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Quem quer que tenha tentado iniciar uma discussão civilizada nos últimos tempos,
presenciou um dos fenômenos brasileiros modernos mais facilmente identi cáveis,
desde a crescente interferência da internet na personalidade individual: o fato de que
cada vez mais pessoas, até então normais e equilibradas em suas posições, têm se
tornado verdadeiros clichês, como que pré-moldados ejetados na velocidade terrível da
produção em série. Notou que basta dar-lhes um tema, um assunto, um fato recente ou
um problema milenar, e logo terá uma pronta-resposta bem ao gosto de quem foi
instruído pelo manual do usuário. O que se agrava devido à bolha virtual, que lhes
inspira uma tomada de posição somente para diferenciar-se daqueles de quem supõem
ser adversários — e não raro lhes traz uma sensação de autoridade moral e de
resistência heróica ao mal que inventaram dentro de suas cabeças, quando na verdade
só estão pensando em bando.
No Brasil, o sujeito tem que se expressar preocupando-se já não com a precisão daquilo
que diz, mas com a mensagem subliminar que o interlocutor histérico possa atribuir ao
conteúdo.
Com efeito, em ambos os casos evidencia-se o predomínio do signo sobre o signi cante,
da forma sobre a substância, do vocabulário sobre a realidade. Seja pela imposição
sufocante da redação analítica no primeiro caso, seja pela verborragia subsequente do
segundo, que transforma o diálogo num bate-boca metalinguístico e auto-referente, em
que as mensagens viram respostas para explicar as mensagens anteriores e assim
sucessivamente, jogando para a várzea o objeto real e concreto a que se referiu o
conteúdo da mensagem original. Quem não percebe esse fenômeno recorrente,
desconhece sua capacidade de causar sofrimentos impensáveis.
A história da loso a está repleta de iniciativas que podem ter levado a esse estado de
coisas que com o avanço da tecnologia chegou ao estágio do sublime. Da
impossibilidade kantiana de conhecer a “coisa em si” devido à incapacidade humana
para apreensão intuitiva da realidade ao projeto lógico-analítico de Wittgenstein; da
descrença na existência da realidade, levada às últimas consequências pelo movimento
cético, ao dualismo racionalista de René Descartes, que dividiu a realidade entre sujeito
e objeto de uma vez para sempre; foram muitos os que, de alguma maneira,
contribuíram para a desconstrução do princípio da identidade, relegando à lógica
formal, analítica e matemática a totalidade das bases cientí cas e da atividade e
expressão losó cas. Sob essa perspectiva, tratados inteiros poderiam ser produzidos
com coesão interna cirúrgica, embora mais descolados da realidade do que as margens
de um rio que seguem eternamente paralelas.
No entanto, foi com o lósofo austríaco radicado nos EUA, Rosenstock-Huessy, que a
autoridade dos signos alcançou novo patamar. Em “A Origem da Linguagem”,
Rosenstock investigou a fundo o desenvolvimento da ordem da comunidade mediante o
desenvolvimento da ordem do discurso, desde povos ancestrais orientados pelo
discurso mito-poético e religioso, e por uma cosmovisão metafísica, à consolidação de
sociedades modernas e democráticas, de economia de mercado e organização
institucional racional. Diferentemente de seus contemporâneos mais conhecidos, como
institucional racional. Diferentemente de seus contemporâneos mais conhecidos, como
Charles Pierce e Ferdinand de Saussure, e de seus sucessores ilustres porém menos
talentosos, como Foucault, Derrida e Bourdieu, Rosenstock vai aceitar a autonomia da
linguagem sem negar-lhe a dimensão sociológica, psicológica e, principalmente,
metafísica e religiosa. Fundindo assim o estudo da linguística como objeto isolado com a
aceitação de diferentes referências teóricas para o empreendimento, e aceitando a
princípio da identidade como condição fundamental para sua realização. O que no
primeiro grupo foi negado pela primazia da lógica analítica, estruturalista, quase
matemática; e no segundo, pelo relativismo completo que, amparado pelo primeiro,
enveredou pelo aspecto sociológico, privilegiando as relações de poder, a disputa de
narrativas, o controle do imaginário e a redução de tudo à ação retórica; o império da
“construção social” no sentido pleno do termo, onde o “consenso democrático” é
resultado da conquista de corações e mentes pela ato discursivo. O que pode ser
conferido no aliás brilhante “Foucault e o Niilismo de Cátedra”, de José Guilherme
Merquior, e em “Deconstructing Pierre Bourdieu”, de Jeannine Verdes-Leroux. A
desconstrução da lógica, do racionalismo clássico, do crescente cienti cismo positivista
e empirista não era mera teoria sociolinguística, mas uma declaração de intenções.
A verdade, a identidade e a realidade já não existem, mas podem vir a ser alguma coisa
por meio da construção e divulgação de um discurso que conquiste a todos e faça-os
enxergá-las daquela maneira. E assim, ninguém negará que escravidão é liberdade, que
homens são biologicamente mulheres, que ditaduras são democracias, que vítimas são
algozes, se todos pensarem que são. Içada agora não somente a objeto autônomo, mas
também a um meio de ação independente, o discurso torna-se determinante, e não
variável; subjuga e exerce sobre a realidade sua força criadora, moldando-a conforme
os caprichos das elites falantes, embevecidas por sua presunção de poder recriar o
universo. É a histeria adquirida, a esquizofrenia voluntária, o retorno aos antigos céticos
que, na ânsia de duvidar, caminhavam em direção a rios e penhascos com a intenção de
demonstrar que estes não estavam lá. Ora, essa soma de fatores só poderia levar a
consequências inevitáveis: o indivíduo perde completamente a noção da realidade e
passa a se comportar na virtualidade das palavras sem sentido, levando uma vida
errante de incompreensão inconsciente; aculturado e instruído numa mentalidade
as xiante e incapacitante, ele só pode agir de acordo com o lhe dão para dizer.
Esvaziada a linguagem de sentido e negado o seu amparo numa realidade objetiva, não
há referencial possível para balizar os significados plausíveis dos discursos, das palavras;
e se esses podem signi car qualquer coisa, é porque já não signi cam nada. O desgaste
da palavra “fascista”, no Brasil contemporâneo, e sua redução de conceito político bem
delimitado a mero xingamento e agressão verbal é o exemplo perfeito dessa condição.
Sob esse aspecto, uma má educação, baseada em falsos pressupostos, com premissas
equivocadas, atua como um vírus, alastra-se com a naturalidade de uma epidemia e
realiza catástrofes homéricas. Recebida e assimilada voluntariamente por aqueles que
con aram suas inteligências a um falso instrutor, a má educação leva à as xia, à
paralisia e à atro a da consciência. Um estrago que espontaneamente não ocorreria
com tamanha desenvoltura, mas que sob a autoridade institucional conquista livre
acesso para dinamitar a capacidade intelectual de qualquer um. O ignorante é agora
ignorante e meio louco, um pouco desequilibrado e cheio de convicções sem nenhum
suporte na realidade. É a loucura adquirida sob o verniz bibliográ co. O delírio com
método.
É somente no ano 2000, na série “Biblioteca de Filoso a” dirigida por Olavo de Carvalho,
que Rosenstock ganha as prateleiras e estantes brasileiras pela Editora Record.
É bastante simbólico que a maior parte das seções de “A Origem da Linguagem” tenha
tido como pano de fundo os anos da Segunda Guerra Mundial, de 1941 a 1945. A
guerra, como metáfora e como objeto, está presente do início ao m das exposições do
livro. Ela é causa e consequência da linguagem, num eterno retorno que jamais se
consolida de nitivamente. O con ito escalar de indivíduos, tribos, famílias e civilizações
inteiras é a dinâmica que confere sentido à linguagem. A guerra não é a falta de diálogo,
pois a indiferença também representa uma ausência de contato; com efeito, ela
representa o diálogo por outros meios quando o con ito de visões chega a um estado
insanável, é o contato pela ação direta quando os meios diplomáticos se esgotaram.
Para que se chegue a tal estado de coisas, é necessário que o fato de as pessoas não
falarem umas com as outras tenha alcançado um ponto crítico e gerado uma explosão
de violência. Quando as pessoas não conseguem conversar entre si, o estado de guerra
ainda está latente, e seu m se dá quando o diálogo retorna à mesa de negociações. O
tratado de paz é a calmaria depois da tempestade. “Como todo nascimento, a paz tinha
de vir à luz pelo trabalho de parto chamado ‘guerra’”.
A nova ordem, portanto, irá cristalizar todo um novo universo de signi cações,
apaziguando os ânimos sob a força paci cadora do vencedor. O propósito é
restabelecer a estabilidade das relações entre grupos adversários. Ainda que sem a paz
plenamente instituída, num “estágio inicial da relação em que eles nada têm a dizer um
ao outro, razão pela qual não há valores comuns por expressar”. Ambos os lados estão
devastados ao ponto de que a linguagem quase desaparece, não há vencedores senão
no aspecto do poder, pois todos já perderam muito. “Ou um tratado ou pacto de paz
estabelece uma lei comum, nascendo então nova unidade falante que compreende os
dois exércitos”, ou a barbárie segue indefinidamente.
Partindo do seio familiar e das comunidades tribais orientadas pela religião, o lósofo
identifica três objetivos alcançados pela linguagem elevada (nominal e explícita):
Tudo o que um dia tornou-se uma convenção implícita, um pressuposto básico, teve de
passar um dia, de forma explícita, à existência. Teve de ser afirmado em alto e bom som.
Quando esse processo não ocorre, a linguagem não faz sentido algum, e toda questão
pública passar a ter dois, três lados, seja de interpretação, seja de julgamento. E não
raro todos eles podem estar certos ou errados ao mesmo tempo, considerando-se os
princípios adotados pelos interlocutores. É uma condição natural de um país sem um
senso comum, um “common ground”, um “topus” que reúna a todos em torno de um
propósito, de um ponto de partida ou centro a partir do qual seus cidadãos possam se
orientar e no qual o discurso público possa se basear. Quem não tem sensibilidade para
perceber isso, e desconhece essa condição imprescindível para vida civilizada, é parte do
problema. Segundo o autor,
“Na guerra, ambos os lados gritam desde as trincheiras palavras de propaganda, mas
em seu próprio interior são perfeitamente articulados. O problema na guerra,
portanto, é que a linguagem não deve ser verdadeira senão no interior de um espaço
limitado. Em outras palavras, na guerra sobressai o caráter regionalista da verdade.
Eu não acredito no que o inimigo diz; e, sem me importar com o que ele diga, faço a
guerra contra ele. A vitória na guerra implica não ter escutado o inimigo! Podemos
de nir a guerra, em termos de linguagem, como uma situação em que não escutamos
o inimigo porque estamos demasiado sensíveis a qualquer rumor ou murmúrio dentro
de nosso próprio grupo”.
de nosso próprio grupo”.
Como a linguagem formal consolidada pelas tribos e religiões foi a mola mestra da
ordem civilizada da comunidade, seu esvaziamento de sentido e sua desconstrução
formal serão a razão mesma do caos e do con ito, e “isso lança o homem de volta ao
estado de animalidade, do qual a religião e a tribo, com sua linguagem formal, o
tiraram”. Sujeita a todo o tipo de subversão voluntária e involuntária, a linguagem então
depende do comprometimento de seus guardiões para a sua preservação. Devido ao
desgaste da linguagem, o mau uso do vocabulário e a subversão do signi cado das
palavras, três foram os fenômenos identificados por Rosenstock-Huessy:
Além da guerra, foram identi cados outros fenômenos decorrentes dos três anteriores:
a tirania e a contra-revolução. A contra-revolução se dá quando os velhos atacam os
jovens, o ontem assassina o amanhã. O jovem grupo revolucionário berra e esperneia,
porque é desarticulado, incapaz de se fazer entender. Já os contra-revolucionários são
tão articulados e estáveis que se enrijecem e se tornam hipócritas. A doença da reação é
a hipocrisia. A lei e a ordem tornam-se chavões na boca dos que desejam a manutenção
do status quo, justamente quando as circunstâncias possibilitam o despertar de uma
nova visão de mundo. A dinâmica é a mesma, o que varia é o contexto. No caso
brasileiro, uma elite encastelada de intelectuais de gabinete, professores ativistas e
pseudopedagogos auto-intitulam-se “defensores da educação”, grupos radicais de
ativismo partidário falam em “movimentos sociais” e “sociedade civil organizada”,
pedó los falam em “respeito”, defensores de ditaduras comunistas reivindicam a defesa
da “democracia”, reclamam seus privilégios, presidiários falam em “honestidade” e assim
por diante. O termo “tolerância” simplesmente se esvazia, e o mesmo acontece com
“amor”, “igualdade” etc. O discurso sem sentido nem consistência é a causa da tirania.
Uma ordem antiga degenera, abusando da futura vida onde quer que a falação oca
tome o lugar dos gritos inarticulados da nova geração. “O equilíbrio entre o hoje e o
amanhã consiste num jogo de ações e reações entre a nominalidade articulada e o
desconhecimento inarticulado”. Dessa forma, a tirania dos antigos “conduz à
degeneração. Já não nascem crianças, não se conjectura nenhum futuro, de nham as
pequenas comunidades. Já não surgem novos empreendimentos. Secam as fontes de
vida nova”.
Quem não rastreia a origem de suas idéias, de seus pontos de vista, de suas opiniões
buscando saber os valores e as premissas que as orientam, não desenvolve a noção de
quem é e por que pensa o que pensa. É assim que muitas pessoas matam e morrem,
enlouquecem e se deprimem; estão envolvidas numa rede de regras e perspectivas que
desconhecem e não dominam, jogando um jogo que só se vence abandonado a disputa.
A Europa e os Estados Unidos foram levados ao relativismo crítico após 100 anos de
positivismo e racionalismo com excesso de rigor e rigidez intelectual e cultural. Um
movimento de contrapeso ao cienti cismo moderno — que já era um rompimento com
o pensamento clássico. O Brasil, sem ter ele próprio uma retaguarda consolidada de
tradição intelectual, o absorveu para contestar o nada; desconstruir o castelo que não
erigiu.
Limitadas cada vez mais pelo verbalismo e pela virtualidade de um mundo de palavras
que jamais desce à realidade objetiva, as pessoas foram reduzidas pouco a pouco ora
ao logicismo abstrato, ora à subjetividade radical; a matrizes teóricas da educação
brasileira instituíram a alienação voluntária como critério de pensamento.
Em “The Culture We Deserve”, Jacques Barzun foi explícito ao a rmar que esse processo
levaria a uma insurgência por parte daqueles que, em meio ao caos e a crise, buscaram
preservar a memória e a cultura. Pela simples insatisfação de terem visto tudo ruir bem
diante dos olhos, a necessidade os faria agir em prol de sanear o ambiente cultural, do
restabelecimento das normas e dos critérios elevados de expressão cultural: “nenhum
esquema dura para sempre. Surgirá uma geração cuja ‘estima pelas coisas em geral’
recuperará sua importância, cuja consciência intelectual a impulsionará na direção
oposta, para captar o mundo através de mil antenas. Pois os portadores da cultura
continuam a nascer; o desejo de cultura é inato”. No Brasil, esse tempo chegou, sem
dúvidas.
Objetos culturais como um todo não são analisáveis, domáveis e captáveis por
mentalidades matemáticas e abstratistas. Grandes obras de arte são excelentes por
serem sínteses da realidade possível, complexa e paradoxal como ela é, compactando
num todo elementos indivisíveis. Elas não são um discurso sobre alguma coisa, nem
uma charada para ser desvendada pela decodi cação de signos sem substância, mas
um exercício prolongado de re namento intelectual. É preciso, portanto, voltar a cultivá-
las como parte integrante da comunidade, aspectos vivos da realidade que, por inefável
que seja a linguagem em que é expressa, existe. Caso contrário, estarão todos
aprisionados no verso de Hamlet, em resposta a Polônio: “O que é que está lendo, meu
Príncipe?” — Palavras, palavras, palavras.
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Vagner diz:
19 de setembro de 2018 às 16:49
Excelente! Importantissimo!!
Excelente!
Excelente texto!
CARLA diz:
11 de fevereiro de 2019 às 0:07
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