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Processo criativo

no cinema
mainstream
na perspectiva
da teoria
do imaginário1

Sílvio Anaz

1. Esta investigação teve o apoio


da FAPESP e da CAPES (Processo
2015/13053-0). O autor é responsável
pelas opiniões, hipóteses, conclusões
e recomendações expressas neste artigo
e elas não refletem necessariamente
os pontos de vista da FAPESP e CAPES.
PROCESSOS DO IMAGINÁRIO

O imaginário compartilhado por um filme de sucesso é o


resultado de uma complexa combinação de elementos sim-
bólicos que emergem das imaginações de vários colabo-
radores. Afinal, ao longo do processo de criação de filmes
produzidos em grandes indústrias cinematográficas, como
Hollywood, um roteiro pode ser modificado a partir das
contribuições de diferentes profissionais, além de seus es-
critores originais, como produtores, executivos, equipes de
marketing, diretores, elencos e outros roteiristas.

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Lucia Leão PROCESSOS DO IMAGINÁRIO

A partir da análise de três títulos consagrados do cinema norte- Ross (2011, 2016) descreve os possíveis caminhos que um roteiro
-americano – Guerra nas estrelas: uma nova esperança (George Lucas, pode percorrer. O diagrama (Figura 1) mostra qual é o fluxo possível de
1977), Blade Runner (Ridley Scott, 1982) e De volta para o futuro (Robert um script ofertado aos estúdios.
Zemeckis, 1985) –, neste artigo buscam-se alguns padrões consistentes
na lógica que envolve o processo de criação na mais bem-sucedida in-
dústria cinematográfica mundial.
Este estudo faz parte do pós-doutorado desenvolvido junto à York
University (Canadá) em 2016, em diálogo com as pesquisas do Grupo de
Pesquisa Criação e Comunicação nas Mídias da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. A hipótese aqui testada é a de que a combinação de
imaginários entre os diferentes colaboradores ao longo do processo não
é fortuita ou apenas baseada na experiência ou na intuição do staff dos
grandes estúdios, mas sim orientada por padrões que objetivam aumen- Figura 1: Fluxograma do roteiro em Hollywood
Fonte: Elaborado pelo autor
tar as chances dos filmes alcançarem grandes audiências e bilheterias.
O primeiro passo para verificar essa hipótese é traçar os caminhos
que um roteiro segue e a lógica que rege os processos de criação e de to- Em geral, se um roteirista sem um histórico de sucessos escreve um
mada de decisão em Hollywood. script, um agente (ou diretor ou ator/atriz ou produtor) é responsável
por apresentar o roteiro e/ou um resumo dele aos executivos dos estú-
dios e/ou agendar uma pitch session.
Caminhos de um roteiro em Hollywood2
Como parte da lógica de produções de filmes adotada pelos grandes es- Os estúdios de cinema aceitam a submissão de um roteiro (e
romances, peças, histórias curtas e artigos) apenas por agen-
túdios, antes e depois de obter um sinal verde, um roteiro original pode
tes e produtores, e raramente de um autor não agenciado. Isto
ser modificado várias vezes com a finalidade de tornar sua narrativa
porque agentes e produtores são considerados avaliadores de
mais atrativa, independentemente de ter sido escrito por um roteirista qualidade e também uma barreira para proteger legalmente os
bem-sucedido ou um novato. estúdios. Normalmente, um agente irá apresentar um pitch de
um roteiro para um executivo do estúdio, que pediu para vê-lo.
Virtualmente todos os roteiros aceitos são enviados para o de-
2. Agradeço a Alexander G. Ross que contribuiu com seus conhecimentos e insights sobre os partamento de histórias, onde um editor designa um especia-
caminhos dos roteiros e o processo de tomada de decisão corporativa em Hollywood que foram lista para lê-lo (ROSS, 2011, p. 101, tradução nossa).
essenciais para este estudo, embora ele possa não concordar com todas as interpretações e
conclusões deste artigo.

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Lucia Leão PROCESSOS DO IMAGINÁRIO

Assim, se aprovado num primeiro estágio, o roteiro é enviado para Assim, apesar dos diferentes caminhos que um roteiro pode seguir
um leitor de scripts, que preparará um relatório com uma descrição resu- nas primeiras fases do processo – dependendo se ele foi escrito por um
mida do roteiro e uma página de comentários sobre conceito, persona- roteirista pouco conhecido ou um com histórico de sucesso –, ao final,
gens, relacionamentos, riscos, diálogos, estrutura e viabilidade comer- todo script está sujeito a ser modificado pelos colaboradores que tomam
cial (ROSS, 2011, p. 103). O roteiro e o relatório são, então, enviados aos parte nos processos de criação e de decisão corporativa.
executivos e à equipe de marketing do estúdio. Esse é um esquema comum nos principais estúdios. Segundo Ross
(2011, p. 100), “o processo criativo corporativamente orientado homo-
Atualmente, os grandes estúdios ainda empregam uma meto- geneíza o resultado criativo do estúdio com o objetivo de minimizar os
dologia antiquada e de trabalho intensivo: eles contratam leito-
riscos dos acionistas”.
res de roteiros para ajudá-los na avaliação. Normalmente, três a
É importante considerar que, em várias ocasiões, o autor original –
quatro leitores são designados para ler cada script. Após um lei-
tor ler um roteiro, ele/ela escreve uma sinopse da narrativa e faz aquele que escreve o primeiro rascunho de roteiro – não participa de
uma recomendação inicial sobre se o roteiro deve virar um filme todo o processo. É o caso, por exemplo, de Blade Runner, em que as con-
e as mudanças, se houver, que são necessárias antes de começar tribuições do roteirista David Peoples foram trazidas pelo diretor Ridley
a produção. Essas recomendações são feitas predominantemente Scott sem o conhecimento de Hampton Fancher, roteirista original3.
de forma subjetiva e baseadas na experiência. Isso significa que Outro fato comum é que uma versão final do roteiro somente é obtida
o sucesso de um filme depende da qualidade dos leitores dispo-
após o filme ter sido rodado.
níveis e da perspicácia deles em selecionar roteiros promissores
(ELIASHBERG et al, 2007, p. v, tradução nossa).
Uma versão revisada, ou reescrita, é requisitada quando o script
é comprado de associados do WGA (Writers Guild of America).
A partir dessa etapa, vários profissionais, incluindo executivos do es-
O estúdio precisa pagar o roteirista para fazer isso. O escritor ori-
túdio, produtores e diretores, podem dar sugestões para modificar o ro-
ginal é quase sempre contratado para fazer ao menos duas revi-
teiro, em geral, tentando melhorar suas chances de sucesso e aumentar sões, sendo que outro roteirista também pode ser designado para
as possibilidades de comercialização. essa tarefa. Tecnicamente, nunca há uma versão final do roteiro.
Além disso, novos roteiristas podem ser contratados. Na etapa final, Muito frequentemente, páginas são reescritas de improviso no
o roteiro pode ainda ser modificado a partir das sugestões vindas do di- set de filmagem pelo elenco (ROSS, 2016, tradução nossa).
retor e elenco. No caso dos roteiristas com um histórico de sucessos, eles
podem apresentar suas ideias ou primeiro rascunho (rough draft) dire- Com a finalidade de verificar o impacto desses esquemas padroni-
tamente para os executivos do estúdio (ROSS, 2016). No entanto, após zados de produção e processos de decisão, veremos a seguir uma com-
esse atalho inicial, seus roteiros estarão sujeitos basicamente às mesmas
etapas apresentadas no diagrama (Figura 1).
3. Disponível em:<http://uncleanarts.com/interview-hampton-fancher/>. Acesso em: 13 jul. 2016.

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Lucia Leão PROCESSOS DO IMAGINÁRIO

paração entre as primeiras versões dos roteiros e os filmes lançados no As transformações encontradas nas comparações podem revelar
cinema de três títulos: Guerra nas estrelas: uma nova esperança, Blade quais parâmetros foram adotados durante os processos criativos e de
Runner e De volta para o futuro. tomada de decisões.
Neste artigo, as análises foram feitas a partir das primeiras ver-
sões de roteiros disponíveis nos arquivos da Special Collections Library
Mapeamento das transformações:
da Universidade da Califórnia (Los Angeles, EUA), da Writers Guild
dos roteiros aos filmes Foundation Shavelson-Webb Library (Los Angeles, EUA) e da American
A metodologia adotada nesta investigação busca comparar característi- Film Institute – Louis B. Mayer Library (Los Angeles, EUA).
cas e funções dos principais personagens (e os cenários e contextos li-
gados a eles) nas primeiras versões de roteiros disponíveis e a versão do
De volta para o futuro
filme lançada originalmente nos cinemas.
A análise foca apenas nas narrativas: escrita, nos roteiros, e audiovi- De volta para o futuro é o primeiro filme da trilogia homônima. Lançado
sual, nos filmes. Assim, o processo de interpretação aqui adotado se con- em 3 de julho de 1985, foi dirigido por Robert Zemeckis e seu roteiro é
centra nos textos (escrito e audiovisual): creditado a Bob Gale e Robert Zemeckis. O filme teve um orçamento de
US$ 19 milhões e sua arrecadação global em bilheterias foi em torno de
[...] entre a intenção do autor (muito difícil de descobrir e fre- US$ 381 milhões4. A película foi um sucesso imediato e a maior bilhe-
quentemente irrelevante para a interpretação de um texto) e a
teria nos Estados Unidos em 1985. A segunda versão do roteiro (GALE,
intenção do intérprete que (para citar Richard Rorty) simples-
ZEMECKIS, 1981)5 é usada nesta análise.
mente “desbasta o texto até chegar a uma forma que sirva a seu
propósito” existe uma terceira possibilidade. Existe a intenção De volta para o futuro é sobre um adolescente (Marty McFly) que aci-
do texto (ECO, 2001, p. 29, grifo do autor). dentalmente viaja para o passado e causa danos à sua própria existência
futura. Das primeiras versões do roteiro ao filme lançado no cinema, a
Outro parâmetro é que, desde que os nomes e algumas característi- estrutura arquetípica da narrativa – isto é, a articulação das imagens ar-
cas dos principais personagens podem sofrer significativas mudanças
no decorrer do processo criativo, as análises focam nos principais perso-
4. Disponível em:<http://www.boxofficemojo.com/movies/?id=backtothefuture.htm>.
nagens presentes em diferentes versões dos roteiros. Acesso em: 13 jul. 2016.
Os resultados das comparações mostram quais são as principais ca-
5. A segunda versão do roteiro (April 7, 1981) foi consultada na Writers Guild Foundation
racterísticas dos personagens e dos arquétipos no início e ao final de Shavelson-Webb Library (Los Angeles, EUA) em junho de 2016. O conteúdo dessa versão tem
cada jornada (arco). Eles também mostram quais são os papeis e funções poucas modificações (nenhuma relevante) em relação a uma alegada primeira versão do script
(February 24, 1981). Disponível em:<http://www.scifiscripts.com/scripts/back_to_the_future_
arquetípicos de cada personagem ao longo de sua trajetória.
original_draft.html>. Acesso em: 13 jul. 2016.

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Lucia Leão PROCESSOS DO IMAGINÁRIO

quetípicas presentes e suas funções – permanece a mesma (Figura 2) e Ao fim dos processos criativos e de tomada de decisão corporativa,
revela que os principais arquétipos na história são: o Herói, o Mentor, a as funções essenciais dos principais arquétipos mantêm-se as mesmas,
Sombra, o Sonhador, a Musa e o Guardião do Limiar. conforme está sintetizado no Quadro 1:

Personagem Principal Arquétipo Funções

Salvar sua própria existência (e também de seus


Marty McFly Herói irmãos, no filme)
Mudar o destino de sua família

Inventar a tecnologia que permita a ação do Herói


Doutor Brown Mentor
Orientar o Herói

George McFly Sonhador Ser a pessoa que necessita da ajuda do Herói


Biff Tannen Sombra Ser o principal obstáculo na jornada do Herói
Instituições Guardião do Limiar Ser um obstáculo (menor) na jornada do Herói

Quadro 1: Principais arquétipos e suas funções em De volta para o futuro


Fonte: Elaborado pelo autor

A comparação entre as diferenças significativas nas características


dos principais personagens/arquétipos nos primeiros roteiros e na ver-
Figura 2: Estrutura arquetípica de De volta para o futuro
Fonte: Elaborada pelo autor são final do filme revela que os principais arquétipos (Herói, Mentor,
Sombra, Sonhador e Guardião do Limiar) mostram alguma diferença re-
levante em suas características.
Nos primeiros roteiros, o herói (Marty McFly) tem algumas caracte-
rísticas negativas, como ser um trapaceiro envolvido em pirataria de fil-
mes e drogas, como podemos ver no trecho a seguir:

EXT. OUTER SPACE


[…]that the image is on a TV monitor...as we continue PULLING
BACK, we discover a bank of video equipment, and “Close
Encounters” is being pirated, from 3/4” cassette to VHS and Beta.
INT. VIDEO WORK AREA – LABORATORY – DAY
The video pirate operating this equipment is MARTY McFLY,

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17, a good looking kid who has an air of confidence just shy of
teiro, algumas das principais fontes de problema e obstáculos para o
cockiness.
protagonista (Marty McFly) e o Mentor (Dr. Brown) são a Comissão
[…] With the movie over, Marty shuts down the equipment,
ejects the cassettes, and writes on them, “Close Encounters,
Reguladora Nuclear (NRC, na sigla em inglês) do governo norte-ameri-
Original Edition.” cano e o exército daquele país. Na versão lançada do filme, no entanto,
He puts the master tape back in a drawer, and we catch a glimpse essas organizações não aparecem.
of a few other titles---“Empire Strikes Back,” “Stir Crazy,” Há, na verdade, a substituição do “inimigo interno” por um ex-
“Superman II.” (Gale and Zemeckis, 1981) terno. Em vez do Herói e Mentor serem ameaçados por agentes fede-
EXT. HIGH SCHOOL – DAY rais da NRC, terroristas líbios tornam-se seus perseguidores6.
[…] Marty is among a group of kids, surreptitiously exchanging vi- Outra mudança é que no lugar de usar a explosão de uma bomba
deo tapes for cash. […] Next to Marty is his friend DONALDSON. atômica como combustível para sua viagem de volta para o futuro –
DONALDSON em um teste no deserto conduzido pelo exército americano, conforme
Hey man, what happened to your digital quartz? está nos primeiros roteiros –, na versão final do filme, os protagonis-
MARTY tas usam energia fornecida por um relâmpago.
In the shop. So I’m sporting this antique. Check out this wind- Há, ainda, mais um elo com o governo que consta dos primeiros ro-
-up action. teiros e é eliminado. O principal antagonista (Biff Tannen) que aparece
Marty shows him a gold wind-up wrist watch. Marty stuffs a wad como um oficial da polícia nos primeiros roteiros tem sua profissão al-
of cash in his pocket as he and Donaldson descend the steps. terada no filme para a de um supervisor corporativo.
DONALDSON Por fim, é possível verificar a trajetória de George McFly (Sonhador,
Hey, you wanna come over? Get high? pai do Herói) de perdedor a vencedor: na versão final do filme, sua pro-
MARTY fissão é de escritor de ficção científica, enquanto nos primeiros rotei-
Maybe tomorrow. I gotta dupe some more tapes. ros era de um lutador de luta livre. Ou seja, a ocupação do personagem
(GALE, ZEMECKIS, 1981) no filme é alterada e se torna mais sofisticada intelectualmente que
nos primeiros roteiros.
No entanto, na versão final do filme, esses traços negativos são eli-
minados e o herói é caracterizado como um adolescente bem-compor-
tado e romântico. Esta característica é reforçada pela canção-tema do
protagonista: The power of love (Huey Lewis & The News, 1985). Há
também modificações que buscam eliminar qualquer menção ou liga- 6. O uso dos líbios como inimigos dos protagonistas pode estar relacionado ao fato de que,
desde o início dos anos 1980, o então líder líbio Muammar Gaddafi ser um declarado inimigo
ção negativa com as instituições norte-americanas (que preenchem
do governo norte-americano, acusado de promover atos terroristas contra os Estados Unidos
o arquétipo do Guardião do Limiar). Nas primeiras versões do ro- e seus aliados.

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O Quadro 2 sintetiza essas diferenças: Blade Runner


Blade Runner é baseado no romance Androides sonham com ovelhas elétri-
Personagem Primeiras versões do roteiro Filme
cas?, de Philip K. Dick. No entanto, desde a primeira versão, o roteiro de-
Trapaceiro Bem-comportado e romântico senvolve alguns temas e pontos de vista diferentes daqueles do romance.
Marty McFly
Filho único Tem irmãos Por exemplo, enquanto a narrativa original explora temas como guerra,
Perseguido pelo governo (EUA) Perseguido por terroristas (Líbios) meio ambiente, extinção animal, tecnologia e religião em um mundo
Doutor Brown Viagem no tempo: através de raio e Viagem no tempo: através de um carro pós-apocalíptico, o filme foca principalmente em relacionamento, tecno-
explosão de bomba atômica e energia de relâmpago
logia e mortalidade, sem nenhuma menção sobre um holocausto.
Escritor de ficção científica Lançado em 25 de junho de 1982, o filme foi dirigido por Ridley Scott
George McFly Lutador (luta livre)
Voyeur
e seu roteiro está creditado a Hamptom Fancher e David Peoples. O or-
Oficial de polícia Supervisor
Biff Tannen çamento de produção foi estimado em US$ 28 milhões7. Em sua carreira
Guarda de segurança Auxiliar serviços gerais
mundial, o faturamento em bilheterias somou US$ 33 milhões8, sendo
Quadro 2: Diferenças entre as características dos personagens em De volta para o futuro considerado inicialmente um fracasso:
Fonte: Elaborado pelo autor

Apesar das modificações manterem os principais arquétipos e suas Com uma perda de US$ 12 milhões, Blade Runner foi considerado
um desastre de bilheteria, devido em parte a sua recepção mista
funções na narrativa, elas impactam no imaginário construído pelo
por críticos e audiência, e o fato de que os produtores terem sido
filme. O que se observa, em geral, é que os traços e conotações nega-
malsucedidos em obter uma classificação etária [PG rating] que
tivos são eliminados durante os processos de criação e tomada de de- pudesse atrair uma maior audiência jovem com produtos deriva-
cisão. Há um movimento de purificação de alguns elementos: o prota- dos da narrativa (KOLB, 1997, p. 132, tradução nossa).
gonista (Herói) deixa de ser trapaceiro e torna-se um bem-comportado
e romântico adolescente; as ligações entre as instituições do governo Embora não tenha sido um sucesso de bilheteria, Blade Runner tor-
dos Estados Unidos (NRC, exército, polícia) e ações e aspectos negativos nou-se um título aclamado por críticos e atualmente é considerado
(perseguição ao Mentor, explosão atômica, empregador da Sombra) são um filme cult: “Em 1997, uma pesquisa nos cursos que estudam ficção
eliminados. Há também um movimento de elevação quando o persona- científica nas universidades norte-americanas revelou que Blade Runner
gem George McFly (Sonhador) finaliza sua jornada como um escritor de foi um dos filmes mais indicados (KUHN, 1999, p. 1, tradução nossa).
ficção científica em vez de um lutador de rua.
Assim, é possível afirmar que em De volta para o futuro parte dos pro-
cessos de criação e de tomada de decisão buscou purificar e elevar algu- 7. Disponível em:<http://www.imdb.com/title/tt0083658/>. Acesso em: 13 jul. 2016.
mas características essenciais dos principais personagens.
8. Disponível em:<http://www.boxofficemojo.com/movies/?id=bladerunner.htm>.
Acesso em: 13 jul. 2016.

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A película é sobre um cínico e desencantado detetive que é coagido a Como acontece em De volta para o futuro, ao final dos processos de
caçar vários androides perigosos e ardilosos em uma Los Angeles futu- criação e tomada de decisão corporativa, as funções essenciais dos prin-
rista e que acaba percebendo-se confuso e desumanizado no processo. cipais arquétipos mantêm-se as mesmas em Blade Runner, como está
A primeira versão do roteiro (FANCHER, 1980) e a sua versão revisada sintetizado no Quadro 3:
(FANCHER, PEOPLES, 1981)9 são usadas nesta análise.
Dos roteiros iniciais à versão do filme lançada nos cinemas comer- Personagem Principal arquétipo Funções
ciais, a estrutura arquetípica da narrativa permanece inalterada (Figura Matar os androides rebeldes (replicantes)
Rick Deckard Herói
3) e revela que os principais arquétipos na história são: o Herói, a Salvar a Musa
Sombra e a Musa. Rachel Musa Ser aliada e inspiração para o Herói

Eldon Tyrrel Sombra (Criador) Criar tecnologias que tornam-se ameaçadoras

Prolongar sua vida


Roy Batty Sombra (Criatura)
Vingar-se do Criador

Quadro 3: Arquétipos e suas funções em Blade Runner


Fonte: Elaborado pelo autor

Embora o protagonista Rick Deckard seja menos apaixonado no


filme do que nas primeiras versões do roteiro, ele torna-se um protetor
da Musa. Assim, Rachel termina o filme viva, enquanto nas primeiras
versões do roteiro ela era assassinada por Deckard ao final:

EXT. WOODS (MONTAGE) – DAY 123


Deckard and Rachael walking. The land lays white and hushed
Figura 3: Estrutura arquetípica de Blade Runner before them.
Fonte: Elaborada pelo autor
[…] Rachael stops and faces him. Her lips are parted, her warm
breath turning the cold air to vapor. Looking lithe and fragile
by these barren-rooted trees, she stands in the crisp white snow
looking at Deckard. Nothing in her retreats, even now her eyes
insist on knowing.
EXT. WOODS – DAY 124
9. O primeiro roteiro (July 24, 1980) foi consultado na Writers Guild Foundation Shavelson-Webb
Library e a versão revisada dele (February 23, 1981) foi consultada na American Film Institute – Deckard walking over the snow. Alone. He walks slowly, mecha-
Louis B. Mayer Library (Los Angeles, USA). Ambos em junho de 2016.

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nically through the cold, unaffected by it. His gaunt face, empty
O Quadro 4 sintetiza essas diferenças:
of expression except for the tears running down his pale cheeks.
[…] Personagem Primeiras versões do roteiro Filme (versão lançada no cinema)
INT. CAR – NIGHT 126
Oficial na ativa (blade runner) Oficial aposentado
Deckard is behind the wheel, face in shadow, eyes staring strai- Rick Deckard Mais apaixonado Menos apaixonado
ght ahead. Assassino da Musa Protetor da Musa
DECKARD (V.O.) Aceita a condição de androide Não aceita a condição de androide
I told myself over and over again, if I hadn’t done it, they would Rachel Passiva Ativa
Morta ao final Viva ao final
have. I didn’t go back to the city, not that city, I didn’t want the job.
She said the great advantage of being alive was to have a choice. Eldon Tyrrel Tem uma família Solitário

And she chose. And a part of me was almost glad. Not because she Roy Batty Assassino cruel Misericordioso em alguns momentos

was gone but because this way they could never touch her. Quadro 4: Diferenças entre as características dos personagens em Blade Runner
(FANCHER, 1980) Fonte: Elaborado pelo autor

Mesmo com a justificativa de que Deckard mata Rachel apara evitar Tais modificações impactam no imaginário que emerge do filme, al-
que outro blade runner o faça – ele teria a assassinado por misericórdia, terando (quando comparado às primeiras versões do roteiro) algumas
nessa perspectiva –, o resultado é que isso indica uma das significativas características dos principais arquétipos. Em geral, predomina uma mi-
mudanças que ocorrem entre o roteiro inicial e o filme. tigação de alguns traços, ações e consequências duras ligadas a esses ar-
Outra é que o principal antagonista – Roy Batty, o líder dos androi- quétipos. Há um processo de atenuação de algumas características ar-
des (replicantes) rebelados – salva a vida de Deckard no filme, enquanto quetípicas: o protagonista Rick Deckard (o Herói) deixa de ser um oficial
nas primeiras versões do roteiro ele não demonstra nenhum momento na ativa, apaixonado e assassino nas primeiras versões do roteiro para
de misericórdia. ser um oficial aposentado, menos apaixonado e protetor da Musa na pri-
Por fim, o cientista e empresário Eldon Tyrrel tem uma família nas meira versão do filme lançada comercialmente; o principal antagonista
primeiras versões do roteiro, e ele e seus familiares são assassinados por (Roy Batty) vai de um assassino cruel nos primeiros roteiros a um assas-
Roy Batty, em uma sequência sanguinária. No filme, Tyrrel é caracteri- sino com momentos de misericórdia no filme; e a Musa que acaba assas-
zado como um homem solitário, não tendo nenhum familiar assassi- sinada pelo Herói nas primeiras versões do roteiro termina a narrativa
nado por Batty. viva na versão cinematográfica.
Assim, é possível observar que em Blade Runner parte dos processos
de criação e decisão corporativa foi predominantemente orientada por
modificações que buscaram atenuar ou mitigar algumas características
essenciais dos principais arquétipos.

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Guerra nas estrelas: uma nova esperança


Guerra nas estrelas: uma nova esperança, lançado em 25 de maio de 1977,
escrito e dirigido por George Lucas, teve um orçamento de US$ 11 milhões
e sua arrecadação mundial nas bilheterias atingiu US$ 776 milhões10.
O filme é sobre um ingênuo garoto fazendeiro de um planeta dis-
tante que descobre poderes que nunca pensou ter quando se junta a um
velho guerreiro dotado de poderes sobre-humanos, um contrabandista
petulante e um grupo de rebeldes para salvar uma princesa e a galáxia
de um império do mal.
A primeira (LUCAS, 1974) e a segunda (LUCAS, 1975) versões do ro-
teiro11 são usadas nesta análise. Do primeiro script ao filme, Guerra nas
estrelas: uma nova esperança recebeu modificações muito mais significa-
tivas que aquelas ocorridas em De volta para o futuro e Blade Runner. Há Figura 4: Estrutura arquetípica de Guerra nas estrelas: uma nova esperança.
várias transformações nos personagens com muitas trocas de nomes e Fonte: Elaborada pelo autor

funções, o que torna as comparações mais complicadas de seguir. Por


exemplo, Luke Skywalker é um general e mestre Jedi e preenche o ar- Novamente, como acontece em De volta para o futuro e Blade Runner,
quétipo do Mentor na primeira versão do roteiro, enquanto no filme é o ao final dos processos de criação e de tomada de decisão, as funções es-
nome do Herói principal, que é apenas um aprendiz de Jedi. senciais dos principais arquétipos permanecem as mesmas em Guerra
Mas mesmo com mudanças significativas do primeiro roteiro ao nas estrelas: uma nova esperança, conforme está sintetizado no Quadro 5:
filme, a estrutura arquetípica da narrativa (Figura 4) mantém-se a
Personagem Principais arquétipos Funções
mesma e revela que os principais arquétipos na história são: o Herói, a
Sombra, o Mentor, o Aliado e a Musa. Luke Skywalker/ Destruir as forças do mal
Herói
Annikin Starkiller Salvar a Musa (princesa)

Obi-Wan Kenobi/
Mentor Orientar e preparar o Herói
Gen. Luke Skywalker
Escapar das forças do mal
Princesa Leia Musa
Retomar o poder
Darth Vader Sombra Liderar as forças do mal
10. Disponível em:<http://www.boxofficemojo.com/movies/?id=starwars4.htm>. Acesso em: 14 jul. 2016.
Han Solo Aliado Ajudar o Herói
11. A primeira versão do roteiro (May, 1974) foi consultada na American Film Institute – Louis B.
Mayer Library (Los Angeles, EUA) e a segunda versão (January 28, 1975) foi consultada na Writers Quadro 5: Arquétipos e suas funções em Guerra nas estrelas: uma nova esperança
Guild Foundation Shavelson-Webb Library. Ambas em junho de 2016. Fonte: Elaborado pelo autor

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É importante observar que um arquétipo essencial das primeiras ver- O Quadro 6 sintetiza essas diferenças:
sões do roteiro está ausente do filme: o personagem Príncipe Valorum,
o Cavaleiro Negro dos Sith, age como um traidor e torna-se herói ao Personagem Primeiras versões do roteiro Filme

ajudar os rebeldes (Luke, Annikin, Leia, Han) a derrotar o Império. No Luke Skywalker/ Guerreiro Jovem fazendeiro
filme, no entanto, não há nenhum personagem com esse papel. Annikin Starkiller Pai vivo e presente Órfão

Outra mudança relevante em relação aos primeiros roteiros é que Obi-Wan Kenobi/ General Jedi/Líder dos rebeldes Conselheiro Jedi
Gen. Luke Skywalker Vivo ao final Morto ao final
o Herói (Luke Skywalker) é caracterizado como alguém ingênuo e to-
Pais vivos e presentes Órfã
talmente despreparado no filme. Já nas primeiras versões do roteiro, o
Princess Leia Dois irmãos conhecidos Sem irmãos conhecidos
principal Herói é introduzido como um guerreiro em treinamento: Rainha (ao final) Senadora (ao final))

General do Império Mestre Sith


2. WASTELAND – FOURTH MOON – UTAPAU Darth Vader
Humano Ciborgue
A harsh gale blows across the bleak grey surface of the Fourth Han Solo Alienígena Humano
Moon. The leaden sky presses down on a lone figure, ANNIKIN
Quadro 6: Diferenças entre as características dos personagens em Guerra nas estrelas:
STARKILLER, a tall, heavy-set boy of eighteen. He slowly makes
uma nova esperança
his way across the canyon floor. The heavy winds whip at him and Fonte: Elaborado pelo autor
make the going extremely difficult. His face is covered by a breath
mask and goggles. He stops for a second to adjust the shoulder Em geral, há um processo de dotar alguns personagens de caracterís-
strap on his chrome multiplelaser rifle. Something in the sky ca- ticas mais frágeis e outros de características mais fortes, intensificando
tches his eye, and he instictively grabs a pair of electrobinoculars as diferenças entre os traços dos arquétipos ligados com o bem e aque-
from his belt. He stands transfixed for a few moments, studying
les ligados com o mal. As modificações desde as primeiras versões do
the heavens, then turns and rushes back in the direction from
roteiro até o filme mostram que há um processo de debilitação de algu-
which he came (LUCAS, 1974).
mas características do Herói e daqueles em seu entorno (Mentor, Musa
No filme: a Musa (Princesa Leia) é também mais solitária e vulne- e Aliado) e um empoderamento de algumas características do principal
rável; o principal Aliado (Han Solo) deixa de ser um alienígena e é ca- antagonista (Darth Vader / Sombra).
racterizado como um humano; o Mentor (Obi-Wan Kenobi) é mais um Assim, em Guerra nas estrelas: uma nova esperança, parte dos pro-
pacifista do que um guerreiro e ao final da história morre após sacrificar- cessos de criação e de tomada de decisão é predominantemente guiada
-se em benefício do Herói; e a Sombra (Darth Vader) é caracterizado de por modificações que buscam exacerbar as oposições entre os princi-
forma mais poderosa após obter a condição de mestre Sith e de se tor- pais arquétipos.
nar um ciborgue.

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O papel do imaginário nos processos de criação morte e o tempo e são, segundo o modelo de Yves Durand (1987), regi-
e de tomada de decisão das pela lógica do combate, separação, purificação e exacerbação das di-
Quando a primeira versão do roteiro ou sinopse (ou tratamento) in- ficuldades existenciais;
gressa nos processos de criação e de tomada de decisão corporativa em
Hollywood, ele traz consigo um imaginário que é compartilhado com to- Regime Noturno
dos os profissionais envolvidos. Relacionado a dois grupos de estruturas e esquemas: a estrutura mística
Neste caso, o imaginário é, a partir do conceito desenvolvido por e o esquema da queda e acocoramento, conectados ao gesto digestivo,
Gilbert Durand (2002), um grupo de elementos simbólicos (arquétipos, que buscam atenuar a morte e o tempo, regidos pela lógica do equilíbrio,
estereótipos, símbolos, imagens e mitos) mentalizados, articulados e harmonia, repouso e atenuação das dificuldades existenciais (DURAND,
materializados na forma da narrativa. Na perspectiva durandiana, tal 1987); e a estrutura sintética (ou dramática) e o esquema cíclico, conec-
grupo de elementos simbólicos é produzido por atitudes imaginativas tados ao gesto copulativo, regidos pela integração diacrônica das lógicas
que lidam com angústias essenciais causadas pela consciência da morta- heroica e mística (DURAND, 1987).
lidade e da percepção do tempo que passa. Para lidar com isso, a imagi- A Figura 5 representa o trajeto antropológico proposto por Durand:
nação humana busca derrotar ou eufemizar a morte e o tempo. Assim, o
imaginário tem a função de prover um equilíbrio biológico, psicológico
e social para o homo sapiens.
Para Durand (2002), o imaginário é o resultado de atitudes imagi-
nativas que emergem ao longo de um percurso antropológico. Baseado
principalmente nas imagens poéticas de Bachelard, no conceito de ar-
quétipo, de Carl Gustav Jung, e nos estudos sobre os reflexos ou gestos
inatos e dominantes do ser humano (postural, digestivo e copulativo),
desenvolvidos pela escola de psicologia objetiva russa, Durand define o
percurso antropológico como as conexões entre as estruturas biopsico-
Figura 5: Trajeto antropológico .
lógicas do ser humano e os mundos natural e cultural. Ele classifica as Fonte: ANAZ, 2016, p. 14
estruturas e esquemas que compõem o trajeto antropológico em dois re-
gimes de imagens: O pitch, sinopse ou primeira versão da narrativa, apresentado no co-
meço do caminho que um roteiro percorre em Hollywood, traz as carac-
Regime Diurno terísticas que expressam um imaginário, com suas estruturas, esquemas
Representa as estruturas heroicas e esquemas de ascensão e separa- e elementos simbólicos. E as imagens arquetípicas são a materialização
ção (conectadas ao gesto postural) – essas estruturas buscam derrotar a desses esquemas e estruturas, pois, como aparece no diagrama do tra-

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sonho simbolizam, da mesma maneira geral, a dinâmica da psi-


jeto antropológico (Figura 5), os arquétipos surgem no encontro entre
que. Mas, nos sonhos, as formas são distorcidas pelos problemas
as estruturas internas humanas (biológicas e psicológicas) com o mundo particulares do sonhador, ao passo que, nos mitos, os problemas
externo (cultural e natural). e soluções apresentados são válidos diretamente para toda a hu-
As análises de De volta para o futuro, Blade Runner e Guerra nas estre- manidade (CAMPBELL, 2004, p. 17-18).
las: uma nova esperança mostram que os principais arquétipos e suas fun-
ções são os mesmos no começo (primeiras versões dos roteiros) e no fi- Baseado nos conceitos de Jung e nas investigações de Campbell,
nal (filme lançado nos cinemas) dos processos de criação e de tomada de Vogler mostra a importância dos arquétipos nos roteiros:
decisão corporativa em Hollywood.
Essa constatação pode ser uma evidência de que a narrativa apre- O conceito de arquétipo é uma ferramenta indispensável para en-
tender o objetivo ou a função dos personagens em uma história.
sentada inicialmente impõe um imaginário ao longo de todo o processo.
A compreensão do arquétipo que um personagem específico ex-
Essa imposição significa que todos os colaboradores – independente de
pressa pode ajudar a determinar se o personagem está fazendo sua
suas posições e objetivos (executivos, equipe de marketing, roteiristas) parte a contento na história. Os arquétipos são parte da linguagem
– fazem sugestões alinhadas com a estrutura arquetípica estabelecida universal da narrativa, e um domínio de sua energia é tão essencial
nas primeiras versões do roteiro. Parece haver uma adesão de todos os para o escritor como respirar (VOGLER, 1998, p. 25).
colaboradores ao imaginário proposto pelo escritor original e todas as
mudanças feitas têm esse imaginário como parâmetro. Pelo menos, foi Nesta investigação, a contribuição de Durand possibilita enten-
o que se observou nos três títulos analisados. der a origem dos arquétipos e qual perspectiva (diurna ou noturna)
A força dos arquétipos (e de suas funções específicas nas estruturas guia predominantemente o imaginário nos processos criativo e de
narrativas) é apontada em diferentes estudos. Em sua investigação so- tomada de decisão.
bre a jornada do herói, Campbell (2004, p. 17) afirma que “um arqué- Além da continuidade da estrutura arquetípica estabelecida pelas
tipo é uma representação do Irrepresentável” e que o grande desafio primeiras versões do roteiro ao longo dos processos, outro padrão ob-
é justamente descobrir que imagens arquetípicas estão presentes em servado nas análises é que as modificações feitas em algumas das ca-
uma narrativa (ou mito): racterísticas dos personagens foram predominantemente na mesma di-
reção e alinhadas com o mesmo regime de imagem predominante nos
Os arquétipos a serem descobertos e assimilados são aqueles que primeiros scripts de cada filme.
inspiraram, nos anais da cultura humana, as imagens básicas do
As modificações que buscam tornar os personagens mais purifica-
ritual, das mitologias e das visões. Esses “seres eternos do so-
dos e elevados em De volta para o futuro (Tabela 2) estão associadas ao
nho” não devem ser confundidos com figuras simbólicas, modifi-
cadas individualmente, que surgem num pesadelo ou na insani- Regime Diurno (estruturas heroicas), com sua atmosfera de purifica-
dade mental do indivíduo ainda atormentado. O sonho é o mito ção e ascensão.
personalizado e o mito é o sonho despersonalizado; o mito e o

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Em Blade Runner, um processo de atenuação de algumas característi- De volta para o futuro é também uma narrativa predominantemente
cas dos personagens predominantemente guia as mudanças (Tabela 4) diurna na primeira versão do roteiro. As lógicas de combate e ascensão
– processo esse que está associado ao Regime Noturno e suas estruturas orientam a narrativa. As mudanças nas características dos principais ar-
místicas, regido pela lógica da harmonia, equilíbrio, repouso e atenua- quétipos ao longo dos processos criativos e de decisão corporativa ape-
ção das dificuldades existenciais. nas intensificam essas características diurnas.
Por fim, em Guerra nas estrelas: uma nova esperança, as modificações As primeiras versões do roteiro de Blade Runner trazem predomi-
são o resultado de processos opostos de debilitação e empoderamento nantemente uma integração da atmosfera mística (Regime Noturno)
(Tabela 6) com o objetivo de intensificar a separação entre os persona- e ações heroicas (Regime Diurno). O Herói (Rick Deckard) tem carac-
gens ligados ao bem e aqueles ligados ao mal. Essa ênfase na oposição e terísticas beligerantes (diurnas) exacerbadas, enquanto no arquétipo
conflito está ligada ao Regime Diurno, com suas lógicas de combate, se- da Musa predominam os traços de equilíbrio e aceitação (noturnos). A
paração, purificação e exacerbação das dificuldades existenciais. mesma mistura ocorre com os personagens nos quais predominam o
É interessante observar que o regime predominante nas mudanças arquétipo da Sombra: Roy Batty, o mais importante antagonista, e Dr.
ao longo do processo coincide com o regime predominante no roteiro Eldon Tyrrel, o cientista/empreendedor, que representam a trágica rela-
inicial. Desde a primeira versão da narrativa, Guerra nas estrelas: uma ção entre criador e criatura. Desde o primeiro script, os conflitos inter-
nova esperança é predominantemente uma narrativa diurna. Mesmo nos (psicológicos) nos principais personagens têm um papel tão impor-
em toda a saga original de George Lucas (Episódios I ao VI), ainda que tante como os conflitos externos entre eles, o que faz de Blade Runner
haja um crescimento na presença e importância dos elementos simbó- uma narrativa na qual predominam as estruturas sintéticas, pertencen-
licos conectados ao Regime Noturno, a narrativa é toda predominan- tes ao Regime Noturno.
temente diurna: Os achados obtidos a partir das análises desses três filmes trazem
evidências de que o imaginário inicialmente estabelecido pelo autor nas
Baseado na classificação de imagens de Durand, não há dúvida de primeiras versões do roteiro impõe, pelo menos, dois parâmetros ao
que a narrativa [Guerra nas estrelas] é predominantemente diurna,
longo dos processos de criação e de tomada de decisão corporativa:
com uma dualística disputa entre o bem e o mal, produto de estru-
• a estrutura arquetípica estabelecida inicialmente mantém-se a
turas psicológicas que orientam as atitudes imaginativas da idealiza-
ção, autismo, divisão, separação e antítese – um desejo de derrotar mesma ao longo dos processos; e
a morte e o tempo através de uma jornada beligerante e heroica. No • as modificações feitas em algumas características dos persona-
entanto, essa atmosfera diurna é permeada por potentes elemen- gens são predominantemente na mesma direção, e essa direção
tos associados ao Regime Noturno, como a representação de uma está alinhada com o mesmo regime de imagens que é predomi-
energia mágica presente no universo (”a Força”) e as imagens da nante nas primeiras versões dos roteiros de cada filme.
mulher ou esposa, derivadas dos arquétipos substantivos do mago
(“Trapaceiro”) e da mãe, respectivamente (ANAZ, 2016, p. 17).

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Considerações finais Referências


Os achados deste estudo trazem índices de alguns padrões no processo ANAZ, Sílvio. The archetypal images in the scientific and technological
criativo dos filmes mainstream produzidos nos grandes estúdios. Mas, é imaginary. The International Journal of the Image, v. 7, n. 3, p. 13-
23, 2016.
preciso expandir a amostragem analisada, uma vez que mais de 700 fil-
mes de ficção são produzidos anualmente apenas em Hollywood. CAMPBELL, Joseph. The hero with a thousand faces. New Jersey: Princeton
No entanto, os resultados fornecem uma hipótese inicial sobre o pa- University Press, 2004.
pel do imaginário nos processos de criação e de tomada de decisão corpo- DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução
rativa. Se o imaginário que emerge de um roteiro opera como “cimento à arquetipologia geral. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
social” ao estabelecer laços nos microgrupos sociais (MAFFESOLI, DURAND, Gilbert . Passo a passo da mitocrítica / Mytho Criticism’s Step by
2010), isso pode significar que todos os participantes nos processos de Step. Revista Ao pé da letra, v. 14, n. 2, p. 129-147, 2012.
produção de um filme aderem a um imaginário específico e suas contri- DURAND, Yves. A formulação experimental do imaginário e seus modelos.
buições estarão alinhadas aos principais elementos simbólicos que com- Revista Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, v. 13, n. 2,
põem esse imaginário. p. 133-154, 1987.
Com isso em mente, um ponto que pode ser analisado é se esse fe- ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins
nômeno encontrado ao longo dos processos de criação e de tomada de Fontes, 2001.
decisão é do mesmo tipo da aderência das audiências ao imaginário dos ELIASHBERG, Jehoshua; HUI, Sam; ZHANG, John. From storyline to box
filmes, que contribuem para estabelecer o sucesso deles. office: a new approach for green-lighting movie scripts. Management
Assim, os achados que surgiram nesta investigação parecem abrir al- Science, v. 53, n. 6, p. iv–vii, 2007.
gumas perspectivas promissoras para estudar como o imaginário pode FANCHER, Hampton. Blade Runner - first draft (1980). Roteiro. Los Angeles:
operar ao longo dos processos de criação e de tomada de decisão corpo- Writers Guild Foundation Shavelson-Webb Library.
rativa na indústria cinematográfica, que podem guiar futuras pesquisas.
FANCHER, Hampton; PEOPLES, David. Blade Runner - revised first draft
Por fim, é preciso destacar também que o método desenvolvido nesta (1981). Roteiro. Los Angeles: American Film Institute – Louis B. Mayer Library.
investigação – de analisar as transformações em várias versões de um
GALE, Bob; ZEMECKIS, Robert. Back to the future – first draft (1981).
roteiro e a comparação dessas versões com o filme lançado nos cinemas
Roteiro, Disponível em:<http://www.scifiscripts.com/scripts/back_to_the_
– indica um caminho produtivo para o estudo dos processos criativos na future_original_draft.html GALE>. Acesso em: 13 jul. 2016.
indústria cinematográfica.
GALE, Bob; ZEMECKIS, Robert . Back to the future – second draft (1981).
Roteiro. Los Angeles: Writers Guild Foundation Shavelson-Webb Library.

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VOGLER, Christopher. The writer’s journey: mythic structures for writers.
Los Angeles: Michael Wiese Productions, 1998.

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