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AS PROFECIAS NA ENEIDA

ou

A profecia como máquina


de viajar no tempo

Vaso antigo grego - Eneias e Anquises na fuga de Tróia (século VI ou V a.C.)

Renato Roque

FLUP - 2014
Sinopse: este pequeno trabalho analisa o papel das profecias no poema épico Eneida de Virgílio, procurando
estabelecer as motivações poéticas, religiosas e políticas do conjunto de adivinhações identificadas e tentando
demonstrar que a profecia é para o poeta como uma seta no tempo, apontada do mito à história de Roma, para dar
a essa história uma significação divina.

As profecias distribuem-se de uma forma bastante regular ao longo dos doze cantos do poema
A profecia como máquina de viajar no tempo

1. Introdução e curta justificação do tema escolhido


Tendo escrito um trabalho no primeiro semestre sobre o papel desempenhado pela adivinhação na
literatura grega, tomando como ponto de partida a personagem Calcas da Ilíada, o reencontro inesperado
com esse velho companheiro, no canto II da Eneida, pareceu-nos poder ser um sinal a levar em conta.
De facto, quando o herói Eneias revela a Dido a forma ardilosa como os Gregos, sob a orientação do
astuto Ulisses, tinham conseguido entrar na cidade de Tróia e destruí-la, relata-lhe o que um grego
chamado Sínon lhes contara para os convencer a levar o cavalo para dentro da cidade, e como o velho
Calcas1 desempenhara mais uma vez um papel central. Independentemente da dupla falsidade2 dessa
história, ela permite realçar mais uma vez a força da palavra divinatória de Calcas e o respeito que Gregos
e Troianos lhe deviam.
Esse “sinal” levou-nos a pensar que faria sentido continuarmos de alguma forma esse trabalho, que
tínhamos iniciado em Cultura Clássica I, e procurarmos abordar de novo a questão da adivinhação, mas
desta vez na epopeia latina de Virgílio. Na realidade, se a adivinhação e as profecias como mensagens
divinas eram importantes, quer na Ilíada quer na Odisseia, revelam-se quanto a nós muito mais
importantes na Eneida de Virgílio, parecendo, por isso, a nossa intenção razoável.
Em muitas sociedades antigas, os adivinhos gozavam de grande prestígio e de muitos privilégios. Os
monarcas e governantes muitas vezes basearam as suas decisões nas adivinhações3 desses intermediários
da palavra divina que eram temidos e respeitados. Isso aconteceu na Grécia4, mas ganhou ainda mais
importância em Roma, onde os oráculos foram integrados na religião oficial. Em Roma os oráculos,
sobretudo dedicados a Apolo, ganharam muita importância e esta poderá ser apontada como uma das
razões para a importância que as profecias assumem na Eneida. Tentaremos no entanto evidenciar neste
trabalho que essas profecias, para além de razões religiosas e literárias, sobretudo por influência dos
poemas homéricos, têm razões políticas muito fortes e muito evidentes. As profecias permitem ao poeta
justificar no plano divino a grandeza de Roma e de Augusto.
Observamos que toda a narrativa da Eneida parece estar desenvolvida em torno de uma grande profecia,
anunciada desde o canto I, em que se augura o Lácio como destino oferecido pelos deuses a Eneias e se
pressagia o papel reservado ao herói na construção de um novo e grandioso império em Itália, herdeiro da
cultura e da civilização troianas. É essa palavra profética que conduz o herói, mesmo contra a sua vontade.
Essa grande profecia vai sendo tecida desde o princípio do poema com inúmeros oráculos, adivinhações,
sonhos e visões que, ao longo dos doze cantos, servem para sustentar a história de Roma que Virgílio nos
conta, entrelaçada com as aventuras de Eneias. A epopeia permite ao poeta, à custa de um retorno no
tempo e recorrendo ao mito, explicar a história e sobretudo encontrar razões proféticas para o presente.

1
O nome do célebre adivinho, traduzido para português nesta edição da Eneida, é Calcante, ao contrário do que acontecia na
Ilíada que nós lemos e que nos serviu de base ao trabalho do 1º semestre, onde o nome em português era Calcas, que
continuaremos, apenas por isso, a usar. Esta tradução diferente do nome do vate poderá no entanto fazer sentido, pois em latim
o nome do adivinho era Calchas, Chalcantis. Consultando diversas fontes, verificámos que elas ora optam por uma, ora optam por
outra forma. Assim, por exemplo, no Dicionário de Latim de Francisco Torrinha aparece a forma Calcante, mas no Dicionário de
Mitologia de Pierre Grimal o autor prefere a forma Calcas.
2
Curiosamente temos aqui uma dupla falsidade, a falsidade do relato de Sínon e a falsidade da adivinhação de Calcas, urdida por
Ulisses, mas o resultado não é verdadeiro, ao contrário do que a lógica booleana - onde negar duas vezes o verdadeiro é
verdadeiro - nos poderia levar a supor.
3
Em Roma, onde a adivinhação do futuro desempenhava um papel de grande relevo, ela tinha várias designações. Por exemplo,
uma adivinhação que era feita através dos voos dos pássaros chamava-se um auspício, se recorria a entranhas de um animal um
aruspício. As adivinhações acompanhadas de sacrifícios, com aves e com entranhas de bichos aparecem na Eneida. O termo
augúrio é mais abrangente, pois a sua raíz significaria na origem “aumentar” ou “criar”, poder divino que era concedido a muto
poucos homens.
4
Na Grécia o oráculo de Delfos é particularmente famoso, pois está associado a muitos dos mitos argivos e faz parte de muitas
tragédias escritas sobre eles. Bastará lembrar a trilogia edipiana de Sófocles.
1
Essa inversão do tempo lança luz sobre uma série de causas que resultam no presente; esse é um dos objectivos do poema
épico, na medida em que se esforça por discernir a lógica interna, ou pelo menos a lógica racional do devir.
Pierre Grimal, A Civilização Romana

É curioso observar que estando a escrever sobre acontecimentos muito antigos, o poeta recorre muitas
vezes a formas de latim arcaicas, que permitiriam dar uma maior veracidade ao relato das aventuras de
Eneias5 e às profecias relativas a Roma e ao império.
A escrita de Virgílio sugere um passado mítico através de um latim clássico, misturado a algumas formas linguísticas que
estavam em desuso e pertenciam ao período arcaico, e também da utilização de algum léxico evidenciando seus sentidos
restritos e originais, que foram suprimidos pela evolução da língua, mas que podem ser retomados pelo estudo
etimológico.

Filipe S. Almeida, O augúrio no livro II da Eneida

Este constituiria por si só, com certeza, um tema arrebatador, a profundar no âmbito das profecias, mas
que não poderemos fazer desta vez.
ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
Neste trabalho começamos por fazer na secção 2 uma curta apresentação da Eneida virgiliana, que nos
permita depois contextualizar o papel das profecias no poema. Na secção 3 analisaremos o papel
desempenhado pelas profecias na Eneida e, finalmente, na secção 4 tentaremos identificar as profecias
mais relevantes, apresentadas ao longo do poema, do canto I ao canto XII. Na secção 5 limitar-nos-emos a
enunciar algumas conclusões. Em anexo apresentaremos uma lista de outras profecias, para além das da
secção 4, que conseguimos identificar.

2. A Eneida
Este poema épico de Virgilio é considerado como uma obra-prima da literatura latina. Foi também,
porventura, um dos textos clássicos que mais terá marcado toda a poesia ocidental; foi estudado nas
escolas europeias ao longo de séculos. Transformou-se num modelo poético e literário, seguido por
inúmeros autores europeus, desde o tempo de Virgílio até ao Renascimento. Um exemplo
particularmente importante para nós será o de Luís de Camões com o seu poema Os Lusíadas, que
contém inúmeras ligações à Eneida.
A Eneida constitui indubitavelmente a grande homenagem poética à história de Roma, à sua civilização e
ao seu império. Este objectivo grandioso terá sido aliás anunciado antes, pelo próprio poeta, nas
Geórgicas:
Devo tentar o caminho por onde possa eu também, erguer-me do solo e voar, vitorioso na boca dos homens.
Virgílio, Geórgicas- Livro III (8-9)
A propósito desta passagem afirma M.H. Rocha Pereira:
Apesar da reminiscência clara de Énio na última frase, o poeta logo mostra quais são os caminhos novos que vai tentar e
promete desde já erigir um grandioso templo em honra de Augusto, representativo das suas vitórias. Está delineado o
plano de uma grande epopeia.
M.H. Rocha Pereira, Estudos de Cultura Clássica II
Portanto Virgílio tinha-se colocado a si próprio a missão de escrever uma obra que ombreasse com os
poemas homéricos e que pudesse representar para Roma aquilo que a Ilíada e a Odisseia representavam
para os Gregos. E tal desígnio foi entendido pelos seus contemporâneos. Ainda segundo M.H. Rocha
Pereira, Propércio, que era contemporâneo de Virgílio, teria escrito sobre a Eneida:
Cedei o passo, escritores romanos, cedei-o vós, gregos!
Vai nascer não sei quê de mais alto que a Iliada

Poderá a Eneida representar simbolicamente o fim de uma época caracterizada ainda por uma certa
atitude de inferioridade da cultura romana perante a cultura grega? Esta submissão, assumida ou

5
De notar que as aventuras de Eneias teriam acontecido muitos séculos antes da primeira inscrição latina conhecida, sendo até
natural que a língua não existisse.
2
disfarçada, caracterizou todo o tempo em que Roma percorreu um longo processo de helenização. Poderá
afirmar-se que com a Eneida a helenização tinha terminado e que Roma estava pronta a assumir a sua
superioridade política e literária? Parece de facto existir, em muitas passagens do poema, um certo clima
anti grego e adivinha-se uma clara simpatia pelos troianos em todos os episódios relativos à guerra de
Tróia, que poderão ser reveladoras da necessidade que Virgílio tem de expressar essa superioridade6. Esse
sentimento pode também, de alguma forma, ser revelado no final, no canto XII, com a submissão de Juno,
deusa defensora dos Gregos no conflito de Tróia e que procura ao longo do poema opor-se ao sucesso de
Eneias, à vontade de Júpiter e ao destino (fatum) do herói e de Roma.
Em nossa opinião a capitulação de Juno perante Júpiter poderá simbolizar a aceitação definitiva da
supremacia de Roma perante a civilização grega7. Juno conforma-se finalmente com a vontade do deus
seu esposo e roga-lhe que apenas lhe conceda um desejo, que Tróia desapareça e que o esplendor de
Roma corresponda a uma nova civilização latina. Júpiter aceita este pedido e responde profeticamente:
Os Teucros, misturando-se somente pelo sangue, serão assimilados. Atribuirei as leis e os rituais da cerimónias religiosas,
farei de todos eles Latinos, com uma só língua. Desta união nascerá uma raça misturada com o sangue ausónio, que tu
verás superar todos os homens em piedade (pietas), superar os deuses.
Virgílio, Eneida (XII, 835-839)
Eneias poderia ser, a partir desse momento, o instrumento dos deuses na criação de uma nova civilização,
que iria “superar os deuses”. Nesta profecia antevê-se a capacidade dos romanos de integrar
pacificamente várias raças e de governar vários povos, num império com uma língua comum, o latim: o
latim como língua do império.
Por isso, no poema, os Rútulos e o seu chefe, Turno, são apresentados claramente também como
possuidores de valores tradicionais itálicos, como ressalta M. Citroni. Encarnam: a simplicidade, a pobreza,
a capacidades de sofrimento, a fidelidade; valores que irão ser integrados pelos vencedores, tal como
Juno pressagia, depois de se submeter ao Destino.
Uma questão pertinente poderia ser “Porquê Eneias? Porquê um herói troiano? Porque foi ele escolhido
para este papel de pai da civilização que fundaria Roma?” Segundo M.H. Rocha Pereira estão por
esclarecer as razões para o papel determinante que Eneias parece ter desempenhado na Itália, desde pelo
menos o século V a.C., o que é evidenciado por várias provas documentais, em particular etruscas.
Para Énio, como para Névio, esta tradição [lenda de Eneias] era já um dado adquirido e indiscutível. Daí a iniciativa de a
consagrarem nos eus poemas épicos.[…]a riqueza de episódios e de variantes de uma lenda tão antiga e prestigiada
oferecia ao poeta a possibilidade de fazer escolhas com ampla liberdade e de construir uma história artisticamente
coerente.
M. Citroni, Literatura de Roma Antiga

Mas Virgílio foi até capaz de encontrar na Ilíada uma explicação divina para a missão do herói. No canto
XX do poema homérico, Posídon não permitiu que Eneias fosse morto por Aquiles, envolvendo-o numa
nuvem que o tornou invisível, como se a morte de Eneias impedisse que ele pudesse desempenhar a
missão grandiosa que os deuses lhe reservavam.
Ah que sofrimento o meu pelo magnânimo Eneias!
Ele que rapidamente subjugado pelo Pelida descerá aos Hades
por se ter deixado convencer por Apolo que atinge de longe,
estulto!, pois o deus não afastará dele a funesta desgraça.
Mas por que razão deve ele, homem sem culpa, sofrer dores

6
Apesar de este sentimento anti grego ser de alguma forma visível no poema, existem no entanto uns versos famosos,
pronunciados por Anquises, onde Virgílio parece reconhecer a superioridade da arte na Grécia:
Outros estou certo, poderão modelar com mais gráceis linhas figuras de bronze que pareçam respirar, acredito até que
serão capazes de arrancar ao mármore rostos que falem, pleitearão melhor as causas, descreverão com o ponteiro os
caminhos do céu e predirão o nascimento das estrelas.
Virgílio, Eneida (VI, 847:850)
Os versos seguintes valorizam em contrapartida a paz e capacidade romana para a implementar.
7
A nossa interpretação parece não coincidir com outras que consideram Juno como a representante dos povos itálicos,
simbolizando a defesa dos interesses desses povos face a um povo invasor (os troianos). No entanto, essa interpretação parece
ser difícil de compreender se tivermos em conta que Juno estará ao lado de Cartago contra Roma, já depois da assimilação com
todos os povos do Lácio feita.
3
em vão por causa de sofrimentos que são de outros, ele que sempre
ofereceu dons aos deuses que o vasto céu detêm?
Conduzamo-lo então nós para longe da morte,
para que não enfureça o Crónida, se Aquiles
o matar. Pois está fadado que ele sobreviva à guerra,
para que desprovida de esperma não pereça a raça de Dárdano,
a quem o Crónida amou mais do que todos os filhos,
que lhe foram gerados por mulheres mortais.
Entretanto o Cónida pôs-se a odiar a raça de Príamo;
e agora será a Força de Eneias a reger os Troianos,
assim como os filhos, que de futuro nascerão.
Homero, Ilíada (XX- 293:308), tradução de Frederico Lourenço

Desde Homero, portanto, que Eneias estaria destinado a cumprir uma missão divina. Para Virgílio essa
missão era levar para a Itália as sementes troianas de onde Roma emergiria.
Mas para além de uma celebração de Roma, a Eneida pretendia ser uma obra de homenagem ao
imperador Augusto, contemporâneo de Virgílio, como se deduz da citação, que transcrevemos acima, de
M. H. Rocha Pereira.
No contexto augustano a obra de Virgílio adquire todo o sentido: uma obra epopeica para celebrar um
herói nacional, num período que se segue a guerras civis que tinham destroçado Roma, num período em
que orgulho nacional emerge de novo, focado em Augusto. E para construir uma epopeia, o poeta
precisava de alicerçar a sua obra no mito. Por isso, Eneias, herói semidivino é o protagonista escolhido
para simbolizar a figura do imperador. Como ilustração dessa identidade, poderemos citar o templo a
Apolo e Diana que Eneias no canto VI lhes promete construir e as grandes festividades que promete
instituir:
Então eu edificarei a Febo e à Trívia um templo de mármore maciço e instituirei dias festivos

Virgílio, Eneida (VI, 69-70)

Quem vai cumprir essa promessa é precisamente Augusto, depois da vitória em Accio, pois Augusto
atribuía a Apolo a protecção nessa batalha. Os dois heróis misturam-se na intersecção entre os planos
mitológico e histórico. Eneias e Augusto transformam-se em irmãos siameses que a história e o mito
interligam.
Conhecem-se várias evidências de que houve uma interacção do poeta com o imperador acerca do
poema. O poeta, já no proémio do livro III das Geórgicas, prometera que haveria de erigir um templo
literário em honra de Octávio e, na biografia de Augusto escrita por Donato, o próprio imperador,
sabendo do texto que Virgílio escrevia, pediu-lho diversas vezes e terá mesmo conseguido que o poeta lhe
recitasse os Cantos II, IV e VI8. Terá sido também Augusto quem impediu a destruição do poema, como
Virgílio exigira, por estar incompleto, e quem terá ordenado a sua publicação9. A ele lho devemos,
portanto. Temos de agradecer essa obra-prima não só ao poeta mas a Augusto e a Vário, amigo de
Virgílio, que terá coordenado a edição e que, segundo M. Citroni, se terá limitado a fazer uma revisão
superficial, circunscrita aos erros de escriba, mantendo inclusive 58 versos incompletos.
O poema é muito importante para Augusto porque lhe permite no plano simbólico adquirir, depois de
guerras civis prolongadas, uma imagem patriótica de uma Roma una e empenhada na defesa dos valores
tradicionais romanos.
O poema é ainda uma celebração da paz, apesar de quase metade dos seus versos serem dedicados à
guerra travada por Eneias e pelos seus companheiros na Itália, onde muitas vezes a luta e a morte dos
guerreiros são descritas com uma grande crueza, como acontecia na Ilíada. Celebra a paz, apesar de o
poema abrir com um verso onde o poeta se propõe cantar as armas: “Canto as armas e o varão”, e apesar
de fechar com um duelo violento de que resulta a morte de Turno. O último verso da Eneida de Virgílio

8
A divisão do poema em cantos foi feita pelo próprio Virgilio, seguindo aliás uma tradição dos poetas alexandrinos, que teriam
sido os autores da divisão dos poemas homéricos também em cantos.
9
A Vita de Sérvio sugere a hipótese de o próprio Augusto ter estabelecido os limites da edição póstuma do poeta.
M. Citroni, Literatura da Roma Antiga
4
descreve à maneira homérica a fuga da vida (psyche em grego) do corpo de Turno, depois de morto por
Eneias10.
Logo no canto I, na profecia de Júpiter a Vénus, se anuncia a época de paz augustana. A guerra no poema
serve de terreno para semear e cultivar a pax augusta.
Serão fechadas as sinistras portas da guerra11

Virgílio, Eneida (I, 294)

É significativo que, chegado ao Lácio, o primeiro gesto de Eneias tenha sido enviar propostas de paz e de
alianças ao rei Latino.
A todos [os embaixadores] manda que consigo levem os ramos de Palas [ramos de oliveira], que levem presentes e peçam
ao soberano a paz para os Teucros.

Virgílio, Eneida (VII, 154-155)

Ao longo do poema são evidentes vários esforços de Eneias para conseguir a paz. No canto XII, em plena
guerra com os Rútulos e aliados, propõe um duelo com Turno, para dessa forma acabar com aquele
combate terrível e com a mortandade dos dois lados. Esse duelo é aceite, mas começa por ser boicotado
por Juno, e é novamente Eneias quem defende que se respeitem as tréguas a todo o custo. Esse duelo
entre os dois comandantes acaba por acontecer e é relatado nos últimos versos do poema.
Outra voz muito importante –de um guerreiro primitivo grego - que se pronuncia com clareza contra a
guerra é a de Diomedes no canto XI, quando convidado a nela participar ao lado dos Rútulos contra
inimigos antigos, os troianos.
Ó povos afortunados, ó reinos de Saturno, antigos Ausónios, que infortúnio vos inquieta, a vós que estais em paz, e vos
persuade a provocar uma guerra que desconheceis?

Virgílio, Eneida (XI, 252-254)

A guerra, se aparece no poema, é apresentada sempre como um mal necessário; como um mal necessário
para constituir um império, onde a paz reine. De facto, a guerra é um dos males identificados na entrada
do Orco, no reino dos infernos, a par com a doença, a fome e a miséria. No Tártaro são supliciados os que
fizeram a guerra civil, ou os que venderam a pátria por ouro, enquanto nos Campos Elísios entram os que
morreram pela pátria, mas também os poetas dignos do Febo, ou os que enriqueceram a vida pelas suas
descobertas, ou os que o bem mereceram dos outros.
A paz constitui, além do mais, outra ligação evidente do poema a Augusto, que tomava a pacificação do
império (Pax Romana), que conseguiu e manteve durante quase todo o seu mandato, como um valor
fundamental do seu governo. Não é por acaso certamente que a ligação da paz ao imperador Augusto é
referida logo no Canto I do poema, pelo próprio Júpiter:
12
** Então, postas de lado as guerras, se hão-de tornar brandos os ásperos séculos, a branca Fé e Vesta, Quirino com o
irmão Remo ditarão a justiça. Serão fechadas as sinistras portas da guerra, férreas e de junturas fortemente apertadas. O
ímpio Furor, sentado no interior sobre armas cruéis e com as mãos amarrada atrás das costas por cem nós de bronze,
estrebuchará, hórrido com a boca a espumar sangue.

Virgílio, Eneida (I, 291-296)

10
O reconhecimento da paz como um dos valores do poema é com certeza uma das razões que sustenta uma controvérsia em
torno precisamente da última frase do poema, onde Virgílio utiliza o adjetivo “indignata” que, propiciando várias interpretações,
é o objecto dessa controvérsia.
vitaque cum gemitu fugit indignata sub umbras
Virgílio, Eneida (XII, 952)
11
As portas do templo de Ianus em Roma fechavam em tempo de paz. Só uma vez, desde a 1ª guerra púnica até ao império,
teriam sido fechadas. Augusto fechou-as três vezes.
12
Cada profecia que nomeamos, ao longo deste ensaio e do seu anexo, é identificada por uma etiqueta; *, ** ou ***; em que o
número de asteriscos indica a forma como a classificámos de acordo com três tipos de profecias que definimos no nosso trabalho.

5
E quando Eneias desce aos infernos para ver o pai, Anquises, este lhe diz, depois de profetizar a guerra
civil entre Pompeio e César, que não habitue o espírito a tão grandes guerras:
**Não habitueis os espíritos a tão grandes guerras, nem vireis contra as entranhas da pátria forças robustas. E tu, que
tiras do Olimpo a tua linhagem, sê tu o primeiro a perdoar, lança as armas para longe das tuas mãos, sangue do meu
sangue.

Virgílio, Eneida (VI, 832-835)

Estes versos de Anquises no canto VI podem ser interpretados como uma condenação das guerras civis. O
tema da guerra civil era um tema muito caro nos tempos de Augusto, depois de décadas de guerras civis
violentas que massacraram Roma. Apesar desta referência profética no canto VI, o tema é tratado no
poema sobretudo no passado lendário, na guerra entre povos irmãos do Lácio, povos que, de acordo com
a profecia, viveriam juntos no mesmo grandioso império. Em vez de descrever as guerras civis do tempo
do poeta, é a lenda a forma de visualizar e de condenar a guerra civil que os contemporâneos de Virgílio
tinham vivido. Por isso, de acordo M. Citroni, no canto VIII, a guerra contra os Rútulos é anunciada por
relâmpagos e trombetas que, de acordo com a tradição romana, anunciara as guerras civis em Roma. As
palavras de Eneias depois desse sinal divino, prenúncio de uma guerra fratricida, podem também ser
interpretadas como uma condenação das guerras civis.
*Quantos escudos e elmos, quantos cadáveres de fortes guerreiros revolverás nas tuas ondas, ó venerável Tibre.
Virgílio, Eneida (VIII, 532-564)
Anquises no fim da visita aos infernos despede-se do filho dizendo:
**A ti, Romano, não o esqueças cabe-te governar os povos com o teu poder. Estas serão as tuas artes: ditar normas para a
paz, ser clemente para com os vencidos, e submeter os soberbos pela força.
Virgílio, Eneida (VI, 851-853)
Paz e clemência, dois valores que impregnam o poema. Mas, na verdade, no canto X, na guerra entre os
dois exércitos, depois da morte de Palante e de muitos troianos e tirrenos, Eneias, num combate feroz,
depois de vencer Mago, Tárquito e Lúcago, não mostra clemência. À suplica de Lúcago responde com a
espada.
-Por ti, pelos pais que tal te geraram, ó varão troiano, poupa esta vida e compadece-te de um suplicante.
Eneias retorquiu ao que implorava com muitas mais palavras:
- Não eram essas as palavras que há pouco proferias. Morre e como irmão não abandones o teu irmão!
Virgílio, Eneida (X, 597-600)
Mas já no combate contra Lauso essa clemência ressurge, realçando que estamos na presença de um
guerreiro diferente dos da Ilíada.
Conserva as tuas armas, com as quais te alegraste, e, se é que esta minha solicitude tem algum valor, entrego-te aos
Manes dos teus antepassados e à pira funerária.

Virgílio, Eneida (X, 827-829)

Eneias toma o jovem guerreiro nos braços e profere o seu lamento fúnebre.
E no canto XII, no combate final contra Turno, Eneias hesita e parece ser capaz de perdoar a vida ao seu
adversário mas, quando vê o cinto de Palante, usado pelo rútulo como troféu de guerra, incrimina-o e
enterra-lhe a espada no peito.
Pois hás-de tu escapar-me, tu que envergas os despojos dos meus? É Palante que com este golpe te imola, é Palante quem
te faz expiar o teu castigo com o teu criminoso sangue.

Virgílio, Eneida (XII, 947-949)

Neste combate final a clementia perde perante a fides e a amicitia.


Naturalmente a Eneida pode ser considerada como o resultado de um longo processo de helenização na
literatura latina e podem identificar-se no texto de Virgílio diversas influências literárias gregas, mas

6
também latinas13. Virgílio era um homem extremamente culto. Conhecia a poesia e a filosofia gregas e
latinas. Era um profundo conhecedor da obra dos poetas gregos e latinos anteriores e dos seus
contemporâneos; pertencia aos seus círculos literários, e o seu poema épico, apesar de constituir uma
revolução naquilo que eles escreviam e no que ele próprio, Virgílio, escrevera antes, tem a marca desses
poetas e dessa poesia de cunho helenístico. Mas a maior de todas as influências na Eneida é
indubitavelmente a dos dois poemas homéricos14, que Virgílio pretendeu de alguma forma recriar. Na
Eneida, o poeta parece combinar nas devidas proporções uma ars alexandrinista com uma ars epopeica.
De facto, é possível identificar múltiplas soluções e múltiplos motivos homéricos ao longo do texto, desde
o esquema geral do poema, à métrica, ao uso abundante de símiles e de epítetos e até no recurso a uma
narrativa que começa, tal como os dois poemas de Homero, in media res. É também possível fazer o
paralelo entre múltiplos episódios e personagens da Eneida com episódios e personagens da Odisseia ou
da Ilíada. As personagens lendárias homéricas da Odisseia repetem-se nas aventuras de Eneias: lá
aparecem Polifemo, Circe, Cila e Caríbdis. Há inúmeras soluções narrativas homéricas que claramente se
repetem na Eneida, como sejam a catalogação dos exércitos, a descrição pormenorizada do escudo de
Eneias, os jogos fúnebres, a balança de ouro para pesar o destino (fatum) de Eneias e de Turno, a descida
aos infernos do herói para receber conselhos.
Observamos que o poema épico de Virgílio está claramente dividido em duas partes15 (héxades): 1.a
viagem de Eneias até Cartago e 2. as lutas na Itália. Os primeiros versos, à moda de Homero, que
enunciam a proposição16 do poema, revelam-no: 1. as armas e 2. o varão; 1. o homem que muito padeceu
na viagem e 2. o homem que muito sofreu na guerra até fundar uma cidade.
Canto as armas e o varão que nos primórdios veio das costas de Tróia para Itália e para as praias de Lavínio, fugitivo por
força do destino, e muito padeceu na terá e no mar por violência dosa deuses supernos, devido ao ressentimento da cruel
Juno; muito sofreu também na guerra, até fundar uma cidade e introduzir os deuses no Lácio; daqui provêm a raça latina,
os antepassados albanos e as muralhas da grandiosa Roma.
17
Virgílio, Eneida(I, 1-7)

Os primeiros quatro cantos descrevem a viagem de Eneias, desde que abandona a cidade de Tróia
incinerada, até chegar a Cartago, onde conta as suas aventuras a Dido. Estes cantos estabelecem
claramente um paralelo com a viagem de Ulisses desde Tróia até ao país dos Feaces, onde também Ulisses
contara as suas aventuras fantásticas ao rei Alcínoo.
Os cantos V e VI podem ser considerados como cantos de transição, que de alguma forma preparam o
herói para poder assumir a sua missão no Lácio, libertando-o de todos os elos com a vida passada;

13
São comummente apontadas à Eneida influências poéticas latinas de Énio, Névio, Teócrito, Lucrécio, Catulo, Horácio, Propércio,
Cícero, Salústio, etc., que nós não poderemos sequer abordar no âmbito deste trabalho, com a excepção de Névio (ver nota
seguinte).
14
Há uma outra influência que se supõe ter sido muito importante: a epopeia Bellum Poenicum de Névio. Acredita-se que ela
abordava temas e utilizava soluções que Virgílio recria. Tal como na Eneida, no poema de Névio existiriam partes influenciadas
por cada um dos dois poemas homéricos. No entanto, como só existem pequenos fragmentos da epopeia neviana, é difícil
qualificar/quantificar essa influência.
15
Alguns autores sugerem uma divisão da Eneida em três partes de 4 cantos: a primeira seria a das provações: Eneias perde Tróia,
o pai, a Mulher e Dido; a segunda a dos rituais de preparação do herói e a terceira a das guerras. Em cada uma dessas partes
prevaleceria cada um dos epítetos associados a Eneias pelo poeta: pater, pius, heros. Em rigor esta nova divisão não põe em causa
a divisão em duas partes que citámos e que é mais comum.
16
No canto VII, antes das guerras no Lácio, e no canto X, antes da catalogação das tropas, existem novas proposições e evocações
do poeta, que solicita a ajuda da Musa e das deusas para ser capaz de contar as guerras e de fazer a descrição dos exércitos em
conflito.
17
A publicação em português da Eneida que utilizámos – uma tradução de Luís M. G. Cerqueira et alli, aconselhada na bibliografia
da cadeira - é uma edição do poema em prosa. Os versos dentro de cada página do livro não são numerados, tornando impossível
encontrar nele a sua numeração exacta no original latino. Na Romana de M.H. Rocha Pereira existem algumas passagens que
transcrevemos, mas outras não constam dessa antologia. Hesitámos por isso em identificar mesmo os versos ou apenas a página
do livro, através do número do primeiro e do último verso associados a essa página. Decidimos depois de alguma hesitação que
usaríamos sempre o texto do livro em prosa mas que seria útil, nas citações que utilizámos neste trabalho, identificar não só o
canto mas também o número exacto dos versos, recorrendo para tal a uma edição em papel bilingue em latim e em francês que
nos disponibilizaram e a uma versão em inglês, que encontrámos na net. Mas tal procedimento complexo de comparação entre a
versão em prosa e as versões em verso pode não estar isento de pequenos erros.

7
O ponto crucial deste percurso de aperfeiçoamento seria, para alguns, a revelação do canto VI, uma descida aos infernos
de onde Eneias nasceria como um novo herói.
M. Citroni, Literatura de Roma Antiga

Nestes dois cantos intermédios, mais uma vez se podem encontrar muitos paralelos com Homero: entre
as cerimónias fúnebres a Anquises do canto V da Eneida e as cerimónias fúnebres a Pátroclo na Ilíada, ou
entre a descida aos infernos de Eneias no Canto VI e idêntica viagem feita por Ulisses na Odisseia.
Finalmente, os últimos seis cantos descrevem as lutas de Eneias, do exército troiano e dos seus aliados em
Itália. Eneias, que procurara a paz ao chegar ao Lácio, vê-se obrigado a combater os Rútulos e o seu chefe,
Turno. Encontramos de novo nesses seis cantos vários paralelos com a Ilíada, de que podemos destacar
entre outros: a descrição pormenorizada do escudo de Eneias, mandado fazer igualmente pela mãe divina
do herói e ao mesmo deus, Hefesto; a morte do amigo, Palante, por Turno; o combate final entre Eneias e
Turno em que Eneias vinga a morte do companheiro.
Mas, se existem múltiplos paralelismos da Eneida com os poemas homéricos, há também diferenças
importantes. Eneias é um herói romano e não um herói homérico. Nas palavras de M.H. Rocha Pereira,
Eneias é um herói da paz, da justiça, da comiseração, e da fidelidade. Por isso alguns autores lhe
chamaram inclusive um anti-herói.
A este herói da epopeia tem-se apontado frequentemente o defeito de não ser um chefe indómito , de coragem ardente,
como um Aquiles, de decisão pronta e engenhosa como Ulisses[. ..]
Porém nesta figura complexa avultam sobretudo as qualidades do herói estóico.
M.H. Rocha Pereira, Estudos de Cultura Clássica II

Ao contrário do estilo épico de Homero, feito sobretudo de certezas, na Eneida a subjectividade de pontos
de vista é patente e é até importante para o poema: a certeza está ao fim ao cabo reservada às profecias
que auguram a glória de Roma.
Eneias é um herói que hesita, que se mostra muitas vezes inseguro, dividido por sentimentos
contraditórios, que mostra pesar por transportar um fardo tão pesado que o impede de ser feliz. Hesita,
mas no fim cumpre sempre a missão que lhe foi destinada. Eneias, nessa sua missão acumula perdas, ao
longo do poema: Tróia, Creusa, Dido, Palinuro e Palante. Mas tem sempre de prosseguir no seu Fado. No
poema, essa missão, esse destino é muitas vezes marcado pela palavra “labor”, que o poeta usa logo no
verso 10 do canto I, na evocação à Musa, perguntando porquê obrigar “um varão notável pela sua
piedade a sofrer tantas provações e a enfrentar tantas dificuldades”18. Esse conceito pode ser considerado
como um dos conceitos unificadores do poema. A empresa de Eneias (labor)é fonte de sofrimento e, por
isso, notamos um tom de queixa por exemplo quando tem de abandonar o reino de Heleno e Andrómaca.
Vivei felizes, vós cuja Fortuna já se cumpriu: nós somos chamados de uns para outros destinos. Para vós foi já alcançada a
tranquilidade, não tendes nenhuma superfície do mar para lavrar nem deveis buscar os campos de uma Ausónia que
sempre para trás nos vai fugindo.
Virgílio, Eneida, (III, 493-497)

Por isso, também, ouvimos na voz do poeta lamento e tristeza em Eneias, quando mais tarde, no canto IV,
ele hesita sobre a forma de encarar Dido.
Que há-de fazer, que palavras terá ele agora a coragem de usar para convencer a rainha?
Virgílio, Eneida, (IV, 283-284)
Em vez da arete grega Eneias é caracterizado pelos valores romanos: a pietas, a clementia, a fides, a virtus.
Só assim é possível a identificação de Eneias com Roma e com Augusto.
É preciso que esse herói já se mostre romano.
Pierre Grimal, A Civilização Romana

18

Musa, mihi causas memora, quo numine laeso,


quidve dolens, regina deum tot volvere casus
insignem pietate virum, tot adire labores 10
impulerit. Tantaene animis caelestibus irae?
8
E de facto, no verso 851 do canto VI, Anquises despede-se do filho afirmando “A ti, Romano, não o
esqueças, cabe-te governar os povos”. Eneias já era romano e como tal transportava os valores de Roma!
Existem numerosas passagens no poema que podem ser associadas a cada um dos valores romanos,
frequentemente também associados ao estoicismo. E apesar de no texto se multiplicarem os exemplos de
heroicidade, que tornam Eneias num guerreiro corajoso, outros valores associados ao estoicismo, tão
caros a Roma acabam por prevalecer, e a pietas é o valor romano atribuído com mais frequência a Eneias
(pius19 é um epiteto que se repete ao longo do poema). Tal é reconhecido por Diomedes, quando
convidado a tomar partido na guerra no Lácio:
Todo o tempo em que se detiveram junto das muralhas da inflexível Troia a vitória dos gregos foi retardada pelo braço de
Heitor e Eneias e adiou-se o seu desfecho até ao décimo ano. Ambos eram insignes pela sua coragem , pelas suas notáveis
armas sobressaindo o último em piedade (pietas).
Virgílio, Eneida, (XI, 289-292)
E também pela Sibila, no reino dos infernos, quando confronta Caronte que não queria transportar Eneias.
Se não te comove de modo algum a ideia de tão grande piedade, ao menos reconhece o ramo.
Virgílio, Eneida, (VI, 405-407)

Existem autores que, influenciados pelos heróis homéricos, como afirma M. H. Rocha Pereira,
consideraram Eneias como um chefe fraco, hesitante, sentimental. Baseiam-se em inúmeras passagens na
Eneida onde a hesitação perante a luta, a tristeza pela violência e pela guerra se manifestam. Mas Eneias é
grandioso sobretudo pela missão que transporta e não pela determinação para o combate. Em nome
dessa missão sacrifica a sua própria felicidade, abandonando Dido, contra a sua vontade. Filho de uma
deusa, ele foi encarregado pelos deuses de dar origem a uma nova civilização que irá dominar o mundo: é
esta a grandeza de Eneias, uma grandeza que perdurará durante séculos com o império romano e que
Virgílio nos profetiza como eterna.

3. As profecias na Eneida
A Eneida é um longo poema épico dividido em doze cantos, onde os oráculos e as profecias
desempenham um papel chave. Logo no canto I é o próprio Júpiter quem profetiza a missão divina de
Eneias. Ao longo do poema outras profecias vão sendo produzidas pelos deuses e por humanos, que falam
pelos deuses, assumindo o papel de adivinho, ou ainda através de sinais, sonhos ou de visões.
Apolo é o deus das profecias na Eneida, o que mais uma vez pode sugerir a vontade de glorificar Augusto,
que era especialmente dedicado a Febo, que considerou como o Deus protector do império e a quem
construiu um tempo majestoso.
A ideia de profecia aparece no poema claramente associada à ideia de destino (fatum). Os destinos (fata)
“encontram sempre o seu caminho”, como Júpiter afirma no canto X, ao manifestar neutralidade perante
a disputa entre Juno e Vénus. Na opinião de M.H. Rocha Pereira, Virgílio, nesta passagem, “tenta achar o
caminho de reconciliação entre a concepção homérica de divindade, a noção de livre arbítrio e a existência
de um destino”. Para M. Citroni o tema fundamental da Eneida é a “justiça do destino”, ou seja, a
oposição ao destino (considerado justo pelos estóicos) pode de alguma forma representar as forças do
mal. Esta interpretação enquadra-se com a visão de Augusto como o restituidor da ordem, da paz e da
justiça a Roma, regressando assim ao trilho do destino do império.
No poema, a justiça e a grandeza no destino do povo romano contrapõem-se ao sofrimento e às mágoas
no destino das personagens, marcado por esperanças e por sentimentos frustrados. Um exemplo
especialmente significativo poderá ser dado por Eneias que tem de abandonar Dido, por quem está

19
Não é por acaso que a imagem mais comummente associada a Eneias é a de o herói quando transporta o pai, Anquises, às
costas na fuga de Tróia. A pietas de Eneias é de tal forma grande que ele se dispõe a visitar o reino do infernos só para rever o pai.
É importante no entanto frisar que a pietas romana não corresponde à “piedade” em português, sendo difícil de traduzir. Tal
como a define M.H. Rocha Pereira, a pietas pode ser interpretada como “cumprir o seu dever para com os deuses, a pátria e a
família”.
9
apaixonado, e por Dido, que se suicida quando perde o homem que ama. A grandeza de Roma é assim
construída sobre a dor e sobre o sofrimento dos seus heróis.
Alguns autores associam o conceito de “destinos” ou de “fados” em Virgílio aos valores estóicos, de que
o poeta estava próximo.
Filho da Deusa, sigamos por onde nos levam e voltam a levar os Fados. O que quer que aconteça, toda a má fortuna e
pode vencer, perseverando .
Virgílio, Eneida(V, 709-710)

Séneca, um dos estóicos mais famosos, tornaria famosa uma máxima com significado idêntico aos dois
versos citados da Eneida, “A quem é dócil guiam-nos os Fados; ao recalcitrante, arrastam-no”.
M. H. Rocha Pereira cita também M. Ruch, que segundo a autora sintetizaria a relação dos deuses com os
destinos na Eneida:
Relativamente aos destinos, o poderio dos deuses limita-se a aplicar (Júpiter), a revelar(Apolo), a diferir(Juno), a apoiar
(Vénus).
M. H. Rocha Pereira, Estudos da História de Cultura Clássica II

Uma cena célebre no poema, que representa visualmente o poder do Fado, que nem sequer os deuses
podem contrariar, é o episódio de Júpiter com a balança dos Fados de Eneias e Turno no canto XII, que
repete a conhecida cena da Ilíada.
O próprio Júpiter segura os dois pratos da balança num equilíbrio perfeito, e neles coloca os destinos opostos de ambos: a
quem esta prova condenará, para que lado se inclinará a morte com o seu peso.
Virgílio, Eneida(XII, 725-727)

E tal como a Heitor, o Fado condenou Turno, pois Eneias tinha uma missão divina a cumprir.
E tal como a mesma autora afirma, a relação entre os destinos e a religião romana, por um lado, e entre
os destinos e o estoicismo, por outro, tem dado lugar a muita controvérsia. Se há passagens no poema em
que parece sugerir-se que os destinos não podem ser mudados, nem pelos deuses, que quando muito
podem adiá-los, como acontece com Juno relativamente a Eneias, outras há que parecem mostrar coisa
diferente; assim a relação entre os deuses, os destinos e a liberdade individual permanece em aberto.
As profecias eram também importantes nos poemas homéricos, como vimos no trabalho do primeiro
semestre sobre a adivinhação na Ilíada e na Odisseia,. Sem a adivinhação de Calcas não teria havido a
“cólera funesta” de Aquiles, que é o foco de toda a acção na Ilíada. Mas ao contrário do que sucedia em
Homero, onde as profecias serviam sobretudo para justificar a acção dos guerreiros, na Eneida as
profecias têm como fim dar suporte e valorizar a história de Roma; são utilizadas para conceder a Roma
um destino divino, anunciado pelos próprios deuses. Por isso, a profecia no poema aparece ligada a
acontecimentos relevantes da história de Roma, a feitos e a heróis romanos, permitindo assim glorificar a
Urbe e em particular Augusto, a quem a Eneida se destinava.
Além da profecia, também a lenda e o mito estão ao serviço da história, o que não acontecia em Homero.
Um dos exemplos mais significativos de lenda profética são os amores entre Eneias e Dido, rainha de
Cartago20, relatados por Virgílio nos primeiros cantos do poema, em especial no canto IV. Esse episódio
permite antever as guerras entre Roma e Cartago, que iriam marcar os séculos IV a II a.C. Este significado
premonitório é realçado quando Eneias encontra Dido nos infernos e esta lhe vira as costas.
Dido responde a Eneias com um silencioso voltar de costas, completando assim o episódio dramático do Canto IV e
prenunciando de novo, num segundo nível de leitura, a permanente hostilidade futura entre Roma e Cartago.
M. H. Rocha Pereira, Estudos da História de Cultura Clássica II

Um dos papéis fundamentais da profecia, como referimos, é portanto conseguir traçar para Roma e assim
para Augusto um destino extraordinário, que fora pré-anunciado pelos deuses. Logo no Canto I,
Virgílio confirma, através de uma profecia do próprio Júpiter, a ascendência divina de Augusto:

20
Esse episódio lendário já fora narrado antes por Névio na sua epopeia Guerra Púnica (Bellum Punicum).
10
**Da bela estirpe há-de nascer o troiano César, que delimitará o seu poder com o Oceano, a sua fama com os astros, Júlio,
nome tomado do grande Julo.
Virgílio, Eneida(I, 287-288)

E no Canto VI, na descida aos infernos, a profecia de Anquises a Eneias reforça ainda mais o carácter
divino do imperador, que restauraria na Itália a Idade do Ouro:
**Este é o herói, este é aquele que ouves muitas vezes ser-te prometido, César Augusto, estirpe de um Deus, aquele que
restaurará no Lácio a Idade do Ouro

Virgílio, Eneida(VI, 791-793)

Na descida aos infernos, a teoria da metempsicose, que o autor terá ido buscar aos pitagóricos e
sobretudo a Platão, é também um artifício narrativo e literário, que permite ao herói visualizar os heróis
romanos do futuro e assim o poeta pode fazer uma profecia que mais do que verbal é visual.
Pois a Eneida, para além de relatar as aventuras de Eneias, um herói que congrega em si os valores
romanos, conta a história gloriosa de Roma desde a guerra de Tróia até ao tempo do poeta, ou seja, até
ao século de Augusto.
Só recorrendo ao artifício literário de previsão do que há-de vir, por meio da profecia, foi possível a
Virgílio relatar acontecimentos históricos, que no seu tempo já eram passado, como futuros, e, dessa
forma, fazer corresponder a história de Roma ao desígnio dos deuses. Esta constitui portanto uma solução
narrativa engenhosa do poeta21, mas também uma estratégia para transformar Roma num plano
orquestrado pelos deuses. Outrossim para outorgar a Augusto uma ascendência divina, como
descendente directo de Julo22, e através dele de Eneias e portanto também de Vénus. Ao contrário de
uma visão historicista, como a de Névio, que integrava a lenda de Eneias na história de Roma, Virgílio
parte da lenda e conta a história profeticamente.
Ao longo do poema há um paralelismo visível entre os feitos de Eneias, de Julo e de Rómulo e os de
Augusto, uma linhagem divina que o consagra como um imperador designado pelos deuses. Não é por
acaso que a vitória de Áccio, onde Augusto derrotaria Marco António, e asseguraria o poder absoluto, é
representada na parte central do escudo de Eneias, um objecto divino, forjado por Vulcano e oferecido ao
herói por sua mãe, Vénus.
Ou seja, poderia dizer-se que Virgílio, para além de cantar no poema Roma, lhe atribui uma missão divina,
como se a guerra de Tróia e, mesmo antes disso, toda a humanidade só tivessem existido para que
Roma pudesse irromper, num plano calculado pelos Deuses23. Os oráculos, as profecias, as vozes divinas
são essenciais na construção desta narrativa.

4. Abordagem sistemática das profecias na Eneida


Depois de uma abordagem global, para percebermos a dimensão que a profecia ocupa no poema teremos
de viajar lentamente, do canto I ao canto XII, e tentar identificar todas as adivinhações. Fizemo-lo e nesta
secção tentámos agrupar as profecias que nos parecem mais importantes em vários grupos: profecias
divinas; oráculos; profecia de Eneias e Dido; sonhos; visões; escudo de Eneias; outras. Em cada grupo as
profecias estão por ordem dos cantos.

21
Supõe-se que as profecias já teriam sido já utilizadas por Névio na sua epopeia Bellum Poenicum para ligar mito, lenda e
história.
22
O filho de Eneias tinha o nome de Ascânio. Na Eneida aparecem os dois nomes, Ascânio e Julo, sem grande justificação, De
acordo com a nota 9 de Ouevres de Virgile de Plessis e Lejay (p.256), Júlio César teria sido o primeiro a mudar o nome a Ascânio,
podendo dessa forma ligá-lo à gens Iulia, a que pertencia.
23
Independentemente de serem também possíveis leituras pessimistas na Eneida e porventura até críticas do papel
desempenhado pelo Império, que não teremos espaço para abordar no nosso trabalho, o que sobressai no poema é certamente
uma ideia de exaltação e de um destino de grandeza eterna que os deuses tinham oferecido a Roma.
11
PROFECIAS DIVINAS
Comecemos pelas profecias feitas pelos próprios deuses, porventura as mais poderosas, até porque são
feitas pelo deus dos deuses, Júpiter. Apesar de não serem escutadas pelo herói24, que obviamente não
tinha assento no Olimpo, ainda que de o próprio Júpiter a determinada altura lhe outorgar natureza
divina, são ouvidas pelos leitores do poema e dão à profecia um cunho verdadeiramente divino.
1) Logo nos primeiros versos do Canto I ouvimos uma profecia, que seria do conhecimento de Juno e que
lhe desagradava profundamente, e que vai motivar as suas acções contra a esquadra troiana, pedindo a
ajuda de Éolo.
**Ouvira contudo que do sangue troiano proviria uma estirpe que haveria um dia de destruir as cidadelas tírias e que daí
viria um povo e um rei soberbos na guerra, de vasto poder, para destruição da Líbia. E assim o fiavam as Parcas.

Virgílio, Eneida(I, 19-22)

2) Ainda no canto I, perante a queixa de Vénus, depois do naufrágio de Eneias na costa cartaginesa,
devido às insídias de Juno, Júpiter faz uma longa profecia onde prevê o futuro radioso de Eneias no Lácio.
Está por isso claramente definido pelos deuses, desde o canto I da Eneida, a missão divina de Eneias e a
glória de Roma.
**Não receies, Citereia, os Fados dos teus permanecem inalterados; hás-de contemplar a cidade e as prometidas muralhas
de Lavínio, erguerás aos astros do céu o excelso e magnânimo Eneias; não muda o que por mim foi decidido[…]

Às coisas destes eu não ponho limites nem prazos: foi um império sem fim que lhes outorguei.

Virgílio, Eneida(I, 257-260 e 278-279)

Neste longo discurso de Júpiter, o rei dos deuses profetiza Rómulo e a sua descendência, as conquistas,
realçando a dominação da Grécia, e a construção de um império sem fim.
3) No canto IV, Júpiter diz a Mercúrio que vá junto de Eneias e lhe ordene que deixe Cartago, para
cumprir o seu destino.
**Não foi um homem destes que nos prometeu a sua bela progenitora, que ela por duas vezes livrou das armas dos
Gregos, mas que seria varão capaz de governar a Itália, fecunda em estirpes dominadoras e rumorejante de guerras,
capaz de propagar a estirpe oriunda do sangue de Teucro e de submeter às suas leis todo o Universo.

Virgílio, Eneida(IV, 227-231)

Logo a seguir no mesmo canto, Mercúrio repete a profecia de Júpiter a Eneias, lembrando o futuro
reservado a Ascânio, convencendo-o a partir:
*Lembra-te de Ascânio que cresce e da esperança do herdeiro Julo, ao qual são devidos os reinos de Itália e a terra
romana.

Virgílio, Eneida(IV, 274-276)

4) No canto X, na reunião dos deuses, Júpiter profetiza e prevê as guerras Púnicas entre Roma e Cartago:
**Chegará o momento certo para a peleja (não a apresseis) quando um dia a feroz Cartago lançar nas colinas romanas
um grande flagelo, uma vez transpostos os Alpes

Virgílio, Eneida(X, 11-13)

5) E perante a insistência de Vénus e de Juno para a sua intervenção no conflito entre Troianos e
Ausónios, Júpiter afirma a sua neutralidade mas, ao mesmo tempo, antevê que os Fados não podem ser
contrariados e por isso Roma acontecerá.
*As acções pessoais trarão a cada um o infortúnio ou a sorte. Os destinos encontrarão o seu caminho.

Virgílio, Eneida(X, 111-113)

24
Excepto a profecia no canto IV que lhe é transmitida por Mercúrio.
12
6) Júpiter volta a profetizar no canto XII, censurando a teimosia de Juno. Nesta censura atribui a Eneias
até uma natureza divina. As palavras do próprio rei dos deuses reforçam assim, portanto, o carácter divino
de Roma, e de Augusto, como descendente do herói.
*Quando terminará isto, esposa? Tu sabes e tu própria admites saber que Eneias está destinado aos céus como divindade
Indígete e que, de acordo com o seu destino, se elevará até aos astros.

Virgílio, Eneida(XII, 793-795)

Temos portanto seis grandes profecias de Júpiter ao longo do poema, desde o primeiro ao último canto,
em que o rei dos deuses profetiza por diversas vezes o futuro grandioso de Roma contra tudo e contra
todos: “Fata uiam inuenient”. Jupiter dixit.
ORÁCULOS25
Identificámos seis momentos no poema em que existe o que poderíamos designar por uma palavra
oracular, que é ouvida por Eneias. Oracular no verdadeiro sentido da palavra, ou seja pronunciada em
santuários dedicados aos deuses (oráculos), ou por representantes dos deuses (vates).
1) No oráculo de Apolo em Delos, onde a predição de Ânio induz Eneias em erro, ao julgar que Creta seria
o destino que lhe estava reservado pelos deuses.
*Dárdanos rijos a terra que primeiro vos gerou, porque nela tiveram origem os vossos antepassados, essa mesma vos
acolherá, ao regressardes, no seu seio abundante. Demandai a vossa velha mãe. Aqui a casa de Eneias dominará sobre
todo o mundo e os filhos de seus filhos e os que deles nascerem.

Virgílio, Eneida (III, 94-98)

2) A maldição profética que a Harpia Celeno lança sobre a tripulação troiana, que tentara matá-la, e que
lhe fora transmitida por Apolo, que a recebera de Júpiter.
*Ouvi com atenção e fixai no vosso espírito o que vou dizer, aquilo que o pai omnipotente profetizou a Febo e Febo Apolo a
mim – sou eu a maior das Fúrias que vo-lo revelo! Ides de viagem para Itália e invocais os ventos. Para Itália ireis e ser-vos-
á permitido entrar nos portos, mas não rodeareis com muralhas a cidade destinada antes que uma fome cruel e a injustiça
que cometestes ao tentar matar-nos vos forcem a abocanhar e a devorar as mesas com os maxilares

Virgílio, Eneida (III, 250-257)

3) No oráculo de Apolo em Épiro, onde o vate troiano Heleno, filho de Príamo, ensina Eneias como
identificar o lugar onde deverá construir a cidade, sem contudo lhe dizer algumas coisas que Juno e as
Parcas lhe tinham proibido de revelar.
*Quando cheio de inquietações, junto às águas de um rio solitário, uma fêmea de javali, grande e branca, deitada sob
oliveiras perto da margem, tendo dado à luz uma ninhada de trinta bacorinhos, deitada no solo, as brancas crias em volta
das tetas, esse será o lugar da cidade, esse o repouso seguro para os teus trabalhos

Virgílio, Eneida (III, 389-393)

4) A profecia de Nautes, que falava pela deusa Atena, aconselhando Eneias a deixar para trás alguns
velhos, mulheres e crianças, para poderem prosseguir a demanda da terra prometida.

25
Segundo Plutarco o oráculo possuía uma ligação íntima com a palavra e com a vontade do deus que se pronunciava. O
oráculo permitia obter consciência de alguma coisa que de outra forma não seria conhecida. No entanto, deveríamos ter algum
cuidado relativamente à ideia de total veracidade de um oráculo. Esta necessidade resultaria por um lado de as palavras do deus
poderem ser deturpadas e mal interpretadas pelos nossos ouvidos humanos, e por outro lado de o oráculo poder ser adulterado
pelo corpo mortal e pela alma humana do sacerdote (sacerdotisa). Verificamos no entanto que o conteúdo das profecias
recebidas por Eneias não é ambíguo, se exceptuarmos o oráculo de Delos que ele interpreta erradamente, quando pensa que
Creta é o destino reservado para o seu povo pelos deuses. Essa não ambiguidade na Eneida compreende-se, pois temos afinal
profecias sobre Eneias e sobre o Império romano, que não podem ser ambíguos. A forma poética algo obscura, típica dos
oráculos, parece estar lá, mas parecem existir apenas para criar no leitor a identificação fácil com o “género” oracular, a que o
leitor romano estaria habituado, mas não contêm ambiguidade de interpretação. Até que ponto o erro no oráculo de Delos, logo
o primeiro no poema, poderá ter sido premeditado por Virgílio, como uma forma de assim poder apresentar essa ambiguidade de
interpretação, que os romanos conheciam, como um forma subtil de reforçar a veracidade dos outros oráculos?

13
*Então o velho Nautes (o único que a tritónia Palas ensinou e tornou insigne pelo grande conhecimento na arte das
profecias: era ela que lhe dava respostas revelando quer o que a magna ira dos deuses ameaçava quer o que exigia o
encandeamento dos Fados) foi quem consolou Eneias com as seguintes palavras, começando assim:

Filho da deusa, sigamos para onde nos levam e voltam a levar os Fados. O que quer que aconteça, toda a má fortuna se
pode vencer, perseverando. Tens o dardânio Acestes de divina estirpe. Toma-o como companheiro e associa ao mando um
homem que está disposto a isso. Entrega-lhe os que estão a mais devido a perda dos navios e os que estão descontentes
com o seu grande desígnio e as tuas coisas. Escolhe os velhos de muita idade, as mulheres cansadas do mar e todo o fraco
e receoso dos perigos que contigo esteja. Permite aos fatigados que nesta terra tenham o seu reduto. Chamarão à cidade
Acesta, se tu este nome autorizares.

Virgílio, Eneida (V, 704-718)

5) No oráculo de Apolo em Cumas, onde Sibila adivinha o futuro de Eneias em Itália, lhe profetiza guerras
por causa da sua esposa latina e a futura aliança com Evandro26. Sibila adivinha igualmente a morte do
troiano Miseno e encarrega Eneias de o conduzir à sua morada sepulcral antes da viagem aos reino de
Hades.
*Ó tu que finalmente saíste a salvo dos grandes perigos do mar (mas em terra outros mais poderosos te aguardam), os
Dardânidas entrarão nos reinos de Lavínio, afasta do teu peito esse cuidado, mas hão-de desejar não ter entrado. Vejo
guerras, guerras terríveis, e o Tibre a espumar com muito sangue…Causa de tão grandes males para os Teucros será de
novo uma esposa estrangeira, de novo um matrimónio com gente de outra raça.

Virgílio, Eneida (VI, 83-94)

6) Finalmente num oráculo já no Lácio, onde são feitas várias adivinhações, desta feita não a Eneias mas
ao rei Latino. Nessa profecia Fauno ordena a seu filho que não case a filha com Turno, como estava
combinado, mas com um estrangeiro que vai chegar. É esta decisão de casamento que vai originar a
guerra com os Rútulos.
**Meu filho não procures casar a tua filha com um dos Latinos, nem confies nos projectados himeneus; outro genro há-de
aparecer, um estrangeiro, cuja estirpe elevará o nosso nome até aos astros e cujos descendentes verão submeter-se aos
seus pés todos os povos que o sol contempla ao percorrer o oceano.

Virgílio, Eneida (VII, 96-101)

Este oráculo profetiza com dois simples versos, a que M.H. Rocha Pereira chama versos “lapidares”, o
império a construir pelos Romanos, que há-de submeter a seus pés todos os povos que o sol contempla
no seu curso.

PROFECIA DE ENEIAS E DE DIDO


Identificámos no poema uma profecia feita pelo próprio Eneias.
1) A profecia de Eneias no canto I (198-207), procurando animar os companheiros de viagem depois do
naufrágio nas costa de Cartago, lembrando-lhes o futuro feliz que os espera no Lácio27.
*Por provações de toda a espécie, por situações tão diferentes, é para o Lácio que vamos, onde os Fados nos mostram as
nossas segundas moradas. Aí será lícito que se ergam de novo os reinos de Troia. Aguentai e guardai-vos para dias felizes.

Virgílio, Eneida (I, 204-207)

2) Dido, antes de se suicidar, lança profecias terríveis para Eneias, pressagia a sua morte e as guerras
futuras entre Roma e Cartago e a destruição de Itália pelo seu vingador, Aníbal.
**Que seja acossado pelas armas de um povo aguerrido, seja um exilado longe da pátria, seja apartado do abraço de Julo,
tenha de implorar auxilio e contemple a morte ignominiosa dos seus. E quando se submeter às leis de uma paz que lhe
será desfavorável que não usufrua do poder ou da felicidade de uma longa vida, mas pereça antes do tempo e fique
sepultado no meio da areia. E vós Tírios atormentai com perpétua sanha a sua estirpe e toda a raça que dele há-de vir,

26
Evandro era de origem grega e era o fundador da cidadela no Capitólio, que Eneias visitará para firmar a aliança, precisamente
no local onde Roma viria a ser fundada.
27
De notar que apesar de esta profecia ser proferida por Eneias no Canto I, ela acontece no plano temporal depois de ele já ter
ouvido profecias oraculares sobre a sua missão e o seu destino. Eneias só vai contar as suas aventuras a Dido no Canto II e III, e
por isso o relato dessas adivinhações aparecem mais tarde no poema.
14
enviai isso como presente às nossas cinzas. Não haja para com esses povos amizade ou pactos. Que da minha ossada
nasça um vingador que a ferro e fogo persiga os colonos dárdanos, agora, mais tarde e sempre que as forças o
permitirem.

Virgílio, Eneida (IV,616-627 )

SONHOS
Existem cinco sonhos premonitórios de Eneias que, tal como os oráculos, o ajudam a decidir o que fazer
em momentos críticos.
1) Com Heitor, ainda em Tróia; o filho de Príamo incita-o a abandonar a cidade, que está a ser destruída
pelos Dánaos, depois de terem conseguido franquear as muralhas inexpugnáveis, graças ao artifício do
cavalo de madeira, onde muitos dos mais bravos guerreiros argivos se esconderam; aconselha-o a salvar
os objetos sagrados e os Penates, para ir fundar uma nova cidade. Esta premonição é muito importante
pois é cronologicamente a primeira. Segue-se a profecia da visão de Creúsa, que já referimos. As duas
acontecem ainda antes de Eneias ter deixado Tróia.
*Ah, foge filho da deusa, escapa-te, põe-te a salvo desta chamas[…] Tróia confia-te os objectos sagrados e os seus
Penates. Toma-os como companheiros do teu destino, demanda para eles a cidade, a grande cidade que finalmente hás-
de construir depois de longamente vagueares sobre o mar.

Virgílio, Eneida (II, 289 e 293-295)

2) Com as sagradas imagens dos deuses de Troia, que Eneias trouxera consigo da cidade destruída, que
informam Eneias de que não está no local que lhe fora destinado pelos deuses, e que não precisa de ir ao
oráculo de Febo em Ortígia para obter essa informação dos deuses.
*Aquilo que Apolo te diria se a Ortígia fosses, eis que aqui to prediz e por sua graça nos envia à tua morada[…]Tu prepara
grandiosas muralhas para um povo grandioso e não abandones o longo labor do exílio. As moradas têm de ser mudadas.
Não foram estas as costas que Apolo Délio te indicou nem foi em Creta que ele ordenou que te estabelecesses. Existe um
lugar, Hespéria lhe chamam os Gregos, uma terra antiga, poderosa pelas armas e pela fertilidade do solo…Estas as
moradas que vos estão destinadas, daqui provieram os vossos antepassados, veio o pai Dárdano e Jásio, do qual é oriunda
a nossa raça.

Virgílio, Eneida (III, 154 e 159-168)

3) Com Mercúrio, já em Cartago, que o aconselha a partir, sob pena de ter de enfrentar a ira de Dido.
Como vimos, este comportamento da rainha de Cartago pode ser interpretado como uma premonição das
cruéis guerras púnicas, quase mil anos mais tarde.
*Ó filho da deusa, como és capaz de dormir em tal situação? Não vês os perigos que te rodeiam, insensato, não ouves
soprar os Zéfiros favoráveis? Ela, decidida a morrer, medita no seu íntimo em insídias e horrendas maldades e excita a
instável sanha da cólera E tu não foges daqui a toda a pressas, enquanto te é possível apressares-te? Verás, não tarda
nada, o mar turvar-se com navios e reluzirem cruéis archotes verás ferver a praia em lume, se a Aurora te encontrar nestas
terras demorado. Anda, vá deixa-te de demoras! A mulher é coisa volúvel e mutável.

Virgílio, Eneida (IV, 560-570)

4) Com Anquises, onde o seu velho pai o aconselha a seguir as indicações de Nautes e também a descer
aos infernos para falar com ele.
*Obedece aos óptimos conselhos que agora te dá o velho Nautes. Conduz para Itália jovens de eleição, os corações mais
valorosos. É um povo duro e áspero no seu modo de vida que no Lácio tens de submeter. Dirige-te porém primeiro à
subterrânea morada de Dite e procura, através das profundezas do Averno, ó filho, encontrar-te comigo. […]Aí te
conduzirá a casta Sibila, graças a muito sangue de negras reses. Então conhecerás toda a tua estirpe e quais as muralhas
que te hão-de ser outorgadas.

Virgílio, Eneida (V, 728-733 e 735-737)

5) Com o velho rio Tibre que lhe indica ser aquele o local destinado ao seu povo e lhe confirma a profecia
do vate Heleno, acerca de uma fêmea de javali como sinal para o lugar da futura cidade e que aconselha
Eneias a fazer uma aliança com Evandro.
*Ó herói da estirpe dos deuses, que das mãos dos inimigos nos trazes a cidade de Tróia e preservas a eterna Pérgamo, ó
homem esperado pelo solo laurentino e pelos campo latinos! Aqui se encontra a morada que te foi destinada, aqui o lugar
determinado para os teus Penates: não te afastes pois nem fiques aterrado com as ameaças de guerra[…]irás encontrar
15
uma enorme fêmea de javali, deitada com os trinta bacorinhos que acabou de dar à luz, toda branca, estendida no chão
com as brancas crias em redor das tetas. Aí será o lugar da tua cidade, o fim e o repouso certo para os teus tormentos; a
partir desse momento, quando dez anos três vezes tiverem rodado, Ascânio fundará Alba de insigne nome – e não são
incertezas o que vaticino[…]

Junta-te a eles[Evandro], estabelece com eles uma aliança. Eu próprio te guiarei entre as margens pelo rio acima

Virgílio, Eneida (VIII, 36-40 e 43-49 e 56-57)

VISÕES
Existem três grandes visões: um sinal dos deuses sobre Ascânio (Julo), uma visão do espectro de Creúsa,
primeira esposa de Eneias, e uma visão do futuro grandioso de Roma na visita aos infernos.
1) A língua de fogo, como sinal dos deuses do futuro divino reservado a Ascânio (Julo), seguida de um
trovão imenso, acompanhado por uma estrela que desenhou uma linha no céu, e que convencem
Anquises a abandonar Tróia com o filho e o neto.
*Eis que se viu uma subtil língua de fogo lampejar do alto da cabeça de Julo, e a chama, inofensiva ao tacto, lambeu os
seus suaves cabelos e expandiu-se à volta das têmporas.

Virgílio, Eneida (II, 682-684)

2) A visão da imagem espectral de Creúsa, a primeira esposa de Eneias, quando o herói a procurava por
entre as ruínas de Troia, onde ela lhe pede que ele desista do seu intuito para se cumprirem os Fados
(fata), que passam por perdê-la para poder no Lácio encontrar uma esposa régia, ou seja Lavínia.
*Isto não acontece sem desígnio dos deuses, vedam-te os Fados que leves daqui Creusa na tua companha, tal não
consente aquele que governa o excelso Olimpo. O que te está destinado são longos exílios e a superfície das águas do mar
que tens de lavrar. Chegarás à terra da Hespéria, onde entre férteis terras de homens de bem corre o lídio Tibre com a sua
tranquila corrente. Aí se encontram à tua espera dias felizes, o poder e uma esposa régia.

Virgílio, Eneida (II, 777-784)

3) O canto VI é considerado por muitos autores como talvez o mais ideológico da Eneida. Aquele onde o
pensamento virgiliano mais se revela. A visita aos infernos contém também uma espécie de profecia
visual, que é muito importante, porque permite materializar os grandes feitos e os grandes heróis de
Roma. Esta visão é suportado pela teoria da metempsicose e é fundamental para enaltecer os homens
bons da história de Roma e glorificar Augusto, o herói que irá restaurar a Idade do Ouro à superfície da
terra.
Guiado por Sibila, depois de ela lhe ter vaticinado o futuro em Itália, como referimos nas profecias
oraculares, Eneias encontra Anquises, seu pai, que lhe mostra todas as gerações dos mais insignes chefes
romanos, que vão ser a sua ilustre descendência e que irão construir o império.
**E agora vamos, expor-te-ei brevemente que glória seguirá no futuro a progénie de Dárdano, que descendentes te estão
reservados do povo itálico, as almas ilustres que hão-de usar o nosso nome, e revelar-te-ei o teu destino.

Virgílio, Eneida (VI, 756-759)

Eneias vê a alma que, depois de beber a água do esquecimento do rio Letes, há-de ser no futuro Rómulo e
que fundará a cidade das sete colinas.
**Sob o seu comando a ínclita Roma estenderá o seu poder a todo o mundo, ombreará graças à grandeza do seu ânimo
com os deuses do Olimpo e ela, apenas ela, fecunda mãe de heróis rodeará para si sete colinas com uma muralha.

Virgílio, Eneida (VI, 781-784)

**E depois vê as almas de César e de Augusto, e Anquises relata-lhe os seus feitos notáveis. Augusto
sobressai, ele que “restaurará no Lácio a Idade do Ouro”, estenderá o império “para lá das constelações”,
a quem nem Hércules nem Baco se poderão comparar.
Depois de Augusto, o poema refere vários heróis romanos mas dedica um grande espaço, que poderá
parecer desproporcionado, a Marco Cláudio Marcelo, sobrinho e neto do imperador. Mas Marcelo era

16
favorito de Octávio, estava destinado a conduzir o império e tinha morrido misteriosamente aos dezanove
anos de idade, abalando profundamente a família imperial28. Esta passagem leva-nos a pensar poder ser
de alguma forma uma contemporização do poeta com a tristeza de Augusto, perante a perda, o que será
mais uma evidência de que o poema lhe era destinado.
Uma questão pertinente poderia ser a ausência, neste desfile de heróis romanos nas margens do Lete, de
poetas e de filósofos29? Porque não aparece Plauto, Catulo ou Cícero, que a história se encarregou de
enobrecer e de tornar figuras heróicas da Roma Antiga, ao contrário de muitos, que hoje poucos
conhecerão, e que são citados no poema.
E resta o mistério da porta escolhida por Anquises para Eneias sair do Hades, a porta por onde, de acordo
com o poema, enviam os Manes para o mundo superior visões falazes. Era mistério, permanece como
mistério.
Perante a visão que o Hades lhe oferece, Eneias não pode mais duvidar da importância que envolve o
cumprimento do seu destino, pois o futuro glorioso de Roma, encarnado nas imagens, depende de seu
sucesso.
O ESCUDO DE ENEIAS
O canto VIII é considerado por muitos autores o mais belo de todos os cantos do poema. M. H. Rocha
Pereira afirma, citando Klingner que é “o mais virgiliano de todos”, por o considerar o mais original, ou
citando Gransden, que é “o coração augustano do poema”, porque, por um lado a acção se situa no local
onde Roma virá a ser edificada e porque é neste canto que o escudo de Eneias é descrito.
A Eneida exprime os aitia [causas originárias] romanos, que se encontram dispersos ao longo do poema, mas de modo
muito particular no canto VIII, quando Eneias visita os lugares da cidade futura.

M. Citroni, Literatura de Roma Antiga

O escudo de Eneias, que como já referimos é um paralelo do escudo de Aquiles na Ilíada, é-lhe oferecido
igualmente por uma deusa, a sua mãe, Afrodite ou Vénus, e é fabricado pelo mesmo Deus, Hefesto ou
Vulcano. Mas enquanto o escudo de Aquiles tem gravadas cenas da vida quotidiana dos Gregos, o escudo
de Eneias tem gravadas cenas gloriosas da futura história de Roma. O escudo de Aquiles é um registo do
passado, o de Eneias é um leitor do futuro.
É também o canto onde alguns valores do estoicismo parecem mais visíveis, em particular o valor da
simplicidade, da paupertas, que estes versos da recepção de Evandro a Eneias, sintetizam bem:
Ousa agora meu hóspede, menosprezar as riquezas, age de modo digno de um deus: vem, entra, olhando sem desdém os
nossos parcos haveres.

Virgílio, Eneida (VIII, 364-365)

O escudo pode ser lido como uma profecia divina30 objectual de grande dimensão. Não é por acaso que
Hefesto ou Vulcano na Ilíada é objecto dos epítetos “ferreiro engenhoso” (XVIII, 484), “artífice ilustre”
(Idem, 615) e “Hefesto potente” (Idem, 618), e na Eneida Virgílio descreve o deus gravador do escudo
como “aquele que não ignorava os vaticínios dos profetas nem desconhecia a eternidade vindoura” (VIII,
627).

28
Existem registos de um desmaio da imperatriz, comovida ao ouvir os versos dedicados a Marcelo, na sessão de leitura de
Virgilio, onde o poeta leu alguns cantos.
29
Um argumento contra esta perplexidade poderia ser a presença do poeta Museu, um poeta helénico anterior a Homero, a
quem o herói Eneias pede ajuda para encontrar o pai no Hades. Como afirma M.H. Rocha Pereira:
Supomos que a presença do poeta por excelência[Orfeu que é mencionado antes como exemplo de descida aos infernos],
tal como logo adiante de Museu (667-668), um e outro a enquadrar os eleitos, com especial relevo para os cultores das
Musas, terá o significado de chamar a atenção para o valor desta arte.
M.H. Rocha Pereira, Estudos de História de Cultura Clássica II
30
O escudo poderia portanto ter sido integrado no grupo das profecias divinas mas devido à sua especificidade preferimos criar
um grupo distinto para ele.
17
**Neste gravara o ignipotente a história de Itália e os triunfos dos Romanos, pois não ignorava os vaticínios dos profetas
nem desconhecia a eternidade vindoura. Aí gravara toda a descendência da futura estirpe de Ascânio, e por ordem, as
sucessivas guerras travadas. Aí gravara também uma loba que pouco antes havia dado à luz, deitada no antro verdejante
do Mavorte: junto delas duas crianças , dois meninos irmãos, a brincarem suspensos dos seus úberes

Virgílio, Eneida (VIII,626-633 )

O escudo de Aquiles é um objecto forjado para a guerra, na defesa da cultura grega representada nas
cenas gravadas pelo “ferreiro engenhoso”. O escudo de Eneias é também um objecto forjado para a
guerra, mas na defesa do futuro glorioso de Roma, do império que há-de vir.
O escudo contém portanto uma marca divinatória divina e cada cena gravada no escudo é uma profecia
de glória para Roma, com destaque para batalha de Accio, gravada na parte central, onde Augusto
conquista o poder, derrotando Marco António.
**No meio do mar era possível divisar frotas de bronze – combates de Accio; com Marte a postos via-se todo o
promontório de Leucates ferver, e refulgirem de ouro as vagas. De um lado, estava César Augusto conduzindo os povos
itálicos à guerra, juntamente com os senadores e o povo, com os penates e os grandes deuses; estava de pé na elevada
popa do navio, as suas têmporas cheias de esperança, vomitam duas chamas e vê-se a constelação paterno no cimo do
elmo. […] De outro lado, António com as hostes bárbaras e as suas armas confusas[…]

O próprio César em pessoa , sentado no níveo trono do candente Febo, observa com atenção as oferendas do povo e
prende-as à soberbas portas. Em longa fila avançam os povos vencidos: tão diversas são as línguas quantas as armas e
formas de trajar.

Virgílio, Eneida (VIII,675-681 e 685 e 720-723 )

Cada uma das cenas no escudo pode ser ligada a valores romanos importantes.
Nota: não considerámos no desfile de heróis junto ao Lete, ou no escudo, cada herói ou cada cena
gravada como uma profecia de tipo **, pois na realidade o desfile tal como o escudo podem ser
considerados, como as duas grandes profecias da magnificência de Roma e do império.
OUTRAS
Apresentámos nos grupos de profecias anteriores, aquelas que no poema nos pareceram fundamentais.
Mas, ao percorrer a Eneida, canto a canto, para tentar identificar todas as passagens em que nos
parecesse existir uma adivinhação com contorno divino, verificámos que as profecias abundavam em
todos os cantos da Eneida e a escolha de relevância que fizemos conterá naturalmente subjectividade.
Tendo realizado esse trabalho, parecia-nos que não faria sentido não o apresentar, mas, como o nosso
ensaio já era bastante longo, concluímos que seria porventura mais razoável juntar essa lista longa com
todas as restantes profecias identificadas sob a forma de um anexo.
Assim o artigo, para além de uma análise crítica, mas certamente subjectiva do autor, disponibiliza, junto
com o anexo, a enumeração de todas as passagens do poema que correspondam a profecias que
identificámos.

5. Conclusões
A Eneida é um longo poema épico de Virgílio, que se propôs glorificar Roma e a sua história, inspirado nos
dois monumentos homéricos: a Ilíada e a Odisseia. É um poema revolucionário porque rompe com a
tradição poética latina anterior e é isso que em parte explica a sua importância na história literária
ocidental.
O poema assenta em duas linhas temporais entrecruzadas. Numa dessas linhas o poema conta a lenda de
Eneias e da migração do povo troiano para o Lácio, depois da destruição e Tróia, como uma narrativa
lendária que explica a origem da cidade de Roma. Nesta primeira linha temporal o plano humano e o
plano divino interligam-se a cada passo, com a participação dos deuses na acção, como personagens da
história, tal como acontecia nos poemas homéricos, ainda que de uma forma bastante mais contida do
que nos poemas gregos. A segunda linha temporal é a da profecia, ou talvez melhor, uma linha que a
profecia desenha e que permite, a partir da lenda, viajar no futuro, e não só contar a história de Roma e

18
dos seus heróis, como revesti-la de um carácter divino. A profecia pois, como máquina de viajar no
tempo.
Com a profecia, a viagem de Eneias transforma-se num plano elaborado pelos deuses ou pelos Fata para
Roma poder acontecer. É a profecia que permite atribuir a Roma e, em particular a Augusto, como
descendente de Julo, Eneias e Vénus, um papel de glória, equivalente à dos heróis da mitologia. É a
profecia que permite apontar a paz como o destino de Roma (pax romana).
Sem a profecia não teria sido possível sequer ligar o tempo de Eneias aos tempos de Roma e ao tempo de
Augusto, que o poema pretendia glorificar.
Eram profecias relativamente a um futuro que no tempo de Virgílio já era passado. Eram portanto
profecias certas, oráculos sem ambiguidade.
O nosso trabalho permitiu identificar as profecias que aparecem no poema, ao longo dos doze cantos,
desde os primeiros versos, com formatos diferentes, desde as profecias feitas pelos próprios deuses, a
profecias oraculares, até sonhos e visões ou sinais premonitórios.
Como vimos, há no poema profecias que podem ser consideradas mais ou menos importantes para Roma,
apesar da subjectividade envolvida nessa classificação. Podemos ainda propor que as adivinhações da
Eneida se agrupem em torno de duas grandes e principais profecias, que vão sendo apresentadas e
aprofundadas ao longo do poema, ainda que por vezes a linha de fronteira entre as duas não seja clara.
Para além destes dois tipos, existem ainda algumas profecias que parecem estar desligadas da história de
Eneias e de Roma.
Profecia tipo 1 – A Itália como destino do povo de Eneias, para aí iniciar uma nova civilização, depois de muito
sofrimento e depois de guerras violentas;
Profecia tipo 2 – O futuro grandioso de Roma e do império, a magnificência dos seus heróis, descendentes de
Eneias, em que sobressai Augusto.
Profecia tipo 3 – Outras profecias que parecem ser laterais à grande história profética do poema

A tabela seguinte permite ver a distribuição das profecias pelos cantos da Eneida e assim confirmar quais
os cantos em que as principais profecias (Profecia1 e Profecia 2) são apresentadas, repetidas ou
desenvolvidas para construir a grande profecia global.
Tivemos o cuidado de em cada profecia que identificámos, ao longo deste ensaio e do seu anexo, associar
uma etiqueta; *, ** ou ***; em que o número de asteriscos indica a forma como a classificámos: profecia
tipo1, profecia tipo2 ou nenhum dos dois.
Independentemente de a classificação de cada profecia que identificámos – ao todo 85, nas secções 2, 3 e
4 e no anexo – como de tipo 1, 2, ou 3, ser naturalmente subjectiva, o que a tabela nos permite afirmar é
que as profecias se distribuem ao longo de todos os cantos e que em todos os cantos existe pelo menos
uma profecia sobre o futuro de Eneias ou de Roma.
A tabela permite-nos portanto visualizar quantitativamente o que já tínhamos constatado e relevado ao
longo do nosso trabalho. É apenas uma outra forma de realçar a importância das profecias no poema.
O diagrama, decorrente da tabela, permite-nos observar como o número de profecias se mantém
relativamente regular, à volta de uma média de 7 profecias por canto.
O quadro e o gráfico associado talvez pudessem e talvez merecessem ser objecto de uma análise mais
profunda, que o horizonte temporal que temos perante nós não permite, mas permitem-nos concluir,
desde já, que uma das técnicas do poeta, para destacar e validar a profecia maior, parece ser apresentá-la
ao longo dos cantos, acompanhá-la de outras profecias que a desenvolvem, justificam ou aprofundam, ou
até de profecias que não parecem estar directamente ligadas a Eneias ou a Roma.
Poderíamos, para finalizar, até “brincar” um pouco e dizer que a Eneida é uma evidência de que afinal se
pode ser profeta em casa, que a epopeia é a forma de o conseguir, pois Virgílio, poeta romano31, assume-

31
Virgílio não nasceu em Roma, mas a ligação à Urbe é indiscutível, onde fez todo o cursus honorum.
19
se como porta-voz dos deuses ou da Musa, a quem pede várias vezes auxílio na sua tarefa, para profetizar
o destino de Eneias e a glória do império romano. Virgílio seria, por isso, um poeta-profeta32 em casa.
Com a Eneida temos o mito e a profecia ao serviço da literatura, da história e da política. O mito como
fonte primordial da história, a profecia como justificação divina do seu devir até ao tempo de Augusto.

32
Virgílio foi de facto considerado um profeta e como tal aparece representado em várias igrejas da Idade Média. Se é certo que
essa auréola está associada à Bucólica IV, onde Virgílio parece profetizar um Messias, a designação poeta-vate ou poeta-profeta
parece-nos fazer sentido pois na Eneida aparece como porta-voz da Musa e dos deuses para as profecias do poema.
20
Canto I Canto II Canto III Canto IV Canto V Canto VI Canto VII Canto VIII Canto IX Canto X Canto XI Canto XII TOTAL
ENEIDA
Nº Total 6 5 9 6 4 9 9 7 7 11 3 9 85
Profecias
Nº Profecias 1 4 6 3 4 1 6 4 0 7 2 6 44
tipo 1

Nº Profecias 4 0 2 2 0 6 2 3 1 1 0 1 22
tipo 2

Nº Profecias 1 1 1 1 0 2 1 0 6 3 1 2 19
Outras

Nº Total Profecias
12
11
10
9
8
7
6
Nº Total Profecias
5
4
3
2
1
0
Canto I Canto II Canto III Canto IV Canto V Canto VI Canto VII Canto VIII Canto IX Canto X Canto XI Canto XII
BIBLIOGRAFIA

1. ALMEIDA, Filipe dos Santos, O Augúrio no livro II da Eneida, UFP, 2011


2. CITRONI, M., Literatura de Roma Antiga, tradução de Margarida Miranda e Isaías Hipólito, FCG, 1997
3. GRIMAL, Pierre. Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Difel, 2009
4. GRIMAL, Pierre. A Civilização Romana, Edições 70, 1993
5. HOMERO, Ilíada, Cotovia, Tradução de Frederico Lourenço, 2005
6. HOMERO, Odisseia, Cotovia, Tradução de Frederico Lourenço, 2003
7. LIVIO, Tito, Ab Vrbe Condita livro I, Editorial Inqérito, 1999
8. LIVIUS, Titus, Ab Vrbe Condita, http://mcadams.posc.mu.edu/txt/ah/Livy/index.html, tradução inglesa de Canon
Roberts
9. PEREIRA,M.H. Rocha, Estudos de História da Cultura Clássica I & II– Cultura Romana, FCG,2013
10. PEREIRA,M.H. Rocha, Romana, FCG,2013
11. PEREIRA,M.H. Rocha, Hélade, FCG,2013
12. PLUTARCO, Dialogos Piticos, Editorial Gredos, 1995
13. SOARES , Virgínia, Sementes de Frustração na Eneida, Humanitas - 35-36- FLUC, 1983-1984
14. VIRGILE, Oeuvres, Plessis et Lejay, Hachette
15. VERGÍLIO, Eneida, Bertrand Editora, tradução de Luís M.G. Cerqueira et alii, 2011
16. VIRGIL, The Aenei, http://classics.mit.edu/Virgil/aeneid.html(Eneida (em inglês)
17. VIRGILIUS, Aeneid, http://www.thelatinlibrary.com/verg.html (em latim)
18. VOLKER , Camila Bylaardt, As Palavras do Oráculo de Delfos: Um estudo sobre o De Pythiae Oraculis de Plutarco,
UFMG, 2007
ANEXO
Neste anexo reuniremos um conjunto de profecias, para além das profecias que destacámos no corpo do
nosso trabalho.
Reunimo-las num anexo porque nos parecem menos importantes no conteúdo global da Eneida ou
porque parecem repetir em segunda voz presságios já apresentados anteriormente no poema. Claro que a
nossa classificação de importância, como já afirmámos e repetimos aqui, é subjectiva, mas este anexo
garante que nenhuma profecia identificada foi esquecida.
Esta longa lista contém portanto todas as adivinhações do futuro que identificámos na leitura da Eneida,
canto a canto e que não analisámos no corpo deste ensaio. Verifica-se que também são também de
diferentes tipos: feitas pelos deuses, por vates ou por humanos; associadas a visões, a sinais ou a sonhos
proféticos. Listámo-las aqui pela ordem que aparecem no poema.
Nota: tal como no corpo do trabalho, cada profecia neste anexo está etiquetado com *,** ou ***.

1) No canto I há uma profecia de Juno a Dido indicando-lhe o lugar prometido.


***Os Púnicos maltratados pelo mar e pela violência dos ventos, tinham no início desenterrado um sinal que lhes fora
indicado pela régia Juno., a cabeça de um cavalo selvagem. A deusa vaticinara, de facto, que tal seria o povo pelos séculos
fora: ínclito na guerra e de fácil sustento.

Virgílio, Eneida (I,442-445 )

2) ***As profecias falsas de Calcas no relato de Sínon no canto II, que já referimos na introdução, como
motivação extra para realizarmos este trabalho. Sendo duplamente falsas, como vimos, interessam-nos
apenas por serem um atestado da importância da palavra de um adivinho.
3) Vénus aparece durante os combates em Tróia e avisa Eneias que deve procurar os seus e fugir
*Foge meu filho e põe termo à tribulação. Em lugar algum te faltarei e conduzir-te-ei em segurança à casa paterna.

Virgílio, Eneida (II,619-620 )

3) Os primeiros versos do Canto III confirmam a profecia divina e confirmam que é a profecia que guia
Eneias, que tem consciência de ser um instrumento dos deuses.
*Somos forçados pelos presságios dos deuses a demandar distantes lugares de exílio, terras desertas.

Virgílio, Eneida (III, 4-5)

4) Logo a seguir, ainda no Canto III, Eneias ouve a voz de Polidoro que o avisa e o leva a partir da Trácia.
*Oh foge de cruéis terras, foge destas plagas de ganância.

Virgílio, Eneida (III,44 )

5) No Canto III, Eneias celebra jogos troianos em Accio, local da vitória de Augusto e onde o imperador
instituiria os jogos Accíacos. Em rigor talvez não possamos falar aqui de uma profecia ainda que seja uma
forma engenhosa que o poeta encontrou de ligar de novo Eneias a Augusto.
**E enchemos de gente todo o litoral de Accio, celebrando os jogos troianos.

Virgílio, Eneida (III,280 )

Encontramos outra ligação a Augusto, logo a seguir ainda no mesmo canto, quando Eneias promete
tornar as cidades no Epiro irmãs de Roma, o que viria acontecer no tempo de Augusto para celebrar a
vitória de Áccio.
**De ambas faremos uma só Troia nos nossos corações.

Virgílio, Eneida (III,504-505 )


6) No Canto III Eneias vê um presságio, quatro cavalos brancos que o pai Anquises começa por interpretar
como sinal de guerra mas que depois admite que também podem representar a paz.
***Aqui vi o primeiro presságio: quatro cavalos na relva

Virgílio, Eneida (III,537 )

7) No Canto IV Eneias repete a profecia dos deuses, justificando-se perante Dido


*Mas agora é a magna Itália que Apolo Grineu e os oráculos lícios me mandam procurar[…]Demando a Itália, não por
minha vontade.

Virgílio, Eneida (IV,345-346 e 361 )

8) Temos também profecias e vozes não explicitadas por Dido quando desesperada vai ao altar de seu
primeiro esposo Siqueu
***Aterrorizam-na ainda muitas profecias de antigos vates, com terríveis advertências.

Virgílio, Eneida (IV,464-465 )

9) No canto V temos mais uma falsa profecia quando Juno, assumindo o papel de uma anciã troiana, incita
as mulheres a queimar os navios, para não voltarem ao mar.
*Na verdade em sonhos vi a sombra da profetiza Cassandra dar-me archotes acesa e disse-me “Procurai aqui Tróia, aqui é
a vossa morada”.

Virgílio, Eneida (V,636 e 638 )

10) No canto V Neptuno, a quem Vénus pede ajuda para evitar as tramas de Juno, faz uma profecia de que
Eneias chegará ao seu destino, apenas um homem morrerá, Palinuro que vai adormecer e cair ao mar, o
que acontece na primeira noite da viagem.
*Ele alcançará em segurança os portos do Averno como tu desejas. Haverá apenas um que, perdido no abismo, procurarás
em vão. Uma vida será por muitas dada.

Virgílio, Eneida (V,813-815 )

A cena da morte do marinheiro, que ia leme do navio, contempla uma visão do deus Sono, mas essa visão
não é profética.
11) No canto VI, duas pombas, aves consagradas a Vénus, mãe de Eneias, conduzem Eneias ao ramo de
ouro que Sibila exigira para poder descer aos infernos e regressar.
***Quando chegaram às fauces do Averno, que exala um cheiro terrivelmente fétido, elevam-se céleres e, deslizando pelo
límpido ar e escolhendo o sítio, pousam sobre uma árvore dupla, donde refulge um esplendor de cor diferente por entre os
ramos.

Virgílio, Eneida (VI,201-204 )

12) No canto VI, Sibila profetiza o futuro do insepulto Palinuro que vagueava margem do Caronte.
***Na verdade os habitantes vizinhos hão-de aplacar os teus ossos por todo o lado nas suas cidades, levados por celestes
prodígios, erigirão um túmulo e prestarão solenes honras ao sepulcro e o local terá para sempre o nome de Palinuro.

Virgílio, Eneida (VI,378-381 )

13) No canto VII, um adivinho augura a partir do voo das abelhas num velho loureiro consagrado a Apolo a
chegada de um estrangeiro:
*Vemos aproximar-se um estrangeiro, vemos um exército da mesma raça dirigir-se para o mesmo destino e estabelecer-se
no cima da cidadela.

Virgílio, Eneida (VII,68-70 )

Logo a seguir um fogo mágico ateia os longos cabelos da princesa Lavínia, queima todos os eus adornos e
alastra pelo palácio.
*Dizia-se que isso era sinal de algo terrífico e admirável de ver, pois anunciava que ela teria fama e ilustres destinos, mas
uma grande guerra ameaçava o seu povo

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Virgílio, Eneida (VII,78-80 )

14) No canto VII, quando os viajantes recuperam forças na margem do Tibre e comem os poucos
mantimentos que restavam, Julo pronuncia a brincar “ Oh! Até as mesa comemos” tornando real uma
profecia de Anquises e dando o sinal da chegada à terra prometida.
*Salvé terra, aos meus Fados prometida! Salvé ó fiéis Penates de Tróia! É esta a casa é esta a minha pátria! Meu pai
Anquises – agora me lembro – confiou-me estes secretos desígnios dos Fados “ Meu filho, quando arribares a costas
desconhecidas e a fome te levar a devorar mesas, estão cansado, podes ter a esperança de aí encontrar um novo lar.
Deixa-te ficar nessas paragens e traça os limites de uma nova cidade.

Virgílio, Eneida (VII,120-127 )

E também Júpiter dá a Eneias o sinal de que finalmente chegou ao seu destino.


*O omnipotente pai dos deuses três vezes fez ribombar o trovão e fez ver nos ares uma nuvem ardente cheia de raios de
luz e ouro, que por sua própria mão agitava,

Virgílio, Eneida (VII,141-143 )

15) No canto VII, quando os embaixadores de Eneias se apresentam ao rei Latino este relembra a profecia
de glória para Eneias
**A este homem será concedida uma descendência egrégia pela sua coragem, que com a sua força há-de conquistar todo
o mundo.

Virgílio, Eneida (VII,257-258 )

E oferece de imediato a filha ao estrangeiro, pois as profecias do oráculo de Fauno o exigem:


*Penso que deve ser o vosso rei aquele que os destinos anunciaram

Virgílio, Eneida (VII,271 )

16) No canto VII, Juno profere uma profecia ameaçadora para o casamento de Eneias com Lavínia e chega
a chamar a Eneias um novo Páris pelas mortes que vai provocar.
*Genro e sogro aliar-se-ão a esse preço, à custa da vida dos seus; o sangue de Troianos e Rútulos te darei por dote, ó
donzela e Belona há-de ser a madrinha do casamento.

Virgílio, Eneida (VII,317-319 )

17) No canto VII, Turno começa por denunciar a falsa profecia de Alecto:
***Mas a ti, minha mãe, a abatida decrepitude e a velhice, já cansada para revelar oráculos verdadeiros, em vão te
enchem de cuidados, e sobre as lutas dos reis te iludem, ó profetiza, com uma falsa premonição.

Virgílio, Eneida (VII,440-442 )

Mas a feiticeira não desiste e atirou ao jovem uma tocha que lhe inflama o peito de ódio e o incita à
guerra.
18) No canto VIII, os aliados de Turno procuram convencer Diomedes à guerra usando como argumento as
profecias sobre Eneias
*Que ele [Eneias]declarava ser o rei designado pelos Destinos

Virgílio, Eneida (VIII,12)

19) Evandro conta a história do Lácio; informa Eneias sobre a profecia que ali o trouxe; mostra-lhe a rocha
de Tarpeia e o Capitólio
**A mim, expulso da pátria, que viajei até aos confins do pélago, A Fortuna omnipotente e o inelutável Fado fixaram-me
nestas paragens, para onde também me conduziram as terríficas premonições de minha mãe, a ninfa Carmenta, e as
profecias do deus Apolo.

Mal acaba de proferir estas palavras avança e mostra o altar e a porta que os romanos lembram sob o nome de
Carmental, antiga honra à ninfa Carmenta, profetiza reveladora dos destinos, a que primeiro cantou os magnos
descendentes de Eneias que haviam de vir e a nobre cidade de Palanteu[…]

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Depois leva Eneias até à rocha Tarpeia e ao Capitólio – agora áureo mas outrora agreste, cheio de silvestres espinheiros. Já
então o sentimento de respeito pelos deuses infundia receio ao temerosos camponeses em relação aos presságios funestos
desse lugar e já então temiam o bosque e a rocha.

Virgílio, Eneida (VIII,333-341 e 347-350 )

20) Ainda no canto VIII, os navios etruscos fremem de entusiasmo para zarpar contra os Rútulos, mas são
retidos por uma profecia de um longevo arúspice, que proclama que terá de ser um chefe estrangeiro a
comandá-los, ou seja, Eneias.
*Ó meónia juventude eleita, flor e virtude dos antigos heróis, que uma justa dor impele contra o inimigo a quem Mezâncio
incendeia com merecida ira, a nenhum homem de Itália é permitido comandar tão grande povo; escolhei antes chefes
estrangeiros.

Virgílio, Eneida (VIII,499-503 )

21) No canto IX, Turno vê um sinal nos céus quando é incentivado à guerra por Íris.
***De onde surgiu repentinamente este dia tão Luminoso? Vejo o céu fender-se ao meio e as estrelas a vaguear no
firmamento! Aceito tão grandes revelações, quem quer que sejas tu que às armas me convocas.

Virgílio, Eneida (IX,19-22)

22) No canto IX, a pedido de Berecíntia, mãe dos deuses, Júpiter profetiza que os barcos troianos não
serão destruídos.
***Quando, um dias, os navios, terminado o seu curso, aportarem às costas ausónias, retirarei a foras mortal a todos os
que escaparem às ondas e tiverem levado o chefe dardânio até aos campos laurentinos, e ordenarei que se tornem deusas
do mar imenso, tal como as Nereides Doto e Galateia, que com o peito cortam as ondas.

Virgílio, Eneida (IX,98-103)

E quando de facto Turno tenta queimar a frota uma visão colectiva avisa os Teucros de que não devem
reagir.
***Uma estranha luz ofuscou os olhos e uma enorme nuvem foi vista a percorrer o céu a partir do Nascente, assim como
os coros o Ida. Então umas voz horrenda escapa-se pelos ares e envolve os exércitos rútulos e troianos

- Não vos precipiteis a defender os navios, ó Teucros, nem armeis as vossas mãos! Será antes permitido a Turno incendiar
os mares do que estes sagrados lenhos.

Virgílio, Eneida (IX,110-116)

E então acontece o “milagre”, um sinal divino, que aterroriza os Rútulos. Até o Tibre recua e se afasta do
mar…
***E todas as popas, sem demora, rompem as amarras que as prendiam às margens e, mergulhando os esporões à
maneira de golfinhos, demandam as profundezas do mar. Daqui regressam, transformadas noutras tantas gaces virginais
– espantoso prodígio – e afastam-se para o alto mar.

Virgílio, Eneida (IX,118-122)

Mas Turno interpreta mal o sinal que pensa significar o fim do apoio divino aos Troianos e acredita numa
profecia que lhe garante a vitória, tal como a vitória foi dos Aqueus ao vingar o roubo de Helena.
***Estes prodígios destinam-se aos Troianos, foi a eles que o próprio Júpiter retirou o habitual auxílio[…]Os mares são
agora intransitáveis para os Teucros, já não têm esperança de fuga: é-lhes retirada uma das duas partes do mundo.

Virgílio, Eneida (IX,128-129 e 130-131)

23) No canto IX, o próprio autor profetiza a “eternidade” para os dois companheiros mortos: Euríolo e
Niso
***Ó vós dois, afortunados! Se algum poder têm os meus versos, dia algum, alguma vez, vos apagará da eterna memória,
enquanto a casa de Eneias habitar o imóvel rochedo do Capitólio, e o pai romano detiver o poder!

Virgílio, Eneida (IX,446-449)

24) No canto IX Apolo profetiza a descendência divina de Julo depois de ele ter tirado a vida a Rémulo. E
profetiza igualmente a pax romana do tempo de Augusto.
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**Bravo, rapaz, por esta tua nova prova de coragem! É assim que se chega aos astros, ó gerado pelos deuses, tu que
deuses hás-de gerar. É de toda a justiça que sob a estirpe de Assáraco terminem todas as guerras que vierem a ter lugar,
assim o determinam os Fados.

Virgílio, Eneida (IX,641-643)

25) No canto X, Vénus, intercedendo por Eneias, pede a salvação do filho e do neto, Ascânio, e para isso
solicita uma nova profecia ao pai, onde eles se possam salvar, oferecendo-lhes destino em Chipre, ilha
consagrada à deusa.
*Pois bem que Eneias seja então atormentado sobre ondas desconhecidas e siga por onde quer que a Fortuna lhe abra
caminho.

Virgílio, Eneida (X,48-49)

26) No canto X, confirma-se a profecia de Evandro no canto VIII


*Sem delongas, Tarconte junta as suas forças às dele e firma um pacto; então a nação lídia, agora com a permissão dos
Fados, embarca por ordem dos deuses, confiando-se a um chefe estrangeiro.

Virgílio, Eneida (X,153-156)

27) No canto X, a ninfa Cimódoce, metamorfose de um navio troiano, aparece e fala a Eneias:
*Levanta-te pois e ao despontar da Aurora, ordena primeiro que se convoquem os aliados para a guerra, toma o
invencível escudo, que o próprio Senhor do fogo te deu e cujos bordos rodeou a ouro. O dia de amanhã, se não julgares vãs
estas minhas palavras, verá montes enormes de Rútulos chacinados.
Virgílio, Eneida (X,241-245)

Eneias sente um novo ânimo perante a visão da ninfa e pede a realização do augúrio:
*Apressa ritualmente a realização do teu augúrio e favorece os Frígios com o teu favor, ó deusa.

Virgílio, Eneida (X,254-255)

28) No canto X, perante a possibilidade de uma luta entre Palante e Lauso, os Destinos impedem-na por
terem profetizado que outro fim estaria reservado a estes heróis.
***Todavia o rei do grande Olimpo não admitiu que eles se medissem entre si; os seus destinos reservam-nos em breve
para um inimigo maior.

Virgílio, Eneida (X,437-438)

29) No canto X, no duelo entre Palante e Turno, perante o pedido de Palante a Hércules, Júpiter intervém
e consola o filho:
***Também o seu destino chama Turno, e ele chega ao cabo a existência que lhe foi concedida.

Virgílio, Eneida (X,471-472)

Curiosamente a profecia sugere-nos a morte de Turno mas é Palante quem sucumbe às mãos do guerreiro
rútulo.
30) No canto X, após a morte de Palante o poeta faz uma profecia para Turno
*Chegará para Turno um tempo em que quereria resgatar por alto preço Palante incólume, e em que odiará estes
despojos e este dia

Virgílio, Eneida (X,503-505)

31) No canto X, Juno tenta obter de Júpiter a inversão das profecias, e assim salvar Turno, mas Júpiter
permite-lhe apenas atrasar o desfecho dos Fados, e não alterar o desenrolar da profecia:
*Se pensas que se mudará e inverterá todo o desenrolar da guerra, alimentas esperanças vãs[…}

Oh, fosse eu antes iludida por um receio infundado e tu, que podes, alterasses para melhor os teus desígnios.

Virgílio, Eneida (X,626-627 e 631-632)

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32) No canto X, temos uma nova visão. Juno, depois da resposta de Júpiter em que apenas lhe consente
um adiamento da morte de Turno, toma a forma de Eneias perante o exército rútulo e Turno, ao ver
aquele guerreiro, vestido como Eneias, pensa que é o seu inimigo e persegue-o até um barco no Tibre,
que a deusa desamarra, salvando-o assim da morte iminente.
***A imagem exulta jubilosa diante das primeiras linhas, provoca o varão com dardos e desafia-o com gritos.

Virgílio, Eneida (X,643-644)

33) No canto XI, quando recebe a embaixada latina que vem reclamar os corpos dos seus guerreiros
tombados em combate, Eneias recebe-os com benevolência, mostrando clementia e fides e justifica a sua
presença no Lácio com as profecias e a guerra com a quebra da fides do rei Latino.
*Eu não teria vindo, se os Fados me não tivessem atribuído um lugar para me fixar, nem faria guerra contra o vosso povo;
o rei abandonou os nossos laços de hospitalidade e confiou antes nas armas de Turno.

Virgílio, Eneida (XI,112-114)

34) No canto XI, na assembleia realizada pelos aliados dos Rútulos, o rei Latino lastima não ter dado
ouvidos às profecias.
*O próprio rei Latino sucumbe à sua enorme dor. A ira dos deuses e os túmulos recentes diante dos seus olhos recordam-
lhe que Eneias, designado pelo destino, é claramente guiado por uma divindade.

Virgílio, Eneida (XI,231-233)

35) No canto XI, quando Camila morre, a ninfa Ópis profetiza a morte de Arrunto, e garante que a sua
profecia seja verdadeira, através de uma seta disparada pela própria ninfa.
***De facto quem quer que ultrajou o teu corpo, ferindo-te, há-de expiar o seu acto com merecida morte[…] Vem para
aqui, ó destinado a morrer, para receberes uma recompensa digna por Camila.

Virgílio, Eneida (XI,848-849 e 856-857)

36) No canto XII, Latino relembra a profecia do casamento da filha com um estrangeiro e lastima ter
rompido o acordo com Eneias.
*Não me é permitido entregar a minha filha a nenhum dos pretendentes; isto é o que todos os deuses e homens me têm
vaticinado. Mas vencido pela minha afeição por ti, vencido pelos laços de parentesco, pelas lágrimas da minha esposa
pesarosa, rompi todos os vínculos, arrebatei o que tinha prometido ao meu genro.

Virgílio, Eneida (XII, 27-31)

37) No canto XII, antes do duelo, ao fazer as exortações aos deuses, Eneias fala de acordo com as
profecias de Júpiter e o último pedido de Juno ao rei dos deuses.
*Não ordenarei aos Ítalos que obedeçam aos Teucros nem reclamarei para mim o poder: que ambos os povos invictos se
unam numa aliança eterna, com leis iguais. Eu lhes darei ritos e deuses; que Latino, meu sogro, seja senhor das armas e do
poder supremo. Os Teucros erguer-me-ão muralhas e Lavínia dará à cidade seu nome.

Virgílio, Eneida (XII, 189-194)

38) No canto XII, uma visão de Juturna, irmã de Turno, com a forma humana, instigada por Juno, procura
evitar o duelo entre os dois comandantes:
***Não tendes vergonha Rútulos de lançar uma só alma em defesa de tantos e tão valorosos?

Virgílio, Eneida (XII, 229-230)

A esta visão, que assanha os guerreiros para o combate, soma-se um sinal divino preparado também pela
irmã de Turno.
***A fulva ave de Jove, voando no céu rubro, perseguia as aves do litoral e a turba sonora dos bandos alados, quando,
subitamente, lançando-se rapace nas ondas, arrebata com as garras aduncas um cisne extraordinário[…] Mas eis que
todos os pássaros – espectáculo assombroso – com um enorme clamor interrompem a fuga, voltando para trás, e
escurecem os céus com as suas asas. Então, reunidos como uma nuvem perseguem o inimigo pelos ares, até que vencida
pela força e pelo próprio peso, a águia desfalece, deixa cair das garras a presa num rio e foge paras as profundezas das
nuvens.

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Virgílio, Eneida (XII, 247-250 e 251-256)

E até o augure Tolúmnio ao ver tal presságio exclama “Era isto, era isto que eu tantas vezes implorava nas
minhas preces. Aceito e reconheço a vontade divina. Segui-me, tomai armas” (XII, 259, 261)e os Rútulos
rompem as tréguas. Eneias ainda tenta impedir a quebra do acordo, mais um sinal muito importante da
paz como valor fundamental na Eneida, mas já é tarde.
Esta cena com a águia, com o cisne e com pequenas aves é muito interessante, pois poderia ser
considerada herética, ao sugerir que o poder de Júpiter, simbolizado pela águia, que tinha profetizado o
sucesso de Eneias, poderia ser vencido pela unidade dos homens. Mas não temos aqui nem o espaço nem
o tempo para alguma especulação.
39) No canto XII, um ferimento de Eneias é curado com a ajuda de Vénus que lhe traz dictamno33, uma
planta medicinal que crescia em Creta. Jápix, a quem Apolo concedera a arte da medicina, reconhece a
intervenção divina:
*Isto não provém do poder humano nem da arte cheia de ensinamentos, nem sequer é a minha dextra, Eneias, que te
salva. É um deus mais poderoso do que nós quem te cura e quem te envia para mais elevados feitos.

Virgílio, Eneida (XII, 427-429)

40) No canto XII, Turno reconhece a irmã, numa visão que tem a forma do seu cocheiro Metisco, e que
procurava salvá-lo da morte iminente e compreende que o Fado estás contra si
*Pois que hei-de eu fazer, que Fortuna me promete ainda a salvação?

Virgílio, Eneida (XII, 637)

41) **No canto XII, Júpiter faz também uma profecia importante, citada numa secção anterior, em que se
pressagia a capacidade de Roma de integrar e de governar todos os povos, debaixo de uma língua comum:
o latim.
42) Finalmente, ainda no canto XII, Júpiter ordena a uma das Fúrias que desça junto dos mortais e que,
transformada em ave, pressagie o fim de Turno, que Juturna compreende como o fim da sua tentativa de
adiar o inadiável.
*Metamorfoseada nesta aparência, o monstro passa e torna a passar ruidosamente diante de Turno e percute-lhe o
escudo com as asas[…] Sei bem que estas são ordens soberbas do magnânimo Júpiter.

Virgílio, Eneida (XII, 865-866 e -877-878)

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Dictamno parece ser a mesma planta que aquela a que nós portugueses chamamos orégãos, tão importante na nossa cozinha,
sobretudo no sul do nosso país.
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