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NITERÓI
2012
CONCEIÇÃO ALMEIDA DA SILVA
NITERÓI
2012
CONCEIÇÃO ALMEIDA DA SILVA
BANCA EXAMINADORA
Niterói
2012
Em memória à minha avó Euracinda, a principal
responsável por me fazer querer “ser alguém na vida”.
AGRADECIMENTOS
A Deus, principalmente, que me deu vida, saúde e fé para acreditar que tudo isso era possível.
Ao meu orientador, professor doutor Fernando Afonso de Almeida, pela dedicação, pela
orientação atenciosa, pelos sábios conselhos, pelas indicações bibliográficas acertadas, pelas
correções, sugestões etc. que foram fundamentais para o êxito desta dissertação.
Ao CNPq, pela bolsa de estudos concedida que me permitiu maior dedicação à pesquisa, bem
como a aquisição de livros, participação em congressos etc.
A minha família, por compreender e perdoar minhas ausências, minha distância e minha
“casmurrice” durante o período do mestrado.
Aos meus amigos, por me deixarem desabafar minhas angústias dissertativas, e também por
me arrancarem da minha rotina acadêmica de vez em quando, levando-me para tomar um
chope, bater um papo e descontrair...
À Joyce Palha Colaça, pela amizade de sempre e pela revisão atenta de meu trabalho.
Aos professores que participaram de minha formação escolar e acadêmica, desde os primeiros
anos até o mestrado e, em especial, aos componentes da banca.
Enfim, a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram com a elaboração dessa dissertação,
Obrigada.
“Como é bom saber que a propaganda que a gente aprovou é a mais
lembrada e a mais querida do Brasil.
Como é bom ver a nossa campanha atrelada à alegria, piadas,
conversas de bar.
Como é bom ter uma agência de propaganda apaixonada. Porque com
paixão é muito mais fácil ser criativo e efetivo.
Como é bom saber que um convite tão direto – EXPERIMENTA – foi
aceito por brasileiros de todos os cantos.
Como é bom verificar que a verba que vai para esse negócio chamado
propaganda não é um gasto inevitável e sim um investimento com
retorno garantido.
Como é bom descobrir com a sua campanha que, sim, propaganda
vende.”
(Anúncio 10 – Cerveja Nova Schin: “Boa propaganda vende”, p. 58)
LISTA DE FIGURAS
1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13
1. INTRODUÇÃO
O desafio de uma publicidade bem-humorada é o mesmo das que não o são, ela
precisa chamar a atenção do leitor, captar-lhe o interesse. Entretanto, ao diverti-lo, a
publicidade, além de cumprir sua função principal que é a de anunciar o produto, também
conquista sua simpatia, sua adesão, sua cumplicidade. Porém, uma “gracinha” qualquer pode
não despertar a atenção do leitor: o humor precisa ser bem elaborado, bem estruturado, e,
principalmente, bem contextualizado. E neste processo recorre-se a vários mecanismos, dentre
os quais, os linguísticos e os pragmáticos.
O humor é produto de uma interpretação para a qual contribuem vários aspectos: o
locutor, o alocutário, a situação comunicativa etc. Ao ter sua atenção captada por um anúncio
bem-humorado, o leitor se insere num processo de produção de sentidos que prevê a
identificação não só de elementos linguísticos e icônicos, mas também de informações
implícitas que dependem de sua contribuição, de seu conhecimento de mundo. Disto, resulta
uma atividade interativa que envolve o produtor do texto, o próprio texto e o leitor: um
publicitário, buscando uma maneira de atrair a atenção do consumidor e tentando atender à
demanda do anunciante, se esforça em criar efeitos de humor para despertar a atenção do
leitor-consumidor. Este humor, por sua vez, só vai se realizar efetivamente com a participação
deste leitor que deverá, por um lado, perceber as manobras do publicitário inscritas no texto e,
por outro, contribuir com seus conhecimentos prévios. Vê-se nisto que o humor publicitário
resulta de uma interação cooperativa entre interlocutores1, que, por sua vez, partem de
mecanismos que envolvem tanto elementos linguísticos quanto contextuais.
1
Nesta dissertação, designaremos por “interlocutores” o par “locutor” e “alocutário”, ambos referindo a seres
psicológicos e sociais, sendo o primeiro aquele que produz um ato de fala e o segundo aquele que o recebe. Vale
destacar, entretanto, que Ducrot (1982) define “locutor” como sendo um ser discursivo a quem se atribui a
14
responsabilidade da enunciação, em oposição a “enunciador”, outro ser discursivo de quem se faz ouvir um
determinado ponto de vista.
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percebido. Pode-se dizer então que a produção de humor se relaciona tanto com uma
dimensão sociocultural como com uma dimensão psicológica individual – por um lado,
remete às experiências compartilhadas socialmente e à cultura, por outro, depende de cada
indivíduo, da percepção que ele terá em função de sua relação com os diversos aspectos deste
contexto sociocultural.
Para produzir uma modificação sobre seus destinatários sem ser agressiva e sem
arriscar o sucesso da interação, a publicidade bem-humorada procura partir do lugar comum,
do socialmente aceito e convencionalizado. O humor na propaganda funciona porque dá ao
leitor (o alocutário), que está na outra ponta da interação, a possibilidade de interagir com o
locutor por meio da mensagem, de esforçar-se para interpretar os sentidos cômicos e,
consequentemente, identificar-se social e culturalmente.
Os efeitos de humor produzidos verbalmente são, em geral, resultantes de uma
manipulação do material linguístico, originando interessantes associações e jogos de palavras
que tornam os enunciados ambíguos e polissêmicos. No entanto, não basta ao locutor saber
manipular a língua e ao alocutário saber reconhecer a manipulação linguística para que o
humor seja desvendado. Como veremos ao longo desta pesquisa, há muitos outros fatores
envolvidos nesta questão. Manipula-se mais que a língua, que embora seja um ingrediente
fundamental, não é exclusiva; o humor depende ainda de fatores contextuais decisivos. O
humorista, ao enunciar, joga com os sentidos que sua enunciação pode transmitir tanto
explicitamente, por meio da língua, quanto implicitamente, por meio de informações
compartilhadas que são suscitadas no exato momento da comunicação.
A publicidade, ambiente onde fomos observar a produção humorística, revela-se como
um tipo de comunicação específica, cujo principal fim é a persuasão, onde cada escolha é
determinada por sua eficácia em chamar a atenção do leitor e vender o produto anunciado.
Deste modo, não há dúvidas de que o humor, ao ser construído dentro de um discurso de
publicidade não foge a seu propósito persuasivo, contribuindo para alcançar seus objetivos.
Sendo assim, acreditamos que, em publicidade, o humor não é espontâneo e ingênuo como
numa conversa cotidiana, ao contrário, ele é planejado cuidadosamente, avaliado sob vários
aspectos, observando-se tanto os benefícios que ele possa acrescentar à enunciação
publicitária quanto os riscos que ele pode apresentar. Com efeito, o humor na publicidade não
pode ser impactante e agressivo, como nas piadas e nos programas humorísticos, uma vez que
poderia provocar reações negativas por parte do consumidor, interferindo na imagem que se
pretendeu para o produto anunciado. Destarte, uma análise dos mecanismos humorísticos em
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publicidade, requer que, minimamente, possamos entender como esta funciona no âmbito
social.
Portanto, considerando as particularidades e especificidades dos discursos humorístico
e publicitário, temos também por objetivo investigar as principais abordagens sobre o humor,
evidenciando os principais aspectos já analisados por outros estudiosos. Por isso, no segundo
capítulo, revisamos algumas das principais teorias sobre o humor: Bergson (1987) e sua
análise do cômico, Freud (1987) e sua análise dos chistes, e Bakhtin (2010) e sua análise do
riso carnavalesco. Ainda nesse momento, apresentamos algumas considerações importantes
sobre representações sociais, visto que o discurso humorístico e o publicitário se alimentam
das representações que circulam no meio social. Os gêneros publicitários limitam, até certo
ponto, o modo como o imaginário social será explorado para a produção dos efeitos
humorísticos. Por este motivo, o humor que estamos analisando será, em geral, sutil,
estabelecendo-se, antes, entre a criatividade e a possibilidade de um leve sorriso. Mesmo que
nem todo procedimento criativo resulte necessariamente em humor, seguramente os efeitos
humorísticos na publicidade impressa dependem em grande medida da criatividade. Além
disso, cabe lembrar que a compreensão do humor resulta do tratamento de informações por
meio de processos cognitivos individuais, fato que justifica que o anúncio possa parecer
engraçado para uns e não para outros.
Como estamos analisando, especificamente, o humor em anúncios publicitários de
revista, faz-se necessário e imprescindível incluir um capítulo que dê conta de alguns dos
principais aspectos discursivos e textuais do anúncio publicitário. Esse é o assunto do terceiro
capítulo, que procurará colocar em diálogo teorias relativas a diferentes aspectos da
linguagem, como a Comunicação Social, a Teoria dos Gêneros, a Semiologia e a Análise do
Discurso, com a finalidade de apresentar alguns subsídios teóricos importantes para a
compreensão do funcionamento da publicidade em geral e dos anúncios bem-humorados em
particular. À primeira vista, o leque teórico pode parecer excessivamente amplo, mas
encontramos justificativa na natureza interdisciplinar de nosso estudo, visto que envolve
discurso, publicidade e humor. Desta forma, não podemos ignorar em nossa abordagem outros
pontos de vista sobre o nosso objeto, nem conceitos que podem servir de ferramenta de
análise. Buscaremos, então, na Comunicação social, explicação para as formas de construção
do anúncio publicitário; na Teoria do gênero, explicações relativas a como a sociedade
organiza seus atos de fala em textos relativamente estáveis de acordo com o propósito da
interação verbal, situando entre estes os textos publicitários; na Semiologia, o entendimento
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sobre como se dá a interação entre o icônico e o verbal na produção do texto; e, por fim, na
Análise do Discurso, a compreensão da cena enunciativa do anúncio publicitário impresso.
Mas, como destacamos inicialmente, nosso objetivo principal é investigar e analisar os
mecanismos linguísticos e pragmáticos responsáveis pela produção do humor. Para isso, no
quarto capítulo, buscaremos compreender a produção de sentidos tanto em seus aspectos
inerentes ao sistema linguístico, quanto em seus aspectos contextuais. Partimos do
pressuposto de que os sentidos que comunicamos em nossas interações verbais não dependem
exclusivamente da língua (como definida por Saussure), nem depende exclusivamente de
fatores externos a ela (os interlocutores, a situação, a ideologia etc.), mas de uma
interdependência entre eles. O texto publicitário é construído com signos verbais e não
verbais, signos que tiram seu valor de um sistema constituído socialmente, mas que são
atualizados a cada nova enunciação, ou seja, o signo se estabiliza na sociedade, tornando-se
por isso mesmo convencional; mas ao ser empregado por esta mesma sociedade em suas
interações verbais, ele se atualiza de acordo com as necessidades comunicativas
circunstanciais. Acreditamos, pois, que os sentidos depreendidos de todo e qualquer texto
dependem inicialmente de elementos observados no próprio texto (elementos que podem ser
linguísticos ou icônicos, no caso de um texto publicitário), condicionados por convenções
sobre o funcionamento da língua e de outros sistemas semiológicos. Mas tais elementos são
atualizados a cada enunciação, fazendo com que os sentidos também dependam de
informações mais ou menos implícitas, que não são explicitadas no enunciado, mas que se
somam a sua significação.
Por fim, no quinto capítulo, analisamos alguns anúncios publicitários, primeiro,
resgatando as fundamentações teóricas de Bergson (1987), Freud (1987) e Bakhtin (2010), e a
seguir, buscando evidenciar de que forma os aspectos linguísticos e pragmáticos contribuem
para a produção do humor verbal explorado pelos anúncios, criando conotações, polissemias,
inferências, jogos de palavras etc.
Nosso tema não é inovador: tanto o humor como a publicidade são objetos de
pesquisas nos diversos âmbitos do conhecimento. Por isso, ao nos questionarmos sobre a
relevância de nossa pesquisa, chegamos à conclusão de que primeiramente ela é importante
para nossa própria prática, tanto enquanto docente como enquanto pesquisadora, já que nos
possibilitou ampliar não só nosso conhecimento dos aspectos semânticos e pragmáticos
envolvidos na produção do humor verbal, como também nos permitiu conhecer outros
posicionamentos sobre o assunto. Além disso, acreditamos que esta pesquisa possa oferecer
uma perspectiva a mais a outros pesquisadores que venham a ter interesse pelo assunto
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tratado, uma vez que estabelece um diálogo interdisciplinar que integra teorias de três campos
distintos: o publicitário, o humorístico e o discursivo.
Todo enunciado, mesmo quando produzido sem a presença de um destinatário, como é
o caso da publicidade, é marcado por uma “interatividade constitutiva” (MAINGUENEAU,
2005), ou seja, é produzido por um locutor em função de um suposto alocutor. Enunciar não é
uma mera forma de representar o mundo, mas, principalmente, uma forma de ação sobre o
outro. Por seu caráter preponderantemente persuasivo, a publicidade caracteriza-se como um
ato de linguagem complexo que pretende modificar uma situação e agir sobre outros. Logo, a
ocorrência do humor em anúncios de revista, por exemplo, não é gratuita – tem uma
finalidade perlocutória que responde aos propósitos persuasivos do anúncio.
Bergson (1987, p. 12) chama a atenção para o fato de que “não há comicidade fora do
que é propriamente humano”, ou seja, será risível tudo aquilo que se origina da essência ou da
manipulação humana. Acrescenta, ainda, que “o riso é sempre o riso de um grupo” (idem, p.
13), ou como dito por ele em outras palavras, “o riso deve corresponder a certas exigências da
vida comum. O riso deve ter uma significação social.” (idem, p.14). Em publicidade, essa tese
tem forte amparo, como veremos.
anúncios de revista. A questão que motivou essa proposta pode ser apresentada da seguinte
forma: que mecanismos são empregados nos anúncios para a produção de humor? A
pressuposição por trás desse questionamento é de que o humor é uma proposta arriscada. Se
não for bem dosado, bem elaborado, bem pensado, pode não ser aceito ou percebido pelo
leitor/consumidor, não surtindo assim o efeito esperado pelo publicitário.
Tomada a decisão, era necessário focar nosso objeto e circunscrevê-lo com precisão.
Delimitar o objeto de estudo foi uma tarefa muito importante, pois só depois disso
conseguimos dar andamento a nossa pesquisa. Assim, iniciamos uma ampla e vasta revisão
bibliográfica sobre o humor e sobre a publicidade, como apresentada em linhas gerais no
tópico anterior e aprofundada nos capítulos subsequentes. Era preciso descobrir o que já tinha
sido pesquisado sobre o assunto e compreender de que forma esse conhecimento nos ajudaria
em nosso estudo. Foi um período durante o qual fizemos muitas leituras, muitas resenhas e
muitos resumos. Também foram importantes as participações em congressos, tanto como
ouvinte quanto como palestrante, pois tivemos oportunidade de confrontar nossas ideias e
pontos de vista com os de outros estudiosos, fato que nos possibilitou amadurecer e definir
nossos objetivos.
Outro momento fundamental da pesquisa diz respeito à escolha e seleção do corpus.
Durante um ano, aproximadamente, nos dedicamos a folhear várias revistas em busca de
anúncios que pudéssemos classificar como bem-humorados. Inicialmente, essa classificação
foi feita de modo intuitivo e aleatório, baseada em nosso próprio entendimento do que seria
ou não engraçado. Com isso, reunimos em torno de trezentos anúncios, dos mais variados
tipos, sobre diversos produtos e destinados a diferentes públicos. Mas logo descobrimos que
precisávamos adotar um critério mais objetivo, pois tínhamos em mãos uma quantidade
grande de anúncios e era necessário organizá-los.
Durante esse primeiro momento, enquanto folheávamos diversas revistas, percebemos
que algumas possuíam mais anúncios bem-humorados que outras, fato que determinou a
primeira escolha feita. A seguir, chegamos à conclusão de que a revista destinada
especificamente ao público masculino trazia anúncios com um humor diferente daqueles
encontrados nas outras revistas, um humor mais ousado, menos sutil. Dessa descoberta,
fizemos a escolha definitiva das revistas que usaríamos em nossa pesquisa: uma destinada ao
público masculino (Revista Quatro Rodas), uma destinada preferencialmente ao público
feminino (Revista Caras) e outra destinada a ambos os públicos, masculino e feminino
(Revista Veja). Vale destacar que das três revistas eleitas, duas delas, a Veja e a Quatro
Rodas, encontram-se disponibilizadas na internet (verificar referências), fato que facilitou
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nosso acesso a grande número de edições. Quanto à revista Caras, para observar os mesmos
critérios adotados para as outras, tivemos de adquirir números antigos em sebos.
Uma das dificuldades encontradas na delimitação do corpus diz respeito à distinção
entre o que é criativo e o que é risível em publicidade. Isto porque toda publicidade risível é
criativa, mas nem toda publicidade criativa é necessariamente risível. Tomemos como
exemplo os anúncios 22 e 23 (p. 97), cuja criatividade ao jogar com signos icônicos e verbais
não chega a produzir publicidades bem-humoradas, ao contrário do anúncio 26 (p. 102),
embora este também tenha sido construído com base no mesmo jogo criativo. O
questionamento a ser formulado neste caso é: se os três anúncios foram elaborados a partir de
um jogo entre o verbal e o não-verbal, o que torna este último risível e os dois primeiros não?
A resposta nos foi dada por Freud (1987). De acordo com o autor, há em todo chiste uma
fonte de economia que proporciona prazer e consequentemente o riso. O uso do vocábulo
“saia” neste anúncio remete a diferentes significações, condensação esta que torna o texto
publicitário risível, fonte de prazer. Tal fato não ocorre com os anúncios 22 e 23, que, embora
joguem com os valores que os signos podem assumir dentro do sintagma em que aparecem,
não apresentam palavras que condensam sentidos, o vocábulo “obrigado” (anúncio 22), por
exemplo, significa apenas obrigado e nada mais; diferentemente, “saia” (anúncio 26) pode ser
interpretado como substantivo (peça do vestuário feminino) e como imperativo do verbo sair
(remetendo à ideia de deslocamento).
A delimitação do corpus, portanto, só aconteceu definitivamente, quando passamos a
aplicar os conceitos apresentados pelos autores que tratavam do humor. Assim, passamos a
observar nos anúncios se era possível identificar algum tipo de mecanismo no uso com as
palavras, como proposto pro Bergson (1987), se havia algum jogo de palavras, como proposto
por Freud (1987), ou ainda, se havia algo que caracterizasse o riso carnavalesco, proposto por
Bakhtin (2010).
Dos 68 anúncios que apresentamos nesta dissertação, alguns foram escolhidos
exclusivamente para introduzir os capítulos e outros, com a finalidade de ilustrar os conceitos
teóricos abordados. Entre estes últimos, os que serviram de ilustração teórica, encontram-se
alguns retirados de um site de humor na internet: WWW.desemblogue.com. Neste site,
encontramos anúncios que brincam com marcas e produtos reais, de uma forma bem-
humorada e criativa. Como alguns conceitos não puderam ser ilustrados com os anúncios
encontrados nas revistas, recorremos ao site.
Como já mencionado, a seleção dos anúncios obedeceu, principalmente, à presença de
algum efeito humorístico que, a nosso ver, merecesse tornar-se objeto de análise,
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independentemente do tipo de produto anunciado, visto que o humor pode se fazer presente
em todo tipo de publicidade, desde as que anunciam produtos farmacêuticos às que anunciam
carros ou bebidas alcoólicas. No entanto, vale dizer que a presença do humor nos anúncios de
revista não é tão recorrente, ainda que tenha estado cada vez mais presente nos últimos anos.
Folheamos revistas das três últimas décadas e percebemos que antes havia menos anúncios
bem-humorados, a criatividade em geral se restringia a inovações linguísticas e a alguns jogos
de palavras mais sutis, não havendo jogos que envolvessem, por exemplo, o imaginário
masculino e feminino acerca da sexualidade, ou estereótipos sobre aspectos de certo modo
negativos sobre outras nacionalidades etc.
Ademais, por se tratar de sentidos até certo ponto dependentes de uma dimensão
psicológica individual, a seleção do corpus não está isenta da subjetividade do analista. Ainda
que tenhamos nos esforçado por adotar critérios mais ou menos objetivos, as escolhas não
deixaram de ser influenciadas por nosso ponto de vista sobre o que seja ou não risível.
Considerando o caráter multidimensional desta pesquisa, parte-se de uma abordagem
interdisciplinar que prioriza a análise descritiva pautada em procedimentos qualitativos de
interpretação dos dados. Para tanto, conciliamos teorias sobre o humor, sobre a publicidade e
sobre o discurso, recolhendo, de cada uma, conceitos importantes para nossa análise. Após
selecionar os anúncios nos quais percebemos a presença de algum fator potencialmente
cômico, nos detivemos a observá-los, buscando descrevê-los e caracterizá-los de acordo com
os conceitos teóricos de que dispúnhamos. Os anúncios constantes da análise são aqueles que
a nosso ver foram os mais representativos para exemplificar os mecanismos de produção
humorística que encontramos.
O último capítulo desta dissertação, o de análise, exigiu certo cuidado quando de sua
organização, uma vez que tendo à disposição um aparato teórico da dimensão do que
apresentamos, havia o risco de nos perdermos na análise. Por isso, considerando tratar-se de
uma pesquisa de natureza qualitativa, buscamos descrever e entender os anúncios bem-
humorados, classificando-os a partir dos recursos teóricos de que dispúnhamos. De tal esforço
interpretativo resultou a subdivisão do capítulo: 1) o cômico de palavras na publicidade, cuja
análise se detém nos princípios teóricos apresentados por Bergson (1987); 2) o chiste
publicitário, que traz as contribuições de Freud (1987) sobre os chistes; 3) a publicidade
carnavalesca; que encontra respaldo em Bakhtin (2010) e seu riso carnavalesco; 4) o humor
implícito na publicidade, que analisa os anúncios a partir de seus aspectos eminentemente
linguísticos e pragmáticos; e, por fim, 5) publicidades polifônicas bem-humoradas, que a
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1. HUMOR: “Desarme-se”
Toda comunicação humana ocorre num mundo simbólico, onde tudo é transformado
em signo e só pode ser comunicado enquanto signo. Sendo assim, o que possibilita ao humor
ser comunicado? Ele é passível de transformação simbólica? Nosso interesse em estudar o
humor gira em torno da investigação de como ele pode ser comunicado e apreendido por meio
2
Apud Bergson (1985, p. 49)
24
de linguagens. Não temos como propósito isolar a essência do riso ou do humor – até mesmo
porque muitos estudiosos já o tentaram e não conseguiram resultados definitivos; tampouco
objetivamos esgotar em nossa análise todos os mecanismos de produção e apreensão do
humor por meio dos signos. Trata-se antes de uma abordagem linguístico-pragmática que se
propõe a reexaminar alguns dos mecanismos apresentados por Bergson (1987), Freud (1988)
e Bakhtin (2010), para explicar os efeitos de humor na publicidade.
Ao iniciar nosso estudo sobre o humor, não podemos ignorar que o humor como
objeto de estudo não é uma novidade. Desde Aristóteles até os dias atuais, o riso tem
merecido a atenção de filósofos, de psicólogos, de literatos, de linguistas etc., todos
preocupados em, de alguma forma, definir o humor, ou, mais exatamente, tentar especificar o
que provoca o riso. Muitas foram as conclusões a que chegaram tais estudiosos, dentre as
quais podemos citar a aproximação entre o humor e o jogo, ou entre o humor e a arte retórica,
ou ainda, o humor como resultante de uma atividade inconsciente, ou como forma de controle
social etc.
De acordo com Alberti (2002), é possível estabelecer algumas recorrências
interessantes sobre o estudo do riso no pensamento do século XX, recorrências que a autora
resume da seguinte forma: “o riso partilha, com entidades como o jogo, a arte, o inconsciente
etc., o espaço do indizível, do impensado, necessário para que o pensamento sério se
desprenda de seus limites” (idem, p.11). Outra conclusão também recorrente diz respeito ao
fato de que é através do cômico, do humor, do chiste, enfim, é através do riso, que a realidade
pode ser plenamente apreendida, ou seja, é justamente ao se desprender do sério socialmente
estabelecido, da rigidez cotidiana, das limitações racionais, que se pode acessar a verdade que
rege o universo. Esse é um pensamento que de alguma forma permeia as indagações dos três
estudiosos do humor que servirão de base para nossa reflexão: Bergson (1987), Bakhtin
(2010) e Freud (1987).
“O riso é próprio do homem”. Essa concepção, que segundo Alberti (2002, p. 45)
remonta a Aristóteles, é uma das teses centrais da obra de Bergson (1987), que ao longo de
sua obra defende que “não há comicidade fora do que é propriamente humano” (idem. p. 12).
A teoria de Bergson sobre o riso versa principalmente em torno de uma concepção que vê no
riso uma manifestação crítica, que tem por tarefa a correção que restabelece a ordem da vida e
da sociedade. É justamente quando a rigidez mecânica se sobrepõe ao humano que o riso
aparece para corrigi-la, ganhando assim uma função social, ou seja, o humor é tratado como
uma forma de normatizar a conduta social. O riso reside na insensibilidade de uma pessoa (ou
grupo de pessoas) que se vale (valem) exclusivamente da inteligência pura, calando a emoção.
25
“Ao que parece,” – diz Bergson (1987, p. 14) – “o cômico surgirá quando homens reunidos
em grupo dirijam sua atenção a um deles, calando a sensibilidade e exercendo tão-só a
inteligência.”
Outro aspecto do riso que já era tratado por Aristóteles na Antiguidade (ALBERTI,
2002) e que ainda é considerado atualmente diz respeito à relação entre as ideias e as coisas,
resultando nos jogos de palavras ou de pensamentos, ponto central da teoria de Freud (idem).
Como veremos adiante, o autor defende que a formação do chiste ocorre por um processo
semelhante ao do sonho, mostrando que ambos decorrem de uma atividade inconsciente. O
prazer decorrente do chiste é, assim, uma reação contra a racionalidade, o sujeito vê nos jogos
de palavras e de pensamentos uma ausência de sentidos enigmática, que o transporta ao
inimaginável, assim como ocorre no sonho. Conforme Freud (1987), o prazer seria o resultado
de um alívio psíquico proveniente da economia de esforço intelectual, ou seja, o não precisar
pensar com racionalidade, dentro dos moldes intelectuais nos quais fomos educados. O que
está em questão é a oposição entre o sério e o riso: o sério como efeito da razão que se impõe
ao sentido; e o riso, como a ausência de sentido que se impõe à razão e nos libera da
racionalidade.
Essa oposição entre o sério e o riso também é central em Bakhtin (2010) para quem o
riso aparece como uma forma de romper com a seriedade da vida cotidiana. Segundo o autor,
o humor era, na Idade Média e no Renascimento, uma forma de expressão da liberdade
popular. As imagens suscitadas pela cultura popular da praça pública estavam carregadas de
formas universais, festivas e principalmente ambivalentes. Essa ambivalência que
caracterizava o riso popular se explica por sua forma de possibilitar ao homem medieval a
superação de seus próprios medos, transformando o temível em risível, a rigidez oficial em
festa e o sério em cômico. “Os homens da Idade Média participavam igualmente de duas
vidas: a oficial e a carnavalesca, e de dois aspectos do mundo: um piedoso e sério e outro,
cômico.” (BAKHTIN, 2010, p. 83) Neste sentido, “o riso tem uma significação positiva,
regeneradora, criadora, o que a diferencia nitidamente das teorias e filosofias do riso
posteriores, inclusive a de Bergson, que acentuam de preferência suas funções denegridoras.”
(BAKHTIN, 2010, p. 61).
Do ponto de vista discursivo, o humor pode ser abordado como uma das estratégias
que servem por um lado para distrair, por outro para descontrair o destinatário. Essa é uma
concepção também proveniente de Aristóteles, que via no riso “um dos efeitos produzidos
pelo orador na atenção do ouvinte (...). Não é bom que o ouvinte esteja sempre atendo, diz
Aristóteles, ‘por isso muitos oradores se esforçam para fazê-lo rir’” (ALBERTI, 2002, p. 54).
26
O fato é que considerar o humor sob o enfoque discursivo nos obriga a levar em consideração
toda a situação contextual em que é produzido, ou seja, os interlocutores, as circunstâncias
espaço-temporal, dentre outros aspectos. Essa é a posição de Charaudeau (2006), que em seu
artigo Des Categories pour l’humour?, defende que todo ato humorístico se inscreve em
alguma circunstância discursiva, fato que possibilita seu surgimento em diversas situações, da
publicidade à política ou à conversa cotidiana. A comunicação humorística não possui, pois,
um contrato fixo, como o institucional ou o religioso que envolvem situações comunicativas
mais recorrentes. Além disso, o autor destaca o fato de que nem sempre o humor provoca o
riso, ou quando o provoca, não será necessariamente com a mesma intensidade.
Se o riso precisa ser desencadeado por um fato humorístico, tal fato não
necessariamente irá provocar o riso. Até mesmo porque ele precisa ser percebido, o
que não é evidente (histórias engraçadas podem ser percebidas pelos homens e não
pelas mulheres, por pessoas que pertencem a esta cultura e não por aqueles que
pertencem a outra, e geralmente por aqueles que são tidos como testemunhas e não
por aqueles que são vítimas). (CHARAUDEAU, 2006, p. 20)3
Assim, o humor é mais uma forma de dizer que se insere em distintas situações,
resultando num jogo que aproxima os interlocutores, com o propósito de envolvê-los numa
cumplicidade estratégica, como já previa Aristóteles. No entanto, não há garantia de que o
alocutário aceitará o jogo, é necessário que haja condições circunstanciais partilhadas pelos
interlocutores para que a comunicação humorística alcance êxito. Para Charaudeau (idem),
não basta um jogo de palavras qualquer para fazer aparecer o humor, os jogos de palavras são
relevantes como uma atividade lúdica em si mesma, mas nem sempre produzirão um efeito
humorístico. Este efeito sempre dependerá, em maior ou menos grau, da situação de
enunciação em que aparece, da temática à qual se refere, dos processos linguísticos
mobilizados e do público a que se destina.
Este autor apresenta, ainda, o ato humorístico como um ato de enunciação que, como
tal, coloca em cena três protagonistas: um locutor, um alocutário e uma finalidade. O locutor é
o responsável pela produção do ato dentro de uma dada situação de comunicação. No caso de
um anúncio, o locutor é um publicitário, mas no caso de um jornal, será um colunista, e assim,
sucessivamente. O importante é que a situação de comunicação crie a legitimidade necessária
3
“D’abord, il faut éviter d’aborder cette question en prenant le rire comme garant du fait humoristique. Si le rire
a besoin d’être déclenché par un fait humoristique, celui-ci ne déclenche pas nécessairement le rire. D’une part,
il faut qu’il soit perçu comme tel, ce qui n’est pas évident (voir les histoires perçues drôles par des hommes et
point par des femmes, par des gens appartenant à telle culture et point par ceux appartenant à telle autre, et d’une
façon générale par ceux qui sont pris comme témoins et ceux qui en sont les victimes).” (Transcrição como no
original. A tradução é nossa.)
27
a esse locutor para que ele esteja autorizado a produzir sua enunciação humorística, caso
contrário, poderá ferir seu alocutário ao invés de torná-lo cúmplice. Assim, a legitimidade do
locutor depende em grande medida do lugar que ele ocupa no ato comunicativo e do
reconhecimento que o alocutário lhe atribui: nas caricaturas, charges e tiras cômicas, o
desenhista é visto como um comediante; nos anúncios publicitários, o publicitário se autoriza,
para seduzir o consumidor, jogar com a linguagem e é reconhecido como alguém que pode
proceder assim; nas crônicas jornalísticas de humor, o cronista comenta a atualidade
salpicando seu texto de traços humorísticos e é aceito pelo público como alguém que está
autorizado a fazê-lo.
O destinatário pode ocupar duas posições dentro do ato humorístico: o de vítima ou o
de cúmplice. O destinatário-vítima seria aquele que é ao mesmo tempo o destinatário e a
finalidade do ato, ou seja, o ato foi produzido para ele com o objetivo de ridicularizá-lo. Neste
caso, não resta muito ao alocutário, senão aceitar a brincadeira, aceitando rir de si mesmo, ou
ignorá-la, refutá-la, não a aceitando. Por outro lado, o destinatário-cúmplice é aquele que é
convidado a ser conivente com o enunciador do ato humorístico. Este é o posicionamento
mais comum ao consumidor de uma publicidade bem-humorada. Dificilmente o publicitário
colocará seu destinatário numa posição de vítima, mas sim de cúmplice, levando-o a rir junto
e da mesma coisa.
Por fim, a finalidade, terceiro protagonista do ato humorístico, é aquilo para o que
aponta o ato humorístico ou o propósito daquilo para o qual o ato funciona. Em suma, a
finalidade é o alvo do humor. É através dela que o ato humorístico coloca em causa visões
padronizadas do mundo, ridicularizando-as, desmembrando-as, reposicionando-as.
Possenti (2010), por sua vez, defende a tese de que há uma relação estreita entre o
humor e os acontecimentos que se tornam populares e controversos. Assim, “só há piadas
sobre assuntos sérios desde que se tornem populares e controversos” (POSSENTI, 2010, p.
13). Neste sentido, deve haver entre os interlocutores, um conhecimento compartilhado tanto
sobre acontecimentos recentes, como sobre os acontecimentos mais distantes para que o efeito
humorístico possa ser comunicado e apreendido. Sua maior preocupação é oferecer uma
abordagem prioritariamente linguística para o estudo do humor, no entanto, não deixa de
considerar que questões como identidade, estereótipo e conhecimentos compartilhados
socialmente são elementos indispensáveis para a produção do humor. Isso porque, para
entender a graça de uma piada, é preciso vinculá-la ao contexto social em que ela faz sentido,
resgatando os mitos e as crenças que a permeiam.
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Ao iniciar nosso estudo sobre o humor, nos deparamos com ampla terminologia sobre
o tema: humor, ironia, comédia, piada, dito espirituoso, brincadeira, sátira, grotesco, gozação,
ridículo, nonsense, farsa, humor negro, palhaçada, jogo de palavras, chiste, cômico,
engraçado, divertido, zombaria etc. Bergson (1987), por exemplo, refere-se a cômico; Freud
(1987), a chiste; Bakhtin (2010) a riso carnavalesco; Charaudeau (2006), a humor; Possenti
(2010), principalmente a piada; Alberti (2002), a risível. Dessa forma, adotaremos a palavra
humor para nos referir de modo geral a tudo o que pode suscitar o riso e empregaremos as
outras denominações para nos referir a abordagens ou autores específicos, conforme tenhamos
que mencioná-los.
Apresentamos, brevemente, a seguir, as três concepções de humor que nos servirão de
base epistemológica sobre o tema: a concepção de Bergson (1987), a de Freud (1987) e a de
Bakhtin (2010). Também dedicamos um tópico à relação que se estabelece entre o imaginário
social, o humor e a publicidade.
Em sua obra intitulada O riso; ensaio sobre a significação do cômico, Henri Bergson
(1987) enfoca principalmente o riso desencadeado pelo que é cômico ou que estaria direta ou
indiretamente relacionado ao cômico. Sob essa perspectiva, algo se tornará risível quando
apresentar qualquer semelhança com um fenômeno cômico ou o lembre de alguma forma.
O primeiro dos três artigos que compõem o livro se dedica especialmente ao cômico
em geral e tenta responder a dois questionamentos básicos: 1) como identificar o cômico? 2)
como obter o cômico?
À primeira questão, o autor responde fazendo três observações que se referem ao
lugar onde buscar o cômico, e, consequentemente, o risível. Primeiramente, ele diz que a
comicidade está diretamente relacionada ao que é humano. Para encontrar o cômico é
necessário que o objeto risível guarde qualquer relação com o homem, visto ser este o único
animal que ri e que faz rir, “pois se outro animal o conseguisse, ou algum objeto inanimado,
seria por semelhança com o homem, pela característica impressa pelo homem ou pelo uso que
o homem dele faz” (idem, p. 12). A segunda observação refere-se ao fato de que o riso reside
na insensibilidade. Todo riso é acompanhado de certa indiferença emocional que coloca o
homem em uma posição de afastamento afetivo, como um espectador neutro que assiste a um
drama convertendo-o em comédia. “O cômico exige algo como uma anestesia momentânea do
coração para produzir todo o seu efeito. Ele se destina à inteligência pura” (idem, p. 13). Por
29
fim, a terceira observação do autor sobre onde localizar o objeto risível indica que o riso se
encontra na coletividade social, ou como dito por ele em outras palavras, “o nosso riso é
sempre o riso de um grupo” (idem, p. 13).
Sabendo como identificar o cômico, resta saber como obtê-lo. Considerando que o riso
encontra-se na insensibilidade humana compartilhada socialmente, quais seriam, então, os
principais mecanismos necessários para produzi-lo? Para o autor, o risível pode decorrer de
diversos mecanismos que infringem alguma das leis que regem o convívio em sociedade,
como por exemplo, a identificação de uma rigidez mecânica, uma distração (ou desvio), uma
repetição sem propósito, um isolamento involuntário ou mesmo a lógica dos sonhos que nos
afasta da realidade. Assim, para obter o cômico, basta recorrer a algum desses fenômenos.
A rigidez mecânica refere-se a uma mudança involuntária, não premeditada, a um
“desajeitamento”. O autor exemplifica: se há uma pedra no caminho, a reação normal da
pessoa seria desviar-se do obstáculo, utilizando-se do poder que tem sobre seu corpo,
fazendo-o atender a seus comandos. Mas, se, entretanto, o corpo não obedece ao comando
recebido (ou mesmo não recebe comando algum) e segue involuntariamente o caminho que
devia ser desviado, provocando um tropeço ou uma queda, percebe-se nisto “certo efeito de
rigidez” que impede a maleabilidade do corpo, evocando algo não vivo e, por isso mesmo,
provocando o riso em quem assiste à cena. Esta mesma rigidez seria percebida em uma
situação cuja rotina tivesse sofrido alguma interferência. Assim, a pessoa acostumada a
executar sempre as mesmas atividades, ao ser surpreendida por uma mudança, segue
executando seus movimentos como o fazia antes e acaba se tornando cômica por demonstrar
sua rigidez habitual.
A rigidez mecânica é um fenômeno decorrente de uma circunstância exterior ao
indivíduo. Encontra-se na superfície da pessoa, é casual. Nos dois casos exemplificados, a
falta de flexibilidade é percebida por causa de um fator externo à pessoa, uma pedra no
caminho, uma mudança na rotina. No entanto, há uma rigidez que é mais internalizada,
instalada no próprio indivíduo: o desvio dos padrões ou ideias socialmente compartilhados,
como no caso de uma frase ambígua. De acordo com o autor, o desvio decorre de “certa
fixidez natural dos sentidos e da inteligência, pela qual continuamos a ver o que não mais está
à vista, ouvir o que já não soa, dizer o que já não convém, enfim, adaptar-se a certa situação
passada e imaginária quando nos deveríamos ajustar à realidade atual” (BERGSON, 1987, p.
15). O desvio é uma distração, em que a pessoa não percebe que continua em uma direção
quando deveria ter escolhido outra. Assemelha-se ao tropeço, mas desta vez, por uma causa
interna ao indivíduo, é ele quem tropeça em sua própria rigidez intelectual. Desta forma, a
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diferença básica entre a rigidez mecânica e o desvio provém do fato de que este se apresenta
de forma mais natural enquanto aquela, a rigidez mecânica, como o próprio nome sugere, é
mais artificial.
Há, ainda, para o autor, comicidade naquilo que fere a lógica da razão – é a lógica do
sonho ou da imaginação partilhada por toda a sociedade. Assim, se explica o fato de um
disfarce ser risível, de uma caricatura ser cômica. Ainda que tais exemplos firam a lógica da
razão, eles são aceitáveis para a imaginação. É assim que a sociedade pode mascarar-se em
determinadas situações e tornar-se, por isso mesmo, alvo de riso. Todo grupo social que se
refugia em cerimônias excessivas é potencialmente cômico por evidenciar sua artificialidade,
como em uma pantomina em que nada é espontâneo, mas ritual, mecânico. Para Bergson
(idem), a vida em sociedade exige uma constante tensão, as pessoas precisam se adequar a
essas exigências. É na imaginação que essa tensão sofre um relaxamento e possibilita ao
indivíduo falar, agir e pensar fora dos moldes impostos. O personagem cômico é aquele que
vivencia esta experiência de agir, falar e pensar como um mecanismo imaginado, que não se
ajusta à realidade social.
O anúncio 2 constrói seu tom humorado com base em uma dessas personagens que são
tornadas cômicas por seu automatismo: a pessoa que sofre de surdez. Não é raro encontrar
piadas sobre surdos, que brincam com sua deficiência, evidenciando seu desajuste ao
socialmente previsto, fato que acaba possibilitando que ela seja destacada do grupo como um
objeto risível, como nesta piada: “Um surdo pergunta ao outro: ‘Você vai pescar?’ ‘Não, eu
vou pescar – responde o interrogado. Ao que o primeiro completa: ‘Ah, que pena. Pensei que
você ia pescar.”
Para produzir efeito de humor, o anúncio 2 explora esse viés insensível da sociedade.
Ao dizer que “toda família tem aquela tia surda que adora guaraná Schin”, convida os leitores
a imaginarem uma personagem surda, como as das piadas, ou até mesmo recordarem uma
pessoa da família que ouve pouco e que se assemelha a esta personagem – a da tia surda.
Explora-se uma deficiência humana que possibilitaria o riso justamente porque, em
geral, as pessoas, ao calarem a sensibilidade (afinal, trata-se de uma pessoa com deficiência
auditiva), ativam tão somente a inteligência e, de acordo com as experiências que
compartilham com o grupo ao qual pertencem, isolam o indivíduo que falhou para dele
poderem rir. Veja-se que a publicidade não ridiculariza o leitor, mas faz um jogo divertido
com ele, convidando-o a ser conivente e a entrar na brincadeira.
31
A repetição é outro dos mecanismos de obtenção de comicidade. Uma pessoa que tem
sempre as mesmas atitudes, que possui gestos estereotipados ou que executa movimentos
previsíveis, uma situação que reproduz a outra, uma ideia transposta etc. tudo isso sugere
recorrência e sempre que algo for recorrente lembrará uma artificialidade produzida
mecanicamente que se tornará risível. “Por que isso?”, pergunta-se Bergson (idem, p. 25). E
ele mesmo responde: “Porque tenho agora diante de mim um mecanismo que funciona
automaticamente. Já não é mais vida, mas automatismo instalado na vida e imitando a vida. É
a comicidade.” Toda repetição, toda imitação supõe um mecanismo que funciona por traz do
vivo. Quando a pessoa age involuntariamente como uma coisa, vê-se no movimento humano
uma repetição mecanizada, uma inércia que contraria o postulado de que “a vida bem ativa
não deveria repetir-se” (idem, p. 25).
Todos os mecanismos de produção de efeitos humorísticos apresentados por Bergson
convergem, de certa forma, para uma mesma direção – a rigidez mecânica, o desvio, a
repetição, o isolamento e a lógica da imaginação – todos remetem a certo automatismo. Com
isso, pode-se afirmar que o fenômeno eminentemente risível é a rigidez automatizada, que se
manifesta de formas variadas.
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O riso deve ser algo desse gênero: uma espécie de gesto social. Pelo temor que o riso
inspira, reprime as excentricidades, mantém constantemente despertas e em contato
mútuo certas atividades de ordem acessória que correriam o risco de isolar-se e
adormecer; suaviza, enfim, tudo o que puder restar de rigidez mecânica na superfície
do corpo social. (BERGSON, 1987, p. 19)
47). Essas três imagens têm em comum o fato de serem brinquedos que ganham vida através
de seus movimentos mecânicos.
A comicidade aparecerá, pois, em qualquer situação que apresente algum contraste
entre o vivo e o mecânico, ou mais exatamente, entre seu ambiente natural, que é a sociedade,
e seu ambiente artificial, mecanizado. Para entender a relação que o autor estabelece entre o
vivo e o mecânico na produção da comicidade, cabe ressaltar que ele parte do princípio de que
a vida se apresenta como uma evolução no tempo e uma distribuição no espaço, ou seja, por
um lado a vida é um progresso contínuo que leva ao envelhecimento, nela nada se repete no
decorrer do tempo; por outro, os seres vivos se distribuem no espaço de forma independente,
individual, sem que um interfira na individualidade do outro; mas ainda assim regidos por
normas sociais que determinam sua coexistência neste espaço. É esse pressuposto que está na
base dos processos cômicos que o autor denominou “repetição”, “inversão”, e “interferência
de séries”.
A repetição, como vimos, é o que está na base da imagem do boneco de molas, refere-
se à situação ou à ação que se repete em um novo ambiente, ou sob um novo tom,
subvertendo a ordem da vida, que é irrepetível. A inversão, por sua vez, tem a ver com a
imagem do fantoche, é a inversão de papéis, aquele que devia manipular sendo manipulado,
ou uma situação que acaba se tornando desfavorável para quem a criou. Já a interferência de
séries diz respeito à ideia de combinação, ou seja, quando uma situação é exposta a duas
interpretações opostas, de modo que fatos absolutamente independentes sejam suscitados, um
interferindo na maneira de interpretar o outro, como no caso do quiprocó: “o quiprocó não é
risível por si mesmo, mas apenas como signo de uma interferência de séries” (BERGSON,
1987, p. 55)
Um defeito ou uma qualidade, apresentado de modo artificial, de modo a não
comover, também poderá tornar-se cômico – caracterizando a comicidade de caráter, tema do
terceiro artigo do livro. O autor define o caráter como tudo aquilo que há de já feito em uma
pessoa, como um mecanismo montado capaz de funcionar automaticamente. É por isso que o
caráter pode tornar-se cômico, porque ao repetir-se, pode ser imitado, pode ser explorado pela
comédia. Um personagem cômico é aquele que representa um espírito ou um caráter
obstinado, rijo, que explora o automatismo e o desvio social apreendido na vida comum.
Pouco importa um caráter ser bom ou mau: se é insociável, poderá vir a ser cômico.
Vemos agora que também não importa a gravidade do caso: grave ou leve, poderá
nos causar riso desde que se ache um modo de não nos comover. Insociabilidade do
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Daremos em nossos estudos uma atenção especial à comicidade de palavras, por ser
este o principal recurso humorístico presente nos anúncios publicitários impressos. No
entanto, vale destacar, que todas as formas de comicidade apresentadas por Bergson (1987)
acabam tendo em comum, como veremos, os mesmos mecanismos: o da rigidez mecânica, do
desvio, da repetição, do isolamento e da lógica dos sonhos ou da imaginação.
Ao tratar do cômico de palavras, Bergson (1987) sinaliza que a maior parte dos efeitos
cômicos pode ser produzida por intermédio da linguagem, pode por ela ser comunicada. No
entanto, o autor distingue uma segunda forma de comicidade: aquela criada especificamente
pela linguagem. Para distinguir estas duas formas, ele diz que o cômico transmitido por meio
da linguagem pode ser traduzido de uma língua a outra. Ainda que perca parte de seu vigor ao
ser transposta, uma vez que terá que se acomodar a diferenças culturais, a palavra cômica
ainda poderá ser percebida após a tradução. O cômico criado pela linguagem, por outro lado,
é intraduzível, pois depende da estrutura da frase e da escolha de palavras disponíveis em
cada língua. Este tipo de comicidade “sublinha os desvios da própria linguagem. No caso, é a
própria linguagem que se torna cômica” (idem, p. 57).
Há entre a comicidade das ações e situações e a comicidade da linguagem certa
correspondência, visto que o que há de mecânico e artificial na ação de fazer o que não se
quer fazer, também o há no fato de se dizer o que não se quer dizer ou de ouvir o que não se
disse.
Fonte: http://desenblogue.com
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Fonte: http://www.desencannes.com.br
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No anúncio 4, vemos esta materialização por meio de uma palavra que foi tomada em
seu sentido “próprio”, ou seja, dicionarizado, quando deveria ser entendida como um nome
próprio que denomina o jornal.
Repetir, inverter, interferir são três ações que, como vimos, possibilitam transformar o
vivo em mecanismo, o homem em marionete. Estas mesmas ações se transformam em meios
de se manipular a linguagem para produzir efeitos cômicos. A inversão, a interferência e
repetição (ou transposição) são, pois, procedimentos importantes na comicidade de palavras.
Pressente-se, pois, que uma frase se tornará cômica se ainda tiver sentido mesmo
invertida, ou se exprimir indiferentemente dois sistemas de ideias totalmente
independentes, ou enfim se a obtivermos transpondo a ideia a uma tonalidade que
não é a sua. Essas são de fato as três leis fundamentais do que poderíamos chamar de
a transformação cômica das proposições... (BERGSON, 1987, p. 64)
Como vimos, a comicidade criada pela linguagem, do modo como é apresentado por
Bergson (1987), em nada difere da comicidade em geral: é o mecânico que se sobrepõe ao
vivo, o rígido que vence o maleável, é a distração em lugar da atenção. “A linguagem só
consegue efeitos risíveis porque é obra humana, modelada o mais exatamente possível nas
formas do espírito humano” (BERGSON, 1987, p. 69).
Há muitas críticas sobre a abordagem dada por Bergson ao humor. Muitas dessas
críticas se devem ao fato de o autor definir o cômico principalmente sob seu aspecto negativo,
dando ao riso a tarefa de correção social de um descuido. No entanto, este fato não impede
que o livro seja uma referência entre os estudos dedicados ao humor e ao riso em geral.
Em seu livro intitulado Os chistes e sua relação com o inconsciente, Freud (1987) faz
uma ampla revisão acerca do chiste, retomando caracterizações e definições dadas por outros
autores, antes de apresentar sua própria visão sobre o tema. A tese central desta obra de Freud
é que o processo de formação dos chistes é semelhante ao dos sonhos, ou seja, o prazer que
deriva do chiste provém do inconsciente da mesma forma que a elaboração do sonho.
Na formação do sonho, segundo o autor, haveria três estágios: primeiro os resíduos
diurnos seriam transpostos do pré-consciente ao inconsciente; em segundo lugar, uma vez no
inconsciente, tais resíduos seriam transformados em material onírico; em terceiro, por fim, a
elaboração onírica poderia ser percebida e se tornaria novamente consciente. A formação do
chiste na pessoa que o elabora corresponderia a dois desses três estágios de formação – o
37
Embora não seja central em sua obra, Freud também relaciona os chistes a outras
espécies de cômico, relação que nos ajuda a compreender, principalmente, a natureza dos
chistes. Para diferenciá-los, o autor recorre a uma primeira caracterização do cômico: este
“pode contentar-se com duas pessoas: a primeira que constata o cômico e a segunda, em quem
se constata o cômico. A terceira pessoa, que é aquela a quem se conta a coisa cômica,
intensifica o processo, mas nada lhe acrescenta” (FREUD, 1987, p. 171). Em outras palavras,
o cômico se caracteriza por necessitar da pessoa que ri da situação cômica e da pessoa que é o
objeto cômico ou que está envolvida na situação que provocou o riso. O cômico não precisa
ser comunicado necessariamente para produzir seus efeitos, ele, preferentemente, precisa ser
visto, observado, constatado. O chiste, ao contrário, depende principalmente da pessoa que
conta e da pessoa a quem se conta o chiste, sem a qual o processo de produção do prazer não
estaria completo. Logo, uma grande diferença entre o cômico e o chiste reside no fato de que
o chiste não provém da constatação de comicidade em alguém ou em alguma coisa, como
ocorre com o cômico, ele é antes feito para ser comunicado verbalmente a outra pessoa. Como
afirma Freud (1987, p. 171):
um chiste se faz, o cômico se constata – antes de tudo, nas pessoas; apenas por uma
transferência subsequente, nas coisas, situações etc. No que toca aos chistes,
sabemos que as fontes do prazer, que há de ser fomentado, residem no próprio
sujeito e não em pessoas externas (FREUD, 1987, p. 171).
Nesta citação, Freud enfatiza a grande diferença entre os dois tipos de risíveis: o chiste
é feito, é produzido pela própria pessoa que o profere, não reside necessariamente em outra
pessoa; neste caso, o prazer da pessoa que produz o chiste (a primeira pessoa), deriva de uma
interferência do inconsciente nos sentidos conscientes, economizando esforço intelectual. O
cômico, por outro lado, é observado principalmente na segunda pessoa; neste caso, o prazer
provocado na primeira pessoa não provém de si mesma, mas da pessoa na qual se constata o
cômico ou que por algum procedimento específico foi tornada cômica. O prazer que a
primeira pessoa sente não provém do inconsciente como no chiste, mas sim de um pré-
consciente tornado consciente, ou seja, já se tinha uma consciência prévia do que seria um
movimento, uma ação ou uma situação adequados; ao se observar a transgressão, constata-se
o cômico. Como exemplo, Freud apresenta a diferença básica entre o chiste e o tipo de
cômico mais próximo do chiste, o ingênuo. Por um lado, o cômico ingênuo, principalmente
quando expresso por meio de comentários, se assemelha ao chiste quanto aos efeitos que
provoca na terceira pessoa, aquela a quem se conta o cômico. Mas, por outro, se diferencia
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dele quanto à intencionalidade: nos chistes, sabe-se que a primeira pessoa se predispôs a
produzi-los, enquanto no caso do ingênuo, sabe-se que a pessoa na qual se constata o cômico
ingênuo, não está ciente de que produziu comicidade. A ingenuidade torna-se cômica
exatamente porque todos temos certos padrões guardados em nosso pré-consciente que se
tornam óbvios quando ignorados por outra pessoa.
O que é que faz diferença entre um chiste e alguma coisa ingênua? (...) Trata-se
meramente de que admitamos que o locutor pretendeu fazer um chiste ou de que
suponhamos que ele (...) tenha tentado, de boa fé, sacar uma conclusão séria à base
de sua impune ignorância. Apenas este último caso é uma ingenuidade. (FREUD,
1987, p. 173)
entre o que foi planejado (viver até os 90 anos) e o que de fato pode acontecer (viver até os
102 anos.
Em sua obra, Freud destaca três características principais dos chistes que os diferencia
do cômico em geral: 1) o fator vontade – a primeira pessoa chistosa quer fazer um chiste, mas
a primeira pessoa cômica não tem necessariamente a intenção de sê-lo (ou, pelo menos, faz
acreditar que não tinha esta intenção, como no caso de um personagem de comédia); 2) o fator
consciência – o chiste produz um prazer proveniente do inconsciente em decorrência de
economia de esforço intelectual, já o cômico produz um prazer proveniente de uma pré-
consciência que se torna consciente por meio de comparação com outra pessoa ou consigo
mesma; 3) o fator expressividade – o chiste é produzido para ser comunicado verbalmente,
sua produção e interpretação dependem em grande medida de sua forma de expressão, de
modo que o material linguístico é sua matéria prima; o cômico, ainda que possa ser
comunicado verbalmente, não precisa desta condição para ser constatado, seu efeito depende
exclusivamente de fatores não linguísticos.
Como uma das funções dos chistes, de acordo com Freud, é trazer à tona fontes de
prazer cômico que não se encontravam acessíveis, é possível encontrar fontes do cômico nos
chistes, ou seja, uma situação cômica ou uma degradação que torne as coisas cômicas podem
42
Fonte: http://desenblogue.com
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Isto ocorre também quando a ordem das palavras é alterada – “começou mal” X “mal
começou” (624, p. 94), ou quando duas palavras mesmo com leve modificação guardam entre
si alguma semelhança fônica – “Devassa” X “Bebassa” (anúncio 7).
Embora tenha se preocupado em estabelecer divisões e subdivisões para os chistes de
palavras, Freud (1987) chegou à conclusão de que a principal técnica de produção dos chistes
verbais é mesmo a condensação:
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etc. Em todos estes casos, o chiste se ocupa de representar alguma coisa que não deve ou não
pode ser expressa de modo direto devido a alguma restrição que depende, em geral, da
situação. Assim, recorre-se a associações e inferências que possibilitem ativar na memória a
alusão, a similaridade ou a representação oposta de um pensamento que não foi dito
diretamente.
O anúncio acima ilustra a comicidade gerada por meio da representação indireta. Há,
no Brasil, um consenso de que a maioria dos cursos de inglês começa ensinando coisas que
têm pouca relevância, como por exemplo, a localização de objetos. Desta forma, surgiu a
frase “the book is on the table” que, em sentido figurado em contexto brasileiro, significa que
o que se ensina nos cursos de idiomas em geral não tem utilidade na vida cotidiana do aluno,
pois os cursos se restringem à repetição de frases feitas. A comicidade do anúncio 8 reside no
fato de representar indiretamente esta frase, invertendo a ordem das palavras (“the table is on
the book”) por meio da imagem. Esta alusão também ridiculariza o método de ensino
anunciado, uma vez que a inversão feita não altera significativamente o procedimento
empregado.
Ainda que o humor não seja seu objeto de análise, em A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento: o contexto de Francois Rabelais, Bakhtin (2010) acaba
desenvolvendo uma ampla reflexão em torno de um tipo específico de riso – o riso popular da
praça pública, das festas e do carnaval. O maior propósito de Bakhtin nessa obra é situar
adequadamente o lugar de Rabelais entre os grandes nomes da literatura clássica –
Shakespeare, Cervantes, Dante etc., visto que, em geral, segundo o autor, Rabelais foi
injustiçado pela crítica que sucedeu o século XVI, tendo sido considerado por muitos como
um autor de obras grotescas e de mau gosto. Defende que para compreender Rabelais, “é
preciso lê-lo com os olhos dos seus contemporâneos e contra o fundo da tradição milenar que
ele representa” (BAKHTIN, 2010, p. 195). Para tanto, propôs-se a investigar a cultura cômica
popular, bem como sua dimensão e suas características originais, mostrando como essa
cultura influenciou decisivamente as imagens e a concepção literária do século XVI como um
todo e a obra de Rabelais em particular.
Não resta dúvida de que o lugar histórico que ele ocupa entre os criadores da nova
literatura europeia está indiscutivelmente ao lado de Dante, Boccacio, Shakespeare e
Cervantes. Rabelais influiu poderosamente não só nos destinos da literatura e da
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Para Michael Bakhtin (idem), este riso medieval, carnavalesco, expressão de liberdade
popular, está presente em todas as imagens usadas por Rabelais em sua obra e explica todo o
seu viés cômico. Bakhtin propõe uma subdivisão das múltiplas manifestações da cultura
popular desse período em três categorias distintas: as formas dos ritos e espetáculos, onde
inclui os festejos carnavalescos e as obras cômicas representadas nas praças públicas; as obras
cômicas verbais de natureza diversa (orais e escritas, em latim ou em língua vulgar), onde
inclui as paródias; e as diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro, como os
insultos, os juramentos, os blasões populares, etc..
As formas dos ritos e espetáculos, principalmente os festejos carnavalescos e a
comicidade a eles ligados, possuíam, segundo Bakhtin, grande importância na vida do homem
medieval. No entanto, o aspecto cômico não era explorado exclusivamente nos ritos de
carnaval, mas também nas festas religiosas, nas festas agrícolas celebradas nas cidades e nas
cerimônias e ritos civis da vida cotidiana, através dos bufões e dos “bobos”.
A sociedade medieval era organizada em torno a uma hierarquia ditada pelo regime de
classes e pelo Estado. A vida cotidiana era regulada pelo medo e pela opressão. Era dessa
forma que a hierarquia social era mantida, que o Estado obrigava o cumprimento das leis e
que a igreja transmitia seus dogmas. As festas oficiais acabavam de alguma forma
contribuindo para a manutenção não só da hierarquia como também dos valores, das normas e
dos tabus religiosos, políticos e morais que predominavam então. Por isso mesmo, as formas
cômicas, manifestações eminentemente não-oficiais, perderam seu espaço e ficaram restritas a
essa esfera popular da praça pública, onde o riso era permitido, criando uma dualidade
vivenciada cotidianamente – por um lado a vida oficial de restrições, por outro, a festa
carnavalesca da liberdade. Conforme Bakhtin (2010, p. 79), “tudo que era temível, tornava-se
cômico”. Por isso mesmo, a praça pública representava a liberdade, pois nela, tudo o que
oprimia o indivíduo era ridicularizado e perdia seu efeito assustador.
49
Durante as festas da praça pública, o povo sentia-se liberado do comando, das regras,
das obrigações, do medo, enfim, sentia-se livre para usar formas especiais de vocabulário e
para utilizar-se de gestos típicos da praça pública, livres de restrições ou de normas. A
linguagem utilizada era familiar, recheada de insultos, juramentos e grosserias, ou seja, de
expressões e palavras injuriosas.
Discursos especiais ressoavam na praça pública por meio da linguagem familiar, que
formava quase uma língua especial, inutilizável em outro lugar, nitidamente diferenciada
daquela usada pela Igreja, pela corte, tribunais, instituições públicas, pela literatura oficial, da
língua falada das classes dominantes (aristocracia, nobreza, alto e médio clero, aristocracia
burguesa), embora o vocabulário da praça pública aí irrompesse de vez em quando, sob certas
condições. (idem, p. 133)
Os gestos, da mesma forma que a linguagem, evidenciavam a familiaridade entre as
pessoas, quebrando a relação hierárquica e estabelecendo a aproximação. Essa linguagem e
esses gestos influenciaram o surgimento das obras cômicas verbais, orais e escritas, que, por
sua vez, também exerceram profunda influência na obra de Rabelais e no riso que ela suscita.
É deste contexto que surge o riso carnavalesco, um riso festivo, popular, universal e
ambivalente:
As imagens suscitadas pela cultura popular da praça pública, como ressalta Bakhtin,
estão carregadas de formas universais, festivas e principalmente ambivalentes. Desta forma, o
material e o corporal, o alto e o baixo, o natural e o espiritual, o profano e o sagrado, tudo
aparece sob a forma universal, festiva e utópica. As imagens grotescas do corpo, por exemplo,
50
Essa ambivalência que caracteriza o riso popular se explica por sua forma de
possibilitar ao homem medieval a superação de seus próprios medos, transformando o temível
em risível, a rigidez oficial em festa e o sério em cômico. “Os homens da Idade Média
participavam igualmente de duas vidas: a oficial e a carnavalesca, e de dois aspectos do
mundo: um piedoso e sério e outro, cômico.” (BAKHTIN, 2010, p. 83)
Como consequência dessa cultura de duas faces deixada pelo período medieval,
também o Renascimento ainda experimentou essa divisão entre o sério e o popular, embora já
não com a mesma intensidade. Nesse período, o riso passou a ser tomado como forma
universal de concepção do mundo e a literatura renascentista tentou transmitir esse caráter,
como se percebe nas obras de Rabelais, de Cervantes, de Shakespeare, dentre outros.
Conforme Bakhtin (2010, p. 57),
Segundo Bakhtin (idem, p. 60), as três fontes antigas mais populares da filosofia do
riso do Renascimento e que exerceram grande influencia sobre a obra de Rabelais “definem o
riso como um princípio universal de concepção do mundo, que assegura a cura e o
renascimento”. Neste sentido, “o riso tem uma significação positiva, regeneradora, criadora, o
que a diferencia nitidamente das teorias e filosofias do riso posteriores, inclusive a de
Bergson, que acentuam de preferência suas funções denegridoras.” (idem, p. 61). Se na Idade
51
Média o riso era categoricamente separado da vida oficial, possuindo sua legalidade apenas na
praça pública, no Renascimento ele ganhou um espaço mais privilegiado ao ser introduzido
também nas festas oficiais, religiosas e estatais, como forma de conquistar a confiança
popular. Como acrescenta o autor, “a cultura popular não oficial dispunha na Idade Média e
ainda durante o Renascimento de um território próprio: a praça pública, e de uma data
própria: os dias de festa e de feira” (idem, p. 133). No entanto, esse território se tornou maior
no Renascimento e extrapolou o espaço restrito da praça pública. Ainda assim, o riso
carnavalesco não perdeu seu caráter universal e ambivalente, e Rabelais foi, dentre os autores
renascentistas, o que mais e melhor explorou essa realidade em sua literatura.
De acordo com Bakhtin (2010), as formas e imagens da festa popular, o vocabulário
da praça pública, as imagens grotescas do corpo, as imagens dos banquetes, o baixo material e
corporal, são todas imagens que suscitam, em Rabelais, a festividade e a ambivalência do riso
carnavalesco. Assim, compreender a comicidade rabelaisiana é antes de tudo compreender
suas imagens e relacioná-las à realidade de seu tempo. “O verdadeiro último grito de Rabelais
é a palavra popular alegre, livre, absolutamente lúcida, que não se deixa comprar pela dose
limitada de espírito progressista e de verdade acessíveis à época.” (BAKHTIN, 2010, p. 399)
Esse riso festivo, carnavalesco, de que trata Bakhtin em sua obra, ainda pode ser
encontrado atualmente, mas nem sempre carrega seu tom ambivalente, aquele que o
caracterizava na época do Renascimento. O riso carnavalesco continua, de certa forma,
restrito a determinadas situações menos formais, embora seu espaço de atuação tenha
extrapolado os limites da praça pública. Uma das formas mais evidentes de manifestação do
riso carnavalesco, hoje, diz respeito aos programas televisivos de humor – espaço onde o riso
readquire, muitas vezes, seu tom ambivalente – burlador e sarcástico, mas ao mesmo tempo
alegre e cheio de alvoroço; por um lado, denegridor, por outro, uma forma de cobrar
transformações políticas e sociais. Também é possível identificá-lo em charges, caricaturas,
piadas e chistes que circulam em alguns espaços, no entanto este riso carnavalesco ainda é
restrito e não se manifesta indistintamente.
No âmbito da publicidade, esse riso alegre e cheio de alvoroço serve antes como forma
de levar o consumidor a se reconhecer, bem como reconhecer seu espaço de festa e alegria,
seu entorno popular e seu tom brincalhão. O anúncio da Sadia, tanto o televisivo quanto o
impresso, empregou, durante um período, o bordão popular: “Nem a pau, Juvenal!”. Esse
bordão sempre esteve restrito ou ao âmbito familiar, ou a espaços públicos menos formais,
onde as pessoas vivenciam relações de maior proximidade. Esse jargão dificilmente seria uma
forma empregada em situações cujo contrato de comunicação seguisse padrões pré-
52
4
Não é nosso objetivo, neste estudo, aprofundar-nos conceitualmente sobre o que sejam as representações
sociais, tampouco explicitar as divergências e convergências que tal noção pode adquirir nas diferentes correntes
teóricas, quais sejam, a Sociologia, as Ciências Sociais, a Psicologia Social, a Filosofia, a Análise do Discurso
etc. No entanto, vale destacar que tomamos por base a noção de representação coletiva de Durkheim (1973, apud
RETONDAR, 2007, 20), que, no campo da Sociologia, as define como práticas partilhadas socialmente, “o
produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas no tempo...” (DURKHEIM, idem,
p. 518). Também nos serviremos da noção de representações sociais oferecida pela Psicologia Social,
entendendo-a como “o modo pelo qual os indivíduos interagem com a realidade considerando as informações
que circulam de maneira hegemônica em vários campos de sua atuação” (RETONDAR, 2007, p. 28). Neste
sentido, entendemos que os valores, as opiniões, as imagens, a cultura, as formas de sentir, a ideologia, os
estereótipos, as crenças, as aspirações, tudo contribui para a constituição das representações sociais.
53
Bergson (1987) sustenta que o cômico tem estreita relação com a rigidez cotidiana de
nossos sentidos e de nossa inteligência, isto é, nos habituamos tanto a determinadas formas de
pensar, de agir e de dizer, que acabamos reproduzindo mecanicamente as mesmas fórmulas.
Essas formas cômicas, no entanto, não estão desvinculadas de sua inserção num determinado
grupo de pessoas; para o autor, o ambiente natural do riso é a sociedade, por isso, corresponde
a certas exigências da vida comum, tendo, pois, uma significação social. Para o autor, então, o
cômico é uma forma de controle social, podendo funcionar como estratégia de correção de
desvios, como denúncia ou como crítica social. Fica evidente no postulado de Bergson (idem)
que há na sociedade normas de conduta mais ou menos estabilizadas que devem ser
reconhecidas e respeitadas por todos os indivíduos que conformam a coletividade.
Freud (1987), ao dar primazia ao inconsciente, de certa forma nos conduz a repensar a
produção e a interpretação do chiste como uma forma de liberação de emoções reprimidas que
estão sujeitas à demanda de esforço intelectual que a educação e as restrições sociais
normalmente impõem para a apreensão de outros tipos de enunciados. Ou seja, estamos
acostumados a determinadas normas que condicionam nossa relação com o mundo, com a
sociedade, e conosco mesmos, normas que derivam da nossa educação intelectual e social.
Sempre que precisamos interpretar um enunciado precisamos catalisar nossa energia psíquica
procurando adequar nosso raciocínio àquilo que a sociedade espera de nós. O chiste, no
entanto, gera uma economia que torna essa energia desnecessária, e ela acaba sendo liberada,
tornando-se uma fonte de prazer que se manifesta por meio do riso. Essa forma de analisar o
papel do inconsciente na produção dos chistes coloca-nos de certa forma diante da questão da
rigidez social de Bergson, ou seja, é justamente porque nos possibilita escapar a tal rigidez
que o riso emerge.
Também encontramos em Bakhtin (2010) e em seu riso carnavalesco algo em comum
com os dois autores supracitados. O autor defende a ideia de que o riso é proveniente daquilo
que é popular, logo, social, compartilhado em maior ou menor grau por um grupo de pessoas
que convivem em um espaço determinado, no caso, a praça pública. Logo, o riso carnavalesco
está associado a aspectos coletivos de um determinado grupo e só pode ser entendido quando
relacionado a este grupo.
O que estamos tentando mostrar com estas reflexões é que, ainda que se trate de
autores que escreveram sobre o humor a partir de fundamentos teóricos distintos, com
propósitos distintos e em épocas distintas, há entre eles uma concepção do humor, do cômico
e do riso que lhes é comum em certa medida. Em outras palavras, seja como correção da
rigidez social, seja como liberação das imposições sociais, seja como manifestação do popular
54
socialmente partilhado por uma coletividade, nas três abordagens é possível perceber que as
representações que circulam em um grupo social influem tanto na produção quanto na
interpretação do humor. O humor condensa as representações sociais, possibilitando que
assuntos proibidos, tabus, determinadas formas de pensar tomadas como inconvenientes por
um grupo etc., venham à tona sem serem reprimidos ou repreendidos. Como postula Bakhtin
(idem), o riso simboliza a liberdade, o não sério, o não institucional, o popular, a festividade,
enfim, tudo aquilo que o homem vivencia de modo descontraído em um ambiente não oficial.
Logo, o humor é uma das formas encontradas para fazer viver essa liberdade, de ativar esse
riso por meio de técnicas que acendam a memória social, libertando-a do automatismo e
possibilitando uma economia intelectual.
Toda a matéria-prima necessária à produção do humor encontra-se na memória
coletiva, à qual o humorista recorre para provocar o riso. Toda sociedade possui imagens de si
mesma e imagens das outras sociedades, como verificamos em muitas piadas, como a que
segue:
manifestação, também cria e inventa seus próprios estereótipos, mitos e crenças. Neste estudo,
entendemos estereótipo como “imagens pré-concebidas e cristalizadas, abreviadas e fatiadas,
das coisas e dos seres que o indivíduo faz sob a influência de seu meio social” (MORFAUX,
1980, p. 34 apud CHARAUDEAU e MAINGUENEAU. 2008, p. 215). Muitas das imagens
construídas por meio dos discursos que circulam em uma sociedade (a exemplo dos discursos
humorísticos) não correspondem a um referente exato, mas a representações coletivas
estereotipadas; a imagem do português como desprovido de inteligência, do surdo como
aquele que não entende nada do que se diz, da mulher como sexo frágil ou como símbolo
sexual, do baiano como o preguiçoso, da loira como a burra etc., todas essas são imagens que
circulam em nossa sociedade e que se cristalizam de tal modo que podem ser mobilizadas e
apreendidas em uma enunciação.
Ao pensar na associação entre o humor e a publicidade não podemos deixar de pensar
que essas representações sociais têm forte relevância, uma vez que, por um lado, o humor
brinca com elas, ridicularizando-as ou valorizando-as de modo a causarem algum
estranhamento, algum desvio potencialmente cômico; por outro lado, a publicidade alimenta e
recria representações sociais com a finalidade de conquistar a conivência de seus
consumidores. O discurso humorístico, em geral, concentra significados históricos, símbolos
compartilhados, imagens pré-construídas, de modo que todos se identifiquem como parte de
um determinado grupo que vivenciam experiências bem próximas. A compreensão do humor
precisa da memória coletiva, exigindo que os fatos postos em questão sejam do conhecimento
de todos.
Sirio Possenti (2010), em seus estudos sobre as piadas em geral, diz que às vezes é
inevitável fazer alusão aos fatores extralinguísticos envolvidos em sua interpretação
(identidade, estereótipos, imaginário social, ideologias etc.). “A razão é que esses tipos de
textos [piadas e anedotas] sempre retomam discursos profundamente arraigados e cujos temas
são sempre cruciais para uma sociedade” (POSSENTI, 2010, p. 40). Para o autor, o humor se
funda sobre temas controversos, sobre questões sociais polêmicas, que se tornam populares,
que encontram amparo nos discursos que circulam amplamente, que são debatidos e rebatidos
pelas pessoas, e sobre os quais surgem divergências, como no caso dos discursos censurados
(sexo, traição, racismo, política etc.).
Muitas das representações surgem do acúmulo de fatos e acontecimentos, desde as
narrativas orais que eram passadas de geração em geração, aos festejos populares e religiosos,
que desde o início da humanidade formaram parte da cultura. Esse imaginário, diante da
modernidade, da cultura de massa e do capitalismo globalizado, não perdeu seu espaço; ao
56
Em uma sociedade, a relação do indivíduo consigo mesmo, bem como sua relação
com os demais não deixa de ser filtrada pelas representações e pelo imaginário de cada época,
são as imagens de si mesmo e as dos outros que estabelecem as formas de sociabilidade.
Assim podemos entender o papel da mulher ao longo da história e sua transformação que
desembocou no movimento social do “feminismo” que suscitou tantos acontecimentos
discursivos e que serviu à produção de inúmeros textos humorísticos (principalmente sobre as
loiras). Da mesma forma, se explica o papel do homem e todas as imagens que se lhe
associam, como por exemplo, a de que as principais preocupações do homem são mulher,
carro e futebol. Tais imagens não só influenciam a forma como o próprio homem se vê, como
também a visão da sociedade como um todo.
Referindo-se às três instâncias que intervêm na atividade verbal, Maingueneau (2001)
vai identificar três competências distintas: a competência comunicativa, a competência
linguística e a competência enciclopédica. A primeira diz respeito à nossa aptidão para atuar
verbalmente nas diferentes situações de comunicação, recorrendo aos gêneros adequados e
tomando as atitudes esperadas de acordo com cada gênero. A segunda refere-se ao domínio da
57
foragidos). Ainda de acordo com este autor, “nesta primeira fase, a publicidade era bastante
rudimentar em seu aspecto estético, tanto textual quanto visual. Os reclames limitavam-se a
informar a disponibilidade de bens e serviços, não tinham a menor preocupação em atrair a
atenção dos leitores” (idem). De acordo com o Dicionário histórico-biográfico da
propaganda no Brasil (ABREU e PAULA, 2007), em 1822, com a independência do Brasil, a
imprensa brasileira se expandiu, fazendo surgirem novos jornais em todo o país, fato que
ampliou a veiculação de anúncios. Apenas no final do século XIX, com o advento de uma
concorrência proveniente do aumento da classe industrial e mercantil, as peças publicitárias
passaram a ser textualmente mais elaboradas. Apareceram, então, os primeiros anúncios
ilustrados e coloridos. Como informa Santos (idem), “os publicitários dessa época eram
artistas, escritores renomados e poetas, que criavam ‘quadrinhas’ para os produtos, cheias de
rimas e graças”, marcando um tom irreverente que ainda hoje predomina na publicidade
brasileira, como ilustra um anúncio da época, veiculado em bondes:
Foi ainda no início do século XX, com a chegada de empresas multinacionais, tanto
européias quanto americanas, que se consolidou o espaço da publicidade brasileira. Neste
período, foram instaladas grandes agências estrangeiras que trouxeram um novo pensamento
publicitário, além de novas expressões que vigoram ainda hoje (layout, slogan etc.).
Outro grande impulso viria com o aparecimento das emissoras de rádio, que em pouco
tempo se transformaram no principal meio de publicidade, superando os meios impressos.
Logo, além de jingles, spots e telenovelas, vieram os primeiros programas patrocinados por
grandes empresas, que por meio da repetição de slogans, informavam sobre as qualidades do
produto e incitavam à sua compra. A partir da década de 1960, no entanto, o rádio perde sua
hegemonia, tendo de dividir espaço com a televisão que em pouco tempo se tornou o maior
veículo de publicidade do país, como nos informa o Dicionário (ABREU e PAULA, p. 14):
“a televisão se impôs como o maior veículo de publicidade a partir do final da década de
1960, quando passou a receber 43% das verbas de propaganda. A seguir vinham: revistas
(22%), rádio (15%), jornais (14,5%)”. Além do desenvolvimento das mídias em geral (jornais,
rádio e televisão), Monnerat (2003, p. 12) aponta “a irrupção da produção de massa” e “a
elevação do nível de vida médio, devido à intensificação dessa produção”, como responsáveis
pela força e estabilidade que a publicidade possui atualmente. Com a migração do campo para
as cidades e a formação da classe média urbana, houve grande demanda de bens de serviço e
de consumo, o que fez aumentar a produção de massa e o apelo ao consumo. O surgimento de
61
A quantidade de publicidades que disputam o espaço midiático tem sido cada vez
maior. No entanto, o certo é que, desde suas origens até hoje, a publicidade se remodelou, seja
buscando atender as demandas sociais, seja devido à necessidade de se adequar às novas
mídias. De pregões e reclames orais rudimentares aos cada vez mais elaborados anúncios
publicitários que são veiculados nos diversos dispositivos midiáticos, a publicidade conta
agora também com a internet, que cada vez mais se consolida como veículo de comunicação e
como espaço de divulgação publicitária.
Vimos no tópico anterior que um dos tipos de publicidade que primeiro circulou no
Brasil foram os anúncios orais – os pregões, os proclames, as declamações, os anúncios nas
igrejas etc. Com o avanço da modernidade, entretanto, os anúncios foram se modificando,
dando origem ao grande número de gêneros publicitários da atualidade, distribuídos nos
diferentes veículos midiáticos – jornais e revistas, TV e rádio, publicidades em espaços
públicos, internet. Cada um desses veículos reclama especificidades relativas ao formato, ao
conteúdo, ao estilo, à extensão etc. Por este motivo, ao longo dos tempos, as publicidades
sofreram modificações tanto em sua estrutura composicional (que de rudimentar e simples,
passaram a uma elaboração cada vez mais refinada, com a interação de diferentes linguagens)
quanto em seu estilo e em sua temática.
De acordo com Bakhtin (2000), toda esfera da atividade humana comporta certo
número de enunciados estabilizados pelo uso concreto, que de acordo com as condições
específicas de produção e com as finalidades de cada esfera, tornam recorrentes os conteúdos
temáticos, o estilo verbal aplicado e a estrutura composicional do enunciado. Ainda que cada
enunciado seja, para este autor, individual, ou seja, ainda que sua ocorrência seja um
acontecimento único, ele considera que cada esfera “elabora seus tipos relativamente estáveis
de enunciados” (idem, p. 279), ao que denomina gêneros de discurso. Sob esta perspectiva, os
gêneros aparecem como forma de ordenar e estabilizar as atividades discursivas de cada
esfera da atividade humana, colocando à disposição formas de expressar que facilitam a
comunicação cotidiana. No entanto, estas formas não são rígidas, elas tendem a sofrer
modificações decorrentes, por exemplo, de novas necessidades ou atividades sociais. Para
Maingueneau (2001, p. 65), “trata-se de rotinas, de comportamentos estereotipados e
anônimos que se estabilizaram pouco a pouco, mas que continuam sujeitos a uma variação
63
contínua”. É por isso que ao longo de sua história, os gêneros de discurso, e com eles a
publicidade, remodelam ou criam novas formas de enunciar, adequando-se aos diferentes
meios de veiculação e às novas necessidades. Ainda com base em Maingueneau (idem), todo
gênero de discurso constitui-se como atos de linguagem complexos (macroatos) 5, estando,
pois, sujeito a um conjunto de condições de êxito. Sendo assim, para que se efetive, um
gênero deve pressupor alguns elementos fundamentais – a finalidade, o estatuto dos parceiros,
o lugar e o momento de enunciação. A alteração em qualquer destes elementos provoca
também alteração no modo de enunciar, como salienta o autor no fragmento seguinte.
Um cartaz publicitário fixado à beira de uma via férrea é feito para ser visto
rapidamente, enquanto uma propaganda em uma revista é itinerante (pode-se ler um
periódico em qualquer lugar) e fica disponível ao leitor por tempo indeterminado. O
cartaz não constitui a "mesma" propaganda que a que aparece numa revista
feminina: seu público é indeterminado (qualquer pessoa que venha a andar de trem:
homens, mulheres, crianças, pessoas de qualquer profissão, de qualquer idade...); já
a publicidade da revista feminina tem um público especificado. Essa diferença afeta
seu modo de consumo. Os leitores potenciais do cartaz podem não chegar a tomar
conhecimento dele e, de qualquer forma, não terão muito tempo, nem, talvez, desejo
de lê-lo. Nesse caso, o publicitário criador do cartaz deverá se contentar com um
texto simples, bem curto e com letras bem grandes. No caso da revista, ao contrário,
trata-se de "prender" a atenção instável do leitor que a folheia; nesse caso, propõem-
se pelo menos dois níveis de texto: por um lado, um fragmento curto em letras
grandes que condensa a informação e atrai o olhar; por outro, para o leitor que aceita
prosseguir, um texto com letras menores em que são desenvolvidos alguns
argumentos. (MAINGUENEAU, 2001, p. 67)
5
Retomaremos este assunto no quarto capítulo, quando abordaremos os macroatos de linguagem.
64
Os anúncios televisivos, por exemplo, devido ao meio técnico em que circulam, são
mais ágeis, dinâmicos e apelativos, mobilizando recursos diversos (som, imagem, cores
movimento etc.), enquanto os anúncios impressos precisam tocar a percepção visual do
alocutário. A TV, além de veicular anúncios publicitários que oferecem os mais diversos
produtos, também cria ou apresenta por meio de seus programas de entretenimento (novelas,
filmes etc.) padrões de vida, de beleza, de cultura, de saúde etc. que exercem sobre as pessoas
uma forte atração.
O anúncio de revista, por mais que também tenha uma constituição sincrética, visto
integrar a linguagem verbal e a icônica, se configura de forma distinta. Nele, o signo verbal é
elucidativo, sua função será fixar ou complementar a significação da imagem que é, conforme
veremos no tópico seguinte, fundamentalmente conotativa. A criatividade do anúncio
televisivo depende em geral mais das linguagens não-verbais, ao passo que no anúncio
impresso, a criatividade se dá principalmente na interação entre o nível linguístico e o icônico,
convidando o leitor a ser co-construtor dos sentidos.
Bakhtin (2000) considera que os gêneros podem ser classificados em dois grandes
grupos: os gêneros secundários e os gêneros primários. Os secundários seriam os gêneros
mais complexos, como o romance e o teatro, que incorporariam os gêneros primários, mais
simples, como os gêneros do discurso cotidiano (uma conversa, por exemplo). Para Bakhtin
(idem, p. 281),
relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios
- por exemplo, inseridas no romance, a réplica do diálogo cotidiano ou a carta,
conservando sua forma e seu significado cotidiano apenas no plano do conteúdo do
romance, só se integram à realidade existente através do romance considerado como
um todo, ou seja, do romance concebido como fenômeno da vida literário-artística e
não da vida cotidiana. O romance em seu todo é um enunciado, da mesma forma que
a réplica do diálogo cotidiano ou a carta pessoal (são fenômenos da mesma
natureza); o que diferencia o romance é ser um enunciado secundário (complexo).
6
Disponível em: http://www.vejatv.com/video-1578.O-Boticrio.html, consultado em: 19/11/2011, às 17:18.
68
enunciativa. Koch, Bentes e Cavalcante (2007, p. 17) consideram que para que haja
intertextualidade “é necessário que o texto remeta a outros textos ou fragmentos de textos
efetivamente produzidos, com os quais estabelece algum tipo de relação”. Ainda de acordo
com as autoras, qualquer retextualização altera a força ilocucionária e o efeito
perlocucionário 7 do texto-base. Nestes casos, o que predomina é a função do gênero que
incorpora e não a forma do gênero incorporado, ou seja, independentemente de o anúncio
apresentar-se como um poema, sua função principal ainda é a de vender um produto.
Como já vimos anteriormente, para Bakhtin (2000) algumas das especificidades dos
gêneros dizem respeito a seu conteúdo temático, a seu estilo e a sua estrutura, que são em
geral, estabilizados, isto é, recorrentes dentro de uma sociedade. Sempre que se quer escrever
uma carta, tomam-se alguns parâmetros sobre a temática que se pode abordar (se um tema
institucional ou um tema familiar), sobre seu estilo (formal/informal) e sobre sua estrutura
(local, data, saudação, texto, despedida, assinatura) 8. No entanto, alguns gêneros, como os
publicitários, por mais que também possuam suas especificidades, são mais suscetíveis de se
7
Sobre força ilocucionária e efeito perlocucionário, veja-se capítulo IV desta dissertação.
8 Vale destacar que a estrutura de um gênero textual não é decisiva em sua constituição, uma vez que um texto
que apresenta a estrutura de uma carta, por exemplo, pode funcionar como uma publicidade, como um artigo
jornalístico, como uma propaganda política etc. Neste caso, é necessário considerar também, com base em
Marcuschi (2008), que para a especificação dos gêneros é necessário considerar aspectos relativos à sua função e
ao seu propósito social.
69
O anúncio 15, por exemplo, se constrói como uma paródia do poema de Gonçalves
Dias – temos neste caso, a mescla de dois gêneros distintos – o anúncio e o poema. Se o
observarmos enquanto paródia, veremos que ele não apresenta marcas formais específicas que
denunciem seu diálogo com o poema. Ele só será percebido como paródia se houver o
reconhecimento da estrutura do poema, se o alocutário ativar sua memória discursiva para
identificar o texto que serviu de base. O anúncio, entretanto, torna sua intertextualidade
explícita, quando apresenta o seguinte enunciado: “Livremente adaptado do poema “Canção
do exílio”. Uma homenagem a Gonçalves Dias”.
A intertextualidade é um tema que perpassa outros aspectos que também serão tratados
nesta dissertação: cenografia (4º tópico deste capítulo) e polifonia (3º tópico do capítulo 4).
9
Sobre cenografia, veja-se tópico 3.4 deste capítulo.
70
No entanto, ela não se confunde com estes. A polifonia é um conceito mais amplo, que
engloba a intertextualidade, como veremos. A cenografia, por sua vez, diz respeito ao modo
como o discurso se apresenta ao alocutário.
Qualquer texto publicitário, para ser bem sucedido, precisa alcançar pelo menos cinco
objetivos: 1º) despertar a atenção do consumidor, e para isso, lançará mão dos recursos de que
dispõe em cada um dos meios de veiculação (rádio, televisão, revista etc.), dos recursos
oferecidos pela linguagem (tanto a verbal como a não verbal) e da competência enciclopédica
que supõe ser comum à coletividade; 2º) criar interesse, por meio de cenografias atraentes,
convincentes e validadas socialmente, apresentando um ethos legitimado que seja reconhecido
como apto a enunciar o que enuncia; 3º) estimular o desejo, intensificando as qualidades do
produto, destacando sua supremacia sobre os demais, apresentando o produto como a única
forma de alcançar o status social privilegiado etc.; 4º) permitir a memorização, sendo criativo,
sucinto, bem-humorado etc.; e 5º) provocar a ação (ou a aquisição) do produto, sendo este
último objetivo, o menos controlável, uma vez que o sucesso dos quatro primeiros objetivos
não garante que o consumidor se sinta motivado a adquirir o produto ou tenha meios de fazê-
lo. Dialogar com outros gêneros, seja recorrendo à temática, ao estilo ou à sua estrutura, pode
ser uma forma bem sucedida de alcançar todos estes objetivos de uma só vez, despertando a
atenção, criando interesse, estimulando o desejo, permitindo a memorização e ainda levando o
consumidor à aquisição do produto.
A autora acrescenta ainda que um bom título precisa ter duas qualidades principais: ser
conciso e positivo. O desafio é, em poucas palavras, conseguir atrair o leitor e convencê-lo
das qualidades do produto, o que pode ser feito de modo direto, dando-lhe informações
essenciais, ou indireto, provocando-lhe a curiosidade, causando-lhe algum efeito adicional,
como estranhamento, surpresa, etc. Um título é em geral composto por um enunciado, cujo
sentido completo só pode ser atribuído dentro do contexto do anúncio, como no caso do
enunciado “Quem vê cara, não vê configuração” (anúncio 16, a seguir), cujo sentido está
intimamente relacionado ao anúncio do computador. Enunciados como esse, que dependem
do contexto de enunciação, são “um recurso muito empregado no texto publicitário, porque
remete à imagem nele contida, ou seja, é uma forma de ‘forçar’ o receptor/consumidor a olhar
para a imagem que, na maioria das vezes, é o produto propagado, e conhecê-lo, desejá-lo e,
consequentemente, comprá-lo” (GONZALES, 2003, p. 41). Além disso, são os enunciados
que servem de título do anúncio que estão sujeitos às inovações linguísticas, possibilitando a
criação de ambiguidades e polissemias que tornarão a mensagem original, econômica e
surpreendente. Dessa forma, um título se caracteriza por seu poder de condensar o maior
número de informações favoráveis ao produto anunciado, com o menor número de recursos
linguísticos.
O texto é a parte do anúncio que traz mais informações sobre o produto, argumentando
em prol de suas vantagens e benefícios, de modo a seduzir e persuadir o leitor. Ao contrário
do que acontece com o título, o texto não apresenta, necessariamente, recursos criativos que
causem alguma surpresa ou estranhamento, apenas tenta acrescentar provas, descrições,
motivos e outras informações que criem a convicção de que se está diante do melhor, do mais
recomendável, do mais econômico, do mais essencial de todos os produtos. É através do
texto, com a ajuda de recursos expressivos variados, que o locutor poderá construir a
cenografia do anúncio, determinando de que modo a mensagem será transmitida ao
alocutário.
A marca ou assinatura confere ao produto uma singularidade, é ela quem garante a
qualidade anunciada. Ainda com base em Gonzalez (2003, p. 23), ela pode ser nominativa,
quando faz uso de uma palavra específica, em geral o nome da empresa, da instituição ou do
produto; ou figurativa, quando recorre a um símbolo visual, a um desenho ou a um emblema.
Alguns anúncios podem ainda apresentar um slogan, que em geral, aparece abaixo da marca e
72
Anúncio 16 – Dell: “quem vê cara, não vê configuração”. TÍTULO: Quem vê cara, não vê
configuração.
MARCA: DELL
vê coração” não poderia ser transmitido iconicamente, mas essa complementaridade é menos
evidente. Como informa o próprio Barthes (1985, p. 33), a ancoragem “é a função mais
frequente da mensagem linguística; é comumente encontrada na fotografia jornalística e na
publicidade”. O revezamento é a função mais rara na relação com as imagens fixas, sendo
mais encontrada nas histórias sequenciadas como as histórias em quadrinhos.
Essa relação entre o verbal e o icônico, baseada na ancoragem ou no revezamento,
contribui para constituir o que Maingueneau (2001) designou como cenografia. Como se verá
no tópico seguinte, a cenografia é a configuração que o falante dá a sua enunciação e é a
própria enunciação. A cenografia do anúncio publicitário é o resultado das linguagens que o
compõem, é a aparência final através da qual o anúncio cria uma imagem corporificada que
poderá ser reconhecida; é, por fim, a forma pela qual é possível dizer o que se quer dizer.
Como visto até aqui, a estruturação de um anúncio se baseia na interação entre dois
tipos de linguagem: a linguagem verbal e a linguagem icônica. No entanto, uma vez
estruturado, o anúncio se apresenta como um texto complexo, que transmite um discurso
produzido em função de destinatários específicos, sendo, portanto, portador de um poder de
persuasão, cuja finalidade é influenciar de alguma forma o consumidor. Vimos também que
um anúncio pode dialogar com outros textos, recuperando discursos pré-existentes com a
finalidade de atribuir à sua enunciação a mesma legitimidade que era atribuída ao texto de
origem, como ocorre com os provérbios, cuja legitimidade decorre do senso comum. De
acordo com Maingueneau (2001, p.99), o “poder de persuasão de um discurso consiste em
parte em levar o leitor a se identificar com a movimentação de um corpo investido de valores
socialmente especificados”. Esta corporalidade de que fala Maingueneau materializa-se
através da imagem social (ou ethos) que o enunciador constrói de si mesmo através de seu
discurso, imagem que remete a uma identidade que deve ser compatível com os valores
sociais inerentes ao mundo construído discursivamente, definido pelo autor como cena de
enunciação. Essa cena de enunciação constitui-se de uma instância comunicativa específica
(política, jurídica, religiosa, publicitária etc.), de uma estrutura composicional e de um estilo
determinados, e de um modo de dizer, que pode criar um mundo fictício que se aproxime das
demandas do mundo real. Desse modo, o ethos é a imagem que revela a personalidade do
enunciador e torna-se parte constitutiva de uma cena de enunciação expressa por atos tanto
implícitos como explícitos e presumida como adequada ao discurso e ao contexto.
76
Uma das preocupações do texto publicitário será, então, criar um ambiente propício
para que seus propósitos se concretizem. Um ambiente em que a enunciação funcione como
uma representação das expectativas sociais e na qual a imagem do produto corresponda às
imagens socialmente estabelecidas. Com base nisso, se inventa, se escolhe e se coloca em
cena uma voz e uma imagem enunciativas consideradas capazes de convencer o destinatário
das virtudes e propriedades do produto num tom que, embora seja persuasivo, se mostra
natural. Esta cena deverá ser capaz de envolver o leitor, de fazê-lo identificar-se com os
valores sociais ali representados. Precisa, pois, ser autorizada, legitimada pelos procedimentos
enunciativos usados nos diversos discursos e gêneros da interação social. Temos, assim,
instaurada o que Maingueneau (2001) chama de cena da enunciação. Esta cena é construída a
partir de três planos que se complementam na constituição do discurso: uma cena englobante,
uma cena genérica e uma cenografia.
A cena englobante refere-se ao estatuto pragmático da situação comunicativa, no
sentido de que ela permite ao destinatário identificar o caráter de um texto, reconhecê-lo como
estando inscrito em um dado domínio – religioso, filosófico, jurídico, político, publicitário
etc. – e, portanto, vinculado a um certo tipo de discurso. Textos pertencentes a um mesmo
tipo de discurso podem se materializar de diferentes formas. O sermão de um padre, o livro de
catecismo, uma oração e uma prece, apesar de serem diferentes sob vários aspectos, são
discursos do tipo religioso. Esse primeiro plano da cena da enunciação corresponde ao que
Marcuschi (2008) define como domínio discursivo, ou seja, discursos formados a partir de
determinadas especificidades históricas ou sociais que instauram determinadas rotinas
comunicativas. No caso de uma publicidade, seja ela materializada através de suporte
radiofônico, cinematográfico, impresso ou qualquer outro, é no nível da cena englobante à
qual ela pertence que o destinatário pode antever um anunciante que, por meio de um
publicitário, se dirige a consumidores efetivos ou eventuais com finalidades específicas, como
promover o produto e salientar os motivos pelos quais tal produto deve ser adquirido. Ao
identificar o discurso como sendo do domínio publicitário, o interlocutor cria não só
expectativas, como também se prepara para interpretá-lo dentro de determinados modelos
existentes no âmbito social. Se em lugar de um discurso publicitário, o discurso for do tipo
77
projetando um ethos que legitima sua fala por meio da foto apresentada, como sendo a sua
própria foto e por meio do cartão de embarque em que aparece escrito “viajar renova” com
caligrafia vacilante como a de uma pessoa idosa, fazendo corresponder uma imagem de
aposentado feliz, jovial e de bem com a vida.
Embora seja necessário considerar o quadro cênico deste anúncio – trata-se de um
discurso publicitário e de um anúncio de revista – é, de fato, com a cenografia que o leitor se
depara ao lê-lo.
e para a alma” etc. Logo, para captar a atenção dos interlocutores a que se destina, o anúncio
escolheu transmitir o conteúdo por meio de uma cenografia (foto de viagem) na qual são
valorizados certos aspectos que se associam aos anseios do seu público-alvo. Nas palavras de
Maingueneau, o anúncio “coloca um corpo em movimento”, mobilizando certos aspectos do
dia-a-dia que lhe conferem legitimidade, constituindo uma cena validada, uma cena já
instalada na mente coletiva (brincadeira de criança).
Um texto publicitário pode apresentar cenografias bem diversas: um poema, uma
conversa entre amigos, uma obra de arte, uma charada, uma instrução de uso etc. Recordemos
os exemplos dados no tópico 2.2 em que um anúncio assume a forma de um poema, ou
subverte uma obra de arte. Vejamos ainda o anúncio seguinte (anúncio 18), cuja cenografia
adotada é a de verbete de dicionário: as imagens que o compõem remetem a cenas cotidianas
em que o produto anunciado pode ser consumido (cenas validadas), mas a cenografia é dada
pela parte verbal – os verbetes que definem enólogo e Polenghi, estabelecendo uma
comparação entre um enólogo e a marca do produto, ambos, especialistas.
“Este deve ser o bosque”, murmurou pensativamente, “onde as coisas não têm
nomes”. [...] Ia devaneando dessa maneira quando chegou à entrada do bosque, que
parecia muito úmido e sombrio. “Bom, de qualquer modo é um alívio”, disse
enquanto avançava em meio às árvores, “depois de tanto calor, entrar dentro do…
dentro de quê?” Estava assombrada de não poder lembrar o nome. “Bom, isto é,
estar debaixo das… debaixo das… debaixo disso aqui, ora”, disse colocando a mão
no tronco da árvore. “Como essa coisa se chama? É bem capaz de não ter nome
nenhum… ora, com certeza não tem mesmo!” (CARROLL, 1980 apud FIORIN,
2008, p. 55).
língua seja nosso filtro de apreensão da realidade, nossa relação com o mundo se constrói
também em torno de outros signos, além dos linguísticos.
É tal a distração que a aparente dominância da língua provoca em nós que, na maior
parte das vezes, não chegamos a tomar consciência de que o nosso estar-no-mundo,
como indivíduos sociais que somos, é mediado por uma rede intrincada e plural de
linguagem, isto é, que nos comunicamos também através da leitura e/ou produção de
formas, volumes, massas, interações de forças, movimentos; que somos também
leitores e/ou produtores de dimensões e direções de linhas, traços, cores... Enfim,
também nos comunicamos e nos orientamos através de imagens, gráficos, sinais,
setas, números, luzes... Através de objetos, sons musicais, gestos, expressões, cheiro
e tato, através do olhar, do sentir e do apalpar. Somos uma espécie animal tão
complexa quanto são complexas e plurais as linguagens que nos constituem como
seres simbólicos, isto é, seres de linguagem. (SANTAELLA, 1983, p. 13)
Assim como ocorre com o sistema linguístico, estes outros sistemas de linguagem não
verbal também se conformam socialmente. São formas sociais de comunicação e significação
utilizadas para representar o mundo. A publicidade é um tipo de comunicação que explora
amplamente os signos sociais, criando a partir deles seu próprio mundo, isto é, um mundo
ressignificado de acordo com seus objetivos. Ao estudar a relação entre representações sociais
e humor, observamos que o humor também se vale destes signos sociais, com a diferença de
que no caso do discurso humorístico, estes signos são utilizados da maneira como constam no
meio social; na publicidade, ao contrário, o imaginário social e os signos que o constituem são
manipulados, reestruturados e devolvidos sob nova perspectiva. Vimos acima que há, nos
anúncios publicitários, interação entre os signos icônicos e linguísticos que os compõem, de
modo que o verbal pode ter tanto a função de ancoragem como a de revezamento. Vimos
também que essa interação colabora na construção da cenografia publicitária, possibilitando
que o leitor dialogue com um ethos que se assemelha às imagens de enunciador valorizadas
pelo corpo social. Acreditamos que seja essa a dinâmica de construção do mundo publicitário:
resgata-se algo já institucionalizado, familiar e legitimado socialmente por meio de signos
verbais e não verbais que serão reapropriados de modo a significar o que se quer que ele
signifique.
Cabe destacar, entretanto, que a partir do que compartilha com a coletividade, o
indivíduo pode apropriar-se dos signos sociais, ressignificando-os para outro indivíduo, pondo
em causa suas intenções, seus objetivos comunicativos etc. A semiotização do mundo instaura
duas instâncias de significação: a do sujeito que comunica e a do sujeito que interpreta, ambos
inscritos em uma situação comunicativa específica.
83
Ao vermos um anúncio, sabemos que o que estamos vendo pode não ser verdadeiro,
mas é verossímil e nos convence com a sua lógica particular. Verossímil, é, portanto,
aquilo que se constitui em verdade a partir de sua própria lógica. Por isso, podemos
dizer que o discurso publicitário é “aproximativo”, não só porque manifesta um
conhecimento fragmentado do saber, que só se resolverá quando o consumidor
tomar posse do objeto concreto desse saber (o produto), como também porque não
intervém diretamente em condutas sociais precisas, apenas sugere uma arte de viver,
através de mecanismos de persuasão. (MONNERAT, 2003, p. 43)
neta que não estava falando de casamento, mas sim de sexo. Para algumas pessoas, o fato
inusitado foi fonte de humor e provocou o riso. Para outras, no entanto, o fato parece ter
chocado tanto que como consequência, o anunciante veiculou uma retratação, em que a avó
justificava o fato de o anúncio não estar mais circulando, mas informava que ele continuaria
disponível no site.
Fonte: WWW.youtube.com.br
Assim, numa notícia de jornal que tem por título: “Descaso: desaba o telhado de um
supermercado. 15 feridos”, a identificação é marcada por: “telhado”,
“supermercado” e “feridos”, com modos de determinação particulares desta
identificação : “o”, “um”, “15” ; a qualificação está incluída nas denominações
precedentes: “supermercado” (pela dimensão e peso), “feridos” (pelo estado das
vítimas) ; a ação está expressa por “desaba” ; a causação por “descaso”.
(CHARAUDEAU, 2005, p. 14)
diferentes, pois a cada nova situação o mundo significado terá uma nova correspondência,
como no exemplo apresentado por Charaudeau (2005, p. 16):
Para determinar a que corresponde esse ato de linguagem faz-se necessário questionar:
1) “quem” se comunica com “quem”? – princípio de alteridade; 2) com que propósito se está
ali para comunicar? – princípio de pertinência; 3) Se comunica para dizer o quê, com que
objetivo? – princípio de influência; 4) Quais são as circunstâncias e que estratégias devem ser
adotadas para que a finalidade seja alcançada? – princípio de regulação.
Não somente escolha de conteúdos a transmitir, não somente escolha das formas
adequadas para estar de acordo com as normas do bem falar e ter clareza, mas
escolha de efeitos de sentido para influenciar o outro, isto é, no fim das contas,
escolha de estratégias discursivas.
A publicidade lança mão de estratégias discursivas que captam do meio social suas
representações de real, ressignificando-as para os indivíduos de modo a torná-los cúmplices
por meio dos conhecimentos partilhados. Assim, a publicidade, para semiotizar o mundo,
89
baseia-se antes no processo de transação: é preciso ter em vista o público que se quer alcançar
antes de traduzir a realidade nos moldes publicitários. Assim, ao projetar sua enunciação
publicitária, o locutor recorrerá aos imaginários que supõe serem compatíveis com o
alocutário a quem se dirige e a partir dos quais formulará o mundo que acredita ser o
almejado, o do sonho e o do desejo do consumidor. As escolhas linguísticas que possibilitarão
a transformação do mundo em um mundo publicitário dependem da intenção do anunciante,
das características do produto e do público que ele quer alcançar – é com base nisto que se
projeta a cenografia, mundo construído para cativar e envolver o consumidor.
90
discutir a relação entre oralidade e escrita.” e 3) “Todo casal tem seu momento de discutir a
relação.”
Ao ler estes três enunciados, suspeitamos que a expressão “discutir a relação” possui
em cada um deles sentidos diferentes. No entanto, vemos que sua materialidade linguística é
exatamente igual nas três ocorrências. Assim, ao lê-las percebemos que entre algumas há
identidade e, entre outras, diferença. Mas, como determinar exatamente o que as torna
similares e o que as diferencia? Por que, ao ler o anúncio 21, a expressão “discutir a relação”
nos faz lembrar a terceira ocorrência, mas não a segunda? Neste capítulo abordaremos
conceitos teóricos que nos ajudarão a entender estas questões.
Buscaremos, para tanto, compreender a produção de sentidos tanto em seus aspectos
semiológicos, quanto em seus aspectos contextuais. Partimos do pressuposto de que os
sentidos que comunicamos em nossas interações verbais não dependem exclusivamente da
língua, como definida por Saussure (1972), nem dependem exclusivamente de fatores
externos à língua (os interlocutores, a situação, a ideologia etc.), mas de uma interdependência
entre eles. Assim sendo, precisaremos observar tanto os aspectos inerentes ao sistema
linguístico, que nos possibilitarão entender fenômenos como a homofonia, a homonímia, a
paronímia, a ambiguidade e a polissemia, quanto os aspectos pragmáticos, como o valor
ilocutório de um ato de fala, os pressupostos e subtendidos do enunciado, a cooperação dos
interlocutores etc., aspectos dependentes do contexto comunicativo.
A relação entre linguagem e ação, ou entre aspectos linguísticos e contextuais, tem
sido considerada há bastante tempo. Não restam dúvidas atualmente de que o corte
saussuriano foi um marco importante para os estudos linguísticos. Naquele momento, a
criação de um objeto específico para a linguística (la langue) foi imprescindível para que a
linguística pudesse se constituir cientificamente. No entanto, ao estabelecer a língua como
objeto da linguística, Saussure (1972) excluiu a fala (la parole) e, consequentemente, o sujeito
e a relação da linguagem com o mundo. Ainda que, já naquele momento, postulasse que a
língua e a fala eram dois lados de uma mesma moeda, ele considerou que a fala, por ser
heterogênea e dependente da realização individual do falante, sofria modificações que
impossibilitavam um estudo sistemático, ao passo que a língua, conceituada como um sistema
de signos de caráter social, homogêneo e abstrato que está internalizado na mente do falante,
era suscetível de análise científica. Esta outra face da linguagem, no entanto, não foi
esquecida. Um dos primeiros linguistas a voltarem sua atenção para este outro gume da
linguagem, a fala, foi Charles Bally, que, de acordo com Flores e Teixeira (2008), se
interessou por questões linguísticas que enfatizam o uso diferenciado da língua como forma
92
Como já postulava Bergson (1987), a linguagem pode ser apenas o veículo do humor,
ou pode ela mesma ser o motivo do humor. Da mesma forma, Freud (1987) subdividiu seus
chistes em verbais e de pensamento, sendo estes relativos ao conteúdo que a linguagem
permite transmitir, e aqueles, decorrentes da própria expressão linguística. O humor
produzido no âmbito do conteúdo requer, em geral, conhecimentos que ultrapassam o âmbito
da língua, como o conhecimento sobre a situação e sobre os interlocutores. Mas o humor
produzido por meio de manipulação do material linguístico pede algum entendimento do
funcionamento da língua para que se possa entender onde reside a graça sugerida. Decorre
deste fato que muitas vezes o humor produzido por meio de manipulação de material
linguístico não possa ser traduzido ou percebido por um falante de outra língua, uma vez que
cada língua é, como definida por Saussure (1972), “um tesouro” depositado na mente dos
falantes que pertencem a uma mesma comunidade, logo, falantes de comunidades diferentes
terão tesouros diferentes. No entanto, as línguas não são estanques, estão sujeitas a uma
evolução constante decorrente dos usos que cada indivíduo ou grupo de indivíduos faz dela ao
longo do tempo. Neste aspecto, a língua se mostra como um material manipulável que se
molda às necessidades do falante. É esta manipulação do material linguístico que possibilita a
produção do humor verbal, como veremos.
Inicialmente, interessa ressaltar que para Saussure (idem), tanto a língua quanto a fala
são atividades psíquicas levadas a cabo por indivíduos durante a interação verbal. A principal
diferença entre esses dois conceitos é devida ao fato de que a fala envolve o psíquico
individual do falante, que é o responsável pela execução linguística; ao passo que a língua
envolve o psíquico coletivo, uma espécie de depósito linguístico acessível a todos,
possibilitando aos indivíduos a comunicação, o que Saussure chama de recepção linguística.
Pode-se, assim, concluir que a língua se constitui a partir da fala, ganhando certa estabilidade
que a torna relativamente autônoma, uma vez que a coletividade armazena as imagens verbais
recorrentes e passa a utilizar-se deste armazenamento sempre que precisa.
palavras de Saussure (idem, p. 27), “a língua é necessária para que a fala seja inteligível e
produza todos os seus efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça;
historicamente, o fato da fala vem sempre antes”: a língua é ao mesmo tempo instrumento e
produto da fala.
A produção dos signos que constituem a língua é, pois, o resultado de uma soma de
sinais individuais resultantes do que as pessoas utilizam para se comunicar. Tais sinais
guardam similaridades acústicas e conceituais que se fixam, passando a fazer parte do
conjunto que forma a língua do grupo. Uma vez fixados, esses signos ganham independência
dentro do sistema linguístico e passam a formar unidades suscetíveis de serem analisadas em
si mesmas ou na sua relação com outras unidades. Chamaremos características internas os
fenômenos observados no signo em si mesmo; e características externas os fenômenos
observados na relação de um signo com outros.
Conforme Saussure (idem) o signo linguístico significa por si só e pode ser considerado
como um domínio fechado em si mesmo. Observando-se o signo em sua interioridade,
podemos, então, enumerar algumas especificidades que fazem parte de sua natureza. Primeiro,
o signo significa a partir da associação entre duas partes indissociáveis, o significado e o
significante, termos que correspondem respectivamente ao conceito e à imagem acústica,
ambos resultantes de atividades psíquicas. O signo dado como a correlação recíproca entre o
significado e o significante decorre do entendimento de que a língua elabora suas unidades ao
constituir-se entre duas massas amorfas independentes, como ilustrado por Saussure (1972, p.
131):
convenção que reside a significação do signo. E, terceiro, o significante possui caráter linear,
portanto se desenvolve em uma sequência espaço-temporal, ao contrário dos significantes
visuais que se desenvolvem de forma não linear.
Por outro lado, o signo também pode ser analisado em sua exterioridade, em sua
associação e combinação com outros signos, dando origem à noção de valor linguístico.
Saussure (1972, p. 133), ressalta que valor e significação não se confundem: enquanto a
significação se situa no interior do signo, na relação que ocorre entre o significante e o
significado, o valor tem origem na relação externa de um signo com outros signos dentro do
sistema linguístico, como na ilustração seguinte:
Primeiro, neste anúncio, o desenho em questão adquire o valor da letra “a”, a partir de
uma relação associativa – de todas as letras que podem ocupar seu lugar, a letra “a” é a única
possibilidade de transformar a sequência da qual faz parte em uma palavra da língua
portuguesa. Tal valor também foi adquirido com base em uma relação recíproca, no eixo
sintagmático, em que um signo contribui para a significação do outro. Num segundo
momento, relacionando este desenho não mais com as letras que conformam a palavra
“obrigado”, mas sim combinando-o com a palavra “anos”, é possível atribuir-lhe valor
numérico (40 – quarenta), com base em uma relação sintagmática que se estabelece entre os
dois segmentos, donde se interpreta “quarenta anos”. O mesmo acontece com o anúncio
seguinte, em que homens segurando bolas assumem o valor da letra “i”, valor que é dado
pelas outras letras que constituem a palavra “ilimitado”. Veja-se que, por tratar-se de textos
escritos, além da linearidade dos significantes que aparecem, os anúncios também exploraram
a espacialidade visual, fazendo com que a atribuição de sentido para os desenhos dependesse
dos dois aspectos.
O que ocorre com os desenhos acima, cujos valores são dados pela coexistência de
outros elementos, também ocorre com as palavras, esse é o seu mecanismo de funcionamento
enquanto signo em si mesmo e em sua relação com os outros. Se, por um lado, o valor de um
signo é convencional, dado pelo grupo social, por outro, nunca estará totalmente determinado,
pois dependerá sempre da relação recíproca com os outros elementos da língua, tanto no eixo
paradigmático quanto no sintagmático. Ainda que seja criativo, o recurso ilustrado acima não
chega a ser necessariamente um exemplo de construção humorística. No entanto, como
veremos a seguir, há casos em que a construção dos efeitos humorísticos explora essa
possibilidade de os sentidos deslizarem na relação que os signos estabelecem entre si.
A relação entre o significante e o significado, bem como a relação do signo com outros
signos são potencialmente fontes de jogos de palavras que podem criar efeitos humorísticos.
Tais jogos de palavras são fundamentados em equívocos criados intencionalmente, com
objetivo lúdico.
Dentro da perspectiva dos estudos semânticos, Bernard Pottier (1978) apresenta outra
forma de tratar os signos. Ele ainda considera com Saussure (1972) que o signo se divide em
significante e significado, em uma relação de interdependência, mas opera uma subdivisão no
âmbito do significado, considerando-lhe a forma e a substância, como mostra o esquema
seguinte:
Com base no esquema apresentado acima, ele estabelece três planos distintos: 1) o plano
da semântica (Se), decorrente da substância do significado, 2) o plano da sintaxe (Si),
decorrente da forma do significado e 3) o plano da significância (Sa), decorrente do
significante. No plano semântico estão situados os sememas, conjuntos de traços distintivos
chamados semas. No plano sintático, os morfemas, unidades mínimas de forma, que podem
ser tanto lexicais como gramaticais. E no plano da significância, os fonemas, responsáveis
pela expressão.
99
Nesta piada, o humor deve-se ao fato de que a expressão “um limão” remete a duas
possibilidades interpretativas, ainda que uma seja menos evidente que outra: inicialmente não
coloca em dúvida tratar-se do fruto, interpretação que logo teve que ser rejeitada ao se opor a
“liminha” (lima pequena). Uma análise sêmica dos termos nos mostra que no que diz respeito
ao significado não há nenhuma similaridade entre as duas palavras, apenas no que diz respeito
ao significante. No plano semântico, por exemplo, não se pode depreender nenhum sema em
comum. Quanto ao plano da sintaxe, trata-se de duas formas distintas: a primeira constitui-se
100
Como postulou Bergson (1987), tais articulações evidenciam a rigidez a que estão
sujeitos os mecanismos linguísticos em seu emprego convencional, mas também comprovam
que mesmo assim, a língua se presta às manipulações que possibilitam, dentre outras coisas, a
invenção humorística. No anúncio 26 seguinte, podemos observar que jogando com as
palavras, o publicitário conseguiu criar uma ambiguidade potencialmente cômica.
Com efeito, a mesma sequência acústica ([saia]), empregada quatro vezes, produz um
deslizamento de sentido, uma vez que se pode distinguir 2 signos distintos: “saia”, substantivo
designativo de peça do vestuário feminino e “saia”, imperativo do verbo sair, que remete à
ideia de deslocamento. É interessante observar que a segunda e a terceira ocorrências de [saia]
funcionam como elemento pivô, pois acumulam os dois sentidos mencionados (peça de
vestuário e ação de sair), servindo assim de ponte entre uma significação e a outra.
103
(1) “Use saia” (2) “Saia de dia, saia de noite” (3) “Saia de si”
Significante /saia/ /saia/ /saia/
Forma do [substantivo comum] [substantivo comum] ou [verbo de [verbo de ação],
significado ação], [imperativo] [imperativo]
Substância do “peça do vestuário “peça do vestuário feminino” ou “ir de “ir de um lugar, de
significado feminino” um lugar, de dentro para fora” dentro para fora”
Sema genérico /vestimenta/ /vestimenta/ ou /deslocamento/ /deslocamento/
Semas /feminina/, /cobre da /feminina/, /cobre da cintura para /de dentro para fora/,
específicos cintura para baixo/ baixo/ ou /de dentro para fora/, /pessoa/ /pessoa/
Sema virtual /manifestar sentimentos,
(conotativo) emoções/, /viver a vida/,
/liberdade/.
Fig. 5: Quadro de análise sêmica de “saia”, como usado no anúncio 26.
ao leitor por meio de um jogo de palavras, do qual o leitor extrai uma dose de prazer em
virtude da economia que ele contém.
Vimos, então, que o humor verbal trabalhado nos anúncios foi construído com recurso
à materialidade linguística e à sua capacidade de simbolizar. Seja explorando as relações que
o signo estabelece com outros signos (“começou mal”, “mal começou”), seja criando novos
signos a partir de outros já existentes (“chocolover”), seja condensando em uma única forma
vários sentidos (“saia”), os anúncios analisados apresentaram recurso a alguma espécie de
efeito cômico realizando jogos de palavras, manipulando a língua.
Como destacamos acima, a comunicação verbal depende de um sistema de signos que
se estabiliza por meio da convenção social. Logo, ainda que a língua, como definida por
Saussure (1972), seja um sistema autônomo, analisável em si mesmo, ela depende do uso
contínuo por um grupo social, que a mantém e renova constantemente, tornando a relação
entre significante e significado sempre dinâmica e suscetível de modificações que se
atualizam em contexto. Tais modificações só se estabilizam e passam a fazer parte do sistema
da língua quando se tornam convencionais, afinal, como já previam os estudos saussurianos, o
indivíduo não tem autonomia sobre o sistema da língua, mas a coletividade, sim. Logo, os
signos significam não só por aquilo que os torna parte do sistema, mas também pelos usos que
o corpo social lhes confere ocasionalmente em sua comunicação cotidiana. É devido a este
fato que muitas vezes, um significado convencionalmente previsto pelo sistema linguístico
acaba sobreposto por outro muito menos comum, mas possível num determinado contexto.
Assim, o humor verbal depende não só de aspectos semiológicos como também de aspectos
pragmáticos, uma vez que a língua convencionalmente estabelecida será atualizada
constantemente pelos indivíduos falantes em cada contexto de enunciação.
Desde Saussure, a linguística passou por várias fases, mas, em geral, seu foco esteve
voltado para uma abordagem estrutural da língua, descartando o uso que dela se faz em
contexto comunicativo. A partir de meados do século XX, no entanto, várias questões
linguísticas reclamavam explicação sem que pudessem encontrar respostas satisfatórias nos
estudos feitos até então. Foi por isso que o foco dos estudos linguísticos começou a se desviar,
ainda que não totalmente, do sistema para a atividade comunicativa, constituindo o que
Marcuschi (2008) apresenta como “a virada pragmática”. Segundo o autor,
105
Com essa virada pragmática, começa a surgir uma linguística menos preocupada com
as relações estabilizadas dentro do sistema – as regras e as diferenças que distinguem os
signos verbais –, e mais voltada para o funcionamento da linguagem em sua dimensão sócio-
comunicativa. A pragmática, atualmente, se relaciona a várias outras áreas da linguística,
mostrando que a linguagem não é transparente e que sua compreensão envolve diversos
elementos que extrapolam os limites estruturais.
Entender a relação entre a língua e a fala, bem como os sujeitos falantes e os aspectos
que determinam os sentidos produzidos por estes falantes em uma dada situação, passou a ser
uma prioridade entre os estudos linguísticos. Conforme Reyes (1994, p. 14),
agora se afirma que, contra o que alguns quiseram assegurar-nos, não somos apenas
“usuários” de um sistema verbal pré-existente, mas também participamos da sua
criação; não somente possuímos as regras da nossa língua no cérebro, como também
todo nosso corpo está envolvido nas situações reais nas quais usamos e criamos
linguagem, de modo que a linguagem é muito mais do que uma atividade mental.
Vamos criando a linguagem, e a linguagem, por sua vez, vai nos criando...10
10
“Ahora se afirma que, contra lo que parezcan asegurarnos algunos, no somos solamente ‘usuarios’ de un
sistema verbal preexistente, sino que participamos en su creación; no sólo tenemos las reglas de nuestra lengua
en el cerebro, sino que todo nuestro cuerpo está metido en las situaciones reales en las que usamos y creamos
lenguaje, de modo que el lenguaje es mucho más que una actividad mental. Vamos creando el lenguaje, y el
lenguaje, a su vez, nos va creando... ” (Transcrição como no original. A tradução é nossa.)
106
o que se quer dizer é que, fora de contexto, não podemos falar realmente do sentido
de um enunciado, mas, na melhor das hipóteses, de coerções para que um sentido
seja atribuído à sequência verbal proferida em uma situação particular, para que esta
se torne um verdadeiro enunciado, assumido em um lugar e em um momento
específicos, por um sujeito que se dirige, numa determinada perspectiva, a um ou a
vários sujeitos.
ser considerados desde um ponto de vista mais concreto 11, enquanto seres de carne e osso,
providos de intenção, responsáveis pela produção e/ou interpretação da mensagem linguística
(autores, escritores, falantes, ouvintes, leitores etc.). São eles os responsáveis pela
mobilização de informações contextuais, pela projeção e reconhecimento das intenções, dos
objetivos e dos conhecimentos compartilhados que facilitarão a troca. Esses indivíduos atuam
cooperativamente, atribuindo relevância aos enunciados produzidos, resgatando inferências,
valores ilocutórios e mobilizando as informações contextuais necessárias para a atribuição de
sentidos. São, pois, dotados não só de capacidades psico-fisiológicas que lhes permitem a
atividade de produção e/ou interpretação do enunciado, como também capacidades
intelectuais que permitem ao emissor formular um pensamento e depois articulá-lo por meio
de seu aparelho fonador (ou escrevê-lo) e ao destinatário receber um pensamento seja por
meio auditivo, seja por meio visual e processá-lo. A intencionalidade dos interlocutores tem
valor fundamental – ao formular sua mensagem, o locutor tem em mente um receptor preciso
e um quadro situacional específico, assim, o alocutário será sempre o receptor eleito pelo
locutor de acordo com a circunstância, e não um receptor qualquer que recebeu a mensagem
casualmente –, é disso que depende o sucesso da interação. Mesmo quando não tem acesso
direto a seu alocutário, o locutor precisa supor um provável receptor – uma mensagem não
será recebida necessariamente da mesma forma por uma criança e por um adulto, por um
homem ou por uma mulher, por um habitante de uma grande cidade ou por um trabalhador
rural.
Por tudo isso, parece que fica estabelecido que o uso da linguagem como atividade
consciente reflete a atitude do falante ante o entorno e responde a uma determinada
intenção. Resulta, portanto, não só perfeitamente legítimo, mas inclusive necessário,
abordar o estudo dos enunciados – isto é, das emissões reais –, tendo em conta as
intenções dos sujeitos que os produziu. (ESCANDELL VIDAL, 2006, p. 38)12
11
Veremos mais adiante que Ducrot (1987) propõe a abstração desse sujeito dentro de uma análise polifônica da
enunciação. No entanto, o que podemos depreender de todos os demais estudiosos da pragmática (LEVINSON
(2007), REYES (1994), ESCANDELL VIDAL (2006), KERBRAT-ORECCHIONI (2005) entre outros) é a
noção de sujeito intencional, como descrevemos aqui.
12
“Por todo ello, parece que queda establecido que el uso del lenguaje como actividad consciente refleja la
actitud del hablante ante el entorno y responde a una determinada intención. Resulta, por tanto, no sólo
perfectamente legítimo, sino incluso necesario, el abordar el estudio de los enunciados – esto es, de las emisiones
reales –, teniendo en cuenta la intención del sujeto que los produjo.” (Transcrição como no original. A tradução é
nossa.)
109
enunciação. Neste sentido, o enunciado tem o poder de ato, de ação, constituindo os atos de
fala. De acordo com Gonçalves (2005, p. 130), ao estabelecer a Teoria dos Atos de Fala,
Austin “argumentava que a língua não se presta somente a descrever a ‘realidade’, mas
também a alterá-la e, até mesmo, a criar novas realidades”. Desta forma, a Teoria dos Atos de
Fala, inicialmente, considerava dois tipos de entidades linguísticas bem distintas entre si:
uma, as frases (ou sentenças), era destinada apenas à descrição da realidade, tendo função
constatativa; a outra, os enunciados, era destinada à modificação da realidade, ou ainda à
criação de novos status de real, tendo valor de ato. Surgiu, assim, a separação entre os
enunciados constatativos e os atos de fala – os primeiros poderiam ser testados com base na
veracidade ou falsidade dos estados de coisas descritos, submetendo-se, pois, às condições de
verdade; os últimos realizariam uma determinada ação sob certas condições de felicidade.
Percebeu-se que os atos linguísticos podiam acumular as duas funções a uma só vez,
ou seja, tanto descrevendo como modificando a realidade. Desta forma, chegou-se à
conclusão de que todos os atos linguísticos portavam, em maior ou menor grau, certa força
que lhe atribuía valor de ato. “Desse modo, o que se afirma é que todas as declarações, além
de significar o que quer que signifiquem, executam ações específicas (ou “fazem coisas”) por
terem forças específicas” (LEVINSON, 2007, p. 299). Disto, resulta que, por meio de nossa
enunciação, executamos simultaneamente três tipos de atos: os locutórios, os ilocutórios e os
perlocutórios. O ato locutório (ou locucionário) é o ato de dizer alguma coisa. Resulta do
conjunto de sons articulados para a produção de fonemas da língua, é o ato de pronunciá-los
dentro de um contexto interlocutivo. Além da articulação e combinação de sons, o ato
locutório também é aquele que possibilita às palavras se relacionarem sintaticamente umas
com as outras constituindo sequências linguísticas. O ilocutório (ou ilocucionário) é o ato que
se realiza ao se dizer algo: pedido, promessa, ordem etc., promovendo alguma modificação
entre os interlocutores. A enunciação, por si mesma, constitui uma transformação nas relações
entre os interlocutores; assim, ao dizer “prometo” se está de fato prometendo; ao se fazer uma
pergunta se está ao mesmo tempo interrogando e obrigando o outro a oferecer uma resposta.
Já o perlocutório (ou perlocucionário) é o ato que se realiza pelo fato de ter-se dito algo. Seus
efeitos são indiretos: questionamento, medo, convencimento etc.; efeitos que podem realizar-
se ou não. Esse ato, por seu caráter indireto, pode nem ser percebido pelo alocutário. Ao
receber uma visita em casa, o anfitrião pode, numa determinada hora, fazer o seguinte
comentário: “São dez horas.” O visitante certamente vai perceber o ato ilocutório realizado, o
de informar as horas, mas pode também perceber tratar-se de uma advertência de que já é o
momento de retirar-se, ou um lembrete de que tem algum compromisso neste horário etc. Na
111
frase: “Você pode fechar a porta?”, o ato locutório se relaciona com o conteúdo proposicional
expresso sob forma de pergunta; o ato ilocutório é o valor de pedido; o ato perlocutório seria,
por exemplo, a manifestação da preocupação com a discrição, com uma advertência, por parte
do enunciador, de que o assunto a ser tratado pelos interlocutores é confidencial.
De acordo com Levinson (2007), um ato locucionário pode revestir-se de diferentes
forças ilocucionárias nas diferentes circunstâncias em que ocorrer e, consequentemente, de
diferentes efeitos perlocucionários também. Em geral, um ato ilocucionário se associa a
procedimentos convencionais (ordenar, perguntar, aconselhar etc.), ao passo que o ato
perlocutório “é específico das circunstâncias da emissão” e “não é conseguido
convencionalmente”, não se pode relacionar um ato perlocutório a uma circunstância
específica antecipadamente, como no caso do ilocutório; além disso, “inclui todos os efeitos,
visados ou não visados, muitas vezes indeterminados, que certa enunciação específica numa
situação específica pode causar” (idem, p. 301).
Buscando ilustrar um pouco mais, imaginemos a seguinte situação: ao adentrar em
uma sala, uma pessoa deixa aberta a porta que se encontrava fechada. Outra pessoa, que já se
encontrava no local, diz: “A porta está aberta.” Ao que a primeira pessoa, após fechar a porta,
responde: “Desculpe-me.”. Ao dizer que a porta estava aberta (ato locucionário), a pessoa fez
uma acessão com valor de solicitação (ato ilocucionário direto) e ao mesmo tempo uma crítica
ou repreensão, que é o que está por traz da solicitação feita (ato ilocucionário indireto). O
efeito que este enunciado pode ter sobre o alocutor (ato perlocucionário) não é controlável e
depende grandemente da situação comunicativa. Outra situação: uma pessoa questiona a outra
sobre se uma terceira está em casa, obtendo a resposta: “A porta está aberta”. Temos o mesmo
ato locucionário empregado antes, mas com valor ilocutório e efeito perlocutório bastante
diferentes.
Podemos aproveitar este exemplo para destacar outra propriedade do ato de fala: a de
manifestar-se indiretamente, ou, “quando dizer é fazer uma coisa sob a aparência de outra”
(KERBRAT-ORECCHIONI, 2005, p. 47). Nos casos acima, tanto ao fazer uma solicitação,
quanto ao dar a resposta, o ato foi emitido sob a aparência de uma constatação. De acordo
com a teoria dos atos de fala, podem-se distinguir dois modos de realização dos atos de
linguagem: os atos diretos e os indiretos. Os atos de linguagem diretos podem se realizar tanto
através das expressões performativas quanto através das formas das frases (exclamativas,
declarativas, interrogativas e imperativas).
Assim, um mesmo valor ilocutório pode se manifestar através de diferentes
formulações linguísticas. Por exemplo:
112
fazer jogos de palavras, falar ironicamente, manipular sons em lugar de sentidos, escrever
poemas, inventar diálogos possíveis e, em geral, ‘não falar sério’, são atividades que
114
13
“Hacer juegos de palabras, hablar irónicamente, manipular sonidos en lugar de sentidos, escribir poemas,
inventar diálogos posibles y, en general, ‘no hablar en serio’, son actividades que parecen desafiar las normas de
cooperación lingüística, pero realmente las presuponen y refuerzan.” (Transcrição como no original. A tradução
é nossa.)
115
Um anúncio pode, por exemplo, expressar sentimentos (como é bom viver no interior)
e descrever um estado de coisas (lá tem espaço, beleza, conforto e muito silêncio), como no
anúncio anterior, com fim principal de influenciar o leitor a comprar o produto.
Similar ao ato de fala, o macroato também se reveste de força ilocucionária,
evidenciando uma intencionalidade subjacente, propósitos e finalidades envolvidos na
produção e interpretação, atualizados de acordo com o contexto de interação. Assim a
atribuição de uma força ilocutória a um macroato requer a observação do contexto
comunicativo, o compartilhamento de conhecimentos e crenças sobre os interlocutores, sobre
a situação comunicativa, sobre o tipo de interação que se estabelece etc. No caso de um texto
publicitário, é preciso situá-lo no espaço e no tempo de sua veiculação, além de considerar o
tipo de produto anunciado e os consumidores potenciais desse produto; uma vez que é a sua
intenção de vender um produto X a determinados destinatários, receptores previstos num
determinado momento sócio-histórico, o que vai orientar sua elaboração enquanto macroato
diretivo, de modo que seu valor persuasivo tenha sucesso na captação do interesse dos
consumidores potenciais a quem está dirigido.
A ambiguidade construída no anúncio 27, acima, com a palavra “interior”, por
exemplo, só foi possibilitada porque a publicidade ancorou seu efeito perlocutório no contexto
comunicativo em que foi produzida. E isso provavelmente acontece porque, na época, final da
década de 70, supostamente fazia parte do imaginário coletivo a ideia de que a vida no
interior, longe dos centros urbanos, era uma vida mais confortável, mais tranquila, bonita etc.
É a isto que Maingueneau (2001, p. 92) define como cenas validadas, ou seja, “já instaladas
na memória coletiva, seja a título de modelos que se rejeitam ou de modelos que se
valorizam”. Neste caso, toma-se um modelo valorizado – o campo como um espaço que
oferece qualidade de vida. Foi ao encontro desta aspiração que o anúncio se propôs a ir para
alcançar seus objetivos.
O reconhecimento da força ilocutória de um macroato tanto pode ser estabelecida
convencionalmente como pode ser atualizada em contexto. Uma publicidade qualquer,
independentemente de sua configuração (auditiva ou impressa), se enquadra como um
macroato convencional. Sua ilocução baseia-se na interpelação do destinatário a fim de atuar
sobre suas escolhas, convencendo-o a adquirir o produto oferecido. Essa interpelação pode
ocorrer diretamente (Compre o produto X), ou, o que é cada vez mais comum, de forma
indireta, como no caso dos anúncios bem-humorados que buscam a cumplicidade do leitor por
meio dos jogos de palavras ou de pensamentos. O efeito perlocutório de uma publicidade é
bastante variável, havendo, por exemplo, a possibilidade de criar uma necessidade antes
116
Nessa relação entre os interlocutores, muitas vozes podem aparecer, já que “não existe
palavra que não seja de alguém” (BAKHTIN, 2000, p. 350). Ao dizer, o locutor diz a partir da
imagem que faz de seu alocutário e de todo o contexto social no qual se comunicam. E neste
sentido, “em cada palavra há vozes, vozes que podem ser infinitamente longínquas, anônimas,
quase despersonalizadas (a voz dos matizes lexicais, dos estilos, etc.), inapreensíveis, e vozes
próximas que soam simultaneamente” (idem, p. 351). Aplicando a noção de dialogismo aos
textos literários, Bakhtin (2000) buscou analisar como vozes que podem ser atribuídas a
autores anteriores ou a destinatários hipotéticos se somam à voz do narrador do texto e dos
personagens para, enfim, ilustrar a voz do próprio autor da obra. É o caso da obra de François
Rabelais, na qual Bakhtin (2010, p. 156) examina “o papel da praça pública e das suas
‘vozes’” na construção do tom alegre e risonho que o texto apresenta e que ao mesmo tempo
evidencia características do momento histórico e a visão do autor sobre o seu contexto social.
Com base nesta noção, Ducrot (1987) vai partir do enunciado isolado, tomado como
unidade que constitui textos, para mostrar que também este revela diferentes vozes que ora se
identificam com o responsável pelo enunciado, ora se apresentam como certo ponto de vista
adotado.
A polifonia apresentada por Ducrot (idem) mostra-se produtiva para explicar a
multiplicidade de vozes que uma publicidade pode trazer. E quando se fala em multiplicidade
de vozes, não se está fazendo referência aos diferentes sujeitos empíricos que um texto pode
apresentar, mas a seres fictícios que se encontram no interior do enunciado e que ora são os
responsáveis por ele, ora aparecem apenas como pontos de vista ou atitudes relevantes para o
que se diz.
Um enunciado pode ser produzido (articulado, escrito) por um ou por vários autores.
Numa conversa cotidiana, por exemplo, cada interlocutor produz seu próprio enunciado,
assumindo a autoria de sua enunciação. Um anúncio publicitário, no entanto, pode apresentar
muitos autores ou, melhor dizendo, muitos indivíduos responsáveis por seu aparecimento,
como o anunciante, o publicitário (que pode ser mais de um), o editor etc. Nestes casos em
que há mais de um autor, o enunciado faz surgir uma voz coletiva que, conforme Ducrot
118
(1987, p. 182), “constitui uma só pessoa moral, falante de uma única voz: sua pluralidade
apresenta-se fundida em uma personagem única, que engloba os indivíduos diferentes”. Este
autor empírico do enunciado, seja ele um ou vários, não é o sujeito que interessa a uma teoria
polifônica da enunciação.
Outra noção que precisa ser definida para que se possa entender o conceito de
polifonia, diz respeito ao que se toma por “sujeito” ou “sujeito falante”. Em seu “Esboço de
uma teoria polifônica da enunciação”, Ducrot (1987) combate a “teoria da unicidade do
sujeito” através da qual para cada enunciado existiria um único autor responsável pelo que é
dito. Para ilustrar sua tese, o autor começa por fazer um desdobramento deste sujeito,
apresentando três propriedades que lhe podem ser atribuídas.
Primeiramente, pode-se definir o sujeito como um ser dotado de capacidades psico-
fisiológicas que lhe permitem a atividade de produção do enunciado, aquele que possui
capacidades intelectuais para formular um pensamento e depois articulá-lo por meio de seu
aparelho fonador (ou escrevê-lo). Uma segunda propriedade do sujeito refere-se ao fato de
poder ser-lhe atribuída a autoria dos atos ilocutórios realizados na produção dos enunciados,
fazendo com que seja considerado como aquele que ordena, que pergunta, que afirma etc.
Considerando-se como legítima a unicidade do sujeito, poder-se-ia dizer que o sujeito que
produz as palavras que constituem um enunciado é o mesmo que se responsabiliza por ele.
Assim, um sujeito que produzisse o enunciado “o tempo está bom”, além de selecionar e
articular as palavras que constituem o enunciado, estaria, ao mesmo tempo, afirmando o bom
tempo. Por fim, uma terceira forma de identificar o sujeito falante, é atribuir-lhe as marcas de
primeira pessoa (eu). Para ilustrar seu raciocínio, o autor analisa alguns exemplos que vão
mostrar como a tese da unicidade do sujeito não se sustenta diante de alguns casos.
Considerando um diálogo em que, para responder à pergunta “onde você estava
semana passada?”, o locutor (L) apresenta a resposta “Semana passada eu estava em Lyon”,
pode-se argumentar que 1) L é o produtor da resposta, é ele quem seleciona as palavras e as
articula; 2) L assume a responsabilidade do ato de afirmação que apresenta; 3) L se designa
por “eu”, é a ele que a marca de primeira pessoa se refere. Neste caso, estaria assegurada a
crença num sujeito único, visto que as três propriedades podem ser atribuídas ao mesmo
indivíduo. Vejamos outro exemplo no qual já começa a se delinear outra visão: L, ao receber
uma crítica (como “Você é um imbecil”) poderia retrucar dizendo “Ah! Eu sou um imbecil;
muito bem, você não perde por esperar!”. Neste caso, tem-se que 1) L articula as palavras; 2)
L se designa por “eu”; 3) L não assume a responsabilidade do ato de fala afirmado (“eu sou
um imbecil”). Este ato é atribuído ao seu interlocutor e foi retomado em sua fala apenas para
119
que pudesse contestá-lo. Tal exemplo mostra que nem sempre o sujeito falante é o
responsável pelo que diz, ele pode apenas reproduzir um ato que, na verdade, é de
responsabilidade de outro. Mais um exemplo, um pouco mais complexo: ante a afirmação de
um amigo que diz não ter dormido à noite, o locutor pode comentar “Pode ser que você não
tenha dormido, mas, de qualquer forma, você roncou solenemente”. L, ainda que seja o
produtor do enunciado, não se responsabiliza por sua totalidade – a primeira parte do
enunciado (“pode ser que você não tenha dormido”) é atribuída ao seu interlocutor mesmo
que suas palavras não tenham sido reproduzidas ao “pé da letra”. Neste fragmento, é o ponto
de vista do outro que é apresentado. Logo é possível identificar que um mesmo enunciado foi
produzido a partir de dois sujeitos diferentes: um, assimilado ao sujeito falante, e outro,
assimilado a um ponto de vista adotado por este falante.
Com tais exemplos, Ducrot (idem) justifica seu combate ao sujeito único e introduz a
distinção entre autor, locutor e enunciador.
Inicialmente, é preciso fazer abstração do autor, o produtor empírico do enunciado, ou
seja, o falante concreto, o ser no mundo, ou conforme Ducrot (1987, p. 162) o “ser que não
deve ser levado em conta por uma descrição linguística preocupada somente com indicações
semânticas contidas no enunciado”. O produtor empírico de um enunciado, ao produzi-lo,
projeta sobre seu enunciado um distanciamento enunciativo que permite a um homem
enunciar-se como mulher, ou vice-versa; a um adulto enunciar-se como criança, ou vice-versa
etc. Desta forma, uma história infantil, mesmo imaginada e escrita por um adulto, pode
projetar uma voz infantil para narrar a história; ou, ainda, num poema, um poeta evocar uma
voz feminina etc. Neste sentido, pode-se estabelecer um paralelo entre o autor do livro e o
autor do enunciado, de um lado, e o narrador e o locutor, de outro. O narrador não se
confunde com o autor, mas, antes, funciona como uma voz que pertence ao próprio texto; da
mesma forma, o locutor não se confunde com o autor empírico do enunciado. Com relação à
distinção autor empírico/locutor, acrescenta Ducrot (1987, p. 195):
Logo, o ser que o enunciado apresenta como sendo seu autor é o locutor. E é a partir
dele que se faz a análise do sujeito do enunciado. Este, além de poder ser marcado pela
primeira pessoa, também figura como o responsável pelo enunciado.
120
Por definição, entendo por locutor um ser que é, no próprio sentido do enunciado,
apresentado como seu responsável, ou seja, como alguém a quem se deve imputar a
responsabilidade deste enunciado. É a ele que refere o pronome eu e as outras
marcas da primeira pessoa. (DUCROT, 1987, P. 182)
Para ilustrar sua concepção de locutor, Ducrot (idem, p. 182) apresenta o seguinte
exemplo: “Suponha que meu filho me traga uma circular da escola, em que está escrito: ‘Eu,
abaixo-assinado, ... autorizo meu filho a [...]. Assinado...’”. Primeiramente, não há como
identificar exatamente quem é o autor empírico deste enunciado (o diretor, sua secretária etc.);
mas com certeza pode-se dizer que o “eu” deste enunciado não se refere a este autor empírico
que o produziu efetivamente, e sim a uma voz que o enunciado guarda em si mesmo. Assim,
ao ser assinado, o enunciado atribui ao seu sentido um determinado ser empírico que ainda
que não tenha sido seu produtor real, assume sua responsabilidade e passa a ser designado
pelas marcas de primeira pessoa. Tanto é assim que este mesmo texto, assinado por pais
diferentes, vai adquirir a partir de cada assinatura, um responsável diferente, ainda que guarde
uma mesma voz. O locutor é um ser do discurso, presente apenas no enunciado; enquanto o
autor é um ser do mundo, exterior ao enunciado.
No exemplo apresentado anteriormente (“Eu, abaixo-assinado, ... autorizo meu filho a
[...]. Assinado...”), vimos que o locutor não só não correspondia ao seu autor efetivo, como
também se assimilava a um outro ser do mundo, mais especificamente, aquele que o viesse a
assinar. Tal assimilação foi possível por causa das marcas de primeira pessoa que aparecem
no enunciado, visto que tais marcas, ao mesmo tempo em que apresentam a enunciação como
de responsabilidade de um locutor (entendido como uma voz que o enunciado guarda em si
mesmo), também permitem que esse locutor se assimile a um ser do mundo, ainda que este
ser não seja o produtor empírico do enunciado. Isso explica um primeiro tipo de polifonia: um
enunciado – dois locutores, um, meramente discursivo; outro, assimilado a um ser do mundo.
Ducrot (1987, p. 185), ainda apresenta outro exemplo:
Se Pedro diz “João me disse: eu virei”, como analisar, no que concerne ao locutor, o
discurso de Pedro tomado na sua totalidade? Encontram-se aí duas marcas de
primeira pessoa que remetem a dois seres diferentes. Ora, não se pode ver aí dois
enunciados sucessivos, o segmento João me disse não pode satisfazer a exigência de
independência contida na minha definição de enunciado: ele não se apresentaria
como “escolhido por si mesmo”. Sou, pois, obrigado a dizer que um enunciado
único apresenta aqui dois locutores diferentes, o primeiro locutor sendo assimilado a
Pedro e o segundo a João. Assim, é possível que uma parte do enunciado imputado
globalmente a um primeiro locutor seja, entretanto, imputado a um segundo locutor
(do mesmo modo que, num romance, o narrador principal pode inserir no seu relato
o relato que lhe fez um segundo narrador).
121
Dessa forma, pode-se distinguir dentro da própria noção de locutor dois seres
discursivos distintos: o “locutor enquanto tal” (locutor “L”) e o “locutor enquanto ser do
mundo” (locutor “λ”). O locutor “L” responsabiliza-se pela enunciação em sua totalidade, o
locutor “λ” além de ser a origem do enunciado, é assimilado, por meio das marcas de primeira
pessoa, a um ser fora do enunciado. Voltando ao exemplo, distingue-se o locutor “L” (“João
me disse: eu virei”), locutor “λ”1 (“João me disse”) e locutor “λ”2 (“eu virei”), ou seja, o
enunciado apresenta um “locutor enquanto tal” e dois “locutores enquanto seres do mundo”
(cada um identificado através das respectivas marcas de primeira pessoa – “me” para Pedro e
“eu” para João). A existência de dois locutores distintos torna-se mais evidente em casos
como este, em que há uma dupla enunciação, visto que, em geral, o locutor “L” e o locutor
“λ” aparecem associados, como os dois lados de uma mesma moeda. Mais uma forma de
dupla enunciação se encontra neste outro exemplo, também dado por Ducrot (1987), onde
alguém retoma o discurso de outro em sua totalidade, para em seguida refutá-lo ou contestá-
lo: “Eu não estou bem: não creia que você vai me comover com isso”, onde se percebe um
“eu” que refere ao locutor retomado e um “me” que refere ao locutor que o retoma, ou seja,
dois locutores “λ” diferentes.
Além do locutor, o enunciado pode apresentar um ou mais enunciadores que, embora
não sejam responsabilizados pelo que dizem, deixam transparecer pontos de vistas que podem
ser assimilados ou não pelo locutor. Essa é a segunda forma de polifonia de que trata Ducrot
(1987).
Chamo “enunciadores” estes seres que são considerados como se expressando
através da enunciação, sem que para tanto se lhe atribuam palavras precisas; se eles
“falam” é somente no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu
ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido material do termo, suas
palavras. (Ducrot, 1987. P. 192)
escolheu fazê-los aparecer, e que sua aparição mantém-se significativa, mesmo que
ele não se assimile a eles ...
Além desta primeira forma de polifonia, identifica-se uma segunda forma expressa
pela ironia – o locutor “L” enuncia um ponto de vista que não é o seu (João é esperto), nem
dos locutores “λ”. Na verdade, ao dizer que João é esperto, o locutor “L” dá voz a um
enunciador que supostamente teria esta opinião, mas ao fazer ouvir a voz deste enunciador o
locutor não a assimila, ao contrário, demonstra não concordar com ela. Por isso, Ducrot
(1987) afirma que com relação à ironia é importante perceber que o locutor ao enunciar não
assume a posição expressa, mas, ao contrário, considera-a absurda. Essa opinião absurda é
atribuída a um enunciador que é a origem do ponto de vista expresso na enunciação. Assim,
no exemplo dado, tem-se um locutor “L” que, ao enunciar que João é esperto, está, na
verdade, dizendo que não acredita na esperteza de João e que por isso mesmo não espera que
ele entenda o que é necessário entender.
em cena dois enunciadores: um, ao qual se assimila, que nega a gentileza de Pedro; e outro
que afirma a gentileza de Pedro, e ao qual o primeiro se opõe. Assim, a negação põe em cena
dois enunciadores, sendo um destes assimilado pelo locutor “L”, enquanto o outro se faz
ouvir, mas não é apresentado como o ponto de vista favorecido na enunciação.
Com base no escopo teórico descrito anteriormente, vejamos como as vozes
polifônicas de alguma forma contribuem com os efeitos humorísticos nos anúncios.
Veja-se, inicialmente, o anúncio 28, acima, no qual é possível identificar os dois tipos
de polifonia a que se refere Ducrot (1987) – o primeiro tipo, relativo ao locutor e o segundo
tipo, relativo ao enunciador. Quanto ao locutor, pode-se dizer que há um locutor “L”
responsável pela totalidade do anúncio, e também um locutor “λ” responsável apenas pelo
slogan “Se beber, não dirija.”, voz que pode ser claramente atribuída a um ser do mundo,
mais exatamente uma voz institucionalizada, que remete à legislação vigente, voz que pode
aparecer em muitos outros anúncios – como é o caso do slogan “Se persistirem os sintomas, o
médico deverá ser consultado.”
O segundo tipo de polifonia, relativo ao enunciador, é o que de fato produz efeito de
humor. Primeiramente, o locutor “L”, no enunciado “Se rebolar, não derrame” faz ouvir o
mesmo enunciador de “Se beber, não dirija”, mas o faz através de uma imitação. Note-se que
em “Se rebolar, não derrame”, o locutor não afirma “Se beber, não dirija”, mas faz ouvir esta
voz. Neste anúncio, o efeito chistoso deriva da percepção desse enunciador, que de certa
forma foi imitado: ao ler o enunciado imitado, o leitor se recordará imediatamente do original
e se divertirá com a criatividade do locutor em reconfigurar essa voz para trazê-la à tona.
A palavra “pega-leve” também se mostra polifônica ao fazer ouvir não só a voz
popular, que retoma uma gíria dos anos 1980 que significava “ir devagar”, com calma; mas
também o enunciador institucionalizado que recomenda a não dirigir após beber. O humor
deste anúncio consiste exatamente em fazer o leitor perceber essas “vozes” que brincam com
a enunciação – o leitor logo percebe que há ali um jogo de ideias, uma brincadeira. É possível
ainda perceber que este anúncio faz alusão a outras vozes – vozes que retomam o contexto do
carnaval: rebolar, carnavais do Brasil e as serpentinas que formam, na imagem, o desenho das
mãos que abrem a lata de cerveja.
Outro exemplo de polifonia bem-humorada que também recorre à imitação de um
enunciador encontra-se no anúncio 29.
O enunciador ouvido, neste caso, retoma o dito popular “lavar a égua”. A relação entre
o dito imitado e sua imitação produz um efeito exclusivamente lúdico – ao ler esta imitação o
leitor “ouvirá” imediatamente o enunciador popular e perceberá o jogo de ideias que se
125
estabeleceu entre eles. No caso do dito popular, “lavar a égua” significa algo próximo de
“levar vantagem”, “se sair bem de uma situação”, “aproveitar muito, mais do que o normal”
etc. A imitação deste dito com “Sujamos a égua” brinca com o sentido original do dito,
trocando lavar por sujar para fazer alusão às condições do terreno por onde o carro anunciado
teve que passar para ganhar o rally.
Ao fazer uso desse dito popular, o locutor do anúncio faz com que se ouça através de
sua própria fala, outra voz, repetida inúmeras vezes, à qual atribui a responsabilidade do que
enuncia. Assim, afirma que o carro em questão levou vantagem, venceu o rally, mas saiu de lá
todo sujo de poeira – fato que pode ser constatado pela imagem que mostra o veículo em uma
estrada empoeirada.
Após o percurso teórico que levamos a cabo nos capítulos anteriores, sentimo-nos em
condições de, enfim, retomar nosso propósito inicial de analisar os principais mecanismos de
produção de efeitos humorísticos em anúncios de revista. Este gênero publicitário apresenta a
particularidade de ser elaborado principalmente com recurso ao verbal. Mesmo quando o
icônico parece predominar, haverá alguma informação verbal (marca do produto, slogan,
título etc.) que complementará a significação icônica. Por exemplo, no anúncio acima, é o
128
nome da marca (Nissan) que define tratar-se de um carro desta marca e não de outra, fato que
em publicidade tem grande relevância. Além disso, o título (“sair Quando você da rotina
vai?”) e o slogan (“Fuja do padrão.”) que aparecem justificam sua iconicidade, além de
contribuir com as características do produto que o anunciante quer destacar. Como vimos no
capítulo 3, tópico 3.3, toda imagem publicitária é inevitavelmente polissêmica e pressupõe
várias significações; caberá ao leitor escolher algumas e ignorar outras. Mas, essa seleção não
é aleatória, ela depende em grande medida da configuração do anúncio, da cenografia, do
contexto de enunciação, das intenções postas em jogo, enfim, da forma como a publicidade
quer recriar o mundo.
Também vimos no capítulo 2 que alguns autores já haviam empenhado seus esforços
no sentido de elucidar diversos aspectos relativos ao humor, ao cômico, ao riso em geral.
Principalmente os trabalhos de Bergson (1987), Freud (1987) e Bakhtin (2010), que, cada um
com seus próprios objetivos, apresentaram extensa reflexão sobre o tema. Trata-se de
reflexões importantes no meio acadêmico, retomadas sempre que se quer abordar de alguma
forma o humor. Por isso mesmo, não poderíamos deixar de iniciar nossa análise retomando o
que tais estudiosos propuseram, demonstrando que os mecanismos de análise oferecidos por
eles de fato explicam muitos aspectos relativos à produção do humor verbal encontrados em
nosso corpus.
No entanto, como vimos, cada um destes autores tinha seus próprios objetivos ao
iniciarem um estudo sobre o humor e o cômico, propósitos que não eram fundamentalmente
linguísticos como o nosso. Por este motivo, além de aplicar os conceitos que cada autor
oferece para a análise dos efeitos risíveis, procuraremos também analisar quais são os
mecanismos linguísticos e pragmáticos que estão envolvidos na produção do humor verbal.
Desta forma, iniciaremos o capítulo retomando as reflexões de Bergson (1987) sobre o
cômico de palavras, seguido das de Freud (1987) sobre os chistes e das de Bakhtin (2010)
com o riso carnavalesco, acrescentando, ao final, reflexões linguísticas embasadas nas teorias
que apresentamos no capítulo 4 desta dissertação.
Não se pode dizer que a publicidade explora o riso sob seu aspecto denegridor,
corretivo e insensível, mas principalmente, sob o aspecto social que lhe permite alcançar
maior cumplicidade com seus consumidores. A publicidade não quer exatamente corrigir ou
129
denegrir, muito menos mostrar-se insensível ao seu interlocutor; ela quer, antes de tudo,
conquistá-lo; e para isso, se apropria de fenômenos risíveis que permeiam a sociedade,
principalmente os que podem ser suscitados e criados por meio da linguagem. Por isso
mesmo, das categorias de cômico propostas por Bergson (1987), o cômico de palavras é o que
suscita maior interesse para nossas análises.
Ao abordar o cômico de palavras, o autor enfatizou sua semelhança com o cômico de
situações, dizendo que a comicidade da linguagem deve corresponder, ponto por ponto, à
comicidade das ações e das situações e que aquela não passa da projeção destas no plano das
palavras (idem, p. 61). Sendo assim, recuperemos as imagens dos brinquedos com que ilustrou
as situações e as ações cômicas: o que há de cômico no boneco de molas é a repetição de seu
movimento mecânico, quanto mais comprimido mais ele salta; quanto ao fantoche, sua
comicidade reside na manipulação de seus cordões, dando-lhe movimentos que não lhe são
naturais, e sim mecânicos; já a bola de neve é a imagem da combinação e da interferência,
uma ação que se soma a outra levando a uma terceira, e que quanto mais se propaga mais ela
se acrescenta a si mesma, ganhando proporções potencialmente cômicas. Bergson (idem)
destaca ainda que os procedimentos que estão por trás destas três imagens cômicas são a
repetição, a inversão e a interferência de séries. Tais procedimentos, no entanto, só tornam o
objeto cômico se, por traz de seu funcionamento, permitem identificar uma rigidez, algo de já
feito, certa mecanicidade que se sobrepõe ao vivo, ao humano, ao natural, ao esperado.
Pensemos no cômico da linguagem. As palavras também podem ser repetidas de modo
que uma ideia inicialmente comprimida pela convenção seja distendida para voltar a ser
comprimida e distendida inúmeras vezes, como um boneco de molas; as palavras também
podem ser manipuladas, invertidas, desviadas de seu curso habitual de significação,
lembrando a imagem do fantoche a cordas; e ainda, as palavras podem, sem perderem seu
sentido habitual, sofrer interferência de outras palavras ou do contexto, tendo sua significação
acrescida de outras possibilidades, como ocorre com a bola de neve. Os procedimentos que
estão por trás da comicidade de palavras, portanto, são análogos aos que estão por trás da
comicidade de situação, são eles: a inversão (que o autor considera o menos interessante dos
três para o cômico de palavras), a interferência (que dá origem a vários jogos de palavras) e a
transposição (que é o procedimento mais produtivo dos três de acordo com o autor).
Existem, em nossa língua, frases que, de tão repetidas, enrijeceram-se, comprimiram-
se e tornaram-se modelos consagrados de frases. Este é o caso dos provérbios, dos ditos
populares, dos jargões, dos idiomatismos e de outras tantas frases feitas. Essas frases, no
entanto, são fontes de inúmeras imitações cômicas, bastando para isso distendê-las,
130
acrescentar-lhes uma ideia absurda, inserir-lhes qualquer expressão que lhes quebre a rotina,
fazer com que duas séries de raciocínios bem diferentes se cruzem num mesmo enunciado,
enfim, evidenciar que ela foi manipulada de alguma forma, como um dos brinquedos da
infância.
Vimos, em capítulos anteriores, algumas publicidades que captavam provérbios e ditos
populares de modo que sua inserção no anúncio resultava em efeito potencialmente risível.
Este é o caso do anúncio Chevrolet (anúncio 29, p. 125), cuja comicidade foi construída a
partir do idiomatismo “lavar a égua”. Os idiomatismos são, de acordo com Possenti (2010, p.
62), “expressões formadas segundo as regras de sintaxe da língua, mas que são interpretadas
como se fossem uma palavra”. Há, nesta definição, uma remissão à rigidez da linguagem,
visto que tais expressões que se comportam como as palavras, sofrem poucas adaptações de
aspectos morfossintáticos (e algumas vezes nenhuma adaptação). Logo, essas expressões
encontram-se comprimidas, encapsuladas pela convenção. No caso do idiomatismo em
questão, para que ainda possa ser interpretado como tal, ele até pode sofrer adaptações
relativas ao tempo verbal (lavei, lavou, lavaram etc.), mas não modificações lexicais (lavar os
cavalos, os cachorros etc). Porém, neste anúncio, essa regra de construção dos idiomatismos
foi quebrada sem que sua interpretação original se tenha perdido. O emprego de “sujamos”
em lugar de “lavamos” rompe com um padrão pré-estabelecido, provoca uma surpresa, um
estranhamento, além de evidenciar o quanto essa expressão é rígida em nossa língua.
A rigidez dos idiomatismos está associada a um valor convencional proveniente do
uso comunicativo corrente. São expressões tantas vezes repetidas que acabam remetendo
sempre a uma mesma enunciação coletiva, como se não houvesse um único responsável por
ela, mas vários, na verdade, todos os que povoam a coletividade social. Sob uma perspectiva
discursiva, diremos então que este anúncio, ao subverter uma expressão como esta, nos
permite ouvir a voz de um enunciador proveniente do senso comum, como já observamos no
capítulo precedente.
Lembremos ainda outro exemplo análogo: “Quem vê cara, não vê configuração”
(anúncio 16, p. 72) que transpõe a enunciação proverbial “Quem vê cara, não vê coração” a
uma enunciação publicitária, atribuindo ao produto a mesma legitimidade discursiva do senso
comum. Também neste caso, esta voz é proclamada por meio de um enunciado polifônico.
Nos termos de Bergson (idem) trata-se de uma transposição de ideias, uma ideia que
circula num determinado ambiente é repetida em outro ambiente, adquirindo assim, um novo
matiz, uma nova tonalidade. Esse procedimento é, segundo o autor, uma fonte riquíssima de
comicidade de palavras, uma vez que possibilita ressignificar os provérbios, os ditos e as
131
frases feitas a partir de sua reinserção em um novo ambiente discursivo. Transpõe-se uma
frase de seu uso mais sério, solene, formal, para um uso mais familiar, mais informal, ou vice-
versa.
As transposições analisadas acima são ainda acompanhadas de uma inserção que
quebra a rotina do dito popular, evidenciando uma das leis propostas pelo autor para o
surgimento da comicidade de palavras – a de que ao inserir uma ideia absurda num modelo
consagrado de frase, obteremos uma expressão cômica. Nos dois anúncios comentados, esta
“ideia absurda” foi conseguida pela substituição de palavras – “sujamos” em lugar de
“lavamos” e “configuração” em lugar de “coração”.
Foi também por meio do procedimento de transposição que os anúncios seguintes
elaboraram seus títulos bem-humorados. Tais anúncios, a partir de uma recomendação
institucional veiculada principalmente nas publicidades de bebidas alcoólicas (“Se beber, não
dirija” ou “Se for dirigir, não beba”), deram-lhe nova roupagem, transpondo-a de seu tom
mais sério e formal a um menos sério e mais descontraído, além de adaptá-la a outros tipos de
publicidade que não os de cerveja.
Vale lembrar que esse slogan foi amplamente repetido nas propagandas do governo
federal e nas publicidades de cervejas por um longo período e por isso instalou-se na memória
coletiva, adquirindo um estatuto quase proverbial. Tal fato facilitou que ele pudesse ser
imitado diversas vezes com outros propósitos, que não mais o de alertar os motoristas sobre
os efeitos nocivos do álcool. Lembremo-nos inicialmente do anúncio da cerveja Nova Schin
(anúncio 28, p. 123). Nele, por tratar-se de uma publicidade de cerveja, o slogan aparece tanto
em sua forma institucional, ao pé da página, como transposto a um tom menos formal no alto:
“Se rebolar, não derrame”. Também este é um caso de polifonia, uma vez que “Se rebolar,
não derrame” faz ouvir o enunciador de “Se beber não dirija”.
Nos três anúncios seguintes, no entanto, essa voz é resgatada e associada a anúncios de
carro, servindo a outros propósitos. Sua transposição, ainda que não apague a ideia inicial de
recomendação, adquire novos matizes, também lúdicos, num jogo que favorece ao anunciante
chamar a atenção, criar interesse e garantir a memorização do produto anunciado pelo
consumidor.
No anúncio 31, ao se substituir “beber” por “babar” se cria um jogo com a sonoridade
que há entre as duas palavras, mas ao fazê-lo, a voz que enuncia o slogan institucional não foi
apagada, ao contrário, essa voz legitima a enunciação, torna-a reconhecível e familiar e, por
isso mesmo, divertida. No entanto essa não é a única voz que o anúncio permite ouvir. Ele
também aciona outra voz popular, aquela relacionada ao verbo “babar”, que em nossa língua
132
comumente adquire um sentido figurado, algo próximo a gostar muito ou ter satisfação com
algo.
Na verdade, além da similaridade fônica entre “beber” e “babar”, também há uma
brincadeira entre “babar” significando estado de satisfação e “babar”, sujar com baba. Isso
ocorre porque “babar” é uma ação decorrente de “salivar” que por sua vez está relacionada ao
fato de que quando se gosta ou se quer muito uma comida, se produz mais saliva. Daí, a
palavra “babar” adquire em seu uso conotativo este sema virtual que significa satisfação,
gosto, fato que foi aproveitado em prol do tom bem-humorado do anúncio.
jogo lúdico que resgata o slogan institucional. Este por sua vez é subvertido de modo que a
preocupação não é mais com o fato de o consumidor beber antes de dirigir, mas sim de que
ele fique tão satisfeito que babe literalmente o carro, sujando-o com sua baba.
Vejamos, agora, no anúncio 32, que o mesmo slogan foi transposto de modo diferente.
Também neste caso, considerando a terminologia de Bergson (1987), ocorre uma
transposição. Mas, diferentemente do que aconteceu no outro exemplo, cujo sentido foi
modificado unicamente pela alteração de uma palavra, aqui todo o slogan foi alterado com a
inserção do sintagma “o carro”.
Tanto o enunciado “se beber, não dirija” quanto “se o carro beber, não dirija” são
recomendações direcionadas aos motoristas, com a diferença de que o primeiro aconselha o
motorista a não beber e dirigir, enquanto o segundo aconselha a não dirigir um carro que
consome muita gasolina, modificação possibilitada pela inserção de “o carro” no slogan
original. Esse procedimento de inserir algo novo em uma frase estereotipada como os slogans
é um procedimento potencialmente cômico, tanto quanto a transposição de uma tonalidade
institucional a outra, menos formal, como a da publicidade. Como afirma Saussure (1972), o
valor de um signo depende de sua correlação com outros signos, fato que explica a mudança
134
de sentido sofrida pelo slogan ao sofrer tal modificação. Por mais que o enunciado inicial
tenha sido fixado pela convenção social e que isso lhe garanta certa estabilidade significativa,
o valor de suas partes continua obedecendo às regras da língua. Assim, ao inserirmos algo
novo numa frase feita, ela inevitavelmente se reacomodará para receber o novo signo e
adaptar-se à sua presença. Mas esta reacomodação não nos é dada a priori, ela depende em
grande medida de nossas experiências linguísticas e comunicativas com nosso grupo social e
cultural.
Ainda que possamos perceber a alusão que se faz ao slogan institucional, neste novo
exemplo, a interpretação inicial é desviada: já não é mais o motorista que está em questão,
mas o carro. A palavra “beber” adquire um valor conotativo, polissêmico na verdade, uma vez
que aponta tanto para beber um líquido como para consumir muita gasolina. Assim, o leitor
precisa encontrar alguma relevância para o fato de o locutor referir-se ao carro ao invés do
motorista, e tal relevância depende do conhecimento partilhado entre ambos – o de que os
carros “bebem”, consomem muita gasolina e que isso aumenta os gastos. As imagens (a do
carro e a da prancheta com um teste comparativo que mede o consumo do carro) também
facilitam esta interpretação.
Para criar comicidade com as palavras, também podemos manipulá-las, como fazemos
com o fantoche a cordas, fazendo-as dizer mais do que normalmente dizem. Trata-se neste
caso do mesmo procedimento de causar estranhamento, introduzindo uma ideia absurda em
algum modelo pré-estabelecido, de modo que a rigidez a que estava submetida a expressão
linguística torne-se evidente. Na classificação de Bergson (1987), trata-se de uma
interferência de séries, ou melhor, dois sentidos bem distantes são aproximados de alguma
forma de modo que um interfira no outro, como ocorre no anúncio 33.
Comecemos por observar a cenografia deste anúncio. O colorido da imagem, a semi-
nudez, o adorno na cabeça da personagem, a pintura corporal, tudo remete a uma cena
carnavalesca. É por meio desta cenografia que o leitor estabelece seu primeiro contato com o
anúncio, mobilizando, portanto toda a sua competência linguística e enciclopédica sobre o
tema – tudo o que sabe sobre carnaval, o vocabulário que circula em torno desse assunto etc.
O leitor fica então preparado para receber uma mensagem ou uma informação relativa ao
carnaval, fato que, de alguma forma, se não direciona, pelo menos interfere em sua
interpretação do texto publicitário.
É com esta cenografia em mente que o leitor inicia sua leitura do enunciado “Por ela,
você viraria mestre-sala, mestre-quarto e mestre-banheira-com-hidro.” A cenografia eleita
para essa enunciação é constituída basicamente pela linguagem icônica, mas como vimos no
135
capítulo 3, tópico, 3.3, toda imagem é polissêmica e é no verbal que em geral ela encontra sua
ancoragem. A linguagem verbal vai determinar quais sentidos devem ser atribuídos à imagem.
Assim, neste anúncio, para interpretá-lo com mais precisão, é preciso relacionar os dois tipos
de linguagens presentes. A primeira informação verbal, a que aparece no alto do anúncio, já
nos dá uma primeira pista, mas ainda pode deixar dúvida sobre a figura feminina que está em
destaque – é uma sambista? Está representando alguma escola de samba? Está apenas
ilustrando a divulgação de algum evento carnavalesco?
constituindo a conotação que possibilita o jogo cômico com as palavras. Fica assim,
justificado que tenha havido entre as palavras uma interferência de séries.
Existem palavras em nossa língua que, embora possuam significados diferentes, são
escritas de maneira idêntica (homonímia), como é o caso de “pulso”; e existem também
palavras cujo significado desliza entre duas ou mais significações mais ou menos próximas
(polissemia), como é o caso de “cortar”. Essas duas palavras ainda podem se unir, formando o
idiomatismo “cortar os pulsos”, que em linhas gerais significa ficar desesperado, fora de si,
suicidar-se ou algo próximo. Assim, a interpretação dessa expressão será necessariamente
filtrada por uma dessas possibilidades, fato que só será possível dentro de um contexto
específico, como ilustrado no anúncio 34.
De acordo com Freud (1987), uma das características do chiste é sua condição de ser
expresso exclusivamente por meio verbal e de depender em geral dessa verbalização para
surtir efeitos risíveis. Com base neste postulado inicial, o autor vai apresentar três técnicas
principais, por meio das quais se alcança efeito chistoso: a condensação, o deslocamento e a
representação indireta.
A condensação consiste na técnica de produção dos chistes de palavras; neste caso o
humor depende principalmente da verbalização, da escolha das palavras, ou da manipulação a
que elas foram submetidas, resultando, em geral, num jogo com duplo sentido. O tipo de
condensação mais conhecido é a formação de um novo vocábulo a partir de dois outros já
existentes, como no caso da palavra “familionariamente” resultante da junção de
“familiarmente” com “milionariamente”, exemplo dado por Freud (1987, p. 25). No entanto,
como vimos no capítulo 2, o autor também define como condensação o uso múltiplo do
mesmo material (quando duas palavras ou expressões possuem algum tipo de similaridade
fônica), os jogos de palavras e as expressões com duplo sentido, visto que todas são técnicas
que possibilitam a economia. Reconhecemos a condensação quando uma palavra, expressão
ou até mesmo uma frase inteira remete a mais de uma possibilidade de interpretação. O duplo
sentido depende exclusivamente da seleção das palavras que expressam uma ideia e não da
139
ideia em si mesma. Por este motivo, ao ser parafraseado o chiste perde seu efeito e sua graça.
Nestes casos, o chiste aponta desde o início sua múltipla possibilidade de sentidos, depende
do alocutário a quem o chiste é contado perceber que ele condensa várias significações, que
ele remete a duas ou mais interpretações possíveis.
A condensação aproxima-se muito do que Bergson (1987) chamou de cômico de
palavras. A maioria das ilustrações usadas no tópico anterior (O cômico de palavras na
publicidade) também ilustra os chistes de palavras. O anúncio Chevrolet (p. 125), por
exemplo, é uma condensação com formação de substituto (“lavamos” em lugar de
“sujamos”). Aplicando o procedimento de redução proposto por Freud (1987), poderíamos
dizer que a expressão “Sujamos a égua” se parafraseada significa algo como: “neste rali,
conquistamos o que pretendíamos (lavamos a égua), mas como o caminho era muito
empoeirado, saímos de lá bastante sujos (sujamos a égua)”. Veja-se que, neste caso, ocorrem
dois processos, primeiro, a expressão “conquistamos o que pretendíamos” está condensada em
“lavamos a égua”, depois, a palavra “sujamos” em lugar de “lavamos” condensa toda a
paráfrase feita; um raciocínio que, parafraseado, não resulta no mesmo efeito. Outro exemplo
de condensação com formação de substituto em que ocorre uma modificação é o anúncio Dell
(p. 72) “Quem vê cara não vê configuração”. Neste caso, a modificação não ocorre em uma
palavra, mas no próprio provérbio “Quem vê cara, não vê coração”, em que a palavra
“coração” do provérbio original foi substituída por “configuração.” O sentido a que remete o
provérbio é aproveitado, mas atribuído não mais a pessoas, mas ao computador, donde a
palavra “configuração” ser mais adequada que “coração”.
Um típico exemplo de condensação, similar à que ocorre em “familionariamente”,
pode ser encontrada no anúncio 64 (p. 177), onde encontramos a seguinte frase: “Gripe
francesa: aquela que zidana com tudo”. A palavra “zidana” condensa em sua forma verbal
todo um pensamento que dito de outra forma perderia sua graça, uma vez que nesta palavra
podemos reconhecer dois vocábulos bem distintos: o substantivo “Zidane” (sobrenome do
jogador francês Zinedine Zidane) e o verbo “danar” (causar danos). Um possível quadro
diagramático desta construção seria
Zinedine Zidan e
Danar
zidana
Uma paráfrase deste chiste poderia ser proposta nos seguintes termos: “gripe francesa:
aquela que causa danos tanto quanto nos causou danos o jogador Zinedine Zidane,
responsável por dois dos três gols que nos levou à derrota na copa de 98”. Expresso desta
140
forma, o pensamento perde seu efeito de chiste, sua graça está justamente na economia que a
formação do novo vocábulo permitiu realizar. Mas a economia pode ser obtida ainda de outras
formas, como veremos nos exemplos seguintes.
O anúncio 31 – Volkswagen (p.133) é um exemplo de condensação com uso múltiplo
do mesmo material. Ele explora a semelhança fônica das palavras “babar” e “beber”, em uma
formulação que reproduz outra bastante conhecida pelos leitores: “Se beber não dirija. Se
dirigir não beba.” Neste caso, ocorreu uma leve modificação no interior da palavra, de modo a
manter a semelhança fônica entre elas. A graça de “Se babar, não dirija. Se dirigir, não babe.”
depende principalmente dessa proximidade fônica que é o que possibilita que o pensamento
expresso seja chistoso, mesmo que não haja uma possível correlação de significados entre as
duas palavras. Outro exemplo de uso múltiplo do mesmo material, mas agora por inversão das
palavras, é o anúncio Ford (p. 100), no qual as expressões “começou mal” e “mal começou” é
que garantem alguma graça ao anúncio, pois invertem completamente os sentidos pretendidos
pelo anunciante que compara seu produto ao dos concorrentes. A simples inversão dessas
palavras produz expressões completamente diferentes entre si quanto ao significado, mas com
similaridade fônica.
Também é um caso de condensação o jogo de palavras produzido quando há
ocorrência de duas palavras ou expressões de grafia igual que possuem significados distintos,
como ocorre no anúncio 34 (p. 137), em que vimos um caso típico de duplo sentido com a
expressão “cortar os pulsos” na frase “Quando eu disse que era para cortar os pulsos, eu tava
falando da conta telefônica.” A frase é chistosa em decorrência da dupla possibilidade de
significação da expressão “cortar os pulsos” que possui dois significados diferentes, sendo
que no anúncio, o mais possível não era o da auto-mutilação sugerida pela imagem e sim o da
conta telefônica. Pode ocorrer ainda um jogo de palavras ou um duplo sentido quando os dois
sentidos de uma palavra ou expressão não são óbvios da mesma maneira, sendo um deles
mais esperado dentro de um determinado contexto. Por meio de uma espécie de alusão, o
significado menos provável ganha proeminência, saltando ao primeiro plano de acordo com o
contexto em que a sentença for produzida, como o que ocorre no anúncio 35 que
apresentamos a seguir.
A palavra “cavalos” remete a dois sistemas significativos bem diferentes: refere-se
tanto a animal quanto à potência do carro. A cenografia nos indica que a melhor interpretação
seria a segunda, visto que tudo neste anúncio nos remete a uma publicidade de carro – a
imagem, as especificações técnicas, os detalhamentos. No entanto, o enunciado “São 145
cavalos que acham que estão sendo perseguidos” atribui à palavra “cavalos” o traço semântico
141
Fonte:
Revista Veja, Ed. 1980, de 1 de novembro de 2006, p. 32-33.
Vejamos ainda a expressão “tomar sol” que aparece no anúncio da Cerveja Sol,
também um caso de condensação por múltiplo uso do mesmo material. Esta expressão é
143
chistosa por seu caráter ambíguo – “tomar sol” aquece, uma vez que o sol é um astro que
emite calor; mas “tomar Sol”, a cerveja, refresca, uma vez que cerveja se toma gelada. Além
disso, faz parte da cultura das pessoas que habitam próximo ao litoral brasileiro o costume de
ir à praia “tomar sol” e “tomar cerveja”, logo, se o nome da cerveja é “Sol”, as pessoas podem
“tomar Sol” nos dois sentidos que lhe podem ser atribuídos.
Como dissemos antes, os chistes de palavras não ocultam nenhum dos sentidos
possibilitados pela verbalização. Podemos até demorar a percebê-los, mas eles estão ali desde
o início, materializados pela forma linguística escolhida para expressá-los. Basta identificar a
palavra ou expressão que foi manipulada, bem como a ideia que ela está apresentando de
forma condensada para que seu efeito cômico se manifeste. Tais chistes são fontes de
economia psíquica, pois ao condensarem em uma palavra ou expressão mais de uma
possibilidade interpretativa, nos desobrigam de raciocinar seriamente sob os moldes da
educação intelectual a que fomos acostumados.
Os chistes de pensamento são outra espécie de chiste; não se manifestam por sua
forma de expressão linguística, como nos exemplos dados até agora, mas sim por sua forma
de guiar o raciocínio, fazendo com que a própria ideia expressa seja chistosa. Dentre as
principais técnicas de elaboração destes chistes, destacam-se o deslocamento e a
representação indireta. O que torna os chistes produzidos por deslocamento risíveis é o fato de
que a ideia expressa inicialmente parece desviar-se abruptamente para uma direção
inesperada. Comparando o deslocamento com a condensação, percebemos que nesta, o
alocutário tem, desde o início, elementos linguísticos que indicam que aquilo que está
ouvindo (ou lendo) contém mais de um sentido previsível, ao passo que naquele, o alocutário
parece ser inicialmente enganado, e só percebe que o raciocínio foi desviado ao final. Quanto
à representação indireta, trata-se de dizer uma coisa querendo na verdade dizer outra, ou
ainda, de fazer alusão ou estabelecer similaridade entre duas coisas que inicialmente não
teriam nada em comum. Neste caso, é possível que o alocutário perceba desde o início o que é
que está por trás da ideia que lhe é transmitida, embora isto possa de fato não ocorrer.
A técnica de condensação pode perfeitamente combinar-se com a do deslocamento ou
com a da representação indireta. Lembremo-nos do anúncio da Toyota (p. 133) “Se o carro
beber, não dirija”. Esta expressão, por um lado, carrega em si duas interpretações
(condensação), por outro, ela promove um desvio da interpretação convencional para outra,
potencialmente cômica. Este é um típico caso de deslocamento.
Ainda explorando o mesmo slogan, vejamos o anúncio seguinte, que não subverte o
enunciado inicial, mas acrescenta-lhe uma informação pressuposta, a de que quem bebe fica
144
alegre – “Quem dirige um Fiat fica alegre do mesmo jeito”. Neste caso, estabelece-se uma
similaridade entre a ação de beber e a de dirigir o veículo anunciado, um típico caso de
representação indireta.
anúncio não reside na forma escolhida para sua verbalização, mas no desvio que o raciocínio
encontra no meio do caminho.
A sequência de ilustrações que segue constitui um anúncio que ocupou várias páginas
da revista, criando certa expectativa ao apresentar uma sucessão de fatos importantes da
história mundial contemporânea: a queda do muro de Berlim, o ataque terrorista de 11 de
setembro nos Estados Unidos e o pentacampeonato do Brasil na Copa do Mundo. Com esta
distribuição em várias páginas o anúncio conduziu o raciocínio do leitor de modo que cada
página percorrida fizesse aumentar a curiosidade sobre qual seria o próximo acontecimento
importante que seria apresentado.
146
ao consumidor a possibilidade de não precisar ter este tipo de preocupação. Logo, aquele
pensamento que inicialmente parecia absurdo, ganha sua lógica. O raciocínio inicial faz
sentido porque representa indiretamente outro raciocínio. É a técnica da representação
indireta, que no anúncio em questão, coloca em destaque a propriedade do produto que é ao
mesmo tempo saboroso e saudável.
Outro caso de representação indireta é o anúncio Kaiser, a seguir, que faz alusão a algo
mais ou menos oculto no anúncio, sugerindo que o consumo de cerveja está associado a
outras imagens que permeiam o imaginário masculino. Em geral, as publicidades de cerveja
estão associadas à imagem feminina – a “loura” gelada, a “boa”, “devassa bem loura” etc.,
estabelecendo-se alguma relação entre a cerveja, o prazer sexual e as mulheres bonitas. Neste
anúncio, essa imagem não é explicitada, mas aludida pelo enunciado “Você dá um gole, fecha
os olhos, suspira um ‘aaaaaaah’ e vamos parando que isso aqui é uma revista de família”. Dar
um gole, fechar os olhos, suspirar são ações associadas pelo publicitário a essas imagens que
circundam o imaginário masculino, fato comprovado pela sequência “e vamos parando que
isso aqui é uma revista de família”. Percebe-se também que o anúncio se apropria de
representações sociais sobre o que é ou não apropriado para a família, e pensar na mulher
como ela normalmente aparece neste tipo de publicidade – seminua, perfeita para o ato sexual
– não é próprio de ser mencionado numa revista dita de família.
portanto, é essa publicidade que resgata a cultura popular, suas imagens, seus mitos, seu
vocabulário, suas crenças, sem distinção de público. Essas publicidades em geral alcançam
grande número de consumidores, independentemente de seu status. Caracterizá-las como
“carnavalescas” pode sugerir que despertam um riso intenso, no entanto, como veremos nos
exemplos dados, tais publicidades são bastante sutis. É possível que, ao reconhecer a
transposição de um elemento cultural popular, familiar, para o ambiente publicitário, o leitor
de divirta, mas não necessariamente ria francamente, como se ouvisse uma piada inédita.
Já vimos, em ilustrações anteriores, alguns anúncios que recorriam a provérbios e ditos
populares de modo criativo e bem-humorado. Todo jargão ou dito popular tem seu espaço
bem delimitado na vida cotidiana, faz parte do dia-a-dia das pessoas na rua, com os amigos,
ou em casa com a família. Seu emprego, portanto, em espaços oficiais, causa, no mínimo,
estranhamento podendo provocar tanto descontração como crítica. Na verdade, o que se
percebe no emprego dessas expressões no âmbito da publicidade é o mesmo que Bakhtin
percebeu em relação à obra de Rabelais: é a voz popular que reflete a sua alegria, a sua
capacidade de suavizar situações tensas, o seu poder de contribuir com os efeitos humorados
pretendidos pelo produtor do anúncio. A publicidade que se configura com base na cultura
popular se aproxima ainda mais de seus consumidores, evocando um ethos reconhecidamente
familiar e por isso mesmo legitimado, confiável. Damos a seguir alguns exemplos de como a
publicidade recruta a cultura popular, suas crenças, seus mitos, suas fantasias, seu modo de
agir e de pensar, estabelecendo com isso uma relação bem-humorada com seus consumidores.
Há casos, inclusive, em que a publicidade resgata expressões ou palavras que já não faziam
mais parte do convívio, reinserindo-as na sociedade, como ocorre com o anúncio Sadia
(anúncio 9, p. 52), que retoma a expressão “Nem a pau, Juvenal!”.
Vejamos a seguir alguns anúncios que empregam elementos da cultura popular que se
tornaram potencialmente cômicos ao serem reinseridos em novo contexto que não o do
cotidiano.
Alguns verbos, como pedir, mandar, achar etc. propiciam uma série de construções
típicas do registro oral, como “ele tá pedindo uma surra”, “ele tá mandando bem” ou “ele tá
se achando”. Já vimos alguns exemplos destas construções mais acima: “tomar sol”, “cortar
os pulsos”. A ilustração seguinte mostra como o anúncio da Brahma explorou ludicamente
uma das possibilidades de uso do verbo “pedir” – “Pede, né?”, que em seu uso conotado
significa aproveitar uma boa oportunidade, ou executar uma ação inevitável.
153
Detalhe:
Veja-se que ao apresentar esta cenografia, o anúncio colhe do mundo os aspectos que
se supõe fazerem parte das representações sociais sobre o comportamento masculino, suas
fantasias, seus ideais de felicidade, e recria um mundo perfeito (um “paraíso”), onde o homem
pode viver o que quiser, tendo a atenção de todas as mulheres a seu redor, bastando para isso,
adquirir o produto anunciado, os sapatos Ferracini 24h. A expressão facial do personagem
demonstra satisfação com a situação, possibilidade que é oferecida ao consumidor por meio
do enunciado “O seu dia pode ser diferente”. Todas essas informações encontram-se
implícitas no anúncio. Para recuperá-las, o leitor precisa ser cooperativo. Sua potencialidade
cômica reside na economia psíquica que ele permite fazer ao sugerir tudo isso de modo bem
simples, com o mínimo de informação verbal, mas explorando ao máximo o poder de
sugestão das imagens.
Tomando esta mesma direção, o anúncio seguinte também explora esse imaginário
masculino, aludindo à conquista, à sexualidade e, a nosso ver, à traição. Seguindo os
parâmetros da ilustração acima, a modelo posta em cena é uma representante fiel do que seja
156
uma mulher atraente, bonita, enfim desejada pelo homem. Tal característica é enfatizada com
dados – nome e medidas – que correspondem a uma imagem feminina socialmente
reconhecida como ideal. O poder de sugestão deste anúncio encontra-se também marcado
verbalmente, por meio de expressões que recuperam o estereótipo de homem “mulherengo”
(“você pode ter qualquer companhia em seu carro”), mas que prefere guardar sigilo (“para que
você mostre o que quiser”). O produto proposto, associado a estas imagens, transforma-se
numa necessidade para os homens que se identificarem com a proposta. E o anúncio torna-se
divertido exatamente por suscitar uma forma de pensar bastante peculiar aos homens.
Também há polifonia no anúncio 56, no qual o carnaval serve como pano de fundo
para criar comicidade. Ao por em cena uma mulher usando um fio dental, imagem esta em
harmonia com o enunciado “Com tanto fio dental na avenida...”, o texto publicitário sugere
referir-se ao carnaval, no entanto, ao acrescentar “creme dental e escova”, desloca a
compreensão inicial numa outra direção. Neste caso, o anúncio explora a homonímia entre
“fio dental”, parte inferior do biquíni e “fio dental”, fio para higiene dos dentes. Isso é
162
possível porque o fio dental é uma peça bastante usada pelas passistas das escolas de samba
durante os desfiles, como ilustrado pela imagem.
medida do conhecimento de mundo, das crenças, dos estereótipos, enfim, das representações
sociais vigentes em cada grupo social.
Para Saussure (1972), o signo é social por natureza, ele nasce como uma forma de
atender ao convívio comunicativo da coletividade social. A sociedade cria signos a partir dos
quais significa o mundo, podendo assim comunicá-lo. No entanto, ainda conforme o autor,
uma vez constituído, o signo ganha vida própria, escapando tanto à vontade individual quanto
à social. A partir de então, o signo conforma um sistema fechado em si mesmo, cujos
elementos delimitam seus espaços reciprocamente. Em outras palavras, ao entrarem para o
sistema linguístico, os signos ficam interdependentes de tal forma que a alteração de um tende
a modificar a configuração dos demais dentro do sistema.
Vimos, no entanto, que os usos individuais que os falantes fazem da língua dentro de
um contexto social possibilita deslizamentos de sentido dependentes das circunstâncias,
referidos como sentidos figurados ou conotativos. Com isto, podemos considerar que o signo
linguístico, por um lado, carrega uma significação que lhe é própria, devido a sua inserção no
sistema da língua e, por outro, se atualiza a cada nova enunciação. O que é próprio do signo é
aquilo que, ao ler um enunciado, percebemos de imediato, é o que está de fato dito, são as
informações explícitas; já o que atualiza o signo são elementos do contexto que dependem dos
interlocutores, são as informações implícitas que precisam ser inferidas.
As inferências publicitárias dependem em geral do imaginário social, de informações
construídas e compartilhadas por um determinado grupo. Toda sociedade tem seus mitos, seus
tabus, suas fantasias, suas crenças, seus costumes, seus ditos populares, suas convenções
comunicativas e comportamentais etc. Muitas dessas informações, embora sejam
compartilhadas em maior ou menor grau por toda a sociedade, fazem parte principalmente de
uma cultura popular, como previa Bakhtin em seu trabalho sobre Rabelais, não tendo boa
aceitação na esfera oficial. Dessa forma, embora o uso de um jargão popular numa conversa
entre amigos não cause nenhuma surpresa ou efeito particular, seu uso num discurso solene
como o do presidente da república desperta a atenção dos ouvintes, podendo suscitar efeitos
diversos, como crítica, aprovação, conivência, desacordo etc. Além disso, muitas dessas
informações são censuradas pela educação intelectual, não devem, pois, ser ditas em qualquer
ocasião, uma vez que podem agredir a face tanto de quem as profere quanto de quem as ouve.
164
Observando as três ocorrências desta expressão, vemos que em cada uma podemos
identificar uma significação distinta. Para explicar tal fato, lembremo-nos de que Saussure
(1972) ao estudar o signo linguístico postula que a significação depende tanto da relação entre
significante e significado, interna ao signo, quanto do valor que esse signo adquire em sua
relação com outros signos.
Gostaríamos de lembrar também que em nossa língua a expressão “discutir a relação”
é uma dessas construções linguísticas que de tão repetidas ganhou estatuto de idiomatismo,
foi fixada pela convenção e ganhou um sentido estabilizado: “discutir a relação” significa
conversar sobre o relacionamento. Esse é o sentido que encontramos na terceira ocorrência:
“Todo casal tem seu momento de discutir a relação”. Nesse contexto, a expressão carrega
alguns traços distintivos específicos, como por exemplo, o sema /ação realizada entre
humanos/, traço que só pode ser atribuído devido a sua relação com a palavra “casal”. Na
primeira ocorrência, no entanto, extraída do anúncio Quatro Rodas (p. 90), a expressão é
empregada para referir-se a outro tipo de relacionamento, o que o motorista tem com o seu
carro. Neste caso, a expressão não perde seu sema /+humano/, mas atribui ao carro o mesmo
estatuto que se atribuiria a um dos parceiros do relacionamento humano, possibilitando uma
transposição potencialmente cômica. Como nos diz Bergson (1987), a comicidade reside
naquilo que é humano ou que guarda alguma semelhança com ele. Tratar o carro como se
fosse um homem ou uma mulher com o qual é preciso “discutir a relação” guarda, pois, certa
comicidade. Mas voltando-nos para a compreensão da expressão nestas duas ocorrências,
podemos concluir que além de informações implícitas, partilhadas pelos interlocutores acerca
do uso que se faz desta expressão em sociedade, há também informações explícitas (carro,
casal) que são fundamentais para o entendimento que se pode derivar do enunciado.
Essa interpretação, no entanto, não pode ser atribuída à segunda ocorrência. Isso se
deve ao fato de que ali, não temos uma expressão cristalizada, mas sim palavras
independentes que se uniram especificamente nesta frase e obedecem às regras combinatórias
da língua. Neste caso, “discutir a relação” já não pode ser entendida como uma expressão
fixa. Para interpretar as ocorrências 1 e 3 temos que considerar que a combinação dessas três
palavras formam um todo [discutir a relação], comportando-se, portanto, como um signo –
possui, de certa forma, significante e significado próprios – que está estabilizado no sistema
da fala. Para interpretar 2, ao contrário, temos três palavras independentes, sendo cada uma
um signo em si mesma: [discutir]+[a]+[relação], elementos linguísticos que fazem parte da
língua e que encontram seu valor e sua função dentro deste sistema. Vejamos mais uma
ocorrência dessa mesma expressão no anúncio seguinte.
166
Neste caso, a expressão também vem empregada em seu sentido corrente na fala
cotidiana, referindo os relacionamentos entre homens e mulheres. Para adquirir tal sentido,
entretanto, essa expressão depende em grande medida de conhecimentos pré-existentes a esta
enunciação. Neste caso, a graça reside nas inferências que o emprego dessa expressão
possibilita extrair. Há alguns sentidos que circulam em torno dessa expressão em seu uso
cotidiano, como por exemplo, o de que quem faz o convite para discutir a relação é a mulher,
o de que para a mulher o homem sempre está errado etc. Ao dizer que “Discutir a relação
deveria ser como usar o câmbio da Meriva. De um jeito ou de outro, você sempre tem razão”
o anúncio resgata esse conhecimento compartilhado, levando o consumidor a reconhecê-lo e
analisá-lo a partir das associações estabelecidas pelo enunciado. Com isso, o leitor efetua uma
economia de esforços intelectuais, como formulado por Freud (1987), pois reconhece numa
expressão que lhe é familiar, múltiplas possibilidades de interpretação que promovem
instantes de relaxamento e descontração.
O emprego dessa expressão leva o leitor a extrair do anúncio diversas informações,
algumas ditas explicitamente, outras, implicitamente. Explicitamente, o anúncio diz que usar
o câmbio da Meriva é de fácil manuseio, pois faz o que o motorista quer, sem dificuldades.
Junto a esta informação, aparecem outras pressupostas no enunciado, como: usar o câmbio da
Meriva é mais fácil que discutir a relação; ao discutir a relação, o homem não tem razão nem
167
de uma forma nem de outra, ou seja, nunca tem razão. Além destas, também há informações
implícitas que, embora não possam ser extraídas do enunciado em si, são ditas junto com ele e
recuperadas por meio de nossa competência enciclopédica, ativadas quando da leitura do
anúncio. Para exemplificar é possível dizer que dentre as informações que tal anúncio pode
suscitar, está a de que os casais costumam, em algum momento do relacionamento, discutir a
relação, sentar para conversar sobre algo que não esteja bem para algum dos cônjuges. Além
disso, há um consenso de que quem toma essa iniciativa em geral é a mulher, e que o homem
é posto numa posição de réu, em geral é o culpado pelo que se quer discutir etc.
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provar que conhece alguém que dirija tão mal quanto o barbeiro aí em cima, pode ganhar
prêmios incríveis. MAPFRE seguros. A seguradora diferente. (Transcrição do anúncio 58)
Nos dois casos apresentados, a cenografia torna-se difusa ao colocar em cena tanto o
profissional, quanto o mau motorista, possibilitando uma interpretação culturalmente
consolidada. Embora haja uma palavra ambígua que desencadeia todo o jogo, a cenografia faz
com que o anúncio se torne polissêmico por inteiro.
Analisemos agora, um anúncio em que as informações dadas implicitamente não
poderiam ser veiculadas de outra forma senão pelo viés humorístico. Trata-se de uma
publicidade da Revista Playboy, que ao contrário do que normalmente acontece, não tem
nenhuma imagem de mulher semidespida. Além das frases “Façam suas apostas” e “Cláudia
Ohana está de volta, na edição de novembro”, vemos as figuras de três objetos cortantes: um
aparelho de barbear, uma tesoura pequena e uma tesoura de jardinagem, ao lado das quais
constam parênteses que delimitam um espaço onde se deve marcar uma das opções.
A graça deste anúncio é totalmente dependente de informações implícitas tanto sobre a
revista como sobre Cláudia Ohana. São as inferências possibilitadas pelo anúncio que
possibilitarão compreender o porquê de, em lugar da imagem da atriz, aparecerem esses três
objetos.
170
O anúncio 61, seguinte, também constrói sua graça baseando-se em inferências que
precisam ser recuperadas pelo alocutário em sua competência enciclopédica, em estereótipos
que compartilha com o locutor – mulheres, em geral, falam mais que homens, usam mais o
telefone etc. Assim, o contraste entre “40 recados de homem” e “10 de mulher” brinca com
uma informação que o leitor também tem, tornando-o um cúmplice do jogo. Mas, para chegar
a tais inferências, o leitor depende de sua competência enciclopédica, das informações que
compartilha em seu meio social, associando-as à situação comunicativa instituída por meio da
cenografia dada e buscando relevância para o enunciado.
Desta forma, infere-se do anúncio que o telefone anunciado tem boa capacidade,
comporta “uns 40 recados de homem”, mas apenas 10 de mulher porque elas falam por mais
tempo que os homens.
171
:
Fonte: Revista Caras, Ed. 364, de 27/10/2000, p. 41.
Quisemos, com estes exemplos, apontar para o fato de que o humor depende tanto de
informações explícitas, que vêm marcadas no anúncio pelo verbal e pelo icônico, quanto de
informações implícitas que dependem da cooperação dos interlocutores, que deverão recorrer
172
Embora se pudesse falar mais acerca desta imagem, gostaríamos de nos deter
especificamente sobre a figura que vemos sair da fechadura da porta. As formas, os traços,
tudo nesta figura nos remete à figura de uma bandeira, este é seu significado denotado, é
assim que por convenção interpretamos uma imagem como esta. Igualmente, vale lembrar que
uma figura como essa pode conotar mais de um sentido para nossa cultura: uma bandeira pode
ser símbolo de um grupo social (bandeira nacional, estadual, municipal, de uma instituição, de
um time de futebol etc.), ou pode ser um pedido de paz (bandeira branca). O que vai resolver
173
Nosso primeiro contato com o anúncio nos coloca diante da mensagem icônica
denotada. Tal mensagem nos apresenta formas, cores, espaço físico, enfim, elementos que nos
ajudam a identificar objetivamente a cena mostrada. Após este contato inicial, somos levados
175
a interpretar esta imagem, afinal, sabemos que, numa publicidade, essas escolhas não são
ingênuas, mas evocam algo que está além, as imagens são inevitavelmente conotativas.
Assim, chegamos à compreensão de que as cores azul e branca representam a Argentina, o
verde e o amarelo, o Brasil, bandeiras azuis e brancas sendo agitadas indicam a vitória da
Argentina. Pela reação dos homens que assistem ao jogo de futebol concluímos que são
brasileiros e que lamentam a derrota brasileira etc.
Mas, a vibração de um destes homens não pode ser determinada sem recurso ao
verbal. Poderia tratar-se de um argentino, mas ele usa a camisa do Brasil. Por outro lado, um
brasileiro dificilmente torceria pela Argentina. Assim, a imagem encontra sua delimitação na
informação verbal. Neste caso, o anúncio apresenta uma informação icônica denotada, uma
informação icônica conotada e uma informação linguística. É esta última que vai
complementar as informações icônicas, ela serve de ancoragem para o não verbal.
O anúncio da Bioslim, que se segue, também ilustra a função de ancoragem que o
linguístico tem em relação à imagem. É a mensagem linguística que nos ajuda a identificar
denotativamente um espelho e não um retrato de corpo inteiro, por exemplo, ou nos ajuda a
simbolizar essa imagem do espelho como sendo a forma como a mulher acredita que será
vista pelos homens.
Há nesta relação entre o verbal e o icônico publicitário um jogo de explícitos e
implícitos que precisam da cooperação do alocutário. Dizer por meio destas palavras e não de
outras, por meio destas imagens e não de outras, sugerindo estas informações e não outras,
tudo isso garante ao anúncio sua validade, sua atualidade, sua relevância e sua intenção.
Por que a imagem de um espelho? E principalmente por que um homem no espelho?
Entender as informações que estão por trás destas escolhas é tarefa do alocutário e para isso
ele dispõe de seu conhecimento de mundo, conhecimento que também era do locutor ao
mobilizá-las e organizá-las de modo a configurar sua mensagem.
Recorrendo ao senso comum, podemos dizer que as mulheres, em geral, estão
preocupadas com sua aparência e com seu corpo e objetivam obter a atenção do público
masculino. Diante do espelho, a maioria das mulheres busca auto-aprovação a partir de
parâmetros que julga serem os mesmos utilizados pelos homens ao olharem para uma mulher,
porém, normalmente não ficam satisfeitas com o que veem. Desta forma, a imagem no
espelho ilustra esta preocupação do público feminino. A personagem do anúncio, entretanto,
por consumir o produto anunciado, está despreocupada; não precisa olhar para o espelho para
saber que receberá olhares de aprovação, como o mostrado no espelho. A cenografia deste
anúncio resgata aspirações que estão ilustradas tanto na informação icônica quanto na verbal,
176
recriando um mundo onde é possível ser auto-confiante, como proposto no slogan “Fique bem
o ano inteiro. Tome Bioslim.” e no texto “Neste inverno, faça as pazes com seu espelho”. O
bom-humor desse anúncio deve-se ao poder de sugestão da imagem que, ao nos fazer
recuperar as informações que não foram ditas, nos proporciona prazer pela economia
suscitada.
Conforme Basílio (2006, p. 10), “o léxico corresponde não apenas às palavras que um
falante conhece, mas também ao conhecimento de padrões gerais de estruturação, que
permitem a interpretação ou produção de novas formas”. É assim que palavras de outras
línguas passam a fazer parte do léxico do português (deletar, escanear etc.) e são estruturadas
como uma palavra da língua. “Zidana” é uma palavra que, de acordo com as regras de
formação de palavras, seria derivada do verbo “zidanar” que, como vimos no tópico 5.2,
remete ao nome do jogador francês Zinédine Zidane (da mesma forma que “deletei” permite
recuperar a forma “deletar” originada do inglês “delete”). Voltando-se ao nível do sentido,
estas instruções permitem identificar nesta enunciação a opinião de um enunciador que aponta
o jogador francês como responsável pela derrota brasileira. Ao fazer uso da palavra “zidana”,
o locutor faz ouvir este enunciador. É dele que o leitor do anúncio vai se lembrar no momento
da leitura, podendo, inclusive, com ele se identificar. Como vimos anteriormente, o uso de
“zidana” condensa informações que ditas de outra forma não possibilitariam a mesma
economia e, consequentemente, não seriam fonte de prazer e descontração.
No enunciado “Gripe argentina: uma gripezinha, mas acha que é uma epidemia”
também se fazem ouvir enunciadores cujos pontos de vista são postos em evidência. A
significação da frase orienta a identificar dois enunciadores com pontos de vistas distintos. O
emprego da conjunção “mas” indica que as duas proposições são opostas, mas que a
conclusão deve ser tirada da segunda. Assim, no enunciado em questão, tem-se uma primeira
proposição [Gripe argentina: uma gripezinha] cuja conclusão poderia ser “não é grave”. De
acordo com as instruções dadas pela conjunção “mas” seria esperado que a segunda
proposição [mas acha que é uma epidemia] indicasse uma proposição oposta que levasse à
conclusão “é grave”. Mas não é o que acontece: a conclusão da segunda proposição é a
mesma da primeira (“não é grave”). A instrução indicada pela frase foi desobedecida. Isso
ocorre porque o locutor recorre à ironia, apresentando um enunciador ridículo que tem sua
enunciação desqualificada. Tal enunciado faz ouvir dois enunciadores – um que diminui a
gravidade da gripe e outro que afirma sua gravidade. Mas este enunciador que afirma a
gravidade da gripe é posta como ridícula. Também neste caso, o leitor encontra uma ideia
formulada de forma surpreendente, um chiste que brinca com pontos de vistas conhecidos
pelo leitor, um caso de chiste de pensamento cuja técnica de produção é o deslocamento.
Vejamos mais alguns exemplos de anúncios polifônicos, identificando a presença de
vozes que se revelam de modo surpreendente e divertido.
181
Aqui, a frase “Vim, vi, subi, desci, atravessei, desviei, passei e venci” retoma a célebre
frase latina “Veni, vidi, vici” que em português significa “Vim, vi e venci”, frase repetida em
diversas situações para indicar uma vitória difícil, disputada. Esta voz, não é dita diretamente,
mas é ouvida por meio de um enunciador que tem sua enunciação recuperada, objetivando
atribuir ao carro, as mesmas propriedades referidas pelo enunciador em sua fala inicial. Este
enunciado polifônico parece ter um locutor assimilado ao carro, como se fosse o próprio carro
quem proferisse este enunciado, mas também ao próprio leitor, que é quem vai guiar o carro,
conseguindo, com ele, superar as dificuldades do caminho.
A seguir, a polifonia é devida ao enunciado “bem que sua cartomante te disse que você
encontraria muitas pedras no caminho”.
Este enunciado merece algumas considerações, uma vez que ele possibilita algumas
leituras. Primeiramente, ele apresenta um locutor “L”, responsável pelo anúncio como um
todo, pelas informações dadas verbalmente e iconicamente. Este locutor faz ouvir o
enunciador “cartomante” responsável por dizer que “você encontraria muitas pedras em seu
caminho”, no entanto, ao fazê-lo o locutor ridiculariza o enunciador, mostrando que as
“pedras” que teriam sido referidas pelo enunciador como “dificuldades a serem superadas”
eram, na verdade, as pedras preciosas encontradas nas jóias anunciadas. Vê-se assim que a
182
palavra “pedras” adquire dois sentidos, condensados num único termo, promovendo assim
uma economia.
Em segundo lugar, ocorre uma intertextualidade, uma vez que o anúncio também
remete ao poema de Drummond que diz “tinha uma pedra no meio do caminho”, cujo termo
“pedra” remete igualmente a dificuldades, as mesmas previstas pela cartomante.
ele próprio profere o enunciado “Quem escolhe outra marca não entende. Entende?”.
Sabemos, no entanto, tratar-se de um locutor, voz presente em todo e qualquer enunciado, que
faz ouvir por meio de sua própria voz a voz do enunciador Pelé, embora a cenografia
apresentada faça crer tratar-se da voz do próprio Pelé. O vocábulo “entende” é um vício de
fala atribuído ao atleta, uma atitude repetida involuntariamente, quase mecanicamente, como
se fosse o automatismo que se sobrepõe ao vivo (Bergson, 1987), por isso seu aparecimento
no anúncio, associado à sua imagem, é reconhecidamente risível.
Todos os exemplos de polifonia analisados neste tópico dependem em algum grau do
conhecimento de mundo compartilhado pelos interlocutores; um leitor que não tenha memória
dos jogos da copa do mundo, que não compartilhe os mitos e as crenças que a circunscrevem,
não poderia reconhecer os enunciadores identificados no anúncio 64, não perceberiam a
brincadeira proposta e não se descontrairiam com o enunciado. De igual modo, não se poderia
perceber o jogo humorístico dos anúncios 65, 66 e 67, se não se reconhecesse os enunciadores
que aí são ouvidos de forma inusitada.
Desta forma, podemos dizer que o humor na publicidade impressa depende em grande
escala de fatores pragmáticos: da atualização contextual, dos interlocutores e todas as crenças
e saberes que compartilham e das informações explícitas e implícitas que o enunciado
possibilita recuperar por meio de sua ilocução.
185
Em geral, os anúncios que aparecem nas revistas não despertam o interesse da leitura –
na verdade poucos precisam ser de fato “lidos”, visto que não são elaborados para “informar”
o leitor sobre um determinado produto, mas para torná-lo presente. Por este motivo, procuram
não ser cansativos, explorando mais as imagens que, por sua relação analógica com o mundo,
são de fácil captação. Além disso, a informação verbal é reduzida ao mínimo necessário,
mantendo com a linguagem icônica uma função de fixação dos sentidos da imagem, que por
sua natureza é necessariamente “polissêmica” (Barthes, 1990, p. 32). Os anúncios se
apresentam nas revistas como uma forma de dizer um “Oi, tudo bem?” que vai manter viva a
imagem do produto. Na verdade, da mesma forma que ninguém liga a televisão com o
186
objetivo de assistir aos intervalos comerciais, também não se compra uma revista com o
objetivo de ler os anúncios, mas ao vê-los sempre ali, dando um “Oi!”, o leitor acaba se
recordando deles depois, quando assume seu posto de consumidor.
Mas, eis que de repente um anúncio faz com que o leitor pare de folhear e o observe.
Os olhos, antes distraídos, agora se detêm, atentos, e até sorriem. Quando isso acontece, o
anúncio disse muito mais que um “Oi, tudo bem?”. Certamente, o anúncio fez uma graça que
chamou a atenção, captando, então, o interesse do leitor. E é quando isso acontece que a
leitura de um anúncio pode dar certo prazer, o mesmo que se encontraria ao se ouvir uma
piada, ou ao se ler um poema, ou mesmo ao se encontrar uma notícia cujo tema interesse.
Foi assim que, inicialmente, surgiu nosso interesse por este tema: folheando uma
revista encontramos um anúncio que nos fez rir francamente, fato que nos levou a questionar
o porquê de havermos rido tanto se, afinal, tratava-se de um simples duplo sentido
envolvendo a palavra “cavalo”. Em outra ocasião, novamente folheando uma revista,
distraidamente, nos deparamos com outro anúncio que nos divertiu. Desta vez tratava-se de
um jogo com a palavra “saia”. Percebemos, entretanto, que embora ambos fossem divertidos,
havia entre eles algo em comum (o duplo sentido) e algo diferente, os motivos que os
tornavam engraçados eram distintos. Assim, começamos a folhear outras revistas em busca de
outros anúncios que nos parecessem interessantes, sempre tentando encontrar uma resposta
para a seguinte questão: o que de fato os tornava engraçados? Ou melhor, porque um jogo de
palavras como aqueles nos fazia rir? Como não conseguimos elaborar nenhuma hipótese
sobre o assunto, acabamos deixando-o de lado e elaboramos nosso pré-projeto de mestrado
com base em outra inquietação: nosso interesse estava voltado para entender como a interação
entre palavra e imagem nas capas de revista produzia efeitos de sentido que influenciavam o
leitor a adquirir a revista. Foi na primeira conversa com nosso orientador, cujo foco
investigativo versa sobre o humor, que resgatamos nossa questão sobre os anúncios bem-
humorados e cujo resultado foi apresentado nesta dissertação.
Nosso interesse sobre como os sentidos nos são dados através dos textos que lemos
passou a ser cada vez maior na medida em que desenvolvíamos nosso trabalho docente com
alunos do ensino fundamental e médio, principalmente na educação de jovens e adultos que é
a área em que atuamos na rede estadual. Nossos alunos apresentam grandes dificuldades para
compreender e interpretar textos dos mais variados gêneros, desde os que julgamos mais
simples por fazerem parte de seu cotidiano (cartas, notícias, anúncios etc.) aos mais
complexos (como os literários). Desta forma, ao elaborar nossos planos de aula, sempre nos
questionávamos sobre a forma de ajudar o aluno a atribuir sentidos aos textos. Para ajudá-los,
187
porém, era necessário entender melhor o processo de produção de sentidos, fato que nos
motivou a produzir uma monografia de especialização em torno da leitura de histórias em
quadrinhos por alunos jovens e adultos. Naquele momento, chegamos a uma concepção
interacionista de leitura, que parte do princípio de que ler é um processo que envolve uma
troca contínua entre autor, leitor e texto, logo, os sentidos não estariam exclusivamente no
texto, nem dependeriam unicamente do leitor. Ficou claro que, embora a leitura envolvesse
estas três instâncias, era o texto que o leitor tinha em mãos. Ele não podia chegar a seu autor
se não por meio do próprio texto. Daí surgiu nosso interesse em nos voltarmos para a
compreensão dos mecanismos que o texto oferece para possibilitar a apreensão dos sentidos.
O humor verbal, enquanto efeito de sentido, depende de elementos textuais para ser
apreendido. Assim, acreditamos que investigar o humor e os mecanismos envolvidos em sua
produção contribui grandemente para a prática docente, para a compreensão de que fatores
estão envolvidos na leitura e de como podemos considerá-los em nossas aulas. Ainda assim,
não elaboramos nenhuma proposta didática, nos restringimos a evidenciar os mecanismos de
produção de humor presentes nos anúncios. A partir de então, acreditamos que nosso trabalho
possa se tornar uma fonte de consulta sobre como podemos explicar alguns efeitos
surpreendentes que um texto pode ter, uma vez que trazemos o aporte das principais teorias
sobre o humor, além de fazer algumas considerações importantes em torno do texto
publicitário.
Tendo em vista essas motivações iniciais que nos direcionaram a trilhar o caminho
investigativo sobre o humor, fez-se necessário fazer revisão da literatura especializada sobre o
assunto, com ênfase principalmente nos trabalhos de Bergson (1987), Freud (1987) e Bakhtin
(2010). Destes trabalhos, entretanto, priorizamos os aspectos relacionados ao humor verbal,
aquele que é comunicado intencionalmente, com o propósito lúdico, seja por meio de
manipulação do material linguístico, seja fazendo o enunciado dizer mais do que aparenta
dizer. Bergson (idem), ao evidenciar que a rigidez a que está submetida a linguagem
possibilita a criação cômica, de certa forma, nos faz considerar que essa rigidez é decorrente
da convenção social. A língua se fixa a partir dos usos que um grupo social dela faz. Só é
possível brincar com as palavras porque elas estão enrijecidas pela convenção linguística, ao
manipulá-las, atribuímos-lhes um movimento que não lhes é próprio. De acordo com Saussure
(1972), o natural de uma língua é que ela seja um sistema cujos elementos estejam
determinados por sua função e por sua relação com outros elementos do conjunto. Neste
sentido, a língua possui vida própria, seu uso social. Manipulá-la é, com base em Bergson
(idem), transformar o vivo em mecânico, é evidenciar a rigidez da convenção.
188
14
O título desta dissertação estabelece intertextualidade com a obra de John L. Austin, cuja tradução para o
português tem como título Quando dizer é fazer. Palavras e ações. Como o livro encontra-se esgotado, tivemos
acesso à sua versão em espanhol, cujo título é Como hacer cosas con las palabras (AUSTIN, 1991).
192
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