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carlos emanuel sautchuk
Copyright © 2017 dos autores
Bibliografia
ISBN Impresso: 978-85-87942-55-5
ISBN Ebook PDF: 978-85-87942-52-4.
Parte III
Máquinas: gesto e objeto técnico
1 Artigo originalmente publicado em língua inglesa sob o título “The return of what never left: ani-
mals present in future natures (Vibrant, 14, n. 2 – 05/08/2017).
2 Órgão público responsável pela conservação da natureza e biodiversidade e de autoridade florestal
portuguesa.
3 O termo “renaturalização” vem sendo utilizado entre biólogos da conservação para designar um
processo deliberado de reintrodução de espécies animais e vegetais com o objetivo de recuperar
determinado ecossistema degradado. A expressão rewilding tem tido diversas traduções de acordo
com as regiões em que se aplica, tais como “assilvestramento”, “refaunação”, “ensauvagement”.
Utilizo aqui o termo “renaturalização” como me foi apresentado em campo de acordo com meus
interlocutores.
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4 A Guarda é uma das principais cidades situadas na região da Beira Interior Norte de Portugal.
5 Onde se vende de tudo um pouco, desde utensílios domésticos até artigos de papelaria e vestuário.
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[...] Ele limita-se a ficar ali, vigilante mesmo que deitado, mirando a dúzia de
vacas que subiu o monte com ele e que mais logo o descerá: a sua família. Pelo
menos a única que o Mondego conheceu; da sua verdadeira origem, dos seus
irmãos de ninhada, já memória alguma sobra. Ele encontrou ali, na vastidão em
que a manada vagueia e pasta, o seu lar, a sua liberdade e também a sua missão.
Certo, certo, é que esta história aconteceu mesmo, algures nos nossos campos.
E se foi um Castro Laboreiro, um Serra da Estrela7 ou outro o herói, isso pouco
interessa. Pois esta é a vida dos muitos cães de gado que todos os dias saem com as
“suas” vacas, cabras ou ovelhas, arriscando a vida em face do lobo – mas também
do bicho homem, sempre mal-agradecido, com as suas armadilhas, os seus carros
e os seus venenos (Terras da Beira, 24/08/2014).
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A pesquisa que venho desenvolvendo desde 2014 tem como objetivo central
acompanhar as dinâmicas de implementação e as práticas dos diversos atores
envolvidos em um novo tipo de reserva natural adaptada às condições dispos-
tas na Europa para a reconstrução e a conservação de seu meio ambiente. Tan-
to o estabelecimento das diretrizes “rewilding” quanto a sua materialização
como parques naturais são registros recentes na história da biologia da con-
servação, não excedendo uma década de existência. Desta forma, verificou-se
que uma das peculiaridades deste tipo de programa de renaturalização é o seu
engajamento inextricável com a proposição de atividades humanas pautadas
em uma ideia de desenvolvimento econômico sustentável. Na medida em que
se contrapõem ao argumento da preservação de um “estado de natureza origi-
nária”, os ambientalistas filiados à vertente da renaturalização sustentam que
- assim como costumamos associar a noção de produção à cultura - a natureza
também deveria e poderia ser (re)composta através de processos tidos como
artificiais. Disto deduz-se que uma ampla gama de possibilidades de interação
entre espécies (humanas e não humanas) se oferece ao abdicar-se da evocação
à crença em uma natureza desantropizada.
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8 Reserva privada de conservação da natureza, com cerca de 850 hectares, localizada entre os con-
celhos de Pinhel e Figueira de Castelo Rodrigo (Portugal). Foi criada em 2003 e atualmente é admin-
istrada pela Associação Transumância e Natureza. Em 2011 passou a fazer parte da rede Rewilding
Europe, sendo uma das áreas-modelo de renaturalização na Europa.
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Cunhado originalmente nos Estados Unidos nos anos 2000, o termo rewil-
ding9 relacionava-se à ideia de fomentar a elaboração de um modelo alter-
nativo de reservas para conservação da vida selvagem na América do Norte.
Conhecida também como Rewilding to Pleistocene, esta proposta – postu-
lada por um grupo de renomados especialistas em ecologia da conservação
– pretendia estipular bases concretas para a reintrodução de espécies animais
(sobretudo de herbívoros representantes da megafauna e de grandes predado-
res) em áreas que no tempo presente se encontravam despovoadas. Na medi-
da em que evocavam um tempo pretérito, a referência ao Pleistoceno seria
uma alusão às condições do meio ambiente existentes no início do período
de ocupação e expansão humana sobre o planeta. Embora reconhecessem a
dificuldade de “trazer de volta à vida” espécies animais já extintas há milênios,
os mentores deste tipo de “renaturalização” expuseram em dois artigos de
grande repercussão nos círculos acadêmicos e ambientalistas o que conside-
ravam ser as bases concretas para a recuperação de ecossistemas degradados.
O primeiro de seus princípios ponderava que o ser humano possui a auto-
ridade moral – e mesmo o dever ético – de intervir no meio natural, já que as
suas ações irresponsáveis teriam causado, direta ou indiretamente, a extinção
de várias outras espécies animais e vegetais. Ainda assim, segundo Donlan et
al. (2005) os seres humanos continuarão causando extinções, modificando
ecossistemas e alterando o curso da evolução, o que faz com que se posicionar
politicamente para alcançar uma solução, sem negar a participação no pro-
blema, seja uma postura altamente desejável.
Esta percepção parece situar o problema em uma arena mais ampla de dis-
cussão contemporânea, qual seja, os discursos relativos à iminência de uma nova
“época” geológica, amplamente reconhecida como “Antropoceno”,10 caracte-
rizada como o evento-momento que afirma o papel da espécie humana como
uma nova força constante de intervenção nos processos biofísicos do planeta.
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Muito mais do que qualquer outra espécie na história da vida na Terra, os humanos
alteram seus ambientes, eliminando espécies e alterando o funcionamento dos
ecossistemas [...]. A Terra agora não é em lugar nenhum intocada, no sentido
de estar substancialmente livre da influência humana e, na verdade, a maioria
das principais extensões terrestres têm sustentado milhares de anos de ocupa-
ção humana e de seus impactos [...]. Os impactos ambientais produzidos pelo
ser humano não têm precedentes em sua magnitude e são cosmopolitas em sua
distribuição, e mostram sinais alarmantes de que estão piorando (Donlan et al.,
2006: 660-1)
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Rewilding Europe
Apesar de a proposta formulada por Donlan et al. (2005, 2006) ter se tor-
nado uma referência global para o termo rewilding, ela está longe de ser sua
única definição possível. Projetos inspirados na renaturalização encontram-se
em curso em diferentes partes do mundo, observando suas especificidades téc-
nicas e ideológicas. Por exemplo, a ideia de um retorno ao Pleistoceno é com-
partilhada entre as iniciativas norte-americanas e russas, mas não representa
realmente os interesses da rede Rewilding Europe, cujo foco está naquilo em
que os nichos ecológicos poderão se tornar no futuro. A iniciativa Rewilding
Europe contrasta inclusive com suas congêneres em relação à sua viabilidade
de implementação. Enquanto os projetos de retorno ao Pleistoceno parecem
existir apenas como projeções arrojadas, o trabalho da Rewilding Europe vem
sendo executado desde o ano de 2011.
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[...] [a] Revolução Industrial iniciada no começo do século XIX é apenas consequ-
ência da mutação socioeconômica que gerou o capitalismo no ‘longo século XVI’
e que, portanto, a origem da crise reside, em última instância, nas relações de
produção antes que nas (e antes das) forças produtivas, se podemos nos exprimir
assim (2014: 28).
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reconstituído por meio da agência humana. Neste último caso, seria preciso
não mais centralizar nossa análise nas espécies que habita(va)m um determi-
nado bioma, mas focalizar nas suas interações que permitiriam reproduzir os
papéis funcionais exercidos por cada espécie. Como é possível depreender a
partir dos seguintes excertos, para os defensores da renaturalização vão-se os
contornos das espécies e permanecem os rastros de suas interações.
Esses modelos seriam definidos não apenas pela presença ou ausência de espécies,
mas também pela presença ou ausência de interações entre espécies - a verdadeira
fábrica funcional da natureza (Estes, 2002 citado em Donlan et al., 2006: 661)
[...] o foco da biologia da conservação está se expandindo para incluir não apenas
as espécies, mas as interações entre as espécies (Soulé et al., 2003, 2005 citado
em Donlan et al., 2006)
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