" .7 nova, sem bagagem linguística e sem expectativa particular
Esse perigo da perda é uma realidade cotidiana para da parte de alguém. Trata-se para mim de ir ao encontro de
muitos homens e mulheres adotivos quando atingem a idade meu destino sem esse sentimento de dever alguma coisa
da experiência amorosa. Eles não sabem se separar de alguém, a esses pais que atravessaram mares e montanhas para
mesmo quando essa relação é nefasta. A ideia de se separar vir em meu socorro. Eu quero atravessar essas fronteiras
de alguém se confunde neles com a dor do abandono . sozinha, para ir ao meu encontro sabendo que eu sou meu
Em decorrência disso, um sentimento de angústia, por vezes único socorro.
terrível, coloca para eles no mesmo nível o fato de romper
com alguém que não se ama mais e o fato de ser abandonado A senhorita C., trinta anos, de origem ucraniana, decide
pelo parceiro. abandonar tudo para ir se instalar nos Estados Unidos sem
A clínica nos ensinou alguma coisa sobre o impasse outro projeto a não ser aprender a língua, no começo, e depois
afetivo no qual se encontram muitos desses jovens. Eles não ver ...
sabem escolher, porque não sabem se separar. Eles não sabem Eu: O que teria para ver nos Estados Unidos uma
se proteger dos outros, porque uma história de amor não tem mulher como você que concluiu seus estudos, que trabalha e
fim para eles. Testemunhos como este, da moça que sabe que ganha bem sua vida na França?
perfeitamente que vários de seus antigos namorados não Sra. C.: O imprevisível. A ideia de ir aprender uma
retomavam para vê-la a não ser para uma aventura sexual, nova língua representa a meus olhos um continente totalmente
são numerosos. novo a ser descoberto. Preciso romper as amarras. O Marco
Polo em mim já está no mar.
Eu sei que quando tal ou tal homem me telefona para me Eu: Ellis Island é receptiva à chegada de novos
ver, é que ele não tem mulher e que ele sabe que eu não migrantes.
posso dizer não. Ele vem me ver. Passamos uma noite ou Sra. C.: Eujá visitei o museu da Imigração nesta ilha e
um fim de semana juntos, e depois ele desaparece. Eu me fiquei admirada com a quantidade de objetos quase inúteis que
odeio quanto faço isso, mas sei que recomeçarei no esses imigrantes tinham de levar com eles. Você sabe, depois
próximo toque do fone. que decidi partir, constato todos os dias que isso não interessa
a ninguém e que posso desaparecer sem que isso comova
alguém. As pessoas que vêm me ver, sem que eu chegue a
Partir sem poder se separar
fazer a diferença entre os namorados e os aproveitadores, os
Essa queixa, que se assemelha a uma confissão de colegas de trabalho e as demais pessoas que eu encontro ao
incapacidade de escolher ou de romper os laços considerados longo de minhas diversas viagens, me passam a impressão que
nefastos para sua saúde psíquica e afetiva, leva alguém a partir, são capazes de me esquecer ao cabo de uma semana. A ideia
a deixar seu país de adoção para ir se instalar em outro lugar, de partir sem deixar vestígios me persegue. Somos
em um outro país e uma outra língua. Uma maneira para eles verdadeiramente tão pouca coisa? Eis minha questão. Talvez
de se abandonarem a fim de melhor se reencontrarem. você tenha uma resposta para me dar antes de minha partida?
Eu: Sim, tenho uma resposta, mas para uma questão
7
Ibid., p. 100. que você não formulou. Como acontece que os pais possam
76 Adoção e parentalidade: questões atuais

nos abandonar e nos esquecer em seguida? Somos realmente


tão pouca coisa? Você colocou em ato o efeito de uma questão
que não se formula. Você parte, se abandona, e constata que 9
pode desaparecer da vida das pessoas que conhece sem que
esse ato comova alguém , como você disse . Talvez seja
necessário você ir ao encontro de você sob outros céus! Quando os males se tornam
Em todo caso, é isso que você está me dizendo e fazendo. a linguagem do corpo

A criança separada e seu estado depressivo

A experiência clínica com crianças separadas muito


cedo de seus pais nos ensina como essas crianças fazem para
abrandar a ausência e para superar as perdas sobrevindas em
uma idade precoce. Eu retomo aqui um certo número de casos
que eu acompanhei há alguns anos, precisamente na época
em que eu estava junto de Françoise Dolto. Esses casos são
muito interessantes do ponto de vista clínico, pelo fato de que
essas crianças tinham adquirido uma postura particular que
merece que nos detenhamos neles.
Trata-se de vinte crianças, meninos e meninas que
haviam sido colocados em berçários antes da idade de um ano.
Ali eles haviam vivido alguns anos antes de serem orientados
para famílias de acolhimento ou para adoção. Essas crianças
tinham conseguido mobilizar suas cuidadoras, estando
frequentemente doentes, necessitando por vezes uma
hospitalização e o recurso à intervenção cirúrgica na esfera
oral ou visceral, como apendicectomia. Isso estava
frequentemente associado a perturbações esfincterianas
(enurese), a retardos de linguagem ou ainda a uma inibição
maciça.
Trabalhando com Françoise Dolto , chegamos à
conclusão que esses sintomas constituíam a mensagem que
continuava a se exprimir no endereçamento à mãe como Outro
encarnado para a criança pequena, e que o retorno dessa
mensagem não se articulava enquanto significante, mas em
78 Adoção e parentalidade: questões atuais 9 - Quando os males se tornam a linguagem do corpo 79

uma excitação pulsional demasiada que colocava as zonas significante materno que introduzem a criança na comunicação
erógenas em estado de sobrecarga crítica. e na troca. Uma vez que a criança acede à fala e se engaja
nela, perde a mãe onipotente, aquela que sabia por ela, e não
O desejo humano é o apelo à comunicação há mais que a linguagem para se dizer e descobrir que dizer
fracassa sempre a todo dizer. O exemplo típico desse estado
Nisso Dolto era fiel à sua teoria: "O desejo é o apelo de coisas é a expressão que muita gente emprega: "As palavras
'
à comunicação inter-humana. A organização de uma resposta não dizem o que eu sinto por você ou o que eu quero lhe dizer".
adequada ao apelo que conjuga dois seres vivos é linguagem. À época, quando eu discutia meus casos clínicos,
Essa organização é devida à função simbólica." 1 Françoise Dolto me explicava que os sintomas dos quais estas
Esse apelo à comunicação inter-humana estrutura a crianças padecem estavam diretamente ligados à sua
criança muito antes que ela aceda à linguagem falada e a seu localização antes do que ela denomina de castração primeira,
narcisismo fundamental ou, se quisermos, a uma imagem quer dizer, antes do conhecimento de seu sexo e antes de
inconsciente do corpo. Para Dolto, a imagem inconsciente é caminhar, em suma, antes de completar-se o esquema corporal.
simbólica. Ela se funda no discurso do Outro materno. O Outro A criança separada muito cedo de seus pais só tem como lugar
materno deve ser ouvido aqui como sendo qualquer pessoa de angústia esse lugar de gozo que a fazia existir como sujeito
capaz de sustentar a aposta do sujeito na criança pequena de desejo para seu Outro materno. Este Outro que, enquanto
e antecipar seu desejo à medida que a pessoa protetora lugar de linguagem, nomeia em retorno o bebê enquanto sujeito
esteja também implicada por seu desejo que é em devir, assim como seu entorno, seu mundo e seus objetos.
comunicação. (É o que faz Dolto dizer que o bebê é humano A angústia da criança, privada de seu Outro materno,
por cooptação da mãe que lhe fala como humano. Ela acrescenta se manifesta pelos desregramentos que podemos qualificar de
que, se o estágio do espelho é a primeira experiência de vegetativos, ligados ao tubo digestivo e às saídas do cavum:
unificação do corpo, o que substitui o espelho na criança cega encoprese, enurese ou rinofaringite. A esses problemas vão se
de nascença é o espelho do sujeito em qualquer um que a ame, acrescentar outros no período que segue e sobretudo após a
que sustente seu desejo e que a refira ao outro da cena primitiva. descoberta da diferença dos sexos. Essas falhas sobrevêm
É um espelho vivo. 2) porque a zona erógena pode aceder à linguagem da fala apenas
após ter sido privada do objeto pelo qual ela tinha sido iniciada
A noção de castração no bebê à comunicação erótica. É normalmente a mãe, ou aquela que
assegura a função materna junto ao bebê, que a garante para
Essa posição nos ajudará a compreender a noção de ele. Isso se faz então graças à protetora que sabe limitar o
castração segundo Dolto. Ela explica que a imagem gozo da criança em seu contato, opondo seu desejo por seu
inconsciente do corpo se estrutura graças à castração, que homem ao gozo que o bebê quer dela ou ser para ela. É nesse
opõe o interdito ao gozo direto e imediato que ocasiona o corpo plano que o pai intervém como terceiro. E é por isso que a
a corpo como a mãe. A castração é o que coloca limite ao castração aparece em Dolto no plural (castrações), cujo agente
gozo da criança em sua relação com a mãe ou com qualquer é a fala e a função simbólica que medeia a relação da criança
outra protetora que se ocupa dela. A mãe que nutre é também com o mundo de seus objetos.
aquela que fala. Nutrir passa ao mesmo tempo pelo leite e
pela fala, o seio e a prosódia da língua materna, a coisa e o
1 DOLTO, F. Aujeu du désir. Paris: Seuil, 1981, p. 272.
2 DOLTO, F. L'image insconcient du corps. Paris: Seuil, 1984, cap. 2.
80 Adoção e parentalidade: questões atuais 9 - Quando os males se tornam a linguagem do corpo 81

A separação precoce e suas consequências desprezar, a lei do prazer" - aquele que ela certamente havia
conhecido no contato com sua mãe, como nos diz Lacan.
A depressão aparece no bebê como um retomo no Na época seu pai estava desempregado. O acaso fez com que
corpo, quando a fala do Outro matemo não vem mais sustentar ele encontrasse um trabalho, quando essa criança ainda estava
a hipótese do sujeito, antecipar o desejo e mediar o que na em terapia comigo. Em dado momento, eu lhe perguntei onde
pulsão deve ser entendido como um tesouro de significantes. estava seu pai; quando a mãe me respondeu que ele tinha saído
Em outros termos, a pulsão, que não encontra mais junto da para trabalhar [bosser] , a criança colocou sua mão no lugar
mãe a mediação simbólica necessária para lhe permitir ao de seu calo [bosse] e gritou forte: "Ai!".
mesmo tempo gozar dela e limitar esse gozo, perde sua
dimensão articulada em tomo da fala do Outro, e a criança O perigo é quando o bebê deixa de fazer demais
terá muita dificuldade em querer abrandar a ausência desse
Outro matemo. Talvez neste plano seja possível descobrir a relação
O caso de Sarni ilustra perfeitamente o que eu acabo do autista com seu corpo próprio e fazer a diferença entre o
de explicar. Sarni é um garotinho adotado na idade de três que diz respeito aos gestos estereotipados autistas e os gestos
meses e que, uma vez colocado em sua cama, bate a cabeça, da criança depressiva. O autista não tem o seu Outro ou não
sempre no mesmo lugar, contra os objetos duros a seu alcance. crê mais nele, como acontece no autismo secundário. Ele acaba
Pouco a pouco ele acaba por desenvolver um calo por construir nele uma simbiótica aberrante quanto ao código
impressionante. Eu o vi com a idade de um ano e meio, de linguagem, um código que conserva talvez ainda uma relação
uma criança agitada e que não havia desenvolvido a fala. com significantes matemos, mas mais nenhuma relação com
Ao cabo de algumas sessões, a mãe me disse: "Eu não presto discurso comum. Ele constrói sua bolha, como os especialistas
mais atenção ao que ele faz, porque eu penso que isso não lhe têm a tendência a chamar, para não mais sair, ao passo que a
dói mais". E quando eu lhe pergunto como ela sabia isso, criança que sofre de hospitalismo faz demais, como deixa
ela me respondeu: "Quando isso dói, normalmente a criança entender Lacan, pois ela continua a acreditar na hipótese do
chora". Eu lhe perguntei ainda se ela pensava que isso Outro matemo. Ela faz com que tudo o que se passa a sua
normalmente lhe doía. Ela me respondeu que sim. Então eu volta lhe dissesse respeito e reage em consequência.
lhe sugeri de fazer como se ela sentisse essa dor e que essa Ao escrever isso, me ocorre a história de certas
dor lhe era endereçada. 3 Ela então começou daí por diante a crianças que foram adotadas nos berçários dos antigos países
tomar seu filho nos joelhos cada vez que ele batia a cabeça, comunistas. Muitas dessas crianças sofriam de um estado de
a cariciando-lhe o alto da fronte e lhe dizendo "Oh, meu bebê, hospitalismo gravíssimo, com uma ruptura total com o mundo
como isso dói, oh, isso dói ... Oh, tua mamãe está aqui, exterior. Algumas se mantinham bem, faziam sempre a aposta
teu papai está aqui etc.". A criança não tardou a falar e a do Outro matemo. Essas crianças tinham conseguido recuperar
investir a fala com os que estavam à sua volta, ao passo que um estado psíquico conveniente ao cabo de um trabalho
ela tinha tendência a se causar dor para satisfazer, pela via do terapêutico dificil, mas ainda assim conclusivo.
Muitas vezes me perguntei por que algumas dessas
3A respeito disso, me lembro dessa história que Jean Berges me contou. crianças e não outras chegavam a superar suas dificuldades.
Trata-se de uma moça que ameaçava se defenestrar. Jean Berges, ao telefone
com seus pais, pede para falar com a jovem. Ele a interroga a respeito do A resposta me veio das mães e dos pais adotivos. Algumas
andar do apartamento e quando ela responde que se trata do sexto andar, dessas crianças adotadas eram encontradas antes de sua
Jean lhe diz: "Você está louca! Isso vai te machucar". Então essa jovem toma adoção instaladas junto à entrada do berçário. Elas ouviam as
consciência do que ela estava em vias de fazer, e tomada de pânico, ela volta
4
precipitadamente para dentro do apartamento. LACAN, J. "Subversion du sujet". ln: Écrits. Paris: Seuil, 1966.
82 Adoção e parentalidade: questões atuais

pessoas que as cuidavam, em geral pouco numerosas, falar e


rir, em resumo, viver. Para essas crianças, era como se tais
pessoas lhes falassem e nisso elas se deixaram conquistar pela 10
11
expressão da vida das pessoas que se ocupavam delas.
As outras, que se achavam longe, no fundo da sala, se
1 desligaram pouco a pouco, porque nenhuma voz lhes chegava O caso de Karine
para arrancar-lhes do anonimato, no qual elas mergulhavam
inexoravelmente.
Outro pequeno exemplo que me ocorre é aquele da
menininha adotiva que, para significar para sua mãe seu desejo
de adoção, chegou a desenvolver o eczema do qual essa mulher Karine foi separada de sua mãe no nascimento.
sofria. Ela permaneceu no hospital algumas semanas antes de ser
Por ocasião de um encontro com Jean Berges sobre a encaminhada para o berçário da cidade em que sua mãe residia,
depressão das crianças, Gabriel Balbo afirmou não ter e aí ela ficou até seu oitavo mês. Um primeiro tempo de abrigo
encontrado estado depressivo na inrancia e acrescentou que em uma família de acolhimento durou três anos, quando a
se tratava antes de perversão. Talvez seja preciso entender DDASS suspendeu esse acolhimento por causa de maus-tratos
por "perversão" esse excesso de mal que a criança se faz que ela sofria ali. Após uma breve passagem pelo mesmo
para manter sua hipótese do Outro, obstinando-se em lhe berçário, ela foi finalmente abrigada, em vista de sua adoção,
endereçar mensagem, mesmo quando o retorno de sua por um casal.
mensagem implica apenas o corpo sempre marcado pelos Foi após algumas semanas em sua nova família que
significantes matemos. essa menininha, descrita como "tímida, apática e muda",
A hipótese do Outro sustentada pela criança talvez se pôs subitamente a falar, mas também a tornar-se "nervosa
seja como o calo em Sarni, o calo do Outro, como se diz o e agitada, acordando-se diversas vezes durante a noite e
"calo dos matemáticos". Ao afirmar isso, eu interpreto, a meu acordando ao mesmo tempo a sua mãe". Os pais consultaram
modo, o que Berges e Balbo denominam a promessa. o médico da família. Este prescreveu calmantes para Karine,
A promessa no bebê pequeno seria dupla, um Outro matemo cuja dose foi aumentando em um período de vários anos.
que transitiva, sabe e antecipa o desejo da criança, mas esse Apesar desse tratamento, seu "estado nervoso" perdurou, e a
Outro matemo não introduz o Outro, tesouro do significantes, escola por sua vez se queixou disso. Eis alguns comentários
1 a não ser por sua falta. Em outras palavras, se a mãe fala com retirados de seus boletins escolares: "1993: criança nervosa.
1
sua criança e antecipa seu desejo, é unicamente a partir do 1995: menos nervosa. O tratamento parece ter sucesso.
saber do que isso constitui quando ela fala. Melhor do que no começo do ano. Ela não se acavala mais na
ponta da mesa durante horas como ela fazia antes". Em 1995,
ela foi hospitalizada para a retirada das amígdalas. Uma colônia
de férias lhe foi aconselhada para que pudesse descansar.
No momento de sua adoção, Karine apresentava o
que Spitz chama de "carência afetiva total", devido à
hospitalização e aos maus-tratos que ela havia sofrido durante
seu primeiro abrigamento. Em outras palavras, trata-se de uma
84 Adoção e parentalidade: questões atuais 1O - O caso de Karine
85
deficiência grosseira nas relações com o seu entorno que . A n:_iãe havia compreendido a natureza do que estava
conduz à parada do desenvolvimento afetivo na criança. 1 em Jogo, pois ela me disse:
Entretanto, essa parada, essa deterioração do seu
estado não era irreversível. A prova disso foi o interesse que Era preciso estar perto dela, pois ela tinha uma saúde tão
Karine manifestava pela presença de sua mãe adotiva. Ela se frágil. Isso tinha começado com uma otite, em seguida as
pôs a falar e a se manifestar por meio de crises que o médico amígdalas e alguns meses mais tarde, ela teve uma leve
que a tratava qualificava de "nervosas". Spitz havia observado anorexia, da qual ela se restabeleceu perfeitamente. Aos
que esse comportamento nas crianças a quem se havia sete anos de idade foi preciso recomeçar, ela havia sofrido
devolvido a mãe após vários meses de ausência: uma apendicectomia seguida de um período de enurese.

Essas crianças, escreve ele, tornavam-se alegres e vivas, Para Françoise Dolto, a inflamação das amígdalas,
mas também mais agressivas, por um tempo ao menos, como do apêndice, é uma manifestação tipicamente
diferente de como são as crianças normais da mesma idade. psicossomática. É uma maneira de provocar um face a face
Elas podem tomar-se ativamente destruidoras de objetos, com a angústia da castração, que erra seu objeto à medida
de roupas de camas, de brinquedos ...2 que a intervenção no nível do corpo priva a criança da presença
e da fala materna no momento em que ela mais precisa delas. 3
Spitz descreveu o estado de crianças menores, que Do mesmo modo, o autoerotismo na criança é o sinal
não era o caso de Karine, no momento de suas crises, mas são do tédio. Uma criança que se entedia apela às sensações que
comportamentos que podem perdurar até a idade escolar, como provoca em seu corpo. Falar com a criança, introduzi-la no
foi o caso desta última. A atividade autoerótica descrita no grupo de sua idade, suscitar seu desejo pelos brinquedos e
boletim escolar é apenas a sobrevivência dessa carência afetiva trocas restabelecem normalmente a sua relação com os outros.
prolongada. Prescrevendo-lhe calmantes, o médico se . O interesse desse caso se situa na compaixão que as
interessou pelo sintoma e se obstinou, ano após ano, a fazê-lo mamfestações psicossomáticas de Karine suscitaram em seus
calar até revirar, de algum modo, a expressão pulsional dessa pais. A disponibilidade da família, sua escuta, a atenção que
menina contra ela mesma. A inflamação das amígdalas, prestou ao sofrimento da criança parecem ter ajudado Karine
necessitando uma intervenção cirúrgica, representava um meio a superar suas dificuldades, mesmo se, cada vez, isso tenha
para Karine restabelecer o contato com seu entorno. sido ao preço de marcas no corpo.
Essa tentativa ainda fracassou, visto que a menininha foi
separada de seu meio familiar sob pretexto de ter de Identificação e objeto libidinal
restabelecer sua saúde em uma colônia adaptada.
A infância de Karine foi marcada por doenças, . . C?~~ explicar a natureza desse vaivém entre o corpo
necessitando intervenções em seu corpo tomado em um mvestido hb1dmalmente pelo viés de diversos sintomas e O apelo
mal-entendido entre um desejo que se exprimia por meio de aos pais investidos como valor indentificatório?
diversos sintomas e o entorno, compreendendo também o Nós sabemos, desde Freud, que as primeiras
médico, que respondia à linguagem do corpo por operações identificações com os pais estão na origem do nascimento do
destinadas a fazê-lo se calar. ideal do eu. Ele escreve particularmente:

3
'SPITZ, R. A. De la naissance à la parole. Paris: PUF, 1997, p. 219. DOLTO, F. La difficulté de vivre. Paris: InterÉditions, 1981 , p. 94.
2
Ibid., p. 221 .
86 Adoção e parentalidade: questões atuais 1O - O caso de Karine
87

Os efeitos das primeiras identificações, efetuadas nas fases Isso nos dá uma ideia clara do valor do que se diz a
mais precoces da vida, conservarão sempre seu caráter respeito da adoção de uma criança ou a respeito do seu
geral e durável. Isso nos remete ao nascimento do ideal abandono. _Da maneira como se conta sua história a uma criança
do eu, pois atrás desse ideal se dissimula a primeira e mais e da maneira como sua adoção se desenrola no cotidiano e na
importante identificação que foi efetuada pelo indivíduo, fa!a dos que estão em volta depende o trabalho de luto na
aquela com o pai da pré-história.4 criança.

Para Freud, essa identificação é anterior ao que ele O luto da perda do primeiro objeto de amor
denomina "concentração sobre um objeto". A identificação
secundária se faz apenas quando as pulsões libidinais se voltam C~mo então conceber o luto nesse processo de perda,
para os pais e abrem, normalmente, a via para o Édipo. a fim de impedir o marasmo psíquico e a instalação de um
estado doloroso?
Acontece que a escolha do objeto libidinal cede passagem Para Freud, o luto aparece como "uma reação à perda
para a identificação, ou seja, o eu introjeta as propriedades da pessoa amada ou de uma abstração colocada em seu lugar"
do objeto ou um traço desse objeto e, assim fazendo, o ~ que se traduz por "um estado de alma doloroso, a perda do
traço oculta o objeto no sentido de que ele não lembra mteresse pelo mundo exterior à medida que não lembra o
mais a figura de sua memória, mas ao contrário, ele a apaga defunto, a perda da capacidade de escolher qualquer novo objeto
diante de sua unicidade.5 de amor que seja - o que seria dizer que se substitui aquele
pelo qual se está de luto -, o abandono de qualquer atividade
A somatização de Karine, o sentimento de menosprezo que não tenha relação com a lembrança do defunto" 6 ou do
de si que muitos autores identificaram nas crianças adotivas, objeto perdido.
assim como o fracasso escolar, podem ser imputados ao que Freud se lança em uma comparação entre dor corporal
está em jogo no que o traço representa na evolução da criança, e dor psíquica, na qual ele nos ensina que a dor corporal produz
se acreditamos em Freud. ~m in_vestimento "narcísico" da "parte do corpo doloroso,
Se o traço é julgado indigno ou julgado severamente mvestrmento que não cessa de aumentar e que tende, por assim
pelo ideal do eu, segue-se uma supressão momentânea do ideal. dizer, a esvaziar o eu". 7 Freud encontra a ligação entre os dois
Esse caráter momentâneo deve ser relacionado com o tempo tipos de dor, salientando um fenômeno interessante na clínica
da introjeção. Essa supressão do ideal tem por consequência a com criança em grande sofrimento, e que se caracteriza em
parada da possibilidade de sublimação na criança ou a parada sua extrema tolerância à dor corporal. Quando o espírito está
de sua criatividade. A criatividade deve ser entendida como mobilizado por outro investimento, a dor se deixa transferir da
uma aposta simbólica que afirma a identificação com o ~epres_entação psíquica da parte do corpo dolorido para o
pai e a referência à sua fala que instaura o interdito. O eu mvestlmento do objeto perdido. Ele escreve: "A passagem da
ideal, em outras palavras, as figuras nas quais nós nos dor corporal para a dor psíquica corresponde à transformação
identificamos, funcionam como tal à medida que o do investimento narcísico em investimento de objeto".
significante pai toma seu valor como instância de Acrescenta mais adiante: "A representação de objeto,
interdição reconhecida pela mãe, primeiro objeto de amor ~orte~ente investida, desempenha o papel da parte do corpo
para a cria humana. mvestlda pelo aumento da excitação". 8
4 6
FREUD, S. Le moi et le ça. ln: Essais de psychanalyse. Paris: Gallimard, FREUD, S. lnhibition, symptôme et angoisse. Op. cit., p. 149.
7
1976, p. 200. Ibid., p. 101.
5
lbid., p. 124. 8
lbid., p. 1o1.
88 Adoção e parentalidade: questões atuais

Como vimos, essa problemática é complexa, à medida


que a separação precoce acarreta na criança uma confusão
entre dor e angústia. O bebê chora, grita, e isso nos leva a
11
supor que ele sente a dor. Ora, os dois estados se confundem
e só se desintrincam ulteriormente, quer dizer, no momento em
que a criança terá adquirido a unificação da imagem consciente
A adoção e o trabalho escolar
de seu corpo. 9
A dificuldade de base para uma criança abandonada
não é seu abandono, mas as condições nas quais o abandono
O fracasso escolar é uma realidade?
aconteceu, assim como as modalidades da incumbência para
com ela. A experiência clínica nos ensina que uma perda, tão Muito se tem dito sobre a escolaridade das crianças
dolorosa quanto possa ser, não impede que se possa investir adotadas. Encontramos tudo e mais um pouco. Ouvir a
em novos objetos de amor, contanto que a criança seja declaração de que o fracasso escolar é frequente na adoção
acompanhada e sustentada durante esse período crítico. não surpreende mais. Acaba-se por tomar essas afirmações
O trabalho de luto se bloqueia a partir do momento em que a como uma verdade indiscutível, apoiando-se essencialmente
criança encontra compensação no investimento libidinal de uma no imaginário construído sobre um a priori, a saber, o efeito
parte do seu corpo ou em uma semiótica aberrante de relação nefasto do abandono e da miséria nas quais as crianças viveram
com a linguagem ou com os objetos. em seu meio de origem.
Eu fiquei muito surpreso ao ouvir, por ocasião de
numerosas reuniões com famílias adotivas, que as crianças
regridem após sua adoção, e que essa regressão é inevitável à
medida que as crianças tendem a reviver com seus novos pais
o que elas não tiveram ocasião de fazer com seus pais biológicos.
Eu até mesmo encontrei uma mulher que deu o seio a
uma criança grande que ela acabara de adotar, porque um
psiquiatra lhe tinha recomendado.
A questão que os pais adotivos me colocam incide antes
de tudo sobre o que é preciso para uma criança se adaptar à
sua nova família e à língua de seus pais. Eu falo aqui de crianças
adotadas no estrangeiro. Frequentemente essa questão acarreta
uma outra: é preciso manter a criança consigo? E, se sim,
quanto tempo antes de enviá-la à escola?

A criança adota a voz e a língua materna inicialmente

Como saber que uma criança muito pequena se


interessa pelos pais potenciais que lhes são apresentados e
9
Ver FREUD, S. lnhibition, symptôme et angoisse. Op. cit., p. 98-100. acreditar que um verdadeiro encontro ocorreu entre os parceiros
implicados na adoção?
90 Adoção e parentalidade: questões atuais 11 - A adoção e o trabalho escolar 91

Pode-se razoavelmente pensar que uma criança muito algumas mobilizam muitas crianças em torno de sua pessoa,
pequena dá sinais a partir do momento em que reage à voz a ponto de criar, por sua ausência, o sentimento de vazio que
daquela ou daqueles que se endereçam a ela. Se uma mulher toca muita gente. "Desde que Catherine chegou, não é mais a
se autoriza a lhe falar, lhe contar sobre a solicitação de adoção, mesma coisa. Reina uma calma, como se sua presença
lhe contar uma história e se a criança presta atenção, para de apaziguasse as crianças."
chorar, procura seu interlocutor com os olhos e faz mímica, Eis como a língua materna se torna viva. Ela é viva
ou se tenta se levantar para ir na direção dela, pode-se concluir porque é veiculada pela prosódia da voz materna, porque a
que a criança ouviu e se deixou embalar pela prosódia do que mulher que a fala sabe lidar com a criança, sustentar o sujeito
se poderá doravante chamar de língua materna. em devir nela e sobretudo partilhar alguma coisa dessa
Trata-se dos dois primeiros sinais importantes: intimidade que impregnará definitivamente mãe e criança.
a adoção da prosódia pela criança e a descoberta por parte Qualquer língua se aprende assim. Com os pais e seu
dessa mulher de que ela é capaz de sustentar a hipótese de entorno imediato, assim como na sociedade. Não há que se
sujeito neste bebê. A situação de um adulto que fala com uma inquietar muito com o fato que a criança não fala a língua da
criança que acaba de encontrar e uma criança que lhe dá sinais escola. Ela vai falar a língua das outras crianças e brincar com
como pode indica-nos provavelmente que o adulto conseguiu elas exatamente como fazem muitas crianças quando estão
suspender o anonimato que ameaça as crianças abandonadas, em férias em um país estrangeiro. Elas se encontram e brincam
ainda mais quando as condições de sua guarda são deficitárias. juntas falando cada uma na sua língua; elas não compreendem
Falar-lhe e vê-la reagir para significar que está presente é um o sentido das palavras das outras, certamente, mas a estrutura
bom augúrio para o futuro. linguística as introduz todas nas trocas e nas brincadeiras e
acaba por colocar as referências e as regras que lhes permitem
A língua materna brincar e estar juntas.
Por vezes a experiência clínica nos ensina que crianças
É na sequência de tal encontro que a língua materna grandes adotadas no estrangeiro sofrem, sofrem muito para
se põe a funcionar como instrumento de troca entre a criança aprender a língua de seus pais adotivos. Eu acompanhei crianças
e o adulto, seus pais adotivos no futuro; e na base da língua que se revelaram completamente herméticas à aprendizagem
materna se constrói a língua do discurso comum - em outras de sua nova língua. A causa reside, em minha opinião, no fato
palavras, a língua na qual a criança vai se exprimir, se estruturar de que essas crianças foram privadas desse alguém que teria
e aprender. podido desempenhar para elas o papel de Outro materno.
Notemos que a pessoa que inicia a troca pela voz não Elas acabam por desenvolver um código particular, um código
precisa ser a mãe adotiva. Qualquer cuidadora que se ocupa aberrante, sem significantes. Elas podem desenvolver,
de bebês que se encontram no berçário é levada a desempenhar por exemplo, toda uma gestualidade que as crianças
esse papel, por vezes sem sabê-lo. Quantas vezes eu ouvi que compreendem entre si, mas não os adultos, para seu grande
um bebê estava inconsolável porque uma senhora tal, espanto. Lembro-me de uma menina de origem turca que tinha
a cuidadora, estava de férias naquela semana? A ausência de um gesto para dizer isso ou aquilo; quando ela via que eu não
tal ou tal cuidadora pode ter esse efeito sobre uma criança, conseguia acompanhá-la, ela ficava brava. Ela não aceitava
quer seja sua referência direta ou não. abandonar seu gesto em troca de palavras que ao cabo de um
Os testemunhos nesse sentido são inúmeros. longo trabalho de desconstrução e de construção lhe fora
Tive ocasião de encontrar várias cuidadoras e descobri que muito penoso.
1'
1
92 Adoção e parentalidade: questões atuais 11 - A adoção e o trabalho escolar 3

A adoção não significa fracasso escolar quinze e dezoito anos de idade. Eles as compararalll colll Sl'lls
companheiros de classe , apoiando-se na opinião do s
O alarde que corre a respeito da adoção é em grande
professores. Na idade de onze anos, os meninos adot~dos
parte provocado pela origem étnica da criança. Eis alguns
pareciam mais agitados e nervosos do que seus companheiros.
exemplos: adote uma criança africana e você terá um excelente
22% das crianças adotadas foram classificadas como crianças
desportista, um jogador de futebol, por exemplo; adote um
com problemas contra 12% dos outros alunos. Quatro anos
asiático e você terá alguém bom em informática; adote um
mais tarde, na idade de quinze anos, esses adolescentes
latino e você terá um bom músico. Preciso continuar?
apresentavam menos sinais de nervosismo e agitação,_ e a
A coloração racista desses clichês é evidente. O fracasso
diferença entre eles e seus companheiros de classe baixou
escolar pode ser devido ao fato de que uma criança é destinada
consideravelmente, para desaparecer completamente com a
a ocupar um lugar, atribuído desde o começo e ao qual ela tem
idade de dezoito anos. Os investigadores concluíram que quanto
pouca chance de escapar. Quando uma criança negra é
mais cedo se faz a adoção, menos as crianças adotivas
considerada inapta para acompanhar uma escolaridade normal,
apresentam problemas sérios. 1 •
não é preciso se surpreender que ela tome nosso "desejo" sobre
Na Inglaterra, um estudo realizado por Brodzmsky,
si e nos ofereça um fracasso retumbante. De outro lado,
Schechter e Henig em 1992 com crianças nas classes primárias
ela poderia fazer de tudo para nos significar que detesta o
e no começo da adolescência nos revela que as crianças
futebol ou os jogadores de futebol.
adotadas apresentam um nível de autoestima mais baixo que
Eis como se pode selar o destino de alguém! Não é
as outras, problemas escolares mais frequentes , agressividade,
evidente conseguir se sair dessa sem pagar o preço. A revolta
que praticam roubos, contam mais mentiras e fazem passagens
é um viés possível, mas como explicar aos pais e aos familiares
ao ato como fugas. Os autores recusam-se a falar de "síndrome
que essa revolta não é contra eles, mas contra o discurso
da criança adotada" , pois eles consideram que essas
ambiente, sobretudo quando esse discurso é discriminatório?
perturbações tendem a se reabsorver e até mesmo desaparecer
No entanto, nem toda revolta é uma boa revolta. Os últimos
pura e simplesmente.2 .
acontecimentos em nossos arrabaldes são a prova disso.
Stein e Hoopes (1985) e Marquis e Detweiler (1985)
Rejeitar trabalhar ou ir à escola, para um jovem
constataram que as crianças adotadas experimentam uma
desmotivado, poderia ser essa revolta. Ensimesmar-se e não
passagem difícil para a adolescência com um senti~ento _de
mais se autorizar a aprender é uma outra. Retomaremos a
baixa autoestima, uma tendência a julgar mal os outros, mclus1ve
isso no capítulo seguinte, mas, ao aguardar, examinemos os
sua própria família, e um estado de insegurança frente ao
trabalhos de pesquisa que foram realizados na França e no
exterior e frente à escolha a fazer. Em contrapartida, Sharma
estrangeiro para tentar caracterizar o trabalho escolar das
e Roehlkepartain (1994), em um estudo longitudinal com 881
crianças adotadas.
adolescentes adotados e 1.262 pais adotivos, demonstram que
os adolescentes apresentam um resultado próximo, até mesmo
As pesquisas anglo-saxônicas melhor, que os adolescentes que vivem em sua família de
Um dos primeiros estudos, que frequentemente serviu nascimento. Os investigadores não notaram elementos
de referência, é o de Bohman e Sigvardsson na Suécia. significativos, quer seja no plano escolar ou no plano relacional.
Trata-se de um estudo longitudinal realizado em dez anos ( 1980-
1 TRISELIOTIS, J.; SHIREMAN, J.; HUNDLEBY, M. Adoption: theory,
1990), compreendendo 168 crianças adotadas. Os pesquisadores
viram as crianças por três vezes, quer dizer, na idade de onze, p olicy and practice. Op. cit., p. 21-22.
2
Ibid. , p. 22 .
94 Adoção e parentalidade: questões atuais 11 - A adoção e o trabalho escolar 95

Alguns, como Bohman e Sigvardsson (1990), fazem biológica cedesse sua criança para uma outra mãe que ela
uma constatação que merece nossa atenção. Eles afirmam tivesse encontrado antes. Ela quer dizer que, quando uma mãe
que a adoção tende a eliminar aquilo que se atribui normalmente de nascimento autoriza uma outra mulher a adotar seu bebê, a
à hereditariedade familiar, especialmente nos domínios tais criança adota a sua nova mãe sem demasiada culpabilidade.
como o desvio social, o alcoolismo e as drogas. Em outras Essa observação me parece justa; no entanto, a realidade da
palavras, nascer de pais que se drogam não toma uma criança adoção escapa à nossa lógica.
necessariamente drogada, com a condição que essa criança As coisas se passaram dessa maneira para Eva, quer
seja envolta e criada em um meio protetor. 3 dizer, ela estava ainda no ventre de sua mãe biológica quando
sua adoção ocorreu. Mas isso não salvou nem Eva, nem sua
Tendências gerais família adotiva de más surpresas, que colocaram todo mundo
em um estado de descalabro total.
Todos esses autores concordam em pelo menos três Por ocasião de um congresso sobre adoção, essa
pontos: jovem, Eva, escreveu para solicitar ajuda. Eis o que ela diz:
1. Quanto mais cedo a criança é adotada, menos
problemas ela apresenta; Desde que vou na minha psicóloga, compreendo que eu
2. Quanto mais o meio adotivo oferece um acolhimento sozinha sou responsável pelo que aconteceu a meus pais.
caloroso e uma estabilidade na vida do casal e na vida familiar, Tudo começou aos quatro ou cinco anos: eu queria
mais pode estabilizar a criança em sua vida afetiva e social; comandar todo mundo e mentia sem parar. A jovem que
3. A adolescência aparece como um momento dificil cuidava de mim me enervava, e eu não queria obedecê-la.
para muitos jovens adotivos. Essas dificuldades tendem a se Todas as manhãs, ela me enchia o saco me colocando um
agravar pelo fato de que os pais adotivos veem nisso um monte de questões, tais como: "O que você fez ontem à
ressurgimento do desconhecido ligado à história da origem da noite?", "Como estavam seus pais, gentis ou nervosos?",
cnança. " O que você comeu?", "Você apanhou ou você foi
Um quarto ponto, pouco lembrado, parece primordial; xingada?" etc. Isso me enervava, e eu me chateava de tal
ele diz respeito ao sofrimento da criança antes de sua adoção. modo que eu lhe contava besteiras e lhe dizia palavrão.
Contudo, os indicadores que nos informam sobre esse ponto, Às vezes ela chorava, e eu dizia mais ainda para fazê-la
como a síndrome de hospitalismo grave, o fechamento autístico chorar mais. Depois, quando ela me levava para a escola,
ou as perturbações profundas da relação, não permitem avaliar eu a via discutindo com a diretora. Uma vez, a diretora me
precisamente as consequências desse sofrimento sobre o futuro pegou no colo e perguntou : "Seu pai bate em você?", e
da criança adotiva. O que fica claro é que a fragilidade e a má muitas outras questões. Eu contava não importa o que
qualidade do acolhimento de uma criança irão agravar esse para incomodá-la.
estado. Na escola, ela me dava sempre razão, e eu me aproveitava
disso quando havia discussão. Ela não me xingava nunca
O ideal em adoção nem sempre é seguro e me deixava fazer tudo. Mesmo num dia em que eu quebrei
meus óculos de propósito diante dela, pois ela me irritava;
Françoise Dolto, na época de nosso livro comum
ela me pediu para que eu mentisse a meus pais e dissesse
Destinos de crianças, publicado pela Gallimard em 1995,
que eu os tinha quebrado no jogo, e que não era por
me confessou que o ideal em adoção seria que uma mãe
. ~m
------ - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - minha culpa .
3 lbid., p. 24.
96 Adoção e parentalidade: questões atuais 11 - A adoção e o trabalho escolar 9

Um dia, os policiais vieram me procurar na escola e me Essa enquete envolvia 1.068 crianças, das quais 180
levaram em sua viatura. Eles me fizeram várias perguntas: filhos biológicos. Não entrarei em detalhes, mas convido o leitor
"Seus pais batem em você? Por quê? Com que a consultá-la atentamente: ela é rica de ensinamentos. Eu me
frequência?". No começo, eu disse a verdade, mas ao cabo contentarei em citar a conclusão, que confirma o que os
de um momento, eu falei um monte de bobagens. trabalhos de outros países mostraram.
Meus pais não sabiam o que acontecia na escola. Eu não
lhes falava disso, e eles estavam longe de duvidar de mim . O êxito dos filhos adotivos é certamente menor do que o
dos filhos biológicos que vivem com eles ou aquelas
Inútil relatar a sequência nos detalhes. Os pais foram crianças que vivem em condições análogas. Contudo,
denunciados por maus-tratos e isso foi qualificado como delito. seu sucesso é equivalente ao da população francesa
Uma confrontação desse tipo é a cada vez terrível. média, e se revela nitidamente melhor do que aquele das
Palavra contra palavra, estamos sempre inclinados a acreditar crianças colocadas na ASE4. 5
na criança suposta inocente, mais do que no adulto suposto
potencialmente perverso. A infelicidade chega quando aqueles Pensamos que as dificuldades escolares não são
que supostamente deveriam desempenhar um papel de dificuldades inerentes à adoção. É até mesmo possível imaginar
intermediários entre a criança e sua família, como a diretora que uma criança adotiva que sai de um CAP 6, por exemplo,
ou os policiais, colocam questões que induzem as respostas. seja considerada como um sucesso interessante, quando se
Nesse caso, o adulto está perdido. olha o destino de muitas crianças que estavam depositadas
O caso de Eva me dá oportunidade de dizer que não nos lares ou nos berçários dos antigos países comunistas.
há garantia para o bom desenvolvimento da vida. É isso que É fácil compreender que uma criança que foi adotada em tais
faz com que a vida em comum comporte momentos de condições e teve êxito em se inserir social e profissionalmente
felicidade e momentos de catástrofes como aconteceu com os representa um progresso considerável. Também tivemos a
pais de Eva, e com ela mesma. A vida em comum se vive no ocasião de conhecer crianças ainda pequenas vindas da
dia a dia, e o importante é saber conviver com aqueles que América do Sul e podemos garantir que o sucesso escolar
contam para nós e nos amam. relativo representa para elas uma vitória sobre o destino.
Nossas crianças não se saem bem porque somos piores Um fracasso é de considerar como tal quando a criança
do que os outros ou porque tiramos a sorte grande. Que as falha completamente em sua vida e em sua inserção no grupo
crianças fracassem ou tenham êxito nem sempre é por causa social, seja em sua família ou em sua geração. Acompanhamos
dos pais. alguns desses adolescentes ou jovens adultos adotivos que se
colocaram completamente fora da vida social e se deixaram
Os trabalhos franceses arrastar pelo sabor de péssimos encontros, cujas consequências
às vezes foram trágicas. Mas será isso culpa da adoção?
Na França, a enquete efetuada pela EFA (Infância e
famílias de adoção) sobre a escolaridade das crianças adotadas,
cujos resultados foram publicados nas atas do congresso 4
Aide Sociale à l'Enfance. N. T.
nacional de 2005, nos dá uma ideia da capacidade das crianças 5
Congresso nacional EFA 2005, Scolarité et adoption.
6
adotivas de se inserirem em sua sociedade de acolhimento, Certificat d'aptitude professionnelle, certificado de aptidão profissional
de se adaptarem ao sistema educativo, e, sobretudo, de assimilar fornecido pelo Ministério da Educação, após aprovação em formação
específica. N. T.
a língua de acolhimento e de se deixar conduzir por ela.
98 Adoção e parentalidade: questões atuais

Um caso de fracasso escolar, ou fracasso face ao ideal

O fracasso escolar nem sempre é sinônimo de 12


marginalidade. Eu encontrei homens e mulheres que tiveram
êxito no plano profissional, mas que continuam a sofrer por
não ter tido tal ou tal diploma. A escolaridade entre saber e verdade
Assim temos François, promovido para um cargo que
muitos diplomados de sua empresa teriam gostado de
conseguir. François é um self-made man que só tem desprezo
pelos diplomados, que "perderam seu tempo em aprender
asneiras que não servem para nada no mundo das empresas". O caso de Tânia
Os diplomados são uma pedra no seu caminho. Ele não
consegue evitar de revidar cada vez que um deles intervém. Apresento um recorte clínico que poderia
Ele, um homem experiente, sabe do que fala. Ele os coloca em perfeitamente ilustrar a natureza das dificuldades que as
seu lugar sem rodeios. crianças encontram na aprendizagem da leitura.
François teve uma escolaridade dificil. Ele fracassou Trata-se de uma menina de nove anos que encontrava
em sua escolaridade "normal" e foi encaminhado para a sérios problemas na aprendizagem do francês. A mãe, que a
preparação para a obtenção de um CAP, mas encontrou muitas tinha acompanhado em sua primeira entrevista, parecia muito
dificuldades. Depois, as coisas se arranjaram, e ele se revelou decepcionada com sua filha. Ela se pôs a falar dela na terceira
ser um bom profissional. pessoa, sem me apresentá-la, nem chamá-la por seu nome.
Dizendo que não se arrepende de nada, François jamais Ela falava da bulimia de sua filha, de sua obesidade e de sua
se esquece do esforço penoso que foi sua escolaridade. falta de interesse pelas atividades escolares e esportivas.
Os "diplomados" reativam nele a vivência traumática desses Ela me dava a impressão de sofrer dela muito mais do que
anos negros que ele passou na escola, entre as zombarias de sofria por ela. Enquanto a mãe descarregava assim sua raiva
seus colegas e os acessos de fúria de seu pai. Ele teve êxito contra a criança, esta, não tendo a menor chance de se
profissionalmente, é certo, mas a lembrança da infância expressar, se levantou para ir em direção ao quadro que se
miserável vem assombrá-lo e sabotar o sentimento de sucesso encontrava em meu consultório para desenhar e escrever
profissional. alguma coisa. O resultado foi apenas um grupo de letras
François representa, para mim, o exemplo típico do emendadas: ELAFIN.
fracasso escolar. Pode-se ter sucesso de outra forma, Interrompi a entrevista com a mãe, me dirigi para Tânia
mas nada vem pensar as antigas feridas narcísicas que e lhe pedi para que ela me lesse o que havia escrito. Ela me
continuam a obrar em si como um verme na fruta. respondeu que não sabia ler. Eu insisti no meu pedido, frisando
que, se ela não soubesse ler, ela poderia tentar cortando o que
ela tinha escrito como ela quisesse. Ela separou o grupo de
letras em dois pequenos grupos que eram o seguinte:
ELA FIN. Então ela leu ELA FIN, insistindo nas letras.
Eu a convidei a cortar de novo se ela quisesse.
Ela procedeu do mesmo modo. Ela se pôs a examinar o primeiro
100 Adoção e parentalidade: questões atuais 12 - A escolaridade entre saber e verdade 101

grupo, e enquanto ela lia ELA, o corte se impôs a ela e ela leu: ficar na metáfora do anjo, a descoberta para o homem de que
ELA FIN'; excitada, ela me acrescentou: "Então eu sei ler! ". a língua só tem chave na verdade que ela mesma gera na
Eu lhe respondi : enunciação do sujeito.
Com efeito, a letra é uma história de queda perpétua.
Você vê, Tânia, você escreveu a frase que sua mãe lhe A letra, para ser identificada como tal e para se escrever,
ditou. É como na escola, alguém dita para você cheio de teve necessidade de passar pelo afastamento completo do
saberes e você, você responde todo o tempo que não imaginário associado à sua criação. A letra B, Beta ou Ba não
sabe ler. É o ogro que não sabe ler. Sua mãe diz que você precisa mais nos remeter à imagem de uma casa para se
come como um ogro e o ogro não tem nome, chama-se escrever ou se ler. Ela não se presta a esse papel, a não ser
ogro, é tudo. Sua mãe esqueceu de me dizer como você se pelo fato desse apagamento, que faz dela uma pura diferença.
chama, então você escreveu o que se tornou para você Do caçador pré-histórico, que riscava um traço para marcar
seu nome: ELAFIN. cada uma de suas saídas para a caça, ao criador mesopotâmico,
que traçava tantos traços quantos animais possuía,
Algumas dificuldades correntes o procedimento é o mesmo. Trata-se de substituir a coisa por
um traço que a significa, no entanto sem representá-la.
O "eu não sei ler" implica a letra no que depende de Um traço se assemelha a um outro traço, certamente,
sua identidade própria de pura diferença em sua posição na mas considerando o número de traços deixados em um osso,
escrita das palavras, assim como o efeito sobre o inconsciente como se vê no museu de Saint-Gerrnain-en-Laye por exemplo,
do leitor. Tentemos analisar algumas das dificuldades que os descobrimos que um traço permanece único porque ele remete
jovens estudantes frequentemente encontram. a uma expedição que não se confunde com nenhuma outra.
A decifração penosa na qual a criança passa em
revista todas as letras que entram na escrita de uma palavra é A letra em todas as suas formas
uma dificuldade de base. A decifração não é a leitura.
Esta exige a queda da letra, ou sua invisibilidade. Essa queda Frente à letra, a criança está na pele de Robinson.
implica a fusão no fonema para fazer corpo com ele. As marcas deixadas no quadro ou nesses cadernos a designam
como uma entidade inteira com uma existência autônoma.
A queda da letra ou a queda do anjo A remete a A e, como tal, a letra A só pode ser A. Mas essa
letra, por mais autônoma que seja, é chamada a se fundir, e até
A queda da letra, que autoriza a leitura e estrutura a mesmo a se apagar para entrar na escrita dos grupos de
ordem significante, constitui o leitor. Com efeito, quando eu palavras. Então se trata para a criança de um saber que só
digo "a queda da letra", isso representa a queda do anjo por tem valor à medida que se apaga, a fim de fazer surgir um
excelência, à medida que essa queda é correlata com a queda outro saber. Como para Robinson, o apagamento das marcas
da língua materna ou da língua do paraíso. Entendamos por dos passos destaca o saber das provas materiais que o
"língua materna" essa língua privada entre a mãe e sua criança sustentam, a fim de integrar o apagamento das marcas em
fundada em um gozo comum. A língua materna somente se uma operação simbólica que faz da presença de um outro uma
toma a língua do discurso comum graças ao recalcamento que verdade incontornável. Em outras palavras, o desconhecido
a atinge. Possuir essa língua para tomá-la sua representa, para se destaca de seus passos para se inscrever na rede simbólica
que lhe dá uma presença apesar de sua ausência.
1 Homófono em francês de elle afaim (ela tem fome). N.T.
102 Adoção e parentalidade: questões atuais 12 - A escolaridade entre saber e verdade 103

Trata-se de um paralelo absurdo? Não creio, pois é Eis o problema! Para adquirir a noção de letra, o aluno,
justamente o que acontece com a criança pequena diante do como obrigação, tem de se libertar dela e da imagem à qual
enigma da presença e da ausência de sua mãe. A criança ela remete. Exatamente como, para adotar sua mãe
somente supera sua angústia frente tal ausência graças a seu a criancinha tem de se liberar de seu apego ao seu primeir~
recurso ao jogo simbólico. Um objeto transicional, segundo a objeto de amor pelo jogo de permutação simbólica que o objeto
expressão de Winnicott, vem ocupar o lugar do objeto de amor, enquanto metáfora da falta lhe oferece. Em outras palavras,
graças à uma operação de permutação que o regime simbólico ler e escrever consistem para ela em assimilar o estatuto
coloca à disposição da criança. Essa operação lhe permite mutável da letra, e até mesmo seu puro e simples
ultrapassar o sentimento de perda, devido ao que ela introduz desaparecimento. Em razão disso, o aluno não tem outra
como possibilidade de substituição. Além disso, é por essa escolha a não ser se arriscar a cortar as letras, a juntá-las,
mesma razão que a adoção é possível. Uma mulher pode pronunciar umas, aceitar o silêncio das outras e quem sabe
substituir uma outra, a geradora, no caso, pela mesma razão ainda mais. Finalmente, isso quer dizer que, para aceder à leitura,
que os significantes mamãe e papai, não se congelam em uma o aluno precisa aceitar o risco da letra. O aluno descobre,
significação que remeteria apenas aos genitores. Mamãe e por sua conta, que não se dispõe da letra, pois, como um furão,
papai são significantes abertos que designam os homens e as ela corre e determina a posição do sujeito conforme seu lugar.
mulheres que ocupam para uma criança a função materna e
paterna no momento em que, ainda pequena, ela tem A criança caligráfica
necessidade de um Outro matemo que sustente a hipótese de
um sujeito desejante. A segunda dificuldade clássica é a que a criança
caligráfica representa. A criança caligráfica se aplica, toma
A leitura é uma responsabilidade do sujeito seu tempo e fica, por causa da própria aplicação, para trás.
Os pais, orgulhosos, apresentam para você o caderno de sua
A clínica nos ensina que é esta angústia diante da criança, insistindo na qualidade de sua escrita. A criança é o
ausência que faz do jogo das letras uma operação por vezes ar~ista perfeito, e isso entristece ainda mais os pais por ver que
perigosa. O que acontece com o jovem estudante ao qual se tais talentos se perdem sem que a criança obtenha resultado
ensina o alfabeto recorrendo ao suporte da imagem ou de seu escolar significativo. Isso representa estranhamente a história
próprio corpo? Mostramo-lhe a letra A, por exemplo, lhe da caligrafia chinesa pendurada na parede da casa de campo
dizendo, "A como Anatole", ou ainda: "A é assim, abre-se a de Lacan. Ele diz a seus ouvintes: "Se ela não fosse chinesa
boca e afasta-se os dedos diante do rosto". Aproximamos para eu não a teria pendurada na minha parede pela simples razã~
ele a letra de uma presença, de uma imagem, ou ainda de uma que apenas na China a caligrafia ganhou um valor de objeto de
parte de seu corpo destinada a suprir uma ausência. E se, arte". 2
por uma razão ou outra, o estudante pequeno ainda se encontra De fato, os pais de uma criança caligráfica podem
preso na angústia da separação, como frequentemente é o caso também se dizer: "Se não fosse a produção de meu filho,
nos estudantes pequenos, a letra A corre o risco de ficar ligada eu jamais lhe teria dado qualquer valor". Mas pode-se falar de
à coisa ou à imagem, resistindo assim à articulação com outras arte? Acriança talvez se aplique tanto quanto o calígrafo chinês,
letras e então resistindo à leitura. Pois a letra, para se escrever mas, em seu caso, a aplicação aparece como o signo da
e para se ler, precisa se fundir no fonema e na sílaba para, inacessibilidade das letras. A arte é o jogo da letra, é de tal
às vezes, desaparecer no conjunto.
2
LACAN, L. L 'identification, 1961-1962. Paris: ALI, 1997, p. 53.
104 Adoção e parentalidade: questões atuais 12 - A escolaridade entre saber e verdade 105

modo esse jogo que, se o artista a maneja de mil formas, é O saber da mãe faz barragem
sempre para valorizar sua leitura. A caligrafia muçulmana fez
da não representação da imagem o signo da presença de Deus. Quando Tânia tomou a responsabilidade de ler,
Deus está na letra. isso foi para talhar em um texto ditado por sua mãe e que a
reduzia a seu sintoma. Tratava-se de um texto que implicava
um saber sobre um sujeito, mas que permanecia fora do sujeito,
A letra não é uma aprendizagem como as outras
por assim dizer. Tânia se apresentava de algum modo como
A criança caligráfica, que se aplica a reproduzir, uma boa aluna. Ela recebia o que sua mãe inculcava em seu
demonstra que não integrou a escrita da letra. E quando a corpo, mas permanecia completamente incapaz de
professora se obstina em querer ensiná-la e descobre que ela compreender seus termos. O aluno que aprende seu texto de
a reproduz invertendo b e p, ou b e d, a questão da dislexia se cor e o reproduz inteiramente segundo a intenção do adulto
impõe de saída. Isso nem sempre está justificado. Pois saber sem estar à altura de ler propriamente é dessa ordem. O aluno
escrever não é um saber como qualquer outro. A letra não se que memoriza um texto sem se apropriar do sentido é um caso
integra na criança a não ser por uma conjunção entre a letra e frequente na escola. É um modo engenhoso de satisfazer o
a imagem do corpo. A letra A se inscreve quando Anatole não adulto, protegendo-se completamente do saber que este lhe
é mais tomado como a imagem de seus semelhantes e sabe destina.
lidar com a rivalidade que decorre disso. Trata-se de um saber Todo saber se refere a um texto, escrito ou inscrito
que se adquire não graças à arte pedagógica da professora, nos costumes. Mas o saber, para tornar-se acessível, digamos
mas graças a essa conjunção. A criança tenta, se engana, é pessoal, precisa se descolar do texto de modo a nos permitir
xingada ou passa por desajeitada. Há um momento em que a reescrever o texto de outro modo. Isso representa, em minha
criança lida bem com as cosias que lhe são apresentadas. É o opinião, um primeiro paradoxo. A descolagem, o corte que se
tempo para o saber, nos diz Lacan e acrescenta: opera no texto, o remanejamento. Esse remanejamento é o
signo do sujeito. No entanto, para que haja possibilidade de
Existe um momento em que a criança maneja seu primeiro corte, é preciso que o sujeito tome o risco de implicar sua
alfabeto, e não é de nenhuma aprendizagem que se trata, responsabilidade de leitor. Se admitimos esse primeiro paradoxo,
mas de alguma coisa que é esse colapso que une urna isso forçosamente introduz um segundo. Se, para Tânia, o saber
grande letra maiúscula corno um animal, cuja inicial fez seu caminho graças a um texto estabelecido na linguagem
supostamente corresponde à letra maiúscula em questão; instituída, digamos, aquela de sua mãe, sua verdade de sujeito
a criança faz a conjunção ou não a faz; na maioria dos surge apenas contra esse texto. Dizer "contra esse texto"
casos, quer dizer, naqueles em que ela não está envolta não implica forçosamente seu repúdio pura e simplesmente,
com urna atenção pedagógica demasiado grande , mas a possibilidade para ela de se apropriar dele de um modo
elaafaz. 3 que assim permita o desejo de se desdobrar.

No que esses exemplos nos interessam? Retomemos Se mudássemos o sistema de nota escolar
à história de Tânia para nela encontrar um começo de resposta.
Quantas vezes nos obstinamos a explicar ao aluno as
regras que condicionam a escrita das concordâncias, no plural
3
ou no feminino, por exemplo, para perceber que a criança
LACAN, L. D 'un Autre à l 'autre, 1968-1969. Paris: ALI, 1996, lição de
28 de fevereiro. comete sempre as mesmas faltas? Na escola, chama-se um
106 Adoção e parentalidade: questões atuais

erro em ortografia uma "falta". Quantas faltas uma criança


faz para merecer um zero, que muitos professores(as) exibem
na aula diante de outros alunos zombadores? Tal aluno comete 13
um erro, certamente, mas ele não se engana quanto à verdade
subentendida nesse erro. Aliás, eu assumo o risco de afirmar
que muitos dentre nós não fazemos melhor do que os alunos Há consequências em criar sozinho(a)
pequenos quando refazem pela enésima vez a escrita de uma uma criança?
palavra ou de um grupo de palavras recalcitrantes. Eles não
cometem erros, eles antes estão na verdade de um saber que
não se partilha. Um saber sobre sua verdade íntima.
Cada vez que sou questionado sobre esse assunto pelo
professor de uma criança que atendo, eu lhe aconselho a não A realidade da adoção por um só dos pais
anotar no negativo os erros que um aluno comete, mas a anotar
no positivo o número de erros encontrados e corrigidos. Eu apresento aos leitores os resultados de estudos
Esses professores são os primeiros a ficar surpresos quando realizados nos Estados Unidos e na Inglaterra sobre adoção
constatam que o suposto mau aluno sabe descobrir muitos de por mulheres sozinhas, a fim de sair de julgamentos arbitrários
(
1 seus erros e chega a corrigir um bom número. Eu creio que é e avaliar com conhecimento de causa riscos reais de tal prática.
possível abordar o ensino, ao menos o ortográfico, desse modo, Isso me parece necessário, visto que na França faltam
mas exigi-lo seria pretensioso de minha parte.A falta é cometida pesquisas equivalentes, e que os especialistas e a opinião pública
em relação a uma ordem estabelecida, a um interdito fundador tendem a julgar todo um contexto de adoção a partir de uma
ou a um discurso instituído. Encontrar os erros e corrigi-los simples opinião ou de uma experiência limitada.
por si mesmo depende de uma responsabilidade do sujeito; Os estudos anglo-saxões nos revelam que a adoção
é um modo para ele de se reapropriar de um texto que somente por mulheres sozinhas começou no início da década de 1970,
autoriza o distanciamento pela falta reconhecida como tal. e que a porcentagem passou de 3% de adoções em 1975 para
Tal falta seria então subversiva. Eu entendo a expressão 15% durante a década de 1990. Trata-se de uma simples
"subversiva" como a designação do lugar que o sujeito estimativa, pois o número exato é dificil de ser obtido mas nos
do inconsciente continua a ocupar, nem que seja de modo damos o direito de supor que se trata de uma t~ndência
desajeitado. O repúdio inconsciente em aprender deveria importante, e que, assim, as adoções se fazem cada vez mais
ser compreendido como uma posição do sujeito contra a por mulheres sozinhas. 1
linguagem instituída. Nos Estados Unidos, 40% das mães sozinhas que criam
Se eu insisto nisso é para propor a minha hipótese de crianças eram mães divorciadas, 20% eram mulheres não
trabalho. Não se pode dizer que o repúdio escolar representa casadas, mas separadas de seus companheiros, 6% viúvas e
para certas crianças um repúdio de abrir, de questionar, ou de 30% eram mulheres que jamais haviam formado um casal.
recalcar o que permanece para elas desse saber sobre o gozo Muitas dessas últimas eram mulheres negras que haviam tido
de seu Outro materno, a geradora no caso? Seu desinteresse bebê muito jovens e quase que não podiam contar com sua
pelo trabalho escolar decorre do fato de que esse saber não família. 2
responde à sua questão relativa ao enigma da origem.
1
TRISELIOTIS , J.; SHIREMAN, J.; HUNDLEBY, M. Single-parent
adoption. ln: Adoption: theo,y, policy and practice. Op. cit., p. 208.
2
lbid., p. 209.
108 Adoção e parentalidade: questões atuais 13 - Há consequências em criar sozinho(a) uma criança? 109

Groze e Rozenthal (1991) 3 nos explicam que as Apesar desse progresso notável no que diz respeito à
primeiras adoções por mulheres sozinhas se faziam mais ou adoção pelo pai ou pela mãe sozinhos, perdura que as mulheres
menos à margem da adoção normal, adoção por dois pais, são sempre de algum modo penalizadas quanto à escolha da
e que eram relativas a crianças de "segunda escolha", se posso criança que lhe é atribuída. O centro nacional para adoção nos
me exprimir assim. Crianças grandes ou crianças em Estados Unidos destaca que 25% das crianças adotadas por
dificuldade, que não encontravam família de acolhimento, mulheres sozinhas são crianças que apresentam dificuldades
eram orientadas para mulheres sozinhas que sabiam que não psíquicas ou psicológicas (Harrison, 1991); parece que este
poderiam esperar algo melhor. seja sempre o caso, se acreditarmos em Christine Ward Gailey
Por essa razão, as adoções por mulheres sozinhas se (2006).
orientaram pouco a pouco para o estrangeiro, beneficiando-se Groze e Rosenthal (1991) afirmam que tal percentual
de um trabalho feito no local por associações privadas que é impossível imaginar na Inglaterra e criticam as estatísticas
toleravam esse gênero de adoção, pouco importando que as fornecidas pelos Estados Unidos. Elas não permitem saber se
mulheres fossem sozinhas ou homossexuais. essa porcentagem incluía as crianças adotadas por um membro
Dava-se às mulheres crianças do sexo feminino. de sua família extensa. Esta é, acrescentam eles, uma prática
Os homens sozinhos tinham maior dificuldade em conseguir o corrente nas famílias negras.
que queriam. E apesar de seus esforços para legitimar sua No que diz respeito à França, como eu já escrevi no
: 1
solicitação, eles não conseguiram suscitar o mesmo interesse primeiro capítulo, as pessoas sozinhas representam 31 % dos
por sua causa que as mulheres. processos aceitos em Paris, mas essa realidade é nitidamente
Se, desde o começo, a adoção por mulheres se fazia menor em escala nacional, e elas se orientam em sua maioria
em grupos mais ou menos marginais, hoje essa tendência para a adoção internacional.
apresenta uma diferença importante: essa marginalidade não
é mais a mesma. Trata-se de uma marginalidade positiva, visto Quais são os inconvenientes?
que as mulheres que adotam em nossos dias são
frequentemente de formação universitária, que ganham bem Um peso econômico
sua vida e são globalmente sólidas no plano afetivo e psicológico. Criar sozinho uma criança representa para uma mulher
Esse estado de coisas já havia sido observado por um esforço considerável no plano financeiro. Inicialmente
Feigelmant e Silverman (1983) 4 e por Marindi (1992). porque, neste lar, só há um salário e em seguida porque o salário
Eles haviam especialmente constatado que essas mulheres das mulheres frequentemente é inferior ao dos homens.
frequentemente tinham em tomo dos trinta anos e tinham uma Em seu estudo, Groze e Rosenthal haviam notado que o baixo
formação superior, o que lhes permitia assumir sua escolha e salário constitui um problema maior para metade da amostra
garantir economicamente uma vida decente para suas de sua investigação.
crianças. 5
O isolamento social
3
GROZE, V. K.; ROSENTHAL, J. A. Single parents and their adopted
children: a psychosocial analysis. ln: The Journal ofContemporary Human Em um estudo longitudinal, Shireman (1988) observava
Services, 1991 , p. 130-139. que, entre essas mulheres sozinhas, poucas se engajam em
4
FEIGELMAN, W.; SILVERMAN, A. R. Single parent adoption. ln: um casal durável e que os namorados desaparecem
The handbookfor single adoptive parents. Chevy Chase, MD: National relativamente rápido. Por ocasião da morte dos avós, o núcleo
Council for Single Adoptive Parents, 1977; 1983, p. 123-129.
5
lbid ., p. 212.
110 Adoção e parentalidade: questões atuais 13 - Há consequências em criar sozinho(a) uma criança? 111

familiar se limita frequentemente à mãe e à sua criança. A incógnita


Isso é totalmente verdadeiro, já que os amigos e os membros
da família, se habitualmente reagem de modo positivo à adoção Quando elas relatam suas queixas , aliás
por um casal, se mostram mais reservados quando se trata de frequentemente legítimas, essas mulheres tendem a deixar de
uma adoção por uma mulher sozinha. 6 lado a razão de sua solidão, que é a base mesma de sua decisão
Essa realidade se verifica de maneira constante no de adotar. No entanto, essa solidão é efetiva, mesmo para
trabalho clínico com os pais adotivos. O exemplo que me ocorre algumas dessas mulheres que vivem com um parceiro sexual.
é aquele de uma senhora que cria sozinha um adolescente e
que sofre sua agressividade e sua rejeição dirigidas contra ela. Um caso exemplar
"Ele não pode me ver na mesma peça. Assim que eu ponho o Quando uma mulher quer uma criança de seu parceiro
pé na sala, ele grita comigo e me exige deixá-lo sozinho. e ele se recusa, a questão do desejo de criança toma-se para
Eu passo meu tempo em meu quarto e na cozinha, eu só vou à ela um desafio formidável. O que pode fazer semelhante
sala quando ele não está lá." A mulher continua: "Acontece de mulher? Como manter seu parceiro e ter uma criança?
eu pedir aos meus namorados, aos homens que são A adoção é a solução ideal. Ela pode se encaminhar
normalmente próximos de mim, para intervir, mas raramente
para os serviços de adoção, apresentando-se como uma mulher
obtenho sua adesão para desempenhar tal papel junto a meu sozinha, e obter a aprovação que a autoriza a dirigir-se para as
filho. Quanto mais eu vejo as pessoas, mais eu me sinto sozinha associações especializadas em adoção internacional. A mulher
e incapaz de exercer um poder sobre ele. Eu confesso que por faz o necessário e finalmente obtém ganho de causa. Eis que
vezes tenho medo dele. Ele é duas vezes maior do que eu e é ela se torna mãe no fim da pista do aeroporto, e eis que
extremamente forte." desembarca na casa dela com a criança, esperando que seu
parceiro aceite o jogo.
O estresse Sim, mas não muito. A incógnita que fez com que ela
O estresse é devido ao fato de assumir sozinho as não tivesse um bebê de seu parceiro sexual é a causa da
decisões, as tarefas educativas e suas consequências. Não ter solicitação de adoção e do reconhecimento oficial de sua
a sustentação de um parceiro provoca um estado de estresse, qualidade de mãe pelas autoridades nacionais.
visto que o recuo que o outro permite tomar é impossível. A incógnita é múltipla, e cada situação que leva à
Além disso, estar todo o tempo sozinho para enfrentar as adoção por um dos pais sozinho implica o sujeito e a função
solicitações e dificuldades, nem que sejam apenas materiais materna ou paterna no que está em jogo de modo particular e
(como quando se quer ocupar um fim de semana para si ou escapa completamente da pessoa no começo da diligência.
organizar as férias) , toma-se uma coisa penosa. 7 E isso pela simples razão de que o candidato escuta somente
As mulheres sozinhas optam pelo internato como o seu desejo de ter uma criança. Todos os especialistas sabem
mal menor. Mas essa escolha não se faz sem culpabilidade. disso. Vocês podem multiplicar as precauções e as advertências,
Essas mulheres vivem o afastamento como uma confissão de os candidatos têm apenas uma ideia na cabeça: obter satisfação.
fracasso ou ao menos como uma impossibilidade de gerir as Não levar em conta os conselhos dos especialistas pode mesmo
dificuldades que a vida em comum lhes coloca. tornar-se uma verdadeira surdez quando a adoção é motivada
pelo desejo de criança enquanto reivindicação e direito.
6
Ibid. , p. 214.
7
lbid., p. 213 .
112 Adoção e parentalidade: questões atuais 13 - Há consequências em criar sozinho(a) uma criança? 113

Algumas consequências já assinaladas crianças sofreram muitas privações, muita instabilidade em sua
ligação com adultos, se sofreram de maus-tratos ou conservam
Em 1994, MacLanahan e Sandefur publicaram um sequelas visíveis ou escondidas da adição.
documento no qual assinalavam que os adolescentes e os jovens Em uma obra coletiva, recentemente lançada nos
adultos adotivos, tendo sido criados por mulheres sozinhas, Estados Unidos por Katarina Wegar 11 , Christine Ward, em um
apresentaram fracasso escolar duas vezes superior às outras artigo intitulado "Mães adotivas sozinhas", afirma que é
crianças e tinham tendência a ter eles mesmos filhos antes da objetivamente impossível dar um número exato das adoções
idade de vinte anos. Em proporção, eles eram 50% mais por mulheres sozinhas. Na década de 1990, as estimativas
numerosos na condição de não ter formação e estar sem variavam entre 8 e 34%. Ela escolheu trabalhar com uma
trabalho do que as outras crianças de sua idade. 8 amostra de 26 adoções distribuídas entre Boston, Nova York e
Shireman (1998) explicava que os pais sozinhos Los Angeles.
apresentam a particularidade de ter maior dificuldade em contar Ela nos diz que, contrariamente à imagem que temos
a adoção para sua criança e, quando o fazem, é normalmente delas, essas famílias não são mais frágeis emocionalmente do
mais tarde do que nos casos de adoção pelos dois pais. 9 que as outras, visto que deram conta das dificuldades financeiras
Talvez a dificuldade resulte do fato de que os pais devidas ao salário único. No oposto do que outras investigações
sozinhos têm mais do que a adoção para contar. Eles têm de revelaram, as mães têm uma comunicação aberta com as
contar por que são sozinhos e por qual razão eles não crianças, com um menor número de assuntos tabus. Os laços
conseguiram ter um "amor" ou simplesmente um parceiro familiares são fortes e estáveis, o que demonstra, para a autora,
sexual. Além disso, quando é preciso abordar a questão da que a estrutura familiar é sólida e que as referências estão
preferência sexual por parceiros de seu próprio sexo, a tarefa claramente definidas.
é ainda mais delicada. Em contrapartida, as fronteiras entre pais e crianças
Outros pesquisadores contestam o fato de que as não são claramente estabelecidas como nas famílias
crianças criadas por pais sozinhos apresentem dificuldades estabelecidas por dois pais. As mães têm tendência de exigir
superiores às dos outros. Eles se apoiam em uma investigação mais de suas crianças e a fazer ainda mais do que os outros,
longitudinal efetuada junto a um grupo de pré-adolescentes querendo marcar todos os acontecimentos, os maiores como
com o fim de estudar certo número de critérios, tais como a os menores. 12
estabilidade dos laços familiares, a relação com os pares, O autor não nos diz por que as fronteiras entre as
o comportamento, a identidade sexual, a desempenho escolar gerações são menos marcadas e por que essas mães fazem
e a autoestima. Eles concluem que dois terços das crianças de tanto. Talvez ela mostre otimismo demasiado, atribuindo muita
sua amostra não apresentam problemas particulares. 10 importância a esse fenômeno.
Os autores desse livro, John Trisliotis, Joan Shierman
e Marion Hundleby, ficam convencidos que, se há problemas
Quando a presença física se torna insuportável
relativos à adoção por uma mulher sozinha, é inicialmente
porque as agências tendem a fazer adotar as crianças sem A experiência clínica nos ensina que quando a criança
haver uma possibilidade real de conhecê-la ou de conhecer é criada por um dos pais sozinho, ainda mais quando ele é do
sua história. As agências são incapazes de dizer se essas sexo oposto, o risco de se desenvolver uma sensibilidade

11
8
Ibid., p. 21 O. WEGAR, K. Adoptive families in a diverse society. Piscataway: Rutgers,
9
Ibid., p. 215. 2006.
12
10
Ibid., p. 215. Op. cit., p. 162 e 172.
114 Adoção e parentalidade: questões atuais 13 - Há consequências em criar sozinho(a) uma criança? 115

acentuada pela presença fisica do pai ou da mãe torna-se forte . "Essas mães sozinhas fazem mais que os pais e as mães nas
Na adolescência, quando a maturidade sexual é atingida e que famílias tradicionais".
o(a) adolescente se confronta com seu desejo sexual, É preciso que se faça pelos dois? Se sim, só se pode
a proximidade de um dos pais do outro sexo torna-se fazê-lo mal. Nenhuma mulher pode fazê-lo no lugar de um
ameaçadora. O testemunho dessa mulher que não ousava mais homem. Uma mãe pode saber muitas coisas, mas há uma cosia
partilhar a sala ou ver televisão com seu filho é um exemplo que lhe escapa constantemente, é que ela nada pode saber
eloquente. Uma jovem criada por seu pai, contrariamente ao nem sobre o desejo de um homem nem sobre seu gozo. E é
fato de que isso jamais lhe havia colocado qualquer problema nisso que ela é castrada.
no período da infância, não suportava mais fisicamente seu pai
na adolescência. "Ele come mal, ele faz barulho com a boca,
ele engole sem prestar atenção no que come. Em síntese,
ele me repugna fisicamente, e acontece frequentemente de
fazer de conta que não tenho fome para escapar da refeição
com ele."
Eles viviam sozinhos há anos, sem a presença de outra
mulher. Ela tinha a impressão de que ela era sua mulher e se
comportava como tal. "Sua mulher" não tem forçosamente
conotação sexual, em todo caso é o que eu penso. Eu diria que
se tomaram como um velho casal de irmãos que passaram da
idade de casar e que têm necessidade um do outro para não
ficarem sozinhos. O pior é o banheiro. "Quando ele sai com
sua toalha em volta do corpo, com sua grande barriga e sua
carne mole, isso me deixa louca de raiva."
É preciso acreditar que a questão das fronteiras entre
as gerações aqui se torna aguda. O parceiro sexual do homem
ou da mulher coloca de maneira mais forte a noção da proibição
do incesto. É à medida que cada um dos pais situa, nomeia e
refere seu desejo sexual por seu parceiro que a criança leva
em conta a presença desse outro junto de seu pai ou de sua
mãe.
À medida que o menino ou menina tem ainda na
memória o gozo do contato com o corpo de um dos pais que se
ocupava dele ou dela quando criança é que a presença fisica
de um dos pais fica impregnada dessa memória não recalcada.
O recalcamento se faz ainda mais facilmente quando o parceiro
sexual vem se interpor, estabelecer um recuo de cada um em
relação ao outro e atingir esse gozo de proibição.
Eu creio que é essa dimensão que escapa a Christine
Ward Gailey e a impele a banalizar a outra constatação:
14

Adoção e homossexualidade

O mal já está feito?

Entre as lágrimas da senhora Boutin, a acusação de


pedofilia contra um psicanalista conhecido por sua posição
anti-PACS e contra adoção por homossexuais e a "apologia"
de Elisabeth Roudinesco em favor de um discurso que relativiza ·
a posição comum da homossexualidade1, tem-se a impressão
de que as pessoas, os psicanalistas em primeiro lugar, correm
mais rápido que sua sombra cada vez que se evoca essa
questão. Pode-se falar disso sem ser a favor ou contra?
Sem ser taxado de homófobo ou pró-homossexual? Como falar
disso e permanecer rigoroso sem procurar a complacência,
nem derivar para o repúdio odioso dos homossexuais?
Eu me aproximaria desse capítulo com a prudência
que se impõe, digamos uma prudência científica fundada na
leitura de documentos e nos resultados de diversas
investigações que foram realizadas nos países onde a adoção
por homossexuais já é antiga.
Parto de uma ideia simples: Qualquer questão séria
deveria se liberar de ideias preconcebidas e do peso do lobby
para poderem ser abordadas com plena lucidez. Não é a
homossexualidade que constitui um perigo para nossa
civilização, é antes o lobby. Basta circular pelo mundo para
ver como o lobby econômico, religioso ou ideológico modela
as sociedades e fragmenta sua estrutura em entidades
forçosamente inimigas. Ou ainda como nossa pertença e nossa
identidade são determinadas por tal comunidade contra tal

' ROUDINESCO , E. Psychanalyse et homosexualité.Cliniques


méditerranéennes, n. 65 . Toulouse: Éres, 2002.
118 Adoção e parentalidade: questões atuais 14 - Adoção e homossexualidade 119

outra. Que seja a cintura bíblica nos Estados Unidos, as diversas torna uma figura. Quando se tem ocasião de trabalhar em
igrejas evangélicas que gangrenam as cidades brasileiras e prisões ou com pessoas provenientes de culturas que baniram
outras grandes cidades, sem esquecer as mesquitas que se a sexualidade normal fora do casamento legal, como no mundo
dilaceram entre si ou que explodem com seus fiéis, nem as árabe, por exemplo, descobre-se que se acaba por criar uma
sinagogas fanáticas que têm do mundo apenas um concepção situação experimental de uma homossexualidade e de uma
simplista, descobrimos que entramos ou talvez que somos pedofilia possíveis. Nas prisões, a primeira violação
plenamente introduzidos em uma civilização que rejeita qualquer homossexual é a revista do corpo. Desde sua chegada,
frustração que o semelhante coloque. Todo mundo quer a o prisioneiro é iniciado por esse trote praticado com toda
manteiga e o dinheiro da manteiga. As pessoas querem viver impunidade pelos guardas do templo. Nenhum estudo sério
sua vida, mas recusam as consequências de suas escolhas. jamais foi feito nesses países para avaliar a amplitude do
Essa rejeição de perda tem um preço. E esse preço a pagar é fenômeno. Os pais e as mães, nos países que baniram a relação
o abandono da cultura comum em proveito dos interesses de sexual antes do casamento, sabem disso ao menos por eles
seu próprio grupo ou de sua comunidade. mesmos. Eles sabem que foram violados pelos primos mais
Eu creio que quando a sociedade tiver terminado essa velhos ou pelos amigos da família. Ninguém ousa dizê-lo,
nova organização ter-se-á terminado com nossa cultura atual. porque as vítimas dessas práticas vivem como culpados e,
Não haverá mais laço social fundado em um sistema de sobretudo, têm vergonha, ou ainda, quando se trata de moças,
obrigações coletivas, que faz com que cada um guarde um temem comprometer suas chances de casamento. Países
lugar para a frustração em sua aproximação do outro ou do inteiros praticam a política do avestruz, quando se trata dessa
impossível, e nós lidaremos com múltiplos núcleos tribais, perversão coletiva. E se abordamos as coisas com calma
invejosos de seus interesses e de seu poder. Talvez seja preciso pode-se dizer, sem ser demasiadamente severo, que cada u~
reconhecê-lo, o símbolo da civilização em devir é o muro. é responsável em seu nível e, sobretudo, que cada um é tanto
Jamais depois da Idade Média vimos tantos muros que se vítima quanto algoz.
erguem para separar o homem de seu semelhante. Essa hipótese coletiva anda junto com um repúdio feroz
O semelhante, o outro que poderia, por sua diferença, relativizar da homossexualidade e dos homossexuais como se no fundo
minha pertença, se afasta definitivamente para deixar o lugar não bastasse ser cego, também fosse preci;o ter org~lho disso'.
para o mesmo. Quando nos referimos à honra ou a Deus para banir a prática
sexual fora do casamento, é preciso evitar que Deus veja suas
Uma homossexualidade cultural latente proibições pervertidas e se encolerize por longo tempo.

Se definimos um homossexual como aquele que não


Quando o homossexual convém às normas sociais
deseja de forma alguma as mulheres, teremos dificuldades em
definir um heterossexual. O que dizer de um heterossexual Num trabalho notável intitulado "Valores familiares
que não destrata os homens ou que tem apenas uma ideia na homem gay e adoção na América", Ellen Lewin nos abre o;
cabeça, sodomizar as mulheres? Basta ler as revistas olhos para o número de fatos de natureza a fazer reconsiderar
especializadas ou escutar os testemunhos das mulheres sobre nossas posições quanto à adoção por homossexuais.
este assunto para se descobrir que esse fenômeno está longe Esse trabalho tem ainda mais mérito pelo fato de que ele não
de ser marginal. se deixa guiar a não ser pela escuta e pelo exame de realidades
Além disso, culturas inteiras criam universos baseados que as famílias fundadas por homossexuais lhe oferecem para
na separação entre os sexos, e então a homossexualidade se estudar.
122 Adoção e parentalidade: questões atuais 14 - Adoção e homossexualidade 123

companheiros podíamos ir jogar, dançar e beber até às três ou da ordem de 10% da população na Inglaterra. É ainda mais
quatro horas da madrugada. Gastávamos cem dólares cada difícil avaliar o número de adoções realizadas por pais
um com isso, levianamente.".7 homossexuais, que tendem a apresentar sua candidatura à
adoção como "pessoa sozinha".
Nada de educação nova, antes conservadorismo Há ainda uma grande resistência em confiar uma
criança a um casal homossexual em muitos serviços e agências
Se nos ativermos à amostra de Ellen Lewin, que é especializadas em adoção. Os candidatos se atêm a denunciar
composta de 44 casais de homens homossexuais, descobre-se essa discriminação e se inscrevem assim em uma espécie de
que esses homens nada têm de novo a oferecer às crianças militância necessária para fazer reconhecer seu direito à
fora do que eles mesmos viveram em sua própria família. adoção.
Muitos, completamente ultrapassados pelos acontecimentos, Muitos países (os Estados Unidos, por exemplo)
retornaram para sua mãe para lhe pedir receitas. proíbem a adoção por homossexuais. Essa proibição se funda
A homossexualidade como "subversão", como diz Roudinesco em algumas ideias que podem ser resumidas em três pontos:
em seu livro, não se verifica aqui. Ao contrário, esses homens - a confusão que muitos fazem entre homossexualidade
nos dão a impressão de se apoiar nas crianças que lhes foram e pedofilia;
confiadas para dar marcha ré, em direção ao lugar onde a - o medo de verem as crianças criadas por pais
criança supostamente está, no grupo social e nas tradições homossexuais se tomarem, por sua vez, homossexuais;
seculares. - a necessidade de oferecer às crianças dois modelos
Aliás, ali onde masculinidade rima mais frequentemente de identificação que lhes permitam se reconhecer em seu sexo
nos homossexuais como um body building, cada vez mais e se referir ao outro sexo enquanto terceiro que vem mediar a
instigado, e além disso com uma preferência pela vida no relação com a mãe ou com o pai. Em re~u1?o, vimos aí
exterior, a paternidade remete os homens para o interior, despontar uma referência à psicanálise e ao Ed1po.
o domicílio, onde eles descobrem a alegria de estar em família. No entanto , talvez seja preciso matizar nossas
Acontece de acreditarem que a criança e a responsabilidade formulações e admitir que qualquer proibição implica um certo
por sua educação os introduzem inevitavelmente na alteridade. arranjo com a lei. Em relação aos homens, as mulheres se
Isso me parece totalmente verdadeiro, visto que eles se beneficiam de uma maior tolerância como pessoas sozinhas
colocam de vez à disposição de uma geração a sustentar, em cujo lar se vai alojar uma criança. A mulher, como o homem,
com um futuro a lhe assegurar e preocupações que devem ser por vezes pode conseguir crianças em adoção no plano local
levadas em conta, à medida que as diversas instâncias que ou nacional, mas com a condição de aceitar adotar uma criança
interessam a qualquer outra criança e a seus pais lhes com dificuldades específicas. Todas as crianças que foram
interessam agora de igual modo. alojadas nos lares dos homens da amostra de Ellen Lewin são
crianças com problemas, por vezes problemas graves.
Uma "população marginal", uma adoção marginal Nas adoções nacionais, uma criança branca, uma
escolha de primeira categoria, geralmente é orientada para
É difícil fazer uma avaliação exata da população de
um casal heterossexual. Mas essa realidade pode também
homossexuais homens e mulheres na França. John Triseliotis,
apresentar alguns desvios, porque sempre há alguém que se
Joan Shireman e Marion Hundleby fornecem uma estimativa
beneficia de um favor ilícito. Um candidato homossexual tem
7
a possibilidade de recorrer à adoção internacional, e isso é
lbid., p. 137.
feito cada vez mais frequentemente. A candidatura de uma
124 Adoção e parentalidade: questões atuais 14 - Adoção e homossexualidade 125

pessoa sozinha pode encontrar resistência também no Reconsiderar as candidaturas


estrangeiro e ser orientada para uma criança com problemas.
Agora que está estabelecido que qualquer referência
Uma exceção importante se confirma em diversos
à orientação sexual de um candidato acarreta o risco de
estudos. Quer seja sozinho ou em casal, homossexual ou
invalidar o parecer de um profissional, é necessário colocar as
heterossexual, alguém pode ter o bebê branco que quer com a
coisas em termos diferentes. Uma candidatura é julgada pelas
condição de contornar a lei e pagar seu preço. E isso não é um
aptidões dos candidatos de assumir uma criança e de lhe
segredo para ninguém.
oferecer as condições requeridas para seu desabrochamento
e sua socialização.
Há lésbica e lésbica Julga-se os candidatos pela sua abertura, sua
capacidade de enfrentar as dificuldades, sua tolerância em
Em 1983, Golombok, Spencer e Rutter concluíram relação à criança e sua história, assim como pela qualidade
assim seu trabalho realizado com mães lésbicas: das relações que desenvolvem com o entorno familiar e social.
Partindo desse princípio, é possível levar em conta igualmente
Nós temos de parar de considerar as lésbicas como se o que, na orientação sexual de cada candidato, poderia
elas fossem todas iguais. Algumas (a maioria da nossa representar um risco potencial para a segurança da criança ou
amostra) tinham uma boa relação com os homens, ao para sua educação, pouco importa que seja um homo ou um
passo que outras tinham tendência a denegri-lo s. heterossexual.
Os autores creem que é a qualidade do laço que se enoda O exemplo que me ocorre, e que causou muita
no interior assim como exterior da família que determina a preocupação no psicólogo encarregado do caso, ilustra
educação da criança, e não a orientação sexual da mãe. 8 perfeitamente a natureza do mal-estar com que são
confrontados os profissionais encarregados dos dossiês dos
Os autores têm razão em insistir nisso, tanto mais que candidatos.
houve um tempo, não tão distante, no qual psicanalistas Trata-se de um casal constituído de um homem de
renomados consideravam que era impossível aceitar vinte e seis anos de idade e de sua companheira, mais velha do
homossexuais em análises. que ele, apresentada como mulher; era um transexual não
Em nossos dias, podemos afirmar que qualquer um de operado que havia adquirido um aspecto tão feminino que
nós tem homossexuais em análise e que aprendemos a ponderar enganava sem dificuldade as pessoas em seu entorno.
nossos julgamentos graças à experiência clínica que adquirimos O parceiro afirma ter vivido com ela oito anos sem ter-se dado
com eles. O homossexual, como heterossexual, pode ser conta de que dormia com um homem. Agora ele sabia e havia
histérico, obsessivo, perverso ou ainda psicótico. Nem todo aceito continuar a compartilhar sua vida com ela; eles estavam
homossexual é a "louca" que o cinema e o clube nos mostram. de acordo que ela se operasse e que eles adotassem juntos.
Nem todo homossexual rejeita o outro sexo ou faz dele um O psicólogo se pôs a questão se poderia mencionar a
inimigo a ser abatido. Trata-se de uma razão a mais para parar particularidade sexual desse casal sem que seu parecer fosse
de falar de homossexuais como de uma entidade homogênea. rejeitado sob pretexto de que qualquer alusão à preferência
sexual representa uma discriminação prejudicial em relação
aos candidatos.
8
TRISELIOTIS, J. ; SHIREMAN, J. ; HUNDLEBY, M. Adoption: theo,y,
policy and practice. Op. cit. , p. 220.
126 Adoção e parentalidade: questões atuais

O caráter particular dessa situação não aparece como


uma razão suficiente para rejeitar a candidatura desse casal.
E se, apesar de tudo, o profissional decidisse pela rejeição,
que razão seria preciso invocar para que o conteúdo de seu 15
parecer não fosse contestado na eventualidade do casal decidir
recorrer?
Será que nos envolvemos com tantas precauções
quando se trata de um casal heterossexual, perverso, por O sujeito é a hipótese de um
exemplo? Pode-se considerar uma candidatura inaceitável se Outro materno
as entrevistas psicológicas permitem desvelar um perigo
potencial para a criança, e isso jamais deveria fazer um
profissional hesitar.

A trindade não é uma família humana

A psicanálise de crianças pequenas nos confronta


inevitavelmente com a ideia principal deste livro, quer dizer,
com a ideia do que constitui família para um ser humano.
Ela coloca em jogo a história da encarnação do Outro matemo
e do advento do verbo. Um tema, pode-se imaginar, que não
deixa de ter relação com a Sagrada Família.
Se eu a evoco aqui é porque me ocorre uma
formulação lacaniana que diz: "A religião católica é a única
verdadeira religião". E nisso, Lacan introduz uma virada em
relação a Durkhein, que afirma que todas as religiões são
verdadeiras. "Verdadeiro" quer dizer que todas as religiões
são o reflexo da verdade dos crentes, ao passo que Lacan se
referia, creio eu, à noção da Trindade e da encarnação de
Deus e do verbo na pessoa de Jesus, e, sobretudo à incorporação
do pai como primeiro elemento de identificação.
A Trindade, de fato, são quatro. Se a mãe se
acrescenta como quarto termo, ela aí está enquanto carne.
Sem esta carne, a encarnação do filho não ocorreria, e a
Trindade jamais teria acontecido para os homens. "Quando
ele se faz homem, Deus deve ter uma mãe humana, mas não
há nenhuma feminilidade, nenhuma maternidade em Deus."'

'AGACINSKI, S. Métaphysique des sexes. Paris: Seuil, 2005, p. 83.


128 Adoção e parentalidade: questões atuais 15 - O sujeito é a hipótese de um Outro materno 129

É preciso que a cria humana encontre uma mãe existir à imagem da Sagrada Família, visto que esta elimina o
sexual para manter sua vinculação com Deus como origem e
Talvez já se possa ver aonde eu quero chegar. vontade ao mesmo tempo . O sexo então aparece como
Para que o sujeito humano advenha e para que o verbo se condição da renovação das gerações, e ali, onde há o sexo,
tome carne, é preciso que a cria humana encontre uma mãe. nós encontramos a alteridade e a morte.
Mãe, aqui, não remete necessariamente a geradora. Que ela o No entanto, reduzir a família humana a esses três
seja ou não, ela oferece para a criança a encarnação de seu componentes: homem, mulher e sexo, seria simplista. Aqueles
primeiro Outro matemo. Sem esse Outro, o desti~o d~ cria que trabalham no quadro de alocações familiares ou de adoção
humana nada teria a invejar às outras espécies vivas , sabem que falta a esses três componentes alguma coisa
uma vida que seria difícil de narrar. fundamental para que o núcleo familiar ganhe forma e se
Em razão disso, a psicanálise de crianças pequenas mantenha. E talvez seja nesse plano que o registro do simbólico
nos remete aos ingredientes que compõem a Sagrada Família, apareça com uma importância primordial.
visto que forçosamente lida com o sujeito e seu advento em . Trabalhar com a criança pequena nos confronta com
um pequeno ser, na carne e em sua simbolização na linguagem isto: "No começo era o verbo". Dizer "no começo" nos obriga
humana e no verbo e em sua articulação na fala de modo a distinguir o verbo da linguagem. O verbo que preside o
singular. Em resumo, lida-se com tudo aquilo que dá à família advento do sujeito não é o verbo de ninguém. Ninguém pode
humana seu valor simbólico e sua representação física e afetiva pretender encarná-lo, ao menos fora da acepção religiosa, como
ao mesmo tempo. já disse. Assim, dizer como Dolto que o sujeito já está sempre
A questão que se impõe é a seguinte: De onde vem a ali, exige de nós uma posição clara. Ele está ali à medida que
família humana, de que garantia ela tira sua legitimidade? isso fala, e enquanto isso fala, a linguagem é o que preside a
Em outras palavras, a imagem da Sagrada Família é constituída chegada do sujeito humano. A criança está ali antes do seu
à imagem do Criador? Ou ela oscila entre uma visão platônica, nascimento, carregada pelo discurso das gerações que a
que dá à virilidade do homem uma dimensão ascética pelo fato precedem, dando à sua concepção uma história que transcende
de seu parentesco com Deus, e uma visão aristotélica, que faz a história individual dos seus pais.
o homem um macho no processo biológico das gerações? "Ninguém encarna esse verbo" significa dizer, para
nós psicanalistas, que o Outro nada mais faz do que ek-sistir,
O sexo é a alteridade quer dizer, ele está sempre fora, como escreve Lacan.
Eu mesmo diria que é pura e simplesmente uma hipótese que
Por mais bizarro que isso possa parecer, deve-se a
vem no momento oportuno encontrar apoio em todo processo
Santo Agostinho uma posição interessante que nos permite
de transitivismo que o Outro materno garante para a criança.
considerar o estatuto do Outro materno sem, no entanto,
Em outras palavras, o sujeito não tem garantia. Há apenas
confundi-lo com o estatuto da Virgem Maria. Ele nos diz que,
alguns que o colocam como hipótese e correm o risco de
se mãe há nos dois casos, é preciso, sobretudo, não confundir
sustentá-lo porque creem nisso, guiados por seu desejo, pela
o feminino gramatical, Maria, e o feminino sexual que é o caso
criança e por seu parceiro sexual. E é justamente porque o
de toda mulher mãe. 2 O sexo é então a alteridade por
homem, como a mulher, está tomado duplamente por seu desejo
excelência. E, em consequência, a família humana não pode
que a família é uma história a três que implica um texto, uma
modalidade de corte nesse mesmo texto e uma leitura singular.
2SANTO AGOSTINHO. De Trinitate, livre XII, apud AGACINSKI, S.
Métaphysique des sexes. Op. cit. , p. 103 .
130 Adoção e parentalidade: questões atuais 15 - O sujeito é a hipótese de um Outro materno 131

A história familiar A responsabilidade do sujeito

De que texto nós falamos? Desde antes do nascimento O corte que se opera em um texto a fim de fazer nele
de seu filho , ou ainda antes de sua adoção, os pais gostariam seu pr~prio lugar constitui uma operação singular, que Lacan
que ele fosse isso ou aquilo, que ele parecesse com tal ou tal deno_mma de destino. Isso quer dizer que ninguém pode se
pessoa de sua história familiar, ou, sobretudo, não com tal outra. considerar corno não responsável. Ninguém tem o direito de
Gostariam que ele seguisse tais estudos, tal ofício etc. Assim, s~ promulgar _inocente. O corte que cada um opera no texto,
a cria humana tem de lidar com os mandamentos que exigem digamos no discurso que preside o seu nascimento é a marca
dela se conformar, obedecer e pensar segundo o que se de seu_desejo de sujeito. Pouco importa a família q~e se tenha
considera ser seu bem. Em resumo, tem de lidar com o ou a lmhagem à qual nós pertencemos, cada um de nós se
narcisismo de seus pais, que raramente se deixa preencher encontra_nela, mas sempre de um modo singular.
pela criança da realidade. E preciso ser três para fazer uma família com
Todo relato familiar é esse texto, e isso nos ajuda a nos melhores dos casos, um homem, uma mulher e uma criança'.
compreender por que a violência entre as gerações permanece "Três" não remete obrigatoriamente a três pessoas fisicamente
sempre uma realidade. Eu designo por essa violência os presen~es. no ~esmo lugar, no lar familiar, por exemplo.
desacordos dilacerantes entre pais e filhos , ou ainda entre O tercerro unphca o lugar do Outro, o lugar da linguagem, vindo
adultos e jovens. "Em nosso tempo", dizem os adultos enquanto terceiro em tudo o que constitui laço entre os dois
nostálgicos de um não sei quê que seria um mundo melhor. sexos , ou entre as gerações. É por isso que a família
Ao ouvir os adultos falarem dos jovens, tem-se a impressão de monoparental não existe. Urna mulher ou um homem sozinho
que não se vive mais no mesmo planeta. A "violência dos jovens" que cria uma criança não é urna família monoparental.
é frequentemente evocada para desqualificar seu mundo ou o A monoparentalidade existe, certamente, mas corno entidade
mundo no qual se vive, ao passo que a violência sempre foi sociológica. Ela não existe no plano psíquico, a não ser corno
aquela do adulto dirigido para as crianças e jovens. O mito de mito original , como quando se diz, por exemplo: "Na origem,
Édipo é uma boa ilustração disso. Ele nos diz suficientemente Deus fez o homem à sua imagem". Ou quando se narra um
para nos levar a compreender o que a exposição das crianças conto: "Gepetto fez Pinóquio". Tal monoparentalidade oculta
queria dizer. "Teu filho te matará e se casará com a sua mãe". a diferença dos sexos e faz da função paterna ou materna um
Eis a base dessa violência, uma história de sucessão de caso de poder criador, de saber prático ou de direito. Tais contos
gerações sempre mal vivida. O exemplo típico dessa sucessão
~~s reúnem. Eles são feitos à nossa imagem, ou, antes,
impossível das gerações se encontra no relato de Branca de a 1_rnagem desse impossível de se resolver que é a questão da
Neve. Quando o espelho anuncia à mãe que ela não é a mais
ongem. Fazemos isso quando contamos histórias para nossos
bela, a mãe se sente destituída e quer decididamente acabar
filhos. Frequentemente, essas histórias começam por: "Era uma
com sua filha. vez ...". As crianças aceitam esse "era urna vez" como um
Em resumo, é sempre uma história de narcisismo
tempo a~erto e nunca perguntam quando isso aconteceu.
ferido, da promessa não sustentada e de filiação maldita ou
E justamente isso que faz com que uma criança seja
megalomaníaca. É uma história que as gerações se transmitem.
humana e que toda criança tenha direito a uma família.
Ela é tão verdadeira quanto falsa. E isso não muda em nada
Em contrapartida, um homem, uma mulher ou um casal não
seu impacto sobre nossa vida. Além disso, qualquer referência
ao passado comum, quer seja nacional, comunitário ou familiar, po~em aspir~r o direito de ter urna criança. A criança antes
esta concerrnda ao desejo inconsciente de um adulto exposta
clama aos mesmos ingredientes: a memória, as narrativas,
ao outro sexo.
os mitos e um ancestral comum real ou suposto.
Adoção e parentalidade: questões atuais 15 - O sujeito é a hipótese de um Outro materno 133
132

O amor não constitui a família nos livros. Homens e mulheres se põem a despejar seu saber
e a colocar em dúvida as referências do outro parceiro.
O amor da criança sozinho não constitui família. Cada um sabe por si e pelo outro e garante assim um papel
"Nós amamos nossos filhos", ouvimos frequentemente dizer polivalente. Nenhum confia na intuição do outro e nessa alguma
no contexto da adoção ou das alocações familiares. O amor coisa que especifica seu desejo ligado à sua identidade sexual.
da criança não é necessariamente o desej? da cri~nça. Podemos afirmar que essa situação não é rara.
"Amar uma criança" torna-se, no discurso de muitos candidatos A adoção internacional oferece oportunidades que as adoções
à adoção, 0 contraponto da parentalidade. "Basta amar", s!m, nacionais não oferecem ou não oferecem mais. A mono-
mas que amor? Pode-se amar uma c_riança como su~ ~01sa, parentalidade é o caso mais frequente. Um exemplo entre
como seu repúdio da castração ou atnda como seu odto ao outros é o caso de uma senhora que chega em meu consultório
outro sexo. A parentalidade se inscreve nessa zona vaga do com um jovem adolescente violento, adotado com a idade de
amor. Para mim, não há parentalidade, há uma função paternal três meses na Bolívia. Essa senhora, completamente perturbada
ou maternal, e essa função se legitima para um home~ em pela situação, me disse: "Eu jamais soube de que modo legitimar
seu desejo por uma mulher, e para a mulher em seu deseJO por minha situação familiar".
um homem. E é justamente por isso que o Outro materno e ao Sim, o que legitima nossa função de pai ou mãe junto à
mesmo tempo corpo carnal e corpo de desejo. Ele _e~tá criança? Nosso desejo de criança? Nosso desejo pela mulher
duplamente implicado: inicialmente com_o corpo que_rarttc1pa ou pelo homem que nos reconhece em nosso desejo por ela ou
da satisfação das necessidades de uma cnança e que e tambem por ele e pela criança? Ou ainda esse algo que escapa a ambos,
0 que verdadeiramente está em jogo no gozo ~o~um ent~e porque a chegada de uma criança é tudo, salvo uma questão
mãe e criança, e em seguida como fala que a d1v1de. A mae de domínio e de cálculo? Eu diria que legitimidade advém ao
fala e sabe antecipar o desejo de sua criança, certa~ente, casal por estas três disposições, e é por isso que escrevi acima
mas esse saber se inscreve como faltante. Alguma co1Sa lhe que é preciso três para fazer uma criança. O terceiro é o lugar
escapa definitivamente, seria apenas sua i~P?~sibilidade de do Outro.
saber sobre O gozo de um homem, e a imposs1b1hdade de saber Em síntese, nada nos diz que uma família tem uma
para um homem sobre o gozo de uma mulher. Esse não saber garantia. A adoção é uma aposta na família. É uma aposta
depende da castração simbólica de cada sexo. A ainda mais crítica quando a adoção resulta de um fracasso,
A parentalidade, na concepção contemporanea, leva justamente aquele da família. A família biológica, aquela que
a crer que qualquer homem ou qualquer mulher dá conta do se legitima em princípio por um laço que se pretende
caso, desde que se ame a criança. . indefectível, o laço de sangue, se revela para uma dada criança,
Não basta colocar duas gerações Juntas para fazer em um dado momento, incapaz de sustentar sua posição. Pai e
uma família. A experiência clínica nos ensina que quando uma mãe, as duas referências idealizadas de nossa cultura no tocante
criança é colocada em um casal sem ser desejada por um dos à sua estrutura de base, a família, não colam automaticamente
parceiros sexuais, ela corre o risco de se confr~ntar co~ a a um homem ou a uma mulher que geram juntos.
indiferenciação dos sexos e das funções no pai e na mae. A adoção cria os pais à medida que o casal chega a
Quantas vezes nós vimos chegar casais com criança~ que sustentar uma criança. Um casal e uma criança criam a família
funcionam na confusão total de seu lugar na educaçao do pelo próprio fato de que aqueles fazem a aposta do sujeito em
pequeno? Homens e mulheres agem ~o~o se o educ_ar seu bebê, e que este último faz a aposta de seu Outro,
dependesse inicialmente de um saber pedagog1co que se adquire ao menos de seu Outro matemo.
134 Adoção e parentalidade: questões atuais 15 - O sujeito é a hipótese de um Outro materno 135
A família como conhecemos tende a se marginalizar Permaneçamos zen, o impossível se imporá sempre
Entre adoções, alocações familiares e crianças de Deus criou o homem à sua imagem. O rabino poderá
vários leitos, a família vive mutações inesperadas. Em nossos sempre me contradizer, referindo-se a tal ou tal interpretação.
dias, as famílias são de tal modo recompostas que não se sabe Certamente ele terá razão nisso. Mas o que quer dizer para
mais como denominar os laços que unem numerosas pessoas mim "à imagem de ... "? Única referência possível: o Outro,
sob o mesmo teto. Assistimos diariamente a invenção de novos que acima eu denominei materno e que é o espelho vivo da
significantes para preencher o vazio e criar laços simbólicos. criança. Meninos e meninas são confrontados com sua própria
Isso sempre foi assim. Os historiadores e os antropólogos imagem no espelho e com o fato de que os dois sexos estão
realizaram nesse domínio um enorme trabalho que nos permite submetidos ao mesmo impossível: o impossível para a imagem
compreender como os homens sempre trabalharam para do corpo de ser virtualmente inteira. O falo falta na imagem
compensar no plano simbólico aquilo que o real tende a lhes do corpo, porque não é virtual. Meninos como meninas têm de
impor - ou a modificar em relação ao que eles fizeram ou lidar com essa falta e com sua inscrição na economia psíquica
conheceram. O livro de Maurice Godelier, Metamorfoses da como castração. É o preço a pagar para um homem ou para
parentalidade3 , nos dá uma ideia clara disso. uma mulher por encontrar-se no desejo pelo outro sexo e no
Parece que o atual estado de pânico que suscita a desejo de criança. O pênis não é um falo. O falo é apenas um
modificação da estrutura familiar clássica é por vezes significante que vem mediar a assunção por cada um de seus
exagerado. Nós temos de considerar as coisas com um pouco sexos. "À imagem de" implica então o registro do simbólico,
mais de lucidez. e é por isso que os significantes da mãe representam uma
A família evolui, e no ritmo em que as coisas vão, temos pedra que ela extrai da pedreira simbólica que estava lá antes
diante de nós uma incógnita, que exige uma abertura de espírito dela, e que ficará até que um homem fale e se faça
e uma análise minuciosa de nossa cultura, na qual a família compreender por um outro.
sempre ocupou um lugar primordial. A família apresenta um
dado novo que se torna incontornável: a tendência do casal a
não durar. Ela é seguida da tendência a confiar a guarda da
criança à mãe após a separação do casal, e finalmente do
crescimento de adoções por um dos pais sozinhos,
frequentemente a mãe. "A mulher é o futuro do homem", dizia
o poeta. O poeta tem total razão à medida que a evolução
familiar atual, em nossas sociedades ocidentais, está em vias
de se encaminhar para uma matrilinearidade, à imagem do que
se conhece nas Antilhas e em muitos outros lugares. Isso é
uma coisa ruim?


3
GODELIER, M. Metamorphoses de la parentalité. Paris: Fayard, 2004.
16

Ninguém é inocente quanto à sua vida

Eu recebi uma jovem mulher oriunda da África,


adotada com alguns meses por uma família branca residente
em uma pequena cidade do interior, onde ela geralmente se
encontrava como a única menina negra de sua escola ou de
sua cidade. A família tinha um filho biológico, um ano mais
velho do que ela. A mãe, tendo sofrido muito durante sua
gravidez e no parto, não queria repetir uma experiência que
havia sido traumática para ela. O casal se orientou para a
adoção como uma solução de mal menor.
Assim Florence chegou de sua África natal para
arriscar a vida na França, em uma pequena cidade branca.
Ela não passava despercebida. A qualquer lugar que fosse,
a família despertava a curiosidade de todo mundo. Na escola,
desde a classe maternal até o segundo grau, professores e
professoras só tinham olhos para essa menina, cada um
querendo vê-la ter sucesso e se revelar a filha digna de
seus pais.
Ora, quanto mais se interessavam por ela e por sua
escolaridade, menos ela trabalhava. Quanto mais queriam fazer
dela uma filha modelo, mais ela se mostrava africana naquilo
tudo que o africano provoca como preconceito negativo em
uma sociedade branca. Para coroar tudo, seu irmão, de sua
parte, prosseguia com uma escolaridade brilhante, o que acabou
por impor a crença em sua ordem genética, na qual a
superioridade da raça branca não deixava nenhuma dúvida para
os pais.
Quanto mais o irmão tinha sucesso, mais Florence se
enfumava no fracasso. Ela não perdia nenhuma ocasião para
138 Adoção e parentalidade: questões atuais 16 - Ninguém é inocente quanto à sua vida 139

fazer fracassar qualquer tentativa dos pais de tirá-la desse para ser adotada e muito menos para viver na França.
marasmo. Teriam dito que ela adquirira um prazer maligno em Ela sabia que tinha mais dinheiro e mais oportunidades na
decepcioná-los e em fazê-los sofrer. Essa situação durou muito França, mas nada lhe indicava que sua vida era melhor aqui.
tempo, pois mesmo quando ela veio me ver, aos vinte e cinco Na África tem-se menos dinheiro, mas isso não significa que
anos de idade, seus pais não encontravam nenhuma graça nela. se é menos feliz.
Ela bancava a africana. Ela dava a entender que a haviam Qual era essa parte de felicidade que teria sido perdida
adotado simplesmente para se afirmar na pequena sociedade por ter sido transplantada? Impossível para ela nomeá-la.
burguesa provinciana. "Vocês têm coragem", comentavam os Ela precisaria viver na África para poder avaliar seu verdadeiro
vizinhos com os pais, sobrecarregados pelos problemas de valor. Os próprios africanos não sabiam também dizê-lo. Então,
comportamento que Florence apresentava na escola e em por não saber, ela entrava na vida deles para ver com o que
sociedade. "Não se pode fazer de uma negra o equivalente a isso se parecia. Mas, de fato , quanto mais ela se familiarizava
uma branca", se apiedavam aqueles que menos toleravam sua com esses indivíduos, mais descobria que não podia mais se
presença entre as crianças. Quanto mais coisas dessa ordem identificar completamente ao que eles diziam ou faziam.
se diziam a seu respeito, mais ela procurava dar-lhes razão. Pior ainda, havia momentos em que o que ela via a chocava.
Ela batia em seus colegas, roubava na casa de seus pais, Isso lhe dava um sentimento de seu ser superior, de uma
como na casa dos outros, discutia com seu irmão a fim de lhe superioridade que lhe vinha de sua vida com os brancos.
aborrecer, em resumo, a lista de suas travessuras era longa. E é justamente aí que a porca torce o rabo. Ela tinha os meios
Ela tinha um projeto que guardava no coração. materiais para viver como os brancos, mas ela não se sentia à
Ela queria ir embora para a África, para o país de seu vontade em sua sociedade. Ela se sentia superior aos negros,
nascimento à procura de suas origens. Até então, a origem mas inferior aos brancos. Ela não podia mais ter um cônjuge
tinha para ela apenas uma única expressão, o encontro irrisório, negro, mas os brancos lhes davam a impressão que não a
e até mesmo degradante, com homens negros. Tratava-se quenam, ao menos como esposa.
frequentemente de indivíduos que viviam de expedientes, Sua adoção pelos brancos representava, a seus olhos,
e alguns tinham conseguido arrastá-la para práticas torpes e um verdadeiro impasse.
sobretudo perigosas. Por que se sentia em dívida com seu país de origem e
Para ela, sua história familiar era conforme a imagem seus genitores e ao mesmo tempo recusava qualquer sentimento
dos africanos marginais residentes clandestinamente na França. semelhante em relação à sua família de adoção? Por que
Ela se dedicava a partilhar sua vida; para ela, era um modo de aqueles que abandonam você permanecem para você tão
ser solidária com seus pais de nascimento. A seus olhos, presentes, ao passo que os pais da realidade, que jamais
a miséria dos africanos encarnava suas origens, e ela ia em fraquejaram em sua sustentação, apesar das dificuldades,
direção a eles, esperando encontrar alguma coisa de sua vida merecem tal desprezo?
de criança. Além disso, nutria uma esperança secreta: deduzir A primeira resposta que me ocorre é aquela da criança
da vida desses homens e mulheres o trajeto típico que lhe de pais divorciados. É sempre o pai da realidade que mancha
forneceria elementos sobre o que seu trajeto pessoal de mulher a história. O outro, aquele que a acolhe no fim de semana ou
africana poderia ter sido. nas férias se sai melhor. Um tem de administrar o cotidiano,
Sua pele negra lhe conferia, a seu ver, um destino a frustração que o cotidiano produz, o outro é dispensado disso.
africano, um dentre muitos outros que deixaram seu país por Isso que frequentemente é vivido como uma injustiça pelo pai
vontade própria ou à força. Dizendo isso, ela tinha tendência da realidade cotidiana é de fato o preço a pagar, não pela
de se classificar em segunda categoria. Ela não havia pedido criança, mas pelo desejo de ter querido sua guarda.
140 Adoção e parentalidade: questões atuais 16 - Ninguém é inocente quanto à sua vida 141

A segunda resposta que eu arrisco é de outra natureza. eles. Eles foram à África para me buscar, e o fato de vê-los se
A dívida que se tem em relação a seus pais de nascimento obstinarem em querer me ver ter êxito na escola e na vida me
deveria ser contada como uma dívida de vida? Se sim, jamais dava a impressão de que eles queriam dispor de mim como de
alguém pode vir a ocupar esse lugar aos olhos da criança uma coisa sua. Isso jamais me passou pela cabeça a respeito
adotiva. A dívida que ela sente em relação àqueles que a do êxito de meu irmão. Eu sempre achei normal que ele tivesse
criaram seria compensada pelo fato de que eles obtiveram uma êxito.
criança que não tiveram. No primeiro caso, a dívida a implica Eu: Recusando a doação, você continua esse mesmo
enquanto sujeito a respeito daquela que lhe deu a vida, ao passo combate. Você não quer que eles sejam para você pais como
que, no segundo caso, ela se conta como o objeto de satisfação todo o mundo, inscrevendo a você na partilha da herança
de um casal privado de criança. familiar.
Na minha opinião, é nesse espírito que é preciso A te~ceira resposta decorre, em minha opinião,
entender a observação de Florence, quando ela diz que ela da segunda. E dificil compreender a natureza do amor para
"não pediu para ser adotada". Na época, seu pai tinha a intenção uma criança que não se fez, ao passo que aqueles que a
de lhe fazer uma doação; como ela era coerente consigo colocaram no mundo não souberam manter a sua guarda e
mesma, ela recusou seu gesto, dizendo que ela não aceitara criá-la. Como a criança que nós éramos poderia ser amável
seu dinheiro porque ela não o reconhecia como pai. ou não amável ao mesmo tempo? Em outras palavras, qual é a
Eu: Você não pediu para ser adotada, mas como você particularidade da criança adotada que faz com que ela possa
pode estar certa de que você pediu a seus genitores para suscitar tanto a repulsa quanto o amor?
nascer? A tal ponto a investigação da criança adotada diz
Florence: Porque eu estava lá. respeito ao ato de seu abandono ou aquele de sua adoção que
Eu: Você sempre me responde com essa certeza porque essa se coloca como objeto. E a tal ponto ela vê as coisas
você assumiu o risco de viver. desse ângulo que qualquer resposta permanece insatisfatória,
Florence: Sim, eu respondo de meu lugar de viva. porque ela não implica sua responsabilidade de sujeito em seus
Eu: Se você correu esse risco é porque você não estava atos. Eis como essa responsabilidade se apresenta. Se o
sozinha. abandono não a matou enquanto sujeito de desejo, é porque a
Florence: Sim, como todas as crianças. cria humana aceita sofrer uma perda sem se deixar' no entanto ,
Eu: Como todas as crianças. Nesse plano então você perder. Ela tem fé, de algum modo, nos que a cercam e que
não teve menos chance do que seu irmão, por exemplo. Tanto cuidam dela. Ela sabe fazer aposta em um Outro matemo que
um como o outro, vocês foram apoiados por esses pais para será o seu próprio, à medida que ela enoda com ele um laço
crescerem e se tornarem a mulher ou o homem que privilegiado. O trabalho com as crianças de berçários nos revela
vocês são. que cada bebê escolhe seu Outro matemo, e que essa escolha
Florence: Sim, é verdade. Eu não posso dizer que eles por vezes se faz sem que o adulto dê um passo em sua direção.
faziam a menor diferença entre nós. O bebê pode se deixar levar pela prosódia da voz de uma
Eu: Sim, há uma diferença. Seus pais não podiam criar cuidadora e agir como se essa pessoa se endereçasse a ele
uma criança como se se tratasse para eles de um segundo cada vez que a ouve falar. Nós conhecemos cuidadoras que
menino. É aí que está toda diferença. deixavam muitas crianças calmas com sua simples presença.
Florence: Eu jamais lhes dei a oportunidade de terem Elas não faziam, entretanto, nada de especial para ocupar esse
êxito comigo. Eu tinha a impressão de que eles faziam isso por lugar de escolhidas por esses bebês, mas algumas delas,
142 Adoção e parentalidade: questões atuais

sem que soubessem, faziam com que recebessem o apelo


desses bebês e, em retorno, os pequeninos se sentiam
reconhecidos em seu ser singular.
A criança introduz assim sua responsabilidade no ato
de sua adoção. É por isso que eu escrevi , em meu livro Conclusão
A criança adotiva e suas familias, que não há apenas os pais
que adotam.
Talvez seja nesse plano que o trabalho de Brodzinsky,
Schechter e Henig podem nos ajudar a compreender alguma
coisa desse esforço, por vezes vão, que os pais adotivos de Após a adoção começa a vida em família, que jamais
uma parte, e as crianças adotadas de outra, fazem uns na é um longo rio tranquilo, pois nada, nenhuma precaução,
intenção dos outros. Eles escrevem que, quando a criança nenhuma ciência ou saber prático pode nos prevenir contra o
adotiva coloca a questão "Quem sou eu?", ela realmente está risco que viver junto comporta. Os testemunhos de crianças
em vias de colocar uma dupla questão. Sua questão não é adotivas e de suas famílias são múltiplos e por vezes
para ela saber que ela é, mas que ela é em relação à adoção. 1 contraditórios. A felicidade de estar em família como o pesadelo
"Quem é em relação" é a fórmula que retorna em que isso pode representar não justificam nem rejeitam esta
diferentes formas. Trata-se, na minha opinião, apenas daquele última.
mandamento que os visitantes do templo de Zeus recebiam O núcleo familiar é algo que mantém cada um de nós
cada vez que ali penetravam: "Conhece-te a ti mesmo". no que é mais secreto e mais íntimo, e faz com que nós sejamos
Isso quer dizer para mim: "Homem, quem quer que tu sejas, pai ou mãe de uma criança que vem ocupar um espaço que se
de onde tu vens, tu deverias saber uma coisa: tu és mortal". abre entre nós, muito antes de tê-la encontrado. Por essa razão,
a criança da realidade, quer seja adotada ou biológica,
é reconhecida naquilo que nos habita e que nos põe em marcha
para ir a seu encontro na realidade. Isso é chamado de o desejo
de criança, nosso desejo de homem ou de mulher que se
concretiza por ser legitimado pelo desejo do outro parceiro
sexual. E quando é o caso, a criança, pouco importa seu estatuto,
ocupa o seu lugar, o lugar da criança que os pais conceberam
ou adotaram juntos.
Mas o que se chama "bons pais"? A única resposta
crível que eu posso oferecer é que eles não são suficientes.
Em outras palavras, eles sabem que não podem preservar sua
prole de todo imprevisto ou de toda frustração. Eles ainda sabem
que eles estão ali para sustentar sua criança, sem poder em
caso algum viver a vida dela em seu lugar. Eles são responsáveis
por ela, responsáveis por sua integridade física e moral,
responsáveis por sua educação, mas resta alguma coisa que
1
TRISELIOTIS, J.; SHIREMAN, J.; HUNDLEBY, M. Adoption: theory, só incumbe à criança quanto à responsabilidade por sua vida.
policy and p ractice. Op. cit. , p. 123.
144 Adoção e parentalidade: questões atuais Conclusão 145

A responsabilidade por sua vida é fundamental. E, no entanto, essa questão é simples: "O que eu perderei se
Ela representa a pedra angular do edificio da adoção. O sucesso eu adotar esses pais, os pais da realidade?". A resposta é muito
da adoção não se reduz ao amor ou à energia que os pais simples: "Ela perde os outros".
adotivos dedicam à sua criança, assim como o fracasso da Seu mal-estar é o que há de mais comum nos homens,
adoção não é imputável à rejeição do jovem adotado. Em um o mal-estar que qualquer cultura engendra ao nos forçar a
caso como em outro, nada libera a criança de sua aceitar uma perda. Perde-se seu primeiro objeto de amor,
responsabilidade de ter aceitado o risco de viver. . perde-se seu paraíso, e a queda do anjo é a nossa condição
Dizer isso com tal força pode parecer suspeito. humana.
Pois como definir essa responsabilidade? Ninguém pode Perde-se a mãe de nossa primeira infância, aquela que
responder a essa questão. Sabemos que temos de contar com sabia de nós, perde-se o pai de nossa primeira infância, aquele
nossas dificuldades e que esse é o quinhão de todo mundo. que era o mais forte e, ao crescer, nós nos encontramos frente
Contudo, existem dificuldades maiores que entram em ação aos nossos pais da realidade, pais comuns, por vezes dificeis;
com a chegada de uma criança no mundo. Milhões de crianças e, se eles se revelarem falhos, isso não se deve ao fato de que
morrem ou ficam prejudicadas por toda a vida por causa delas. são adotivos.
E aí, como definir a responsabilidade da criança? Para acalmar Contudo, essa questão esconde outra. A criança adotiva,
sua dor em relação à morte das crianças , os homens como muitas crianças abandonadas, é amputada da história de
encontraram uma resposta. Eles desenvolveram a crença de sua origem. Como narrar sua história a alguém nascido após o
que uma criança que morre se toma um anjo no céu. dilúvio, ou que caiu do céu, transportado pelas cegonhas
Essas dificuldades objetivas por vezes justificam o modernas, os aviões?
desejo de adoção nos candidatados. Esses são animados pela Sabemos que uma narrativa familiar estaciona na
ideia de dar uma chance a uma criança que não teve a de ter terceira ou na quarta geração e que o resto depende muito
nascido em um bom lugar e em uma boa família. Acontece-lhes mais da ficção do que da realidade. Mas isso não atrapalha
às vezes de ir procurar longe e de zelar sinceramente por ela. ninguém. Sabemos perfeitamente que qualquer narrativa
Encontramos tais pais, e pudemos medir sua dor quando eles atinente à origem é necessariamente ficcional, porque não existe
descobriam que mesmo o sentimento mais nobre e a atenção origem, a não ser perdida. Mas o que fazer quando a origem
mais autêntica necessariamente não salvam aqueles que eles se perde na primeira geração? O que fazer quando não se
acreditavam socorrer. está em condições de se referir a alguma coisa que nos ajude
Como explicar isso à criança adotiva? Como lhe dizer a descolar do momento presente para reatá-lo ao passado?
que ela perdeu seu paraíso , seu país ou sua família de Erra-se ao procurar uma família universal que faz de cada
nascimento para se encontrar em outra terra e que tem de se homem e de cada mulher pais potenciais.
instalar nela e aprender a viver e a construir? Ela, como suas "É preciso narrar sua história a uma criança", ouvimos
próprias crianças, deve receber outro nome, falar talvez outra frequentemente ser dito a respeito de crianças adotivas. Uma
língua; esses são o sinal de uma nova pertença, mas também o história não é a verdade da criança que se adota, ainda menos
sinal de uma ruptura. Desse lugar, a origem, apenas nossa quando não possuímos elementos confiáveis sobre sua primeira
palavra pode testemunhar, e ao se falar disso acaba-se por família ou seu nascimento. As crianças adoram as histórias.
construir ficções coletivas e individuais que geralmente nos Elas pedem e retêm frequentemente uma história, que elas
satisfazem. conhecem de cor; é essa história que elas querem. A verdade
Quanto mais a criança adotada questiona a respeito se diz entre as linhas de uma narrativa. Ela se diz entre as
do que constitui família para ela, mais ela suscita o mal-entendido. palavras, os sons, na melodia da voz materna ou paterna.
146 Adoção e parentalidade: questões atuais

A adoção é inicialmente a adoção da voz materna e cn


Q)
de sua prosódia. A adoção é efetiva a partir do momento em
que a criança faz do "não" do pai um acolhimento que modela
io
o
seu próprio apetite em uma relação que se quer exclusiva com ro
+J
a mãe.
Uma narrativa é historicizada quando ela transporta a
o
e
criança, oferecendo-lhe aquilo que a ajuda a construir suas <(
ficções. Uma narrativa não precisa ser verdadeira no sentido
do acontecimento e da história para ressoar na criança, é
verdadeira à medida que suscita nela uma escuta e uma
demanda que se renovam, especialmente quando a criança
está na fase de construção de suas ficções.
\M7
tDITORft
Perfil das publicações da CMC Editora

Nossas publicações são em quase sua maioria traduções


de obras francesas. Cada livro proposto é publicado a partir do
parecer, do aval e da contribuição de um conselho científico
próprio para cada obra , buscando resguardar critérios de
pertinência e especificidade da mesma .

No ano de 2009 duas publicações da CMC Editora


receberam a Chancela de 'França.Sr 2009' Ano da França no
Brasil: Para introduzir à psicanálise nos dias de hoje de Charles
Melman e Clínica da instituição de Jean-Pierre Lebrun .
Nazir Hamad é doutor em
psicologia clínica, psicanalista,
Conheça nosso catálogo : com sua clínica em Paris,
www.cmceditora.com.br diretor de um Centro Médico
Psicopedagógico em Essone.
Ele trabalhou com Françoise
Dolto, com a qual publicou
Destinos de crianças (Gallimard,
CMC Editora 1995). Ele é membro da
Praça Marechal Deodoro, 130/802 Association Lacanienne
CEP: 90010-300 - Porto Alegre - RS lnternationale.
(51) 3062.0522
cmceditora@cmceditora.com .br

Vous aimerez peut-être aussi