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A Revolução

do Local
GLOBALIZAÇÃO
GLOCALIZAÇÃO
LOCALIZAÇÃO

Augusto de Franco
A REVOLUÇÃO DO LOCAL
Globalização | Glocalização | Localização

2
Por que a volta ao local, em uma época de globalização, está
se afirmando como uma alternativa de indução ao
desenvolvimento que promete transformar milenares
relações políticas e sociais de dominação.

3
“Em um universo infinito,
local pode abranger algo tão gigantesco
que sua mente se encolhe diante dele”.

Frank Herbert, 1976


em “Os Filhos de Duna”.

4
Apresentação

Estamos diante de uma grande mudança social, talvez a mais profunda


mudança no “corpo” e no “metabolismo” da sociedade humana que já tenha
ocorrido na nossa civilização. Essa mudança não é inexorável, mas as
condições para que ela ocorra começaram a se constelar a partir do final do
século passado.

Estou falando de algo que nunca aconteceu antes. Estou falando de uma
condição geral, configurada pela co-presença de vários fatores
interdependentes, que permite a manifestação de um fenômeno novo, uma
espécie de alteração profunda na morfologia e na dinâmica desses sistemas
complexos compostos por coletivos humanos estáveis afastados do estado de
equilíbrio que chamamos de sociedade.

Não se pode saber de antemão para onde tal mudança vai nos levar. Tudo
dependerá dos movimentos sociais e das opções políticas que fizermos.
Nenhum desfecho, portanto, está determinado. Todavia, existe agora uma
possibilidade que não existia antes.

Não estou dizendo que tal mudança profunda vai acontecer necessariamente.
Estou dizendo que essa mudança profunda, que agora tem chances de
acontecer, poderá de fato ser consumada se conseguirmos ensaiar e replicar
padrões de organização social e modos de regulação política compatíveis, que
permitam que ela aconteça. Caso contrário, ocorrerá, por certo, sempre
alguma mudança, provavelmente incremental, mas ela não será tão
significativa ao ponto de representar uma transformação profunda do modo
como estamos vivendo nos últimos séculos e, talvez até, nos últimos milênios.

Estou falando de uma mudança que depende, portanto, de algumas formas de


agenciamento e que não ocorrerá espontaneamente, na ausência de certo tipo
de comportamento social e de atuação política de agentes humanos. Assim,
não é descabido encarar essa mudança social como uma revolução mesmo,
para além dos sentidos metafóricos em que freqüentemente essa palavra tem
sido empregada (como, por exemplo, quando se fala em “revolução da
informática” ou em “revolução tecnológica”).

Pois bem, que mudança social profunda é essa, que revolução é essa que pode
se realizar nas condições atuais do mundo globalizado e que não poderia ter
ocorrido em outras épocas?

5
Essa mudança se chama „localização‟, no sentido “forte” desse conceito e da
hipótese que o sustenta, a qual constitui, assim, o tema central da presente
investigação.

Essa hipótese, em termos sucintos, é a seguinte. Localidades tendem a se


tornar holografias do planeta à medida que reflorescem comunidades no
mundo globalizado. A revolução planetária (já aventada por Edgar Morin) é
também uma revolução comunitária, que aponta para um novo desenho do
mundo, cujo sentido é o da formação de uma nova sociedade cosmopolita
global (planetária) como uma rede de comunidades (sócio-territoriais e virtuais
– subnacionais e transnacionais) interdependentes. Essa é a mudança social
que queremos interpretar como uma verdadeira revolução: a revolução do
local.

Quando tornamos pequeno um mundo pela localização aumentamos o seu


“poder social”. É como se concentrássemos esse “poder”, incrementando os
valores de variáveis como freqüência ou velocidade de processamento,
possibilitando mais feedbacks, mais laços de retroalimentação capazes de
amplificar estímulos, por pequenos que sejam. Um mundo localizado é um
mundo onde ocorreu uma espécie de big crunch social que (ao contrário do
modelo do big bang cosmogônico) diminuiu drasticamente as distâncias!

Tal redução das distâncias muda a qualidade dos fenômenos que ocorrem no
“meio social” porquanto altera propriedades desse meio (como a isotropia,
por exemplo). Pode-se dizer que a sociedade torna-se mais “social” no sentido
de que aumenta o seu “poder social” – ou seja, o meio torna-se mais
condutor, mais favorável à replicação de padrões de comportamento – à
medida que sua tessitura aumenta e, portanto, que seu tamanho diminui. A
partir de certo grau de tessitura (ou de certo „tamanho de mundo‟) surge o que
chamamos de comunidade.

Mas as comunidades (de projeto) em um mundo globalizado não têm quase


nada a ver com as comunidades tradicionais (de herança) que conhecemos em
um mundo cujas partes estavam isoladas. Em um mundo interligado por laços
de interdependência, onde existam múltiplos caminhos entre seus nodos-
elementos, comunidades assumem um papel diferente. Nesse tipo de mundo
novos comportamentos sociais usinados dentro de âmbitos comunitários
podem se espalhar pela rede, contaminando o sistema como um todo a
medida que podem ser amplificados por laços de realimentação de reforço de
sorte a modificar o comportamento de outros agentes do sistema ao induzi-
los a realizar cópias dos “programas” gerados.

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A medida que surgem comunidades globalizadas, globalização do local tende a
ser igual a localização do global. E um mundo totalmente globalizado passa a
ser um mundo totalmente localizado. O local não-globalizado pode ser um
mundo até maior do que o mundial (no sentido de planetário) globalizado.
Mas o local conectado é o mundo todo.

Isso só é possível ocorrer agora em vista de uma novidade: o fenômeno


complexo, atualmente em curso no mundo, que chamamos, em geral
superficialmente, de globalização e que é, na verdade, uma glocalização; ou
seja, a novidade da mudança social que tem como fulcro a possibilidade
inédita da conexão global-local na emergente sociedade-rede.

Pois bem. Minha investigação dos últimos anos está levando a uma conclusão
surpreendente. Desde que exista a possibilidade de conexão global-local, para
que o processo de localização se desencadeie é preciso apenas que a
população de uma localidade, conectada entre si segundo um padrão de rede e
regulando seus conflitos de modo democrático-participativo, o assuma
cooperativamente. O mais surpreendente, porém, é que parece não ser
necessário que toda a população de uma localidade se comporte desse modo,
nem – como fomos levados a acreditar por vários motivos que não vêm agora
ao caso – que a maioria dessa população esteja engajada nessa tarefa.

Por certo, para cada configuração particular haverá uma quantidade e uma
qualidade mìnimas de “massa crìtica” detonadora, vamos dizer assim. E talvez
não possamos conhecer, completamente e de antemão, nem os valores nem as
caracterìsticas dessa “massa crìtica” para que tal processo seja detonado em
cada localidade. Mas uma coisa é certa: quanto mais elementos ela englobar,
quanto mais tramada “por dentro” e conectada “para fora” ela estiver, mais
chances teremos de que o processo venha a acontecer.

Sei que tais idéias ainda soam estranhas para boa parte da análise sociológica.
E, na verdade, embora não pareça, estou falando de política.

Mas para entender o que estou dizendo, caro leitor, não há outra maneira
senão acompanhar os resultados dessa investigação.

Primavera de 2003
Augusto de Franco

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Índice

Introdução

Capitulo Um | Globalização
Entendendo a globalização
Globalização e neoliberalismo
Globalização e capitalismo
Globalização e fundamentalismos laicos (de mercado e de Estado)
Globalização e mudança social
Globalização irreversível
Globalização inédita
Globalização, ordem e desordem
Globalização insuficiente
Globalização em disputa
Globalização e glocalização

Capítulo Dois | Glocalização


Entendendo a glocalização
Glocalização e nova realidade glocal: „planeta-e-comunidade‟
Glocalização em disputa
Glocalização e Estado-nação
Glocalização e localização

Capítulo Três | Localização


Entendendo a localização
Localização e glocalização
Localização e „tamanho do mundo‟
Localização e „poder social‟
Localização e geração de identidade
Localização e transformação de utopia em topia
Localização e globalização
Localização e glocalização
Localização em disputa
Localização e revolução do local

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Epílogo | Localização e desenvolvimento

Textos (excertos, transcrições e comentários)


Texto 1 |Castells e a „Galáxia da Internet‟
Texto 2 |Held & McGrew e as variantes na política da globalização
Texto 3 |A Carta da Terra
Texto 4 |Guéhenno, o fim da democracia e o futuro da liberdade
Texto 5 | Bobbit e a emergência do Estado-mercado
Texto 6 | Small-World Networks: transformando o vasto mundo em um mundo
pequeno
Texto 7 | O recente experimento sobre Small-World de Peter Dodds, Roby
Muhamad e Duncan Watts
Texto 8 | Manzano e a ciência do local como ciência da singularidade
Texto 9 | Beck e a aliança em favor da atividade comunitária
Texto 10 | Local e global: as cidades na globalização segundo Manuel Castells
& Jordi Borja
Texto 11 | Michael Shuman e o ideário do localismo
Texto 12 | Offe e a sinergia entre Estado, mercado e comunidade

Diagramas
Diagrama 1 | Variantes na política da globalização: diagrama de Held-
McGrew (2002)
Diagrama 2 | Variantes na política da globalização: diagrama de Held-
McGrew (2002) modificado por Franco (2003)
Diagrama 3 | Variantes na política da localização

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Introdução

Há uma mudança social em curso no mundo. Essa mudança, que está na base
do processo de globalização atual, tem um duplo sentido. Um sentido
“macro”, que incide na dimensão planetária, e um sentido “micro”, que incide
na dimensão local. Até agora temos colocado ênfase no sentido “macro”,
sobretudo nas transformações econômicas, tecnológicas, políticas e culturais
que estão ocorrendo em escala global (daí os novos termos em voga:
„globalismo‟, „globalidade‟ e „globalização‟) associadas à uma emergente
„sociedade cosmopolita global‟. Não temos percebido adequadamente, porém,
as mudanças silenciosas, muitas vezes subterrâneas, que estão acontecendo na
dimensão local e que estão provocando um reflorescimento da perspectiva
comunitária. Talvez porque se trate de uma mudança fragmentada, dispersa,
que ainda não logrou constituir um ator, um interlocutor, uma plataforma,
uma justificativa teórica – o que, de resto, jamais ocorrerá mesmo, porque a
fragmentação e a dispersão fazem parte da sua própria natureza.

Como temos mais dificuldade para pensar sem um padrão de ordem


preexistente (ou como não percebemos facilmente a ordem emergente em
sistemas complexos, a ordem subjacente ao caos ou, ainda, como não
compreendemos o processo que o escritor americano de ficção científica,
Frank Herbert, resumiu na frase: “não reunir é a derradeira ordenação”) (1),
colocamos menos ênfase nesse sentido “micro”, sobretudo nas
transformações sociais que estão ocorrendo em escala local (daí a menor
divulgação de termos como „glocalização‟ e „localização‟) associadas a um
novo “corpo” (em rede) e a um novo “metabolismo” (democrático-
participativo) emergentes em comunidades que estão se constituindo neste
momento em várias partes do planeta.

Ora, para perceber tais mudanças é necessário vê-las de outra maneira. Para
perceber o que mudou é preciso, assim, ver o que mudou na nossa maneira-
de-ver o que mudou. Foi somente quando mudou a nossa maneira de ver, que
começamos a perceber o que está mudando em termos sociais, as
transformações que estão ocorrendo no tecido íntimo das sociedades em
virtude da germinação de algumas práticas seminais e de algumas idéias
seminais sobre tais práticas.

Tão recente é o fenômeno que as pessoas ainda não estão entendendo a


profundidade e a abrangência da mudança. O mundo realmente mudou... Mas

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a mudança mais significativa de todas será – quando florescer – aquela que foi
semeada nos anos 90.

Para continuar com a metáfora da semente, podemos dizer que os anos 80


foram anos de preparação da terra. Os anos 90 foram anos de semeadura. A
primeira década do século 21 não será, ainda, de pleno florescimento – porém,
em grande parte, de germinação: o tempo em que o grão tem que morrer. Por
isso, ao que tudo indica, será uma era de (aparente) retrocesso em vários
campos e em vários lugares, de recrudescimento do estatismo, da retomada de
velhos paradigmas de administração pública e de velhos padrões de relação
entre Estado e sociedade – e isso de várias maneiras, patrocinadas por atores
conflitantes e em circunstâncias contraditórias. Assim, Bush (belicista) e o
Fórum Social Mundial (pacifista, pelo menos instrumentalmente, para se opor
às pretensões neo-imperiais do atual belicismo norte-americano) impulsionado
este último, entre outros, por alguns segmentos da esquerda estatista, no
Brasil, fazem parte, provavelmente, do mesmo fenômeno (muito embora o
Fórum Social Mundial seja, ele mesmo, um exemplo eloqüente dos aspectos
positivos do atual processo de globalização ao juntar, de forma inédita,
múltiplos setores de uma sociedade civil mundial). É difícil compreender essas
coisas porquanto pensamos a partir do confronto de ideologias e não a partir
de (conceitos sobre) padrões de relacionamento. Achamos que se alguém é
“de esquerda” estará necessariamente no pólo oposto aos que são “de direita”.
Todavia, quando o assunto é o protagonismo estatal (ou seja, um padrão de
relação definido entre Estado e sociedade no qual o Estado está “sobre” a
sociedade, relacionando-se com esta última como se ela fosse o seu dominium),
não percebemos que, desse ponto de vista, em geral, ambos – os “de
esquerda” e os “de direita” – encontram-se freqüentemente no mesmo pólo.

O canteiro para a semeadura dos anos 90 foi preparado sobre os destroços do


Muro de Berlim. Mas o ressurgimento da perspectiva autocrática e guerreira
do novo império americano representa uma reação à queda dos muros (e isso,
ao que parece, não apenas em sentido simbólico: basta ver, por exemplo, a
ereção – em curso neste momento em que escrevo – do muro de Sharon).
Pior, representa uma proliferação dos muros, agora – salvo no triste caso
acima – desmaterializados e incorporados à nova paisagem mundial de vez
que o inimigo tornou-se invisível e onipresente e é preciso, portanto, estar-se
protegido contra ele a todo tempo e em qualquer lugar. Os primeiros dez anos
do nosso milênio serão, ao que tudo indica, para usar a expressão poética da
velha linguagem alquímica, anos de nigredo: aqui ocorrerá a putrefactio, a
mortificatio, a „obra em negro‟. Para os alquimistas, todavia, isso não era motivo
para desânimo. Pelo contrário, como diz um antiqüìssimo texto (“O Rosário
dos Filósofos”, de 1593): “quando vires tua matéria enegrecer, rejubila-te:

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porque esse é o inìcio da obra” (2). Oxalá haja um paralelo qualquer com
nossa situação atual.

Mas vamos voltar aos anos 90, os anos de semeadura. Foram os anos onde
emergiu ou foi percebida mais claramente a nova realidade de uma esfera
pública não-estatal. Foram os anos em que se verificou um crescimento
espantoso do chamado terceiro setor. Foram os anos da Internet e das redes
sociais. Foram anos em que se gestou e experimentou um novo paradigma da
administração pública, a descentralização e os programas inovadores:
focalizados, flexíveis, que desencadeiam inovações capazes de alterar seu
desenho original, baseados em múltiplas parcerias, preocupados com
monitoramento e avaliação constantes e voltados para a conquista da
sustentabilidade.

Sobretudo – e essa talvez seja a sua característica mais relevante – os anos 90


foram anos, conquanto marcados por numerosos conflitos regionais e locais,
sem-guerra global, ou melhor, sem um “estado de guerra” (“quente” ou
“fria”) generalizado no mundo. Com efeito, entre 1991 e 2001, entre a
derrocada da URSS e o atentado ao World Trade Center, transcorreu a década
na qual, como assinalou Friedman (ainda em 1999), o sistema da guerra fria
foi substituìdo pelo que ele denominou de “sistema da globalização” (3).

No Brasil e no mundo, a década de 1990 foi marcada pelo surgimento ou pelo


aparecimento, em um cenário mais visível, de grandes novidades. No que diz
respeito à uma nova concepção de desenvolvimento, tema final do presente
livro, tais novidades podem ser identificadas por algumas visões ou
concepções e por algumas idéias ou conceitos que não compareciam antes, ou
que só se desenvolveram depois, no final da década de 80 (as quais – em
muitos casos – ainda continuam emergindo e se desenvolvendo).

Dentre tais concepções e idéias novas citaria aqui, em primeiro lugar – por
ordem de importância lógica ou metodológica e não cronológica – a
concepção sistêmica, sobretudo a concepção dos sistemas complexos
adaptativos, trazendo consigo as idéias de sustentabilidade como função de
integração e como conservação da adaptação. (É preciso ver que o Santa Fe
Institute, fundado pelo físico Murray Gell-Man em 1984, em 1987 começou a
pesquisar coletivamente a economia como sistema complexo adaptativo, mas
somente na década de 1990 pôde apresentar resultados mais significativos no
tocante a uma nova visão sistêmica sobre as interações sociais) (4).

Em segundo lugar, colocaria a hipótese da existência de vários fatores do


desenvolvimento – não como externalidades, porém com o mesmo status de

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centralidade, os quais foram interpretados, assim, como outros tipos de
“capitais” – e sobretudo o conceito de capital social. Nos anos 90 surgiu a
maior parte das teorias do capital social, inclusive aquelas baseadas no suposto
da (ou na aposta na) capacidade da sociedade humana de gerar ordem
espontaneamente a partir da cooperação.

Em terceiro lugar, a idéia de cooperação e de cooperatividade sistêmica como


elementos sem os quais a competição e a competitividade sistêmica levam a
crescimento concentrador e, portanto, a crescimento sem desenvolvimento.

Em quarto lugar, a idéia da sociedade rede (é bom lembrar que a obra


principal de Castells – que melhor identificou tal fenômeno – é um fruto dos
anos 90), o desenvolvimento de uma nova disciplina de análise das redes
sociais (Social Network Analysis), o surgimento das redes P2P e do
encurtamento do tamanho do mundo em virtude do aumento da
conectividade („small-world networks‟) (5).

Em quinto lugar, a idéia da radicalização ou democratização da democracia, da


democracia em tempo real, democracia digital ou cyberdemocracy, e a
compreensão das relações intrínsecas entre desenvolvimento e política; quer
dizer, a concepção de desenvolvimento como mudança social.

Em sexto lugar, a idéia de um novo padrão de relação Estado-Sociedade que


leva em conta a existência e o papel estratégico, para o desenvolvimento, da
nova sociedade civil, ou seja, daquele conjunto de entes e processos extra-
estatais e extra-mercantis, também chamado recentemente de terceiro setor.

Em sétimo lugar a compreensão do fenômeno complexo chamado de


globalização e a idéia de glocalização.

Em oitavo lugar o reflorescimento da perspectiva comunitária, a „volta ao


local‟, a revolução do local e a reformulação da idéia original de glocalização
como localização (ou seja, a idéia de que “o local conectado é o mundo todo”
– esta última, porém, já fruto dos primeiros anos do terceiro milênio).

As inovações introduzidas, especialmente nos anos 90, na maneira de ver a


mudança social que agora interpretamos como desenvolvimento, constituem
apenas um exemplo. Outros exemplos, semelhantes, poderiam ser
encontrados em outros campos. Desse exemplo, porém, devemos reter a lição
de que não se pode entender a globalização e não se pode captar plenamente
o sentido das mudanças em curso no mundo atual se não se compreender a

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década de 1990 e se não se compreender as mudanças na maneira-de-ver as
mudanças introduzidas na década de 1990.

Pois bem. A maneira linear e unívoca de ver as mudanças, que procura sempre
emparelhar fator-causa com modificação-efeito, não nos permite ver as
constelações de múltiplos fatores interdependentes que co-originam as
transformações, entendidas como mudanças de estado de um sistema
complexo. Na maneira linear de ver, por exemplo, achamos que a globalização
é um fenômeno que só se verifica no plano internacional, no relacionamento
entre realidades de dimensão mundial. Assim, freqüentemente deixamos de
ver que o aspecto global pode estar presente em dimensões locais, no plano
subnacional e que, simultaneamente, aspectos locais podem estar presentes na
dimensão global.

Mas, como já assinalou Giddens, “é errado pensar que a globalização afeta


unicamente os grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A
globalização não diz respeito apenas ao que está “lá fora”, afastado e muito
distante do indivìduo. É também um fenômeno que se dá “aqui dentro”,
influenciando aspectos íntimos e pessoais de nossas vidas... A globalização
não somente puxa para cima, mas também empurra para baixo, criando novas
pressões por autonomia local” (6). Avançando mais nessa linha de raciocínio,
Giddens percebeu que “a globalização é a razão do ressurgimento de
identidades culturais locais em várias partes do mundo” (7).

O fenômeno da globalização atual – disse ainda Giddens, em outra ocasião –


intensifica as “relações sociais em escala mundial que ligam localidades
distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos
ocorrendo a milhas de distância e vice-versa. Este é um processo dialético
porque tais acontecimentos locais podem se deslocar em uma direção anversa
às relações muito distanciadas que os modelam”. Assim, ele conclui: “a
transformação local é tanto parte da globalização quanto a extensão lateral das
conexões sociais através do tempo e do espaço” (8).

Com efeito, Manuel Castells assinalou como uma das características dos
movimentos sociais contemporâneos, o fato de que, “cada vez mais, o poder
funciona em redes globais e as pessoas vivenciam e constroem seus valores,
suas trincheiras de resistência e suas alternativas em sociedades locais. O
grande problema que se coloca é como, desde o local, se pode controlar o
global, como, a partir da minha vivência e da minha relação com o meu
mundo local, que é onde eu estou, onde eu vivo, posso me opor à
globalização, à destruição do meio ambiente, ao massacre do Terceiro Mundo
em termos econômicos. Como se pode fazer isso? Pois bem, a Internet

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permite a articulação dos projetos alternativos locais em protestos globais, que
acabam aterrizando em algum lugar, por exemplo, em Seattle, Washington,
Praga, etc., porém que se constituem, se organizam e se desenvolvem a partir
da conexão pela Internet, que dizer, de uma conexão global, de movimentos
locais e de vivências locais. A Internet é a conexão global-local, que é a nova
forma de controle e de mobilização social em nossa sociedade” (9).

Isso tudo talvez tenha um sentido mais profundo do que parece à primeira
vista. O significativo, aqui, é que o core da globalização atual não é a expansão
dos fenômenos para uma escala global em si... mas a simultaneidade entre
global e local que ocorre em virtude da possibilidade da conexão global-local.
Ora, a conexão global-local só é possível por intermédio das redes. São as
redes, portanto, a “chave” para entender a globalização. É a sociedade-rede o
fulcro de tudo e não o fato do mundo ser global porque reproduz fenômenos
semelhantes no conjunto do globo terrestre, porque alguém come um Big
Mac adaptado ao sabor chinês em Nanquim ou manda e-mails da África
usando o Outlook Express traduzido para o inglês do Zimbábue, ainda que
essas coisas também ocorram em virtude da conexão global-local.

Para usar os termos de Pierre Levy, a „aldeia global‟ midiática (e “molar”) de


Marshall McLuhan sugere o mundo virando um local. A „sociedade-rede‟
(“molecular”) de Manuel Castells sugere cada local virando o mundo,
holograficamente (embora Castells, ao que eu saiba, não possa ser
responsabilizado por esta formulação). Uma frase surgida em recente
discussão na AED resume bem o ponto: “o local conectado é o mundo
todo”.

Para decifrar o enigma é preciso perceber a simultaneidade dos processos de


„globalização‟ – e – „localização‟, ou melhor, o processo complexo de
„globalização-e-localização‟, que está possibilitando o mundo virar um só local
e um só local virar o mundo todo.

Este texto é sobre isso.

Resumindo
Há uma mudança social em curso no mundo dos últimos anos.

O aspecto mais visível dessa mudança é o que estamos chamando de


globalização. O que está acontecendo de fato é uma glocalização. O que

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menos se vê (ou o que ainda não se vê tão claramente), entretanto, é a
localização.

Com o objetivo de mostrar que a volta ao local, em uma época de


globalização, está se afirmando como uma alternativa de indução ao
desenvolvimento que promete transformar milenares relações políticas e
sociais de dominação, vamos elencar 23 proposições para uma exposição
ordenada.

Sobre a globalização
1 – O fenômeno da globalização é separável da ideologia mercadocêntrica que
acompanhou as primeiras tentativas de conceitualizá-lo.

2 – A globalização não é um fenômeno exclusivamente econômico.

3 – Não poderemos compreender adequadamente o que é a globalização


enquanto não nos desvencilharmos de visões mercadocêntricas e
estadocêntricas. Porque a globalização é, fundamentalmente, um fenômeno da
(uma mudança global na) sociedade.

4 – O novo ambiente político mundial e a inovação tecnológica que têm


possibilitado o surgimento do fenômeno que interpretamos como
globalização é acompanhado por uma mudança social em sentido amplo (ou
seja, no sentido “micro”, relativo ao “corpo” e ao “metabolismo” das
sociedades, isto é, aos padrões de organização e aos modos de regulação de
conflitos; e no sentido “macro”, cultural-civilizacional), interagindo, todos
esses fatores, em um mesmo processo de “co-originação dependente”.

5 – A globalização é um fenômeno irreversível. Ao que ela vai levar, contudo,


depende da evolução do sistema diante da bifurcação que se defronta na
atualidade.

6 – A globalização é inédita: está criando algo que nunca existiu antes.

7 – A globalização não é uma ordem, mas um processo de desconstituição da


velha ordem.

8 – “A saìda democrática para a crise atual exige mais globalização e não


menos globalização” (Giddens, 2001) (10).

16
9 – A globalização está em disputa e essa disputa não é somente entre os
neoliberais (favoráveis) e os estatistas (contrários), mas envolve uma
diversidade de posições variantes e conforma novos campos políticos de
convergência que superam tal contradição.

10 – Não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se


compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do
mundo e uma mundialização do local; ou seja, é uma „glocalização‟ (mas não
exatamente no sentido do marketing, que foi atribuído pelos economistas
japoneses que inventaram o termo no final da década de 1980 e nem apenas
nos sentidos que lhe atribuiu seu principal divulgador, Roland Robertson, a
partir de meados dos anos 90).

Sobre a glocalização
11 – A glocalização é uma planetarização e uma comunitarização.

12 – A glocalização está em disputa e essa disputa é, fundamentalmente, uma


disputa entre o „local separado‟ e o „local conectado‟, entre „dependência x
independência‟, por um lado e „interdependência‟, por outro.

13 – O Estado não vai desaparecer na transição histórica atualmente em


curso, senão que será transformado, mas não é certo se tal transformação será
necessariamente glocalizante. O destino da forma atual do Estado-nação está
em disputa e essa disputa é a mesma disputa que se trava em torno da
glocalização.

14 – Assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de


„globalização‟) para entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão
global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de „localização‟)
para entender as mudanças que estão ocorrendo coetaneamente na dimensão
local. Como as duas coisas constituem aspectos do mesmo processo de
glocalização ou de emersão da realidade glocal, isso significa que a
glocalização confere um novo status ao local que, para ser revelado, exige
também um novo construct e uma nova hipótese: a hipótese (no sentido
“forte”) da „localização‟.

17
Sobre a localização
15 – O local é necessariamente o pequeno, mas não no sentido territorial ou
populacional e sim no sentido daquilo que foi tornado pequeno por força de
alta “tramatura” social.

16 – Quanto mais conectado é o mundo menor ele é, porém mais potente


socialmente ele é (small is powerful).

17 – Localização não significa isolamento, mas um campo configurado com


certo grau de estabilidade para permitir a conservação e a reprodução de uma
mesma dinâmica endógena.

18 – Localizar não é encontrar um local, é criar um local.

19 – Globalização do local tende a ser igual a localização do global.

20 – Localidades tendem a se tornar holografias do planeta à medida que


reflorescem comunidades no mundo globalizado.

21 – A localização está em disputa e essa disputa tenderá a pautar, em futuro


próximo, os embates políticos dentro do Estado-nação.

22 – A localização é o aspecto objetivo da revolução do local, enquanto que


seu aspecto subjetivo é a existência de uma crescente variedade de agentes,
conectados em rede e dedicados a promover movimentos sociais de
resistência e de geração de identidade – que dão origem a comunidades de
projeto – a partir das novas temáticas do ambientalismo, dos direitos humanos
e da cidadania, do feminismo, do ecumenismo e do pacifismo, do
fortalecimento da sociedade civil e da promoção do voluntariado e, sobretudo,
dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de
processos de democracia participativa em redes sociais e de indução ao
desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de
sócio-economia alternativa ou solidária, ensaiados em escala local.

23 – A volta ao local, em uma época de globalização, está se afirmando como


uma alternativa de indução ao desenvolvimento que promete transformar
milenares relações políticas e sociais de dominação.

18
NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Herbert, Frank (1969). O Messias de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

(2) Moya, Miguel Angel Muñoz (ed.) (1986). “El Rosário de los filósofos”. Barcelona:
Muñoz Moya y Montraveta, 1986.

(3) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

(4) http://www.santafe.edu/

(5) Cf. Texto 6 e Texto 7

(6) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000.

(7) Idem.

(8) Giddens, Anthony (1990). As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora


Unesp, 1991.

(9) Castells, Manuel (2002). “A Internet e a Sociedade Rede”.


http://campus.uoc.es/web/cat/index.html.

(10) Giddens, Anthony (2001). “O fim da globalização?”. Brasìlia: Correio Braziliense,


04/10/2001.

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Capítulo Um | Globalização

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Entendendo a globalização

Conquanto seja possível tecer inumeráveis análises dos diferentes aspectos


econômicos, tecnológicos e culturais da globalização, não é muito fácil chegar
a uma compreensão global do fenômeno.

Grande parte das análises disponíveis não dá conta de captar o fenômeno da


globalização no que ele tem de inédito. Essas análises são, em geral,
fragmentadas, porquanto se baseiam em visões desfocadas: quer, por um lado,
por uma certa euforia mercadocêntrica; ou quer, por outro lado, por reações
estadocêntricas.

É preciso ver que o conceito de „globalização‟ surgiu no marketing e, só


depois, foi incorporado e recuperado por outras disciplinas. Já havia uma
proto-ideologia (que Beck chama de “globalismo” e quase todo mundo chama
de neoliberalismo) embutida no conceito inicial (1). Fomos apresentados ao
tema da globalização (ou introduzidos na sua problemática) a partir de pontos
de vista totalmente ou predominantemente mercadocêntricos. Na seqüência
veio a crítica sociológica, da sociologia política baseada, sobretudo, na
sociologia econômica. Essa crítica, ao desvelar a ideologia presente na visão
inicial, se constituiu, muitas vezes, como uma rejeição do conceito e, não raro,
como uma reação ao próprio fenômeno objetivo que o conceito (a idéia de
globalização) queria captar. Assim, a crítica ao conceito transformou-se, em
parte, em uma estiolante disputa (ideologizada) entre ideologias, contrapondo
uma visão contra-liberal à visão neoliberal, uma perspectiva estadocêntrica
àquel‟outra, mercadocêntrica. Entrementes, o fenômeno mesmo, na sua
integralidade e naquilo que lhe poderia conferir caráter distintivo de outros
fenômenos sociais, passava (quase) despercebido.

Todavia, para entrar de fato no assunto é preciso partir da pergunta: qual é o


fenômeno que está ocorrendo no mundo dos últimos anos e que estamos
interpretando como globalização? O mercado financeiro, as multinacionais, o
terrorismo internacional, a indústria do entretenimento, o McDonalds, a
CNN, a Internet – tudo isso sugere que o mundo está vivendo uma nova
época ou passando por um processo de mudança que foi chamado de
globalização.

Em primeiro lugar é preciso responder se está ou não está havendo tal


mudança, que tipo de mudança é essa, qual a sua profundidade e abrangência
e qual o seu sentido.

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Existem pessoas que acham que não está havendo mudança alguma
significativa ou, pelo menos, alguma que mereça atenção especial. O mundo já
teria passado por várias globalizações, desde a era dos descobrimentos e até
antes.

Existem pessoas que acham que a mudança é de natureza fundamentalmente


tecnológica e que são as novas máquinas que estão introduzindo novos
comportamentos.

Existem pessoas que acham que a mudança atual decorre da liberação das
forças de mercado que, pela primeira vez, estão podendo expressar toda a sua
capacidade destrutiva-criativa sem as peias impostas pelas regulações
normativas, heterônomas e exógenas, provenientes do antiquado Estado-
nação.

Existem pessoas que acham que tudo não passa de uma tentativa das grandes
corporações transnacionais para dominar o mundo, o que vai acabar
configurando uma realidade social mundial composta por algumas ilhas de
alto desenvolvimento tecnológico, fortemente protegidas, em um mar de
pobreza e exclusão.

E existem pessoas que acham que tudo se explica por tal ou qual combinação
de todos ou de alguns desses fatores: um pouco disso, um pouco daquilo.

Parto do princípio de que não é possível compreender a globalização se não se


admitir que há uma mudança em curso no mundo, tão profunda e abrangente
como talvez jamais tenha ocorrido antes na história conhecida. Como disse
Giddens “a globalização não é um acidente em nossas vidas hoje. É uma
mudança de nossas próprias circunstâncias de vida. É o modo como vivemos
agora” (2).

Essa mudança é de natureza social. Ultrapassando as fronteiras dos Estados


nacionais, ela está gerando um novo tipo de sociedade no mundo. Uma nova
sociedade está sendo criada. Como sustenta Giddens, está sendo criado “algo
que nunca existiu antes, uma sociedade cosmopolita global” (3). E, como
escreveu Thompson, “uma nova cultura planetária está surgindo juntamente
com a nossa nova economia globalizada” (4).

Creio que é necessário insistir nesse ponto de partida da análise. Uma nova
sociedade está sendo criada. Ela começou a ser gestada depois da Segunda
Guerra, foi se configurando internamente (ou tomando corpo, como embrião,
ainda no ventre da velha sociedade) a partir do final dos anos 60, mas só

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obteve os recursos técnicos e as condições políticas para vir à luz a partir do
final dos anos 80.

A mudança em curso, por certo, é social, mas em um sentido amplo, ou seja:


no sentido “micro”, relativo ao “corpo” e ao “metabolismo” das sociedades,
isto é, aos padrões de organização e aos modos de regulação de conflitos; e no
sentido “macro”, cultural-civilizacional.

Todavia, conquanto o processo de globalização seja irreversível e conquanto o


seu sentido geral seja o da conformação de uma nova configuração planetária,
não é certo a que lugar ele levará. O mundo se encontra diante de uma
bifurcação e tanto pode avançar, como supõe Thompson, “na transição da era
de uma economia industrial global de Estados-nações territoriais para uma
ecologia cultural planetária de sistemas de governança noéticos” (5), quanto
pode retroceder para formas autoritárias, com um recrudescimento do
estatismo que tenderá a reinstaurar a velha ordem do “estado de guerra” em
âmbito planetário, baseada em novos complexos-pólos pós-industriais
militares de alta tecnologia.

Com efeito, sucedendo os promissores sinais de globalização política pós-


guerra fria, surgidos sobretudo nos anos 90, os primeiros anos do terceiro
milênio apontam para um retrocesso, com o recrudescimento do velho
estatismo. Como tive oportunidade de escrever seis dias depois do atentado
ao World Trade Center, “se a „America‟s new war‟ se generalizar, haverá,
certamente, um retrocesso no fortalecimento da sociedade civil e no processo
de sua mundialização, bem como uma contração da esfera pública, sobretudo
da emergente esfera pública não-estatal – a novidade mais importante desta
passagem, que estamos vivendo, para o novo milênio, na transição da
sociedade hierárquica para uma sociedade em rede” (6).

Neste capítulo vamos ver que o fenômeno da globalização é separável da


ideologia mercadocêntrica que acompanhou as primeiras tentativas de
conceitualizá-lo. Que a globalização não é um fenômeno exclusivamente
econômico. Que não poderemos compreender adequadamente o que é a
globalização enquanto não nos desvencilharmos de visões mercadocêntricas e
estadocêntricas (de vez que a globalização é, fundamentalmente, um
fenômeno da – uma mudança global na – sociedade).

Vamos ver ainda que o novo ambiente político mundial e a inovação


tecnológica que têm possibilitado o surgimento do fenômeno que
interpretamos como globalização é acompanhado por uma mudança social em
sentido amplo (ou seja, no sentido “micro”, relativo ao “corpo” e ao

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“metabolismo” das sociedades, isto é, aos padrões de organização e aos
modos de regulação de conflitos; e no sentido “macro”, cultural-
civilizacional), interagindo, todos esses fatores, em um mesmo processo de
“co-originação dependente”.

Em seguida vamos ver por quê a globalização é um fenômeno irreversível


(conquanto ao que ela vai levar, dependa da evolução do sistema diante da
bifurcação que se defronta na atualidade). Por quê a globalização é inédita:
está criando algo que nunca existiu antes. Por quê a globalização não é uma
ordem, mas um processo de desconstituição da velha ordem. E por quê, como
disse Giddens, “a saìda democrática para a crise atual exige mais globalização e
não menos globalização” (7). E ainda, por quê a globalização está em disputa
e quais são as forças políticas que se confrontam ou se defrontam hoje no
cenário internacional.

Por último, lançando uma ponte para o capítulo seguinte, vamos interrogar
por quê não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se
compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do
mundo e uma mundialização do local; ou seja, é uma „glocalização‟ (mas não
exatamente no sentido do marketing, que foi atribuído pelos economistas
japoneses que inventaram o termo no final da década de 1980 e nem apenas
nos sentidos que lhe atribuiu seu principal divulgador, Roland Robertson, a
partir de meados dos anos 90) (8).

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.

(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000.

(3) Idem.

(4) Thompson, William Irwing (2001). “Cultural History and Complex Dynamical Systems” in
Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution. MA: Lindisfarne Books, 2001.

(5) Idem.

(6) Franco, Augusto (2001). “A „America‟s new war‟ e o recrudescimento do velho


estatismo”: http://www.augustodefranco.org/conteudo.php?cont=textos&id=P24

(7) Giddens, Anthony (2001). “O fim da globalização?”. Brasìlia: Correio Braziliense,


04/10/2001.

(8) Ver Capítulo 2.

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Globalização e neoliberalismo
O fenômeno da globalização é separável da ideologia mercadocêntrica que
acompanhou as primeiras tentativas de conceitualizá-lo.

Embora o termo „globalismo‟ já figure no dicionário Webster desde 1943 e


embora a idéia de que vivemos em uma “aldeia global” tenha sido introduzida,
para captar o impacto das novas tecnologias de comunicação em nossas vidas,
por Marshall McLuhan, em 1962 (no livro “A Galáxia de Gutemberg”), a
palavra „globalização‟, com a sua conotação atual, foi utilizada pela primeira
vez em 1983, por Theodore Levitt, em um artigo de dez páginas intitulado “A
Globalização dos Mercados”, publicado pela Harvard Business Review (em 1o
de maio de 1983). No entanto, Levitt não poderia ter, àquela época, a
dimensão plena do fenômeno que hoje chamamos de globalização. Ele estava
detectando um importante sinal: a convergência dos mercados do mundo.
“Em todas as partes – escreveu Levitt – a mesma coisa é vendida e da mesma
forma” (1).

Mas conquanto Levitt tivesse introduzido o termo „globalização‟ em 1983, ele


só foi popularizado em 1990, com a publicação do livro “O Mundo Sem
Fronteiras: Poder e Estratégia na Economia Interligada” de Kenichi Ohmae
(2).

É significativo que tanto o introdutor do tema quanto o seu principal


divulgador tenham encarado o fenômeno do ponto de vista da racionalidade
mercantil. Também é significativo que ambos pareciam estar especialmente
interessados em extrair, das novas tendências que lograram perceber,
orientações para a gestão empresarial e para o marketing. O livro de Ohmae,
por exemplo, tinha como subtìtulo: “Lições de gerenciamento na nova lógica
do mercado global”. Ohmae acreditava que a globalização constituìa uma
nova etapa no desenvolvimento das multinacionais. Ele imaginou que as
multinacionais acabariam evoluindo para formas de gestão integrada em escala
mundial e que isso as levaria a estabelecer, segundo seus próprios interesses,
as novas regas do jogo global, tornando obsoleto inclusive o papel do Estado-
nação. Com efeito, em 1995, Ohmae lançou outro livro (“O Fim do Estado-
Nação”), que tinha como subtìtulo: “Como o Capital, as Corporações, os
Consumidores e a Comunicação estão reformatando os mercados globais” (3).

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Fomos, assim, como já assinalei, apresentados ao tema (e/ou introduzidos na
problemática) da globalização a partir de pontos de vista ou totalmente ou
predominantemente mercadocêntricos.

Evidentemente, vários pesquisadores logo descobriram que o fenômeno era


muito mais complexo do que simplesmente uma globalização dos mercados.
Entretanto, a maior parte dos que escreveram sobre o tema na primeira e até,
às vezes, na segunda metade da década de 90, ainda conferiam um peso
bastante destacado ao fator econômico, talvez porque, juntamente com o
processo de globalização em si, ocorria também, como fenômeno
acompanhante, a emersão de uma ideologia (e de uma euforia)
mercadocêntrica.

Globalismo, globalidade e globalização


Ulrich Beck, por exemplo, em 1998, (em “O que é globalização?”), fez uma
distinção entre globalismo, globalidade e globalização. Globalismo seria a
ideologia do domínio (mundial) do mercado (sobre as demais esferas da
realidade social), ou seja, o neoliberalismo (correspondendo mais ou menos ao
que eu chamo de perspectiva mercadocêntrica ou mercadocentrismo).
Globalidade se referiria ao reconhecimento de que já vivemos em uma
sociedade mundial, na qual há diversidade sem unidade – uma realidade
irreversível, segundo ele, em virtude da conjunção de vários fatores ou
motivos. Globalização, por sua vez, seria uma denominação genérica para os
processos pelos quais os Estados nacionais sofrem a interferência cruzada de
atores transnacionais em todos os campos (soberania, identidade, redes de
comunicação, chances de poder e orientações políticas). A globalização seria,
assim, uma “sociedade mundial sem Estado mundial e sem governo mundial”,
uma nova forma global de capitalismo, desorganizado, na qual “não há poder
hegemônico ou regime internacional econômico ou polìtico”. Por isso, a
globalização desencadeia um movimento contrário de defesa do Estado (social
ou nacional) contra a invasão do mercado mundial (4).

Ora, se reconhecemos que existe uma realidade social objetiva (chamada de


“globalidade”, como quer Beck ou, simplesmente, de “sociedade cosmopolita
global”, como prefere Giddens), então é óbvio que o fenômeno da
globalização é separável da ideologia mercadocêntrica (globalista em temos
econômicos ou neoliberal) que acompanhou as primeiras tentativas de
conceitualizá-lo.

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NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Levitt, Theodore (1983). “The Globalization of Markets” in Harvard Business Review (May 1,
1983).

(2) Ohmae, Kenich (1990). The Borderless World. New York: Harper & Row, 1990.

(3) Ohmae, Kenich (1995). O fim do Estado-Nação. Rio de Janeiro: Campus, 1996 (orig.
The End of the Nation State: How Region States Harness the Prosperity of the Global Economy. Free
Press, McMillan, Inc., May 1995).

(4) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.

27
Globalização e capitalismo
A globalização não é um fenômeno exclusivamente econômico.

Na segunda metade da década de 90 começaram a aparecer também outros


pontos de vista sobre a globalização, que pagavam menos tributos ao
reducionismo da visão econômica. Pesquisadores como Anthony Giddens,
David Held, Anthony McGrew e Manuel Castells, entre outros, começaram a
ver que o fenômeno não se restringia ao aspecto exclusivamente econômico,
como continuaram enfatizando alguns organismos financeiros (como o FMI
e, até os dias de hoje, os seus críticos, de esquerda ou de direita – inclusive
alguns de seus antigos funcionários, como Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de
Economia de 2001, para o qual, em suma, quando alguém fala de globalização
está se referindo a “remoção das barreiras ao livre comércio e a maior
integração das economias nacionais”) (1).

No final do século passado, Anthony Giddens (1999) já havia considerado um


erro ver a globalização como um “fenômeno quase exclusivamente em termos
econômicos... A globalização – escreveu ele – é política, tecnológica e cultural,
tanto quanto econômica” (2). Outros pesquisadores, por sua vez, começaram
a perceber que o fenômeno da globalização tinha raízes mais antigas (uma
parte das quais, talvez a mais significativa, lançada uns dez anos antes da
“descoberta” de Levitt) e só começou a se revelar de fato, naquilo que tinha
de mais inédito e surpreendente, uns dez anos depois da publicação do “A
Globalização dos Mercados”.

Pois bem. Afirmei acima que para analisar corretamente o processo de


globalização é preciso admitir, como ponto de partida, que uma nova
sociedade está sendo criada. Ela começou a ser gestada depois da Segunda
Guerra, foi se configurando internamente (ou tomando corpo, como embrião,
ainda no ventre da velha sociedade) a partir do final dos anos 60, mas só
obteve os recursos técnicos e as condições políticas para vir à luz a partir do
final dos anos 80.

A conjunção desses dois fatores, no dealbar dos anos 90, possibilitou uma
mudança tão rápida no funcionamento da sociedade humana em nível global,
como jamais se viu na história. Creio ser essa mudança o fenômeno que
interpretamos atualmente como globalização.

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Inovação tecnológica e condições políticas favoráveis
Com efeito, as inovações tecnológicas que possibilitaram o atual processo de
globalização surgiram na década de 1970, com a revolução das TICs
(tecnologias de informação e comunicação). Por um lado, com o surgimento
dos primeiros satélites de órbita estacionária, que viabilizaram a comunicação
em tempo real entre dois pontos quaisquer do planeta (e, depois, da fibra
ótica, da transmissão eletromagnética em uma faixa maior de freqüências, da
utilização do laser, da telefonia digital etc.). E, por outro lado, com a invenção
do microprocessador e do microcomputador. A união, sinérgica, dessas duas
tecnologias, possibilitou que pessoas pudessem se conectar com pessoas
superando as barreiras do tempo e do espaço. No entanto, tudo isso somente
veio a ocorrer, em escala significativa, vinte anos depois, em meados da
década de 1990, por meio de uma rede de redes de computadores capazes de
se comunicar entre si chamada Internet.

Simultaneamente, as condições políticas que permitiram que o atual processo


de globalização ocorresse, só se reuniram a partir da queda do Muro. Nesse
aspecto tinha razão Thomas Friedman quando disse, em 1999, que “o mundo
vagaroso, estável e fragmentado da Guerra Fria, que dominara o cenário
internacional desde 1945, foi substituído por um novo e bem lubrificado
sistema interconectado, chamado globalização” (3). Para Friedman, “a
globalização é o sistema internacional que substituiu o sistema da Guerra
Fria”, no qual os Estados-nações detinham em suas mãos a quase totalidade
da capacidade ordenadora (4).

Difusão mundial do capitalismo


Embora enfatize a importância das condições políticas, a visão de Thomas
Friedman ainda é centrada predominantemente no mercado, sobretudo na
combinação de livre mercado com inovação tecnológica. Para ele “a idéia que
dá impulso à globalização é o capitalismo de livre mercado – quanto maior a
liberdade de atuação das forças de mercado e quanto mais ampla a abertura da
economia para o livre comércio e para a competição, mais eficiente e mais
próspera será a economia. A globalização significa a difusão do capitalismo de
livre mercado para praticamente todos os países do mundo. A globalização
também conta com o seu próprio conjunto de regras de economia – normas
que giram em torno da abertura, da desregulamentação e da privatização da
economia” (5).

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Friedman, como se vê – e ele não esconde – está possuído por aquela
ideologia que Ulrich Beck chama de „globalismo‟. Para se deixar possuir por
tal ideologia é necessário, antes de qualquer interpretação do fenômeno da
globalização como triunfo do liberalismo, aderir à crença de que o capitalismo
de livre mercado constitui a alternativa mais eficaz de organização social.

Visões como essa, evidentemente, geraram e continuam gerando fortíssimas


reações por parte daqueles que não têm motivos para aderir a tal crença (seja
porque já abraçaram utopias igualitárias, seja porque já estão suficientemente
impregnados por ideologias contrárias, baseadas no papel suficiente do Estado
como protagonista único e exclusivo do processo de organização das
sociedades); e também por parte daqueles que, como registrou o próprio
Friedman, “foram violentados ou deixados para trás pelo novo sistema” (6).

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Stiglitz, Joseph (2002). A globalização e seus malefícios. São Paulo: Futura, 2003.

(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Anthony Giddens considerou um erro ver a globalização como um “fenômeno quase
exclusivamente em termos econômicos... A globalização é política, tecnológica e cultural,
tanto quanto econômica”. Para Giddens as mudanças em curso no mundo atual “estão
criando algo que nunca existiu antes, uma sociedade cosmopolita global. Somos a primeira
geração a viver nessa sociedade, cujos contornos até agora só podemos perceber
indistintamente. Ela está sacudindo nosso modo de vida atual, não importa o que sejamos.
Não se trata – pelo menos no momento – de uma ordem global conduzida por uma
vontade humana coletiva. Ao contrário, ela está emergindo de uma maneira anárquica,
fortuita, trazida por uma mistura de influências... A globalização não é um acidente em
nossas vidas hoje. É uma mudança de nossas próprias circunstâncias de vida. É o modo
como vivemos agora”. Assim, para Giddens, “é errado pensar que a globalização afeta
unicamente os grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização não diz
respeito apenas ao que está “lá fora”, afastado e muito distante do indivìduo. É também
um fenômeno que se dá “aqui dentro”, influenciando aspectos ìntimos e pessoais de nossas
vidas... A globalização não somente puxa para cima, mas também empurra para baixo,
criando novas pressões por autonomia local. O sociólogo americano Daniel Bell descreve
isso muito bem quando diz que a nação se torna não só pequena demais para resolver os
grandes problemas, como também grande demais para resolver os pequenos”. Avançando
mais nessa linha de raciocìnio, Giddens percebe que “a globalização é a razão do
ressurgimento de identidades culturais locais em várias partes do mundo”.

(3) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. Mais
adiante veremos que a queda do Muro é um evento cujas conotações simbólicas são muito
mais profundas e abrangentes do que parecem à primeira vista. A queda do Muro de
Berlim representa a queda de muitos outros muros, o fim de muitas separações, ou seja, da
ausência de múltiplos caminhos... É, em certo sentido, uma dessacralização do mundo
(sagrado = separado), ou seja, uma des-hierarquização (de vez que a hierarquia constitui-se

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sempre como uma ordem sacerdotal, quer dizer, sagrada), caracterizada pela existência de
caminhos únicos. A possibilidade da conexão em rede – ou seja, da existência de múltiplos
caminhos – foi, aqui, o fator-chave.

(4) Idem.

(5) Idem-idem.

(6) Ibidem.

31
Globalização e fundamentalismos laicos (de mercado e
de Estado
Não poderemos compreender adequadamente o que é a globalização enquanto
não nos desvencilharmos de visões mercadocêntricas e estadocêntricas. Porque a
globalização é, fundamentalmente, um fenômeno da (uma mudança global na)
sociedade.

A visão de Friedman, conquanto (como frisei anteriormente), tenha o mérito


de reconhecer a dimensão política da globalização como processo de mudança
ora em curso no mundo, é claramente mercadocêntrica. Ele não se pergunta
se alguma coisa (e que tipo de coisa) mudou no desenho da sociedade civil e
nos seus padrões de relacionamento com o Estado e com o mercado, para
permitir que a conjunção de inovação tecnológica com livre mercado, sob
condições políticas favoráveis – com o fim do sistema de “muros” da guerra-
fria “que dividia todo o mundo” e a introdução da „www‟ (World Wide Web)
“que une todo o mundo” – pudesse assumir uma dimensão planetária,
alterando o antigo equilíbrio do sistema global (1).

Partindo de pressupostos semelhantes aos de Friedman, muita gente tenta


explicar a globalização a partir do mercado, imaginando talvez que alguma
coisa como uma acumulação ou incubação de forças econômicas, represadas
politicamente durante 40 anos e sem meios técnicos para se expressar, de
repente, quando as condições (políticas e técnicas) foram favoráveis, tivesse
irrompido à luz do dia. Nas explicações dessas pessoas os comportamentos e
as normas sociais são, por certo, alterados por tal fenômeno, mas o fenômeno
em si mesmo não é explicado pela alteração da estrutura e da dinâmica social,
por mudanças no “corpo” e no “metabolismo” das sociedades e nem por
mudanças culturais-civilizacionais. É como se as forças de mercado tivessem
um comportamento autônomo, uma dinâmica imanente, inerente apenas à sua
própria “esfera” e não fossem construìdas historicamente pela experiência
concreta das sociedades humanas.

Por outro lado, os que se contrapõem a essa visão, em geral também não
fazem tais perguntas e não tentam investigar o que mudou na sociedade para
produzir o fenômeno. Reagem à ideologia „globalista‟ (neoliberal) com uma
outra ideologia, simetricamente posta, contraliberal: o estatismo.

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A cruzada estatista contra o neoliberalismo
No afã de resistir às mudanças, introduzidas em especial a partir dos anos 90,
no padrão de relação Estado-sociedade, a luta contra a globalização assumiu
assim, em grande parte, a feição ideológica de uma cruzada contra o chamado
neoliberalismo.

O estatismo (ou estadocentrismo) imagina a sociedade como dominium do


Estado. Imagina que o Estado não só detém mas deve deter eternamente o
monopólio do público. Imagina, hobbesianamente, que o Estado deve ser o
supremo regulador dos conflitos sociais. E imagina, em alguns casos, que o
Estado deva ser o protagonista único e exclusivo das mudanças sociais.

Ora, para quem pensa dessa maneira não pode mesmo haver ameaça maior do
que a globalização. Porque a globalização ameaça de fato o velho status do
Estado-nação. Todavia, os que se deixaram impregnar pela ideologia estatista
deveriam parar e perguntar: qual é mesmo o problema para a sociedade
humana? O fato de estarmos entrando em contato com realidades que não
podem mais ser adequadamente enfrentadas pelas tradicionais estruturas
políticas nacionais e pelos sistemas de governança atuais, não deveria significar
que, necessariamente, está indo tudo por água a baixo. Deveria significar, isso
sim, que temos pela frente a imensa tarefa de reconstruir novas estruturas e
novos sistemas que dêem conta de enfrentar os novos desafios.

Globalidade irreversível
Beck lista oito motivos que tornam a globalidade irreversível:

“1) ampliação geográfica e crescente interação do comércio internacional, a


conexão global dos mercados financeiros e o crescimento do poder das
companhias transnacionais.

2) A ininterrupta revolução dos meios tecnológicos de informação e


comunicação.

3) A exigência, universalmente imposta, por direitos humanos – ou seja, o


princípio (do discurso) democrático.

4) As correntes icônicas da indústria cultural global.

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5) A política mundial pós-internacional e policêntrica – em poder e número...
com uma quantidade cada vez maior de atores transnacionais (companhias,
organizações não-governamentais, uniões nacionais).

6) A questão da pobreza mundial.

7) A destruição ambiental mundial.

8) Conflitos transculturais localizados” (2).

A esta lista poderíamos acrescentar outros tantos itens que comparecem na


nova realidade do mundo globalizado e que, de algum modo, estão associados
aos desafios para os quais o velho sistema de Estados-nações não está
preparado:

1‟) A volta ao local, ou o reflorescimento da perspectiva comunitária como


alternativa de desenvolvimento, revelando a inadeqüabilidade do Estado-
nação para interagir com as peculiaridades dos processos locais. Como
assinalou Daniel Bell: a nação se tornou, simultaneamente, pequena demais
para resolver os grandes problemas e grande demais para resolver os
pequenos. Como exemplos poderíamos citar, no primeiro caso, as questões
ambientais e as questões relacionadas aos direitos humanos, que ultrapassam
os fronteiras nacionais; e, no segundo caso, as questões, sobretudo políticas,
relacionadas ao desenvolvimento local (que questionam as cadeias clientelistas
de intermediação de recursos públicos que sustentam todo o sistema político).

2‟) O terrorismo internacional, a lavagem de dinheiro e os paraìsos fiscais, o


narcotráfico e os tráficos de armas, de nascituros e crianças para adoção ilegal,
de pessoas para prostituição ou trabalho forçado e de órgãos.

3‟) A incapacidade do Estado-nação de reprimir as novas dimensões coletivas


da criminalidade e o questionamento e a deslegitimação – na prática de
milícias, gangues, grupos separatistas – do monopólio da violência por parte
do Estado.

4‟) A produção de armas de destruição em massa, sobretudo as nucleares,


químicas e biológicas (mas também as de altíssima tecnologia, como as
eletromagnéticas) nas mãos de países autocráticos e nas mãos de grandes
potências com pretensões imperiais.

5‟) As ameaças à paz mundial representadas pela velha noção de soberania


(como vem revelando atualmente as insanidades do grupo belicista que

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ascendeu ao poder nos USA com George W. Bush e as novas ideologias
perversas urdidas e difundidas por esse grupo, como, por exemplo, a doutrina
da preempção ou da guerra preventiva).

6‟) As novas doenças endêmicas e pandêmicas, provavelmente causadas por


uma intervenção antrópica desarmonizante no meio ambiente natural (como a
malária amazônica resultante de desmatamento e as viroses da “zona quente”
da África subsaariana).

7‟) O colapso da polìtica nacional baseada no sistema de representação, ou


seja, o esgotamento e a perda de legitimidade das democracias realmente
existentes (transformando os processos de eleição de governantes e
legisladores, como diz Thompson, em uma espécie de “cruzamento do
entretenimento, dos esportes televisionados e da gestão de celebridades na
cultura popular da ilusão compartilhada...” (3).

8‟) A exarcebação de fundamentalismos religiosos (em maior parte ligados à


correntes sectárias do islamismo, mas não só) e laicos, como o
fundamentalismo de mercado (com a ampla intoxicação pelo neoliberalismo
dos policymakers e decisores de vários países do mundo, disseminando visões
ideológicas, pretensamente científicas, segundo as quais o ser humano seria
naturalmente ou intrinsecamente competitivo e desenhando políticas públicas
que não levam em conta o papel da cooperação) e o fundamentalismo de
Estado (com o amplo recrudescimento do estatismo, a partir, inclusive, de
uma reação contra-liberal ao processo de globalização por parte de tendências
políticas de direita e de esquerda, disseminando uma cultura adversarial e
visões pervertidas segundo as quais não existem propriamente problemas
senão culpados, de vez que a sociedade humana é tomada como um campo
inexoravelmente vincado pela relação amigo x inimigo e fazendo política de
oposição na base do “quanto pior para o paìs comandado pelo inimigo
melhor para mim” ou, quando na situação, desenhando políticas públicas
como políticas exclusivamente estatais que, igualmente, não levam em conta o
papel da cooperação).

(A esta nova lista ainda poderiam ser acrescentados alguns outros itens, como
o protecionismo dos países ricos e as demais assimetrias do mercado
internacional, ou seja, como lembra Stiglitz, as injustiças do sistema comercial
global e a hipocrisia das organizações econômicas internacionais quando
fingem que estão “ajudando paìses em desenvolvimento ao forçá-los a abrir
seus mercados para as mercadorias das nações industrializadas e
desenvolvidas, ao mesmo tempo que essas nações protegem seus próprios
mercados”) (4).

35
Para enfrentar esses novos desafios de maneira responsável, é necessário
abandonar tanto a visão eufórica do globalismo econômico, que imagina que
o livre jogo das forças de mercado levará, por si só, ao melhor dos mundos,
quanto a visão reativa, estadocêntrica, que imagina que o fim da capacidade de
impor, vertical e heteronomamente, uma ordem previamente concebida ao
caos social, signifique alguma coisa como a volta à barbárie. Para fazer isso é
preciso partir de uma visão proativa, que aceita o desafio da mudança da
realidade, tal como ela se afigura (com os seus aspectos negativos e positivos,
ainda que, no momento, mais negativos do que positivos) e procura fluir junto
com ela para captar o seu sentido, conhecer as suas tendências e interagir
positivamente com as novas configurações de atores que ela enseja.

A nova sociedade civil


Para falar de novos atores, se o processo chamado de globalização não
modificasse o comportamento dos Estados-nacionais, não poderia estar
emergindo, não pelo menos com a intensidade e a velocidade que verificamos
na década de 1990, uma nova sociedade civil (o chamado terceiro setor).
Igualmente, o reflorescimento da perspectiva comunitária – um dos sinais
mais promissores dos tempos atuais – não poderia estar ocorrendo se o velho
Estado-nação permanecesse tal como era antes. Foi preciso abalá-lo,
desconstruir a ideologia que justificava a sua autosuficiência, de certo modo
vergar a sua espinha dorsal – sua pretensão de onipotência e sua ambição de
onipresença na sociedade – para que houvesse um pouco mais de ar para
respirar... e as pessoas, então, respirando por seu próprio esforço (fora dos
“balões de oxigênio da grande incubadeira-Estado”), pudessem se agrupar
para pensar e agir por si mesmas.

É assim que está emergindo, em toda parte em que as condições políticas o


permitem, uma nova sociedade civil. Pessoas se associando a outras pessoas
para fazer coisas que, voluntariamente, estão a fim de fazer – e, cada vez mais,
de maneira independente de raça e credo, de língua e costumes, de território e
nação – não, predominantemente, para ganhar alguma coisa, levar alguma
vantagem, destruir algum concorrente ou eliminar algum inimigo. Isso
significa que estamos avançando, na prática, para a perspectiva inédita de um
mundo onde seja desejável e possìvel a cooperação, um „mundo (pelo menos
em parte e sob certas condições) de colaboradores‟, ao invés do „mundo
(apenas) de competidores‟ (dos neoliberais) ou do „mundo vincado pela
relação amigo x inimigo‟ (dos estatistas).

36
Com efeito, a cooperação é (para usar uma expressão marxiana) mais
„conforme ao ser social‟ da nova sociedade civil (ou do terceiro setor) do que
ao ser social do mercado ou ao ser social do Estado. Por isso, a emergência do
terceiro setor (crescentemente acompanhada do reconhecimento do seu papel
estratégico para o desenvolvimento social) é um fenômeno muito significativo
dentro do processo de globalização.

Como qualquer pessoa inteligente pode facilmente perceber, isso nada tem a
ver com perspectivas privatizantes ou com a derruição do Estado pregada
pelo pensamento neoliberal ou a ele atribuída. Tem a ver com uma nova
perspectiva sociocêntrica, publicizante mas não estatizante, que está podendo
surgir no contexto atual do processo de globalização, mesmo que os efeitos
desse processo tenham se mostrado, até o momento, em grande parte,
perversos.

Portanto, para compreender adequadamente o que é a globalização temos que


centrar o foco na sociedade e não apenas no mercado ou somente no Estado,
desvencilhando-nos dessas duas “drogas pesadas” que turvam o pensamento,
ou seja, das ideologias mercadocêntricas e estadocêntricas: o neoliberalismo e
o estatismo, respectivamente.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

(2) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.

(3) “À medida que a polìtica do governo representativo é transformada em esporte e


entretenimento pela mídia eletrônica, em um ambiente em que as pessoas ficam livres para
votar na celebridade mais bem-sucedida na captação de recursos e na propaganda, a
civilização tradicional volta a assumir formas distorcidas de estágios anteriores –
subculturas acadêmicas de filosofias pós-modernas não populares e obscurantistas em
universidades, cultos a gurus de autoridade carismática em religiões medievais e gangues de
adolescentes de dominação primata”). Cf. Thompson, William Irwin. “Cultural History and
Complex Dinamical Systems” in “Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution” (MA:
Lindisfarne Books, 2001).

(4) Stiglitz, Joseph (2002). A globalização e seus malefícios. São Paulo: Futura, 2003.

37
Globalização e mudança social
O novo ambiente político mundial e a inovação tecnológica que têm possibilitado
o surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização é acompanhado
por uma mudança social em sentido amplo (ou seja, no sentido “micro”, relativo
ao “corpo” e ao “metabolismo” das sociedades, isto é, aos padrões de organização
e aos modos de regulação de conflitos; e no sentido “macro”, cultural-
civilizacional), interagindo, todos esses fatores, em um mesmo processo de “co-
originação dependente”.

A partir de meados da década de 1990, alguns pesquisadores compreenderam


também que as inovações tecnológicas que possibilitaram a ocorrência do
processo atualmente chamado de globalização não determinaram, stricto sensu,
este processo, senão que permitiram que ele acontecesse com as características
que de fato apresenta no final do século 20 e início do século 21 e que o
distinguem de outras possìveis ou imaginadas “globalizações” pelas quais teria
passado o mundo em épocas pretéritas.

Por certo a globalização atual, dominada pelo fato da interligação crescente


das economias nacionais sob a influência devastadora de um mercado
financeiro livre de qualquer regulação normativa, acarreta muitas injustiças
comerciais e sociais. O fenômeno global que chamamos de globalização, no
entanto, é muito maior do que isso. Não se trata, como ainda imagina boa
parte da velha esquerda, de um plano urdido pelas corporações transnacionais,
que estão na vanguarda do processo de internacionalização da economia
mundial, para dominar o mundo. Trata-se do surgimento de novas condições,
sem as quais seria impossível o fluxo interativo de informação e conhecimento
que tem permitido, inclusive, que os poderosos complexos financeiros e
comerciais possam se internacionalizar e se integrar e tentar dominar o
mundo. Mas que permite, também, a percepção compartilhada de problemas e
perspectivas globais e o surgimento de novos atores globais, como a nova
sociedade civil mundial que está emergindo na atualidade.

Inovação tecnológica e mudança social


Muitas vezes interpretamos essas condições como recursos técnicos: o
surgimento das redes telemáticas que possibilitam a interação em tempo real,

38
dando uma qualidade inédita ao processo de globalização do final do século
20, que o diferencia qualitativamente das antigas globalizações possivelmente
já ocorridas em outras épocas, como na era das navegações, por exemplo. No
entanto, é preciso ver – e isso faz toda a diferença em termos de análise – que
tais condições são sociais. O fundamental aqui, como veremos mais adiante,
não é o fato das redes telemáticas serem telemáticas (inovação tecnológica
resultante da sinergização entre tecnologias de comunicação em tempo real
com tecnologias miniaturizadas de informação em tempo real, amplamente
disponibilizadas) e sim o fato de serem redes (inovação social no padrão de
organização).

Os avanços técnicos que estão possibilitando a existência de um mundo em


tempo real – ou seja, de um mundo sem distância – cumprem um importante
papel, de fato, mas a direção do seu desenvolvimento responde ao surgimento
de novas relações sociais e não o inverso. Quando se inventa um novo
hardware ou um novo software que permitem que tal ou qual operação seja feita
entre grupos humanos é porque essa operação atende ou corresponde a um
padrão de comportamento dado pela configuração e pela dinâmica desses
grupos – uma necessidade, um desejo coletivo, enfim uma possibilidade de
vida ou convivência social admissível ou apropriável por eles.

Em outras palavras, são as relações sociais que determinam, em grandes


linhas, os contornos e as características do campo dentro do qual surge a
inovação tecnológica. Isso vale tanto para a tecnologia hidráulica dos egípcios,
há 4 mil anos, quanto para a tecnologia atual das redes de computadores. Com
efeito, como lembra Thompson (no excelente artigo “História cultural e
sistemas dinâmicos complexos”, 2001), cada uma das bifurcações ou
transformações culturais... [pelas quais passou a humanidade], desde as
ferramentas da Idade da Pedra até os computadores, não constitui
simplesmente uma mudança tecnológica. A própria inovação tecnológica é
algo profundamente embutido em diversos sistemas de valores e símbolos, de
modo que uma nova ferramenta pode surgir em sincronia com uma nova
forma de sistema de governo e também como uma nova forma de
espiritualidade. Em contraste com a história mais linear da tecnologia, a
história cultural preocupa-se com o complexo sistema dinâmico no qual a
flutuação biológica natural, as restrições ecológicas e os sistemas de
comunicação e organização social interagem em um processo de “co-
originação dependente” (1).

Mais ou menos nessa mesma linha, conquanto referindo-se especificamente à


Internet, Manuel Castells assinalou, no inìcio de 2002, que “as tecnologias são
produzidas por seu processo histórico de constituição e não simplesmente

39
pelos seus desenhos originais enquanto tecnologia... A Internet é um
instrumento que desenvolve mas não muda os comportamentos. São os
comportamentos que se apropriam da Internet e, portanto, se amplificam e se
potencializam a partir do que são. Isso não significa que a Internet não seja
importante, mas significa que não é a Internet que muda o comportamento e
sim que é o comportamento o que muda a Internet” (2) (cf. Texto 1).

Ora, a esta altura da discussão, a pergunta que deve ser feita é a seguinte: qual
é a mudança social (em sentido amplo, ou seja, no sentido “micro”, relativo a
estrutura e a dinâmica das sociedades e no sentido “macro”, cultural-
civilizacional) acompanhante – vamos dizer assim – das novas condições
políticas mundiais e da inovação tecnológica que têm possibilitado o
surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização? Esse é o
ponto.

Acho que é possìvel mostrar que no sentido “micro”, a mudança social


acompanhante das novas condições políticas mundiais e da inovação
tecnológica que têm possibilitado a manifestação do fenômeno que
interpretamos como globalização é uma mudança democratizante e aponta,
dessarte, na direção de novas redes pactuadas de conversações, de um novo
“metabolismo” (um novo modo de regular conflitos no interior do sistema
formado por agentes que interagem em termos de cooperação e competição) e
de um novo “corpo” compatìvel com esse novo “metabolismo” (ou seja, um
novo padrão de organização, caracterizado pela existência de caminhos
múltiplos entre os agentes, de conexões “horizontais” – isto é, de redes).
Nesses termos, o sentido da grande mudança é o da emergência de cada vez
mais redes e a emergência das redes, portanto, constitui a chave para entender
a mudança social que está na base do fenômeno que chamamos de
globalização.

Penso ser possìvel mostrar também que, no sentido “macro”, a mudança


social acompanhante do surgimento do novo ambiente político mundial que
se esboça a partir da queda do Muro e que, juntamente com a inovação
tecnológica, tem possibilitado a manifestação do fenômeno que interpretamos
como globalização é o surgimento de uma nova cultura planetária, uma
cultura conforme àquilo que Giddens chamou de “sociedade cosmopolita
global”, uma cultura que só foi possível emergir na nova ambiência política
pós-guerra-fria e que – aqui está toda a dificuldade para a análise – acompanha
sim os movimentos da nova economia globalizada, porém pode apontar para
outra direção, diferente daquela captável pela visão mercadocêntrica ou
proposta pelo „globalismo‟ como ideologia neoliberal.

40
Assim, há quem anteveja que o processo de emersão dessa nova cultura tenha
outro sentido. Thompson, por exemplo, acredita que “estamos
testemunhando o surgimento de complexos sistemas noéticos de governança
nos quais os seres humanos estão se agrupando em redes eletrônicas globais
de consciência. Máquinas que antes eram externas a nós estão se tornando
arquiteturas íntimas do nosso envolvimento com outras mentes, outras
culturas, outros corpos celestiais” (3).

Com efeito, as coisas estão tão imbricadas – novo ambiente político mundial,
inovação tecnológica, nova cultura correspondente a uma sociedade
cosmopolita global, nova morfologia da sociedade-rede e novos processos
democrático-participativos ensaiados sobretudo em âmbito local – que torna-
se muito difícil para a análise linear da velha sociologia (que procura relacionar
causa e efeito por meio de relações unívocas ou bi-unívocas e confunde
causação com anterioridade temporal) captar o fenômeno em sua globalidade.
Mas a globalização, como, aliás, diz o termo, é um fenômeno que só se deixa
captar por uma visão da sua globalidade enquanto sistema complexo
interagente que co-evolui com seus componentes, relacionados entre si por
processos de co-originação com múltiplos laços de interdependência.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in
“Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.

(2) Castells, Manuel (2002). “A Internet e a Sociedade Rede”.


http://campus.uoc.es/web/cat/index.html.

(3) Thompson; op. cit.

41
Texto 1 | Castells e a „Galáxia da Internet‟
“A Internet é um instrumento que desenvolve mas não muda os comportamentos. São os
comportamentos que se apropriam da Internet e, portanto, se amplificam e se potencializam
a partir do que são. Isso não significa que a Internet não seja importante, mas significa que
não é a Internet que muda o comportamento e sim que é o comportamento o que muda a
Internet”.

Tomando como exemplo a tecnologia da Internet, Manuel Castells, na aula


inaugural do programa de doutorado sobre sociedade da informação e do
conhecimento, proferida em fevereiro de 2002 na Universidade Aberta da
Catalunha (UOC), intitulada “A Internet e a Sociedade Rede” (1) afirma que
“a Internet [que não passa de “uma rede de redes de computadores capazes de
se comunicar entre si”] é o tecido de nossas vidas neste momento... No
entanto, essa tecnologia é muito mais do que uma tecnologia. É um meio de
comunicação, de interação e de organização social”.

Castells comenta a famosa idéia de que “a Internet é algo incontrolável, algo


libertário, etc., por causa da tecnologia”. Para ele, “isso ocorre porque esta
tecnologia foi desenhada, ao longo da sua história, com tal intenção. Quer
dizer, como um instrumento de comunicação livre, criado de forma múltipla
por pessoas, setores e pesquisadores inovadores, que queriam que ela fosse
um instrumento de comunicação livre. Creio, nesse sentido, que as tecnologias
são produzidas por seu processo histórico de constituição e não simplesmente
pelos seus desenhos originais enquanto tecnologia... A Internet é um
instrumento que desenvolve mas não muda os comportamentos. São os
comportamentos que se apropriam da Internet e, portanto, se amplificam e se
potencializam a partir do que são. Isso não significa que a Internet não seja
importante, mas significa que não é a Internet que muda o comportamento e
sim que é o comportamento o que muda a Internet”.

Castells conclui dizendo que “a Internet é a própria sociedade, expressa os


processos sociais, os interesses sociais, os valores sociais, as instituições
sociais... A especificidade da Internet é que ela constitui a base material e
tecnológica da sociedade rede, é a infraestrutura tecnológica e o meio
organizativo que permite o desenvolvimento de uma série de novas formas de
relação social que não têm sua origem na Internet, que são fruto de uma série
de mudanças históricas, porém que não poderiam desenvolver-se sem a
Internet. Essa sociedade rede é a sociedade que eu analiso como uma
sociedade cuja estrutura social está construída em torno de redes de
informação a partir da tecnologia da informação microeletrônica estruturada
na Internet. Porém a Internet, nesse sentido, não é simplesmente uma

42
tecnologia, é o meio de comunicação que constitui a forma organizativa de
nossas sociedades... A Internet é o coração de um novo paradigma
sociotécnico que constitui, na realidade, a base material de nossas vidas e de
nossas formas de relação, de trabalho e de comunicação. O que a Internet faz
é processar a virtualidade e transformá-la em nossa realidade, constituindo a
sociedade rede, que é a sociedade em que vivemos”.

Com efeito, Manuel Castells, assinalou como uma das características dos
movimentos sociais contemporâneos, o fato de que, “cada vez mais, o poder
funciona em redes globais e as pessoas vivenciam e constroem seus valores,
suas trincheiras de resistência e suas alternativas em sociedades locais. O
grande problema que se coloca é como, desde o local, se pode controlar o
global, como, a partir da minha vivência e da minha relação com o meu
mundo local, que é onde eu estou, onde eu vivo, posso me opor à
globalização, à destruição do meio ambiente, ao massacre do Terceiro Mundo
em termos econômicos. Como se pode fazer isso? Pois bem, a Internet
permite a articulação dos projetos alternativos locais em protestos globais, que
acabam aterrissando em algum lugar, por exemplo, em Seattle, Washington,
Praga, etc., porém que se constituem, se organizam e se desenvolvem a partir
da conexão pela Internet, que dizer, de uma conexão global, de movimentos
locais e de vivências locais. A Internet é a conexão global-local, que é a nova
forma de controle e de mobilização social em nossa sociedade”.

No livro “The Internet Galaxy: Reflections on Internet, Business and Society” (Oxford:
Oxford University Press, 2001) Manuel Castells já havia tecido reflexões sobre
a Internet, os negócios e a sociedade (2). O nome da obra evoca, obviamente
o célebre livro de MacLuhan: “assim como a difusão da máquina impressora
no Ocidente criou o que MacLuhan chamou de a “Galáxia de Gutenberg”,
ingressamos agora em um novo mundo de comunicação: a Galáxia da
Internet”, afirma Castells.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Castells, Manuel (2002). “A Internet e a Sociedade Rede”.


http://campus.uoc.es/web/cat/index.html.

(2) O livro foi publicado no Brasil com o mesmo nome. Cf. Castells, Manuel (2001). A
Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003.

43
Globalização irreversível
A globalização é um fenômeno irreversível. Ao que ela vai levar, contudo,
depende da evolução do sistema diante da bifurcação que se defronta na
atualidade.

Entendido como um processo de desconstituição do antigo sistema mundial


baseado no Estado-nação, parece óbvio que a globalização é um processo
irreversível. Temos hoje outros atores internacionais, além do Estado-nação.
Do ponto de vista econômico, como assinala Friedman, “os paìses... ainda são
de enorme importância, hoje em dia; mas também o são os supermercados e
os indivíduos com superpoderes. É impossível compreender o sistema da
globalização ou a primeira página dos jornais, sem a visão da interação
complexa entre esses três agentes: os Estados em choque com os Estados, os
Estados em choque com o supermercados, e os supermercados e Estados em
choque com os indivìduos com superpoderes” (1).

Eliminar esses outros sujeitos que atuam na cena internacional, devolvendo ao


Estado-nação um papel semelhante ao que cumpria antes da queda do Muro,
para tomarmos um referencial político, não parece ser uma tarefa possível.
Para o mal ou para o bem (melhor seria dizer: para o mal e para o bem), o
processo de globalização interligou as unidades sócio-territoriais do planeta,
os diversos mundos que antes podiam viver mais ou menos isolados, de tal
forma e com tal intensidade que, voltar a estados anteriores de separação,
implicaria realizar uma tarefa impossível: seria necessário não apenas cortar as
conexões, proibir os meios de comunicação globais e os meios de transporte
de pessoas e objetos senão, também, apagar a memória das duas últimas
décadas. Isso para não falar na desarrumação que tal tentativa de re-
compartimentação nas unidades nacionais acarretaria na economia global, no
desenvolvimento científico e tecnológico, na política internacional e, inclusive,
na estabilidade sócio-política mundial. Assim, parece razoável afirmar que a
globalização é um processo irreversível. No entanto, tal não significa que ela
nos levará para um lugar determinado, ou melhor, determinável a priori.

É bom frisar: conquanto o processo de globalização seja irreversível e


conquanto o seu sentido geral seja o da conformação de uma nova
configuração planetária, não é certo a que lugar ele levará. O mundo se
encontra diante de uma bifurcação e tanto pode avançar, como supõe
Thompson, “na transição da era de uma economia industrial global de

44
Estados-nações territoriais para uma ecologia cultural planetária de sistemas
de governança noéticos”, quanto pode retroceder para formas autoritárias,
com um recrudescimento do estatismo que tenderá a reinstaurar a velha
ordem do “estado de guerra” em âmbito planetário, baseada em novos
complexos-pólos pós-industriais militares de alta tecnologia (2).

Bifurcação
Mas o conceito de „bi-furcação‟ não deve ser entendido literalmente como a
existência de apenas duas alternativas, do tipo „civilização ou barbárie‟ ou
„ordem ou caos‟. Bifurcação é o ponto crìtico em que o sistema pode “optar”
entre mais de um futuro possível. Atingido esse ponto crítico, a descrição
determinista entra em colapso, tornando-se impossível prever o estado futuro
do sistema. Tudo indica que o mundo atingiu ou está atingindo esse ponto
crítico na passagem do século 20 para o século 21.

Existem vários futuros possìveis para além do bom cenário das „redes
eletrônicas de consciência‟ e do mau cenário „Blade Runner‟, ainda que – por
algum motivo que não deveria ser tão desprezado pelos analistas – mais de
90% das tentativas de antecipação da literatura de ficção científica apontem
para cenários do tipo Blade Runner.

Todavia, a mudança macro-cultural em curso, a mudança, como assinala


Thompson, “da nossa matriz de identidade de uma cultura de desejo de
compra econômica e fervor patriótico para uma nova cultura planetária, na
qual a ciência e a espiritualidade [um novo tipo de espiritualidade pós-
religiosa] são os paìs diplóides de uma nova matriz de consciência” está
gerando uma reação que introduz a bi-polaridade. Isso dá a impressão de que
só existem duas alternativas.

Essa reação é o fato mais preocupante nos dias de hoje, porquanto não se
trata propriamente apenas de uma reação à globalização (ou às suas más
conseqüências, o que seria justificável) e sim, também, de uma reação às
melhores promessas da globalidade. Os fundamentalismos religiosos (mas
também os laicos, como o neoliberalismo e o estatismo) e as reações
terroristas nacionalistas ao que Thompson chama de „planetização‟ (e que
outros, como Edgar Morin, por exemplo, chamam de „planetarização‟),
constituem ameaças gravìssimas. “Como a Inquisição e a Contra-Reforma –
escreve ele – essas explosões reacionárias podem prejudicar muito e atrasar a
transformação cultural por séculos a fio. Se a humanidade pode ou não
ascender para uma identidade transcultural, na qual a ciência e um novo tipo

45
de espiritualidade pós-religiosa possam reintroduzir a consciência plenamente
individuada da pessoa em um cosmos multidimensional, é a questão dos
nossos tempos” (3).

O que vai acontecer, não se pode saber de antemão. O jogo está sendo
jogado.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

(2) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in
“Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.

(3) Idem.

46
Globalização inédita
A globalização é inédita: está criando algo que nunca existiu antes.

Há quem afirme que o mundo já passou por várias globalizações. Citam-se,


freqüentemente, a globalização ocorrida na época dos descobrimentos ou,
ainda, a globalização dos primeiros anos do século 20. Os que dizem isso
estão, obviamente, pensando a partir da economia, estão pensando em termos
de ampliação e de integração de mercados.

Ora, mesmo desse ponto de vista, a globalização atual é um fenômeno único.


Antes de qualquer coisa porque, antes, jamais havia se conformado a
constelação particular de fatores políticos e tecnológicos que possibilitou a
globalização atual. Por exemplo, não se poderia sequer pensar em um
mercado financeiro que funcionasse em todos os lugares do planeta
simultaneamente, quer dizer, em tempo real. Primeiro porque as condições
políticas do mundo anterior não o permitiriam. Segundo porque a tecnologia
disponível não o permitiria.

Mas a razão fundamental e mais substantiva é, simplesmente, porque, antes,


não estava acontecendo a mudança social, em sentido amplo, atualmente em
curso. Ou seja, não estava ocorrendo, no nìvel “macro”, a transição para uma
cultura global e, no nìvel “micro”, a emergência de padrões de organização em
rede e de modos de regulação democrático-participativos – fatores sem os
quais, é bom frisar, a inovação tecnológica atual certamente não teria tomado
a direção que tomou. Basta apontar um exemplo: não teríamos a Internet,
não, pelo menos, com a estrutura e o funcionamento libertários que a
caracterizam, porque as pessoas que desenharam essa rede de redes de
computadores teriam feito, historicamente, outras escolhas, condicionadas por
outra imagem de ordem, por outros padrões de organização e por outros
princípios de regulação, avessos às possibilidades de imprevisibilidade e de
holarquia. Essas pessoas não poderiam suportar conviver com a idéia do caos
e dificilmente iriam produzir algo que ninguém pudesse, a rigor, controlar, a
partir de um modelo preexistente de ordem, de cima ou de fora. Não porque
não pudessem reunir disposição emocional (ou a vontade) ou capacidade
intelectual (ou os conhecimentos necessários) para fazer isso e sim porque não
teriam nenhuma experiência de mudança nessa direção capaz de mobilizá-las e
inspirá-las, nenhum precedente concreto que conformasse um novo “lugar” a
partir do qual tais escolhas fizessem sentido.

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A globalização atual, portanto, é única. A descompartimentação que ela
promove está ensejando o surgimento de uma coisa que jamais existiu antes
no mundo: um novo tipo de sociedade, uma sociedade cosmopolita global,
organizada em rede e capaz de possibilitar a interação entre seus nodos em
tempo real.

48
Globalização, ordem e desordem
A globalização não é uma ordem, mas um processo de desconstituição da velha
ordem.

A globalização não é ainda a transição para uma nova ordem mundial (embora
possa levar à essa transição), mas uma desconstituição do mundo assentado na
velha ordem do Estado-nação. Como diz Beck, é “uma sociedade mundial
sem Estado mundial e sem governo mundial” (1). E como assinala Giddens,
“não se trata de uma ordem global conduzida por uma vontade humana
coletiva” (2).

Para alguns, isso é um verdadeiro horror. Grande parte das reações


fundamentalistas à globalização (e, na verdade, à globalidade), sobretudo as
laicas, apóiam-se na idéia de ordem. São reações de fundo hobbesiano. Elas
partem da idéia de que se não houver uma ordem pré-existente, previamente
concebida e adotada por um sujeito particular que, falando em nome de um
bem comum universal, lhe dê o direito e a capacidade de impô-la, vertical e
heteronomamente, às sociedades, será a volta à barbárie ou o caos. Como tal
sujeito (único e exclusivo) é o Estado, trata-se de uma visão estadocêntrica
que, não raro, reúne agentes de direita e de esquerda no mesmo pólo reativo.

As sociedades humanas são tomadas, por tal visão, como sociedades em


estado de natureza (e uma natureza que se comporta darwinisticamente). Não
existe sociedade civil a não ser como dominium do Estado. Deixadas a si
mesmas as sociedades se fragmentarão em virtude da ausência de uma
instância superior reguladora dos conflitos gerados pela inexorável
competição entre os humanos. Os conflitos não são regulados por processos
políticos (ex parte populis), por modos de regulação societários e sim por
sujeitos pretensamente situados acima da sociedade. O fim (isto é, o sentido)
da política (ex parte principis) é a ordem (Hobbes) e não a liberdade (Spinoza).
A competição é inerente à natureza humana enquanto que a cooperação é o
resultado de um aprendizado (e de uma racionalização visando obter
vantagens a longo prazo). Em suma, a sociedade humana é incapaz de gerar
ordem espontaneamente a partir da cooperação.

Ora, se a ordem não pode ser gerada espontaneamente, ela tem que ser
imposta por alguém. O mal maior, então, não é a ordem injusta e sim a não-
ordem. O caos é o demônio, a deusa-dragão Tiamat (a deusa do caos) que

49
deve ser cortada por Marduk (o deus da ordem) com a espada que separa, que
reintroduz continuamente todo tipo de compartimentação. Com efeito,
grande parte das críticas estatistas, de direita ou de esquerda, à globalização,
são pautadas pelo tema do confronto com a desordem internacional gerada
por tal processo. São reações à desordem, como se a ordem anterior e
compartimentada do velho “sistema de muros” do Estado-nação fosse alguma
maravilha ou algo que merecesse ser preservado. Mesmo os relatórios
elaborados por segmentos da sociedade civil mundial (como os do Social
Watch) adotam essa perspectiva, o que nos dá uma medida de quão
profundamente estão fundeadas no subsolo dos preconceitos as visões
ideológicas de boa parte dos que se opõem a globalização por medo de uma
globalidade não-controlável, ou seja, por horror ao caos.

É bom repetir: a globalização não é um processo de constituição de uma nova


ordem mundial. Talvez seja até mais por isso, e não porque tal processo
estivesse construindo uma nova ordem injusta, que ela – ao ameaçar a velha
ordem (o sistema de equilíbrio de poder internacional protagonizado pelo
Estado-nação) sem colocar nada no lugar – aterrorize tanto os cavaleiros da
ordem do Estado.

Todavia, a desarrumação do mundo que está sendo promovida pela


globalização (com conseqüências adversas, por certo, para a qualidade de vida
da maior parte da população mundial, pelo menos nesse primeiro momento)
é, provavelmente, a única chance (ou uma chance) de desconstituir uma
ordem injusta que impede a planetização, obstrui a vigência da democracia no
plano internacional e possibilita a reprodução de enclaves autocráticos
constituídos por Estados nacionais separados e escudados por velhas noções
de soberania (3).

A opinião pública mundial não tem mais aceitado que, em nome da soberania,
um Estado particular prenda, torture ou elimine suas minorias políticas,
discrimine seus habitantes por razões religiosas, raciais ou de gênero, ou
provoque catástrofes ambientais. Isso significa que uma nova cultura
planetária está surgindo, impulsionada pelos novos movimentos sociais
globais emergentes, em defesa da democracia e dos direitos humanos, das
minorias sociais e do meio ambiente. A emersão desses novos movimentos
sociais – democráticos, pacifistas, ecumênicos, feministas, ecológicos e
comunitaristas – ampliou a participação popular, levando-a de uma
perspectiva predominantemente econômica e corporativa, setorial e
compartimentada sócio-territorialmente, para uma perspectiva mais universal
e global.

50
Os riscos da ordem imposta
O risco, visível hoje claramente, é que em nome da defesa desses valores, um
Estado particular se invista unilateralmente no direito de regular o mundo
todo e de normatizar, a partir do seu próprio poder militar e da sua capacidade
econômica, a vida dos outros povos do planeta. Por isso, é melhor que a
globalização seja mesmo “uma sociedade mundial sem Estado mundial e sem
governo mundial” e que tal processo não esteja instaurando “uma ordem
global conduzida por uma vontade humana coletiva” particular, até enquanto
não se reúnam as condições para a consolidação de uma nova instância (ou de
uma nova dinâmica, talvez seja melhor dizer assim) democrática internacional.

Um governo mundial democrático, nos moldes atuais (com um parlamento e


uma instância executiva mundiais ou algo equivalente), pode não ser, contudo,
a melhor alternativa. Pois, ao que tudo indica, não se trata de transplantar a
realidade política vigente no interior dos atuais Estados-nações considerados
democráticos, para o plano internacional. A democracia realmente existente
no interior das repúblicas e dos governos representativos modernos não tem
acompanhado as inovações (sociais, políticas, culturais e tecnológicas)
introduzidas com o atual processo de globalização. Com efeito, tais inovações
têm surgido, simultaneamente, na dimensão global (como resultado de
mudanças sociais macro-culturais) e na dimensão local (como resultado de
mudanças sociais na estrutura e na dinâmica de comunidades). O corpo e o
metabolismo do Estado-nação ainda permanece, todavia, como uma instância
intermediária resistente a tais mudanças. Basta ver como estão organizados os
sistemas políticos e eleitoral, as burocracias, os mecanismos verticais (em geral
clientelistas) de oferta das chamadas políticas públicas e os padrões de relação
entre Estado e sociedade ainda vigentes na maior parte, senão na totalidade,
dos Estados-nações do globo.

Isso significa que a mudança que tem ocorrido nas duas pontas – no global e
no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a forma Estado-nação atual,
embora essa forma esteja sendo ameaçada e, assim, esteja resistindo
ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de governança.

Sonhando com alternativas


Ora, novos sistemas globais de governança, para serem realmente novos,
deverão ser frutos de novos arranjos de atores, de uma nova arquitetura de
rede e de novos modos democráticos (de democracia em tempo real, de
ciberdemocracy), conectando identidades individuais e coletivas – sócio-

51
territoriais (comunidades), sócio-culturais (novos movimentos sociais,
organizações da sociedade civil e comunidades virtuais), sócio-produtivas
(novos arranjos produtivos e iniciativas de uma nova sócio-economia
solidária) e sócio-políticas (novos partidos e tendências de opinião nacionais,
sub-nacionais e trans-nacionais) – para além da identidade única do Estado-
nação.

Estamos fazendo aqui, evidentemente, um exercício de antevisão daquilo que,


na falta de uma palavra melhor, Thompson chamou de “ecumene planetária”
como sistema de governança resultante da transformação cultural, que está
acontecendo atualmente no mundo, na transição de uma economia
globalizada, ainda baseada em Estados-nações industriais, para uma nova
ecologia cultural global, caracterizada por uma era pós-industrial, por uma
matriz de identidade noética (científica e espiritual pós-religiosa, não mais
baseada em língua e religião e em classe e nação), por uma mentalidade
dinâmica complexa (pós-galileana) e por uma modalidade de governança
participativa (pós-representativa) (4). Exercícios análogos têm sido feitos por
vários arautos da sociedade da informação e do conhecimento ou da “nova
era”, conquanto tais exercìcios, em boa parte, ainda estejam, no primeiro caso,
muito presos a visões unilaterais das conseqüências introduzidas pelas
transformações econômicas e pelas inovações tecnológicas em curso no
mundo hodierno e, no segundo caso, a visões míticas, sacerdotais,
hierárquicas e autocráticas (como se a nova era devesse ser um novo reino de
velhos magos) e não consigam, ambas, captar muito bem as mudanças sociais,
em sentido amplo, implicadas em tudo isso.

O fato é que o processo de globalização não conduz para nova ordem alguma
previsível, conquanto sua ocorrência, desconstituindo a velha ordem,
destranca o futuro permitindo que a interação global dos atores sociais
construa, de fato, novas alternativas civilizatórias. Ainda que o sentido da
“nova ordem” jamais será dado pelo desejo de um ator individual, não é
proibido sonhar com tais alternativas (como ensaiei, seguindo Thompson, no
exercício acima).

E é melhor assim.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.

(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000

52
(3) Mollison e Slay observam que “não deveríamos confundir ordem com arrumação.
Arrumação separa... enquanto que a ordem integra.... Criatividade raramente é arrumada.
Poderíamos dizer, provavelmente, que arrumação é algo que acontece quando a atividade
compulsiva substitui a criatividade imaginativa...” Cf. Mollison, Bill e Slay, Reny Mia.
Introdução à Permacultura. Brasília: Ministério da Agricultura e do Abastecimento /
Projeto Novas Fronteiras da Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável, 1998.

(4) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in
“Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.

53
Globalização insuficiente
“A saída democrática para a crise atual exige mais globalização e não menos
globalização”.

Não é possìvel (e nem desejável) barrar a globalização “fugindo para trás” ou


tentando se refugiar em um mundo de localidades isoladas. No terceiro
capítulo deste livro, veremos que, para o processo de democratização, o
problema não é o excesso e sim a falta de globalização.

Referindo-se aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, Anthony


Giddens escreveu que “a saìda democrática para a crise atual exige mais
globalização e não menos globalização. A interdependência global veio para
ficar e é mais benéfica para o mundo do que uma retomada da polarização
dependência x independência que pretenda atrasar o relógio em várias
décadas” (1).

Contra aqueles que, tolamente, culpam a globalização pelo ocorrido, clamando


por mais governo, Giddens argumenta: “Precisamos de mais globalização para
emergir da fase difícil em que estamos mergulhados. Entre outras coisas,
globalização diz respeito a progressos nas leis internacionais... Os movimentos
antiglobalização advogam que o hiato entre pobres e ricos está aumentando.
Culpam a globalização por isso. Porém, a primeira idéia é questionável e, a
segunda, falsa. Não existe uma tendência única para as desigualdades no
mundo. Alguns países asiáticos, incluindo a China, têm, hoje, um Produto
Interno Bruto (PIB) – em comparação com países ocidentais – muito superior
ao registrado há 30 anos. O resultado se deve ao fato de que, durante esse
período, tais países obtiveram uma média de crescimento consideravelmente
alta. Esse sucesso foi atingido por meio de entrosamentos com a economia
mundial, não pela rejeição dela. Países que consideraram isolar-se das
influências da globalização, como Coréia do Norte, Mianmá ou Irã (e, claro,
Afeganistão), estão entre as mais pobres e autoritárias nações do mundo” (2).

A globalização é adversa por estar ainda inconclusa, incompleta, inacabada. O


mundo ficou como ficou (injusto socialmente, desigual economicamente,
opressivo politicamente e dominado ideologicamente) muito mais em virtude
do unilateralismo (estatista) dos impérios do que por todas as (pouquíssimas)
tentativas e ensaios de globalização que já ocorreram. E, do ponto de vista da
democracia, o mundo está, neste preciso momento, muito mais ameaçado

54
pelo unilateralismo do novo projeto de Império americano do que por todos
os efeitos perversos do liberalismo de mercado.

A globalização atual, entretanto, não é uma urdidura dos neoliberais que, por
certo, tentam conduzi-la em uma determinada direção. No entanto, não
obstante os seus desejos e os seus esforços, nenhum desfecho está assegurado
pois a globalização está em disputa.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Giddens, Anthony (2001). “O fim da globalização?”. Brasìlia: Correio Braziliense,


04/10/2001.

(2) Idem.

55
Globalização em disputa
A globalização está em disputa e essa disputa não é somente entre os neoliberais
(favoráveis) e os estatistas (contrários), mas envolve uma diversidade de posições
variantes e conforma novos campos políticos de convergência que superam tal
contradição.

A globalização está em disputa. Várias posições se defrontam ou se


confrontam hoje na cena internacional e não apenas as posições favoráveis
dos neoliberais e as posições contrárias dos estatistas. Uma tentativa
razoavelmente consistente e sofisticada de análise e sistematização da
configuração das forças que interagem hoje em torno do tema (e do
fenômeno) da globalização, foi elaborada no ano passado por David Held e
Anthony McGrew (2002), no livro “Globalization/Anti-Globalization”, em
especial no Capìtulo 8, intitulado “A nova polìtica da globalização: mapeando
ideais e teorias”.

Em suma, Held e McGrew, avançando um pouco em relação às suas próprias


análises anteriores e também em relação ao que escreveram sobre o assunto
Anthony Giddens e outros pesquisadores da London School of Economics,
estabelecem um quadro de referência para situar e caracterizar as diversas
posições existentes no cenário internacional.

Assim, em relação a cinco características principais (quais são os princípios


éticos norteadores; quem deve governar; quais são as reformas essenciais; qual
é a forma desejada de globalização; e, qual é a modalidade de transformação
política preconizada), Held e McGrew identificam seis posições distintas: os
neoliberais, os internacionalistas liberais, os reformadores institucionais, os
transformadores globais, os estatistas/protecionistas e os radicais (Cf. Texto
2).

Isso, convenhamos, é muito mais inteligente do que apenas contrapor, de um


lado, os neoliberais e, de outro, os que querem evitar o desastre neoliberal,
como fizeram, ad nauseam, durante toda a década de 1990, muitos ativistas
políticos em debates de salão, seminários acadêmicos, manifestações
corporativas, discussões partidárias e campanhas eleitorais, no Brasil e alhures.

56
Assim, em resumo, a tabela Held-McGrew (2002) – que procura estabelecer a
comparação entre os modelos de política – seria a composição das seis tabelas
seguintes:

Os neoliberais
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Liberdade individual

Quem deve governar? Indivíduos por meio de trocas de mercado e Estados


"mínimos"

Reformas essenciais Eliminação de organizações estatais burocráticas e


desregulação de mercados

Forma desejada de globalização Mercados livres globais, princípio geral do direito,


com "rede de segurança" para os mais desfavorecidos

Modalidade de transformação política Liderança política eficaz, minimização da regulação


burocrática e criação de uma ordem internacional
baseada no livre comércio

A crença dos neoliberais, expressada desde o início dos anos 60 da década


passada por Hayek e outros, é a de que a liberdade e a iniciativa dos
indivíduos – realizadas pelo livre mercado – devem ter a primazia em relação a
vida econômica e política nacionais e, inclusive, sobre a ordem internacional.
Ocorre que os neoliberais foram os primeiros a perceber o fenômeno da
globalização, o que os levou a cavar um sulco mercadocêntrico de
interpretação por onde escorreram as demais interpretações dos que se
posicionaram ou a favor ou contra o fenômeno. Muitos teóricos e militantes
políticos que ficaram contra a globalização, só o fizeram porque não
conseguiram distinguir entre a interpretação (subjetiva) que se consagrou e o
fenômeno (objetivo) que permaneceu praticamente desconhecido durante
vários anos (1).

Os internacionalistas liberais
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Direitos humanos e responsabilidades compartilhadas

Quem deve governar? As pessoas, por meio de governos, regimes


internacionais responsabilizáveis e organizações

Reformas essenciais Livre comércio internacional e criação de


mecanismos transparentes e abertos de governança

57
internacional

Forma desejada de globalização Interdependência acelerada por meio do livre


comércio, inserido em formas cooperativas de
intergovernamentalismo
Modalidade de transformação política Fortalecimento de um regime de direitos humanos,
regulação ambiental juntamente com uma reforma da
governança global

Os internacionalistas liberais são os defensores dos modelos de governança


estruturados em torno da idéia de cooperação internacional e da
democratização “realista” das relações entre os Estados-nações. Quase a
totalidade dos governos ocidentais e dos governos de repúblicas e governos
representativos modernos, são (ou se declaram como, ou adotam posturas
políticas que permitiriam seu enquadramento como) internacionalistas liberais.
Também participam dessa posição a maioria dos funcionários de organismos
internacionais e agências multilaterais (Organizações do Sistema ONU, OMC,
BIRD, BID etc.). Evidentemente, os internacionalistas liberais tomam a
competição entre os Estados nacionais como um dado da realidade a ser
mitigado por formas adequadas de mediação racional (2).

Os reformadores institucionais
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Ethos colaborativo baseado nos princípios da
transparência, das consultas e da responsabilização

Quem deve governar? As pessoas, por meio da sociedade civil, Estados


eficazes e instituições internacionais

Reformas essenciais Ampliação da participação política, abordagem


tripartite para processos decisórios em nível nacional
e internacional, provisão segura de bens públicos
globais

Forma desejada de globalização Processos globais regulados, juntamente com uma


governança global democrática

Modalidade de transformação política Fortalecimento do papel do Estado e da sociedade


civil visando ampliar espaços para ações coletivas e
reforma da governança do nível local para o global

Os reformadores institucionais são mais avançados do que os


internacionalistas liberais. Propõem uma reforma do sistema de governança
internacional ainda estruturado sobre a idéia original da Liga das Nações e das

58
Nações Unidas. Reconhecem as limitações do sistema ONU e admitem a
necessidade de participação de outros atores para além dos Estados nacionais.
Uma parte dos governos democráticos bem como um contingente crescente
de funcionários de instituições de fomento ao desenvolvimento do sistema
ONU e de agências de cooperação internacional poderiam ser enquadrados
nessa posição (3).

Os transformadores globais
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Igualdade política, liberdade igual, justiça social e
responsabilidades compartilhadas

Quem deve governar? As pessoas, por meio de mecanismos de governança


em múltiplas camadas, partindo do local para o
global

Reformas essenciais Fortalecimento da participação de membros


diversificados em comunidades políticas que se
sobrepõem, desenvolvimento de foros deliberativos
com a participação de todas as partes interessadas do
nível local para o global, fortalecimento do papel do
direito internacional

Forma desejada de globalização Sistema de governo de múltiplos níveis, democrático


e cosmopolita, regulação de processos globais
visando garantir uma autonomia igual para todos

Modalidade de transformação política Reconstrução da governança global por meio da


democratização dos Estados, da sociedade civil e das
instituições transnacionais

Os transformadores globais pareceriam ser os mesmos reformadores


institucionais quando fora dos governos e das instituições internacionais e
agências multilaterais sustentadas por governos, se não fosse por duas
diferenças muito importantes: eles se posicionam mais contundentemente
contra os rumos que vem tomando o processo de globalização e eles não
admitem que as formas de governança – subnacionais ou supranacionais –
centradas no Estado-nação, sejam as únicas possíveis. Por isso estão
engajados frequentemente em campanhas por reformas democratizantes das
instituições políticas em todos os âmbitos, inclusive no local e no global.
Nesta posição parecem se situar os autores do estudo em tela (4).

59
Os estatistas/protecionistas
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Interesse nacional, identidade sociocultural
compartilhada e ethos político comum

Quem deve governar? Estados, pessoas e mercados nacionais

Reformas essenciais Capacidade estatal de governar fortalecida,


cooperação política internacional (onde necessária)

Forma desejada de globalização Capacidade de Estados nacionais reforçada,


geopolítica eficaz

Modalidade de transformação política Reforma estatal e geopolítica

Sobre esses já tecemos muitos comentários nas seções anteriores. Os estatistas


constituem a força mais reacionária que ainda remanesce na atualidade. São os
únicos que podem ser considerados propriamente contrários à globalização
(não apenas às interpretações neoliberais do fenômeno, mas inclusive ao
sentido mesmo do fenômeno objetivo). Por isso, não seria muito adequado,
ao meu ver, imaginar – como fazem Held e McGrew – que eles possam
desejar uma forma qualquer de globalização. Os estatistas são estadocentristas
e, não raro, também são estadocultistas. Grande parte das instituições
executivas, parlamentares e judiciárias (sobretudo estas últimas) da imensa
maioria das nações-Estados no globo estão dominadas pela cultura estatista e
estão ocupadas por pessoas impregnadas por tal ideologia. Não há nenhuma
alternativa possível – nem mesmo para disputar os rumos do processo de
globalização, invertendo radicalmente o seu sentido para torná-lo mais justo e
mais includente – que possa se constituir em aliança com os estatistas (5).

Os radicais
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Igualdade, bem comum, harmonia com o meio
ambiente natural

Quem deve governar? As pessoas, por meio de comunidades que se


autogovernam

Reformas essenciais Empresas, locais de trabalho e comunidades auto-


administrados, juntamente com mecanismos
democráticos de governança

Forma desejada de globalização Localização, regionalização subnacional,


desglobalização

60
Modalidade de transformação política Movimentos sociais, organizações não-
governamentais, mudanças sociais "de baixo para
cima"

Este é o ponto mais fraco da análise de Held e McGrew. Em primeiro lugar,


porque nem todos os radicais são antiglobalização e, em segundo lugar,
porque há uma aproximação, não adequadamente identificada e realçada,
entre eles (ou parte ponderável deles) e os transformadores globais, em uma
intensidade às vezes até maior do que entre estes últimos e, por exemplo, os
internacionalistas liberais. Em todo caso, colocá-los em globo no limite do
espectro (onde deveriam estar, justamente, os estatistas) não parece correto
em termos de análise de posições políticas (6).

Mas Held e McGrew quiseram ir além do simples mapeamento das forças.


Eles identificaram aspectos em comum nos ideários políticos de algumas
posições (a dos internacionalistas liberais, a dos reformadores institucionais e
a dos transformadores globais) que conformariam um possível campo de
convergência em torno do que chamaram de uma (nova) „social democracia
cosmopolita‟. Desse campo de convergência não participariam – pelo menos
não diretamente – os neoliberais, os estatistas/protecionistas e os radicais.

Assim, Held e McGrew elaboraram um esquema das variantes políticas a


favor e contra a globalização, tentando evidenciar os padrões de influência e
as zonas de pontos em comuns às diversas posições, como podemos ver no
Diagrama de Held-McGrew, 2002 (cf. Diagrama 1).

Ao meu ver há aqui, todavia, dois problemas. O primeiro problema diz


respeito à classificação dos radicais. Os autores incluem sob tal denominação
grande parte dos inovadores, sobretudo os glocalistas (a turma do „pensar
globalmente e agir localmente‟) como se fossem, todos, agentes anti-
globalização – o que não é justo. Os que reconhecem o fenômeno da
glocalização, no sentido em que venho empregando aqui o termo, não são
anti-globalização necessariamente. Essa, aliás, é a grande novidade do
fenômeno complexo, ora em curso no mundo, que chamamos em geral de
globalização e que é, na verdade, uma glocalização; ou seja, a novidade da
mudança social que tem como fulcro a possibilidade inédita da conexão
global-local na emergente sociedade-rede.

O segundo problema se refere à tentativa de reeditar a velha e surrada solução


social-democrata, agora renovada pelo atributo de “cosmopolita”. Tudo bem
com o cosmopolita. O problema está no componente social-democrata que é,
na verdade, um componente estatal-democrata. Em outras palavras, a social-
democracia é um estatismo social-democrata. Como diz Claus Offe, é uma

61
“filosofia pura da ordem social” (7) que confere ao Estado o protagonismo
único, exclusivo ou preponderante, excluindo ou subordinando as outras
esferas da realidade social: o mercado e a sociedade-civil (ou a comunidade),
ao invés de buscar a “mistura cìvica correta” desses três grandes tipos de
agenciamento.

De qualquer modo, o texto de Held e McGrew é um insumo importante para


estimular e informar esse debate. No entanto, seus esquemas deveriam ser
corrigidos para evitar alguns problemas, como, por exemplo, a confusão entre
os que estão trabalhando na nova perspectiva da localização e que não
gostariam de ser arrolados, juntamente com os manifestantes de Seattle, sob o
mesmo epìteto de “radicais”.

Em suma, Held e McGrew deixam de considerar uma posição importante no


espectro de forças: a posição daqueles que são a favor da globalização, que
acham que o que está faltando é mais globalização (e não menos globalização),
que compartilham de muitos dos ideais dos que eles chamam de radicais, mas
que também não se confundem com os reformadores institucionais e com os
transformadores globais. Esses são os que poderiam ser chamados de
glocalistas.

Os glocalistas
Para usar as mesmas categorias comparativas da tabela de Held-McGrew, as
posições dos glocalistas seriam as seguintes:
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Liberdade como sentido da política (em uma
democracia radicalizada ou democratizada), igualdade
como possibilidade (mas não-obrigatoriedade) de
inserção e participação igualmente valorizada de
todos na comunidade política e sustentabilidade.
Aposta na capacidade da sociedade humana de gerar
ordem espontaneamente a partir da cooperação

Quem deve governar? As pessoas, por meio de comunidades que se


autogovernam e por meio de mecanismos de
governança em múltiplas camadas articulando o local
(em diversos níveis) e o global

Reformas essenciais Reforma do padrão de relação entre Estado e


sociedade com o fito de buscar sinergias entre os três
principais tipos de agenciamento: o Estado, o
mercado e a sociedade civil (ou a comunidade)

62
Forma desejada de globalização Formação de uma nova sociedade cosmopolita global
(planetária) como uma rede holográfica de miríades
de comunidades (sócio-territoriais e virtuais –
subnacionais e transnacionais) interdependentes.

Modalidade de transformação política Empoderamento molecular das populações,


sociedade-rede, transformação glocalizante da forma
atual do Estado-nação (rumo ao Estado-rede),
revolução do local como revolução
planetária/comunitária em direção à uma “ecumene
planetária”.

A presença dessa nova variante altera obviamente o diagrama proposto por


Held e McGrew, gerando um novo esquema como podemos ver no
„Diagrama de Held-McGrew (2002) modificado por Franco (2003)‟ (ver
Diagrama 2). Mas o perfil dos glocalistas, as suas características básicas
distintivas e o overlapping na posição política com os reformadores
institucionais, com os reformadores globais e com os radicais, só poderão ser
adequadamente compreendidos após a discussão apresentada no presente
estudo (8). De qualquer modo, para os que não acreditam que existam um
pensamento e uma prática localistas (os glocalistas – comunitaristas
inovadores – são os novos localistas, mas existem também os velhos
localistas, os comunitaristas conservadores – todos mais ou menos enfiados
por Held e McGrew na categoria de „radicais‟) vale a pena dar uma olhada no
Texto 11, que resume um ponto de vista (de Michael Shuman) sobre o ideário
do localismo na atualidade.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1)-(6) As notas e referências numeradas de (1) a (6) se referem aos itens análogos do Texto
2, que reproduz excertos de David Held e Anthony McGrew (2002). Globalization/Anti-
Globalization. Cambridge: Polity Press, 2002.

(7) Offe, C. (1991) “A atual transição da história e algumas opções básicas para as
instituições da sociedade” in Bresser Pereira, L.C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado
em Transformação. Brasília: ENAP, 1991.

(8) Ver Capítulo 3.

63
Texto 2 | Held & McGrew e as variantes na política
da globalização
“Muito ao contrário de provocar a morte da política, como algumas pessoas temem, a
"globalização" está re-iluminando o terreno político”.

Estão reproduzidos abaixo excertos do Capítulo 8 – do livro de David Held e


Anthony McGrew (2002). Globalization/Anti-Globalization. Cambridge: Polity
Press – intitulado “A nova polìtica da globalização: mapeando ideais e
teorias”.

(1) NEOLIBERAIS

Segundo Held e McGrew (2002), “os defensores do neoliberalismo (ou do


neoconservadorismo, como às vezes ele é chamado) têm, de um modo geral,
se empenhado em promover a visão de que a vida política, assim como a vida
econômica, é (ou deveria ser) uma questão relacionada à liberdade e iniciativa
individuais (veja Hayek, 1960, 1976; Nozick, 1974). Por essa razão, seu
objetivo fundamental é promover uma sociedade que se norteia pelo princípio
da não intervenção ou do livre mercado, bem como um Estado de proporções
mínimas. O programa político do neoliberalismo prevê, entre outras coisas, a
extensão do mercado para um número crescente de áreas da vida, a criação de
um Estado isento do ônus da intervenção "excessiva" na economia e na vida
social e a imposição de limites ao poder de alguns grupos (por exemplo, dos
sindicatos) de pressionar por seus objetivos e metas. De acordo com essa
visão, uma ordem livre é incompatível com a sanção de normas que
especificam como as pessoas devem usar os meios à sua disposição (Hayek,
1960: 231-2). Os governos se tornam coercitivos ao interferirem na
capacidade das pessoas de determinar seus próprios interesses. Além disso, só
existe um mecanismo suficientemente sensível para determinar a opção
“coletiva” em bases individuais: o próprio livre mercado. Quando protegido
por um Estado constitucional regido pelo princípio geral do direito, nenhum
sistema pode oferecer um mecanismo de opção coletiva que seja tão
dinâmico, inovador e sensível quanto o livre mercado (veja Held, 1996:
capítulo 7).

Para os defensores de uma ordem mundial neoliberal, a globalização define


uma nova era na história da humanidade, na qual "Estados-nações tradicionais
tornaram-se unidades comerciais não-naturais e até mesmo inviáveis em uma
economia globalizada" (Ohmae, 1995: 5). Na visão desses pensadores,

64
estamos testemunhando atualmente o surgimento de um único mercado
global baseado no princípio da concorrência global que seria o precursor do
progresso humano. A globalização econômica está provocando a
desnacionalização de economias por meio do estabelecimento de redes
transnacionais de produção, comércio e finanças. Nessa economia "sem
fronteiras", governos nacionais estão se tornando meras correias de
transmissão para forças globais de mercado ou pouco mais do que isso.
Strange interpreta essa postura da seguinte maneira: "Onde Estados
costumavam ser os senhores dos mercados, agora é o mercado que, em
relação a muitas questões cruciais, é o senhor dos governos de Estados… a
perda de autoridade dos Estados se reflete na crescente dispersão de
autoridade para outras instituições e associações…" (1996: 4).

Para as elites e os "obreiros do conhecimento" dessa nova economia


globalizada, a fidelidade tácita à "classe" transnacional vem evoluindo,
cimentada na dedicação à ortodoxia econômica neoliberal. Mesmo entre os
excluídos e sem posses, a difusão mundial de uma ideologia consumista
também impõe um novo senso de identidade que substitui culturas e estilos de
vida lentamente. A disseminação global da democracia neoliberal do ocidente
reforça ainda mais o senso de uma civilização emergente definida por padrões
universais de organização econômica e política. A governança dessa ordem é
conduzida principalmente por meio de disciplinas do mercado mundial
associadas a formas mínimas de governança internacional concebidas para
promover a integração econômica global mediante a eliminação de barreiras
ao comércio e aos investimentos. O poder econômico e o poder político estão
se desnacionalizando e se tornando difusos de tal maneira que as nações-
Estados estão cada vez mais se transformando “em uma modalidade
transicional de organização voltada para a gestão de negócios econômicos"
(Ohmae, 1995: 149). A globalização representa o potencial de criar uma
ordem mundial radicalmente nova que, segundo os neoliberais, estimulará a
liberdade humana e a prosperidade sem o ônus das regras da sufocante
burocracia pública e do poder político dos Estados. Esse estado de coisas
representa nada menos do que uma re-forma(ta)ção fundamental da ordem
mundial para que ela se enquadre na lógica permanente da liberdade humana”.

(2) INTERNACIONALISTAS LIBERAIS

Para Held e McGrew (2002), “reconhecendo os desafios de uma crescente


interconectividade global - em contraste com um mundo moldado cada vez
mais harmoniosamente pela concorrência global e por mercados globais -, os
internacionalistas liberais acreditam que necessidades políticas exigirão e

65
ajudarão a provocar o surgimento de uma ordem mundial mais cooperativa.
Três fatores constituem a base dessa postura: a crescente interdependência, a
democracia e as instituições globais. Destacados internacionalistas liberais do
século 19 argumentaram que a interdependência econômica gera condições
propícias para a cooperação internacional entre governos e pessoas (veja
Hinsley, 1986). Uma vez que seus destinos estão vinculados por muitas
questões econômicas e políticas sérias, os Estados, como atores racionais,
acabam reconhecendo que a cooperação internacional é essencial para a
administração de seu destino comum. Em segundo lugar, a disseminação da
democracia proporciona uma base para a paz internacional. As democracias
são restritas em suas ações pelos princípios da abertura e da prestação de
contas perante seus eleitorados. Nessas condições, os governos ficam menos
propensos a adotar políticas que não sejam transparentes, de perseguir
objetivos geopolíticos que envolvam manipulação e de partir para a guerra
(Howard, 1981). Em terceiro lugar, uma maior harmonia pode ser mantida
entre Estados pela criação de leis e instituições internacionais concebidas para
regular interdependências internacionais. Além disso, em um mundo cada vez
mais interdependente, a autoridade política e a jurisdição dessas instituições
internacionais têm a tendência natural de se ampliar à medida que o bem-estar
e a segurança das sociedades nacionais vão se tornando cada vez mais
condicionada ao bem-estar e à segurança da sociedade global.

No século 20, as visões dos internacionalistas liberais desempenharam um


papel importante nos difíceis períodos enfrentados após a Primeira e Segunda
Guerras Mundiais. A criação da Liga das Nações, com a esperança que trouxe
de um "mundo seguro para a democracia", estava permeada por essa
ideologia, assim como a fundação do sistema das Nações Unidas. No
contexto da Nova Ordem Mundial pós-Guerra Fria, as idéias dos
internacionalistas liberais foram revitalizadas, embora tenham sido adaptadas
no sentido de se enquadrar a novas circunstâncias (Long, 1995). A declaração
mais recente e sistemática dessa postura pode ser encontrada no relatório da
Comissão para a Governança Global, intitulado Our Global Neighbourhood
(1995). O relatório reconhece o profundo impacto político da globalização:
"O encurtamento de distâncias, a multiplicação de vínculos, a crescente
interdependência: todos esses fatores e sua interação estão transformado o
mundo em uma vizinhança (ou uma espécie de bairro)” (pag. 43). Sua
principal preocupação é abordar o problema da governança democrática nesse
novo "bairro global". Como o relatório afirma, “é extremamente importante
que a governança esteja escorada na democracia em todos os níveis e, em
última análise, na norma do direito exeqüìvel… Tanto em nìvel nacional como
na vizinhança global, o princípio da democracia deve prevalecer. A
necessidade de uma maior democracia é determinada pelo vínculo entre a

66
legitimidade e a eficácia… à medida que as instituições internacionais passam
a desempenhar um papel cada vez mais importante na governança global,
cresce também a necessidade de se garantir que elas sejam efetivamente
democráticas” (pags. 48, 66).

No entanto, o relatório é enfático ao afirmar que a governança global "não


implica um governo mundial ou um federalismo mundial" (pag. 336). Ao
contrário, ele vê a governança global como um conjunto de mecanismos
pluralistas por meio dos quais Estados, organizações internacionais, regimes
internacionais, organizações não-governamentais, movimentos de cidadãos e
mercados se associam para regular ou administrar aspectos de questões
globais.

Para termos uma ordem mundial mais segura, justa e democrática, o relatório
propõe a adoção de uma estratégia multifacetada de reforma institucional
internacional e a promoção de um novo ethos colaborativo "baseado no
princìpio da consulta, da transparência e da prestação de contas… Essa é a
única alternativa para se trabalhar coletivamente e se usar o poder coletivo
para se criar um mundo melhor" (Comissão para a Governança Global 1995:
2, 5). Em alguns sentidos essenciais, o atual sistema de governança global não
tem como garantir a concretização desse anseio sem uma reforma substancial,
uma reforma baseada em uma estratégia política que promova uma
transformação institucional em nível internacional e uma nova ética cívica
global. Para que isso seja possível, precisamos contar com um sistema das
Nações Unidas reformado e apoiado por mecanismos regionais de governança
internacional, como a União Européia, devidamente fortalecidos. Mediante o
estabelecimento de uma assembléia dos povos e de um Fórum da Sociedade
Civil (Global), ambos associados à Assembléia Geral da ONU, os povos do
mundo devem estar direta e indiretamente representados nas instituições de
governança global. Além disso, a Comissão propõe que indivíduos e grupos
tenham um direito de petição junto à ONU por meio de um Conselho de
Petições, que recomendará ações ao órgão pertinente. Juntamente com um
entrincheiramento mais profundo de um conjunto comum de direitos e
responsabilidades globais, o objetivo seria o de fortalecer noções de cidadania
global. Propõe-se o estabelecimento de um Conselho de Segurança
Econômica para coordenar a governança econômica global, tornando-a mais
aberta e sujeita a prestação de contas perante a sociedade. É importante
promover e fortalecer formas democráticas de governança dentro dos Estados
por meio de mecanismos internacionais de apoio e adaptar os princípios da
soberania e da não-intervenção "de maneira que reconheçam a necessidade de
se promover um equilíbrio entre os direitos dos Estados e os direitos das
pessoas e entre os interesses das nações e os interesses do bairro global"

67
(Comissão para a Governança Global 1995: 337). Como elemento de ligação
entre todas essas reformas, assumiríamos o compromisso de promover uma
nova ética cívica global baseada em "valores fundamentais que toda a
humanidade possa sustentar: os valores do respeito à vida, da liberdade, da
justiça e da igualdade, do respeito mútuo, da afeição e da integridade. O
elemento central dessa ética cívica global é o princípio da participação na
governança em todos os níveis, do local ao global”.

(3) REFORMADORES INSTITUCIONAIS

Held e McGrew (2002) avaliam que “a gestão das mudanças sociais,


econômicas e políticas provocadas pelos processos contemporâneos da
globalização é o ponto de partida de uma linha-chave de trabalho focada em
uma reforma institucional radical baseada na iniciativa do Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento de prover bens públicos globais (veja
Kaul, Grunberg e Stern, 1999). Os bens públicos, segundo o programa do
PNUD, não podem mais ser equiparados somente aos bens fornecidos pelo
Estado. Diferentes atores estatais e não-estatais moldam recursos, contribuem
para a sua disponibilização e regem sistemas de vida pública - e eles precisam
fazer isso para que os desafios mais profundos da globalização possam ser
superados. Além disso, uma vez que esses desafios abrangem o domínio
público em todos os países e regiões, somente por meio de um diálogo
público ampliado sobre a natureza e o provimento de bens públicos é que
uma ordem mundial nova, mais ciente da obrigação de prestar contas perante
a sociedade e justa poderá ser construída.

Os defensores dessa visão argumentam que muitas das crises globais no


terreno das políticas públicas - envolvendo desde o aquecimento global à
disseminação da AIDS - podem ser melhor compreendidas à luz da teoria dos
bens públicos e que o interesse comum freqüentemente pode ser melhor
protegido pelo provimento desses bens em nível global. No entanto, as atuais
instituições de governança global não permitem um provimento efetivo de
bens públicos globais por estarem enfraquecidas devido a três lacunas cruciais.
Em primeiro lugar, observa-se um problema de jurisdição - a discrepância
entre um mundo globalizado e unidades formuladoras de políticas nacionais e
separadas, dando margem ao problema de quem seria responsável por muitas
questões globais prementes, particularmente externalidades. Em segundo
lugar, observa-se um sério problema de participação - a incapacidade do atual
sistema internacional de ouvir adequadamente o que muitos atores globais
importantes, tanto estatais quanto não-estatais, têm a dizer. Atores da
sociedade civil são freqüentemente excluídos das estruturas decisórias de

68
importantes Estados e instituições internacionais, que mais se parecem "silos"
superlotados do que um sistema transparente, aberto e acessível por todos os
lados. Em terceiro lugar, observa-se um problema de incentivo – os desafios
gerados pelo fato de que, na ausência de uma entidade supranacional para
regular a oferta e o uso de bens públicos globais, muitos Estados tentarão
simplesmente "pegar carona" ou não conseguirão identificar soluções
coletivas duráveis para problemas transnacionais prementes.

Para superar essas restrições, a teoria da gestão pública global advoga o


fortalecimento e a reforma da função dos Estados e das instituições
internacionais de promover a oferta de bens públicos globais. Contrariando a
visão dos pensadores neoliberais, a premissa seria de que os Estados
continuam sendo os principais agentes por meio dos quais decisões públicas
são tomadas e implementadas e de que um continuum eficaz deve ser criado
entre processos nacionais e internacionais de formulação de políticas (Kaul,
Grunberg e Stern, 1999: xix-xxxviii). A eliminação dessas três lacunas
constituiria uma agenda para uma maior cooperação multilateral. O problema
jurisdicional pode ser atacado ampliando-se a cooperação entre Estados
mediante o estabelecimento, por exemplo, de "perfis de externalidades"
claros, que poderiam ser usados como uma base para se promover a
reciprocidade entre eles e para a internalização de externalidades por parte de
todos os envolvidos (trazendo de volta para as comunidades nacionais os
custos e os benefícios externos de uma política). Se essas iniciativas puderem
ser vinculadas ao estabelecimento de mapas bem definidos dos desafios
jurisdicionais gerados por problemas públicos transnacionais, poderíamos ter
uma base para responsabilizar Estados pelos problemas externos que geram e
também para identificar pouco a pouco onde seria necessário desenvolver
novas instituições, ou seja, onde o sistema atual dos Estados precisaria ser
desenvolvido e suplementado.

O problema da participação pode ser atacado adotando-se uma abordagem


tripartite em processos decisórios que permita a governos compartilhar
oportunidades de expressar suas opiniões com a sociedade civil e o setor
empresarial. "Todos os atores devem ter uma voz, oportunidades adequadas
de prestar as contribuições esperadas deles e acesso aos bens resultantes"
(Kaul, Grunberg e Stern, 1999: xxix). Agentes políticos, empresariais e da
sociedade civil de reconhecida importância devem participar ativamente do
estabelecimento de agendas públicas, da formulação de idéias para políticas e
de deliberações em torno delas.

Por último, o problema do incentivo pode ser atacado criando-se incentivos e


desincentivos explícitos para a superação de fricções no campo da cooperação

69
internacional mediante o fornecimento de todas as informações necessárias
para uma cooperação adequada, uma vigilância eficaz para reduzir fraudes e
garantir a observância das normas, uma distribuição eqüitativa dos benefícios
da colaboração, o fortalecimento do papel de comunidades epistêmicas como
provedoras de conhecimentos e informações "objetivas" e o estímulo
necessário às atividades de ONGs como mecanismos de responsabilização
que expõem políticas fracas ou mal-sucedidas. Não se pode aplicar apenas um
pacote de incentivos a todas as áreas, mas sem mecanismos dessa natureza
será muito mais difícil resolver problemas relacionados às polìticas globais”.

(4) TRANSFORMADORES GLOBAIS

Segundo Held e McGrew, “há muitas afinidades entre alguns dos princìpios e
objetivos dos internacionalistas liberais e dos reformadores institucionais e... a
postura dos transformadores globais. Essa postura aceita que a globalização,
como um conjunto de processos que alteram a organização espacial das
relações e transações socioeconômicas, não representa um fenômeno novo ou
inerentemente injusto ou antidemocrático (veja Held et al., 1999). O que ela
levanta é uma questão relacionada à sua forma desejável e conseqüências
distribucionais. O argumento é que não há nada inevitável ou fixo em relação
à sua forma atual, caracterizada por enormes assimetrias em termos de poder,
oportunidades e chances na vida. A globalização pode ser administrada,
regulada e formatada melhor e de uma maneira mais justa. Esse argumento
diferencia os transformadores globais dos que argumentam a favor de
alternativas à globalização - seja na forma de protecionismo ou de localismo -
e dos que simplesmente desejam administrá-la mais eficazmente. Nesse
sentido, sua postura não é diretamente contra ou a favor da globalização; o
que ela questiona são seus princípios organizacionais básicos e suas
instituições.

Os defensores da postura transformacionista afirmam que a globalização deve


ser reformulada a partir de um "processo duplo" (veja Held, 1995; Linklater,
1998; Archibugi, Held e Köhler, 1998). O termo processo duplo - ou processo
de dupla democratização - não diz respeito apenas ao aprofundamento de
reformas políticas e sociais em uma comunidade nacional envolvendo a
democratização de Estados e sociedades civis ao longo do tempo, mas
também a uma maior transparência, responsabilização e democratização não
limitadas por fronteiras territoriais. A democracia do novo milênio deve
permitir que cidadãos tenham acesso aos processos sociais, econômicos e
políticos que afetam suas fronteiras comunitárias tradicionais e possam exigir
que sejam prestadas contas por seus efeitos sobre eles. Cada cidadão de um

70
Estado precisará aprender a se tornar um "cidadão cosmopolita" também, ou
seja, uma pessoa capaz de atuar como mediador entre tradições nacionais e
formas alternativas de vida. Argumenta-se que, em um sistema democrático de
governo do futuro, a cidadania tenderá a envolver uma crescente função
mediadora: uma função que envolve diálogo com as tradições e discursos de
outros no sentido de que os cidadãos possam ampliar os horizontes de sua
estrutura de sentido e preconceito e o âmbito de seu entendimento mútuo. Os
agentes políticos que conseguirem "raciocinar a partir do ponto de vista de
outros" terão mais condições de resolver, em bases justas, as novas e
complicadas questões transfronteiriças que criam comunidades com destinos
sobrepostos. Os transformadores globais argumentam também que para que
muitas formas contemporâneas de poder possam ser responsabilizadas por
seus atos e para que muitas das complexas questões que afetam a todos nós -
em nível local, nacional, regional e global - possam ser democraticamente
reguladas, as pessoas precisarão ter acesso a diferentes comunidades políticas
e ser membros delas.

Esse projeto implica, essencialmente, a necessidade de se reformular a


atividade política legítima de uma maneira que a emancipe de sua ancoragem
tradicional em fronteiras fixas e territórios delimitados, ao invés de articulá-la
como um atributo de mecanismos democráticos básicos ou de um direito
democrático básico que possa, em princípio, estar solidamente fundamentado
em diversas associações auto-reguladoras que dele se aproveitem - de cidades
e regiões subnacionais a nações-Estados, regiões supranacionais e redes
globais mais amplas. Argumenta-se que esse processo de emancipação já está
em andamento, na medida que a autoridade política e formas legítimas de
governança se difundem "abaixo", "acima" e "ao longo" da nação-Estado. No
entanto, esse projeto político "cosmopolita" só defende uma ampliação radical
desse processo se ele ficar circunscrito e delimitado pelo compromisso de
garantir todo um conjunto abrangente de direitos e deveres democráticos. Ele
propõe uma série de medidas de curto e longo prazos na convicção de que,
por meio de um processo de mudanças progressivas e incrementais, as forças
geopolíticas acabarão sendo socializadas na forma de agências e práticas
democráticas (Held, 1995: parte III; 2002).

O que estaria em jogo, em primeiro lugar, seria a reforma do sistema das


Nações Unidas. Nesse contexto, essa reforma significaria a reformulação do
acordo geopolítico de 1945, que determina a distribuição de poder e
autoridade na Organização das Nações Unidas atualmente. A estrutura de
veto e votação do Conselho de Segurança deve ser alterada urgentemente para
que se possa gerar, aplicar e administrar normas e regulações internacionais
em bases imparciais. A criação de uma segunda câmara da ONU ajudaria a

71
promover esse resultado se ela não fosse moldada de acordo com princípios
de representação geopolítica, como ocorre na Assembléia Geral da ONU, e
seguisse uma linha deliberativa de atuação, com possibilidades iguais de
participação de todas as partes interessadas. Uma segunda câmara desse tipo
atuaria como um microcosmo da sociedade global e representaria as
deliberações de partes importantes. A criação de assembléias públicas eficazes
em nível global e regional deve complementar as assembléias locais e
nacionais. Além disso, as instituições internacionais precisam se manter
abertas ao exame público e ter suas agendas definidas por partes interessadas
essenciais. Além de transparentes em suas atividades, exigindo, por exemplo,
liberdade internacional no tratamento de informações, esses organismos
devem também ser acessíveis e manter-se abertos ao escrutínio público em
todos os aspectos de suas atividades. O estabelecimento de novas estruturas
de governança global responsáveis por lidar com questões relacionadas à
pobreza e ao bem-estar global e com outras questões afins também é vital
para contrabalançar o poder e a influência de organismos predominantemente
orientados para o mercado, como o FMI e a OMC (mesmo que eles sejam
reformados, como precisarão ser em seu devido tempo).

Juntamente com novas maneiras de se promover a democracia e a justiça


social além das fronteiras nacionais, os transformadores globais argumentam
que devem ser adotados novos mecanismos para administrar e implementar
acordos internacionais e o direito internacional e promover a capacidade de se
manter e fazer a paz. O ideal é que essa capacidade seja desenvolvida
mediante a criação de uma força militar permanente e independente composta
por indivíduos recrutados entre voluntários de todos os países. Por último,
nenhum desses mecanismos pode ser eficaz sem novas fontes de recursos
para o financiamento dessas atividades e a criação, em princípio, de uma base
para uma autoridade política autônoma e imparcial em nível global. Novos
fluxos de recursos serão indispensáveis, seja na forma de um imposto nos
moldes propostos por James Tobin, de um imposto sobre o uso de recursos
ou de mecanismos paralelos. A defesa de novas instituições cosmopolitas se
limitaria a uma magnanimidade estéril na ausência de um compromisso de
melhorar as desesperadoras condições dos mais pobres mediante o
cancelamento da dívida dos países mais pobres, a inversão do fluxo de capitais
líquidos do Sul para o Norte e a geração de novos meios para se investir na
infra-estrutura da autonomia humana - saúde, educação, previdência social e
assim por diante”.

72
(5) ESTATISTAS/PROTECIONISTAS

Held e McGrew (2002) assinalam que “a postura que chamamos de


estatista/protecionista é, obviamente, muito diferente das posturas descritas
acima. Além disso, mais do que as outras posturas políticas discutidas até este
ponto, ela representa uma ampla gama de pontos de vista, dos quais apenas
alguns aspectos se sobrepõem. Em primeiro lugar, muitos argumentos fortes
em prol da primazia das comunidades nacionais, nações-Estados e nações
organizadas em estados da ordem mundial não são, necessariamente,
protecionistas no sentido de serem hostis em relação a uma economia mundial
aberta e ao livre comércio. Freqüentemente, esses argumentos dizem mais
respeito a meios essenciais, ou seja, estruturas estatais fortes, para garantir
uma participação bem-sucedida em mercados abertos e mecanismos de boa
governança do que ao afastamento ou desvinculação do resto do mundo
(Cattaui, 2001). Em segundo lugar, esses argumentos estão freqüentemente
associados a um ceticismo acentuado em relação à tese da globalização... Esse
ceticismo conclui que o alcance da "globalização" contemporânea está
totalmente exagerado (Hirst, 1997; Hirst e Thompson, 1999). Além disso, ele
sustenta que a retórica da globalização é altamente equivocada e politicamente
ingênua, uma vez que subestima o poder duradouro de governos nacionais de
regular a atividade econômica internacional. Em vez de estarem fora de
controle, as próprias forças da internacionalização dependem do poder
regulador de governos nacionais para garantir a continuidade da liberalização
econômica.

Essa visão enfatiza, também, a necessidade de se acentuar ou reforçar a


capacidade dos Estados de governar - em outras palavras, sua capacidade de
ajudar a organizar a segurança, o bem-estar econômico e os mecanismos
previdenciários disponíveis a seus cidadãos. A prioridade seria desenvolver
Estados competentes, ou seja, aprofundar essa capacidade onde ela já existe
nos países desenvolvidos e promovê-la onde ela for mais urgentemente
necessária - nos países mais pobres. Sem um monopólio dos meios da
violência, não se pode coibir a desordem e o bem-estar de todos em uma
comunidade política estará provavelmente ameaçado. No entanto, mesmo um
monopólio da violência não garante, necessariamente, um bom governo: a
corrupção precisa ser coibida, habilidades políticas adquiridas, direitos
humanos garantidos, a responsabilização assegurada e investimentos na infra-
estrutura do desenvolvimento humano - saúde, educação e bem-estar -
mantidos. Sem fortes capacidades nacionais de governar, pouca coisa pode ser
lograda no longo prazo. Nesse contexto, o sucesso econômico dos Estados
desenvolvimentistas do Leste Asiático oferece um exemplo importante, uma
vez que esse sucesso resultou de medidas inspiradas pelo governo e não do

73
livre mercado (Cattaui, 2001: veja Leftwich, 2000.). A promoção da indústria
nacional, a limitação da concorrência estrangeira e a adoção de políticas
comerciais agressivas constituem novas formas de estatismo que têm alguns
aspectos em comum com o mercantilismo à moda antiga. De Washington a
Pequim, o protecionismo, sob o pretexto de interpretações comerciais e
geoeconômicas estratégicas da política mundial, teve sua influência renovada
nos principais centros do poder global.

Posturas estatistas e protecionistas afinam-se mais estreitamente quando a


política de comunidades nacionais é associada a uma atitude hostil em relação
a vínculos e instituições globais ou mesmo a uma completa rejeição desses
vínculos e instituições, principalmente quando se acredita que eles são
motivados por interesses comerciais norte-americanos, ocidentais ou
estrangeiros. Freqüentemente, alguns aspectos desses interesses são rejeitados
com base na percepção de que representam uma ameaça direta a identidades
locais ou nacionais ou a tradições religiosas. O mais importante aqui é a
proteção de uma cultura, tradição, língua ou religião distinta que une as
pessoas e oferece um ethos comum valorizado e um senso de destino comum.
Se esse senso de destino comum for vinculado a uma estrutura política que
defende e representa uma comunidade, ele pode, obviamente, ter um enorme
significado simbólico e nacional. Isso pode dar margem a um amplo espectro
de posturas políticas por parte de grupos nacionalistas seculares
(representados por fortes tradições culturais nacionais) e grupos religiosos
fundamentalistas (como muçulmanos radicais). É importante enfatizar que
esse espectro pode conter uma expressiva diversidade de projetos políticos.
Enquanto alguns reforçam a política da primazia do interesse nacional e
enfatizam a geopolítica ou a geoeconomia como a luta inevitável de Estados e
comunidades antagônicos, outros representam um desafio fundamental para
todas as estruturas políticas, sejam elas nacionais ou globais, que não se
adaptam a uma determinada identidade (Huntington, 1996).

No entanto, mesmo que um choque de culturas ou civilizações não configure


uma aversão a forças globais, posturas estatistas/protecionistas podem estar
vinculadas a um ceticismo ou a uma aversão profundamente enraizada em
relação ao poder e dominância ocidentais. Nesse contexto, o argumento tende
a interpretar a governança global e a internacionalização econômica como
projetos principalmente ocidentais cujo objetivo principal seria o de garantir a
primazia do ocidente nos negócios mundiais. Na interpretação de um
observador, "ordem internacional e solidariedade internacional sempre serão
slogans dos que se sentem suficientemente fortes para impô-los" (Carr, 1981:
87). Segundo esse ponto de vista, somente um questionamento mais profundo
dos interesses geopolíticos e geoeconômicos dominantes poderá gerar uma

74
ordem mundial mais pluralista e legítima, na qual identidades, tradições e
visões de mundo particulares podem florescer livres da pressão de forças
hegemônicas. Nesse sentido, ele tem muito em comum” com o conjunto de
posturas dos radicais.

(6) RADICAIS

Held e McGrew afirmam que “enquanto os defensores do internacionalismo


liberal, da reforma institucional e de transformações democráticas globais
enfatizam a necessidade de se fortalecer e promover mecanismos de
governança global, os proponentes do projeto radical enfatizam a necessidade
de se dispor de mecanismos alternativos de governança baseados no
estabelecimento de comunidades inclusivas e autogovernadas (Burnheim,
1985; Walker, 1994; Falk, 1995). O projeto radical propõe o estabelecimento
de condições que empoderem as pessoas para assumir o controle de suas
próprias vidas e criar comunidades baseadas na igualdade, no bem comum e
na harmonia com o meio ambiente natural. Para muitos radicais desse tipo, os
agentes das mudanças necessárias são os movimentos sociais existentes
(críticos), como os movimentos ambientais, movimentos de mulheres e
movimentos antiglobalização que desafiam a autoridade de Estados e de
organismos internacionais e definições ortodoxas do "político". Promovendo
uma política de resistência e empoderamento, esses movimentos
desempenhariam uma função crucial na criação de uma nova ordem mundial
semelhante à função dos (velhos) movimentos sociais, como o dos
trabalhadores organizados, na luta pela democracia nacional. Esses novos
movimentos sociais atuam no sentido de mobilizar comunidades
transnacionais de resistência e solidariedade contra crises ecológicas,
econômicas e de segurança em nível global. Esse projeto fundamenta-se nos
objetivos da igualdade social e econômica, do estabelecimento das condições
necessárias para o autodesenvolvimento e da criação de estruturas políticas
autogovernadas. Estimular e desenvolver, nos cidadãos, o senso de pertencer
simultaneamente a comunidades (locais e globais) que se sobrepõem constitui
um objetivo básico da política dos novos movimentos sociais e um elemento
central da busca por novos modelos e formas de organização social, política e
econômica sintonizados com o princípio do autogoverno. O modelo radical
baseia-se em uma visão "de baixo para cima" de uma ordem mundial
civilizadora (Klein, 2000). Ele representa uma teoria normativa de
"governança humana" baseada na existência de uma multiplicidade de
comunidades e movimentos sociais, em contraste com o individualismo e os
apelos por um auto-interesse racional do neoliberalismo e de outros projetos
políticos afins.

75
Os que adotam essa postura radical relutam em recomendar projetos
constitucionais ou institucionais substantivos para um mundo mais
democrático, uma vez que isso representaria a abordagem estatista
centralizada, moderna, "de cima para baixo" de vida política que eles rejeitam.
Por essa razão, eles enfatizam a identificação de princípios normativos sobre
os quais a política possa ser construída independentemente das formas
institucionais particulares que ela possa assumir. Por meio de um programa de
resistência e da "politização" da vida social, os movimentos sociais estariam
definindo uma "nova política progressista" que envolve "a exploração de
novas formas de ação, novas formas de se saber e estar no mundo e novas
formas de se agir coletivamente com base em solidariedades emergentes"
(Walker, 1994: 147-8). Como Walker sugere, "uma lição... é a de que as
pessoas não são tão impotentes quanto são levadas a crer que são. As
imponentes estruturas que parecem tão distantes e impassíveis podem ser
claramente identificáveis e resistíveis diariamente. Não agir é agir. Todos
podem mudar seus hábitos e expectativas ou se recusar a aceitar que os
problemas estejam lá fora e não nos digam respeito" (1994: 159-60). Esse
modelo radical de mudança baseia-se em teorias normativas de democracia
direta e democracia participativa (Held, 1996).

Ele inclui elementos da visão democrática de Rousseau e dos ideais da Nova


Esquerda em relação à política comunitária e à democracia participativa. No
entanto, o modelo radical leva em consideração também as críticas marxistas
contra a democracia liberal, como se pode observar claramente pela sua
linguagem de igualdade, solidariedade, emancipação e transformação de
relações de poder existentes. A conquista de uma "democracia efetiva" seria
inseparável da conquista da igualdade social e econômica, do estabelecimento
das condições necessárias para o autodesenvolvimento e da criação de
comunidades políticas fortes (veja Callinicos, 2002). Estimular e desenvolver,
nos cidadãos, o senso de pertencer simultaneamente a comunidades de
interesses locais e globais constitui também um elemento central da busca por
novos modelos e formas de organização social, política e econômica
sintonizados com o princípio do autogoverno. No entanto, o modelo
reconhece que "atualmente, o autogoverno... exige uma política que possa ser
plenamente aplicada em uma multiplicidade de cenários, de bairros a nações e
ao mundo como um todo. Essa política exige cidadãos capazes de pensar e
agir como eus multiplamente situados" (Sandel, 1996: 351).

Embora a política do radicalismo esteja firmemente enraizada na preocupação


de protestar e, freqüentemente, em campanhas que envolvem temas
individuais, há sinais de que alguns elementos de movimentos
contemporâneos de protesto estão indo além dessa agenda e desenvolvendo

76
programas de reforma institucional não diferentes dos propostos por
reformadores institucionais e transformadores globais. Na reunião do Fórum
Social Mundial, realizada em Porto Alegre no início de 2002, por exemplo,
diversas recomendações para a reestruturação de determinados aspectos da
globalização foram incluídas na agenda, entre as quais a de se melhorar a
governança corporativa, de se impor limites à liberdade dos fluxos de capital e
de se adotar medidas para proteger normas trabalhistas básicas e o meio
ambiente. O alvo do ataque dessas propostas seria a "globalização sem
limites" e "o poder irrestrito das empresas" e não a globalização per se. Uma
nova ênfase na necessidade de se trabalhar com o sistema das Nações Unidas
e de reformá-lo cria possibilidades positivas de compatibilidade com algumas
das outras posturas definidas acima. No entanto, essa compatibilidade nunca
será completa, uma vez que alguns grupos radicais - por exemplo, diversos
grupos anarquistas, como os que atacaram a Starbucks na reunião da OMC de
1999 em Seattle - não desejam promover essa convergência ou uma nova
harmonização de pontos de vista. Nesse sentido, as posturas desses grupos
não são diferentes das adotadas por neoliberais mais extremados, que
depositam a sua fé, em primeiro lugar e acima de tudo, em mercados
desregulados”.

NOTAS E REFERÊNCIAS DE HELD-McGREW

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Ohmae, K. (1995) The End of the Nation State. New York: Free Press.

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Strange, S. (1996) The Retreat of the State. Cambridge: Cambridge University Press.

Walker, R. B. J. (1994) Inside/Outside. Cambridge: Cambridge University Press.

78
Diagrama 1 | Variantes na política da globalização – Diagrama de Held-McGrew (2002)

A favor da Globalização Antiglobalização

Neoliberais Internacionalistas Reformadores Transformadores Estatistas / Radicais


liberais Institucionais globais Protecionistas

Marxistas

Social-democratas cosmopolitas
Aspectos comuns (overlapping) na posição política

Variantes políticas
Padrões de influência
Zona de pontos comuns

79
Diagrama 2 | Variantes na política da globalização - Diagrama de Held-McGrew (2002) modificado por Franco (2003)

A favor da Globalização Antiglobalização

Neoliberais Internacionalistas Reformadores Glocalistas Transformadores Radicais Estatistas /


liberais Institucionais globais Protecionistas

Marxistas

Social-democratas cosmopolitas

Variantes políticas
Democratas radicais
Padrões de influência (pós-liberais e pós-
Zona de pontos comuns estatistas)
Globalização e glocalização
Não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se compreender que a
globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo e uma mundialização
do local; ou seja, é uma „glocalização‟ (mas não exatamente no sentido do
marketing, que foi atribuído pelos economistas japoneses que inventaram o termo no
final da década de 1980 e nem apenas nos sentidos que lhe atribuiu seu principal
divulgador, Roland Robertson, a partir de meados dos anos 90).

Como dissemos na introdução, a mudança social em curso, que está na base do


processo de globalização atual, tem um duplo sentido. O significativo não é a
expansão dos fenômenos para uma escala global em si, mas a simultaneidade
entre global e local que ocorre em virtude da possibilidade da conexão global-
local. De sorte que não se pode captar plenamente o sentido do processo se não
se compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do
mundo e uma mundialização do local; ou seja, é uma „glocalização‟.

Quase dez anos atrás, já havia escrito (em “Ação Local: a nova polìtica da
contemporaneidade”) que “a „volta ao local‟ é um fenômeno acompanhante do
processo de globalização atualmente em curso. Global e Local não constituem
polos de uma contradição irreconciliável, mas partes complementares de uma
mesma tendência que brota da crise do padrão civilizatório atual...” (1). Sem o
saber, estava falando de glocalização. Naquela época o termo „glocalização‟ ainda
não era conhecido, muito embora já tivesse aparecido na Harvard Business Review
no final dos anos 80.

Ao que sabe foram economistas japoneses que introduziram, o termo


„glocalização‟ (na mesma revista onde Levitt – como vimos anteriormente – já
havia introduzido o termo „globalização‟ em 1983). Tal como o anterior
(„globalização‟), esse novo termo („glocalização‟) foi cunhado com um sentido
predominantemente mercadocêntrico. A preocupação principal dos japoneses era
o marketing.

Com efeito, comumente o termo („glocalização‟) tem sido usado pelo marketing
para designar a criação de produtos ou serviços para o mercado mundial, mas
adaptados à cultura local. Na sua intervenção intitulada “Comments on the „Global
Triad‟ and „Glocalization‟”, Roland Robertson (1997) afirmou que “como usado na
prática comercial japonesa, o termo se refere à venda ou fabricação de produtos

82
para mercados específicos. E como acredito que a maioria de nós sabe, os
empresários japoneses têm sido particularmente bem-sucedidos na venda de seus
produtos em diferentes mercados, em contraste com as estratégias desastradas
dos americanos…” (2).

Do ponto de vista do marketing (como assinala o site SearchCIO.com), “a


crescente presença de McDonalds em todo o mundo é um exemplo de
globalização e as mudanças em seu menu para agradar gostos locais são um
exemplo de glocalização. Um exemplo que talvez seja ainda mais ilustrativo da
glocalização é o seguinte: em suas promoções na França, a rede resolveu
recentemente substituir o seu mascote tradicional, o Ronald McDonald, por
Asterix o gaulês, personagem popular de histórias em quadrinhos e desenhos
animados franceses” (3).

Embora o termo „glocalização‟ tivesse sido introduzido pelos japoneses, o seu


principal divulgador ou popularizador foi o sociólogo Roland Robertson. Para
Robertson a palavra glocalização descreve os efeitos moderadores de condições
locais sobre pressões globais. Na conferência sobre "Globalização e Cultura
Indígena", citada acima, Robertson disse que glocalização "significa a
simultaneidade – a co-presença – de tendências universalizantes e
particularizantes" (4).

Dois anos antes, porém, no texto “Globalization”, Robertson (1995) já havia


afirmado que “o local e o global não se excluem. Pelo contrário: o local deve ser
compreendido como um aspecto do global. Globalização quer também dizer: a
conjunção e o encontro de culturas locais que deverão ainda ser conceitualmente
definidas em meio a este “choque de localidades” (5). Robertson propôs então a
substituição do conceito base de globalização cultural por glocalização – o
cruzamento das palavras globalização e localização.

Ao redefinir o termo „glocalização‟ no contexto da globalização cultural,


Robertson transbordou o escopo mercadocêntrico onde foi introduzido
inicialmente, mostrando que ele se refere a um fenômeno mais amplo do que a
glocalização dos mercados (6).

Conquanto o enfoque de Robertson inverta o sentido, inserido pelo globalismo


econômico, de uma adaptação aos mercados locais feita a partir da dimensão
global (do global para o local), contrapondo a idéia de que o contexto local altera
a oferta global (do local para o global), sua visão ainda parte do mercado, embora
ultrapasse esse aspecto. Como assinalam Cohen e Kennedy, Robertson tentou
“descrever como pressões e demandas globais são ajustadas a condições locais.

83
Embora empresas poderosas possam adaptar seus produtos a mercados locais, a
glocalização opera na direção oposta. Atores locais selecionam e modificam
elementos de uma série de possibilidades globais, dando início a um
envolvimento democrático e criativo entre o local e o global” (7).

Todavia, o conceito ainda pode ser mais ampliado para dar conta de captar,
inclusive, aquilo que interpretamos como globalização como um caso particular
do fenômeno objetivo da mudança social que está ocorrendo na atualidade.
Nesse sentido, não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se
compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo
e uma mundialização do local; ou seja, é uma „glocalização‟. É o que veremos no
próximo capítulo, sobre a glocalização.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Franco, Augusto (1995). Ação local: a nova política da contemporaneidade. Brasília - Rio de
Janeiro: Agora | Instituto de Política | Fase, 1995.

(2) Robertson, Roland (1997). “Comments on the „Global Triad‟ and „Glocalization‟”. (intervenção
proferida na conferência “Globalização e Cultura Indìgena”, promovida em 1997 pelo Institute
for Japanese Cultures and Classics da Kokugakuin University):
http://www.kokugakuin.ac.jp/ijcc/wp/global/15robertson.html.

(3) Cf. http://searchcio.techtarget.com/sDefinition/0,,sid19_gci826478,00.html

(4) Op. cit.

(5) Cf. Robertson, Roland (1995). “Glocalization: Time-Space and Homogeneity-Heterogeneity” in


Featherstone, Mike, Robertson, Roland & Lash, Scott. Global Modernities. London: Sage
Publications, 1995.

(6) Craig Stroupe, da Universidade de Minnesota Duluth, assinala, com razão, (em seu site
http://www.d.umn.edu/~cstroupe), que “o termo „glocalização‟ denota novos tipos de
relações entre domínios locais e globais que são possibilitados por tecnologias da informação.
Essas relações emergentes subvertem estruturas de poder tradicionais e mediadoras como a
economia, o Estado-nação e as disciplinas que compõem as profissões e a "indústria do
conhecimento". O conceito de glocalização é altamente contraditório e contestado, pois é
usado tanto em teorias de marketing corporativo para descrever o processo de se modificar
produtos para públicos locais (essencialmente, tornar o global atraente para o local) como na
teoria pós-moderna crítica para descrever as representações globais do local (tornar o local
atraente para o global). Em contraste com a “glocalização” – afirma Stroupe –, o termo mais
comum “globalização” sugere uma dissociação radical entre o “global” (as multinacionais, o
terrorismo internacional, a indústria do entretenimento, a CNN, a Internet) e o “local” (o
senso de lugar, de bairro, de cidade, de localidade, de etnicidade e de outras fontes tradicionais

84
de identidade). O termo “glocalização”, por outro lado, denota uma relação mais dinâmica e de
duas vias entre esses dois domínios, principalmente à medida que eles estabelecem contato na
Internet e em outros meios de comunicação. Wayne Gabardi (em “Negotiating Postmodernism”.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000) escreve que a glocalização caracteriza-se
pelo “desenvolvimento de campos diversificados e sobrepostos de vinculações globais-locais...
[criando] uma condição de panlocalidade globalizada... que o antropólogo Arjun Appadurai
chama de “escapes” espaciais globais desterritorializados (escapes étnicos, escapes
tecnológicos, escapes financeiros, escapes da mídia e escapes ideológicos)... Essa condição de
glocalização… representa uma mudança de um processo de aprendizagem mais territorializado
e vinculado à sociedade do Estado-nação para um processo mais fluido e translocal. A cultura
se tornou um software muito mais móvel e humano empregado para se misturar elementos de
contextos diferenciados. Com formas e práticas culturais mais separadas de enclausuramentos
geográficos, institucionais e atributivos, estamos testemunhando o que Jan Nederveen Pieterse
chama de "hibridização" pós-moderna”.

(7) Cohen, Robin & Kennedy, Paul (2000). Global Sociology. London: MacMillan, 2000.

85
Capítulo Dois | Glocalização

86
Entendendo a glocalização

Para começar, examinemos um (aparente) paradoxo: por quê se observam como


simultâneos dois movimentos, aparentemente contraditórios: a) um de
amplificação e, de certo modo, de desterritorialização, em escala global (supra-
nacional) de importantes fatores que condicionam a vida das sociedades
nacionais; e b) outro, de reflorescimento da perspectiva comunitária que reforça
as identidades sócio-territoriais em escala local (infra-nacional) possibilitando,
inclusive, que elas se projetem em escala global sobrepassando mediações
nacionais?

Neste capítulo vou sustentar uma resposta para a pergunta acima. Tudo isso
ocorre simultaneamente porque estamos vivendo, a partir dos anos 80 e 90, um
processo de glocalização. A revolução do local, de um certo ponto de vista, nada
mais é do que a globalização do local ou do que o resultado do que vamos
chamar de processo simultâneo de „globalização-e-localização‟.

É preciso dizer agora o que estamos entendendo por „glocalização‟. Já vimos no


final do capítulo anterior, que o que foi chamado de globalização é separável da
visão mercadocêntrica que acompanhou a cunhagem desse novo termo.

Vamos ver ainda que a glocalização é uma planetarização e uma comunitarização.


E que o sentido do processo de glocalização, entendido nesses termos, é o da
formação de uma nova sociedade cosmopolita global (planetária) como uma rede
de comunidades (sócio-territoriais e virtuais – subnacionais e transnacionais)
interdependentes. E, finalmente, que esse sentido pode jamais vir a se
materializar uma vez que a glocalização está em disputa e essa disputa é,
fundamentalmente, uma disputa entre o „local separado‟ e o „local conectado‟,
entre „dependência x independência‟, por um lado e „interdependência‟, por
outro.

Em seguida, vamos ver que o processo de glocalização impõe uma transformação


do velho Estado-nação, ainda que não seja certo se tal transformação será
necessariamente glocalizante, pois embora o Estado, ao que tudo indica, não
tenda a desaparecer na atual transição histórica, o destino da sua forma atual está
em disputa e essa disputa é a mesma disputa que se trava em torno da
glocalização.

87
Por último, vamos ver que assim como foi necessário utilizar um novo conceito
(o de „globalização‟) para entender as mudanças que estão ocorrendo na
dimensão global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de
„localização‟) para entender as mudanças que estão ocorrendo coetaneamente na
dimensão local. Como as duas coisas constituem aspectos do mesmo processo de
glocalização ou de emersão da realidade glocal, isso significa que a glocalização
confere um novo status ao local que, para ser revelado, exige também um novo
construct e uma nova hipótese: a hipótese (no sentido forte) da „localização‟.

88
Glocalização e nova realidade glocal: „planeta-e-
comunidade‟
A glocalização é uma planetarização e uma comunitarização.

A idéia de glocalização, no sentido em que estamos empregando aqui o conceito,


é anterior ao termo „glocalização‟. Essa idéia-matriz começou a se formar muito
antes da recente percepção da constelação de fatores que possibilitou a eclosão
do fenômeno que interpretamos, quase sempre unilateralmente, como
globalização.

A consciência da glocalização começa quando se pode ver o planeta como um


lugar mas só se afirma plenamente quando se pode ver um lugar como um
holograma do planeta inteiro. Há, todavia, uma imagem antes da idéia.

A imagem antes da idéia


Talvez por isso a glocalização tenha começado a ser percebida e a fazer sentido
para as pessoas, quando se pôde, pela primeira vez, olhar a Terra do espaço,
percebê-la como um corpo único. Aquela imagem (e isso já foi observado por
várias pessoas) altera completamente o nosso imaginário... Como escreveu o
astrônomo Fred Hoyle em 1948, “quando tivermos uma fotografia da Terra,
tirada de fora da Terra... uma nova idéia mais poderosa que qualquer outra na
história será desencadeada” (1).

Além da citação acima, não sei o que mais disse sobre isso Fred Hoyle. No
entanto, mesmo sem conhecer o contexto da citação ou outros possíveis escritos
de Hoyle sobre o tema, podemos adivinhar que idéia é essa. É a idéia da
planetização, ou seja, da “Espaçonave Terra” (introduzida por Richard
Buckminster Fuller em 1969) – uma espaçonave na qual somos todos tripulantes
– e, também, da ecumene planetária, quer dizer, da casa da humanidade (um
mesmo lugar de todos e para todos) e, ainda, para além da casa dos seres
humanos, a casa de todos os seres aqui existentes em uma mesma totalidade viva
– ou seja, a idéia, bem mais abrangente, de Gaia.

89
A hipótese Gaia
O formulador da hipótese Gaia, no início dos anos 70, foi o cientista
independente inglês James Lovelock. Segundo ele a idéia foi exposta pela
primeira vez “em 1972, na forma de uma nota com o tìtulo de “Gaia vista através
da atmosfera”... Depois de discussões muito demoradas e intensas, Lynn
Margulis e eu fornecemos declarações mais detalhadas, embora concisas, nas
revistas Tellus e Icarus. Em 1979, a Oxford University Press publicou o meu
livro “Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra”, que reunia todas as nossas
idéias até aquele momento. Comecei a escrever aquele livro em 1976, quando o
módulo espacial Viking da NASA estava para pousar em Marte. Utilizei a
presença dele ali como um explorador planetário a fim de estabelecer o cenário
para a descoberta de Gaia, o maior organismo vivo do sistema solar” (2).

Em “O Planeta Simbiótico” (1998), Lynn Margulis – que deve ser considerada


co-autora da hipótese Gaia – conta que “o termo Gaia foi sugerido a Lovelock
pelo romancista William Golding, autor de “O senhor das moscas”. No inìcio da
década de 1970, os dois moravam em Bowerchalke, Wiltshire, na Inglaterra.
Lovelock perguntou ao vizinho se seria possível substituir a longa e pesada
expressão “sistema cibernético de tendência homeostática conforme detectado
por anomalias quìmicas na atmosfera da Terra” por um termo que significasse
“Terra”. “Preciso de uma boa palavra curta”, disse. Em caminhadas pelo campo
na magnífica região das chapadas calcárias, no sul da Inglaterra, Golding sugeriu
Gaia. Antiga palavra em grego para “Mãe Terra”... [Mas] Gaia não é um
organismo... é o resultado da interligação dos 10 milhões ou mais de espécies
vivas que compõem seu corpo sempre ativo... É uma propriedade emergente da
interação de organismos...” (3).

A introdução do conceito (e do termo) „Gaia‟, no âmbito da ciência, trouxe duas


conseqüências complicadas. Por um lado, municiou o nascente movimento
ecológico mundial com o argumento de que, degradando o meio ambiente
natural, estávamos destruindo o planeta inteiro, ato que seria equivalente, do
ponto de vista ético, ao assassinato de um super ser vivo e deveria, portanto, ser
considerado como um super-crime. Por outro lado, mexeu profundamente com
um imaginário mítico, fazendo renascer esperanças de uma volta à
tradicionalidade de uma hipotética era primordial, com a conciliação final entre o
ser humano e a grande deusa mãe-terra. A complicação, aqui, se refere ao fato de
que ambas as interpretações são antropocêntricas; tentam humanizar a natureza e
o cosmos ao invés de tentar humanizar a humanidade.

90
Contra as simplificações do conceito introduzidas por ambientalistas e
espiritualistas, Margulis invectiva que “Gaia não significa apenas conservação da
natureza ou um retorno à deusa. Gaia é a superfície regulada do planeta que está
incessantemente criando novos ambientes e organismos. Mas o planeta não é
humano, tampouco pertence aos seres humanos. Nenhuma cultura humana, a
despeito de sua inventividade, pode acabar com a vida neste planeta, mesmo que
tentasse. A Terra é mais um gigantesco conjunto de ecossistemas em interação
do que um único ser vivo, e como fisiologia reguladora de Gaia ela transcende
todos os organismos individuais. Os seres humanos não são o centro da vida, e
nenhuma outra espécie o é. Os seres humanos não são sequer fundamentais à
vida. Somos uma parte recente e em rápido desenvolvimento de uma gigantesca e
antiga totalidade... Gaia é a série de ecossistemas em interação que compõem um
simples e enorme ecossistema na superfície da Terra. Ponto final” (4).

Por outro lado a hipótese de Gaia não foi bem captada pelas correntes
espiritualistas, cujas visões de futuro como repetição de passado ainda estão
aprisionadas em um paradigma de tradicionalidade, correntes que carregam o
peso de uma tradição mítica, sacerdotal, hierárquica e autocrática e que imaginam
que nada está acontecendo além do retorno à unidade primordial e que tudo isso
já estava escrito ou já tinha sido previsto. Para essas correntes tudo está seguindo
um plano, o futuro já está contido no divino software implantado na Criação (ou
coisa que o valha) em todos os seres (daí porque todos os seres são, de certo
modo, vivos – o que fez a hipótese Gaia cair como uma luva), a evolução não
passa de um desdobramento da “centelha” inicial (é o software “rodando”), e
todos os componentes do sistema estão dispostos por graus evolutivos em uma
ordem sagrada (hierarquia), ou seja, estão hierarquicamente distribuídos em uma
cadeia vertical que vai da pedra ao deus, passando por diversos “reinos” (e
mesmo esta denominação talvez não seja por acaso): mineral, vegetal, animal,
humano, angélico e divino. Ora, o modelo de Gaia como uma rede de 10 milhões
de tipos diferentes de nodos, um sistema auto-organizador, que produz ordem a
partir das múltiplas e imprevisíveis interações entre os seus componentes, não
poderia mesmo ser bem compreendido pela mente determinista tradicional.

Não faria sentido dar seguimento a tal polêmica em um livro como este. Para os
propósitos da presente investigação o importante a considerar é que – como
assinalou Lovelock – “a teoria de Gaia obriga a que se tenha uma visão
planetária” (5). Neste sentido, a elaboração da hipótese de Gaia faz parte desse
movimento cultural emergente de planetização.

Do ponto de vista científico (ou melhor, da filosofia da ciência), podemos


reprobar, como fez Margulis em relação à hipótese de Gaia, os espiritualistas e os

91
arautos da nova era, sobretudo pelas simplificações e pelas imprecisões que
introduzem quando pulam de um campo do conhecimento para outro sem fazer
as necessárias transposições hermenêuticas, esquecendo-se de levar em conta as
diferenças de status epistemológico dos conceitos que manejam sem muito rigor
metodológico e sem muita cerimônia semântica. Por certo, eles não fazem
ciência. Isso não é motivo, porém, para, simplesmente, desconhecer ou
desprezar, do ponto de vista cultural, a influência de suas idéias.

Idéias não-científicas seminais


Assim, por exemplo, ainda na década de 1960, Dane Rudhyar escreveu um
curioso livro chamado “A Planetarização da Consciência” no qual antecipava o
advento de uma “sociedade plenária”, um novo tipo de organização social
vislumbrado por meio de um enfoque holárquico, para além do enfoque
(teoricamente) democrático. Rudhyar já fazia, àquela época, uma crítica radical
das democracias realmente existentes, do igualitarismo e do que ele chamou de
“democracia de mercado” que “vê o indivìduo livre como uma entidade
competitiva, em verdade como um ego agressivo cujo propósito ao viver é
dominar os outros (e, a miúdo, enganá-los), a fim de acumular riqueza, poder,
posses” (6).

Visionário, Rudhyar assinalou que o quadro social atual “deverá parecer cruel e
tragicamente nocivo ao homem do futuro, vivendo em uma sociedade plenária
composta por uma imensa rede de comunas regionais, cada uma com um forte
grau de independência, porém todas integradas em uma espécie de condição
organísmica de totalidade operativa dentro da totalidade global da humanidade.
Em certo sentido, este tipo de organização retem algumas das características da
nação americana primitiva, quando era uma federação de pequenos estados” (7).
Rudhiar retoma, a esse respeito, o velho sonho de Thomas Paine, de inaugurar,
“um novo ponto de partida para os assuntos humanos”. Mas, diferentemente de
muitas correntes de pensamento sectárias e ortodoxas, ele deixa claro que “não
existe uma só verdade, um só caminho para a realização de uma sociedade
plenária que abarque todos os homens, todas as culturas regionais e todas as
comunidades em sua diversidade de enfoques e respostas ante ao novo passo
evolutivo com o qual a humanidade se defronta” (8).

O mais significativo, porém, é que ele percebeu o movimento cultural em direção


à planetização quando disse que “uma sociedade ou uma cultura consideradas
como um campo organizado de atividade humana se acham sempre dominadas
por algum símbolo especialmente poderoso e por algum ato heróico arquetípico

92
que inspira as multidões. Hoje em dia, o símbolo do Globo está emergindo como
fator dominante da civilização que se forma lentamente a partir de nossa confusa
e trágica sociedade ocidental que logrou expandir-se pela superfície da terra de
modo implacável e cego; e seu símbolo gêmeo é o da geração de um fantástico
calor através de um esforço organizado, no qual colaboram cientistas de todas as
nações; calor que destrói, mas também calor que nos dá a possibilidade de nos
aventurarmos para além da gravitação terrestre, chegando à Lua e, finalmente,
também a outros planetas. Nesta aventura, que agora está fascinando a
imaginação dos homens, da mesma forma que as cruzadas e as grandes viagens
do início do Renascimento fascinaram a imaginação dos homens há cinco
séculos, o homem se encontrará alcançando a meta paradoxal de descobrir-se
como cidadão da Terra, justamente porque é capaz, agora, de libertar-se de sua
atração gravitacional” (9). É bom lembrar que Rudhyar escrevia essas coisas às
vésperas de o ser humano chegar à Lua e mais de dez anos antes da primeira
sonda terrestre pousar em Marte.

Seria necessário fazer um inventário cronológico do surgimento de idéias como


essas para perceber como foi emergindo no mundo uma visão de futuro baseada,
simultaneamente, na planetarização e na comunitarização – nas correntes
espiritualistas, na literatura de ficção e, inclusive, em diversas disciplinas
científicas –; para perceber a dimensão e o sentido desse movimento cultural.
Não importa aqui se se trata ou não de um conceito científico. O futuro não é
científico. E as nossas opções políticas, que o constroem, felizmente, também
não o são.

Vamos ver um outro exemplo. O polêmico e controvertido Bhagwan Shree


Rajneesh, que ficou mais conhecido como Osho, centrou boa parte dos seus
ensinamentos na visão de uma nova humanidade como uma república de
comunas. Em um discurso proferido em 1987 ele disse: “Minha visão de um
novo mundo, o mundo das comunas, significa ausência de nações, ausência de
grandes cidades, ausência de famílias – mas milhões de pequenas comunidades
espalhadas por toda a terra, em espessas florestas, verdes e luxuriantes florestas,
em montanhas, em ilhas. A menor comuna viável, a qual nós já experimentamos,
pode ser de cinco mil pessoas; e a maior pode ser de cinqüenta mil – de cinco mil
a cinqüenta mil. Mais do que isso se tornará inviável, e então volta a surgir a
questão da lei e da ordem, da polícia e dos tribunais, e todos os velhos
criminosos têm que ser trazidos de volta... Pequenas comunas – cinco mil parece
ser um número perfeito... Todo mundo conhece a todo mundo... Não existe
casamento, as crianças pertencem à comuna; a comuna tem hospitais, escolas,
colégios – a comuna toma conta das crianças... Todas as comunas deveriam ser
interdependentes... O mundo inteiro deveria ser uma só humanidade, somente

93
dividida em pequenas comunas, em bases práticas – nenhum fanatismo, nenhum
racismo, nenhum nacionalismo. Então, pela primeira vez, nós poderemos
abandonar a idéia de guerras” (10).

Se formos dividir a população mundial atual nas comunas sonhadas por Osho,
teríamos 1 milhão e 200 mil comunidades de 5 mil pessoas; ou, se tomarmos uma
população média de 20 mil pessoas por comuna, teríamos 300 mil comunidades.
Tal exercício numérico tem apenas o objetivo de mostrar que centenas de
milhares de unidades sócio-territorias, ao invés das menos de poucas centenas de
nações atuais, introduz uma mudança de qualidade no sistema. É um exercício
sobre a “força da dispersão”, sobre a pulverização, sobre a grande variedade e,
portanto, sobre a complexidade. Uma rede de um milhão de comunidades, de um
milhão de tipos de elos diferentes e interdependentes, não poderia ser regulada
por um padrão de ordem preexistente. Seria um sistema complexo cuja regulação
se aproximaria necessariamente dos mecanismos regulatórios de Gaia.

Da Terra-Pátria à Terra-Frátria
Edgar Morin, em “Terra-Pátria”, um livro de 1993 (escrito com Anne Brigitte
Kern), dedica um capítulo inteiro à emergência de uma era planetária. Para ele, “a
era planetária começa com a descoberta de que a Terra não é senão um planeta e
com a entrada em comunicação das diversas partes do planeta. Da conquista das
Américas à revolução copernicana, um planeta surgiu e um cosmos se desfez”
(11).

A globalização ocorrida na passagem do século 15 para o século 16, juntamente


com as mudanças no modo-de-ver o mundo introduzidas pela nascente ciência
moderna, criaram as condições para o surgimento de uma nova era, que “começa
pelas primeiras interações microbianas e humanas, depois pelas trocas vegetais e
animais entre Velho e Novo Mundo” (12). Na seqüência, há uma ocidentalização
do mundo que “começa tanto pela imigração de europeus nas Américas e na
Austrália quanto pela implantação da civilização européia, de suas armas, de suas
técnicas, de suas concepções, em todos os seus escritórios, postos avançados,
zonas de penetração” (13).

No século 19, a ocidentalização do mundo já é, simultaneamente, uma


globalização econômica e uma globalização das idéias. “O surto econômico, o
desenvolvimento das comunicações, a inclusão dos continentes subjugados no
mercado mundial determinam formidáveis movimentos de populações, que vão
amplificar o crescimento demográfico generalizado (em um século, a Europa

94
passou de 190 para 423 milhões de habitantes e o mundo de 900 milhões para 1,6
bilhão)... Entre 1863 e 1873, o comércio multinacional, cuja capital é Londres,
torna-se um sistema unificado após a adoção do padrão-ouro para as moedas dos
principais Estados europeus” (14).

Se recuarmos um pouco vamos ver que, já no século 18, “o humanismo das


Luzes atribui a todo ser humano um espírito apto à razão e lhe confere uma
igualdade de direitos. As idéias da Revolução Francesa, ao se generalizarem,
internacionalizam os princìpios dos direitos do homem e do direito dos povos”.
Surge então no século 19 as teorias evolucionistas e a biologia que, de algum
modo, “vão reconhecer a unidade da espécie humana” (15).

Mas é somente em meados do século 19 que surge “plenamente a idéia de


humanidade, como uma espécie de ser coletivo que aspira a se realizar reunindo
seus fragmentos separados” (16). Sob o influxo de tal idéia, “a era planetária é
também a aspiração, no início do século 20, à unidade pacífica e fraterna da
humanidade” (17).

No século 20, há a globalização pela guerra. “A guerra tornou-se total,


mobilizando militarmente, economicamente e psicologicamente as populações,
devastando os campos, destruindo as cidades, bombardeando as populações
civis” (18). A bomba em Hiroshima, em agosto de 1945, sinaliza a passagem para
uma nova etapa na consciência planetária. Os seres humanos tomam consciência
de que a humanidade pode ser destruída. A constituição da ONU, com todas as
suas deficiências e insuficiências, marca o início do processo de tomada de
consciência da planetarização (ou de planetarização da consciência).

Com efeito, Morin assinala que “a despeito de todas as regressões e


inconsciências, há um esboço de consciência planetária, na segunda metade do
século 20” (19). Ele aponta oito fatores como componentes desse fenômeno de
formação de uma consciência planetária:
a) a persistência de uma ameaça nuclear global;
b) a formação de uma consciência ecológica planetária;
c) a entrada, no mundo, do terceiro mundo;
d) o desenvolvimento da globalização civilizacional;
e) o desenvolvimento de uma globalização cultural;
f) a formação de um folclore planetário;
g) a teleparticipação planetária; e
h) a Terra vista da Terra.

95
Morin conclui seu diagnóstico afirmando que, em virtude da interação desses
fatores, “concretiza-se o sentimento de que há uma entidade planetária à qual
pertencemos, de que há problemas propriamente mundiais, trazendo nele [nesse
sentimento] uma evolução para a consciência planetária. Assim, de forma ainda
intermitente mas múltipla, a “global mind” se desenvolve” (20).

Embora o livro de Morin tenha sido publicado em 1993, seu diagnóstico é


anterior aos anos 90. Àquela altura, era natural que tal diagnóstico, por um lado,
não enfatizasse suficientemente as mudanças políticas decorrentes da queda do
Muro de Berlim e, por outro, não pudesse perceber o impacto (e a amplitude e a
profundidade) das inovações tecnológicas, introduzidas, em meados da década de
1990, sobretudo com a Internet. A teleparticipação planetária de que fala Morin
era ainda, para usar uma expressão de Pierre Levy, mais “molar” (via TV e outras
mídias não-interativas) do que “molecular” (via redes telemáticas, funcionando
em tempo real) (21).

Mas o fundamental aqui é que Morin percebeu que a chamada globalização


(atual) faz parte de um grande movimento em direção à planetarização, que
começou a se expressar como um “sentimento de pertença à uma mesma
comunidade de destino, doravante a do planeta Terra” (22). Quem tiver qualquer
dúvida sobre o andamento de tal processo, previsto por Morin, pode ler, por
exemplo, “A Carta da Terra” – talvez o documento mais importante da
glocalização (cf. Texto 3).

Morin também percebeu as características holográficas desse processo: “não


apenas cada parte do mundo faz cada vez mais parte do mundo, mas o mundo
enquanto todo está cada vez mais presente em cada uma de suas partes... A
globalização é... onipresente” (23).

A idéia de que a partir de um certo momento do final do século 20, cada parte do
mundo “traz em si, [ainda] sem saber, o planeta inteiro” é a idéia-chave para
entender a glocalização no sentido que atribuímos aqui a esse termo.

Dando seguimento a essa linha de raciocínio é possível afirmar (mas ele, ao que
eu saiba, não chegou a dizer isso) que a „revolução planetária‟ de Morin e a
revolução comunitária – que chamamos aqui de „revolução do local‟ – não são
apenas realidades coevas, movimentos simultâneos, senão que constituem o
mesmo fenômeno.

Planeta-e-comunidade é a realidade glocal. Esta nova realidade poderá se afirmar


no mundo inteiro, quer dizer, há uma visível macro-tendência que aponta nessa

96
direção, mas não é certo que ela consiga substituir a antiga ordem mundial ainda
prevalecente. O destino configurado por um mundo holográfico de miríades de
comunidades sócio-territoriais e virtuais articuladas em rede planetária não está
garantido. Serão os movimentos sociais e as opções políticas que nos levarão para
esse ou para outro cenário.

Não os movimentos corporativos, reivindicatórios, setoriais, particularistas,


reativos e reacionários e sim os movimentos que propõem alternativas de vida e
convivência social aos padrões da sociedade patriarcal, autocrática e guerreira,
que vigem há milênios. Não os movimentos embebidos por visões estatistas,
regressivas e contra-liberais (baseadas na ideologia do realismo político, segundo
a qual o mundo esteve, está e estará, sempre, inevitavelmente vincado pela
divisão amigo x inimigo) ou por visões neoliberais (baseadas na ideologia
econômica ortodoxa, segundo a qual o comportamento das sociedades é uma
decorrência do comportamento egotista dos indivíduos, que os impele
inexoravelmente à competição entre si). E sim movimentos humanizantes, que
constituem humanidade porque animados – parafraseando o que disse Morin –
pelo sentimento de pertença à mesma entidade planetária-comunitária de destino.
Esses novos movimentos sociais não se caracterizam, predominantemente, pela
vontade de poder (no sentido de serem desenhados para viabilizar a tomada e a
retenção do poder de mandar alguém fazer alguma coisa contra a sua vontade),
pela motivação de derrotar um concorrente ou destruir um inimigo. Não são
baseados em jogos do tipo „ganha-perde‟ ou do tipo „o vencedor leva tudo‟ e sim
em jogos „ganha-ganha‟. São, todos eles, movimentos de ethos
predominantemente cooperativo (24).

Ora, que movimentos são esses? São movimentos:


i) pelos direitos humanos e
ii) pela universalização da cidadania (pela inclusão e pela igualdade ou não-
discriminação em virtude de diferenças de renda e riqueza, de gênero, de raça e
etnia, de origem ou situação social ou territorial, de condição física e psíquica –
como, por exemplo, os que defendem direitos dos portadores de diferenças,
ainda julgadas como deficiências à luz de uma visão de saúde como oposto de
doença ou de sanidade como adequação à normalidade);
iii) pela radicalização da democracia, abarcando todo o experimentalismo
inovador que se desenvolve em torno dos processos participativos ensaiados em
escala local e de democracia em tempo real ou cyberdemocacy (envolvendo social
networks e civic networks);
iv) pela conquista da sustentabilidade, como os movimentos ecológicos,
ambientalistas e em prol do desenvolvimento sustentável;

97
v) pelo ecumenismo em sentido amplo e pela tolerância com as diferenças de
pensamento, de credos ou visões e práticas devocionais ou confessionais;
vi) pela paz mundial;
vii) pelo fortalecimento da sociedade civil, pela promoção do voluntariado, pela
responsabilidade social (individual, comunitária e institucional – visando o
engajamento de empresas, governos e organizações do terceiro setor em ações
sociais) e pelas parcerias interinstitucionais que esboçam um novo padrão de
relação entre Estado e sociedade no combate à pobreza e à exclusão social e na
promoção do desenvolvimento humano e social sustentável; e
viii) pela glocalização (compreendendo os diversos movimentos de „volta ao
local‟ ou comunitários no contexto de uma globalização que se quer includente,
como os movimentos de desenvolvimento integrado e sustentável e de sócio-
economia alternativa ou solidária ensaiados em escala local).

O sentido desses movimentos prefigura uma nova utopia. Ao invés da Terra-


Pátria ou da Terra-Mátria (a “Mãe-Terra” de uma parte dos intérpretes
espiritualistas de Gaia) essa nova utopia é a da Terra-Frátria. Como canta
Caetano Veloso (em “Lìngua”, 1984), “e eu não tenho pátria: tenho mátria e
quero frátria”.

Resta ver quais são as escolhas políticas capazes de nos conduzir na direção da
Terra-Frátria.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Cit. por Russell, Peter (1983). O Despertar da Terra: o Cérebro Global. São Paulo: Cultrix,
1991.

(2) Lovelock, James (1988). As eras de Gaia. Rio de Janeiro: Campus, 1991. Lovelock
reconhece, todavia, que quando formulou a teoria de Gaia pela primeira vez, ignorava
inteiramente idéias desenvolvidas por cientistas anteriores, especialmente Hutton, Korolenko e
Vernadsky... A idéia de que a Terra está viva provavelmente é tão velha quanto a humanidade.
A primeira expressão pública desta idéia como fato científico é a de um cientista escocês,
James Hutton. Em 1785, em uma reunião da Royal Society de Edimburgo, Hutton afirmou
que a Terra era um superorganismo e que o estudo mais adequado para ela seria a fisiologia...
Ievgraf Maximovitch Korolenko [que] viveu há mais de cem anos em Cracóvia, na Ucrânia...
afirmava que “a Terra é um organismo”... Hoje todos nós usamos a palavra “biosfera”,
reconhecendo raramente que foi Eduard Suess quem primeiro a utilizou, em 1875, de
passagem, ao descrever o seu trabalho sobre a estrutura geológica dos Alpes. Vernadsky
desenvolveu o conceito e a partir de 1911 usou o seu significado moderno. Vernadsky disse:
“A biosfera é o envoltório da vida, ou seja, a área da matéria viva... a biosfera pode ser vista
como a área da crosta da Terra ocupada por transformadores que convertem as radiações
cósmicas em energia terrestre eficaz: elétrica, quìmica, mecânica, térmica etc.”

98
(3) Margulis, Lynn (1998). O planeta simbiótico. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

(4) Idem.

(5) Lovelock: op. cit.

(6)-(9) Rudhyar, Dane (1969). Planetarización de la Conciencia. Málaga: Sírio, s. d.

(10) Discurso proferido no Uruguai: 26 de maio de 1987.

(11) Morin, Edgar & Kern, Anne-Brigitte (1993). Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995.

(12)-(20) Idem.

(21) Levy, Pierre (1994). A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São
Paulo: Loyola, 1998.

(22)-(23) Morin: op. cit.

(24) Em meados de 1994, tentei coligir uma lista que expressasse a temática desses novos tipos
de movimento. Essa lista acabou sendo publicada, dois anos depois, no folheto “A transição
para um novo padrão civilizatório” (Brasília: Instituto de Política, 1996). Naquela época escrevi
que “observando iniciativas inovadoras que vêm ocorrendo a partir dos anos 70 veremos que
delas não escapam alguns temas centrais: a ética (sobretudo na política); a (universalização da)
cidadania; a (radicalização da) democracia; a ecologia (e o desenvolvimento sustentável); o
(macro) ecumenismo (entre as religiões, tradições espirituais e culturas do planeta); a paz
(mundial) e a constituição de uma humanidade global (em termos políticos, geográficos,
jurídicos e sociais e não apenas como reflexo da globalização da economia). Tanto é assim que
dificilmente se encontrará uma experiência social realmente nova e expressiva, seja laica ou
religiosa, que não tenha, entre seus anunciados fins, um ou vários desses sete temas. Por tal
motivo podemos considerá-los como temas centrais da transição (não sendo totalmente
impossìvel aduzir outros tópicas a esse elenco)”. Com efeito, hoje, quase uma década depois,
eu retiraria da lista acima o tema da ética (por ser transversal a todos os demais) e acrescentaria
o tema dos direitos humanos, explicitando os movimentos pela igualdade de gênero e o tema
do fortalecimento da sociedade civil e traduzindo o último tema como glocalização (entendido
como comunitarianismo não-conservador e de índole tolerante, no contexto de uma
globalização includente).

99
Texto 3 | A Carta da Terra
Somos, ao mesmo tempo, cidadãos de nações diferentes e de um mundo no qual a dimensão local
e global estão ligadas.

No dia 14 de Março de 2000 na UNESCO em Paris foi aprovada, depois de 8


anos de discussões em todos os continentes, envolvendo 46 países e mais de cem
mil pessoas, desde escolas primárias, esquimós, indígenas da Austrália, do Canadá
e do Brasil, entidades da sociedade civil. até grandes centros de pesquisas,
universidades, empresas e religiões, a chamada “Carta da Terra”.

A CARTA DA TERRA

PREÂMBULO

Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, em uma época em


que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se
cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo,
grandes perigos e grandes promessas.

Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica


diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma
comunidade terrestre com um destino comum.

Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no
respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e
em uma cultura da paz.

Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra,


declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande
comunidade da vida, e com as futuras gerações.

Terra, Nosso Lar


A humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A Terra, nosso lar,
está viva com uma comunidade de vida única.

100
As forças da natureza fazem da existência uma aventura exigente e incerta, mas a
Terra providenciou as condições essenciais para a evolução da vida. A capacidade
de recuperação da comunidade da vida e o bem-estar da humanidade dependem
da preservação de uma biosfera saudável com todos seus sistemas ecológicos,
uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo.

O meio ambiente global com seus recursos finitos é uma preocupação comum de
todas as pessoas. A proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um
dever sagrado.

A Situação Global
Os padrões dominantes de produção e consumo estão causando devastação
ambiental, redução dos recursos e uma massiva extinção de espécies.
Comunidades estão sendo arruinadas.

Os benefícios do desenvolvimento não estão sendo divididos eqüitativamente e o


fosso entre ricos e pobres está aumentando. A injustiça, a pobreza, a ignorância e
os conflitos violentos têm aumentado e são causa de grande sofrimento. O
crescimento sem precedentes da população humana tem sobrecarregado os
sistemas ecológico e social. As bases da segurança global estão ameaçadas.

Essas tendências são perigosas, mas não inevitáveis.

Desafios Para o Futuro


A escolha é nossa: formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos
outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida.

São necessárias mudanças fundamentais dos nossos valores, instituições e modos


de vida. Devemos entender que, quando as necessidades básicas forem atingidas,
o desenvolvimento humano será primariamente voltado a ser mais, não a ter
mais.

Temos o conhecimento e a tecnologia necessários para abastecer a todos e


reduzir nossos impactos ao meio ambiente.

101
O surgimento de uma sociedade civil global está criando novas oportunidades
para construir um mundo democrático e humano.

Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão


interligados, e juntos podemos forjar soluções includentes.

Responsabilidade Universal
Para realizar estas aspirações, devemos decidir viver com um sentido de
responsabilidade universal, identificando-nos com toda a comunidade terrestre
bem como com nossa comunidade local.

Somos, ao mesmo tempo, cidadãos de nações diferentes e de um mundo no qual


a dimensão local e global estão ligadas.

Cada um compartilha da responsabilidade pelo presente e pelo futuro, pelo bem-


estar da família humana e de todo o mundo dos seres vivos. O espírito de
solidariedade humana e de parentesco com toda a vida é fortalecido quando
vivemos com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo dom da vida,
e com humildade considerando em relação ao lugar que ocupa o ser humano na
natureza.

Necessitamos com urgência de uma visão compartilhada de valores básicos para


proporcionar um fundamento ético à comunidade mundial emergente.

Portanto, juntos na esperança, afirmamos os seguintes princípios, todos


interdependentes, visando um modo de vida sustentável como critério comum,
através dos quais a conduta de todos os indivíduos, organizações, empresas,
governos, e instituições transnacionais será guiada e avaliada.

PRINCÍPIOS

I. RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DA VIDA

1. Respeitar a Terra e a vida em toda sua diversidade.


a. Reconhecer que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor,
independentemente de sua utilidade para os seres humanos.
b. Afirmar a fé na dignidade inerente de todos os seres humanos e no potencial
intelectual, artístico, ético e espiritual da humanidade.

102
2. Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor.
a. Aceitar que, com o direito de possuir, administrar e usar os recursos naturais
vem o dever de impedir o dano causado ao meio ambiente e de proteger os
direitos das pessoas.
b. Assumir que o aumento da liberdade, dos conhecimentos e do poder implica
responsabilidade na promoção do bem comum.

3. Construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas, sustentáveis


e pacíficas.
a. Assegurar que as comunidades em todos níveis garantam os direitos humanos
e as liberdades fundamentais e proporcionem a cada um a oportunidade de
realizar seu pleno potencial.
b. Promover a justiça econômica e social, propiciando a todos a consecução de
uma subsistência significativa e segura, que seja ecologicamente responsável.

4. Garantir as dádivas e a beleza da Terra para as atuais e as futuras gerações.


a. Reconhecer que a liberdade de ação de cada geração é condicionada pelas
necessidades das gerações futuras.
b. Transmitir às futuras gerações valores, tradições e instituições que apóiem, a
longo prazo, a prosperidade das comunidades humanas e ecológicas da Terra.

Para poder cumprir estes quatro amplos compromissos, é necessário:

II. INTEGRIDADE ECOLÓGICA

5. Proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com


especial preocupação pela diversidade biológica e pelos processos naturais que
sustentam a vida.
a. Adotar planos e regulamentações de desenvolvimento sustentável em todos os
níveis que façam com que a conservação ambiental e a reabilitação sejam parte
integral de todas as iniciativas de desenvolvimento.
b. Estabelecer e proteger as reservas com uma natureza viável e da biosfera,
incluindo terras selvagens e áreas marinhas, para proteger os sistemas de sustento
à vida da Terra, manter a biodiversidade e preservar nossa herança natural.
c. Promover a recuperação de espécies e ecossistemas ameaçadas.
d. Controlar e erradicar organismos não-nativos ou modificados geneticamente
que causem dano às espécies nativas, ao meio ambiente, e prevenir a introdução
desses organismos daninhos.

103
e. Manejar o uso de recursos renováveis como água, solo, produtos florestais e
vida marinha de formas que não excedam as taxas de regeneração e que protejam
a sanidade dos ecossistemas.
f. Manejar a extração e o uso de recursos não-renováveis, como minerais e
combustíveis fósseis de forma que diminuam a exaustão e não causem dano
ambiental grave.

6. Prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção ambiental e,


quando o conhecimento for limitado, assumir uma postura de precaução.
a. Orientar ações para evitar a possibilidade de sérios ou irreversíveis danos
ambientais mesmo quando a informação científica for incompleta ou não
conclusiva.
b. Impor o ônus da prova àqueles que afirmarem que a atividade proposta não
causará dano significativo e fazer com que os grupos sejam responsabilizados
pelo dano ambiental.
c. Garantir que a decisão a ser tomada se oriente pelas conseqüências humanas
globais, cumulativas, de longo prazo, indiretas e de longo alcance.
d. Impedir a poluição de qualquer parte do meio ambiente e não permitir o
aumento de substâncias radioativas, tóxicas ou outras substâncias perigosas.
e. Evitar que atividades militares causem dano ao meio ambiente.

7. Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as


capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar
comunitário.
a. Reduzir, reutilizar e reciclar materiais usados nos sistemas de produção e
consumo e garantir que os resíduos possam ser assimilados pelos sistemas
ecológicos.
b. Atuar com restrição e eficiência no uso de energia e recorrer cada vez mais aos
recursos energéticos renováveis, como a energia solar e do vento.
c. Promover o desenvolvimento, a adoção e a transferência eqüitativa de
tecnologias ambientais saudáveis.
d. Incluir totalmente os custos ambientais e sociais de bens e serviços no preço
de venda e habilitar os consumidores a identificar produtos que satisfaçam as
mais altas normas sociais e ambientais.
e. Garantir acesso universal a assistência de saúde que fomente a saúde
reprodutiva e a reprodução responsável.
f. Adotar estilos de vida que acentuem a qualidade de vida e subsistência material
em um mundo finito.

8. Avançar o estudo da sustentabilidade ecológica e promover a troca aberta e a


ampla aplicação do conhecimento adquirido.

104
a. Apoiar a cooperação científica e técnica internacional relacionada à
sustentabilidade, com especial atenção às necessidades das nações em
desenvolvimento.
b. Reconhecer e preservar os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual
em todas as culturas que contribuam para a proteção ambiental e o bem-estar
humano.
c. Garantir que informações de vital importância para a saúde humana e para a
proteção ambiental, incluindo informação genética, estejam disponíveis ao
domínio público.

III. JUSTIÇA SOCIAL E ECONÔMICA

9. Erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental.


a .Garantir o direito à água potável, ao ar puro, à segurança alimentar, aos solos
não-contaminados, ao abrigo e saneamento seguro, distribuindo os recursos
nacionais e internacionais requeridos.
b. Prover cada ser humano de educação e recursos para assegurar uma
subsistência sustentável, e proporcionar seguro social e segurança coletiva a
todos aqueles que não são capazes de manter-se por conta própria.
c. Reconhecer os ignorados, proteger os vulneráveis, servir àqueles que sofrem, e
permitir-lhes desenvolver suas capacidades e alcançar suas aspirações.

10. Garantir que as atividades e instituições econômicas em todos os níveis


promovam o desenvolvimento humano de forma eqüitativa e sustentável.
a. Promover a distribuição eqüitativa da riqueza dentro das e entre as nações.
b. Incrementar os recursos intelectuais, financeiros, técnicos e sociais das nações
em desenvolvimento e isentá-las de dívidas internacionais onerosas.
c. Garantir que todas as transações comerciais apóiem o uso de recursos
sustentáveis, a proteção ambiental e normas trabalhistas progressistas.
d. Exigir que corporações multinacionais e organizações financeiras
internacionais atuem com transparência em benefício do bem comum e
responsabilizá-las pelas conseqüências de suas atividades.

11. Afirmar a igualdade e a eqüidade de gênero como pré-requisitos para o


desenvolvimento sustentável e assegurar o acesso universal à educação,
assistência de saúde e às oportunidades econômicas.
a. Assegurar os direitos humanos das mulheres e das meninas e acabar com toda
violência contra elas.

105
b. Promover a participação ativa das mulheres em todos os aspectos da vida
econômica, política, civil, social e cultural como parceiras plenas e paritárias,
tomadoras de decisão, líderes e beneficiárias.
c. Fortalecer as famílias e garantir a segurança e a educação amorosa de todos os
membros da família.

12. Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente


natural e social, capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o
bem-estar espiritual, concedendo especial atenção aos direitos dos povos
indígenas e minorias.
a. Eliminar a discriminação em todas suas formas, como as baseadas em raça,
cor, gênero, orientação sexual, religião, idioma e origem nacional, étnica ou
social.
b. Afirmar o direito dos povos indígenas à sua espiritualidade, conhecimentos,
terras e recursos, assim como às suas práticas relacionadas a formas sustentáveis
de vida.
c. Honrar e apoiar os jovens das nossas comunidades, habilitando-os a cumprir
seu papel essencial na criação de sociedades sustentáveis.
d. Proteger e restaurar lugares notáveis pelo significado cultural e espiritual.

IV. DEMOCRACIA, NÃO VIOLÊNCIA E PAZ

13. Fortalecer as instituições democráticas em todos os níveis e proporcionar-


lhes transparência e prestação de contas no exercício do governo, participação
inclusiva na tomada de decisões, e acesso à justiça.
a. Defender o direito de todas as pessoas no sentido de receber informação clara
e oportuna sobre assuntos ambientais e todos os planos de desenvolvimento e
atividades que poderiam afetá-las ou nos quais tenham interesse.
b. Apoiar sociedades civis locais, regionais e globais e promover a participação
significativa de todos os indivíduos e organizações na tomada de decisões.
c. Proteger os direitos à liberdade de opinião, de expressão, de assembléia
pacífica, de associação e de oposição.
d. Instituir o acesso efetivo e eficiente a procedimentos administrativos e judiciais
independentes, incluindo retificação e compensação por danos ambientais e pela
ameaça de tais danos.
e. Eliminar a corrupção em todas as instituições públicas e privadas.
f. Fortalecer as comunidades locais, habilitando-as a cuidar dos seus próprios
ambientes, e atribuir responsabilidades ambientais aos níveis governamentais
onde possam ser cumpridas mais efetivamente.

106
14. Integrar, na educação formal e na aprendizagem ao longo da vida, os
conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um modo de vida
sustentável.
a. Oferecer a todos, especialmente a crianças e jovens, oportunidades educativas
que lhes permitam contribuir ativamente para o desenvolvimento sustentável.
b. Promover a contribuição das artes e humanidades, assim como das ciências, na
educação para sustentabilidade.
c. Intensificar o papel dos meios de comunicação de massa no sentido de
aumentar a sensibilização para os desafios ecológicos e sociais.
d. Reconhecer a importância da educação moral e espiritual para uma subsistência
sustentável.

15. Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração.


a. Impedir crueldades aos animais mantidos em sociedades humanas e protegê-
los de sofrimentos.
b. Proteger animais selvagens de métodos de caça, armadilhas e pesca que causem
sofrimento extremo, prolongado ou evitável.
c. Evitar ou eliminar ao máximo possível a captura ou destruição de espécies não
visadas.

16. Promover uma cultura de tolerância, não violência e paz.


a. Estimular e apoiar o entendimento mútuo, a solidariedade e a cooperação entre
todas as pessoas, dentro das e entre as nações.
b. Implementar estratégias amplas para prevenir conflitos violentos e usar a
colaboração na resolução de problemas para manejar e resolver conflitos
ambientais e outras disputas.
c. Desmilitarizar os sistemas de segurança nacional até chegar ao nível de uma
postura não-provocativa da defesa e converter os recursos militares em
propósitos pacíficos, incluindo restauração ecológica.
d. Eliminar armas nucleares, biológicas e tóxicas e outras armas de destruição em
massa.
e. Assegurar que o uso do espaço orbital e cósmico mantenha a proteção
ambiental e a paz.
f. Reconhecer que a paz é a plenitude criada por relações corretas consigo
mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com a
totalidade maior da qual somos parte.

107
O CAMINHO ADIANTE

Como nunca antes na história, o destino comum nos conclama a buscar um novo
começo. Tal renovação é a promessa dos princípios da Carta da Terra.

Para cumprir esta promessa, temos que nos comprometer a adotar e promover
os valores e objetivos da Carta. Isto requer uma mudança na mente e no coração.
Requer um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade
universal.

Devemos desenvolver e aplicar com imaginação a visão de um modo de vida


sustentável aos níveis local, nacional, regional e global.

Nossa diversidade cultural é uma herança preciosa, e diferentes culturas


encontrarão suas próprias e distintas formas de realizar esta visão.

Devemos aprofundar e expandir o diálogo global gerado pela Carta da Terra,


porque temos muito que aprender a partir da busca iminente e conjunta por
verdade e sabedoria.

A vida muitas vezes envolve tensões entre valores importantes. Isto pode
significar escolhas difíceis. Porém, necessitamos encontrar caminhos para
harmonizar a diversidade com a unidade, o exercício da liberdade com o bem
comum, objetivos de curto prazo com metas de longo prazo.

Todo indivíduo, família, organização e comunidade têm um papel vital a


desempenhar. As artes, as ciências, as religiões, as instituições educativas, os
meios de comunicação, as empresas, as organizações não-governamentais e os
governos são todos chamados a oferecer uma liderança criativa.

A parceria entre governo, sociedade civil e empresas é essencial para uma


governabilidade efetiva.

Para construir uma comunidade global sustentável, as nações do mundo devem


renovar seu compromisso com as Nações Unidas, cumprir com suas obrigações
respeitando os acordos internacionais existentes e apoiar a implementação dos
princípios da Carta da Terra com um instrumento internacional legalmente
unificador quanto ao ambiente e ao desenvolvimento.

108
Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência face à
vida, pelo compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, a intensificação da
luta pela justiça e pela paz, e a alegre celebração da vida.

109
Glocalização em disputa
A glocalização está em disputa e essa disputa é, fundamentalmente, uma disputa
entre o „local separado‟ e o „local conectado‟, entre „dependência x independência‟,
por um lado e „interdependência‟, por outro.

Na seção anterior afirmei que a idéia segundo a qual, a partir de um certo


momento do final do século 20, cada parte do mundo, como disse Morin, “traz
em si, [ainda] sem saber, o planeta inteiro”, é a idéia-chave para entender a
glocalização no sentido que estamos atribuindo a esse termo (diferente daqueles
atribuídos pelos economistas japoneses que o cunharam no final da década de
1980 e, também, por Roland Robertson, que o redefiniu, como aspecto da
globalização cultural, em meados dos anos 90).

Somos tentados a ver aqui uma certa ordem na história. Agnes Heller concluiu
um belo ensaio, publicado em 1999 (“Uma crise global da civilização: os desafios
futuros”), com uma frase luminosa: “E a modernidade só pode sobreviver em
nìvel global” (1). Com efeito, é difícil deixar de pensar que se o mundo moderno
é um mundo global e o mundo pré-moderno era um mundo local, o mundo pós-
moderno será um mundo glocal. Mas resistindo a tentação de urdir uma nova
filosofia ou um novo schema interpretativo da história, parece mais razoável
afirmar que o destino configurado por um mundo holográfico de centenas de
milhares de comunidades sócio-territoriais e virtuais articuladas em rede
planetária não está garantido. Serão os movimentos sociais e as opções políticas
que nos levarão para esse ou para outros cenários.

Cheguei a mencionar os novos movimentos sociais, de ethos cooperativo (ou, pelo


menos, não predominantemente competitivo), que poderiam nos levar na direção
dessa nova utopia. Na presente seção pretendo tratar das escolhas políticas.

Começo com a seguinte afirmativa. A glocalização está em disputa e essa disputa


é, fundamentalmente, uma disputa entre o „local separado‟ e o „local conectado‟,
entre „dependência x independência‟, por um lado e „interdependência‟, por
outro.

Dizer que a glocalização está em disputa, nos termos acima, significa dizer que
existem reações à glocalização que podem inviabilizá-la. A glocalização, apenas
prefigurada nos dias de hoje, só poderá se consumar com o „local conectado‟. As

110
reações que podem inviabilizar a glocalização são aquelas que procuram manter o
„local separado‟.

Dizendo a mesma coisa de outra maneira, e talvez com um pouco mais de


precisão, a glocalização somente poderá se consumar em um quadro de
interdependência. As reações que podem inviabilizar a glocalização são aquelas
que procuram manter o mundo congelado e aprisionado em um estágio de
contraposição „dependência x independência‟. E isso é a mesma coisa porquanto
„independência‟ significa „local desconectado‟ como alternativa à „dependência‟
que significa „local hierarquicamente subordinado‟. Ou seja, estamos falando de
rede.

Definimos assim interdependência como a dependência mútua de todos os


processos que ocorrem em um sistema complexo que admite como padrão
organizativo o padrão de rede. Conclusão: a glocalização só pode se consumar na
sociedade-rede.

Todavia, a interdependência tende a se manifestar nas coletividades humanas que


possuem um ethos de comunidade. Somente em um contexto de comunidade se
pode ascender à consciência do papel, vital para a continuidade do sistema, que
cumprem as múltiplas relações que se estabelecem entre seus membros. Daí
porque a glocalização aponta para um mundo holográfico de numerosas
comunidades sócio-territoriais e virtuais, transnacionais e subnacionais,
articuladas em rede planetária.

Vamos nos concentrar agora, entretanto, na disputa em torno da glocalização, ou


seja, nas escolhas políticas que poderão nos levar à uma superação da polarização
„dependência versus independência‟ ou que, ao contrário, poderão nos manter
aprisionados nessa estiolante contradição não-resolvida, característica do que
alguns chamam de modernidade.

Parece óbvio que um mundo configurado como um conjunto a-sistêmico de


Estados-nações inviabiliza (ou dificulta sobremaneira) a adoção da democracia no
plano internacional. Modos de regulação de conflitos que hoje se exige sejam
praticadas por todos os países no âmbito interno, não são exigidos no âmbito
externo. A isso se chama realismo político.

Também parece óbvio que arranjos competitivos de Estados-nações poderão ser


estáveis somente em curtos intervalos de tempo. Mais cedo ou mais tarde tais
arranjos levarão à predominância de um Estado ou de um conjunto de Estados

111
sobre os demais, em uma dinâmica de „centro x periferia‟ ou de „dependência x
independência‟.

Todavia a unipolarização é um caminho para a multipolarização e, portanto, para


a desconstituição do monopolo. Mantendo-se as escolhas políticas feitas
atualmente pelas grandes potências (como os USA), o mais provável é a volta de
uma bipolarização. No caso do mundo atual, pode-se prever que, dentro de duas
ou três décadas, forme-se novamente um dipolo (por exemplo, USA contra
China, ou América do Norte e Reino Unido contra União Européia). Por quê?
Porque impérios precisam sempre de pólos conflitantes e não podem ser
construìdos na ausência de inimigos. Por isso, a “lógica” autocrática é
essencialmente guerreira.

Isso não significa, necessariamente, existência de guerra (“quente”), mas pode se


dar em um ambiente de guerra (“fria”). O que importa aqui é a “lógica” de guerra
como um modo de relação e não se serão disparados mísseis sobre a cabeça de
alguém. O mais provável é que, tornado permanente ou constante esse „estado de
guerra‟, se passe da guerra fria para a guerra quente e, depois, novamente para a
guerra fria, aprisionando o mundo em um círculo satânico.

As guerras quentes movidas nos albores do presente século pelos USA


constituem uma reação ao fim da guerra fria simbolizado pela queda do Muro de
Berlim. Como vimos no capítulo anterior, constituem uma reação à globalização
e, na verdade, como estamos vendo agora, constituem, mais precisamente, uma
reação à glocalização. Tentam manter diferentes partes do mundo em uma
disputa pela independência em relação à parte dominante, ou seja, aquela parte
que tenta manter as outras partes em estado de dependência. Quer dizer: tentam
manter o mundo preso na polarização „dependência x independência‟.

Tentar romper com a dependência a partir de lutas pela independência reforça a


“lógica” autocrática. As novas partes independentes logo virarão cópias malfeitas
das que, no passado, mantiveram-nas dependentes e tenderão, no futuro, a
manter outras partes dependentes de si. A única maneira de superar a
dependência é desconstruindo a dinâmica „dependência x independência‟ e isso
só pode ser feito com a instalação da „interdependência‟.

A principal escolha polìtica para desconstruir a “lógica” autocrática é a


democracia, ou melhor, o processo continuado de democratização, sobretudo a
democratização da própria democracia (ainda insuficientemente democratizada,
apenas representativa e apenas formal, escolhida sem grandes dificuldades por
Estados-nações com pretensões neo-imperiais, inclusive como aval e pretexto

112
para poder manter o mundo em „estado de guerra‟, por exemplo, movendo
guerras contra as não-democracias). No plano político o movimento pela
democratização – em especial em âmbito global, pela democratização das
relações internacionais e, em âmbito local, pela democratização de instituições,
procedimentos e processos decisórios – é a principal revolução capaz de libertar
o mundo do círculo satânico da guerra e de consumar a glocalização.

Ora, a democracia é um “metabolismo” (um modo polìtico de regulação)


conforme a um determinado “corpo” (um padrão social de organização): o
padrão de rede. Digam o que quiserem dizer – inclusive os que tentam híper-
historicizar suas ocorrências buscando dela retirar qualquer característica
universal intrínseca – a democracia é, sempre, uma rede pactuada de
conversações. Por isso, uma outra forma de apresentar a mesma hipótese dos
dois últimos parágrafos é dizer que a única maneira de superar a realidade do
local hierarquicamente subordinado a outro local, não é por meio do „local
separado‟ e sim por meio do local conectado a uma multiplicidade de outros
locais. O monopolo (em geral mantido como dipolo) somente pode ser superado
pelo multipolo. E o multipolo só é viável como rede.

Em âmbito global, se os Estados-nações não fizerem tal escolha, em termos de


política externa, cabe à sociedade civil mundial e a outros atores não-nacionais
fazê-la, sobretudo promovendo um amplo e vigoroso movimento pela paz. Em
âmbito local (interno) se os Estados-nações não fizerem tal escolha, em termos
de orientação de suas policies, cabe também às sociedades civis e a outros atores
não-nacionais fazê-la. De qualquer modo a alternativa é o surgimento de atores
transnacionais e sub-nacionais que tenham capacidade de se relacionar entre si
não obstante o que pretendam os Estados nacionais. Essa parece ser a única
alternativa capaz de consumar o processo de glocalização que ora se prefigura,
ativando a conexão global-local.

Portanto, fortalecer as sociedades civis locais, nacionais, regionais e, sobretudo a


sociedade civil mundial e outros atores não-nacionais (trans-nacionais e pan-
nacionais, como, por exemplo, a Organização das Nações Unidas) e fortalecer as
comunidades sócio-territoriais e virtuais subnacionais e transnacionais parece ser
a orientação estratégica mais adequada para aqueles que desejam consumar a
glocalização que é, como vimos, um processo de planetarização e de
comunitarização simultaneamente.

Por certo, o Estado não desaparecerá, não pelo menos em um horizonte


previsível. Mas será transformado por pressões globais e locais, ou seja, por
efeito de glocalização.

113
NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Heller, Agnes (1999). “Uma crise global da civilização: os desafios futuros” in Santos,
Theotônio et al. (orgs.) (1999). A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o
século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.

114
Glocalização e Estado-nação
O Estado não vai desaparecer na transição histórica atualmente em curso, senão
que será transformado, mas não é certo se tal transformação será necessariamente
glocalizante. O destino da forma atual do Estado-nação está em disputa e essa
disputa é a mesma disputa que se trava em torno da glocalização.

A glocalização não é um movimento contra o Estado nacional. Ocorre que a


mudança social em curso no mundo tem se dado, pelo menos até agora, em
âmbito supra-nacional (global) e sub-nacional (local). Como já assinalei, no
capítulo sobre a globalização, a democracia realmente existente no interior das
repúblicas e dos governos representativos modernos [de âmbito nacional] não
tem acompanhado as inovações (sociais, políticas, culturais e tecnológicas)
introduzidas com o atual processo de globalização [na verdade, de glocalização].
Com efeito, tais inovações têm surgido, simultaneamente, na dimensão global
(como resultado de mudanças sociais macro-culturais) e na dimensão local (como
resultado de mudanças sociais na estrutura e na dinâmica de comunidades). O
“corpo” e o “metabolismo” do Estado-nação ainda permanece, todavia, como
uma instância intermediária resistente a tais mudanças. Basta ver como estão
organizados os sistemas políticos e eleitoral, as burocracias, os mecanismos
verticais (em geral clientelistas) de oferta das chamadas políticas públicas e os
padrões de relação entre Estado e sociedade ainda vigentes na maior parte, senão
na totalidade, dos Estados-nações do globo.

Isso significa, é bom repetir, que a mudança que tem ocorrido nas duas pontas –
no global e no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a forma Estado-
nação atual, embora essa forma esteja sendo ameaçada e, assim, esteja resistindo
ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de governança.

Ora, novos sistemas globais de governança [como os que seriam exigidos por
uma rede planetária de miríades de comunidades interdependentes – aduzo
agora], para serem realmente novos, deverão ser frutos de novos arranjos de
atores, de uma nova arquitetura de rede e de novos modos democráticos (de
democracia em tempo real, de ciberdemocracy), conectando identidades individuais e
coletivas – sócio-territoriais (comunidades), sócio-culturais (novos movimentos
sociais, organizações da sociedade civil e comunidades virtuais), sócio-produtivas
(novas empresas) e sócio-políticas (novos partidos e tendências de opinião sub-
nacionais e trans-nacionais) – para além da identidade única do Estado-nação.

115
É necessário identificar as insuficiências ou inadequações do Estado-nação para
tentar prever que tipo de transformação ocorrerá na sua estrutura e no seu
funcionamento por força do processo em curso de glocalização.

As três insuficiências ou inadequações do Estado-nação


Em primeiro lugar, voltando a Daniel Bell, constatam-se duas principais
insuficiências ou inadequações do ponto de vista da sua operacionalidade
administrativa: o Estado-nação é grande demais para dar conta da dimensão local
e pequeno demais para dar conta da dimensão global.

Em segundo lugar, o Estado-nação, na sua forma atual, não se dá muito bem


com o que Claus Offe (1999), denominou de “trajetórias dominantes de mudança
social a que todos nós... estamos expostos de forma direta” (1). Em recente
ensaio (“A atual transição da história e algumas opções básicas para as
instituições da sociedade”), Offe identificou três trajetórias atuais de transição: a
democratização, a globalização e a pós-modernização (ver versão integral deste
ensaio em Texto 12).

Pois bem. A forma Estado-nação atual admite a democracia política,


representativa e formal, mas coloca obstáculos ou retarda a velocidade do
processo de democratização na direção da democratização da sociedade e da
adoção de modos de regulação mais participativos e mais substantivos.
Sobretudo, no plano explicitamente político, impõe limites à chamada
radicalização (ou democratização, como prefere Giddens) da própria democracia
(2). Isso no âmbito interno. No âmbito externo, por sua vez, o Estado-nação não
consegue promover o casamento entre a manutenção da soberania nacional e a
simples adoção da democracia formal na sua relação com os outros Estados,
curvando-se ao realismo político, o qual constitui, como todo mundo sabe, uma
orientação substancialmente autocrática (e os que negam isso só o podem fazê-lo
em nome do mesmo realismo político).

Além disso, a forma Estado-nação atual não convive muito bem com a
globalização, que lhe retira poder. Como assinalou Castells em um ensaio de
2001, “confrontado com fluxos globais de capital, de produção, de comércio, de
gestão, de informação e de crimes, o Estado-nação foi perdendo, na última
década, boa parte do seu poder... A crescente falta de operacionalidade do
Estado-nação para resolver os problemas econômicos, de meio ambiente, da
insegurança cidadã produz uma crise de confiança e legitimidade em boa parte da

116
população em quase todos os países... [De sorte que] o Estado é cada vez mais
inoperante no global e cada vez menos representativo no nacional” (3).

Por último, o Estado-nação, na sua forma atual, também está sendo


indiretamente questionado pela redescoberta ou pelo renascimento (como
assinala Offe) “de tradições religiosas e estéticas locais que são adotadas como
formas simbólicas de resistência à uniformidade da cultura global e que dão
origem a uma política cultural pós-moderna da identidade e diferença” (4) ou,
diretamente confrontado (como afirma Castells), por numerosos atores sociais
que, “golpeados pelas tormentas da transição histórica para uma nova economia
e um novo paradigma tecnológico, abandonados por um Estado que concentra
suas energias em navegar no encapelado oceano da globalização, desconfiados de
políticos ineficazes e, freqüentemente, cínicos e corruptos... se refugiam nas
trincheiras de identidades construídas com base em sua experiência e seus valores
tradicionais: sua religião, sua localidade, sua região, sua memória, sua nação e sua
cultura étnica. E identidades de gênero ou, em algumas ocasiões, sua identidade
eletiva, constitutiva de um sistema alternativo de valores” (5). Assim, prossegue
Castells, “ao questionamento do Estado-nação pelos fluxos globais de capital,
comércio e informação se acrescenta o solapamento de sua legitimidade por
identidades singulares que não se reconhecem na cidadania abstrata de uma
democracia cada vez mais retórica, e a serviço de uma minoria globalizada” (6).

Castells vai mais além ao supor que, “se essas tendências se confirmarem, na era
da informação, na qual já nos encontramos, poderemos desembocar em uma
justaposição generalizada de mercados globais e tribos identitárias enfrentando-se
sobre as ruínas do Estado democrático e da sociedade civil, que foram
construídos com tanto esforço no trajeto histórico da era industrial” (7).

Nem tanto. O que ocorre, ao meu ver, é que, como o próprio Castells afirma,
citando o ensaio de Guéhenno (1993) sobre o fim da democracia (ver Box S), “o
conjunto da construção do Estado-nação democrático da era industrial, baseada
nos conceitos inseparáveis de soberania nacional e representação democrática
cidadã, entra em crise” (8). Mas entra em crise, sobretudo, porque sua forma
antiga não foi capaz de se adequar às novas dinâmicas introduzidas pela transição
histórica – inclusive no sentido da democratização (com a queda dos “muros”
que mantêm o isolamento das populações imposto pelo Estado, visando ao seu
controle pelo confinamento dentro de “fronteiras” sócio-político-culturais) e da
glocalização (ou seja, da formação de uma nova cultura, conforme a uma nova
sociedade cosmopolita global e de um reflorescimento da perspectiva
comunitária ou da volta ao local) – e não porque, supostamente, esteja sendo
atingido nos seus melhores valores de democracia e cidadania universais (o que é

117
muito questionável de vez que democracia e cidadania existem, a rigor, apenas
“para dentro” no Estado-nação industrial).

Não se trata de travar uma luta contra o Estado-nação e a favor da promessa


utópica de um mundo sem fronteiras nacionais contida na (ou prenunciada pela)
glocalização. Trata-se apenas de reconhecer que o Estado-nação está sendo
atingido não propriamente pelas suas virtudes e sim pela sua incapacidade de se
adaptar a um mundo que mudou – o que, convenhamos, parece muito mais
lógico se quisermos interpretar o que de fato está ocorrendo ao invés de valorar a
globalização negativamente para tentar responsabilizá-la pela derruição de
conquistas arduamente construídas et coetera et tal.

Por outro lado, o Estado não vai mesmo desaparecer na transição histórica
atualmente em curso, senão que será transformado. E nem é certo se tal
transformação será necessariamente democratizante, globalizante e pós-
modernizante (para mencionarmos as trajetórias dominantes da transição,
segundo Offe) ou glocalizante (como prefiro sintetizar). Talvez haja uma reação à
essa transição, com um recrudescimento do estatismo, que tudo fará para manter
um sistema internacional cristalizado em algumas poucas centenas de núcleos
duros de poder formalmente democrático “para dentro” e substancialmente
autocrático “para fora” (ou de um número menor de blocos pluri-nacionais
seguindo a mesma receita) por meio da instalação de um “estado de guerra”
generalizado no mundo.

Não se sabe. O destino da forma atual do Estado-nação está em disputa e essa


disputa é a mesma disputa que se trava em torno da glocalização. O que se pode
avançar desde agora, entretanto, é que dificilmente uma reação regressiva como
essa teria sucesso na ausência de “estado de guerra” (“quente” ou “fria”, não
importa), daí a tremenda importância que adquirem, nos tempos atuais, os
movimentos pela paz. Voltarei a esse ponto.

Em terceiro lugar, o Estado-nação, na sua forma atual, revela-se necessário


porém francamente insuficiente para a promoção ou a indução do
desenvolvimento. Ou seja, nesse campo existem coisas que precisam ser feitas e
que não podem ser feitas pelo Estado senão, em alguns casos, pelo mercado e,
em outros, pela sociedade civil ou, ainda, por parcerias intersetoriais entre Estado
e mercado, Estado e sociedade civil, mercado e sociedade civil e Estado, mercado
e sociedade civil. Ou, para usar os termos empregados por Claus Offe (ver Texto
12), existem coisas que devem ser feitas pelo Estado, pelo mercado e pela
comunidade ou por combinações desses “três fundamentos da ordem social, e

118
em uma mistura que consiga evitar que cada um deles se sobreponha aos outros e
os elimine” (9).

Para Offe, uma “mistura cìvica” dessas três esferas deve evitar seis “abordagens
patológicas para a construção de instituições sociais e políticas, ou ao que
denominamos seis falácias. Três delas resultam da permanência de uma
abordagem “bitolada” em um de nossos blocos, e as outras três advêm da
premissa de que algum dos três ingredientes pode ser inteiramente deixado de
fora na arquitetura da ordem social” (10). Essas falácias são: 1) a do estatismo
excessivo; 2) a da capacidade de governo “pequena demais”; 3) a da excessiva
confiança nos mecanismos de mercado; 4) a de uma limitação excessiva das
forças de mercado; 5) a do comunitarianismo excessivo; e 6) a de negligenciar
comunidades e identidade (11).

Enveredar por qualquer uma dessas “abordagens patológicas” significaria, para


Offe, inviabilizar a possibilidade de encontrar a “mistura correta” dos três
setores. Isso ocorre, segundo ele, quando nos deixamos impregnar por doutrinas
puras que conferem a um (ou a dois) dos setores papel protagônico, excluindo os
demais (ou o terceiro). Como exemplos desses tipos de doutrinas puras, Claus
Offe cita o „estatismo social-democrata‟, o „liberalismo de mercado‟ e o
„comunitarianismo conservador‟: “esses são os três tipos competitivos de filosofia
pública que estão presentes e em competição no final do século 20” (12).

Nos termos empregados neste livro, poder-se-ia dizer que isso ocorre quando
nos deixamos impregnar por ideologias estadocêntricas, mercadocêntricas ou
sóciocêntricas. Há, todavia, uma importante diferença entre estatismo,
neoliberalismo e qualquer coisa que se pudesse propriamente chamar de
“socialismo” enquanto expressão de um sociocentrismo (não o que foi chamado
nos dois séculos anteriores de socialismo que, freqüentemente, era uma forma de
estatismo, a não ser em algumas de suas versões anarquistas).

O sociocentrismo, que poderia teoricamente ser um problema (semelhante ao


estadocentrismo e ao mercadocentrismo) é, na verdade, também, uma fonte de
solução, uma saída para a contraposição estiolante Estado versus mercado. O
próprio Offe reconhece que “instituições de governo justas e transparentes, a
prosperidade que mercados cuidadosamente regulados podem gerar e a vida das
comunidades restringida pelo princípio da tolerância podem e devem, todos,
contribuir para a (assim como se tornarem beneficiários da) formação e
acumulação de capital social no interior da sociedade civil. As forças associativas
são mais capazes de definir e redefinir de forma constante a “mistura correta” de

119
padrões institucionais do que qualquer autoproclamado especialista ou
protagonista intelectual de uma das doutrinas “puras” da ordem social” (13).

É, portanto, o capital social disponível no interior da sociedade civil que pode


conduzir “a sintonia fina, processual, crìtica e flexìvel, ao mesmo tempo que a
recombinação imaginativa dos três componentes da ordem institucional
separados” (14) (ou seja, o Estado, o mercado e a comunidade). Mas o capital
social, como veremos mais adiante, é gerado, basicamente, por comunidades ou
pela “capacidade de comunidade” que possuem, em maior ou menor grau, as
sociedades humanas.

É por isso que a emergência de um comunitarianismo inovador incentivado pelo


“associativismo cìvico e de capital social, que capacita as pessoas a se engajarem
em práticas associativas” (15) formando organizações não-governamentais e sem
fins lucrativos, porém, além disso, sobretudo, tolerantes – comunidades “não-
sectárias”, não exclusivistas ou não-discriminatórias – constitui hoje um novo
caminho para a mudança social.

Ora, se o processo de glocalização incrementa tal “capacidade de comunidade” é


de se esperar que ele consiga mudar o padrão de relação entre Estado e
sociedade, quer mediando, a partir do “lugar” da sociedade civil, a interação entre
Estado e mercado, quer aumentando o controle social sobre o Estado e impondo
a orientação social ao mercado.

O Estado-rede
De qualquer modo o Estado-nação não poderá mais ser como antes ou se
comportar da maneira como se comportava ou se estruturar da maneira como se
estruturava, se – digo: se – a glocalização avançar no rumo da formação de redes
de comunidades subnacionais e transnacionais. Neste caso ele terá que se
transformar, como quer Castells (por esse e por outros motivos: além da
transferência de atribuições e iniciativas aos âmbitos regionais e locais, a própria
crise que o assola e o desenvolvimento de instituições supranacionais), em uma
espécie de Estado-rede.

Castells explica o surgimento do Estado-rede como decorrente da necessidade de


novos mecanismos de coordenação. Segundo ele, “as estratégias do Estado-
nação para aumentar a sua operacionalidade (através da cooperação
internacional) e para recuperar sua legitimidade (através da descentralização local
e regional) aprofundam sua crise, ao fazê-lo perder poder, atribuições e

120
autonomia em benefício dos níveis supranacional e subnacional. Daí a
importância de que o processo de redistribuição de atribuições e recursos seja
acompanhado por mecanismos de coordenação entre os diferentes níveis
institucionais em que se desenvolve a ação dos agentes políticos. A fórmula
político-institucional que parece mais efetiva para assegurar essa coordenação é o
que denomino Estado-rede” (16).

Para ele, “Estado-rede é o Estado da era da informação, a forma política que


permite a gestão cotidiana da tensão entre o local e o global” (17) (em nossos
termos, o Estado transformado pela glocalização). Embora pareça muito literal,
faz sentido: uma sociedade-rede não poderia admitir outro tipo de Estado que
não fosse o Estado-rede. Ou, em outras palavras, em um mundo em rede o
Estado só poderá sobreviver como Estado-rede.

A reação a glocalização
Todavia, isso pode não acontecer. Se não acontecer será porque a disputa em
torno da glocalização conseguiu bloquear de alguma forma a expansão das
conexões no interior dos âmbitos locais e interlocais ou entre o local e o global.
Ou seja, se isso não acontecer será porque o „local separado‟ conseguiu
prevalecer sobre o „local conectado‟ ou porque uma dinâmica de
interdependência não conseguiu se instalar em grau suficiente para desencadear
uma mudança na configuração global do sistema.

Uma outra maneira, mais otimista e também mais ousada, de dizer a mesma
coisa, é a seguinte: isso não acontecerá enquanto nodos locais – em número
suficiente e com um número suficiente de conexões – não estiverem conectados
em rede. A questão de saber qual seria a “massa crìtica” necessária para
desencadear a predominância de uma nova dinâmica de interdependência em
âmbito global e de qual seria o grau de conectividade (a extensão característica de
caminho) para reduzir o tamanho do mundo de sorte a permitir que a
glocalização seja consumada é, ao meu ver, o mais importante tema da
investigação de vanguarda contemporânea. Trataremos desse assunto no
próximo capítulo, sobre a localização.

Todavia, tendo a achar – dada a autonomia do político – que sempre é possível


bloquear, ou ao menos retardar por longo tempo, processos de mudança social.
Manter o „local separado‟ parece ser, hoje, o grande objetivo dos que querem
reter o mundo congelado no modelo do equilíbrio competitivo de Estados-
nações. Tal modelo, por certo, traz em si uma contradição, uma vez que, na

121
ausência de “estado de guerra”, ele só é estável por curtos perìodos e que, na
presença de guerras (“quentes” ou “frias”), ele não possa admitir uma
multipolarização (dificilmente administrável do ponto de vista dos interesses
econômicos dos pólos individuais), tendendo para a bipolarização, a qual, por sua
vez, também não se mantém por longo tempo na medida em que um pólo acaba
predominando sobre o outro, levando à unipolarização que conduz, então, à
multipolarização.

Diz-se que Creta (a minóica) conseguiu ficar um milênio sem guerras não
obstante estar imersa em um mundo de guerras. Creta, em si, era um mundo
autosuficiente, uma ilha em todos os sentidos. Mas hoje não podem mais existir
ilhas (em todos os sentidos). E não se conhece na história recente longos
perìodos de ausência de “estado de guerra” (“quente” ou “fria”) generalizados. A
única exceção foram os dez anos entre a derrocada da URSS e o atentado ao
World Trade Center, no quais, como assinala Friedman, o sistema da guerra fria foi
substituído pelo que ele chama de sistema da globalização (18). Não por acaso
foram aqueles os anos 90, onde pôde avançar o processo da glocalização.

A hipótese da inevitabilidade da guerra e do seu papel motor


das transformações
Por certo, existem outras interpretações para o declínio do Estado-nação que ora
se prenuncia.

Philip Bobbit (2002) lançou recentemente um curioso livro, chamado “O Escudo


de Aquiles”, com o objetivo de apresentar uma nova visão sobre o Estado
moderno – “como surgiu, como se desenvolveu e que direções podemos esperar
que tome” (19).

O argumento central de Bobbit é o seguinte:

i) em 1990, com o fim da guerra fria, encerrou-se o perìodo da „longa guerra”,


iniciada em 1914, no qual estava em disputa a forma do Estado-nação (se
comunista, fascista ou parlamentar);

ii) tal disputa ensejou o surgimento de novos fatores que questionam o velho
modelo de Estado baseado em uma noção de soberania vinculada a fronteiras
territoriais;

122
iii) em decorrência disso, um novo tipo de Estado – o Estado-mercado – está se
sobrepondo ao Estado-nação; e

iv) a antiga sociedade de Estados-nação está sendo substituída por uma nova
sociedade de Estados-mercado.

Bobbit elenca os cinco principais fatores que estão questionando o velho tipo de
Estado-nação:

“(1) o reconhecimento dos direitos humanos como normas que requerem a


adesão de todos os Estados, independentemente de suas leis internas;

(2) a ampla distribuição de armas nucleares e de destruição em massa, que fazem


com que a defesa das fronteiras do Estado seja insuficiente para garantir a
proteção da sociedade em seu bojo;

(3) a proliferação de ameaças globais e transnacionais que transcendem as


fronteiras dos Estados – como, por exemplo, os danos ao meio ambiente ou os
perigos da migração, expansão populacional, doenças ou fome;

(4) a expansão de um regime econômico mundial que ignora as fronteiras na


movimentação de investimentos de capital em uma medida tal que os Estados
vêem-se tolhidos na administração de seus problemas econômicos; e

(5) a criação de uma rede global de comunicações capaz de penetrar fronteiras


eletronicamente e pôr em risco idiomas, costumes e culturas nacionais” (20).

Bobbit conclui então sua análise afirmando que em conseqüência do


questionamento introduzido pelas novas realidades mencionadas acima, “surgirá
uma ordem constitucional que não só refletirá esses cinco fatores como também
os exaltará, como demandas que apenas essa nova ordem poderá atender. A
emergência de uma nova base para o Estado também modificará as premissas
constitucionais da sociedade internacional de Estados, uma vez que também essa
estrutura é derivada das racionalizações constitucionais internas de seus membros
constituintes” (21).

Portanto, para ele, é a guerra (aqui incluída a celebração da paz pós-guerra) o


motor das transformações de vez que, no plano interno, “a interação entre
inovações estratégicas e constitucionais modifica a ordem constitucional do
Estado” e que, “assim como as guerras momentosas moldam a ordem

123
constitucional de cada Estado, [no plano externo são] os grandes acordos de paz
[que] dão forma à ordem constitucional da sociedade de Estados” (22).

Para Bobbit não existe sociedade civil, não pelo menos como uma esfera da
realidade social subsistente fora da ordem do Estado. Sua perspectiva é tão
mercadocêntrica que ele é obrigado a supor, diante da mudança social em curso
no mundo atual, um processo de transição para um hipotético “Estado-
mercado”, uma nova forma de Estado que estaria sucedendo a forma Estado-
nação. Ou seja, para ele, parece que nem o mercado pode ter uma existência per
se, uma “lógica” e uma racionalidade próprias.

Assim, ao invés de tratar dos novos padrões de interação entre Estado e mercado
e dos novos padrões de interação entre Estado e sociedade civil, entre mercado e
sociedade civil e entre Estado, mercado e sociedade civil, ele – simplesmente –
reduz tudo à realidade estatal, supondo que todo esse processo poderá ser
revelado pelo desenvolvimento de uma estranha disciplina chamada “estadìstica”.

Infelizmente, o extenso tratado (de quase 900 páginas) de Philip Bobbit é


condicionado por suas crenças religiosas na inevitabilidade da guerra. “A guerra é
inevitável... em virtude da natureza do Estado (que operacionaliza e amplifica a
capacidade de cada grupo de entrar em choque com os outros) e da natureza do
ser humano em grupos” (23).

Em um pós-escrito de 13 de dezembro de 2001, a propósito do atentado ao


World Trade Center, Bobbit começa afirmando que “a guerra não é uma patologia
que, com a devida higiene e tratamento, pode ser plenamente prevenida. A guerra
é uma condição natural do Estado, que se estruturou de modo a constituir um
instrumento eficaz de violência em nome da sociedade. É como a morte –
embora possa ser adiada, virá quando tiver de vir e não pode ser evitada
indefinidamente” (24). Parece que todo o tratado de Bobbit, de certa forma, foi
escrito para dar razão à uma citação que faz de Joseph Conrad, o qual escreveu
(em “Notes on Life and Letters”, Pennsylvania State University: 2001): “a história da
vida na Terra deve, em última instância, ser a história de uma guerra realmente
implacável. Nem seus companheiros, nem seus deuses, nem suas paixões
deixarão o homem em paz” (25).

Ao comparar a guerra a um desiderato biológico, fatal como a morte, Bobbit


naturaliza a guerra. Ela faria parte da “biologia” da sociedade humana, como se
estivesse geneticamente inscrita. Em outras palavras, o ser humano de Bobbit é
geneticamente competitivo e geneticamente programado para solucionar o
conflito de modo destrutivo. Daí decorre a sua teoria hobbesiana do Estado.

124
É uma pena porque, apesar disso, a periodização introduzida por Philip Bobbit
poderia ajudar a compreender melhor o século 20 (ver Texto 5). Ou, pelo menos,
poderia ajudar a compreender o significado dos anos 90, como uma espécie de
interregno no que tange a instalação de um estado de guerra generalizado
(embora ele não diga – e, ao que parece, nem pense – isso).

Um software diabólico
Ocorre que não estamos mais na década de 1990. Nos primeiros anos do
presente milênio, ao que tudo indica, a “America‟s new war” está se instalando, ou
seja, está sendo novamente inicializado um software diabólico: um “estado de
guerra” generalizado no mundo (e de novo tipo: ao mesmo tempo focalizado e
“quente”, aplicado preventivamente contra potenciais inimigos localizados – os
Estados-nações “fora da lei” – e universalizado e “frio”, contra um inimigo
invisível, o terrorismo globalizado). Sobretudo essa última forma, „o estado de
guerra permanente contra o inimigo invisìvel e onipresente‟ é a maior ameaça que
poderia ser concebida e praticada contra a planetarização.

Reconheço que as dificuldades atuais são imensas para manter o mundo como
um quebra-cabeça de peças rígidas compostas de locais separados diante dos
interesses multilaterais. Seria preciso, por exemplo, tirar “do ar” ou controlar a
Internet, o que não agradaria muito aos sistemas financeiros e comerciais já
globalizados. Mas, ainda assim, creio que se pode retardar por longo tempo o
processo de emersão da sociedade rede (e do seu correspondente Estado-rede).

Quero dizer que o avanço da glocalização não ocorrerá por força de qualquer
determinação extra-política, por algum tipo de desdobramento de uma tendência
histórica imanente. Embora a glocalização não teria podido começar sem um
conjunto de condições objetivas determinadas (como a inovação tecnológica
telemática, por exemplo) seu desfecho está em disputa. E se, no âmbito global, a
planetarização pode ser enfreada pela ação política de atores nacionais poderosos
(como os USA na “Era Bush” e seus aliados), no âmbito local isso será muito
mais difìcil de fazer. Esse, aliás, é um dos sentidos da expressão „revolução do
local‟.

125
NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Offe, Claus. (1991). “A atual transição da história e algumas opções básicas para as
instituições da sociedade” in Bresser Pereira, L.C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado em
Transformação. Brasília: ENAP, 1991.

(2) Ver Epílogo.

(3) Castells, Manuel (1991). “Para o Estado-rede: globalização econômica e instituições


polìticas na era da informação” in Bresser Pereira, L.C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e
Estado em Transformação. Brasília: ENAP, 1991.

(4) Offe: op. cit.

(5) Castells: op. cit.

(6)-(8) Idem.

(9)-(15) Offe: op. cit.

(16)-(17) Castells: op. cit.

(18) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

(19) Bobbit, Philip (2002). The Shield of Achilles. New York: Alfred A. Knopf – Randon House,
2002 (publicado no Brasil como A guerra e a paz na história moderna: o impacto dos grandes
conflitos e da política na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003).

(20)-(25) Idem.

126
Texto 4 | Guéhenno, o fim da democracia e o futuro da
liberdade
“O ano de 1989 marca, efetivamente, o crepúsculo de uma longa época histórica, da qual o
Estado-nação, surgindo progressivamente dos escombros do Império Romano, foi o coroamento”.
“Parece-me que a evolução contemporânea deva provocar o fim das construções institucionais
herdadas do Renascimento e do Século das Luzes, do Estado-nação e das formas tradicionais de
soberania democrática que lhe são associadas”.

Jean-Marie Guéhenno, publicou dois ensaios importantes sobre “O fim da


democracia” (1993) e “O futuro da liberdade” (1999). Escrito, o primeiro, no
início dos anos 90, ainda sob o impacto da queda do Muro de Berlim e, o
segundo, já no seu ocaso, sob o impacto do processo de globalização, os dois
livros de Guéhenno são plenos de pistas para o questionamento das alternativas
fundadas na liberdade. Ele parece convencido de que a liberdade só possa ser
alcançada pela democracia tomada como um fim em si. Todavia, revela-se cético
quanto as possibilidades de realizar a liberdade dos antigos no mundo que se
avizinha, vale dizer, com as possibilidades da democracia como utopia/topia da
comunidade política.

Guehénno sustenta que “o que chamamos de globalização ou mundialização está


transformando em profundidade todas as sociedades do planeta”. Todavia a
pergunta que ele faz é: para onde isso está nos levando, considerando que “um
mercado global não cria uma comunidade global”? (1).

Todavia, ao identificar a comunidade política ao Estado nacional Guehénno


decai para uma perspectiva pessimista. Assim, ele vaticina, em 1993, que “o
desaparecimento da nação implica a morte da polìtica”. Embora tenha revelado
alta percepção, ao ser um dos primeiros a diagnosticar que estamos vivendo “na
idade das redes”, Guehénno não tira conseqüências positivas para o futuro da
democracia (ou da liberdade) dessa constatação. Pelo contrário, avalia que “a
relação entre cidadãos e corpo político sofre a concorrência da infinidade das
conexões estabelecidas fora de seu alcance, de modo que a política, longe de ser o
princípio organizador da vida dos homens na sociedade, aparece como uma
atividade secundária, até uma construção artificial, pouco adaptada a solucionar
os problemas práticos do mundo contemporâneo” (2).

Como as tendências não apontam para qualquer espécie de república universal (o


que – tudo indica, para ele – seria o correspondente do Estado nacional

127
democrático no âmbito global), Guehénno observa que “o que se cria não é
nenhum corpo político mundial, mas sim um tecido sem costuras aparentes, um
acréscimo indefinido de elementos interdependentes” (3). Logo... isso aponta
para o fim da democracia.

Cerca de cinco anos depois, Guehénno volta ao tema para tentar “definir as
novas condições da democracia dentro da globalização”. Sua pergunta continua
sendo, basicamente, a mesma: “como construir as comunidades polìticas do
futuro?” (4).

“Por um lado, com efeito, a globalização faz de nós órfãos, pois não mais
herdamos de uma comunidade, pelo acaso do nascimento. Temos que, de agora
em diante, construir a comunidade. E esta passagem de um mundo de
comunidades de memória para um mundo de comunidades de escolha é uma
liberdade difícil de carregar, para a qual estávamos mal preparados. A fuga para
dentro do “comunitarismo”, a xenofobia e, finalmente, a tirania podem seduzir
aqueles a quem esta nova liberdade inquieta, pois, não sabendo mais de onde
vêm, não sabem quem são e não têm força para escolher para onde ir”... (5).

“Graças à desmaterialização da informação, os homens estão se reagrupando em


comunidades de um novo tipo, sobre as quais não se sabe se são “frágeis”... ou
se, ao contrário, estão destinadas a estruturar o mundo de amanhã.

Ao contrário das comunidades territoriais do passado, as atuais comunidades


virtuais são comunidades de escolha, o que as torna mais homogêneas, contudo
também mais arbitrariamente separadas”. Guehénno vê aqui o fim do espaço
público comum, na medida em que as pessoas podem optar sempre por sub-
espaços, por seus próprios fóruns privados, “pois todos podem, sem maiores
dificuldades, encontrar o “nicho virtual” onde, com certeza, só acharão seus
“semelhantes”...

Essa evolução – ele assinala – não é pouco importante, pois, se é verdade que a
praça do mercado foi o primeiro lugar do debate público, seu desaparecimento
terá conseqüências sobre a definição do “espaço público” onde a comunidade de
cidadãos se encontra: ele não pode ser a simples soma dos espaços virtuais da
Internet, e a multiplicação dos “fóruns de discussão” não é suficiente para fazer
dos internautas cidadãos de uma nova república virtual da Internet...

A organização em redes de comunidades humanas, o acesso a uma grande


quantidade de comunidades virtuais provocam no indivíduo o sentimento de que
todas as escolhas, todos os contatos lhe estão abertos, que ele foi, enfim,

128
libertado de suas origens e que sua liberdade de moderno vai se consumar:
territórios novos se abrem. Mas, ao mesmo tempo, a ausência de um espaço
público comum e a enorme concorrência que resulta da própria abertura do
campo de possibilidades forçam as comunidades particulares a procurarem antes
de mais nada a semelhança entre seus membros, em vez de procurarem a
comunicação com os outros. Assim, em meio a essa liberdade, que pareceria ser
o remate da liberdade “moderna” e o triunfo do indivìduo, aparece um novo tipo
de comunidade mais parecida com Esparta do que com Atenas” (6).

O ponto de vista de Guehénno é interessante e bem fundamentado. No entanto,


tudo indica que em uma sociedade-rede, não é mais possível promover, pelas
fronteiras da preferência ou da escolha individual, barreiras semelhantes às que
delimitavam Esparta como entidade sócio-territorial em relativo isolamento para
gerar uma unidade cultural imune (ou imiscível) às influências de Atenas. Basta
que um nodo da “rede espartana” esteja conectado a um nodo da “rede
ateniense” para que se tenha construìdo um atalho pelo qual trafegarão, em mão-
dupla, os “programas” de ambos. Assim, em uma sociedade-rede, o que separa
também integra. O que localiza também globaliza. A diferença é que a nova
ordem que integra não é mais concebível a priori, não é o resultado de uma
arrumação racional e sim que brota da dinâmica das redes como comportamento
emergente.

Em uma sociedade-rede a partir de algum momento não caberão mais “quistos


espartanos”. Resta saber se – e de que modo – caberão, ao contrário do que
indica o pessimismo de Guehénno, “nodos atenienses”. Este é um dos temas da
presente investigação.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Guéhenno, Jean-Marie (1993). O fim da democracia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1999.

(2)-(3) Idem.

(4)-(6) Guéhenno, Jean-Marie (1999). O futuro da liberdade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2003.

129
Texto 5 | Bobbit e a emergência do Estado-mercado
“Enquanto o Estado-nação, com sua educação pública gratuita de massa, voto universal e
políticas de previdência social, propunha-se a garantir o bem-estar da nação, o Estado-mercado
promete, por sua vez, maximizar as oportunidades do povo; assim, tende a privatizar diversas
atividades estatais, bem como a restringir a influência do voto e do governo representativo,
tornando-os mais sensíveis ao mercado”.

Philip Bobbit (2002) lançou recentemente um curioso livro chamado “O Escudo


de Aquiles”, apresentado no Brasil como um estudo do “impacto dos grandes
conflitos e da polìtica na formação das nações” (1). Eis um apanhado das teses de
Bobbit.

Tese 1 – “A guerra iniciada em 1914 será vista, no futuro, como tendo se


estendido até 1990”.

Para ele, “as guerras momentosas podem ser compostas por vários conflitos
considerados pelos participantes guerras separadas; podem compreender
períodos de paz aparente (incluindo até mesmo elaborados tratados de paz); e
com freqüência não mantêm o mesmo alinhamento de adversários e aliados ao
longo de seu desenvolvimento. A Longa Guerra (que abrange a Primeira e a
Segunda Guerras Mundiais, a Revolução Russa e a Guerra Civil Espanhola, as
Guerras da Coréia e do Vietnã e a Guerra Fria), assim como as guerras
momentosas anteriores, girou em torno de uma questão constitucional
fundamental: que tipo de Estado-nação – comunista, fascista ou parlamentar –
herdaria a legitimidade antes atribuída aos Estados-nação imperiais do século 19”
(2).

Tese 2 – “A interação entre inovações estratégicas e constitucionais modificada a


ordem constitucional do Estado”.

Segundo Bobbit, “as guerras momentosas oferecem desafios cruciais ao Estado.


Um Estado em guerra que não consegue prevalecer dentro das práticas
estratégicas e constitucionais outrora dominantes precisa inovar. Nessas guerras,
as inovações bem-sucedidas – seja em termos estratégicos ou constitucionais – de
um determinado Estado são reproduzidas pelos seus concorrentes. Essa imitação
entre os Estados permeia a sociedade de Estados e resulta na súbita mudança das
ordens constitucionais e paradigmas estratégicos após uma guerra momentosa;
assim, emerge uma nova ordem constitucional dominante sobre as novas bases
de legitimidade, e as formas mais antigas entram em declìnio e desaparecem” (3).

130
Tese 3 – “O Estado-mercado está sobrepondo-se ao Estado-nação, em
decorrência do fim da Longa Guerra”.

Para Philip Bobbit, “o fim da Longa Guerra foi rapidamente sucedido pelo
surgimento de uma nova ordem constitucional. Essa nova forma é o Estado-
mercado. Enquanto o Estado-nação, com sua educação pública gratuita de
massa, voto universal e políticas de previdência social, propunha-se a garantir o
bem-estar da nação, o Estado-mercado promete, por sua vez, maximizar as
oportunidades do povo; assim, tende a privatizar diversas atividades estatais, bem
como a restringir a influência do voto e do governo representativo, tornando-os
mais sensíveis ao mercado. Os Estados Unidos, um dos principais inovadores no
desenvolvimento do Estado-mercado, deve elaborar suas políticas estratégicas
tendo em vista essa mudança constitucional fundamental” (4).

Tese 4 – “A sociedade de Estados-nação desenvolveu uma constituição que


procurava tratar os Estados como se fossem indivíduos em uma sociedade
polìticas de cidadãos iguais, autônomos e detentores de direitos”.

Segundo Bobbit, “na sociedade de Estados-nação, o mais importante direito de


uma nação era o de autodeterminação – o que, porém, criava um enigma para
essa sociedade, a saber: dada a interpenetração dos povos nacionais nos Estados
multiétnicos, quando uma nação obtinha seu próprio Estado? Quando a maioria
da população do Estado concordava, ou quando a maioria de um grupo nacional
– em geral uma minoria das pessoas do Estado como um todo – demandava? E
quando determinado grupo nacional detinha o poder, quais eram os seus limites
ao lidar com os demais grupos nacionais (“minorias” dentro do Estado-nação) –
visto que um dos objetivos do Estado-nação era utilizar a lei para fomentar os
valores culturais e morais do grupo nacional dominante? A confusão decorrente
dessa charada levou à difusão da responsabilidade internacional, culminando na
Terceiro Guerra Iuguslava na Bósnia, que finalmente desacreditou a legitimidade
de uma sociedade de Estados erguida sobre essa ordem constitucional” (5).

Tese 5 – “Assim como as guerras momentosas moldam a ordem constitucional


de cada Estado, os grandes acordos de paz dão forma à ordem constitucional da
sociedade de Estados”.

Ele explica. “Os congressos internacionais que resultaram em tratados de paz


para pôr fim às guerras momentosas produziram as constituições da sociedade de
Estados para suas respectivas eras. Esse processo, iniciado na Europa com o
nascimento de uma pequena sociedade de Estados, durante o Renascimento,
acabou expandindo-se até abranger todo o globo. O direito internacional pode

131
ser compreendido em termos dessas constituições – e, portanto, como tendo se
desenvolvido em vários períodos distintos. O estudo desse desenvolvimento
proporciona um fundamento para que se compreenda a era constitucional
seguinte da sociedade de Estados” (6).

Tese 6 – “Está surgindo uma nova sociedade de Estados-mercado”.

Para Philip Bobbit, “os desafios com que se defronta a sociedade de Estados são
uma conseqüência direta das inovações estratégicas que venceram a Longa
Guerra. As maneiras como as diversas formas básicas do Estado-mercado vão
lidar com tais desafios é que estruturarão os conflitos de uma nova sociedade. É
preciso agir tendo em vista esse desenvolvimento, aceitando os conflitos onde
forem necessários para evitar guerras cataclísmicas ou o colapso da superinfra-
estrutura global e criando instituições que legitimem a nova sociedade de
Estados-mercado” (7).

A nova ortodoxia econômica do Estado-mercado (ou “O


Consenso de Bobbit”)
Para Bobbit “a ortodoxia econômica dos Estados-nação recomendava a
intervenção estatal na economia como um instrumento necessário para atingir o
crescimento e outras metas. A regulamentação econômica fazia parte dessa
ortodoxia e estava de acordo com o ethos dos Estados-nação, que tanto
dependiam do direito. Os Estados-mercado possuirão sua própria ortodoxia
econômica e suas próprias ferramentas especìficas” (8).

Ele trata então de um conjunto de idéias que todos os Estados-mercado poderão


– na verdade, deverão – aceitar:

1 – Os mercados de capital têm de ser menos regulamentados, a fim de atrair


investimentos de capital, e este deve globalizar-se mais para obter o máximo de
retorno sobre o investimento.

2 – Os mercados de trabalho precisam ganhar em flexibilidade, a fim de competir


com os mercados estrangeiros e manter no âmbito interno os empregos que
dependam da fabricação de produtos a um custo capaz de concorrer com os de
Estados de custos trabalhistas inferiores.

132
3 – Para que a economia cresça, faz-se necessário assegurar o acesso a todos os
mercados e reduzir a regulamentação do comércio.

4 – Para que os bens dos Estados consigam penetrar nos mercados estrangeiros
– e, assim, tomar parte desse crescimento – a política comercial de cada Estado
precisará tornar-se mais livre.

5 – Os subsídios, gastos e programas de previdência governamentais devem ser


administrados de forma a possibilitar mais investimentos em infra-estrutura e
permitir uma maior poupança privada (o que reduzirá os custos de investimento).

6 – A política tributária tem de fornecer incentivos para o crescimento, atraindo


empreendimentos e maximizando a inovação e o empreendedorismo.

Caso nada disso ocorra o Estado entrará em um círculo vicioso, que Bobbit
descreve sumariamente assim:

a) “Se um Estado-mercado deixar de proporcionar incentivos fiscais para a


formação e retenção de capital, os investimentos domésticos ou não ocorrerão,
ou vão evadir-se junto com os investimentos estrangeiros.

b) A fuga de investimentos é acompanhada do desaparecimento da inovação e


dos ganhos de produtividade, de modo que os produtos destas concorrentes
serão mais baratos e de melhor qualidade que aqueles fabricados no país.

c) Se os produtos de outros Estados forem mais competitivos, os empregos serão


também perdidos para tais Estados.

d) Com a perda dos empregos, a arrecadação despencará e o desemprego e os


custos da previdência se tornarão insuportáveis.

e) Uma carga tributária cada vez mais pesada produzirá arrecadação cada vez
menor.

f) O Estado que resistir à liberalização de seus mercados de trabalho tendo em


vista a proteção de cargos de salários elevados acabará sem empregos para
proteger.

g) O Estado que se esquivar de cortar seus gastos previdenciários não terá outra
alternativa além de recorrer aos cortes quando cair a arrecadação e ele vir-se com

133
uma conta estratosférica de seguridade social nas mãos, à medida que aumentar o
desemprego.

h) O Estado que procurar proteger sua indústria doméstica recusando-se a


liberalizar suas políticas comerciais acabará vendo-a isolada dos demais mercados
e, de qualquer modo, sem condições de competir – de maneira que, no âmbito
interno, os preços permanecem altos e o padrão de vida despenca.

i) O Estado que tentar restringir fugas de capital acabará apartado dos demais, e o
que inibir as importações de capital será ignorado – o que também elevará o
custo de produção e deprimirá o padrão de vida, em mais um volta deste círculo
vicioso” (9).

Em contrapartida, Bobbit afirma que “o Estado-mercado promete um círculo


“virtuoso” aos Estados que reproduzirem seu formato e se submeterem às suas
diretrizes:

a) A privatização de estatais, ao liquidar vastos monopólios, acarreta para o


Estado gigantescos ganhos de capital, os quais, por sua vez, vêm complementar a
economia possibilitada por cortes nos programas previdenciários e, portanto,
reduz os déficits, ocasionando um queda da inflação.

b) Esta tem o efeito de atrair capital e reduzir os custos de empréstimos


necessários para financiar os déficits, o que os diminui ainda mais, viabilizando
assim uma redução dos impostos – a qual pode produzir um aumento da
poupança, permitindo mais investimentos, que geram mais fundos para pesquisa
e desenvolvimento.

c) Estes levam a um recrudescimento da produtividade, o que provoca uma


queda dos preços e, assim, torna as exportações mais competitivas, criando
empregos e, ao mesmo tempo, reduzindo o custo de vida do público
consumidor.

d) No mundo subdesenvolvido, essas políticas implicam um maior crescimento


devido às vantagens salariais relativas.

e) Tal crescimento tem como conseqüência uma maior qualificação da


população, levando mais mulheres para o mercado de trabalho, o que acarreta
uma queda dos índices de natalidade e, por conseguinte, aumenta a estabilidade
política.

134
f) Esta, por sua vez, significa uma maior prudência macroeconômica, levando a
mais investimentos estrangeiros, que financiam ainda mais crescimento – o qual
tende a liberalizar o autoritarismo, estimulando a autonomia pessoal” (10).

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Bobbit, Philip (2002). The Shield of Achilles. New York: Alfred A. Knopf – Randon House,
2002 (publicado no Brasil como A guerra e a paz na história moderna: o impacto dos grandes
conflitos e da política na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003).

(2)-(10) Idem.

135
Glocalização e localização
Assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de „globalização‟) para
entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão global, torna-se também
necessário gerar outro conceito (o de „localização‟) para entender as mudanças que
estão ocorrendo coetaneamente na dimensão local. Como as duas coisas constituem
aspectos do mesmo processo de glocalização ou de emersão da realidade glocal, isso
significa que a glocalização confere um novo status ao local que, para ser revelado,
exige também um novo construct e uma nova hipótese: a hipótese (no sentido
“forte”) da „localização‟.

O conceito de glocalização só é útil como ferramenta de análise porquanto a


mudança social que está em curso no mundo tem um duplo sentido: altera
relações na dimensão global e na dimensão local. Dizendo a mesma coisa de
outra maneira: altera a relação entre global e local ao possibilitar a existência de
conexão direta entre o global e o local. Ou, ainda: elimina a distância entre o
global e o local. Com efeito a conexão direta é uma conexão em tempo real e é,
assim, uma conexão sem-distância.

Isso significa que, diante da mudança que ora se processa, o local adquire um
novo status que, para ser revelado, exige também um novo construct: o conceito de
„localização‟. Assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de
„globalização‟) para entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão
global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de „localização‟) para
entender as mudanças na dimensão local. As duas coisas, como vimos,
constituem aspectos do mesmo processo de glocalização ou da emersão da
realidade glocal.

Um conceito de „localização‟ já surgiu em função da necessidade de alocação de


produtos (em geral de conhecimento e em geral ligados à informática, como
programas) em realidades culturais/nacionais diversas. Neste sentido, localização
(ou nacionalização) é o processo de se transferir dados de uma localidade a outra.
Trata-se de um superconjunto de tradução, uma vez que envolve não apenas a
tradução, mas também a conversão de uma formatação culturalmente específica
de dados, como datas, horários e moedas. Segundo tal acepção, além disso, a
localização inclui o processamento de todos os aspectos técnicos envolvidos no
processo e a visualização adequada de conteúdos localizados. O processo inclui a

136
importação e exportação de conteúdos localizáveis, manipulação de gráficos,
recompilação em um ambiente localizado (no caso de conteúdos
binários/executáveis), especificação e conversão da codificação de caracteres,
redimensionamento de elementos da interface gráfica com o usuário e assim por
diante.

Tal conceito informacional de „localização‟, evidentemente, constitui apenas uma


sombra ou um pálido reflexo do fenômeno segundo o qual o local assume um
novo status em virtude da glocalização. É, no máximo, uma localização em
sentido fraco, uma adaptação de ofertas globais a demandas locais.

Há, todavia, uma localização em sentido forte e é sobre ela que discorreremos no
próximo capítulo.

137
Capítulo Três | Localização

138
Entendendo a localização

Na última seção do capítulo anterior mencionei que, diante da mudança


glocalizante que ora se processa no mundo, o local adquire um novo status, o
qual, para ser revelado, exige também um novo construct: o conceito de
„localização‟. Assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de
„globalização‟) para entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão
global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de „localização‟) para
entender as mudanças na dimensão local. As duas coisas, como vimos,
constituem aspectos do mesmo processo de glocalização ou de emersão da
realidade glocal.

Neste capìtulo vou tratar do tema da „localização‟, tomando essa hipótese no seu
sentido forte e não apenas como sinônimo de “nacionalização” (por exemplo, a
tradução de softwares) ou “climatização” (por exemplo, a “tropicalização” de
carros europeus e americanos para venda e uso no Brasil). Ou seja, não vamos
tratar da „localização‟ em seu sentido fraco, como adaptação de ofertas globais de
produtos e serviços aos gostos, cultura, condições socio-ambientais e
necessidades locais.

Pois bem. Qual é o sentido forte da „localização‟? Em primeiro lugar devemos


ver que „localização‟ não é apenas um novo termo, uma nova denominação para
um antigo fenômeno ou um processo já bem conhecido. É um novo termo que
designa um novo conceito, uma nova elaboração intelectual baseada em uma
nova hipótese. Qual é essa nova hipótese é o que vamos ver no presente capítulo.

139
Localização e „tamanho do mundo‟
O local é necessariamente o pequeno, mas não no sentido territorial ou populacional
e sim no sentido daquilo que foi tornado pequeno por força de alta “tramatura”
social.

A assertiva acima diz que o local é necessariamente o pequeno. Ora, isso parece
estar em contradição com o que escrevi há três anos, em “Por que precisamos de
desenvolvimento local integrado e sustentável”. Naquela ocasião afirmei que “a
palavra „local‟... não é sinônimo de pequeno e não alude necessariamente à
diminuição ou redução. O conceito de local adquire, pois, a conotação de alvo
socioterritorial das ações e passa, assim, a ser retrodefinido como o âmbito
abrangido por um processo de desenvolvimento em curso, em geral quando esse
processo é pensado, planejado, promovido ou induzido” (1). Neste sentido,
afirmei ainda que “de certa maneira, todo desenvolvimento é local, seja este local
um distrito, um município, uma microrregião, uma região de um país, um país,
uma região do mundo” (2).

Minha investigação dos últimos anos, entretanto, vem revelando que o local é
necessariamente o pequeno, mas não no sentido territorial ou populacional e sim
no sentido daquilo que foi tornado pequeno por força de alta “tramatura” social.

Como chegamos a isso? Vou tentar mostrar em seguida, de modo resumido por
questões de espaço – o que, freqüentemente, ao invés de simplificar, acaba
complicando.

Vimos nas seções anteriores que o processo de glocalização se confunde com


com o processo de surgimento da sociedade-rede. A mesma configuração de
fatores que permite que distantes localidades se tornem interagentes também
possibilita que os elementos endógenos de cada localidade se tornem igualmente
interagentes – o que significa que as novas condições sociais que, no plano
mundial, possibilitaram que tal configuração tenha se conformado – por
exemplo, que permitiram que tecnologias telemáticas tenham se desenvolvido em
uma determinada direção („molecular‟ para além de „molar‟, para usar as
expressões de Levy) –, também podem incidir dentro de cada localidade. É nesse
sentido que falo de glocalização como globalização do local.

140
O mais importante aqui, porém, é o outro lado da moeda, ou seja, é a
constatação de que a globalização do local é uma localização do global (como
comentaremos mais adiante). Isso significa, em primeiro lugar, que a conjunção
particular de fatores que possibilita a globalização também possibilita a
localização. E, em segundo lugar, que a localização diminui o tamanho do
mundo, torna o mundo um local, torna qualquer mundo – qualquer realidade
socioterritorial ou virtual, independentemente do número e do tamanho de seus
elementos componentes e da distância entre eles – um mundo pequeno. Daí
porque local é, nesse sentido, sempre um „mundo pequeno‟, aquilo que os
teóricos que trabalham com análise de redes estão chamado de SWN (“small-world
networks”).

Rede e hierarquia
O que caracteriza fundamentalmente uma rede é a existência de caminhos
múltiplos. Forçando um pouco a intenção do conceito e estabelecendo um
paralelo geométrico, poder-se-ia dizer que, se uma rede é uma coleção de nodos
ligados por muitos caminhos (ou um conjunto de vértices interconectados por
muitas arestas) uma hierarquia é um caso particular de rede caracterizado pela
existência do menor número possível de caminhos (ou uma linha quebrada que,
conquanto possa ter múltiplos vértices, nunca chega a formar uma figura
geométrica fechada). Neste sentido uma hierarquia “máxima” (ou uma
organização com o máximo grau de hierarquização) poderia ser vista como um
conjunto de nodos (vértices) conectados por caminhos únicos.

Se existissem apenas dois elementos no mundo, hierarquia seria igual a rede,


porque o número de caminhos possíveis entre tais nodos seria o menor número
possível de caminhos, ou seja, apenas um caminho pelo qual uma mensagem
pudesse se propagar de um nodo ao outro.

Todavia, em um mundo com três ou mais elementos, enquanto que no padrão de


organização hierárquico (“máximo”), uma mensagem emitida de um nodo a
qualquer outro só pode se propagar através de um mesmo caminho, no padrão
de organização em rede tal mensagem pode se propagar através de vários
caminhos diferentes.

Em um mundo de três elementos (A, B e C), por exemplo, esse padrão


hierárquico permite que uma mensagem emitida por A chegue a B (ou a C)
somente por um caminho: o caminho AB (ou ABC). Todavia, se estes três
elementos estiverem organizados segundo um padrão de rede (com A, B e C

141
figurando como os vértices de um triângulo) podemos ter o dobro de caminhos:
AB e ACB (ou AC e ABC). Enquanto que na hierarquia o número máximo de
caminhos diferentes possíveis entre todos os nodos é igual a 3 (AB, BC e ABC),
na rede o número máximo de caminhos possíveis é igual a 6 (AB, BC, ABC, AC,
ACB e CAB).

Em um mundo de quatro elementos (A, B, C e D), o padrão hierárquico


(“máximo”) permite que uma mensagem emitida por A chegue a B (ou a C ou a
D) somente por um caminho: o caminho AB (ou ABC, ou ABCD). Mas se esses
quatro nodos estiverem conectados em um padrão de rede, com o número
máximo de conexões possíveis (com A, B, C e D figurando como vértices de um
quadrilátero, incluindo as duas conexões diagonais), teremos cinco vezes mais
caminhos entre um nodo e qualquer outro: se se trata, por exemplo, de fazer uma
mensagem proveniente de A chegar a D, então essa mensagem pode percorrer
cinco caminhos diferentes (AD, ABCD, ACBD, ABD e ACD). No primeiro
caso, da hierarquia (no grau “máximo” de hierarquização) o número de todos os
caminhos possíveis é igual a 6 enquanto que, no segundo caso, da rede, teremos
um máximo de 30 caminhos, ou seja, 5 vezes mais.

No caso de uma hierarquia de 4 elementos teremos como caminhos possíveis


apenas 6 caminhos: AB, BC, CD, ABC, BCD e ABCD. No caso de uma rede de
4 elementos teremos no máximo: AB, BA, BC, CB, CD, DC, DA, AD, AC, CA,
BD, DB, ABC, ABD, ACB, ACD, ADC, ADB, BAD, BAC, BCD, BCA, BDA,
BDC, CAB, CAD, CBA, CBD, CDA, CDB, DAB, DAC, DBC, DBA, DCA,
DCB, ABCD, ABDC, ACBD, ACDB, ADBC etc. ... até DABC, DACB, DBCA,
DBAC, DCBA, DCAB – totalizando 60 combinações de 2, 3 e 4 elementos a
qual, divida por 2, uma vez que um caminho AB é igual ao caminho BA (ou seja,
as conexões são transitivas) dará 30 caminhos diferentes .

Do ponto de vista do padrão de organização, o que chamamos de „tamanho do


mundo‟ é dado não apenas pelo „número de elementos‟ do mundo ou pela
„distância‟ entre tais elementos, mas pelo „número de conexões possìveis‟ entre
eles. Abstraindo a questão da distância (o que já pode ser resolvido praticamente
pela conexão telemática, em tempo real, que significa a mesma coisa que conexão
sem-distância), para dois conjuntos com o mesmo número de nodos, podemos
ter mundos de tamanhos muito diferentes, se tais nodos estiverem conectados
segundo um padrão de rede ou segundo um padrão hierárquico.

No caso do último exemplo acima, a rede com um número máximo de caminhos


torna um mundo de 4 elementos (nodos) cinco vezes menor do que a hierarquia
(com um número mínimos de caminhos).

142
É fácil mostrar que, no caso de termos cinco nodos, a rede mais tramada possível
produz, em relação a hierarquia, um “encurtamento” de 16 vezes no mundo. Em
outras palavras, um mundo com 5 elementos conectados segundo um padrão de
rede (com o número máximo de conexões) é um mundo com 16 vezes mais
caminhos do que a hierarquia (com o número mínimo de conexões, quer dizer,
nunca mais do que 2 conexões para um nodo). Enquanto na hierarquia teríamos
apenas 10 caminhos entre todos os nodos, na rede teríamos algo como 160
caminhos. E enquanto na hierarquia (“máxima”), uma mensagem emitida de um
nodo só dispõe de um mesmo caminho para chegar a outro nodo qualquer, na
rede ela possui 16 caminhos diferentes.

No caso de uma rede de 5 nodos (A, B, C, D e E), os caminhos possíveis


diferentes entre um nodo e outro nodo qualquer (por exemplo, entre A e E)
totalizam 16 possibilidades (AE, ABE, ACE, ADE, ABCE, ABDE, ACBE,
ACDE, ADBE, ADCE, ABCDE, ABDCE, ACBDE, ACDBE, ADBCE e
ADCBE). Isso produz 160 caminhos diferentes entre todos os nodos da rede. Se
os 5 nodos estivessem organizados em um padrão hierárquico teríamos apenas
um caminho possível entre A e E e apenas 10 caminhos diferentes possíveis
entre quaisquer nodos.

Da mesma forma, em um mundo de 6 elementos, enquanto que a hierarquia


(“máxima”) estabelece como possìveis apenas 14 caminhos, a rede com número
máximo de conexões permite pouco menos de mil caminhos diferentes
(precisamente 910, se meus cálculos estiverem corretos). Isso significa que, em
um mundo de 6 elementos, se tais elementos estiverem conectados em rede com
grau máximo de conexão (cada nodo conectado aos outros cinco) existem 65
caminhos diferentes entre dois nodos, 65 maneiras diferentes de fazer uma
mensagem chegar de um nodo a qualquer outro. A rede mais tramada de 6 nodos
cria um mundo 65 vezes menor do que a hierarquia de 6 nodos.

Analogamente ao caso anterior, em uma rede de 6 nodos (A, B, C, D, E e F)


teremos 65 possibilidades de fazer uma mensagem emitida por um nodo (por
exemplo A) chegar a outro nodo qualquer (por exemplo F) – ou seja, teremos 65
combinações de 2, 3, 4, 5 e 6 elementos começando em A e terminando em F –
e, assim, teremos 910 caminhos possíveis entre todos os nodos da rede. Se esses
6 elementos estivessem conectados segundo um padrão hierárquico teríamos
apenas 1 combinação começando em A e terminando em F e apenas 14
caminhos diferentes possíveis dentro do conjunto.

Tudo isso significa que duas localidades com o mesmo número de habitantes,
podem ter tamanhos de mundo completamente diferentes na medida em que a

143
„extensão caracterìstica de caminho‟ (ou seja, o número de “estações” ou
intermediações que são necessárias, em média, para fazer uma mensagem chegar
de um nodo qualquer a outro qualquer) de cada uma delas for diferente. Uma
cidade sumeriana de 2 mil habitantes com toda a certeza seria muitas vezes maior
do que um subúrbio novaiorquino atual de mesma população.

Ainda não temos uma equação que permita calcular o „tamanho do mundo‟ do
ponto de vista do padrão de organização, mas já podemos prever que o fator
„conectividade potencial‟ nesta equação (ou seja, o número de caminhos possìveis
entre os nodos) tem um peso muito maior do que os fatores „tamanho dos
nodos‟, „número de nodos‟ e „distância entre os nodos‟ (3).

Assim, pode-se supor que uma cidade sumeriana de 2 mil habitantes (como
Uruk, sobretudo a Uruk do início do terceiro milênio, da invenção da escrita, das
muralhas colossais e do zigurate dedicado ao supremo AN) seria um mundo
muito maior do que, por exemplo, todo o Silicon Valley atual. Por que? Porque
(essa) Uruk, do ponto de vista do padrão de organização, era uma cidade-Estado-
Templo rigidamente centralizada e verticalizada, onde as pessoas eram separadas
por graus de poder e dispostas como os degraus de uma escada (não por acaso os
zigurates eram pirâmides feitas de escadas) – ou seja, Uruk era a materialização de
uma hierarquia, de uma ordem (arché) sacerdotal (hieros) e também não é por
acaso que “sagrado” na lìngua sumeriana tinha o mesmo sentido de “separado”.
Isso significa que o acesso de uma pessoa a outra, era muito mais difícil, em
Uruk, do que em Silicon Valley onde, de repente, um pesquisador de uma empresa
e o dono de uma outra empresa concorrente almoçam no mesmo restaurante e
sentam-se à mesma mesa várias vezes por mês (coisa que não poderia mesmo
ocorrer em Uruk, mas que também não ocorre, por exemplo, nos e entre os
Keiretsu japoneses atuais). Ou seja, em Silicon Valley existem mais redes sociais do
que em Uruk e, assim, o mundo da primeira é muito menor do que o mundo da
segunda não obstante o seu território ser muito maior e o seu número de
habitantes idem.

Isso significa que, do ponto de vista do padrão de organização, o local não-


globalizado pode ser um mundo até maior do que o mundial (no sentido de
planetário) globalizado. E que globalização do local tende a ser igual a localização
do global. O mundo estará totalmente globalizado quando estiver totalmente
localizado. E que, assim, o local conectado é o mundo todo. Comentaremos isso
tudo mais adiante.

144
NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Franco, Augusto (2000). Por quê precisamos de desenvolvimento local integrado e
sustentável. Brasília: Instituto de Política, 2000.

(2) Idem.

(3) Vale a pena ler os textos do jovem pesquisador Duncan Watts, sobretudo Small worlds: the
dynamics of networks between order and randomness. New Jersey: Princeton University Press, 1999 e
Six degrees: the science of a connected age. New York: W. W. Norton & Company, 2003. Cf. Texto 6
e Texto 7.

145
Texto 6 | Small-World Networks: transformando o vasto
mundo em um mundo pequeno
“Mesmo que grupos locais sejam altamente agrupados, desde que uma pequena fração (1 por
cento ou menos) dos indivíduos tenha conexões de longo alcance fora do grupo, as extensões de
caminho serão baixas”.

No capìtulo intitulado “Desempenho”, da coletânea editada em 2001 por Andy


Oram, “Peer-to-peer: o poder transformador das redes ponto a ponto”, Theodore
Hong começa contando a famosa experiência de Stanley Milgram para
desenvolver considerações sobre as características de mundo pequeno das redes
sociais (1). Reproduzo abaixo excertos do trabalho de Hong.

“Em 1967, o professor Stanley Milgram, de Harvard, enviou 160 cartas pelo
correio, para um conjunto de pessoas escolhidas aleatoriamente que moravam em
Omaha, Nebraska. Pediu a elas que participassem em uma experiência social
incomum, na qual tentariam passar essas cartas a uma determinada pessoa-alvo,
um corretor de valores que trabalhava em Boston, Massachusetts, utilizando
apenas intermediários que se conhecessem pelo nome de batismo. Ou seja, cada
pessoa passaria a carta a um amigo que julgasse poder levar a carta para mais
perto do alvo; o amigo por sua vez a passaria a outro amigo, e assim por diante
até que a carta chegasse a alguém que conhecesse o alvo pessoalmente e pudesse
entregá-la a ele. Por exemplo, um engenheiro em Omaha, ao receber a carta, a
passou a um nativo da Nova Inglaterra que morava em Bellevue, Nebraska, que a
passou para um professor de matemática em Littleton, Massachusetts, que a
passou a um diretor de escola em um subúrbio de Boston, que a entregou a um
lojista local, que a entregou ao bastante surpreso corretor de valores.

Ao todo, 42 cartas chegaram a seu destino, por meio de um número médio de


apenas 5,5 intermediários. Esse número surpreendentemente baixo, comparado à
população dos Estados Unidos, de 200 milhões, demonstrou concretamente pela
primeira vez, aquilo que se tornou popularmente conhecido como small-world effect
(efeito de mundo pequeno). Esse fenômeno é conhecido de qualquer um que
exclamou “Este mundo é pequeno, não é?!” ao descobrir uma amizade comum
partilhada com um estranho.

A experiência de Milgram tinha por finalidade explorar as propriedades de redes


sociais: os elos interconectores de amizade entre indivíduos em uma sociedade.
Uma das formas pelas quais podemos pensar em redes sociais é utilizando a
disciplina matemática da teoria dos grafos. Formalmente, um grafo é definido como

146
sendo e coleção de pontos (chamados vértices) conectados em pares por linhas
(chamadas arestas).

Como os grafos se relacionam a redes sociais? Podemos representar uma rede


social como grafo criando um vértice para cada indivíduo no grupo e
adicionando uma aresta entre dois vértices sempre que os indivíduos
correspondentes se conhecerem. Cada vértice terá um número diferente de
arestas conectado a ele levando a locais diferentes, dependendo do quão amplo
seja o círculo de conhecimentos dessa pessoa. A estrutura resultante é bastante
complexa. Por exemplo, um grafo para os Estados Unidos apresentaria mais de
280 milhões de vértices conectados por uma teia intrincada de arestas...

Há uma série de perguntas interessantes que podem ser feitas em relação a


grafos. Uma pergunta imediata a ser feita é se é ou não conectado. Ou seja, é
sempre possível ir de qualquer vértice (ou indivíduo) para qualquer outro ao
longo de alguma cadeia de intermediários? Ou há alguns grupos que estão
totalmente isolados uns dos outros e que jamais se encontrarão?

Uma propriedade importante a ser observada em relação a essa pergunta é que


caminhos em uma rede são transitivos. Isso significa que se houver um caminho
do ponto A ao ponto B e também um caminho do ponto B ao ponto C, então
deve haver um caminho do ponto A ao ponto C. Esse fato pode parecer
demasiadamente óbvio para necessitar de afirmação, mas tem conseqüências mais
abrangentes. Suponha que existam dois grupos separados de vértices formando
dois subgrafos, cada um conectado em si mesmo, mas desconectado do outro.
Então a adição de apenas uma aresta de qualquer vértice em um grupo, a
qualquer vértice no outro, fará com que o grafo fique conectado em seu todo.
Isso decorre da transitividade... Inversamente, eliminar uma aresta crítica poderá
fazer com que o grafo se torne desconectado...

Sendo possível ir de qualquer vértice para qualquer outro por meio de algum
caminho, a pergunta seguinte seria quanto à extensão desses caminhos. Uma
medida útil a ser considerada é a seguinte: para cada par de vértices no grafo,
encontre a extensão do caminho mais curto entre eles; depois, tire a média entre
todos os pares. Esse número, que denominaremos extensão característica de caminho
do grafo, nos dá uma idéia do quão distanciados são os pontos na rede...

Em redes peer-to-peer descentralizadas, essas duas questões têm significado


semelhante. A primeira nos diz quais pares podem se comunicar entre si (por
meio de alguma rota de encaminhamento de mensagens); a segunda, quanto
esforço está envolvido em fazê-lo. Para vermos como podemos lidar com essas

147
questões, vamos retornar à experiência de encaminhamento de cartas em maior
profundidade. Então veremos se podemos aplicar quaisquer esclarecimentos à
situação peer-to-peer.

O sucesso dos voluntários de Milgram em passar cartas entre os mundos


aparentemente díspares do coração de uma região tipicamente rural e da
metrópole urbana sugere que a rede social dos Estados Unidos é realmente
conectada. Sua extensão característica de caminho corresponde ao número
mediano de intermediários necessários para completar uma cadeia, medido em
cerca de seis.

Intuitivamente, parece que a extensão de caminho de uma rede de tal porte


deveria ser muito maior. Os círculos sociais da maioria das pessoas são altamente
exclusivos ou agrupados; ou seja, a maioria das pessoas que você conhece
também se conhece. De forma equivalente, muitos dos amigos de seus amigos
são pessoas que você já conhece. Assim, empreender quaisquer saltos adicionais
pode não aumentar em muito o número de pessoas ao alcance. Parece que um
grande número de saltos seria necessário para romper um círculo social, viajar
pelo país e alcançar outro, especialmente considerando o tamanho dos Estados
Unidos. Como então explicar a medição de Milgram?

A chave para a compreensão do resultado reside na distribuição de vínculos


dentro de redes sociais. Em qualquer grupo social, alguns conhecidos serão
relativamente isolados e contribuem com poucos novos contatos, enquanto
outros serão conexões mais amplas capazes de servir como pontes entre
grupamentos sociais mais distantes. Esses vértices de ponte desempenham um
papel crítico na aproximação da rede. Na experiência de Milgram, por exemplo,
um quarto de todas as cadeias que alcançaram a pessoa-alvo passou por uma só
pessoa, um lojista local. A metade das cadeias foi mediada por apenas três
pessoas, que coletivamente agiram como pontes entre o alvo e o mundo maior.
Acontece que a presença de mesmo um pequeno número de pontes pode reduzir
drasticamente as extensões de caminhos em um grafo, como mostrado por um
trabalho recente de Duncan Watts e Steven Strogatz, na revista Nature (“Collective
Dynamics of „Small-World‟ Networks”, Nature 393, 1998)” (2).

Segundo Hong, os “resultados [da pesquisa de Watts e Strogatz] podem explicar


as características de mundo pequeno da rede social dos Estados Unidos. Mesmo
que grupos locais sejam altamente agrupados, desde que uma pequena fração (1
por cento ou menos) dos indivíduos tenha conexões de longo alcance fora do
grupo, as extensões de caminho serão baixas. Isso ocorre porque a transitividade
faz com que tais indivíduos ajam como atalhos, ligando comunidades inteiras

148
umas às outras. Um atalho não beneficia apenas um único indivíduo, mas
também todos os que estão ligados a ele e todos ligados àqueles ligados a ele, e
assim por diante. Todos podem beneficiar-se do atalho, em muito encurtando a
extensão característica de caminho. Por outro lado, mudar uma conexão local
para uma de longo alcance tem apenas um efeito pequeno sobre o coeficiente de
agrupamento” (3).

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Hong, Theodore (2001). “Desempenho” in Oram, Andy (2001). Peer-to-peer: o poder
transformador das redes ponto a ponto. São Paulo: Berkeley, 2001.

(2)-(3) Idem.

149
Texto 7 | O recente experimento sobre Small-World de
Peter Dodds, Roby Muhamad e Duncan Watts
"Laços “fracos” são desproporcionalmente responsáveis pela conectividade social”.

No final de 2002, Peter Sheridan Dodds, Roby Muhamad e Duncan Watts, da


Universidade de Colúmbia, apresentaram à revista Science os resultados de um
estudo experimental de busca em redes sociais globais. Utilizando programas de
e-mail eles, de certo modo, buscaram refazer o trabalho experimental pioneiro
realizado por Travers e Milgram no final dos anos 60.

Os resultados da pesquisa são surpreendentes. Duncan e seu colegas


encontraram, para o mundo inteiro – e 35 anos depois –, um resultado muito
parecido com o de Milgram, que focalizou apenas a sociedade americana. Isso
sugere que o „tamanho de mundo‟ do mundo inteiro no final de 2002 é mais ou
menos o mesmo do „tamanho de mundo‟ dos USA em 1967. Mas talvez não seja
possível afirmar isso a partir (ou somente a partir) do experimento de Duncan.

Travers e Milgram encontraram, em média, seis graus de separação. Duncan e sua


turma, que pareciam já conhecer o resultado antes mesmo do experimento,
encontraram cinco a sete graus de separação! Supondo que o „tamanho de
mundo‟ seja função direta do capital social, isso reforça a hipótese (defendida por
Robert Putnam e outros) de que a sociedade americana vem perdendo, nos
últimos anos, velocidade relativa na produção de capital social; ou, em outras
palavras, vem dilapidando aceleradamente o seu estoque de capital social. Se o
experimento de Duncan tivesse sido feito, com outros meios não-eletrônicos, no
final dos anos 60, provavelmente seria encontrado um grande intervalo entre os
valores mundiais e os americanos. Como isso não é possível, restaria a Duncan e
sua equipe refazer a experiência para algumas sociedades escolhidas, inclusive a
americana.

De qualquer modo, o experimento revelou, entre outros, quatro resultados


importantes: a) existe mesmo o efeito „Small-World Network‟. Esta é a principal
conclusão; b) os laços "fracos" são mais relevantes que os "fortes"; ou seja,
cooperação social vale mais do que laços de sangue ou parentais (confirmando as
hipóteses das teorias do capital social). Como eles próprios escreveram: "laços
“fracos” são desproporcionalmente responsáveis pela conectividade social"; c)
nas palavras dos próprios autores, "a busca social parece ser um exercício
geralmente igualitário, cujo sucesso não depende de uma pequena minoria de
indivíduos excepcionais"; e d) "um ligeiro incremento de incentivos pode levar as

150
buscas sociais ao sucesso sob diferentes condições". Ou seja, como eles dizem "a
rede não é tudo", porém, existindo a rede, basta um peteleco...

Excertos das conclusões desse novo experimento são reproduzidos abaixo (1).

Um Estudo Experimental de Busca em Redes Sociais Globais


“Relatamos um experimento de busca social global, no qual mais de 60 mil
usuários de e-mail tentaram se comunicar com uma de dezoito pessoas-alvo em
13 países, encaminhando mensagens a alguém conhecido. Constatamos que a
busca social bem sucedida é realizada, primordialmente, por meio de laços que
variam de intermediários a fracos, não requer “hubs” de muitos contatos para
obter êxito e, contrariamente à busca social mal sucedida, depende, de forma
desproporcional, de relações profissionais. Contabilizando o atrito de correntes
de mensagens, estimamos que as buscas sociais podem alcançar seus alvos com
um número médio de cinco a sete passos, dependendo da separação entre a fonte
e o alvo, embora pequenas variações nos comprimentos das correntes e taxas de
participação gerem grandes diferenças na acessibilidade. Concluímos que, embora
as redes sociais globais sejam, em princípio, passíveis de busca, o sucesso de fato
depende, sensivelmente, de incentivos individuais.

Já se tornou lugar comum a afirmação de que qualquer pessoa no planeta pode


chegar a qualquer outra por meio de uma curta corrente de laços sociais. Um
trabalho experimental pioneiro realizado por Travers e Milgram, sugeria que o
comprimento médio dessas correntes é de mais ou menos seis passos; trabalhos
teóricos e empíricos recentes generalizam a alegação de uma vasta gama de redes
não-sociais.

Entretanto, muito do que se fala sobre essa hipótese de “mundo pequeno” é mal
compreendido e carece de substância empírica. Em particular, em redes sociais
reais os indivíduos dispõem apenas de informações limitadas e locais sobre a rede
social global e, portanto, encontrar atalhos representa um esforço de busca
significativo. Ademais, e contrariamente à sabedoria aceita, a evidência
experimental no que se refere a comprimentos de correntes globais curtas é
extremamente limitada. Por exemplo, Travers e Milgram relatam 96 correntes de
mensagens (das quais 18 foram concluídas), iniciadas por indivíduos selecionados
aleatoriamente em uma cidade que não a do alvo. Quase todos os demais estudos
empíricos de redes de larga escala focalizaram redes não-sociais ou substitutos
grosseiros de interação social tal como cooperação científica, e estudos

151
específicos de redes de e-mail têm-se limitado, até o momento, a instituições
individuais.

Abordamos essas questões por meio de um experimento de busca social global,


baseado na Internet. Os participantes se inscreveram online, tendo-lhes sido
atribuída, aleatoriamente, uma das 18 pessoas-alvo em 13 países. Os alvos
incluíam um professor de uma renomada universidade norte-americana, um
inspetor de arquivos na Estônia, um consultor de tecnologia na Índia, um policial
na Austrália, e um veterinário do exército norueguês. Os participantes foram
informados de que sua tarefa seria ajudar a retransmitir uma mensagem ao alvo
que lhes havia sido atribuído, enviando a mensagem a um contato social que
considerassem “mais ìntimos” do alvo do que eles próprios. Dos 98.847
indivíduos inscritos, cerca de 25% forneceram informações pessoais e iniciaram
correntes de mensagens. Como os remetentes subseqüentes foram efetivamente
recrutados por seus próprios conhecidos, a taxa de participação após o primeiro
passo subiu para uma média de 37%. Incluindo-se os remetentes iniciais e
subseqüentes, foram registrados dados referentes a 61.168 indivíduos em 166
países, que constituíram 24.163 diferentes correntes de mensagens. Mais da
metade de todos os participantes viviam na América do Norte e eram de classe
média, exerciam uma profissão, tinham grau universitário e eram cristãos,
refletindo idéias comumente aceitas sobre a população usuária da Internet.

Além de fornecer o nome e o endereço de e-mail do contato escolhido, cada


remetente foi solicitado a descrever como havia conhecido a pessoa, bem como o
tipo e a intensidade do relacionamento mantido com esta...

Ao enviar suas mensagens, os remetentes geralmente recorreram a amizades em


detrimento de laços profissionais ou familiares. Entretanto, quase metade dessas
amizades foi formada em ambientes de trabalho ou escolares. Ademais, em
comparação com correntes interrompidas, as correntes bem sucedidas
envolviam, de forma desproporcional, laços profissionais (33,9 versus 13,2%), em
detrimento de relacionamentos de amizade ou familiares (59,8 versus 83,4%).

Correntes bem sucedidas também apresentavam maior probabilidade de


apresentar laços estabelecidos em ambiente de trabalho ou de educação superior
(65,1 versus 39,6%). Os homens transmitiam mensagens mais freqüentemente a
outros homens (57%) e as mulheres a outras mulheres (61%), e essa tendência de
transmitir mensagens a um contato do mesmo sexo aumentava em cerca de 3%
se o alvo fosse do mesmo gênero do remetente e diminuía, na mesma proporção,
no caso oposto.

152
Tanto nas correntes bem sucedidas quanto nas mal sucedidas, os indivíduos
geralmente usavam laços com conhecidos que consideravam “relativamente
ìntimos”. Entretanto, nas correntes bem sucedidas, laços “ocasionais” e “não
ìntimos” foram escolhidos com uma freqüência 15,7 e 5,9% superior àquela
registrada nas correntes mal sucedidas, agregando suporte, e alguma resolução, à
duradoura asserção de que laços “fracos” são desproporcionalmente responsáveis
pela conectividade social.

Os remetentes também foram solicitados a indicar o motivo pelo qual


consideravam o conhecido escolhido um destinatário adequado. Duas razões – a
proximidade geográfica entre o conhecido e o alvo e a semelhança de ocupação –
responderam por pelo menos metade de todas as escolhas, corroborando
constatações anteriores. A geografia dominou, claramente, os estágios iniciais de
uma corrente (quando os remetentes estavam geograficamente distantes), mas
após o terceiro passo, foi citada com menor freqüência do que outras
características, das quais a ocupação foi a mais freqüentemente citada. Em
contraste com asserções anteriores, a presença de indivíduos com muitos
contatos (“hubs”) parece ter relevância limitada em relação ao tipo de busca social
incluído em nosso experimento (busca social com grandes custos/recompensas
associados, ou incentivos individuais de outra forma modificados podem se
comportar de forma diferente). Os participantes raramente indicaram uma pessoa
conhecida pelo fato de esta ter muitos amigos, e os indivíduos de correntes bem
sucedidas apresentaram uma probabilidade infinitamente menor de enviar
mensagens a “hubs” do que os indivíduos de correntes interrompidas (1.6 versus
8.2%). Também não encontramos evidência de “afunilamento” de mensagens
por meio de uma única pessoa conhecida do alvo. No máximo 5% das
mensagens passaram por uma única pessoa conhecida do alvo e 95% de todas as
correntes foram concluídas por intermédio de indivíduos que transmitiram no
máximo três mensagens. Concluímos que a busca social parece ser um exercício
geralmente igualitário, cujo sucesso não depende de uma pequena minoria de
indivíduos excepcionais.

Embora a taxa média de participação (cerca de 37%) fosse alta em relação


àquelas relatadas na maioria das pesquisas baseadas em e-mail, os efeitos
combinados do atrito em laços múltiplos resultou em uma atenuação exponencial
de correntes como uma função de seu comprimento e, portanto, em uma taxa
extremamente baixa de conclusão (384 de 24.163 correntes chegaram aos seus
alvos). As correntes podem ter sido rompidas (i) aleatoriamente, devido à apatia
do indivíduo ou à sua pouca disposição em participar; (ii) especialmente em
comprimentos mais longos de corrente, correspondendo à alegação das correntes
“se perder” ou não conseguir chegar aos seus destinatários; ou (iii) especialmente

153
em comprimentos menores de correntes porque, por exemplo, os indivíduos
mais próximos ao alvo apresentam maior probabilidade de dar continuidade à
corrente... [mas] a falta de interesse ou de incentivo, e não a dificuldade, foi a
principal razão para a ruptura da corrente...

Em conjunto... [as] evidências sugerem um cenário misto de busca em redes


sociais globais. Por um lado, todos os alvos podem, efetivamente, ser alcançados
a partir de remetentes iniciais aleatórios em apenas alguns passos, com uma
variação surpreendentemente pequena nos alvos em diferentes países e
profissões. Por outro lado, pequenas diferenças, quer nas taxas de participação ou
nos comprimentos de correntes adjacentes, podem produzir um impacto brutal
na aparente acessibilidade de diferentes alvos. O alvo 5 (um professor de uma
renomada universidade dos EUA) se sobressai nesse sentido. Como 85% dos
remetentes tinham educação universitária e mais da metade eram americanos, os
participantes podem ter previsto poucas dificuldades para contatá-lo, o que
justifica o fato de que a taxa de atrito de sua corrente (54%) foi bem inferior
àquela de qualquer outro alvo (60 a 68%). O alvo 5 alcançou notáveis 44% dentre
todas as correntes concluídas. Ainda assim, esse resultado é coerente com o fato
de sua “verdadeira” acessibilidade ter sido um pouco diferente da de outros
alvos. Seus remetentes talvez estivessem mais confiantes no sucesso.

Nossos resultados, portanto, sugerem que, se os indivíduos que buscam alvos


distantes não tiverem incentivos suficientes para prosseguir, a hipótese de
“mundo pequeno” não terá sustentação, mas que mesmo um ligeiro incremento
de incentivos pode levar as buscas sociais ao sucesso sob diferentes condições.
Em termos mais gerais, a abordagem experimental aqui adotada sugere que uma
estrutura de rede observada empiricamente somente poderá ser
significativamente interpretada à luz das ações, das estratégias e mesmo das
percepções dos indivíduos envolvidos na rede: A estrutura da rede sozinha não é
tudo”.

Comparação com o experimento original de Milgram

“O experimento de Travers e Milgram foi realizado no final dos anos 1960,


quando o volume de correspondência indesejável era bem inferior ao de hoje.
Como resultado, é improvável que a taxa de respostas de Travers e Milgram, de
cerca de 75% em cada passo de sua corrente de cartas, pudesse ser reproduzida
hoje, quando as taxas de respostas típicas em pesquisas de correspondência não
ultrapassam 1 ou 2% (cf. www.surveywriter.com/site/news/Shoestring.htm).
Analogamente, a prevalência atual de e-mails indesejáveis (spam) representa um
problema substancial para qualquer experimento envolvendo e-mails. Estima-se

154
que, no momento, os e-mails indesejáveis representem 40% de todos os e-mails
recebidos (ver http://zdnet.com.com/2100-1106-977809.html, por exemplo).
Evidências indicam que filtros automatizados de e-mails indesejáveis bloqueiam
os e-mails do experimento, levando indivíduos dispostos a participar do
experimento a tomar esses e-mails por correspondência comercial. Entretanto, a
taxa média de participação em cada link após o primeiro foi de cerca de 37%,
excedendo a taxa típica de resposta em pesquisas de e-mails. Como indicamos no
documento, a baixa taxa de conclusão de correntes (0,4%) resulta da atenuação
exponencial das correntes de mensagens, uma característica inevitável do
protocolo experimental. Para esclarecer esse ponto, considere o efeito do
aumento de nossa taxa de resposta por link (37%) em relação àquela obtida por
Travers e Milgram (75%): em uma corrente de comprimento 6, a taxa de
conclusão de corrente correspondente aumentaria em um fator de
aproximadamente 64” (2).

REFERÊNCIAS E NOTAS

(1) Publicado em maio de 2003 (2 December 2002; accepted 23 May 2003


|10.1126/science.1081058)

(2) Idem. As tabelas, equações, referências e notas originais deste artigo podem ser acessadas
em sciencemag no endereço http://www.sciencemag.org/cgi/content/full/301/5634/

155
Localização e „poder social‟
Quanto mais conectado é o mundo menor ele é, porém mais potente socialmente ele é
(small is powerful).

Na seção anterior mostrei que quanto mais conectado é um mundo, quanto mais
caminhos existirem entre seus elementos (nodos de uma rede, necessariamente,
se o número de conexões ou caminhos entre eles for maior do que 1 e se o
número total desses elementos for maior do que 2) menor ele é.

Agora passo a comentar a proposição segundo a qual quanto mais conectado é o


mundo menor ele é, porém mais potente socialmente ele é (small is powerful).

Vimos que, do ponto de vista do padrão de organização, as hierarquias


aumentam o „tamanho do mundo‟, enquanto que as redes diminuem. Desse
ponto de vista, „mundo pequeno‟ é sinônimo de mundo muito conectado.

Agora vamos ver que quanto mais conectado é o mundo mais potente
socialmente ele é. Small is powerful. Se quanto maior a tessitura social, ou seja,
quanto mais conexões ou caminhos puderem ser estabelecidos, menor o
„tamanho do mundo‟, então „pequeno‟, do ponto de vista (e por força) de uma
alta “tramatura” do tecido social, é uma força poderosíssima.

Por quê? Porque quanto mais caminhos existirem mais possibilidades existirão de
um pequeno estímulo, proveniente de qualquer lugar do mundo, se propagar e se
amplificar por “reverberação”, por feedback positivo, i. e., por laços de
realimentação de reforço, atingindo o mundo todo. Ora, isso significa, por um
lado, que os elementos do mundo (os nodos da rede) terão mais chances de
verem suas idéias – ou os seus “memes” – se replicarem; ou seja, eles estarão
mais empoderados. Mas significa também, por outro lado, em primeiro lugar, que
é o sistema como um todo que empodera seus componentes e, em segundo
lugar, que tal sistema funciona como amplificador e macro-processador dos
estímulos recebidos/emitidos por seus componentes.

Vamos ver primeiro o primeiro lado da questão. Lanço mão aqui da poderosa
metáfora aventada por Richard Dawkins em 1976 (em “O gene egoìsta”) e
brilhantemente comentada por Daniel Dennett, sobretudo em 1995 (em “A
perigosa idéia de Darwin”), como um recurso lateral de argumentação.

156
A idéia de que haveria uma unidade autoreplicadora, análoga ao gene, chamada
“meme”, é instigante. Não tenho certeza se seria possìvel construir uma “teoria
memética” com status de teoria científica, como a genética. E também não tenho
certeza se comprar a idéia de “meme” (ou o “meme” de „meme‟) implica ter que
assumir também a visão neodarwinista, da qual discordo bastante (1). Desconfio
que a ideologia que vem junto no pacote (segundo a qual os “memes” se
propagariam por “replicação egoista”, disputando o tempo todo entre si pelos
cérebros que vão parasitar ou infectar viroticamente) possa ser espancada sem
que, com isso, precisemos abrir mão da hipótese de que existem replicadores
independentes, ou melhor – a meu ver – inter-dependentes, (“softwares culturais”)
capazes de instruir comportamentos (tal como os genes são capazes de instruir a
síntese de proteínas).

Ao evocar a idéia de “meme” quero colocar a questão de que cada elemento do


mundo (ou nodo da rede) influi no mundo a partir da afirmação da sua própria
maneira de ser/estar/receber-processar-devolver estímulos/interagir em suma, e
que quanto mais essa maneira puder ser copiada (provavelmente por imitação – e
é a isso que se chama, no caso dos “memes”, de replicação) por outros nodos,
maior será o poder (como medida da capacidade) desse elemento de influir no
comportamento dos outros elementos do mundo.

Essa concepção de „poder‟ como capacidade de afirmar sua própria forma de ser,
ainda que não seja incompatível com uma concepção shimittiana da política e
com outros realismos políticos, traz, obviamente, muitos outros problemas ao
deslocar o sentido relacional do conceito de poder para identificá-lo com alguma
coisa que possa conotar capacidade intrínseca de um sujeito de agir sobre outros,
fazendo, por exemplo, como sugerem à primeira vista as teorias dos “memes”,
com que suas idéias prevaleçam sobre as idéias dos outros (conquanto nessas
teorias o sujeito não tenha necessariamente consciência disso, haja vista que os
“memes” seriam autoreplicadores independentes e, assim, eles é que seriam
egoístas – e não nós, os humanos, seus hospedeiros). Este, porém, não é o nosso
tema agora (2).

Em todo caso, as teorias de inspiração neodarwinista que admitem a hipótese dos


“memes” poderiam talvez ser refeitas a partir da idéia de que essas unidades
autoreplicadoras independentes na verdade são unidades replicadoras
interdependentes que só se configuram e replicam em um processo de interação
com o meio. (Para tanto, valeria a pena confrontar as idéias de Dawkins com as
idéias de Maturana) (3).

157
Dessarte, ninguém é “dono” de uma idéia, mas não porque seja a idéia,
autonomizada, que o possui (como querem os adeptos da tese do “virus in the
mind”) e sim porque as idéias são geradas em um indivíduo e reproduzidas no
meio em um processo de troca permanente entre o indivíduo e o meio (os outros
indivìduos). Além disso, nesse processo as idéias (ou os “memes”) se combinam,
recombinam e se modificam – como uma tela exposta no hall de um cinema que
é pintada por todos os expectadores que entram, cada qual dando apenas umas
poucas pinceladas; ou como um texto publicado na Internet para ser re-escrito a
muitas mãos – de tal sorte que não é possível identificar exatamente quais foram
seus “autores” – nem em que medida o resultado final estava nos “planos
originais” (supondo que pudesse haver um ponto de partida, ou seja, uma idéia
que não tivesse nascido de combinações de outras idéias).

De um certo ponto de vista, parece que as idéias se polinizam mutuamente. Já de


outro ponto de vista, parece que as idéias brotam ou emergem (ou imergem?) em
complexos. É por isso que, como dizia Thompson em 1987 (no Prefácio de
“Gaia: uma teoria do conhecimento”), “as idéias, da mesma forma que as uvas,
crescem em cachos. As pessoas gostam de se agregar pelo simples fato de sentir
que, na videira, suas idéias se tornam mais completas e mais enriquecidas” e são,
freqüentemente, o resultado do “trabalho de uma comunidade intelectual que
reflete as idéias, reuniões, discussões, cartas e comunicações... acontecidas a partir
do momento em que cada um de seus membros reconhece que o seu trabalho
está sendo descrito e desenvolvido não mais individualmente, mas por outros
colegas” (4).

De outro ponto de vista, ainda, parece que “as idéias estão no ar”. Alguém as
“capta” em certo momento e às vezes várias pessoas “captam” simultaneamente
a mesma idéia (por exemplo, Newton e Leibnitz ao conceberem simultaneamente
o cálculo infinitesimal). De qualquer modo, esse também não é o nosso tema;
não, pelo menos, agora (5).

O que eu quero dizer, em suma, lançando mão de uma comparação extrema, é


que um jovem de 16 anos em Durnovaria, na Britânia do ano 480, não tinha a
milionésima parte do “poder” que tem um internauta (sobretudo se for um
hacker) de mesma idade em Dorchester, na Inglaterra de hoje. Muito além disso,
porém, e para não ser tão extremo assim, o que eu quero dizer – bem mais na
linha de pensamento de Maturana do que na de Dawkins – é que as idéias
(genericamente, os softwares que instruem comportamentos) são blocos que se
formam e se reforçam como unidades relativamente autônomas em virtude de
circularidades inerentes às conversações predominantes ou recorrentes em um
determinado meio e daí conformam um padrão capaz de se propagar como se fosse

158
por si mesmo para outros meios a medida que os indivìduos que o “possuem” (ou
são por ele “possuìdos”) o replicam sem intenção de fazê-lo, pelo simples fato de
serem como são. (Não devemos esquecer aqui, como nos ensinou há décadas
Norbert Wiener, que “um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como
tal”). E que esse poder (ou essa capacidade de propagação) é tanto maior quanto
menor for o mundo no sentido de ser mais tramado.

Comunidades de pensamento são mundos pequenos, quer dizer, mundos com


alta “tramatura” social e é por isso que as idéias “crescem em cachos” em tais
comunidades e saltam delas para o ambiente exterior com mais facilidade.
Comunidades de qualquer natureza (ou mundo pequenos, em geral) são usinas de
padrões de comportamento (seqüências “meméticas” que se replicam e que –
aqui está a “x” da questão em termos de um paralelo com as teorias evolutivas
neodarwinistas – ao se replicarem podem se modificar) (6). Um comportamento
assim “usinado” tem alto poder de replicação.

Pois bem. O que tudo isso tem a ver com a nossa hipótese, segundo a qual
quanto mais conectado (quanto mais small no sentido dos „small-worlds‟) é o
mundo, mais potente socialmente ele é (small is powerful)?

Para dar uma resposta a essa pergunta temos que definir o que entendemos por
“potente socialmente”, um “poder” que nasce da configuração particular de um
sistema social. Não se trata do poder de um sistema de obrigar ou compelir
outros sistemas a adotarem comportamentos, desejáveis pelo primeiro e contra a
vontade dos segundos, em virtude da sua capacidade de destruí-los ou de
prejudicá-los de alguma forma – em geral pelo uso da força ou pela ameaça
explicita do uso da força ou pela ameaça implícita, como dissuasão exercida sobre
os segundos (que evita comportamentos indesejáveis ao primeiro) baseada em
demonstrações específicas ou genéricas de força. Esse, em geral, é o poder,
regido ou não por lei, dos Estados e de outras organizações piramidais e
internamente autocráticas (como corporações e sociedades privadas de diferentes
naturezas, compreendendo até organizações criminosas como a Máfia). Poder-se-
ia dizer que, ao contrário, o “poder social” é um poder de induzir
comportamentos coletivos em virtude da capacidade de exportar padrões de
comportamento que são adotados por imitação e sem violência, o que parece
óbvio. Trata-se portanto, como sugeriu o próprio Dawkins em 1986 (em “O
relojoeiro cego”), de um “poder replicador” – mas sinto que ainda não é bem
isso (7).

Pegando agora o segundo lado da questão vamos ver que, em primeiro lugar, é o
sistema como um todo que confere esse tipo de poder aos seus componentes – e

159
isso está longe de ser trivial face às concepções correntes: examine-se, por
exemplo, um pressuposto (talvez o principal) da ideologia chamada de ciência
econômica, segundo o qual o comportamento das sociedades pode ser explicado
a partir do comportamento dos indivíduos, sendo esse último comportamento
basicamente egoísta e que tudo o mais decorre daí, inclusive a separação entre
fortes e fracos que está na raiz do poder político; e, em segundo lugar, que tal
sistema funciona como amplificador dos estímulos recebidos/emitidos por seus
componentes, vale dizer, como uma espécie de processador capaz de realizar
múltiplas operações em paralelo simultaneamente por meio de seus
componentes.

Talvez esteja aqui pelo menos uma parte da explicação para os processos de
inteligência coletiva. Como percebeu Joël de Rosnay em 1995 (em “O homem
simbiótico”) “um dos pontos fundamentais da ação em rede... [é que] milhares de
agentes atuando em paralelo, a partir de regras simples, podem resolver
coletivamente problemas complexos... [e que] enquanto as grandes manifestações
públicas mostram que as multidões estão longe de dar prova de uma inteligência
significativa, determinados sistemas adaptados de retroação societal podem fazer
emergir uma inteligência coletiva superior à dos indivìduos isolados”. Mas esse,
conquanto apaixonante, ainda não é o nosso tema no momento (8).

Vimos até agora que dizer que small is powerful significa dizer que o mundo
pequeno (no sentido de muito tramado socialmente) é mais empoderante de seus
componentes do que o mundo grande e que ele tem mais capacidade de usinar
softwares que instruem a construção de comportamentos e de replicar tais
programas. Porém, muito além disso tudo, significa dizer que uma mudança de
comportamento, mesmo periférica, ensaiada no mundo pequeno, tem mais
chances de se propagar para o sistema como um todo afetando o
comportamento dos outros agentes que o compõem. Ou seja, mundos pequenos
são mundos mais susceptíveis à mudança social do que mundos grandes.

Ora, se interpretarmos (pelo menos algum tipo ou classe de) mudança social
como desenvolvimento, então mundos pequenos são mundos mais aptos a
experimentarem (isso que interpretamos como) desenvolvimento do que mundos
grandes. Esse tema é extremamente importante e voltaremos a ele mais adiante.
Por enquanto é bom dizer que “poder social”, nesse particular sentido, pode ser
encarado como capacidade de desenvolvimento – entendido esse último não
como qualquer crescimento (e. g., da variável econômica – o PIB –, ou de outra
variável qualquer: humana, social, ambiental etc.), mas como movimento
sinérgico; em suma, como o que se chama, um pouco redundantemente, de
„desenvolvimento sustentável‟ (e entendendo sustentabilidade como função de

160
integração e conservação da adaptação). Temos assim uma concepção de “poder
social” como capacidade de mudança social sustentável, como “aptidão” ou
adaptabilidade de um sistema para realizar uma coreografia estrutural que garanta
a sua co-evolução com o meio, como vocação para a sinergia, para construir e
reconstruir, continuamente, congruências múltiplas e recíprocas com o meio...
Isso tudo também é muito apaixonante, mas por ora vamos ficar por aqui, uma
vez que o assunto será tratado no epílogo deste livro.

Quando tornamos pequeno um mundo pela localização aumentamos o seu


“poder social”. É como se concentrássemos esse poder, incrementando o valor
de variáveis como freqüência ou velocidade de processamento, possibilitando
mais feedbacks, mais laços de retroalimentação capazes de amplificar estímulos,
por pequenos que sejam. Um mundo localizado é um mundo onde ocorreu uma
espécie de big crunch social que (ao contrário do modelo do big bang cosmogônico),
diminuiu drasticamente as distâncias!

Tal redução das distâncias muda a qualidade dos fenômenos que ocorrem no
“meio social” porquanto altera propriedades desse meio (como a isotropia, por
exemplo). Pode-se dizer que a sociedade torna-se mais “social” no sentido de que
aumenta o seu “poder social” – ou seja, o meio torna-se mais condutor, mais
favorável à replicação – a medida que sua tessitura aumenta e, portanto, que seu
tamanho diminui. É possível que a partir de certo grau de tessitura (ou de certo
tamanho de mundo) surja o que chamamos de comunidade. Altos graus de
tessitura podem possibilitar a ocorrência de um fenômeno novo, que chamei, em
outro lugar, de comunalidade (9).

Para que isso aconteça, como parece óbvio, é necessário que os sistemas em
questão estejam afastados do estado de equilíbrio (senão não poderão mutar),
mas é necessário também que sejam sistemas estáveis. Sistemas conformados,
por exemplo, por pessoas em filas de ônibus, não terão a permanência necessária
para gerar uma dinâmica própria capaz de empoderar seus elementos e processar
coletivamente seus impulsos usinando programas replicadores (ou seja, unidades
culturais imitáveis).

Mas aqui já entramos em outra proposição, segundo a qual localização não


significa isolamento, mas um campo configurado com certo grau de estabilidade
para permitir a conservação e a reprodução de uma mesma dinâmica endógena.

161
NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) O problema com o neodarwinismo é o darwinismo: diga-se o que se quiser dizer, um


“meme” terrivelmente competitivo, quem sabe – como suponho – por ter olhado para a
natureza com os óculos fabricados pela competição “selvagem” do capitalismo inglês do
século 19 (a “selva”, aqui, era mais a “praça do mercado” do que as estepes e as florestas,
enfim o habitát natural das espécies vivas). Com efeito, tentei mostrar em outro lugar que esse
padrão de competição parece ter saído da sociedade para a natureza e não o contrário (cf.
Capital Social. Brasília: Instituto de Política, 2001). Um bom antídoto contra a impregnação
pela ideologia competitiva (ou uma “vacina” contra esse poderoso “vìrus-meme” que,
ironicamente, talvez pudesse ser chamado de „padrão competitivo a priori‟) pode ser
encontrado em Humberto Maturana e Lynn Margulis (para quem “a vida se apossa do globo
não pelo combate e sim pela formação de redes”).

(2) Os interessados na extensa literatura sobre “memes”, devem ler Richard Dawkins (“O gene
esgoìsta”, 1976; “The extended phenotype”, 1982; “O relojoeiro cego”, 1986; e “Desvendando o
arco-ìris”, 1998), Daniel Dennett (op. cit., 1995; e também “Consciousness explained”, 1991),
Richard Brodie (“Virus in the mind”, 1995) e Susan Blackmore (“The meme machine”, 2000). Mas
existem vários outros investigadores interessantes. Vale a pena visitar o sites
http://users.lycaeum.org/~sputnik/Memetics/index.html que contém uma boa lista intitulada
“Memetics Publications on the Web” e o site http://jom-emit.cfpm.org/biblio que contém “A
Bibliography of Memetics” atualizada porém até 1997).

(3) O próprio Dawkins admite como possìvel “um modelo “simbiótico” em vez de
virulentamente parasita”. Em “Desvendando o arco-ìris” (1998) ele cita o trabalho de Terrence
W. Deacon (1997) “que faz uma abordagem da linguagem à luz dos memes... traçando a
comparação com as mitocôndrias e outras bactérias simbióticas nas células. As línguas evoluem
para se tornar boas em infectar os cérebros das crianças. Mas os cérebros das crianças, essas
lagartas mentais, também evoluem para se tornar bons em serem infectados pela língua:
coevolução mais uma vez”. Cf. Dawkins, Richard (1998). Desvendando o Arco-Íris. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. Cf. ainda Deacon, Terrence W. (1997). The symbolic species: the co-
evolution of language and the brain. New York: W. W. Norton & Company, 1997.

(4) Thompson, William Irwin (org.) (1987). “Prefácio” in Gaia: uma teoria do conhecimento.
São Paulo, Gaia/Global, 1990.

(5) Os “memes” como novos tipos de replicadores (para além dos genes) podem ser encarados
como idéias, mas apenas grosso modo. Eles não são – como afirma Dennett (1995) – “as
„idéias simples‟ de Locke e Hume (a idéia de vermelho, ou a idéia de redondo, quente ou frio),
mas o tipo de idéias complexas que se reúnem em unidades memoráveis distintas... unidades
culturais mais ou menos identificáveis... [e essas unidades de transmissão cultural ou unidades
de imitação] são os menores elementos que se replicam com confiabilidade e fecundidade”. Cf.
Dennett, Daniel C. (1995). A perigosa idéia de Darwin: a evolução e os significados da vida.
Rio de Janeiro: Rocco, 1998

(6) Em “Memes, mentes e egos”, Susan Blackmore (1996) relembra que Dawkins “sugeriu que
toda vida em toda parte do universo deve desenvolver-se pela sobrevivência diferenciada de
entidades auto-replicadoras levemente imprecisas” (cf.

162
http://www.memes.org.uk/lectures/mms.html#Minds-Memes-and-Selves). Daniel Dennett
(1995) afirma que, “as linhas gerais da teoria da evolução pela seleção natural deixam claro que
ela ocorre sempre que existem as seguintes condições: i) variação: há uma contínua abundância
de elementos diferentes; ii) hereditariedade ou replicação: os elementos têm a capacidade de
criar cópias ou réplicas de si mesmos; e iii) “aptidão” diferenciada: o número de cópias de um
elemento que são criadas em um determinado tempo varia dependendo das interações entre as
características desse elemento e as do ambiente em que ele subsiste. Observe que essa
definição, embora baseada na biologia, não diz nada específico sobre as moléculas orgânicas, a
nutrição ou mesmo a vida... Como Dawkins observou, o princípio fundamental é „que toda
vida evolui pela sobrevivência diferenciada de entidades replicadoras...‟ [Dawkins, 1976]” (op.
cit.). Cf. Dawkins, Richard (1976). O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia, 2001.

(7) Em “O relojoeiro cego” (1986), Richard Dawkins explica que “os replicadores de DNA
construìram “máquinas de sobrevivência” para si mesmos – os corpos dos organismos vivos,
incluindo nós mesmos. Como parte do seu equipamento, os corpos desenvolveram um
computador de bordo – o cérebro. O cérebro desenvolveu a capacidade de se comunicar com
outros cérebros por meio da língua e das tradições culturais. Mas o novo meio de tradição
cultural abre novas possibilidades às entidades auto-replicadoras. Os novos replicadores não
são DNA e não são cristais de argila. São padrões de informação, que apenas prosperam no
cérebro ou em produtos fabricados artificialmente pelo cérebro – livros, computadores, etc.
Mas dado que o cérebro, os livros e os computadores existem, estes novos replicadores, a que
atribuí a designação de memes para os distinguir dos genes, podem propagar-se de cérebro
para cérebro, de cérebro para livro, de livro para cérebro, de cérebro para computador, de
computador para cérebro. À medida que se propagam podem modificar-se – mutam. E talvez
os memes “mutantes” possam exercer os tipos de influência que aqui designei por “poder
replicador”. Não esquecer que este se refere a qualquer tipo de influência que afete a
probabilidade de propagação própria. A evolução sujeita à influência dos novos replicadores –
evolução memica – está ainda na infância... [mas] está se iniciando...”. O neodarwinista
Dawkins não resiste à tentação de usar um padrão competitivo para explicar o fenômeno da
chamada evolução cultural. “A evolução cultural – diz ele – processa-se a uma velocidade de
uma ordem de grandeza muito superior à da evolução fundada no DNA, o que nos faz pensar
ainda mais na idéia de “tomada do poder”... E se um novo tipo de tomada do poder
replicadora está se iniciando, é concebível que parta para tão longe que deixará muito para trás
o DNA seu progenitor... Se assim for, podemos estar certos de que os computadores estarão
na vanguarda”. Doze anos depois (em “Desvendando o arco-ìris”, 1998), Richard Dawkins iria
retomar a comparação evocada pelo computador ao supor que “os genes constroem o
hardware. Os memes são o software. A coevolução é que pode ter impulsionado a inflação do
cérebro humano”. Ele estava procurando “inovações de software [como a linguagem] que
poderiam ter iniciado uma espiral auto-alimentadora de coevolução software/hardware para
explicar a inflação do cérebro humano”. Isso significa admitir que os “memes” (os softwares)
podem ser capazes de produzir modificações neuroestruturais; ou – como aventou Dennett em
1991 – que “a própria mente humana é um artefato criado quando os memes reestruturam um
cérebro humano para torná-lo um melhor hábitat para os memes”. Cf. Dawkins, Richard
(1986). O relojoeiro cego. Lisboa: Edições 70, 1988.

(8) Ver o Capítulo 5 do livro de Rosnay, Joël (1995). O homem simbiótico. Petrópolis: Vozes,
1997 – sobretudo a seção “Democracia participativa e retroação societal” –; os livros de Pierre
Levy (em particular “A inteligência coletiva” de 1994; op. cit.) e a literatura mais recente sobre

163
ciberpolítica e democracia digital. Por exemplo, “Cyberdemocracy: technology, cities and civic networks”
editado por Rosa Tsagarousianou et al. (London: Routledge, 1998); “Cyberpolitics: citizen activism
in the age of the Internet” de Kevin Hill & John Hughes (Maryland: Rowman & Littlefield, 1998);
“Digital democracy: discourse and decision making in the information age” editado por Barry Hague &
Brian Loader (London: Routledge, 1999); e “Democracy in the digital age: chalenges to political life in
cyberespace” de Anthony Wilhelm (New York: Routledge, 2000), entre outros.

(9) Em Capital social: leituras de Tocqueville, Jacobs, Putnam, Fukuyama, Maturana, Castells e
Levy. Brasília: Instituto de Política, 2001.

164
Localização e geração de identidade
Localização não significa isolamento, mas um campo configurado com certo grau de
estabilidade para permitir a conservação e a reprodução de uma mesma dinâmica
endógena.

O que caracteriza um local é, fundamentalmente, a sua identidade, a sua maneira


de ser (o seu “way of life”, poderìamos dizer, alargando bastante a extensão do
conceito designado por tal expressão).

Para caracterizar um local, as configurações particulares que o identificam devem


ser estáveis, ou seja, devem ter a durabilidade necessária para gerar um padrão
capaz de replicar.

Coletividades eventuais não são capazes de gerar um padrão durável. Padrões que
se conformam eventualmente também se desfazem eventualmente.
Comportamentos coletivos particulares gerados em filas, aglomerados ocasionais,
manifestações de massa, platéias de shows e multidões em geral, dificilmente se
propagam para outras regiões do tempo, isto é, não inventam tradições nem se
transmitem como cultura.

Coletivos estáveis, todavia, geram padrões capazes de se reproduzir. Em outras


palavras, constroem unidades culturais imitáveis, softwares capazes de “rodar” em
outros coletivos; ou, se quisermos lançar mão da metáfora de Dawkins
(comentada na seção anterior), criam “memes” – replicadores que instruem a
construção de comportamentos (em analogia com os genes, que instruem a
síntese de proteínas). Isso ocorre na medida em que certas dinâmicas endógenas
se conservam por repetição. Quer dizer, para usinar um replicador é necessário
dispor de “laboratórios” ou “incubadoras” sociais nos quais possa ocorrer o
processo de gestação de padrões seminais de comportamento. Tal processo
ocorre quando certas operações são recorrentes, sobretudo quando se instalam
redes de conversações que possuem circularidades inerentes.

Geração por repetição e replicação por imitação: essas são condições para afirmar
uma identidade local, sem o quê se desconstitui o próprio conceito de local. Cada
local é único porquanto possui uma identidade própria. Se os locais pudessem ser
iguais não faria sentido o conceito de local. Ademais, cada local existe na medida

165
em que é percebido como tal, tanto pelos seus integrantes quanto pelos que a ele
não pertencem (ou não reivindicam pertencer).

Dessarte, um local só se define completamente pela sua relação com o entorno (o


que é sempre um nexo com o global), pela sua maneira de interagir com esse
entorno e pela sua capacidade de fazer com que esse entorno o reconheça como
“um” local – determinado e diferenciado. Em termos de desenvolvimento (ou de
caminho em direção a um futuro desejável por uma coletividade humana estável),
afirmar uma identidade local é, ao mesmo tempo, gerar um modo-de-ser e
exportar esse modo-de-ser, induzindo o entorno a copiar esse modo (ou
caracterìsticas “meméticas” que o instruem).

Quando nos interessamos pelo processo de desenvolvimento ocorrido na Emília


Romagna, na verdade estamos sendo induzidos a copiar segmentos replicáveis do
seu “DNA memético”. Olhamos Bologna como um local, ou seja, como um
campo configurado com um grau de estabilidade que permitiu a conservação de
uma dinâmica endógena particular e procuramos então identificar quais os
componentes dessa dinâmica (os seus elementos e as relações entre eles) que
permitiram a produção desse ou daquele resultado desejável. Queremos descobrir
os comportamentos sociais que possibilitaram a produção desses resultados. E
queremos ver se é possível – abstraindo condições circunstanciais peculiares,
como, por exemplo, a história e a geografia daquela região italiana – reproduzir
tais comportamentos em outras circunstâncias. Não queremos copiar a
experiência em si, porque sabemos que isso não é possível. Queremos copiar
elementos do seu “DNA memético”, isto é, queremos importar aquela tecnologia
empacotável para viajar, queremos os softwares para colocá-los para rodar em
outros hardwares.

Evidentemente só podemos capturar aquelas unidades culturais que sejam


imitáveis, os programas que estiverem “prontos”, os padrões de comportamento
que foram gerados socialmente e autonomizados pela repetição a tal ponto que
conseguem se reproduzir por si mesmos ou como se fosse por si mesmos (e é
isso que significa estar “pronto para rodar”).

Tais programas existem em qualquer local que é tratado, no âmbito global, como
“um” local, quer dizer, uma unidade divisável. No nosso exemplo, em Bologna,
eles existem com alto grau de desenvolvimento. Se não existissem, nesse alto
grau, Bologna não seria um local com tanta visibilidade (ou divisabilidade).

Pois bem. O grau de desenvolvimento desses programas é a mesma coisa que o


grau de desenvolvimento da sociedade que os gerou.

166
A afirmativa acima lança nova luz para a compreensão do processo de
desenvolvimento. Dela (aliada a outras premissas) podemos inferir pelo menos
três conseqüências importantes que redefinem o próprio conceito de
desenvolvimento: i) todo desenvolvimento é social; ii) todo desenvolvimento é
local; e iii) todo desenvolvimento local só se define completamente pelas suas
conexões com o global. Mas, como o assunto será tratado no epílogo deste livro,
não vamos enfrentar agora o desafio de construir argumentações para tentar
justificá-las (nem enunciar as outras premissas que seriam necessárias para uma
exposição lógica desses teoremas).

Existem aqui, além disso, outros problemas mais complicados para resolver. Não
copiamos somente aquilo que desejamos. Freqüentemente, aliás, copiamos
padrões de comportamento que não desejamos. Padrões que impedem o
desenvolvimento (social) vêm se replicando há milênios por si próprios (ou como
se assim fosse, quer dizer, uma vez usinados eles ganharam algum tipo de
autonomia e se transmitiram). O cetro, a coroa, o bastão e a espada, constituem
exemplos de símbolos de padrões que se replicam há pelo menos seis milênios e
que comparecem, por incrível que pareça, na maioria das atuais projeções
futurísticas contidas nos romances e nos filmes de ficção ambientados em
milênios vindouros...

Mas voltando ao nosso ponto no momento, é possível mostrar que – do ponto


de vista do desenvolvimento (humano, social e sustentável) – quanto mais
tramada for uma coletividade, mais condições ela terá de gerar padrões capazes
de se replicar. Porque quanto mais caminhos existirem entre os elementos do
mundo, mais circularidades geradoras de padrões replicáveis poderão ocorrer e
mais usinagem comunitária estará em andamento. Com efeito, comunidades –
definidas como coletivos de interdependência – são, por excelência, as usinas de
tais padrões.

O processo de localização
A localização é um processo. Todavia, o que constitui tal processo? Afirmei que a
localização é, fundamentalmente, um processo de geração de identidade e de
replicação de características próprias dessa identidade gerada. E afirmei também
que quanto mais tramada for uma coletividade, mais condições ela terá de gerar
padrões capazes de se replicar.

167
Como estamos falando aqui da geração de replicadores é quase impossível –
conhecendo a hipótese dos “memes” – deixar de estabelecer uma comparação
com a dinâmica de replicação genética.

Embora afirmando que tratava-se de um recurso lateral de argumentação, lancei


mão da metáfora de Dawkins – o “meme” – aventada há quase 30 anos por
analogia com o “gene”. Este último estaria para a sìntese de proteìnas assim
como o primeiro estaria para a construção de comportamentos. Tanto genes
quanto “memes” seriam replicadores: enquanto os primeiros seriam copiados,
grosso modo, por células, os “memes” seriam copiados por cérebros.

Utilizei a metáfora de Dawkins, do “meme” como uma espécie de replicador


análogo ao gene, para tentar modelar o processo de transmissão cultural. Supus
que seria possível fazer isso sem importar a visão neodarwinista (e determinista
em termos genéticos) que compareceu na origem mesma da “teoria do meme”.

Todavia, isso não é tão simples assim.

A metáfora do “meme” é, sem dúvida, muito interessante. Mas ela tem alguns
problemas graves. Em primeiro lugar ela se baseia em alguns pressupostos de
“comportamento” do gene que parecem não corresponder ao que realmente se
passa na reprodução e na evolução biológicas de um ponto de vista sistêmico.

Em segundo lugar ela vem acompanhada por uma concepção (neodarwinista)


segundo a qual o DNA seria uma molécula intrinsecamente estável sujeita a
mutações aleatórias ocasionais (1).

Em terceiro lugar, como assinala Strohman (1997), “a extensão ilegìtima de um


paradigma genético – que passa do nível relativamente simples da codificação e
decodificação genética para o nível complexo do comportamento celular –
representa um erro espistemológico de primeira ordem” (2). Ou seja, Richard
Strohman adverte que há aqui uma confusão de nìveis que “não dá certo”. Uma
teoria que funcionava bem para explicar o código genético acabou se
transformando em uma teoria geral da vida, atribuindo aos genes o papel de
agentes causais de todos os fenômenos biológicos. Isso é o que se chama
determinismo genético.

Ora, os problemas de concepção do papel do gene são também problemas de


concepção do papel do hipotético “meme”. A analogia com o gene, que gerou o
conceito de “meme”, promove uma importação desses problemas.

168
A concepção do determinismo genético, do DNA como uma espécie de
programa autônomo (por analogia aos programas de computadores), acabou
contaminando a concepção do “meme”, como se este fosse também um
programa autônomo (e podemos comprovar isso facilmente lendo, por exemplo,
as considerações de Dawkins, em 1998, em “Desvendando o Arco-Íris”) (3).

Qual é o problema aqui? O problema é que, no caso dos genes, ao que tudo
indica, o “programa” não pode ser tão autônomo assim, uma vez que ele não está
arquivado propriamente no genoma e sim em uma rede celular (que envolve
muitos outros nodos além dos genes: proteínas, hormônios, enzimas e
complexos moleculares), que compõe o ambiente no qual o genoma pode existir
enquanto tal. No caso dos “memes”, os programas, correspondentemente,
também não estão em uma espécie de “diretório memético” de arquivos (o
“caldo” ou “fundo” de “memes” ou a “memesfera” aventados por Dawkins,
Dennett, Blackmore e outros) – nem em algo do tipo de The Matrix (do filme dos
irmãos Wachowski) – e sim em uma rede social que regula a produção e a
reprodução de comportamentos.

Assim como a rede celular é um sistema complexo, com múltiplos laços de


realimentação, fazendo com que os padrões de atividade genética mudem
continuamente com a mudança das circunstâncias, para manter o tempo todo
uma congruência dinâmica com o meio (sem o que não poderia haver isso que
chamamos de vida), a rede social também é um sistema complexo e, como tal,
apresenta características semelhantes; ou seja, os padrões de comportamento
também surgem e se modificam na interação com o meio (sem o que não poderia
haver isso que chamamos de cultura). Dessarte, a forma e o comportamento
culturais manifestam-se como propriedades que emergem da dinâmica complexa
das redes sociais e não pela alteração casual de “memes” que conseguiram vencer
algum tipo de competição pelos cérebros que vão parasitar (e que foram
copiados de forma levemente alterada pelos cérebros infectados).

Todavia, apesar disso tudo, de todos esses problemas apontados acima, continuo
achando que é útil considerar a hipótese do “meme” e quero tentar dizer por quê.

O problema não me parece ser propriamente o “meme” e sim algo que possa
sugerir um determinismo memético (tal como o problema não é o gene e sim o
determinismo genético). Assim como a focalização exclusiva no gene embaça a
visão do organismo como um todo, uma focalização excessiva no “meme”
dificulta que se veja os fenômenos que ocorrem no campo de interação que
chamamos de sociedade.

169
Mas, tal como deve existir alguma coisa como o gene – independentemente do
papel mais ou menos autônomo, mais ou menos abrangente e mais ou menos
determinante que queremos atribuir a isso que conotamos com o conceito de
„gene‟ –, tudo indica que deve existir também alguma coisa como o “meme”
como um replicador de idéias e comportamentos.

A questão é: precisamos ou não precisamos da hipótese do “meme”? E para quê?

Creio que precisamos de alguma coisa pelo menos parecida com o conceito de
„meme‟, para explicar porque certos padrões de comportamento se replicam para
outras regiões do tempo (ou o que se chama de tradição), para explicar a
transmissão não-genética de comportamentos (ou o que se chama de cultura),
para explicar, em suma, por quê o general chinês do que seria o exército do povo
se comporta de maneira tão semelhante ao general do exército norte-americano e
por quê o militar espartano materializava – no seu comportamento cotidiano –
valores tão parecidos com os do militar inglês do século 19, dois mil e trezentos
anos depois!

Parece que certos padrões acabam constituindo um sistema fechado em termos


de informação e são transmitidos como mensagens, conservando de tal modo
elementos do seu código básico que permitem a sua identificação. Assim,
freqüentemente (em uma freqüência acima da coincidência estatística), somos
capazes de identificar, por exemplo, um sacerdote católico ou um militante de
certo tipo de organização mesmo que eles façam um esforço para esconder suas
identidades. Por quê?

Ademais, parecem existir padrões seminais que se replicam a partir de códigos


congelados e não-explícitos. Idéias que vicejam a partir de simples frases ou
imagens, gerando às vezes padrões tão complexos como instituições. Isso talvez
constitua o início de uma explicação para o fato, ainda misterioso, de
determinadas instituições de uma civilização terem sido replicadas em outras
civilizações (coetâneas ou posteriores) que não mantiveram um intercâmbio tão
intenso ou uma herança tão forte assim que justificasse a fidelidade das cópias
(4).

Uma coisa parece certa: padrões de comportamento coletivos (ou replicáveis por
coletivos) são gerados por coletivos. Afirmei na seção anterior que os coletivos
que têm mais chances de gerar padrões replicáveis são comunidades, ou seja,
mundos pequenos que atingiram certo grau de “tramatura” do seu tecido social.
Porque quanto mais caminhos existirem entre os elementos do mundo, mais

170
circularidades geradoras de padrões replicáveis poderão ocorrer e mais usinagem
comunitária estará em andamento.

Mas é preciso ver que comunidades em um mundo globalizado não têm quase
nada a ver com as comunidades tradicionais que conhecemos em um mundo
cujas partes estavam isoladas. Em um mundo interligado por laços de
interdependência, onde existam múltiplos caminhos entre seus nodos-elementos,
comunidades assumem um papel diferente. Nesse tipo de mundo novos
comportamentos sociais usinados dentro de âmbitos comunitários podem se
espalhar pela rede, contaminando o sistema como um todo a medida que podem
ser amplificados por laços de realimentação de reforço de sorte a modificar o
comportamento de outros agentes do sistema ao induzi-los a realizar cópias dos
“programas” gerados.

Em suma, o que chamamos de localização é realmente um processo. Uma vez


desencadeado o processo, é necessário não propriamente isolamento, mas
conservação e reprodução de uma mesma dinâmica endógena.

Esse processo, como qualquer processo, leva um tempo. Depende do arranjo


social que se conforma particularmente sobre um território (físico ou virtual). E
depende, em última instância, das pessoas – conquanto tal arranjo social nunca
possa ser reduzido às pessoas que o compõem, quer dizer, suas características de
conjunto não podem ser obtidas a partir da simples conjunção das características
individuais dos seus elementos.

Quem localiza é quem assume uma parte do território como se estivesse


construindo um mundo para si. Mas só o faz enquanto inserido de uma maneira
particular em um coletivo, não enquanto elemento individual. O local é, assim,
criado pelo desejo coletivo. Por causa disso, o local tem “cara”, tem “gosto”, tem
“cheiro” e tem um conjunto de outras caracterìsticas que lhe são atribuìdas pelos
que nele (com)vivem. São as relações intersubjetivas e comunicacionais que o
constituem e não uma simples coleção de indivíduos lançados sobre uma mesma
porção do planeta. O local se (com)forma, não se detecta como quem localiza
um acidente geográfico a partir, por exemplo, de uma foto de satélite.

É por isso que localizar não é encontrar um local, é criar um local. Mas esse já é o
tema da próxima seção.

171
NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Quem quiser conhecer uma perspectiva não darwinista, não neo-darwinista e não
determinista em termos genéticos deve ler, fundamentalmente, os livros de Lynn Margulis e
Humberto Maturana. E também: Ho, Mae-Wan e P. T. Saunders, orgs. (1984). Beyond
darwinism: introduction to the new evolutionary paradigm. London: Academic Press; Ho, Mae-Wan e S.
W. Fox, orgs. (1988). Evolutionary processes and mataphors. London: Wiley; Ho, Mae-Wan (1998).
Genetic engineering: dream or nightmare? Bath: Gateway Books; Strohman, Richard (mar., 1997).
“The Coming Kuhnian Revolution in Biology”, Nature Biotechnology, vol. 15 e, sobretudo o mais
recente Keller, Evelyn Fox (2000). The century of the gene. Cambridge, Mass.:Harvard University
Press. Para uma abordagem simplificada de divulgação, pode-se ler ainda: Harman, Willis e
Sahtouris, Elisabet (1998). Biologia revisada. São Paulo: Cultrix:, 2003; e Capra, Fritjof (2002).
As conexões ocultas. São Paulo: Cultrix/Amana-Key, 2002 (em especial o capítulo seis).

(2) Strohman; op. cit.

(3) Cf. Dawkins, Richard (1998). Desvendando o Arco-Íris. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.

(4) A acreditar no que diz o erudito Samuel Noah Kramer (por exemplo, em History Begins at
Sumer. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1981) parece incrível que há 6 mil anos,
na antiga Mesopotâmia, já haviam se esboçado os protótipos de boa parte das instituições
religiosas e laicas do chamado mundo civilizado posterior: o panteão de doze seres divinos
(que depois foi replicado por praticamente todas as culturas subseqüentes), templos e
sacerdotes, a monarquia, exércitos, artes da guerra e armamentos, escolas e parlamentos, justiça
e tribunais, música e artes, construção, entalhação em madeira e gravação de metais, uso do
couro e tecelagem, escrita e matemática e muitas outras coisas, totalizando mais de uma
centena de “programas” (chamados de “ME”, espécies de “fórmulas divinas”). O mais incrìvel
é que esses misteriosos “ME” eram conhecimentos armazenáveis. As várias versões da
autêntica narrativa suméria “Enki e Inanna” sugerem, curiosamente, que os “ME” podiam ser
transportados, ou seja, eram objetos físicos, como se fossem disquetes. Segundo a assirióloga
Gwendolyn Leick (2001), em Mesopotâmia: a invenção da cidade (Rio de Janeiro: Imago,
2003), “ME” é um “termo sumeriano que abrange todas aquelas instituições, leis, formas de
comportamento social, emoções e símbolos... que, em sua totalidade, eram vistos como
indispensáveis ao funcionamento regular do mundo”.

172
Localização e transformação de utopia em topia
Localizar não é encontrar um local, é criar um local.

Comentando o processo de localização afirmei, na seção anterior, que quem


localiza é quem assume uma parte do território como se estivesse construindo
um mundo para si. Mas só o faz enquanto inserido de uma maneira particular em
um coletivo, não enquanto elemento individual. O local é, assim, criado pelo
desejo coletivo. Por causa disso, o local tem “cara”, tem “gosto”, tem “cheiro” e
tem um conjunto de outras características que lhe são atribuídas pelos que nele
(com)vivem. São as relações intersubjetivas e comunicacionais que o constituem
e não uma simples coleção de indivíduos lançados sobre uma mesma porção do
planeta. O local se (com)forma, não se detecta como quem localiza um acidente
geográfico a partir, por exemplo, de uma foto de satélite.

Dando continuidade a essa reflexão vamos comentar agora mais uma hipótese
(do elenco original de proposições sobre a localização em seu sentido “forte”)
segundo a qual „localizar não é encontrar um local, é criar um local‟.

Com efeito, quando localizamos uma cidade em um mapa estamos fazendo o


quê? Na verdade estamos apenas fornecendo referências geográficas que pouco
ou nada informam sobre as características distintivas daquela localidade. Este tipo
de “localização” nada nos diz sobre como são as pessoas que vivem ali, o que
elas gostam de fazer, quais são suas necessidades e suas potencialidades, que
vocação escolheram, que caminhos tomaram – caminhos que só elas mesmas
poderiam abrir, da sua maneira – para afirmar no mundo uma identidade própria.

Evidentemente o olhar que revela essas coisas é lançado de um certo ponto de


vista – o ponto de vista do desenvolvimento humano e social sustentável, que
adotamos aqui.

Desse ponto de vista, pode-se afirmar que só existe localização se existir


perspectiva de futuro para uma (e compartilhada por uma) coletividade. E se,
além disso, essa perspectiva puder ser antecipada no presente. O que chamamos
de desenvolvimento é o caminho em direção ao futuro desejado; ou melhor, é a
caminhada coletiva a partir do presente que vai construindo tal caminho.

173
Assim como profetizar (para os hebreus do Norte da Palestina por volta do
setecentos a. C.) não era adivinhar o futuro mas inventá-lo, localizar não é
encontrar um local, é criar um local. A comparação com a profecia – quer dizer,
com a utopia – não é fortuita. Localizar é transformar uma utopia (u-topos = não-
lugar, uma realidade almejada, projetada no futuro) em uma topia (um lugar
concreto, uma realidade localizada e presentificada, aqui-e-agora).

Isso significa que o local não é um dado, é uma construção. Não é um ponto de
partida e sim um “ponto de chegada”. Em outras palavras, o local é definido no
final. Só no final ele se desenha e se recorta... e mesmo assim nunca
completamente (ver Texto 8).

O início da localização é sempre um coletivo humano estável. Mas o “ponto de


chegada” depende do que esse coletivo humano estável for capaz de gerar.

Pois bem. Vimos nas seções anteriores que a localização é um processo. E que
uma vez desencadeado o processo, é necessário não propriamente isolamento,
mas conservação e reprodução de uma mesma dinâmica endógena para que as
inovações que chamamos de desenvolvimento possam aparecer. Coevoluindo
por adaptação, por congruências dinâmicas, feitas e refeitas continuamente com
o meio, quer dizer, por conservação da adaptação: isso é, aliás, o que chamamos
de desenvolvimento sustentável. Nada mais.

Soa estranho aplicar um conceito biológico (ou melhor, surgido a partir do


estudo das espécies vivas), como o de evolução (e o de coevolução), a sociedades
humanas. Mas Robert Wright (2000) em “Não Zero” nos lembra que “o
significado original da palavra “evolução” era “desenvolvimento” ou
“desenrolar” – como no desenrolar de um rolo antigo para ver o fim da história.
Há algo a ser dito por esse sentido, há muito perdido, da palavra. Muito embora
nem a evolução biológica, nem a cultural, tenham um roteiro nem sejam
inexoráveis assim como uma narrativa escrita é inexorável, ambas têm uma
direção – e até, defendi, uma direção que sugere uma finalidade, um telos. O
desenvolvimento da vida neste planeta pode ser uma história com uma razão de
ser” (1). Para Wright, é a “sinergia potencial” (ou o “non-zero-sumness”) que dá
sentido ao desdobramento evolutivo. Ele está falando de cooperação, ou melhor,
de um tipo “de relacionamento em que, caso houvesse cooperação, esta
beneficiaria ambas as partes” (2).

A questão das relações entre localização e desenvolvimento será abordada no


epílogo deste livro. Por enquanto, já se deve adiantar que qualquer coletivo

174
humano estável, para subsistir, requer cooperação. Uma sociedade com grau zero
de cooperação não seria estável e, portanto, não seria uma sociedade.

Mas se estabilidade (aplicado o conceito a coletivos humanos, i.e., a sistemas


sociais) requer cooperação, cooperação, por sua vez, leva à comunidade, ou seja,
à sociedades de parceria, ou, ainda, à coletividades regidas por interdependência
(3).

Nesse sentido, local é sempre comunidade porquanto localização tende a criar


comunidade. No centro de tudo está o que chamamos de cooperação (e o
conceito de capital social), como veremos mais adiante.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Wright, Robert (2000). Não Zero. Rio de Janeiro: Campus, 2001.

(2) Idem.

(3) Bill Mollison e Reny Mia Slay, no livro “Introdução à Permacultura” (Brasìlia: Ministério da
Agricultura e do Abastecimento / Projeto Novas Fronteiras da Cooperação para o
Desenvolvimento Sustentável, 1998) incluem, dentre as características da Permacultura ou
“(agri)cultura permanente” – um sistema de design voltado para a criação de ambientes
humanos sustentáveis – as relações entre diversidade, estabilidade e cooperação de um ponto
de vista sistêmico. Um dos princípios do planejamento permacultural é a policultura e
diversidade de espécies benéficas que tem como objetivo a conformação de um sistema
produtivo interativo. Nessa agricultura eco-sistêmica, o papel da diversidade nas suas relações
com a estabilidade e com a cooperação (ou sinergia) evoca um paralelo com o processo de
localização. Comentando o livro de Edgar Andersen, Plants, man and life (Berkeley: University
of California Press, 1952), “que descreve os plantios de jardins/pomares agrupados em volta
das casas na América Central”, Mollison e Slay observam que ele “contrasta o pensamento
linear, ordenado, restrito e segmentado dos europeus com a policultura produtiva, mais
natural, dos trópicos secos. A ordem que ele descreve é uma ordem seminatural de plantas em
seu relacionamento correto umas com as outras (consórcios), mas não separadas em vários
agrupamentos artificiais. Não está claro onde ficam os limites entre pomar, casa, campo e
jardim, onde existem [espécies] anuais ou perenes, ou, na verdade, onde o cultivo dá espaço
para sistemas evoluìdos naturalmente”. “Para o observador – explicam Mollison e Slay – isso
pode parecer um sistema desordenado e desarrumado; no entanto, nós não deveríamos
confundir ordem com arrumação. Arrumação separa espécies, cria trabalho e pode, também,
convidar pragas, enquanto que a ordem integra, reduz trabalho e dissuade o ataque de insetos.
Jardins europeus, freqüentemente arrumados de forma extraordinária, resultam em desordem
funcional e baixa produção. Criatividade raramente é arrumada. Poderíamos dizer,
provavelmente, que arrumação é algo que acontece quando a atividade compulsiva substitui a
criatividade imaginativa... A diversidade é freqüentemente relacionada à estabilidade na
Permacultura. No entanto, estabilidade só ocorre entre espécies cooperativas, ou espécies que
não causem prejuízo umas às outras. Não é o bastante, simplesmente, incluir o maior número

175
possível de plantas e animais em um sistema, pois poderão competir pela luz, nutriente e água.
Algumas plantas, como nozes e eucaliptos, inibem o crescimento de outras excretando
hormônios de suas raízes no solo (alelopatia). Outras plantas oferecem habitat de inverno para
pragas e doenças danosas a espécies próximas. Gado e cavalos, deixados no mesmo pasto,
eventualmente causarão degradação. Árvores grandes competem pela luz com cereais.
Caprinos no pomar ou no arvoredo irão comer a casca das árvores. Assim, se vamos utilizar
todos esses elementos em um só sistema, devemos ser cuidadosos na colocação de estruturas
ou plantas que intervenham entre elementos potencialmente prejudiciais... Se tivermos um
sistema com uma diversidade de plantas, animais, habitats e microclimas, a possibilidade de
uma infestação de pragas é reduzida. Plantas espalhadas umas com as outras dificultam a
movimentação de pragas de uma planta para a outra. Todavia, uma vez que a praga se
reproduza em qualquer planta, insetos e predadores irão perceber isso como uma fonte
concentrada de alimentos, e também se concentrarão para aproveitar-se. Na situação
monocultural, a alimentação para as pragas é concentrada; em uma policultura, a própria praga
é uma concentração de alimento para os predadores... Então, a importância da diversidade não
está muito no número de elementos de um sistema, mas no número de conexões funcionais entre
esses elementos. Não é o número de coisas, mas o número de formas nas quais as coisas
trabalham. O que procuramos é um consórcio de elementos (plantas, animais e estruturas) que
trabalhem harmoniosamente juntos”.

176
Texto 8 | Manzano e a ciência do local como ciência da
singularidade
“O local não seria apenas um local entre locais, mas também a encruzilhada entre os locais (ou
entre os tempos, ou ainda entre os contextos)”.

Nivaldo Manzano (2003), em comunicação pessoal ao autor, tece


interessantíssimas considerações sobre a ciência do local que, segundo ele, é a
ciência da singularidade que está ainda por ser construída. Publico abaixo
excertos da intervenção de Manzano nesse debate realizado por e-mail com o
autor.

“O local tem a extensão ou ocupa o lugar que lhe atribuìmos. Ou seja, a sua
delimitação não nos é dada de antemão ou imposta de baixo, de cima ou de fora
para dentro, como se fosse um destino ou uma fatalidade, mas resulta de um
exercício de livre escolha contextual, pelo qual decidimos limitar as suas
fronteiras, assim como ocorre quando nos pomos a caracterizar um problema,
em busca da solução.

Um problema – ou seja, a disputa entre possibilidades inconsistentes entre si pela


ocupação do mesmo espaço da solução – é, por definição, um subproblema de
um problema maior, ao infinito. As fronteiras de um problema dependem da
solução que o problema requer. Ao mesmo tempo, a solução que o problema
requer depende das fronteiras do problema: eis um processo auto-recorrente.

Tudo remete, pois, ao ponto de indução, ao exercício recorrente do "olhar", na


metáfora utilizada por você [quando afirmou que “o local é produzido pelo
olhar”]. O ser humano delimita fronteiras livremente ao mesmo tempo que se
deixa livremente delimitar por elas, eis de onde procede o caráter
necessariamente contextual da existência ("liberdade em situação", como
escreveram os filósofos existencialistas). Sou livre para eleger o contexto de
minha ação, mas, uma vez delimitado o seu contexto (subproblema de um
problema maior), submeto-me às regras geradas pela referência do contexto.
Assim, os parceiros de jogo são livres para escolher o jogo que quiserem jogar;
feita a escolha, submetem-se às suas regras. O desejo e o prazer de jogar aquele
jogo e não outro é a referência.

A sua noção de local – e a minha equivalente de contexto, ou de problema como


subproblema –, e de suas interações ao infinito, leva-me a pensar o local a um só
tempo como "topos" e "utopos". "Topos", como objeto de eleição já feita,

177
delimitação abstraída de uma realidade por definição indeterminada; "utopos",
como projeção ideal do "topos" no qual me encontro, ponto de apoio das
inspirações e motivações que me instigam a projetar o olhar para outros locais,
para fora ou para dentro do próprio"topos" no qual me encontro. Toda ação
humana no espaço do "topos" tem também um caráter utópico. É uma aposta no
futuro, na expectativa de que o resultado visado se confirme. Ao promover a
coexistência do "topos" e do "utopos" em um mesmo espaço de possibilidades
inconsistentes entre si, tenho consciência de que estou brigando contra os
princípios de identidade e de não contradição, ao mesmo tempo que sei que a
lógica gramatical não é uma ferramenta inteiramente adequada (suficiente) para
pensar a existência, individual ou social, que é também não-lógica...

O estatuto do local, que você busca definir, deveria tomar como matriz a
estrutura da ação humana: enraizamento presente em uma tomada de consciência
crítica do passado, que se projeta na construção imaginária de um futuro com
vistas à reconstrução do presente. Passado, presente e futuro estão fundidos e
inseparáveis na ação humana.

Assim vistas as coisas, o local não seria apenas um local entre locais, mas também
a encruzilhada entre os locais (ou entre os tempos, ou ainda entre os contextos),
sendo o local propriamente dito um "vazio", lugar natural de uma potência capaz
de estabelecer uma distância (crítica), graças à qual se retoma criticamente o
passado, que já não é (o passado pode ser poder, mas não é uma potência), para
construir no presente um futuro que ainda não é. Assumo, pois, a experiência do
local como expressão da simultaneidade ou contemporaneidade dos tempos,
escapando aos engodos das filosofias da História, do hegelianismo, do
positivismo e de todo pensamento linear e mecânico.

Explico-me melhor quanto ao termo "vazio", retirado do Tao, de Heráclito ou de


Espinosa, ao gosto do freguês: assumo que o "eu" (o "local", o "social", o
contexto, enfim) não tem substancialidade alguma: constitui-se de interfaces em
interação, abertas para dentro do "eu" e para o mundo. Assim, por exemplo,
minhas interfaces comigo mesmo e com o mundo correspondem aos meus
papéis: jornalista, filósofo, pai, filho, marido, sogro, jogador de futebol, amigo,
vizinho, etc. Espelho-me como "eu" em cada uma dessas interfaces, sem as quais
não me reconheceria a mim mesmo, eu que ao mesmo tempo também não sou
elas, e o meu "eu" não é outra coisa senão o conjunto delas, e também não é elas,
um conjunto de interfaces conflitantes e solidárias. Conflitantes, porque as regras
que obedeço quando jogo futebol conflitam com as regras do pai, que exigem
que esteja ao lado do filho, e assim por diante. Solidárias: cada um desses
sistemas racionais, correspondentes a cada um de meus papéis, conflitantes entre

178
si, convive na solidariedade da unidade que sou. Conceber o "eu" como
expressão das interfaces em interação corresponde a concebê-lo, pour cause, como
constituído pelo comunal, já que as minhas interfaces são o correlato de
interfaces sociais, que não são eu e também o são: como pai, tenho como
correlato meu filho, e assim por diante. Emerjo, pois, da comunidade ou do
social, como uma irrupção individual, ou um novo modo de ser, inaugural, único,
singular, do social, ou local, que me precede. É dizer também que eu sou o local,
o nodo da rede, o lugar do vazio, o ponto de interseção de minhas interfaces, o
locus da potência, o entrecruzamento de todos os sistemas racionais que
caracterizam os meus papéis. Por isso, quanto a mim, propriamente, não sou em
primeiro lugar ou unicamente o locus da racionalidade (papel reservado aos
tratados de lógica ou às ciências que se apóiam em inferências, estatística ou
probabilidade), e sim um sujeito diverso na minha unidade, ou uno na minha
diversidade (emoção, razão, ética, intuição, estética, sentimentos, lúdico, tudo a
um só tempo).

Assumir o local é apropriar-se da potência (potência que se contrapõe a poder,


no mesmo sentido grego utilizado por Maquiavel, já que potência remete à
capacidade humana de destituição recorrente de todo poder autocrático ou
hierárquico, de toda ordem constituída).

A ciência do local é a ciência da singularidade, que está por ser construìda...”

179
Localização e globalização
Globalização do local tende a ser igual a localização do global.

A afirmativa de que globalização do local tende a ser igual a localização do global


não é trivial. Formalmente (em termos lógicos) ela significa que globalização e
localização serão a mesma coisa quando local e global também o forem. Ocorre
que mesmo que o mundo inteiro seja (visto como) um local, isso não significa
que a dimensão global terá desaparecido. E nem se, por hipótese, o mesmo
processo de localização, que ocorre em uma localidade qualquer do mundo, se
completasse no planeta inteiro (com a coletividade mundial projetando e
antecipando um mesmo futuro desejado, unificadamente, o que, como veremos,
não parece ser possível – nem desejável...), ainda assim permaneceria existindo a
dimensão global.

A dimensão global de certo modo é necessária para a definição da dimensão


local. Local só adquire sentido diante do global. Toda a novidade do processo em
curso de glocalização é a possibilidade da conexão global-local e não o fato de
estar havendo, por um lado, uma globalização e, por outro lado,
simultaneamente, uma localização. Quando uma localidade se conecta com outra
localidade – que pode inclusive ser contígua geograficamente – ela está
acionando a conexão global-local (ou local-global, tanto faz, pois essa relação é
transitiva).

Assim, o local se globaliza quando ativa suas conexões externas. E, obviamente,


tanto mais se globaliza quanto mais conexões “para fora” estabelecer. Em
contrapartida, e isso está longe de ser tão óbvio, o global se localiza da mesma
maneira; ou seja, quanto mais localidades globalizadas existirem mais o global
estará localizado. Ou, ainda, o global se localiza “por dentro”.

Enquanto um coletivo humano estável assentado sobre um território se localiza


em função de suas conexões internas, o planeta humano como um todo se
globaliza em virtude da localização dos seus componentes e não em função de
sua própria localização, ou seja, de ter se transformado em uma “aldeia global”.

Em outras palavras, a globalização – ao contrário do que se imagina – não leva à


uma aldeia global mas à miríades de aldeias (unidades localizadas) globais. Isso é
muito, muito relevante para que se possa entender o sentido da glocalização.

180
O que é o local? O local não é o que parece... O mundo pode ser um local: se o
local globalizado for um mundo inteiro. Como escreveu Frank Herbert em 1976
(em “Os Filhos de Duna”), “em um universo infinito, local pode abranger algo
tão gigantesco que sua mente se encolhe diante dele” (1).

A grande novidade da network society é que, pela primeira vez na história, o


mundial pode virar local. A volta ao local significa que, em certo sentido, tudo
está virando local. Por isso se diz que a localização é a outra face do fenômeno
chamado globalização.

Já vimos que o local é necessariamente o pequeno, mas não no sentido territorial


ou populacional e sim no sentido daquilo que foi tornado pequeno por força de
alta “tramatura” social.

Assim, uma localidade não globalizada não é pequena, mesmo que seja apenas
uma vila com 500 habitantes. O mundial não localizado é enorme, porque é
inalcançável. O mundo de Dom Manuel em 1500 era um mundo imenso, tão
imenso que as pessoas não sabiam sequer onde estavam as outras pessoas e o que
encontrariam para além do que enxergava a vista... Ou seja, não era um local.

O mundial localizado será um mundo pequeno, menor, muito menor do que a


Paraìba atual. Como vem cantando Caetano Veloso, desde 1978 (em “Terra”):
“Pequenina como se eu / Fosse o saudoso poeta / E fosses a Paraíba / Terra,
Terra”. Ainda que possa ser composto por milhares de localidades menores do
que a Paraíba atual.

O mundo estará totalmente globalizado quando estiver totalmente localizado, o


que significa: composto por miríades de identidades próprias. Para tomar uma
imagem, já empregada por outros e em outras circunstâncias, milhões de pontos
de luz, cada um com uma cor diferente, vibrando em uma freqüência diferente,
porém conectados entre si, formando uma grande rede neural. Como escreveu
Robert Muller, há mais de 20 anos, “conforme caminhamos para o terceiro
milênio, talvez a participação em networks se torne a nova democracia, um novo
elemento importante no sistema de governança, um novo modo de vida nas
complexas e miraculosas condições globais do nosso estranho e maravilhoso
planeta vivo, girando e circulando no universo prodigioso em uma encruzilhada
de infinidade e eternidade” (2).

Em geral somos levados a pensar que se o mundo pudesse desejar coletivamente


um mesmo futuro, globalização e localização seriam a mesma coisa. Tal, contudo,
não ocorrerá, não pelo menos da forma como ainda estamos imaginando. Pode-

181
se dizer que o sistema como um todo terá uma “mente” (a Global Mind citada por
Morin) (3), mas apenas em sentido metafórico, não de uma consciência unificada
e sim de um processo fractal.

Se a “mente de Gaia” é uma espécie de anima mundi, ou seja, uma inconsciência


coletiva, isso não quer dizer que ela vá (ou possa) se tornar uma consciência
coletiva individualizável. Pode-se sempre especular com hipóteses como as do
aparecimento de um super-ser planetário, de um “cérebro global” e lançar mão
de metáforas bio-tecnológicas e de outros paralelos semelhantes para tentar dizer
(ou esperar) que um processo regulatório consciente surgirá. Ao que tudo indica,
porém, essas hipóteses não são necessárias, não pelo menos nas formas como
têm surgido. A regulação é uma propriedade emergente, uma função da dinâmica
complexa da rede e não atributo de um conhecedor individual. Substituir o deus
preexistente (que sobrevém) pelo deus construído (que provém e advém,
característica, aliás, da melhor tradição profética: o IHVH, dos profetas hebreus
do setecentos a.C., é o deus que „será o que será‟, como percebeu genialmente
Ernst Bloch quando observou que, do ponto de vista dessa utopia hebraica
primitiva, “deus não existe, porém existirá”) (4) só seria útil se tal operação
substituísse também a compreensão de que a regulação é extrínseca ao sistema
pela compreensão de que ela é inerente ao seu processo adaptativo; ou seja, de
que a regulação societária global se dá por meio de miríades de processos
holográficos que ocorrem em cada local-nodo da rede e não de um processo que
possa ser unificado em um local distinto dos demais (e, portanto, separado dos
demais), em um mainframe do tipo de The Matrix.

Por certo, „inteligências coletivas‟ (no sentido de Pierre Levy e também, em parte,
no sentido aventado por Joël de Rosnay) (5) tendem a surgir com o processo de
localização e, assim, pode-se dizer que teremos, cada vez mais, “mentes
coletivas” em funcionamento. Mas não é a ligação “em paralelo” entre essas
“mentes” que produzirá o supremo regulador (como se fosse um
supercomputador) e sim as numerosas conexões que cada uma delas estabelecerá
com as demais (ou seja, a conexão local-global) que ensejarão a emergência de
uma dinâmica complexa adaptativa.

A dispersão e a conexão e não a unificação é a chave para entender a nova


dinâmica da globalização-localização e isso faz toda a diferença. É a chave para
entender em quê sentido globalização do local tende a ser igual a localização do
global.

182
Parafraseando Herbert, „em um universo finito, tramado por múltiplas redes, local
pode assumir características tão holográficas que nossa “mente coletiva” se
expande para o mundo todo ao concentrar-se nele‟.

Mas com isso já entramos na próxima hipótese do elenco, segundo a qual


„localidades tendem a se tornar holografias do planeta à medida que reflorescem
comunidades no mundo globalizado‟.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Herbert, Frank (1976). Os Filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

(2) Cit. por Lipnack, Jéssica & Stamps, Jeffrey (1986). Networks: redes de conexões. São Paulo:
Aquariana, 1992.

(3) Cf. Morin, Edgar & Kern, Anne-Brigitte (1993). Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995.

(4) Bloch, Ernst (1968). El ateismo en el cristianismo. Madrid: Taurus, 1983.

(5) Cf. Rosnay, Joël (1995). O homem simbiótico. Petrópolis: Vozes, 1997 e também Levy,
Pierre (1994). A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola,
1998.

183
Localização e glocalização
Localidades tendem a se tornar holografias do planeta à medida que reflorescem
comunidades no mundo globalizado.

O aspecto holográfico da afirmativa acima já foi abordado na seção anterior. As


duas principais questões que restam para debater são as seguintes: a) que
comunidades são essas que reflorescem no mundo globalizado? e, b) por quê a
localização do global ocorre em função direta do reflorescimento dessas
comunidades?

Cada uma dessas questões poderia se desdobrar em várias outras; por exemplo:
estão mesmo surgindo comunidades em um mundo pós-industrial (fenômeno
que não ocorreu, a não ser vestigialmente, ou como remanescência, no mundo
industrial)? Por quê? Se um novo tipo de comunidade que está surgindo implica
(ou abarca) “comunidades virtuais” (ou sem base físico-territorial), tais
“comunidades” poderiam ser consideradas como comunidades de fato? E depois
vêm também todas aquelas questões, já colocadas por Guehénno (em 1993 e em
1999) (1), sobre se as novas comunidades de escolha que estão surgindo isolam
ou unem as pessoas, constroem ou destroem o espaço público comum (e a
possibilidade da política), uma vez que “o mercado global não cria uma
comunidade global” etc. (ver Texto 4).

Por tudo o que foi dito nas seções anteriores deste capítulo fica claro que existe
uma co-implicação entre localização e comunidade. Ora, se está em curso um
processo de localização, então é razoável esperar que esteja em curso também um
processo de criação de comunidades. Mas que comunidades são essas?

As novas comunidades de projeto do mundo globalizado


Enquanto as velhas comunidades eram comunidades de herança (e, portanto,
formadas por repetição de passado), as novas comunidades que estão surgindo,
durante o processo em curso de globalização, são comunidades de projeto, ou
seja, futuros desejados, projetados e antecipados em experiências concretas por
coletivos humanos estáveis.

184
Quais são as novas comunidades de projeto? São as comunidades originadas por
movimentos sociais de resistência e de geração de identidade a partir das novas
temáticas do ambientalismo, dos direitos humanos e da cidadania (não na velha
noção em que tudo é “direito do cidadão e dever do Estado”, mas como direito-
e-responsabilidade de todos), do feminismo, do ecumenismo e do pacifismo, do
fortalecimento da sociedade civil e da promoção do voluntariado e, sobretudo,
dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de
processos de democracia participativa em redes sociais e de indução ao
desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-
economia alternativa ou solidária, ensaiados em escala local.

Algumas dessas novas comunidades de projeto são virtuais (no sentido de não
terem base físico-territorial), mas não todas. Algumas são sócio-territoriais
mesmo, formadas em torno de processos de desenvolvimento local que estão
acontecendo em povoados, distritos, bairros, municípios, microregiões e outros
âmbitos espaço-territoriais no mundo todo, como causa-e-conseqüência (ou, pelo
menos, como fenômeno acompanhante) desse movimento emergente de volta ao
local observado na contemporaneidade.

No entanto, boa parte dessas novas comunidades que estão surgindo são
subnacionais ou transnacionais. Isso é relevante porque a não-coincidência com
fronteiras nacionais indica que elas, em alguma medida, se subtraem ao controle
central do Estado-nação.

O fundamental aqui não é o tamanho do território físico e sim o âmbito do


espaço político. O fundamental é a capacidade construída de se auto-conduzir (a
self-reliance política). Para abrir um ponto de discussão com Jean-Marie Guéhenno,
o fundamental são as novas “Atenas” (virtuais ou sócio-territoriais, neste sentido
tanto faz, pois o que importa aqui é que sejam sociedades de parceria ou
coletivos de interdependência) que vão surgir, possibilitando a universalização de
novos princípios éticos norteadores: dentre outros, a liberdade como sentido da
política (em uma democracia radicalizada ou democratizada) e a igualdade como
possibilidade (mas não-obrigatoriedade) de inserção e participação igualmente
valorizada de todos na comunidade política.

A localização do global e o reflorescimento comunitário


Pois bem. O surgimento de comunidades no mundo globalizado indica apenas
que o processo de localização está acontecendo.

185
O local, no sentido “forte” da hipótese da localização, é sempre futuro
antecipado. O reflorescimento comunitário – ou melhor, o florescimento das
novas comunidades de projeto – antecipa a ecumene planetária.

Ao contrário do que se pensa comumente, a pergunta não é se isso vai ou não vai
acontecer algum dia. Isso já está acontecendo. Não haverá um momento mágico
do desfecho, de inauguração de uma “república planetária de comunas” ou algo
semelhante. Na sociedade-rede, o que globaliza também localiza. Cada
comunidade de projeto constituída no mundo globalizado antecipa o mundo
como rede holográfica de mirìades de “aldeias globais”. Como vimos na seção
anterior, a aldeia são as aldeias; não a soma, mas a configuração geral regida por
múltiplos laços de interdependência. Esse é o sentido da glocalização.

O conceito de capital social


Talvez sem ter ainda uma compreensão global do fenômeno da glocalização,
muitas pessoas, sobretudo a partir da década de 1990, têm procurado trabalhar
com novas categoriais analíticas – exteriores ao mundo do pensamento
econômico – para tentar explicar por quê comunidades tecidas por redes e redes
de comunidades estão se constituindo como ambientes mais favoráveis ao
desenvolvimento.

O que está acontecendo é que as pessoas estão descobrindo que as redes sociais
têm muito mais a ver, do que antes se imaginava, com o que chamamos de
desenvolvimento. Mas essa descoberta não se deu a partir da observação das
novas dinâmicas sociais introduzidas pelo funcionamento das grandes redes
mundiais, como a Internet, em meados da década de 1990. Ela é anterior. A
percepção das relações intrínsecas entre rede (como padrão de organização) e
desenvolvimento (como “movimento” social), data do inìcio dos anos 60,
conquanto somente nos anos 90 tenha sido possível interpretar mais
completamente o fenômeno. Foi no estudo das dinâmicas sócio-políticas de
pequenas localidades que antropólogos e urbanistas – como Jane Jacobs –, ainda
nos anos 60, começaram a desconfiar que as redes sociais constituíam um fator
decisivo para o desenvolvimento local, como se fossem uma espécie de “capital”
(e imagino que a expressão „capital social‟ tenha sido introduzida
metaforicamente por Jacobs – a primeira pessoa que empregou o termo no
sentido em que o estamos trabalhando a partir dos anos 70 – não para
mercantilizar uma dimensão social, da vida comunitária e sim para dizer que
tratava-se de uma internalidade (e de uma centralidade), de um fator tão
importante quanto o capital propriamente dito, físico ou financeiro) (2).

186
É significativo, porém, que as relações entre rede e desenvolvimento tenham sido
descobertas no local (no caso de Jacobs, em bairros e distritos que se pensavam,
cada qual, como um local em termos de desenvolvimento).

É preciso ver, entretanto, se esse é um elemento fortuito ou se tais relações só


poderiam ter sido descobertas no local. Contrariando, talvez, uma parte dos
teóricos do capital social, opto pela segunda alternativa; ou seja, o capital social é
produzido (e acumulado e reproduzido) sempre em um local. Quer dizer, em um
coletivo humano estável que pensa a si próprio (e é assim visto pelos demais)
como um sujeito caminhante em direção a um futuro desejado. Todas as
evidências empíricas sobre a relação entre capital social e desenvolvimento foram
recolhidas em localidades. Em sentido positivo, em localidades que apresentaram
incrementos em seus índices de desenvolvimento em virtude da existência de
redes sociais, de organizações voluntárias da sociedade civil e outras formas de
sociabilidade motivadas por emocionalidades cooperativas. E, por inferência, em
sentido negativo, naquelas localidades que ficaram paralisadas (ou retrocederam)
em relação aos seus índices de desenvolvimento em virtude da predominância de
padrões hierárquicos de organização e de modos autocráticos de regulação
(como, por exemplo, um padrão vertical de relação entre Estado e sociedade e a
prática do clientelismo).

Redes abertas, que não se constituem como sujeitos, não fornecem evidências
suficientes de serem usinas de capital social. Ou, para usar os nossos termos,
redes não localizadas não são produtoras de capital social (ou, pelo menos, com
tal quantidade e/ou qualidade capaz(es) de ensejar a percepção desse “processo
de produção”).

Em suma, tudo indica que capital social é produzido por comunidades. A


ampliação social da cooperação, que dá origem a (ou co-origina) esse fator do
desenvolvimento chamado de capital social, ocorre (ou exclusivamente, ou
predominantemente) em comunidades.

Ora, como vimos, comunidades são „mundos pequenos‟ que atingiram certo grau
de “tramatura” do seu tecido social e, portanto, adquiriram mais „poder social‟
para usinar padrões de comportamento (programas) capazes de se replicar. Esse
„poder social‟ dá a medida do capital social que ela é capaz de produzir (e é o
próprio conteúdo da expressão „capital social‟). O que chamamos de capital social
é algo assim como se fosse o “combustível” que alimenta a geração de identidade
e a replicação de características (que podem ser vistas como softwares que instruem
a construção de comportamentos) das peculiares identidades geradas.

187
Dessarte, em virtude de geração por repetição e replicação por imitação, se
constrói o mundo como uma rede holográfica de miríades de comunidades. E o
“combustìvel” ou a “energia social” para isso tudo não vem de outra fonte senão
da cooperação.

A cooperação como fonte de localização


Comunidades de projeto estão sendo formadas pelo que chamamos aqui de
novos movimentos sociais. Que movimentos são esses? No capítulo anterior
afirmamos – para estabelecer uma distinção com os velhos movimentos sociais –
que eles não são os movimentos corporativos, reivindicatórios, setoriais,
particularistas, reativos e reacionários e sim os movimentos que propõem
alternativas de vida e convivência social aos padrões da sociedade patriarcal,
autocrática e guerreira, que vigem há milênios.

Não são os movimentos embebidos por visões estatistas, regressivas e contra-


liberais (baseadas na ideologia do realismo político, segundo a qual o mundo
esteve, está e estará, sempre, inevitavelmente vincado pela divisão amigo x
inimigo) (3) ou por visões neoliberais (baseadas na ideologia econômica
ortodoxa, segundo a qual o comportamento das sociedades é uma decorrência do
comportamento egotista dos indivíduos, que os impele inexoravelmente à
competição entre si). E sim movimentos humanizantes, que constituem
humanidade porque animados – parafraseando o que disse Morin – pelo
sentimento de pertença à mesma entidade planetária-comunitária.

É importante retomar aqui que esses novos movimentos sociais não se


caracterizam, predominantemente, pela vontade de poder (no sentido de serem
desenhados para viabilizar a tomada e a retenção do poder de mandar alguém
fazer alguma coisa contra a sua vontade), pela motivação de derrotar um
concorrente ou destruir um inimigo. Não são baseados em jogos do tipo „ganha-
perde‟ ou do tipo „o vencedor leva tudo‟ e sim em jogos „ganha-ganha‟. São,
portanto, todos eles, movimentos de ethos predominantemente cooperativo.

Este é o ponto mais importante. Ninguém participa desses movimentos em


virtude unicamente de uma escolha racional e sim porque se sente
emocionalmente compelido a aderir a sua causa, e tal adesão, na maior parte dos
casos, se dá a partir de uma identidade com a forma como eles atuam e não
simplesmente por concordância intelectual com as suas finalidades declaradas.

188
Mas é preciso compreender de uma vez por todas que a cooperação é uma
emocionalidade, não uma racionalidade. Aquilo que explica o trabalho voluntário,
a ação gratuita, e que constitui, em suma, o ethos cooperativo que pode se instalar
em qualquer sociedade humana, é uma emotional motivation e não apenas a rational
choice.

Unicamente baseados nas teorias da escolha racional não poderíamos explicar


nada ou quase nada do que acontece na emergente sociedade civil mundial e nem
nas sociedades civis locais.

Não é por acaso que, dentre as principais formas de agenciamento, a sociedade


civil (ou a comunidade) destaca-se como usina privilegiada de capital social,
muito mais do que o Estado (que em geral extermina), ou do que o mercado (que
em geral consome), esse tipo de “capital”. E isso porquanto o Estado se
caracteriza pela sua racionalidade normativa, por sua “lógica” heterônoma e por
seu padrão vertical de relação com a sociedade, enquanto que o mercado se
caracteriza pela sua racionalidade lucrativa (ou seja, visa maximizar a apropriação
privada de um sobrevalor gerado, em geral, coletivamente) e pela sua “lógica”
competitiva. Ora, nenhuma dessas racionalidades e nenhuma dessas “lógicas”
são, por excelência, produtoras de capital social na medida em que nenhuma
delas se baseia predominantemente na cooperação. Já tratei desse assunto em
outro lugar e não seria o caso de reproduzir aqui os argumentos construídos para
mostrar que o que caracteriza, positivamente, a nova sociedade civil (ou o
chamado terceiro setor) é a cooperação (4).

Se são movimentos de ethos cooperativo que estão dando origem às novas


comunidades de projeto, não é difícil mostrar por quê a cooperação é fonte de
localização.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Cf. Guéhenno, Jean-Marie (1993). O fim da democracia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1999; e também (1999). O futuro da liberdade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

(2) Jacobs, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

(3) Uma parte dos velhos movimentos sociais, embora pertença à sociedade civil, por incrível
que pareça, ainda está possuída por uma espécie de fundamentalismo de Estado. Esse
estatismo, comum a tendências políticas de direita e de esquerda, foi exacerbado pelas reações
contra-liberais ao processo de globalização surgidas na última década do século passado. Não é
a toa que tais movimentos disseminam na sociedade uma cultura adversarial e visões
pervertidas segundo as quais não existem propriamente problemas senão culpados, de vez que

189
a sociedade humana é tomada como um campo inexoravelmente vincado pela relação amigo x
inimigo. Quando na oposição aos governos tais movimentos atuam na base do “quanto pior
para o paìs comandado pelo inimigo melhor para mim” e, quando na situação, em geral
desenham políticas públicas como políticas exclusivamente estatais que, igualmente, não levam
em conta o papel da cooperação.

(4) Cf. Franco, Augusto (2003). Terceiro Setor: a nova sociedade civil e seu papel estratégico
para o desenvolvimento. Brasília: AED, 2003.

190
Texto 9 | Beck e a aliança em favor da atividade
comunitária
“A atividade comunitária poderia se tornar um... centro de atividade que garantiria a
substância democrática da sociedade”.

Ulrich Beck, na quarta parte do seu livro “O que é globalização?” intitulada


“Respostas à globalização”, elenca, como sexta em uma lista de dez respostas, o
que chamou de “aliança em favor da atividade comunitária” (1).

Segundo Beck, “um novo contrato social deveria partir do seguinte ponto. Nosso
trabalho se tornou produtivo a um tal ponto que necessitamos cada vez menos
do trabalho e precisamos produzir cada vez mais bens e serviços. A integração
sócio-material dos homens por meio do trabalho aquisitivo continuar a ter
grande importância, mas deixou de ser a única forma. Proponho que se reflita
por um instante se aquilo que é identificado por toda parte nos biótipos sociais
como engajamento da sociedade civil – a saber, a capacidade de auto-
organização, e também o interesse em projetos políticos que não foram
percebidos com a clareza suficiente pelas instituições – não poderá ser
considerado como um segundo centro de atividade e integração ao lado do
trabalho remunerado: a atividade pública, a atividade comunitária...

A atividade comunitária poderia tornar as cidades habitáveis, enaltecer o espírito


democrático e aumentar a eficácia da energia dispendida. Por que não falarmos
de uma vez em uma aliança civil-estatal pela sociedade civil em vez de “aliança
pela atividade comunitária” e atrair capital para realizá-la. A atividade comunitária
poderia tomar uma forma que não fizesse dela um abrigo provisório para o
desemprego: ela deveria ser atrativa para todas as pessoas. Ela poderia se tornar
um segundo centro de atividade que garantiria a substância democrática da
sociedade...

O trabalho civil não poderia... ficar preso ao contexto nacional-estatal; ele


poderia amparar e enriquecer a sociedade civil transnacional, suas redes e seus
movimentos sociais...

Portanto, são sobretudo dois princípios – espontaneidade ou auto-organização,


ao lado do financiamento público – que poderiam fazer da atividade comunitária
uma alternativa interessante...

191
Essa iniciativa pressupõe uma concepção política que desestrutura o monopólio
do sistema político. É necessário que se descubra, por exemplo, uma novo
distribuição do poder e do trabalho entre o sistema político nacional-estatal e a
sociedade civil (trans)local. Fortalecer as sociedades civis para além das suas
fronteiras não significa transferir para ela, sob a forma de um palavrório
comunitarista, todos os problemas causados pela ineficiência burocrática. Este
fortalecimento significa: o reconhecimento maduro das responsabilidades é
sucedido por um deslocamento do poder desde o centro até as regiões, até as
cidades; e as iniciativas da população serão a um só tempo viabilizadas pelo
dinheiro da comunidade e provarão deste modo a sua eficácia” (2).

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Beck, Ulrich. O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.

(2) Idem.

192
Localização em disputa
A localização está em disputa e essa disputa tenderá a pautar, em futuro próximo,
os embates políticos dentro do Estado-nação.

Como globalização e localização são aspectos do mesmo processo de


glocalização, os fatores que condicionam e possibilitam a localização são os
mesmos que possibilitam a globalização, porém com uma diferença importante e
relativa à forma como se apresentam e ao âmbito em que incidem.

Glocalização é o nome de uma mudança social que está ocorrendo em virtude da


conjunção de vários fatores interdependentes: novo ambiente político mundial,
inovação tecnológica, nova cultura correspondente a uma sociedade cosmopolita
global, nova morfologia da sociedade-rede e novos processos democrático-
participativos ensaiados sobretudo em âmbito local.

No âmbito global, o relevante em termos do novo ambiente político instalado


depois da queda do Muro é a possibilidade aberta de democratização das relações
internacionais. No âmbito local, todavia, isso se revela como uma possibilidade
de democratização das relações políticas intra-locais, inter-locais, entre o local e o
micro-regional, o estadual, o nacional, o regional e, em suma, entre o local e o
global.

Entretanto, no âmbito nacional, o comportamento do Estado-nação (que ainda


domina o processo político nacional e infra-nacional) bem como o
comportamento das instâncias de governo nacionais, estaduais e municipais, são
decisivos para acelerar ou retardar a localização.

Sobretudo os dois últimos fatores listados acima – rede e democracia ensaiados


em âmbito local – indicam que há um outro condicionante da localização: o
ambiente político nacional. Com efeito, os agentes políticos nacionais ainda
constituem interventores capazes de colocar obstáculos à glocalização – não
tanto à globalização, mas à localização.

Por quê? Porque tais interventores, se não podem, no nìvel “macro”, refazer
inteiramente o “clima” da guerra fria, impor uma regressão tecnológica, impedir
totalmente o processo de transição para uma nova cultura correspondente a uma
sociedade cosmopolita global, eles podem, por outro lado, dificultar a emergência

193
de padrões de organização em rede e de modos de regulação democrático-
participativos no nìvel “micro”.

Isso significa que a localização também está em disputa e essa disputa –


conquanto seja, fundamentalmente, a mesma disputa que se trava em torno da
glocalização – pode e deve ser olhada de outra maneira a partir da perspectiva
local.

Do ponto de vista da localização o melhor governo é, obviamente, aquele que


deixa o protagonismo local se exercer. Portanto, quanto mais intervencionistas,
verticalistas e centralizadores forem os governos, mais eles conseguirão colocar
obstáculos à localização.

Também parece óbvio que, do ponto de vista da localização, o melhor governo é


aquele que estimula o empreendedorismo individual e coletivo, encorajando
pessoas e comunidades a enfrentarem seus próprios problemas da sua maneira.
Assim, quanto mais paternalistas e clientelistas forem os governos, mais eles
dificultarão o processo de localização.

Por último, pessoas e comunidades terão mais capacidade e mais possibilidade de


ensaiar, em âmbito local, padrões de organização em rede e modos de regulação
democrático-participativos, quanto mais respirável for o “ar” democrático no seu
entorno. Logo, autocracias e democracias com alto grau de antagonismo e
governos dominados por partidos impregnados por uma cultura adversarial
constituem ameaças seriíssimas à localização. Governos cuja intervenção divide
as sociedades locais em amigos x inimigos baseados em critérios político-
ideológicos de alinhamento a programas e normas partidárias são forças
reacionárias perigosas, capazes de atrasar em muito a revolução do local.

Evidentemente, sempre se pode lutar para eleger governos mais sintonizados


com a localização. Não é por aí, todavia, que se processa a revolução do local. A
rigor não se trata de uma revolução política, em termos leninianos (do Lênin de
1901-1902, do “Por onde começar?” e do “Que Fazer?”), quer dizer, de um
plano urdido e executado por um contingente centralizado de agentes. Por certo,
a revolução do local tem seus agentes, mas, desse ponto de vista, ela é mais
martoviana (do Martov que altercava sobre isso com Lênin no dealbar do século
passado), é um processo ao invés de um plano. Muito mais do que isso, porém,
ela é um processo descentralizado (a rigor, pulverizado), não de construção de
um sujeito revolucionário mas de florescimento de miríades de experiências
inovadoras que introduzem modificações no comportamento dos sujeitos que
interagem em termos de competição e cooperação e que – dada a presença de

194
padrões de organização em rede e de modos de regulação democrático-
participativos – podem se amplificar “contaminando” o sistema como um todo.
Tal processo é caótico, não porque seja – ou esteja condenado a ser – sempre
desordenado e sim porque alcança padrões de ordem flexíveis e mutáveis, que se
constroem e reconstroem continuamente e que, assim, não são impostos “de
fora”, a partir de um modelo preexistente, mas emergem “de dentro”.

Desse ponto de vista, a solução não é ter governos “alinhados” com a


localização, mesmo porque isso não é possível em virtude da própria natureza do
Estado-nação, que sempre resistirá, em alguma medida ou de algum modo,
perder poder para níveis infra-nacionais. Bastaria ter governos comprometidos
com a manutenção de um clima democrático e que adotassem um padrão de
relação com a sociedade não-muito-inibidor das iniciativas locais, quer dizer: não-
muito-intervencionista, não-muito-centralizador, não-muito-paternalista, não-
muito-clientelista. Isso se revelaria na matriz de suas policies, sobretudo nas
chamadas políticas públicas na área social.

Neste particular o fundamental é que sejam governos que não queiram voltar
atrás, reeditando, por exemplo, políticas sociais que venho classificando como de
“primeira geração”; ou seja: “polìticas de intervenção centralizada do Estado...
para as quais: i) o Estado é suficiente; ii) os benefícios são uma espécie de
concessão do poder e/ou de intermediação político-partidária, eleitoral ou
institucional; iii) seus serviços não são encarados propriamente como direitos; e
iv) a gestão governamental não é pública porquanto não é transparente, admite
graus insuficientes de accountability e não incorpora – em uma dinâmica
democrática – outros atores na sua elaboração, na sua execução, no seu
monitoramento, na sua avaliação, no seu controle ou na sua fiscalização” (1).

Em qualquer caso, porém, deveriam ser governos que não pretendessem deter o
monopólio do público e que não se acreditassem protagonistas únicos e
exclusivos do desenvolvimento. Em suma, que não atuassem como se fossem
suficientes. Em qualquer caso, portanto, será necessário contar com o
comparecimento de outros atores não-governamentais, em um tipo de arranjo
semelhante ao proposto por Claus Offe no capítulo anterior, ou seja, capaz de
permitir a constelação de sinergias entre Estado, mercado e comunidade,
mediadas pelo capital social produzido na sociedade civil.

Para entender esse ponto de vista é preciso admitir que a revolução do local não
é uma revolução política nacional, não visa a substituição das elites no poder do
Estado-nação. É uma revolução social stricto sensu, uma mudança no “corpo” e no
“metabolismo” das sociedades.

195
Todavia, é preciso reabrir o debate sobre o que entendemos por mudança,
transformação ou revolução em termos sociais, como será abordado na próxima
seção (cf. também Texto 12).

O que se chamará de revolução social daqui a algum tempo serão os processos de


mudanças de relações entre os diferentes tipos de agenciamento (ou seja, que
alterem os padrões de relação entre Estado, mercado e sociedade civil ou
comunidade). Isso tenderá a abalar o quadro institucional estabelecido. E
envolverá luta na medida em que houver resistência às mudanças.

O Estado-nação resistirá a perda de poder diante da luta pelo maior


protagonismo das localidades, que começarão a se subtrair ao seu domínio em
uma série de setores de atividade, fazendo parcerias com outras localidades em
prol de objetivos econômicos, sociais, políticos, culturais, ambientais e científico-
tecnológicos comuns. Os poderes estatais locais também resistirão às iniciativas
autônomas das sociedades civis locais, que tenderão, cada vez mais, a conformar-
se como sociedades civis trans-locais.

Em suma, uma vez que isso seja possível, as comunidades se organizarão em


torno da conexão local-global. E o velho Estado-nação, baseado em sua
anacrônica capacidade de construir muros para exercer seu domínio a partir da
separação, será confrontado pelo novo poder da conexão. Ora, tudo isso é parte
do processo de localização.

E tudo isso significa, pelas evidências já percebidas atualmente, que a disputa em


torno da localização tenderá a pautar, em futuro próximo, os embates políticos
dentro do Estado-nação.

Tal será o rebatimento, no interior do Estado-nação, do que chamamos de


revolução do local.

As posições políticas em disputa diante da localização


No primeiro capítulo, na seção que analisa as posições políticas diante da
globalização, foram atribuídas algumas características à posição dos chamados
glocalistas. O overlapping na posição política dos glocalistas com os reformadores
institucionais, com os reformadores globais e com os radicais, dá origem a um
campo de confluência que foi definido como sendo o dos democratas radicais
(pós-liberais e pós-estatistas) (cf. Diagrama 2).

196
No entanto, tais definições foram tomadas a partir de posições e
comportamentos políticos diante da globalização. Será necessário refazer o
esquema tendo agora como referencial a localização. Ainda que consideremos
que a globalização e a localização são aspectos de um mesmo processo de
glocalização, as ênfases (e, portanto, os fatores evidenciados) serão diferentes se
mudarmos os pontos de vista (ver Diagrama 3).

Se, como vimos, o que se chamará de revolução social daqui a algum tempo
serão os processos de mudanças de relações entre os diferentes tipos de
agenciamento (ou seja, que alterem os padrões de relação entre Estado, mercado
e sociedade civil ou comunidade), então o referencial para classificar as diferentes
posições diante da localização – que parece ser, de fato, uma revolução social
stricto sensu e não apenas uma revolução política feita “em nome” de uma
revolução social, como veremos na próxima seção – é a ênfase conferida ao tipo
de agenciamento que deveria ser predominante. Desse ponto de vista existem
três grandes posições: a dos que privilegiam o mercado, a dos que privilegiam o
Estado e a dos que privilegiam a sociedade civil (ou a comunidade). Ou seja, os
neoliberais, os estatistas e os comunitaristas.

Todavia, na prática política os estatistas se dividem em três campos: o dos


„estatistas de direita‟ (compreendendo tudo aquilo que se possa chamar de
“velha” direita, composta, entre outros, por forças políticas possuídas por visões
míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas, como vários grupos
fundamentalistas religiosos e laicos, os ideólogos dos complexos industriais e
pós-industriais-militares e, ainda, uma boa parte dos chefes militares e dos
aparatos de segurança, das correntes políticas nacionalistas e dos estamentos
burocráticos e castrenses), o dos „estatistas de centro-esquerda‟ (ou “novos”
social-democratas) e o dos „estatistas de esquerda‟ (os velhos trabalhistas de base
corporativa e inspiração marxista, os “velhos” social-democratas e socialistas
igualmente de inspiração marxista e, dentre estes últimos, os herdeiros não-
renunciantes do leninismo). Os comunitaristas, por sua vez, também se dividem
em dois campos: o dos „comunitaristas conservadores‟ (ou velhos localistas), e o
dos „comunitaristas inovadores‟ (ou glocalistas, que são os novos localistas).

Como a localização é sempre uma comunitarização, talvez estes últimos


pudessem ser melhor definidos pela denominação de „localistas‟. No entanto isso
poderia criar alguma confusão com os velhos comunitaristas conservadores, que
são localistas em um sentido antigo e “fraco” e que não leva em conta o papel
determinante da conexão local-global (e são, justamente por isso,
antiglobalização). De sorte que parece mais adequado manter mesmo a

197
denominação „glocalistas‟ para designar os comunitaristas inovadores ou os
novos localistas em um sentido “forte” do conceito de localização.

Pois bem. Neoliberais são radicalmente a favor da globalização e não seriam, em


princípio, antilocalização, a não ser na medida em que tendem a não aceitar
quaisquer orientações provenientes de outras esferas (e, portanto, inclusive as
sociais) para o mercado, não se importando muito com a capacidade de
autoregulação das comunidades (mas também a ela não se contrapondo quando
se trate de outras esferas – extra-mercantis – da vida social). Estatistas são, em
geral, antiglobalização e antilocalização, muito embora existam, dentre estes, os
que tendem a ser a favor da globalização ou da localização ou de ambas (uma
parte dos estatistas de centro-esquerda) e os que são radicalmente contra as duas
(os estatistas de esquerda e os estatistas de direita). Por último, como vimos, os
comunitaristas, por definição a favor da localização, se dividem em dois grupos:
os que são antiglobalização (os comunitaristas conservadores) e os que são a
favor (os glocalistas).

Muito embora boa parte dos “novos” social-democratas sejam, em geral, a favor
da globalização (os internacionalistas liberais e os reformadores institucionais da
classificação de Held & McGrew), ainda não é possível divisar claramente as
posições internas nesse campo de modo a definir os que são também a favor da
localização. Um processo de desligamento da referência no Estado-nação está em
curso neste momento no seio dos setores social-democratas de centro-esquerda,
o que deverá levar parte destes setores a abandonar o ideário do estatismo social-
democrata. Provavelmente, uma parte permanecerá estatista (os “novos” social-
democratas anti-liberais), outra parte absorverá uma porção maior do ideário do
liberalismo de mercado, mitigando suas “preocupações sociais” (os “novos”
social-democratas anti-estatistas) e, outra parte, ainda, avançará para posições
pós-liberais e pós-estatistas (talvez uma parte dos reformadores institucionais e
uma parte dos transformadores globais da classificação de Held & McGrew),
assumindo a tarefa de construir uma alternativa de radicalização ou
democratização da democracia e fazendo, portanto, convergir suas posições com
as dos glocalistas, ou melhor, com as de uma parte destes últimos.

E isso porquanto nem todos os glocalistas podem ser considerados como


defensores da radicalização da democracia. Aqui também se encontra uma
variedade de agentes, em um espectro amplo, que vai desde ambientalistas e
ecologistas, passando pelos que participam de movimentos em prol dos direitos
humanos e da cidadania, do feminismo, do ecumenismo e da tolerância cultural,
pela paz mundial, pelo fortalecimento da sociedade civil e pela promoção do
voluntariado, até os dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve

198
em torno de processos participativos de democracia em tempo real ou
cyberdemocacy (envolvendo social networks e civic networks) e de processos de indução
ao desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de
sócio-economia alternativa ou solidária ensaiados em escala local, muitos dos
quais foram considerados como „radicais‟ na classificação de Held & McGrew (2).

Conquanto a maior parte desses agentes já tenha se posicionado em relação às


principais posições políticas em disputa diante da globalização e, muitos deles, já
tenham optado, na prática, pela localização – o que justifica sua inclusão no
campo dos glocalistas – somente alguns poucos já lograram tematizar
politicamente suas opções tendo como referência as duas filosofias públicas mais
expressivas da atualidade – ou seja, o liberalismo de mercado e o estatismo social-
democrata – de sorte a poderem se reivindicar, em conjunto, como democratas
radicais (pós-liberais e pós-estatistas), ainda que existam, dentre eles, os que assim
já se identificam.

É preciso ver que os glocalistas não constituem propriamente uma posição


política com perfil identificável, com o mesmo status, por exemplo, dos
neoliberais e dos social-democratas (velhos ou “novos”). Compõem um campo
extremamente diversificado, cuja maioria das posições não se expressa por
intermédio de organizações e programas partidários ou baseadas em perfis
ideológicos mais definidos. Pertencem, em boa parte, a iniciativas da sociedade
civil de caráter público. São, portanto, em geral, sujeitos políticos de outra
natureza. Qualquer tentativa de classificá-los, hoje, com as categorias utilizadas
usualmente para mapear o espectro político-ideológico – como, por exemplo, as
de “esquerda” e “direita” – se revelaria forçada.

No entanto, de um modo ou de outro, mais cedo ou mais tarde, os glocalistas


vão acabar assumindo perfil ideológico mais definido a medida que os embates
políticos começarem a ser pautados pela resistência do Estado-nação às pressões
“de baixo”, provenientes da luta por maior autonomia para os nìveis sub-
nacionais. Localidades pequenas e grandes, metrópoles, cidades-médias e pólos
regionais e, até mesmo, estados e regiões inteiras de um país, tenderão a se opor
aos ditames do Estado nacional, não propriamente em movimentos de cunho
separatista, porém por mais liberdade para transacionar economicamente,
empreender conjuntamente, celebrar parcerias para desenvolver programas e
iniciativas governamentais e sociais, ambientais, culturais e científico-tecnológicos
e, inclusive, adotar regulamentações, análogas ou recíprocas, que facilitem o
intercâmbio em todas essas áreas, com outras localidades para além das fronteiras
nacionais. Além disso, tenderão a aumentar, internamente, as reivindicações por

199
uma maior descentralização das decisões e pela repartição mais equânime dos
recursos provenientes da receita fiscal.

O velho Estado-nação, já fragilizado pela globalização, dificilmente resistirá a


esse movimento emergente de suas unidades, ainda que possa, em certa medida,
contê-lo e retardá-lo por algum tempo (que pode, inclusive, ser bastante longo).
Portanto, como nada disso será feito sem luta, aumentará o lobby em favor do
localismo, e seus argumentos e instrumentos serão cada vez mais elaborados e
matizados política e ideologicamente (ver Texto 11). Parece ser inevitável, assim,
que os glocalistas acabem assumindo um perfil mais definido do ponto de vista
político-ideológico. E não é improvável que alguns partidos venham a endossar
sua causa ou, mesmo, que surjam novos partidos com ela identificados.

Tudo isso será acompanhado pelo fortalecimento das sociedades civis locais e
pelo crescimento do número de organizações do terceiro setor que não poderão
ser controladas nem pelo poderes estatais centrais, nem pelos intermediários e,
nem mesmo, pelos locais. Tecendo suas próprias redes, tais organizações estarão
linkadas a organizações de outros países, com propósitos semelhantes ou
convergentes, e farão parte, voluntária e conscientemente, da sociedade civil
mundial.

Ora, é muito improvável que surja daì qualquer coisa como um “partido mundial
da sociedade civil”, mas é bem provável que boa parte dessa sociedade civil
mundial, tecida a partir da conexão local-global, formule objetivos, estratégias e
programas congruentes com um ideário glocalista.

Retomando, mais uma vez, as categorias de Held & McGrew, não é difícil ver
porque um ideário glocalista acabará se estabelecendo como uma referência
importante para parte ponderável dos entes e processos que participam da
emergente sociedade civil mundial.

Em primeiro lugar, parece óbvio que os princípios éticos norteadores capazes de


inspirar miríades de organizações constituídas com base no voluntariado e, em
grande parte, voltadas para finalidades públicas, não poderão ser os da liberdade
individual (dos neoliberais) ou do interesse nacional (dos estatistas). Pela sua
própria natureza (de rede) e pelo processo de sua formação (emergente), os
nodos de uma sociedade civil mundial terão razões de sobra para apostar na
capacidade da sociedade humana de gerar ordem espontaneamente a partir da
cooperação. Mais do que isso, porém, tenderão a encarar os princípios de
liberdade e igualdade não como atributos abstratos dos indivíduos ou como o
resultado da aplicação de normas formais sancionadas por um poder central

200
(nacional), mas como funções sistêmicas da participação (voluntária) na
comunidade política.

Em segundo lugar, também parece óbvio que, para boa parte da emergente
sociedade civil mundial, quem deverá governar, no futuro, não são os indivíduos
por meio de trocas de mercado, nem os aparatos estatais-nacionais (“mìnimos”
ou não) e sim as pessoas, por meio de comunidades que se autogovernam e por
meio de mecanismos de governança em múltiplas camadas articulando o local
(em diversos níveis) e o global.

Em terceiro lugar, no que tange às reformas essenciais, não se trata de priorizar


uma eliminação das organizações estatais burocráticas para favorecer a
desregulação dos mercados (como querem os neoliberais) nem, por outro lado,
apenas de fortalecer a capacidade estatal de governar (como querem os estatistas).
Tudo indica que a reforma essencial prioritária, para boa parte das organizações
de uma sociedade civil mundial, deverá ser a reforma do padrão de relação entre
Estado e sociedade com o fito de buscar sinergias ou interações construtivas com
os outros dois principais tipos de agenciamento: o Estado e o mercado.

Em quarto lugar, a forma desejada de globalização não será inspirada pela


ideologia do globalismo econômico – ou seja, mercados livres globais
“corrigidos” por redes de proteção social para os que não conseguirem ser
incluìdos “naturalmente” pela dinâmica da economia – (como preconizam os
neoliberais) e nem poderá ser vista como uma “globalização” que reforce a
capacidade dos Estados nacionais, os quais deveriam implementar arranjos
geopolíticos eficazes para garantir esse intento (como imaginam os estatistas). A
maior parte da sociedade civil mundial que se contrapõe à globalização, se
contrapõe, na verdade, à ideologia do globalismo econômico e tem tudo para
aderir à idéia da formação de uma nova sociedade cosmopolita global (planetária)
como uma rede holográfica de miríades de comunidades (sócio-territoriais e
virtuais – subnacionais e transnacionais) interdependentes.

Por último, em quinto lugar, a modalidade de transformação política mais


desejável por entes e processos de uma sociedade civil mundial não será, por
certo, aquela que prevê uma minimização da regulação burocrática para favorecer
a criação de uma ordem internacional baseada no livre mercado (pregada pelos
neoliberais) e nem a velha reforma estatal e geopolítica (dos estatistas) e sim o
empoderamento molecular das populações, o fortalecimento da sociedade-rede, a
transformação glocalizante da forma atual do Estado-nação (rumo ao Estado-
rede); em suma, a revolução do local como revolução planetária/comunitária em
direção à uma “ecumene planetária”.

201
NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Cf. Franco, Augusto (2003): “Três Gerações de Polìticas Sociais” in Aminoácidos 5;
Brasília: AED, 2003; ou em http://www.augustodefranco.org/conteudo.php?cont=textos&id=P117

(2) Cf. Texto 2.

202
203
Diagrama 3 | Variantes na política da localização

A favor da Antilocalização
Localização

Estatistas de centro-
esquerda (“novos”
social-democratas)
Estatistas de Estatistas
Comunitaristas Comunitaristas Neoliberais esquerda de direita
inovadores conservadores
(Glocalistas)

Social-democratas Social-democratas
anti-estatistas anti-liberais

Social-democratas
pós-estatistas e pós-liberais

Variantes políticas (atuais)


Variantes políticas (tendências)
Democratas radicais
Padrões de influência (pós-liberais e pós-estatistas)
Zona de pontos comuns

204
205
Texto 10 | Local e global: as cidades na globalização
segundo Manuel Castells & Jordi Borja
“Os grandes desafios a que deve responder à humanidade hoje têm uma dimensão global... Tais
desafios, entretanto, requerem respostas locais”.

Manuel Castells e Jordi Borja, no livro “Local e global: a gestão das cidades na
era da informação”, propõem, a tìtulo de resumo de sua obra, “três conjuntos de
conclusões sobre a democracia local, as políticas urbanas e as cidades nas relações
internacionais” (1). Reproduzimos abaixo excertos desse resumo.

“1 – A democracia local na globalização


Um só mundo, um mundo urbanizado: o valor do âmbito local
A economia global, a era informacional, a dissolução dos blocos político-militares
e o fortalecimento das instituições internacionais configuraram um espaço
político mundial. Esta nova situação não é nem mais justa nem mais
regulamentada do que a que vigorou no passado. Pelo contrário: os grandes
grupos econômicos multinacionais atuam em mercados selvagens e deformados.
Os nacionalismos e fundamentalismos agressivos e desesperados explodem e os
mais fracos não encontram, nas organizações internacionais, o apoio de que
necessitam.

Paralelamente, porém, os âmbitos locais e regionais se fortalecem como


configurações econômicas, espaços de identidade coletiva e de participação
política e também como expressão concentrada dos problemas e desafios da
humanidade: crescimento e meio ambiente, desperdício e pobreza, liberdades
possíveis e exclusões reais. As cidades são hoje a manifestação majoritária e
simbólica de nossa forma de vida, de suas contradições e de suas potencialidades.
Mas, ainda que seja verdade que a população urbana tenda a ser majoritária, é
preciso ter em conta que uma parte dessa população é urbana porém não tem os
direitos próprios de cidadania e que o agravamento dos desequilíbrios entre as
zonas urbanas e rurais provocam migrações difíceis de suportar pelas cidades e
que tornam ainda mais pobres as zonas rurais.

206
A cidade como espaço da democracia

A cidade é a possibilidade de construir uma democracia de proximidade, de


participação de todos na gestão dos assuntos públicos e de fortalecimento das
identidades coletivas integradoras. O princípio da subsidiaridade, que deve ser
entendido como a descentralização do poder e das competências e a
disponibilidade de recursos financeiros... [para tornar efetivos o exercício desse
poder e dessas competências, deve vigorar aqui]. A política, como gestão pública
que pode ser exercida a nível local, não deve ser exercida em âmbitos superiores.
É necessária uma política no nível mundial para estabelecer sistemas de regulação
que garantam os grandes equilíbrios e as trocas justas. E é preciso enfatizar a
importância dos Estados como responsáveis pelas políticas de coesão social e de
proteção dos direitos e das liberdades de todos os cidadãos. Mas, além disso,
convém destacar o significado dessa terceira dimensão da política: a local, o
governo das cidades e a participação cívica, tão imprescindível e legítima quanto
as outras duas.

Democracia local é cidadania

Todos os homens e mulheres que vivem nas cidades são e devem ser iguais em
direitos políticos e sociais. Não há cidadania se não há igualdade jurídica, seja
qual for a origem nacional ou étnica. Portanto, é legítimo o direito de todos os
habitantes e de todas as famílias de participar da vida política local. Tampouco há
cidadania se há exclusão social, se se constituem guetos para a população
imigrante, se não se toleram as diferenças e as identidades de cada grupo e se se
tolera a intolerância. Não há cidadania se a cidade como conjunto de serviços
básicos não chega a todos os seus habitantes e se não se oferece esperança de
trabalho, de progresso e de participação a todos. A cidade deve ser um espaço de
fraternidade.

A inovação democrática

As cidades são os lugares privilegiados da inovação democrática. A chamada crise


das instituições representativas e das organizações burocráticas pode ser superada
por meio das múltiplas possibilidades de relação direta eleitor-eleito, do acesso
mais fácil às administrações públicas, da consulta imediata, da cooperação
público-privado e da autogestão social que podem acontecer nas cidades. Para
isso é preciso que as cidades possam inovar em três campos:

207
i) a estruturação de âmbitos de gestão, representação e participação
metropolitanos;

ii) a descentralização interna das grandes cidades;

iii) o estabelecimento de novos mecanismos de participação e a configuração de


novos direitos sociais.

A comunicação, uma condição da democracia cidadã

Não há cidadãos ativos e responsáveis se não estiverem informados e não


tiverem possibilidade real de receber e de responder às mensagens dos atores
públicos e privados que tomam decisões sobre a cidade. Convém estimular a
multiplicação de todas as formas de comunicação dentro das cidades, desde as
mais tradicionais, como os centro cívico-culturais de bairro, até as mais
modernas, como as rádios e televisões locais e à cabo. Ninguém, nenhum agente
público ou privado, pode arrogar-se ao monopólio da comunicação. A
socialização das novas tecnologias de comunicação a serviço da participação
cívica é uma oportunidade histórica.

A gestão da cidade e a cooperação público-privado

O governo local, eleito e representativo, deve optar por liderar a gestão coletiva
da cidade porém não pode monopolizá-la. Todos os âmbitos da vida cidadã
podem ser oportunidades de cooperação público-privado e de participação social.
Não há promoção econômica, proteção ambiental, segurança cidadã,
solidariedade social e tolerância cultural sem a cooperação público-privado. Nem
o monopólio político da administração, nem o mercado exclusivo e excludente
resolverão sozinhos os desafios da cidade atual.

A cooperação público-privado pode ser formalizada em um projeto global de


cidade de caráter estratégico que supere as limitações dos planos tradicionais e
das desregulamentações neoliberais.

A nova autonomia local

A autonomia local não se reduz unicamente – ainda que seja uma dimensão
importante e nem sempre instituída – ao reconhecimento político-legal e à
proteção jurídica de um âmbito de competência [jurisdição] próprio e específico
de ordenação urbana e de gestão de serviços. Tampouco pode apoiar-se na

208
existência de funções claramente separadas entre as distintas administrações
públicas. Hoje a autonomia local, a partir da origem democrática dos governos
locais, deve incorporar novos conteúdos, como:

i) o direito à inovação política para além da estrita uniformização das legislações


estatais (sistemas eleitorais, organização, descentralização, coordenação
metropolitana, participação cívica);

ii) o reconhecimento da capacidade de coordenar as distintas administrações e


empresas públicas para que seja possível aplicar políticas integrais e não setoriais
na cidade;

iii) a possibilidade de assumir competências e funções em âmbitos


tradicionalmente não locais porém fundamentais na atualidade, como a
promoção econômica e o emprego, a justiça e a segurança, a presença
internacional, a gestão dos novos sistemas de comunicação etc.

iv) o direito de exigir do Estado as transferências necessárias de competências


legais e recursos financeiros para poder exercer as funções sociais que se esperam
dos governantes locais em áreas tais como a saúde, a educação, o meio ambiente,
a luta contra a pobreza, a habitação e o transporte público;

v) o reconhecimento do princípio de autonomia financeira como elemento


essencial da autonomia local.

2 – As política urbanas: novos objetivos e novos instrumentos


A cidade: compromisso entre desenvolvimento econômico e qualidade
de vida
Na economia global as cidades devem ser competitivas na escala internacional.
Para isso devem dispor de infraestruturas de comunicação potentes
(especialmente zonas logísticas baseadas nas telecomunicações) e desenvolver
áreas de centralidade articuladas com outras cidades, mas também integradas à
cidade em seu conjunto. Não há uma contradição insuperável entre
competitividade e integração social, entre crescimento e qualidade de vida. As
cidades mais competitivas internacionalmente são, em sua maioria, aquelas que
oferecem maior qualidade de vida aos seus habitantes.

209
Cidades ricas, cidades pobres

Se bem que seja certo que existem zonas de grande pobreza nas cidades mais
ricas e setores opulentos nas mais pobres, não podemos esquecer as enormes
diferenças existentes entre as cidades do mundo mais desenvolvido, nas quais se
verificam um desperdício e uma ostentação escandalosos, e as cidades do mundo
menos desenvolvidas onde a maioria da população não dispõe dos bens e
serviços indispensáveis. Por isso é preciso elaborar e propor modelos de
crescimento que assegurem um uso racional e austero dos recursos nas cidades
ricas e promovam um intercâmbio solidário com as cidades mais pobres.

A cidade de todos: centralidade e mobilidade

Não podemos aceitar a cidade dual, a que consolida centros e periferias


mutuamente excludentes, nem a cidade que segrega social e funcionalmente
populações e atividades. As cidades devem ser policêntricas, os bairros plurais e
as zonas de atividade polivalentes. Cada parte da cidade deve ter sua
monumentalidade, sua simbologia e sua identidade. Ademais, uma cidade
democrática é aquela que maximiza as possibilidades de mobilidade para todos os
seus habitantes. Os sistemas de transportes de massa acessíveis são, muitas vezes,
a condição de acesso ao emprego e a habitação e também um requisito para
construir um sentido e um projeto coletivo de cidade.

Emprego e habitação, condição de cidadania


A desocupação ou a permanência da informalidade obstaculizam o exercício da
cidadania. O governo das cidades deve promover o crescimento econômico,
estabelecer pontes entre a economia formal e a informal e também inovar na
formulação de empregos. Os serviços de proximidade, a ecologia urbana e a
manutenção das infraestruturas e dos equipamentos podem ser, juntamente com
as políticas mais tradicionais de obras e equipamentos públicos, importantes
geradores de emprego.

A habitação é um direito elementar dos cidadãos. Os poderes públicos não


podem, sempre, oferecer imediatamente habitações regularizadas a todos os
habitantes, porém podem, sim, reconhecer os assentamentos humanos,
estabelecer mecanismos de cooperação com seus ocupantes para melhorar suas
casas e fazer chegar a elas os serviços urbanos básicos.

210
Educação e formação, saúde e serviços coletivos como direitos
cidadãos

A educação básica e os serviços básicos de saúde devem ser acessíveis e gratuitos


para toda a população. Não há cidadania sem acesso à educação e à cultura na
cidade, sem formação continuada, sem serviços de saúde acessíveis e sem
serviços coletivos como a água, o saneamento e o tratamento ecológico dos
resíduos. Isso porque o exercício desses direitos condiciona a qualidade da
habitação, o acesso ao emprego e a dignidade da vida familiar. Não há nenhum
argumento econômico que justifique a falta desses serviços para uma parte da
população urbana.

Segurança cidadã como condição de liberdade

O medo gera intolerância e a insegurança nega o exercício da cidadania. A


economia criminal e a pobreza são fatores de insegurança. A marginalidade e a
exclusão de uns gera intolerância nos outros. Uma cidade segura é a que combate
a pobreza e a intolerância, a que multiplica os projetos solidários e favorece a
comunicação entre todos os seus habitantes. Contra a insegurança, é necessário
uma política de integração social e cultural e reconhecer o direito à diferença,
assim como programas integrais de prevenção. Mas também uma justiça eficaz e
próxima, uma polícia cívica, uma administração honesta e acessível e uma
participação possível para todos.

A política preventiva é, por certo, a melhor política de segurança, porém sua


eficiência depende não somente da gestão pública senão também da
responsabilidade individual e coletiva de todos os cidadãos.

O novo contrato urbano

Uma política integral de cidade requer um contrato urbano entre governo e


cidadãos, entre administração e empresas, entre entidades públicas e associações
cidadãs.

Mas exige também uma reformatação das relações entre Estado e poderes locais.
As relações hierárquicas, quando não são justificadas por critérios de
funcionalidade e igualdade, devem ser progressivamente substituídas por relações
contratuais que garantam uma coordenação eficaz entre os agentes públicos e
permitam ao poder local, segundo suas capacidades, exercer uma função de
coordenação do setor público e de participação da sociedade civil.

211
3 – As cidades, atores nas relações internacionais
Multiplicam-se atualmente as relações de intercâmbio e de cooperação entre as
cidades e criam-se múltiplas redes e associações regionais e temáticas de cidades,
tanto de poderes locais como de instituições da sociedade civil. Progressivamente
se aceita a legitimidade, a conveniência e o direito das cidades e em especial de
seus governos democráticos, de atuar na vida política, econômica e cultural
internacional.

O reconhecimento desse direito é hoje um fator principal de democratização das


relações internacionais e é indispensável para dar eficiência aos acordos e aos
programas das conferências e dos organismos internacionais.

O associacionismo local, um objetivo de importância global


A democratização das relacionais internacionais supõe o desenvolvimento das
associações internacionais de cidades e poderes locais e a união entre elas. A
existência de associações fortes e unidas é a melhor base para que se reconheça,
por parte dos Estados, os direitos dos governos locais de participar na vida
internacional e também de uma maior autonomia, de um poder urbano mais
efetivo e de competências e recursos superiores no marco nacional...

O municipalismo no nível mundial

A existência de múltiplas organizações temáticas e regionais expressa a


diversidade e a riqueza do municipalismo. Mas também parece necessário poder
atuar de forma unida no nível mundial e face às grandes organizações
internacionais, hoje exclusivamente intergovernamentais...

A cooperação descentralizada

A participação nos organismos internacionais pode reforçar as atividades de


cooperação e de solidariedade internacionais praticadas pelas cidades.

Para isso as cidades e suas organizações devem poder:

i) participar nos recursos e na gestão dos programas internacionais de


cooperação;

212
ii) administrar uma porcentagem importante do conjunto dos fundos públicos
nacionais destinados à cooperação em cada país desenvolvido;

iii) estabelecer, em certos casos, programas de cooperação com poderes locais e


organizações não governamentais de países menos desenvolvidos sem
dependência de governos nacionais;

iv) articular a cooperação dos poderes locais com as organizações sociais e


culturais, empresas e, em geral, com a sociedade civil;

v) estender a cooperação também como intercâmbio, como benefício mútuo e


combater os obstáculos que opõem a isso.

As cidades e a regularização da globalização

Os grandes desafios a que deve responder à humanidade hoje têm uma dimensão
global, como:

i) a exigência de uma nova economia compatível com a sustentabilidade


ambiental e a progressiva redução da pobreza;

ii) a regulação dos movimentos de população, reconhecimento da mobilidade


universal e da igualdade de direitos e deveres das populações que vivem em um
mesmo território;

iii) a perseguição e punição das múltiplas formas de criminalidade, mas também a


formalização daquelas atividades que acabam sendo mais perniciosas se
permanecerem na ilegalidade;

iv) o controle democrático das novas tecnologias de comunicação e a socialização


do seu uso;

v) a reformas dos Estados e das organizações políticas internacionais,


relativamente inoperantes em virtude de seu déficit econômico, do seu
“burocratismo” organizativo e do seu afastamento da cidadania.

Tais desafios, entretanto, requerem respostas locais. Somente nesses âmbitos é


possível que os acordos normativos e os programas de atualização de adaptem a
cada situação concreta e se estabeleça a indispensável cooperação entre
instituições públicas e sociedade civil.

213
Conseqüentemente, devem ser reconhecidas as cidades, ao lado das nações e seus
Estados e das organizações políticas, econômicas, sociais e culturais
internacionais, o direito e o dever de participar, com a mesma legitimidade, nos
fóruns onde se elaboram e aprovam normas e programas e nos organismos
encarregados de sua aplicação” (2).

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Castells, Manuel & Borja, Jordi (1997). Local e global: a gestão das cidades na era da
informação. Madrid: Taurus, 1997.

(2) Idem.

214
Texto 11 | Michael Shuman e o ideário do localismo
“Nós temos muito mais poder do que imaginamos”.

Michael Shuman (2000), no livro “Going Local: creating self-reliant communities in a


global age”, defende um ponto de vista do localismo, que, em certo sentido,
poderia ser caracterizado como sendo aquele do comunitarismo conservador (se
enfatizarmos os aspectos da auto-dependência econômica que ele prioriza). Mas a
posição de Shuman já contém também elementos de um comunitarismo
inovador (que admitem a interdependência e) que podem caracterizar, em parte,
os novos localistas ou glocalistas. Seguem abaixo alguns excertos do último
capítulo do livro, intitulado “Fazendo História”.

Going local: por quê não começar hoje? (1)


“O falecido Tip O‟Neill costumava dizer que toda polìtica é local. Talvez seja
mais apropriado dizer que toda política significativa é local. A comunidade é o
instrumento mais acessível para a expressão política coletiva, uma vez que é onde
o cidadão tem maiores possibilidades de derrotar as forças da corrupção, do
dinheiro e da apatia, e engajar-se em um processo democrático. É também onde
os indivíduos exercem maior influência sobre suas relações econômicas e
políticas – onde mesmo pequenos gestos podem melhorar a qualidade da vida
cotidiana. E o mais importante, é onde a formulação de políticas adquire uma
face humana.

Dois investigadores da Polícia Metropolitana do Distrito de Columbia visitaram


meu instituto recentemente para discutir o que poderia ser feito para reverter a
epidemia de crimes e assassinatos por arma de fogo que afligiam Washington.
Sua conclusão, após haverem trabalhado para solucionar centenas de homicídios?
Alguém precisa se interessar. Hoje, um número excessivo de jovens cresce em
famílias pobres, chefiadas por apenas um dos pais, nas quais o amor é
problemático ou inexistente. Com a derrocada das economias locais, as
instituições que poderiam ter ajudado (escolas, igrejas, polícia, associações
cívicas) entraram em total desalinho. As cidades ficaram tão grandes e suas
populações tão móveis, que o contato pessoal e a confiança praticamente
desapareceram.

Um dos investigadores, um ítalo-americano criado na realidade nua e crua dos


bairros de Jersey City, lembrou-se de um homem negro que havia prendido.

215
Enquanto estava sendo algemado, o jovem criminoso blasfemava por não poder
ganhar a vida honestamente. O investigador, agindo talvez mais por culpa do que
compaixão, telefonou para um amigo que gerenciava uma oficina mecânica e lhe
pediu que desse um emprego ao jovem quando este deixasse a prisão. O jovem
teve uma segunda chance. Um milagre aconteceu. Alguém se interessou.

O interesse de fato começa em casa. Não há como o Presidente, o Secretário-


Geral da ONU, o Presidente da General Motors e outros mais se interessarem
pelas massas que afirmam representar, já que o interesse requer um
relacionamento pessoal. “Em uma casca de noz”... esse é o motivo pelo qual a
comunidade é importante. Uma comunidade na qual as pessoas se conhecem e se
interessam umas pelas outras é o principal pilar de todas as demais atividades
civilizadas, sejam estas comerciais, políticas, sociais ou espirituais. Se não
pudermos nos interessar por nossos vizinhos, jamais desenvolveremos a
capacidade para nos interessarmos por nossa nação ou pelo mundo. E não há
melhor manifestação de interesse do que criar uma economia local que atenda às
necessidades básicas de cada um de nossos vizinhos e ajudar outras economias
em todo o mundo a fazerem o mesmo.

Dez passos para a auto-suficiência (ou auto-dependência) da


comunidade
Chega de filosofia. O orçamento de sua cidade está no vermelho, empresas-chave
estão deixando a cidade, serviços públicos vitais estão fechando as portas,
instituições cívicas estão se desintegrando, os cidadãos estão se sentindo
desesperançados. O que você pode fazer? Por onde você pode começar?

No transcorrer do meu livro [“Going Local”, citado na nota (1)] há dezenas de


idéias que já estão surtindo efeito em comunidades em todo o mundo: empresas
locais com fins lucrativos, sem fins lucrativos, cooperativas e públicas estão
demonstrando de que forma os negócios podem estribar-se em uma
comunidade. Novos tipos de empresas comunitárias estão atendendo às
necessidades locais de energia elétrica, alimentos, água e materiais. Bancos
especiais, cooperativas de crédito e poupança, e fundos de micro-crédito estão
fornecendo novas fontes de financiamento local. Os sistemas monetários locais
estão induzindo os residentes a optar por bens e serviços locais. E os governos
locais estão acelerando a transição para economias nacionais, destinando
cautelosamente doações municipais, reduções de impostos, investimentos,
contratos, privatizações e contratações. Nenhum desses esforços é uma panacéia

216
e qualquer deles, se empreendido isoladamente, estará fadado e produzir um
impacto não mais do que moderado. É crucial que essas iniciativas sejam vistas
como um pacote, no qual uma política reforça as demais.

O lema das cooperativas Mondragon é “construìmos a estrada na medida em que


viajamos”, e toda comunidade sustentável deve encontrar seu próprio caminho.
Ainda assim, as inovações na economia comunitária, adotadas em conjunto,
sugerem 10 passos básicos confiáveis.

(1) Uma declaração de direitos e garantias da comunidade

Imagine uma placa na parede da Prefeitura de Cleveland com os seguintes


dizeres:

Nós, o povo de Cleveland, buscamos criar uma cidade melhor para nossos filhos, atraindo
empresas de fora, comercializando nossos produtos internacionalmente e garantindo tanto
dinheiro do governo federal quanto possível. Criaremos um bom clima empresarial mantendo os
salários e a proteção ao meio ambiente a um nível mínimo. Endossaremos o comércio livre em
todos os fóruns, mesmo que isso reduza nossa capacidade para controlar nossa economia. E nos
certificaremos de que nossos representantes em Washington tragam para casa mais do que nossa
merecida parcela de verba paroquial.

Suspeito que a maioria dos moradores de Cleveland, se refletissem tempo


suficiente sobre essas palavras, impugnariam sumariamente o prefeito e
reconvocariam a Câmara Municipal.

Os princípios que hoje regem a vida econômica são um desastre. Em todo o país,
políticos locais privilegiam bens de baixo custo em detrimento de um padrão de
vida de alta qualidade; empresas multinacionais em detrimento de empresas
nacionais; dependência da economia global em detrimento da independência por
meio da auto-suficiência (ou auto-dependência); e a sinecura federal em
detrimento do poder local. Esses princípios, bem como essas prioridades e
políticas florescem não porque representam o que o povo americano quer, mas
porque são invisíveis. Um primeiro passo para a auto-suficiência (ou auto-
dependência) comunitária é submeter todos os aspectos da economia local ao
escrutínio e à discussão.

A economia de mercado está fundamentalmente associada à escolha – não


apenas a escolha do consumidor e do produtor – mas também a escolha política.
O que queremos produzir? Como? Onde? Que tipos de bens e serviços são,
efetivamente, essenciais? Qual deveria ser nossa norma para os salários e os

217
direitos dos trabalhadores? Basta que as empresas atendam aos padrões mínimos
em termos ambientais e de segurança pública previstos nas legislações federal e
estadual, ou devemos exigir mais? Será que nós – e nossos vizinhos – deveríamos
ter direito a um salário mínimo, a uma pensão e a um plano de saúde? Que tipos
de estruturas de propriedade são melhores para a comunidade? Muitos de nós
temos sentimentos fortes em relação a essas questões, embora raramente
tenhamos tido condições de expressá-los em público.

Um importante primeiro passo para uma comunidade comprometida com a


auto-suficiência (ou auto-dependência) é uma conversa pública. Toda a
comunidade – e especialmente seus empresários locais – deveria participar de
uma série de reuniões que culminassem em uma declaração de princípios e
práticas econômicos – uma Declaração de Direitos e Garantias da Comunidade.
Esse documento deveria elucidar o que caracteriza o comportamento de uma
empresa amiga ou de um consumidor amigo da comunidade, e ser distribuído a
todas as famílias. Um conselho de cidadãos poderia avaliar o desempenho das
empresas locais e conceder, anualmente, Selos de Reconhecimento pela
Preservação da Comunidade a empresas responsáveis (e retirar os Selos das
irresponsáveis). Esses emblemas, exibidos ostensivamente em produtos
qualificados, vitrines e material de escritório de prestadores de serviços, podem
influenciar as decisões das pessoas em relação a compras, serviços bancários e
investimentos, além de oferecer ao empresariado local um poderoso incentivo
para que cumpra a Declaração de Direitos e Garantias.

Para conquistar o selo, poder-se-ia exigir que uma empresa apresentasse,


anualmente, um relatório completo sobre seu desempenho. Em seu recente livro
“Tyranny of the Bottom Line” (2), Ralph Estes, professor de contabilidade da
Universidade American, descreve, em linhas gerais, os tipos de dados que toda
empresa deve divulgar. Qual a diferença salarial entre os empregados que
recebem a maior e a menor remuneração? A força de trabalho é sindicalizada?
Até que ponto os empregados têm poder para tomar decisões? Quais os
principais insumos à produção como terra, energia, água, aço, concreto e assim
por diante, e quantos desses bens são importados de fora da comunidade? Quais
os níveis anuais de descarga de poluentes e resíduos, e o que está sendo feito para
reduzi-los? Para quais campanhas a empresa contribuiu e quanto gastou com
lobbying? Quantos processos foram instaurados contra a empresa nos tribunais,
quantas multas foram aplicadas por órgãos governamentais e quantas queixas
foram apresentadas no Better Businesss Bureau (órgão de defesa do consumidor dos
EUA)? Que percentual da propriedade da empresa está nas mãos de moradores
da comunidade?

218
A existência de sistemas de classificação de produtos como Relatórios do
Consumidor e Selos Verdes sugere que a participação do governo local não é
necessária. Ainda assim, a Câmara Municipal poderia ajudar realizando
audiências, ratificando a Declaração de Direitos e Garantias e arcando com os
custos de impressão e distribuição do documento. Poderia, ainda, subscrever o
conselho de avaliação, fazer nomeações formais para o conselho e publicar uma
relação de empresas amigas da comunidade (a exemplo do que faz o jornal
quinzenal de Paul Glover, “Ithaca Money”). A Câmara poderia, ainda, realizar
novas audiências anualmente para avaliar emendas.

Uma Declaração de Direitos e Garantias da Comunidade cumpre várias metas.


Ela permite aos residentes afirmar, fundamentalmente, que os fins precedem os
meios – que as empresas serão bem-vindas apenas se servirem à comunidade.
Cria um conjunto de normas públicas sobre comportamento comercial que
protege o público e notifica adequadamente as empresas. A fidelidade de uma
empresa à Declaração de Direitos e Garantias, embora voluntária, traz
conseqüências. Toda vez que um cidadão pensar em fazer uma compra, assinar
um contrato, abrir uma conta bancária, ou investir em valores mobiliários, terá
em mente a relação de empresas qualificadas. Empresas amigas da comunidade
terão uma vantagem comercial sobre as não amigas, as quais tenderão a mudar-se
para outro lugar.

Há precedentes para esse tipo de definição de meta comunitária, embora nenhum


deles tenha abordado a responsabilidade empresarial. Desde 1994, a cidade de
Chattanooga, no estado do Tennessee, vem realizando uma série de reuniões
públicas, nas quais a população visualiza a forma como quer que a cidade mude.
Após as inundações de 1993 haverem devastado a cidade de Pattonsburg, no
estado do Missouri, 250 sem-teto decidiram adotar uma Carta de Sustentabilidade
e garantir que os esforços de reconstrução prosseguissem com base em princípios
ecológicos. Essas pessoas reconstruíram suas casas com a melhor orientação para
captar energia solar, expandiram pântanos para tratar da poluição por meio de
processos biológicos e instalaram um sistema de recuperação de metano em
fazendas de porcos adjacentes. Esses esforços acompanharam a visão
tecnocrática de sustentabilidade exposta pelo Conselho de Desenvolvimento
Sustentável do Presidente e não se pronunciaram sobre mobilidade empresarial.
Entretanto, demonstraram o potencial de uma comunidade para articular uma
Declaração de Direitos e Garantias.

219
(2) O relatório do estado da cidade

Estudiosos e políticos debatem incessantemente a escala apropriada de uma


economia viável. A maioria dos economistas influentes, de Adam Smith a Karl
Marx, via o Estado-nação como a unidade apropriada de planejamento. Jane
Jacobs observou as forças econômicas das grandes cidades. Os arquitetos
urbanistas concentram-se cada vez mais em regiões e “cidades marginais”.
Adotar uma posição excessivamente rígida em relação a essa questão, entretanto,
significaria negligenciar inevitavelmente os desafortunados que vivem em
comunidades não priorizadas, tais como pequenas cidades, guetos, ou regiões de
mineração. Conforme enfatizado no meu livro [“Going Local”], mesmo pequenas
comunidades têm a oportunidade de gerar sua própria eletricidade, cultivar seus
próprios alimentos, reciclar água e madeira, transformar bens locais em roupas e
abrigo, criar economias de serviço viáveis e participar de redes de produtores
mais abrangentes. As cooperativas Mondragon tiveram início na década de 1940
em uma cidade com 8 mil habitantes, e mesmo após seu espetacular sucesso
econômico a população não ultrapassa 25 mil habitantes. O potencial para criar
uma economia local viável e auto-suficiente (ou auto-dependente) pode residir
em assentamentos com apenas mil habitantes – talvez até mesmo algumas
centenas. Quem pode saber o que aconteceria até que novas experiências sejam
feitas? Como argumenta Wess Roberts “Quem não erra não está se esforçando o
suficiente” (3). Descartar qualquer comunidade como economicamente inviável
parece uma atitude prematura, prosaica e mesquinha.

Em praticamente toda comunidade na América há uma mina de ouro que os


economistas ainda precisam descobrir. Entre seus veios e depósitos podem ser
encontrados recursos humanos desempregados, instituições cívicas subutilizadas,
e ativos econômicos rejeitados. Em um maravilhoso livro intitulado “Building
Communities from the Inside Out”, John P. Kretzmann e John L. McKnight, da Rede
de Inovações de Bairros da Universidade Northwestern mostram, passo a passo,
de que forma uma comunidade pode identificar, avaliar e aproveitar esses
recursos (4). Há muitos tipos de ativos humanos potencialmente úteis, mas ainda
não aproveitados: a inventividade dos jovens; as habilidades esquecidas dos
aposentados; as mentes ativas dos portadores de necessidades especiais; o
instinto de sobrevivência das mães que vivem da assistência social e dos sem-teto;
e os talentos inexplorados de artistas locais. Há associações subutilizadas que
formam a sociedade civil, especialmente nas comunidades menores da América.
Dirija ao longo de uma rodovia e observe quem “adotou” cada milha: grupos de
escritores, de músicos, de artistas; a Câmara de Comércio; os Clubes Elks,
Kiwanis, Moose e Rotary; grupos de jovens como o Clube 4-H, as Bandeirantes e
a Liga Juvenil; clubes de futebol e equipes da Liga Infantil; Associações de Pais e

220
Mestres e grupos de centros de recreação extracurricular; clínicas de saúde da
mulher e centros locais de Planejamento Familiar; comitês locais de Democratas
e Republicanos; grupos liberais e conservadores dedicados a causas sociais;
instituições beneficentes como a United Way; vigilâncias de bairros; comitês ad
hocs organizadores de eventos no Natal e 4 de julho; e instituições de
atendimento ao público sem fins lucrativos como igrejas, hospitais e
universidades públicas. Finalmente, contabilize os ativos inanimados que foram
descartados: prédios vazios, maquinaria ociosa, terrenos vazios, áreas industriais
abandonadas (conhecidas como “campos marrons”), energia desperdiçada e água
mal utilizada.

Uma comunidade pode compilar essas informações em um Relatório do Estado


da Cidade anual. O processo de reunir-se periodicamente para inventariar forças
locais pode ser um exercício de união poderoso para uma comunidade. Se
distribuído a todos os lares e empresas, o estudo pode se transformar em material
de conversa pronto para ser utilizado em mesas de centro e salas de espera.
Cópias extras podem ser colocadas em escolas e bibliotecas públicas, ou em uma
página na Internet. O que se precisa não é apenas um instantâneo de ativos, mas
sim um filme de tendências. O processo de elaboração do Relatório do Estado da
Cidade ano após ano, permitirá à comunidade mapear o que está melhorando e o
que está piorando – e decidir o que fazer a seguir.

Elizabeth Kline, professora da Universidade Tufts, desenvolveu um conjunto de


indicadores comunitários para mensurar a segurança econômica, a integridade
ecológica, a qualidade de vida e a atribuição de poderes políticos (5). Para aferir a
segurança econômica, Kline recomenda que uma comunidade monitore fundos
de aposentadoria, contas de poupança, empréstimos, taxas de inflação, salários,
impostos e distribuição de renda. Como a ecologia local é parte integrante da
segurança econômica, a professora também sugere um inventário do consumo:
os recursos renováveis locais (energia, árvores, peixes, vida silvestre, terra
agricultável e água) estão sendo utilizados de forma sustentável? Os recursos não-
renováveis, como petróleo e cobre, estão sendo substituídos por recursos
renováveis? Para aferir a saúde ecológica, Kline recomenda que uma comunidade
avalie áreas pantanosas, a erosão do solo, a diversidade de espécies e o
abastecimento de água. A comunidade também deve monitorar a formação de
lixo e resíduos tóxicos e a poluição do ar e da água. Obviamente, os indicadores
de qualidade de vida incluem taxas de longevidade, divórcio, fome, falta de
moradia, doenças e criminalidade. Finalmente, há indicadores de atribuição de
poder. Nesse aspecto, Kline faria com que a comunidade analisasse o número de
jardins comunitários, as taxas de participação em eleições e reuniões da câmara
municipal, bem como o progresso em relação à igualdade de gênero e raça em

221
diversas profissões. Os indicadores são quantitativos, mas a escolha do que aferir
e de como aferir é inerentemente subjetiva. Kline e outros defensores de
indicadores, como a Redefining Progress, sediada em São Francisco, incentivam as
comunidades a adaptar essa lista genérica aos valores e às necessidades locais.

Algumas cidades dos EUA passaram da teoria para a prática. O programa


Sustainable Seattle, lançado em 1980, monitora mais de cem indicadores no
Condado de King (6). Em Jacksonville, na Flórida, os moradores definiram 74
indicadores-chave, além de uma série de metas comunitárias a serem cumpridas
até o ano 2000 (7). Grupos populares de Jacksonville utilizaram os indicadores
para pressionar as autoridades eleitas a despoluir os rios locais e priorizar os
gastos públicos na redução das taxas de evasão escolar (8).

Até o momento, os indicadores parecem se sair melhor na aferição do


desempenho ambiental do que da auto-suficiência (ou auto-dependência) ou do
progresso social. No decorrer do tempo, as comunidades deveriam desenvolver
modelos de insumo-produto de suas próprias economias, a fim de descobrir,
exatamente, onde estão as dependências. Até que ponto a poupança e os fundos
de aposentadoria estão sendo reinvestidos na comunidade? Quais recursos
naturais estão sendo importados? Quais insumos de produção poderiam fornecer
a base para indústrias de alto valor agregado? Qual é a balança comercial da
comunidade? Será que os melhores alunos estão deixando a comunidade? Na
realidade, muitos dos dados necessários para responder a essas perguntas
constarão dos relatórios anuais apresentados pelas empresas locais.

Várias cidades adotaram esses tipos de análises de importação-exportação, as


quais consideraram extremamente úteis (9). Em 1979, uma instituição sem fins
lucrativos denominada Community Economics analisou os padrões de propriedade,
renda e gastos em Oakland, Califórnia. Essa análise detectou três tipos de
vazamento da economia local que ajudaram a explicar a persistência da pobreza
na cidade: US$ 43 milhões por ano sendo transferidos para proprietários ausentes
em pagamentos de aluguel; US$ 40 milhões indo para bancos de fora para o
pagamento de juros de crédito imobiliário; e US$ 150 milhões sendo gastos por
consumidores em lojas localizadas fora dos limites da cidade. Oito anos mais
tarde, Chester, uma pequena cidade ao sul da Filadélfia no estado de
Pennsylvania, analisou suas próprias possibilidades para adotar a substituição de
importações. Com a assistência do Instituto Rodale e da Igreja Presbiteriana, a
comunidade produziu um estudo de quatro volumes documentando a
porcentagem ínfima de aquisições de energia, alimentos e serviços bancários
realizadas dentro da comunidade que estava privando a população local dos
benefícios de qualquer multiplicador econômico. No cômputo geral, apenas 16

222
cents de cada dólar ganho por um morador de Chester vinham de empresas
locais, e surpreendentes 87 cents de cada dólar gasto destinavam-se a
proprietários de fora da comunidade. O Projeto de Renovação Comunitária do
Instituto Rocky Mountain utilizou esse tipo de análise para ajudar pequenas
cidades rurais a se revitalizar.

(3) Empresas-âncora
Se bem elaborado, o Relatório do Estado da Cidade ressaltará oportunidades
comerciais maduras de três formas. Primeiramente, necessidades não atendidas
sugerem novos mercados para as empresas locais. Pode ser que os empresários,
ao verem seus vizinhos famintos e desnutridos, construam estufas de plantas ou
entrem no ramo da agricultura urbana. Como salienta o Professor Michael
Porter, da Harvard Business School, essas demandas são especialmente atraentes
para novas empresas por serem tão parcamente atendidas atualmente. “Embora a
renda familiar média no interior da cidade de Baltimore seja 39% mais baixa do
que no restante da cidade”, escreve o professor, “o poder de gasto agregado é
praticamente o mesmo e o gasto estimado no varejo, por estabelecimento, é dois
terços maior no interior do que no restante da cidade” (10).

Em segundo lugar, recursos não utilizados ou subutilizados sugerem insumos


promissores para a produção. Pilhas de estrados de madeira rejeitados constituem
a matéria-prima para a Big City Forest, sediada no Bronx, que corta, remodela e dá
polimento na madeira, transformando-a em peças deslumbrantes de mobiliário.
Cadeiras, sofás, escrivaninhas, brinquedos e computadores de segunda mão –
todos tão velhos que nem mesmo a Goodwill tocaria qualquer deles – são
considerados inestimáveis pela Urban Ore, em Berkley, Califórnia, especializada na
restauração, no conserto e na revenda desses produtos abandonados.

Finalmente, toda dependência constitui uma oportunidade para as empresas da


comunidade. Pode ser que os consumidores, ao constatar que a eletricidade que
utilizam está sendo transmitida de usinas de carvão localizadas a centenas de
milhas de distância, desejem gastar mais um penny ou dois por quilowatt/hora
em alternativas de geração local. O Distrito de Serviços de Utilidade Pública
Municipal de Sacramento (SMUD) lançou um programa de “tarifação verde” em
1994, no qual os usuários residenciais eram convidados a pagar uma sobretaxa de
US$ 6,00 ao mês para ter um aparato fotovoltaico de 4 quilowatt preso ao teto de
suas casas e ligado na grade comunitária (11). Até o momento, mais de dois mil
clientes se ofereceram voluntariamente para participar do programa.

223
Uma comunidade comprometida com a meta de auto-suficiência (ou auto-
dependência) em sua Declaração de Direitos e Garantia propiciará, obviamente,
um lar mais receptivo para essas empresas de substituição de importação. Uma
comunidade que tenha como meta atender à maior parte de suas necessidades de
alimentos com produtos cultivados localmente, induzirá os empresários a criar
um mercado de agricultores ou mercearias especializadas. Se os consumidores
estiverem dispostos a pagar um preço ligeiramente mais alto por pães feitos
localmente, os empresários naturalmente abrirão padarias no bairro.

Nada é mais persuasivo do que um bom exemplo. Há uma geração, a reciclagem


era uma forma esquisita utilizada pelos Escoteiros para ganhar alguns trocados
recolhendo e revendendo jornais velhos. Mas quando um punhado de operações
de reciclagem bem sucedidas apareceu em todo o país, os imitadores
proliferaram. Hoje, o negócio de reciclagem fatura mais de US$ 30 bilhões e mais
de 4 mil empresas filiaram-se a uma associação comercial intitulada National
Recycling Coalition (12). A despeito dos pronunciamentos insistentes de políticos
sem imaginação, de jornalistas céticos e de empresas que investiram na
incineração – para os quais a economia da reciclagem jamais funcionará – 200
cidades dos EUA hoje ganham dinheiro reciclando mais da metade de seu lixo
sólido (13).

A mera existência de uma ou duas empresas comunitárias bem sucedidas – que


utilizem insumos locais, produzam bens de qualidade, operem em harmonia com
o meio ambiente, vendam para consumidores locais, tratem bem os trabalhadores
e propiciem lucros a acionistas locais – deveria inspirar outros a fazerem o
mesmo. Como disse certa vez o falecido Kenneth Boulding, tudo que existe é
possível (14). Essas novas empresas criarão novos empregos, impulsionarão as
compras locais por parte dos empregados e ampliarão a base de impostos local.
Na medida em que aumentar sua demanda por insumos à produção, essas
empresas estarão motivadas a se estabelecer. Jane Jacobs sugere que “ao
substituir antigas importações, uma cidade que adota a substituição de
importações não importa menos do que o faria caso não adotasse a substituição,
mas passa a fazer outras aquisições em lugar do que não mais necessita trazer de
fora. A vida econômica como um todo se ampliou, a ponto de a cidade que
substitui importações ter tudo o que tinha anteriormente, mais seu complemento
de importações novas e diferentes (15).

Auto-suficiência (ou auto-dependência) comunitária não significa isolamento.


Significa, sim, ampliar a base econômica para produzir os bens imprescindíveis à
população local e concentrar os recursos existentes em um número maior de
indústrias de valor agregado. Significa uma economia mais bem protegida contra

224
mudanças abruptas no preço e no fornecimento de produtos importados.
Significa empenho para manter uma fatia cada vez maior do multiplicador
econômico em casa. O processo de substituição de importações nunca termina.
Tão logo um conjunto de dependências é atendido, novas dependências tomam
seus lugares. Mas cada nova dependência se torna cada vez menos vital para a
sobrevivência de toda a comunidade. Novas dependências invariavelmente abrem
novas oportunidades comerciais locais, desde que haja empresários locais
preparados para aproveitá-las.

(4) Faculdades de administração amigas da comunidade

Poucos de nós têm experiência na administração de uma empresa mas, vale


lembrar, o mesmo acontecia com o padre espanhol que iniciou Mondragon. Se
você já tem o impulso de servir à sua comunidade, se você trabalha como
voluntário servindo sopa aos pobres ou contribui para uma instituição de
caridade local, pense em redirecionar essas boas intenções para a criação de uma
empresa comunitária. Se você não está disposto a assumir a tarefa sozinho,
convide outras pessoas com experiência administrativa para se tornarem seus
parceiros em um novo empreendimento.

Uma lição importante de Mondragon é o papel central do treinamento. Muitos


de nós que temos apenas uma formação em ciências humanas e recursos
financeiros limitados temos o potencial de nos tornarmos bons empresários. As
comunidades carecem de instituições de treinamento capazes de lhes
proporcionar os meios e a confiança necessários para que sejam bem sucedidas.
Você pode incentivar seus programas de educação de adultos e faculdades
comunitárias com cursos de curta duração, como acontece em Milwaukee, a
priorizar cursos de contabilidade e gestão, em detrimento do bridge e do tênis.
As escolas de segundo grau podem receber financiamento comunitário para
incrementar seus programas de treinamento vocacional. As instituições locais
sem fins lucrativos podem criar escolas de treinamento. Em 1994, meu instituto
criou a Escola de Ação Social e Liderança para Ativistas (SALSA), que oferece
cursos noturnos em administração de instituições sem fins lucrativos a mais de
1.500 adultos anualmente, na área de Washington.

A transformação das faculdades de administração e dos departamentos de


economia das universidades é outro imperativo. Essas instituições hoje
privilegiam o lucro pessoal em detrimento do serviço comunitário. Lewis
Mumford certa vez observou que a sociedade industrial transformou todos os
sete pecados capitais – à exceção da preguiça – “em virtudes positivas. A cobiça,
a avareza, a inveja, a gula, a luxúria e o orgulho são as forças propulsoras da nova

225
economia” (16). Um estudo surpreendente da Universidade Cornell constatou
que os alunos do curso de pós-graduação em economia, quando tinham a
oportunidade de contribuir para instituições beneficentes, doavam metade do
valor doado pelos alunos de outros cursos (17). Seu impulso caridoso na
realidade diminuía na medida em que esses alunos acumulavam mais anos de
treinamento, e atingiam um nível mínimo quando eles se tornavam professores.

A economia e a administração de empresas precisam se tornar profissões com os


mais elevados princípios de caridade e serviço público. E seus praticantes devem
atender aos mais altos padrões de conduta profissional e ética. É absurdo que os
estados exijam que futuros médicos, advogados e contadores se submetam a
exames extenuantes, durante vários dias, a fim de lhes conceder a licença para o
exercício da profissão, enquanto aos futuros empresários basta assinar um cheque
de US$ 200,00 em troca do privilégio de administrar uma empresa. Uma
comunidade pode elaborar um exame de ética empresarial para assegurar que
apenas as empresas administradas por indivíduos comprometidos com o bem-
estar da comunidade recebam o Selo de Reconhecimento pela Preservação da
Comunidade.

(5) Financiamento comunitário


Uma importante inovação de Mondragon foi associar criação empresarial,
treinamento e transações bancárias. Mesmo que mercados promissores e
empresários dedicados estejam disponíveis, nenhuma empresa pode iniciar suas
atividades sem capital. Segundo a Administração de Pequenas Empresas dos
EUA, uma em cada quatro novas empresas fracassa em dois anos e cerca de 70%
em oito anos em decorrência, essencialmente, da subcapitalização (18).

Quase todos nós temos poupança e conta corrente, cartões de crédito, contas de
aposentadoria e Plano Keogh (conta de plano de aposentadoria com tributação
diferida, idealizada para funcionários de pequenas empresas ou profissionais
autônomos) em instituições da nossa escolha, com base em conveniência, taxas
de retorno e grau de amicabilidade – mas não em lealdade à comunidade.
Qualquer pessoa interessada no futuro que persistir nessa prática estará jogando
dinheiro fora. Mesmo que seu banco atual apresente uma boa pontuação em
relação aos critérios da Lei de Re-investimento na Comunidade, há grandes
possibilidades de que ele não esteja financiando empresas da comunidade.

Há muitas formas para localizar operações bancárias, conforme sugere no meu


livro [“Going Local”]. Uma opção seria persuadir seu atual banco (quer seja um
banco comercial, uma sociedade de poupança e empréstimo imobiliário, ou uma

226
cooperativa de crédito) a criar uma divisão especial que invista localmente e
permita que clientes com espírito cívico depositem suas poupanças nessa conta.
Uma outra opção seria convencer sua associação de bairro a criar uma
cooperativa de crédito comunitária. A Administração Nacional de Cooperativas
de Crédito certificou e segurou cooperativas de crédito com ativos totais que não
ultrapassavam US$ 100 mil. Se tiver dificuldade para levantar capital suficiente
para fazer jus ao seguro federal, você pode pressionar sua Câmara Municipal a
comprar ações, transferir folhas de pagamento para o banco, ou oferecer um
empréstimo ou uma garantia de empréstimo.

Quando um banco da comunidade pendurar uma placa e anunciar que há


disponibilidade de crédito para empresas da comunidade, os empresários locais
se apresentarão naturalmente. Caso isso não aconteça, o banco deve encontrá-los
e treiná-los, talvez por intermédio de programas destinados a micro-empresas.
Ou o banco pode criar um fundo especial para o desenvolvimento da
comunidade, no qual empréstimos sem juros são trocados por ações e alguma
responsabilidade gerencial, como faz Mondragon. Um banco comunitário pode
apoiar mutuários empresariais, incentivando todos os seus clientes a fazer
negócios com essas empresas. Pode enviar uma brochura mensal a seus clientes,
com publicidade. Ou, ainda, criar um sistema comercial interno entre todos os
beneficiários de empréstimos, como faz o Círculo Econômico na Suíça.

A necessidade de investidores locais aumentará na medida em que as empresas se


expandirem. Um esforço conjunto precisará ser feito para convencer seus
vizinhos a transformar suas pensões e outros ativos de ações e títulos globais em
locais, e fundos mútuos sem preferência de colocação em fundos mútuos locais
destinados a empresas da comunidade. Um aliado importante no
redirecionamento de fundos de pensão pode ser a mão de obra. Sindicatos no
Canadá criaram fundos de investimento nas províncias de Québec, Ontário,
Columbia Britânica e Manitoba, que hoje investem US$ 3,1 bilhões em pequenas
e médias empresas amigas do trabalhador. Sindicatos de funcionários municipais
nos Estados Unidos podem exercer pressão para que seus fundos de pensão
sejam reestruturados de forma semelhante e reinvestidos localmente.

Você pode ficar nervoso em fazer experiências com seus investimentos se eles
forem essenciais – como o são para a maioria dos americanos – para a educação
de seus filhos e sua própria aposentadoria. Essa pode ser a área na qual mesmo
aqueles de nós com maior espírito comunitário ficaríamos relutantes em sacrificar
ainda que um ou dois pontos percentuais de nossa taxa de retorno.

227
O risco, entretanto, não é exclusivo do investimento local. A maioria de nós
esquece que praticamente todos os nossos investimentos hoje correm risco – e
não estão segurados. Se o mercado de ações entrasse em colapso amanhã, sua
segurança financeira de longo prazo poderia estilhaçar-se. Assim, a questão real é
se você considera a atual economia de cassino, apinhada de especulação e
baseada na exploração de trabalhadores de baixa renda e em ecossistemas em
ruínas mais arriscada, no longo prazo, do que uma economia local revitalizada.
Mesmo que o dinheiro de sua aposentadoria se saia bem em fundos de
investimento convencionais, vale a pena procurar saber quão útil ele seria se sua
aposentadoria precisar ser gasta em uma comunidade que está se desintegrando.

Analistas financeiros de correntes majoritárias argumentam que quaisquer


restrições em um universo de investimentos – quer a preferência recaia sobre
empresas socialmente responsáveis ou sobre empresas amigas da comunidade –
reduzirão as taxas de retorno. Entretanto, há evidências cada vez mais fortes de
que carteiras socialmente responsáveis se desempenham tão bem quanto as
irresponsáveis (20); Por exemplo, John Guerard Jr., diretor de pesquisas
quantitativas da Vantage Global Advisors, comparou o desempenho de um
universo de 1300 ações com um universo selecionado de 950 empresas
socialmente responsáveis. Um dólar investido na carteira não-selecionada em
1987 se teria transformado em US$ 2,77 ao final de 1994. Um dólar investido na
carteira socialmente responsável se teria transformado em US$ 2,74 – um empate
estatístico.

Entretanto, será que o risco aumenta quando restrições geográficas são impostas?
Talvez. Mas o sucesso surpreendente de Mondragon, onde os fundos de pensão
dos trabalhadores foram re-investidos em cooperativas, deveria deter os céticos,
o mesmo acontecendo com a experiência do Fundo de Solidariedade de Quebec,
acima mencionado, que investe estritamente em empresas sediadas na província.
Um levantamento realizado em 1992 constatou que 87% dos investidores do
Fundo, que incluía tanto membros de sindicatos quanto outros investidores,
estavam satisfeitos com a taxa de retorno.

Ainda que se constate, em última análise, que os limites geográficos impõem


alguns riscos, há uma solução intrigante. Comunidades auto-suficientes (ou auto-
dependentes) poderiam criar parcerias nacionais – talvez até mesmo globais –
entre si. Poderiam reunir algumas de suas carteiras de aposentadoria e investir nas
empresas comunitárias umas das outras. Isso diversificaria as opções de
investimento e reduziria o risco, mas de tal forma que continuasse a beneficiar
empresas locais.

228
(6) Moeda comunitária

As compras locais andam de mãos dadas com os investimentos locais e nada os


facilita mais do que o dinheiro local. O LETS, o HOURS de Ithaca e outros
sistemas demonstram que o planejamento, o gerenciamento e o recrutamento de
participantes com vistas à criação de uma moeda comunitária é um incrível
projeto de organização que nos dá a percepção de quem vive na comunidade, que
cidadãos estão comprometidos com a auto-suficiência (ou auto-dependência),
que bens e serviços estão disponíveis localmente e onde eles estão disponíveis.
Esse projeto também fortalece as relações entre empresas e consumidores locais
e ratifica a avaliação pública de que toda compra é um ato cívico.

Nenhuma empresa deve receber o Selo de Reconhecimento pela Preservação da


Comunidade a menos que aceite a moeda local. (Essa exigência não é na
realidade punitiva, desde que a empresa esteja autorizada a aceitar outras moedas
dentro e fora da comunidade). O princípio subjacente é simples: qualquer
empresa que se recusa a aceitar a moeda local está se recusando a participar de
um esforço comunitário para incrementar o multiplicador local e merece ser
afastada. Se você não apoiar a comunidade, a comunidade não o apoiará mais.

Os organizadores devem tentar convencer o governo local a aceitar pagamentos


de impostos em moeda local. Essa atitude, por sua vez, forçaria o governo em
questão a certificar-se de que um número maior dos cheques de sua folha de
pagamentos fosse emitido em moeda local e de que um número maior de seus
contratos e suas compras envolvesse empresas locais. Os sindicatos de
funcionários municipais poderiam até mesmo reivindicar aumentos de salários na
moeda da comunidade.

A administração de um sistema de moeda comunitária oferece uma oportunidade


importante para que os membros da comunidade discutam a economia local e
planejem seu desenvolvimento. Debates sobre regras de entrada (o sistema
deveria envolver apenas empresas com o Selo de Reconhecimento pela
Preservação da Comunidade?) levantam importantes questões políticas sobre o
significado de auto-suficiência (ou auto-dependência) local. A decisão sobre o
suprimento correto de recursos financeiros democratiza e desmistifica escolhas
que hoje são feitas em segredo pelos economistas da Diretoria do Federal
Reserve, que se preocupam muito mais em manter a inflação nacional baixa do
que em criar empregos e estabilizar comunidades.

229
(7) Uma prefeitura amiga da comunidade

Todos os passos acima podem ser dados por indivíduos e organizações que
atuam oficiosamente. Não há lei nos Estados Unidos que proíba cidadãos que
trabalhem em conjunto de criar um conjunto de princípios, conceder selos,
compilar um Relatório do Estado da Cidade, estabelecer empresas e bancos
locais, treinar empresários com espírito comunitário, empreender uma campanha
em prol de investimentos locais e emitir uma moeda comunitária. Para toda e
cada uma dessas atividades, a participação do governo local não é necessária –
embora possa acrescentar experiência, legitimidade e financiamento.

Ainda assim, conforme detalhado no meu livro [“Going Local”], um governo local
comprometido com a auto-suficiência (ou auto-dependência) da comunidade
pode acelerar o ritmo de transformação. Pode garantir que os únicos
beneficiários de investimentos, contratos, compras e financiamento de títulos
locais sejam empresas da comunidade. Pode ajudar a igualar fornecedores locais
de insumos e trabalhadores a produtores locais. Pode criar fundos de bolsas de
estudo que incentivem os alunos melhores e mais inteligentes a voltar para casa
após a universidade. Pode reestruturar impostos sobre rendas, riquezas e recursos
para privilegiar empresas da comunidade.

Essas iniciativas constituem a plataforma que os políticos locais deveriam ser


instados a endossar. Esqueça o pacote da Toyota e o acordo da Wal-Mart. Não se
distraia com projetos jurássicos de estádios ou centros de convenções. Não
permita mais que os políticos negligenciem a agenda econômica local,
impressionando as pessoas com seus discursos sobre a criminalidade ou as mães
que vivem da assistência social...

Se o Prefeito ou os membros da Câmara Municipal de sua cidade se recusam a


adotar as posições econômicas que efetivamente importam, pense em competir
com eles. Poucas, do meio milhão de autoridades locais eleitas na América, são
políticos profissionais. Muitas delas são voluntários que também trabalham como
advogados, médicos, professores, comerciantes, empregados de linhas de
montagem ou ativistas. Você não precisa de muito dinheiro para conquistar uma
vaga na Câmara Municipal (embora, até que uma reforma séria no financiamento
de campanhas ocorra, alguma arrecadação de fundos seja necessária). E em uma
cidade de tamanho médio, um candidato dedicado concorrendo, digamos, em um
reduto de dez mil pessoas, pode conhecer a maioria dos eleitores visitando igrejas
e empresas, postando-se em intercessões movimentadas e estações de trem e
percorrendo, de porta em porta, cada zona eleitoral.

230
(8) Reforma política

Uma comunidade que inicia a transição para a auto-suficiência (ou auto-


dependência) logo encontrará inimigos poderosos. Empresas multinacionais que
estejam perdendo mercados locais e privilégios especiais do governo certamente
retaliarão. Elas farão lobbying junto a governos estaduais e nacionais para retirar os
poderes de governos locais e continuarão a utilizar tratados comerciais e salas de
tribunal cordiais para, sempre que possível, burlar os incômodos da democracia.
Mas sua reação mais provável – e mais perigosa – será apertar o cerco aos
governos locais. Desde que a América continue comprometida com um mercado
livre no poder político, no qual votos e influência podem ser vendidos a quem
pagar o melhor preço, as empresas multinacionais com enormes cofres
financeiros poderão fazer lobbying e campanhas, e persuadir com agrados e
subornar políticos para que se posicionem contra a auto-suficiência (ou auto-
dependência) comunitária. O princípio central da política neste país passou de
uma pessoa/um voto para US$1/um voto.

Os americanos apresentam os índices mais baixos de participação em eleições em


todo o mundo desenvolvido. Enquanto três em cada quatro eleitores qualificados
no norte da Europa votam em suas eleições nacionais, apenas um em cada dois
eleitores americanos participa de eleições presidenciais (21). Das nove
democracias ocidentais recentemente estudadas, os Estados Unidos também
apresentaram a taxa mais baixa de participação em eleições municipais e a maior
lacuna entre as taxas de participação municipal e nacional (22). Não é segredo o
fato de que os americanos estão cada vez mais frustrados com seu sistema
político e desistindo de participar.

A percepção amplamente difundida é a de que votar não faz a menor diferença.


O jornalista William Greider escreve: “O que os desiludidos estão dizendo, o que
tenho ouvido em muitos lugares diferentes, é que a política das eleições lhes
parece fora de propósito – desconectada de qualquer coisa que efetivamente
importe” (23). Se as eleições e as polìticas podem ser compradas pelos ricos, se a
escolha de candidatos é sempre entre seis e meia dúzia, se os eleitos
aparentemente fazem muito pouco, de qualquer forma – por que se preocupar?
A reforma política, portanto, é um passo essencial para a criação da auto-
suficiência (ou auto-dependência) comunitária.

Pelo menos quatro tipos diferentes de reforma seriam úteis. Primeiramente,


sérias restrições ao financiamento de campanhas poderiam ajudar a disseminar a
convicção cínica de que a política é apenas para os ricos. Enquanto o dinheiro for
uma parte cada vez mais importante da política americana, os pobres relutarão

231
em concorrer a um cargo eletivo ou em participar do sistema político. Um dia,
um Supremo Tribunal Federal mais sábio poderá reconsiderar os princípios de
Buckley v. Valeo, que equiparou a habilidade irrestrita para gastar dinheiro em
campanhas políticas à liberdade de expressão da Primeira Emenda Constitucional
(24). Até lá, os governos locais deveriam refletir sobre a criação de sistemas de
financiamento público de campanhas eleitorais, os quais um candidato poderia
optar por não aceitar (como Buckley exige), mas ao preço da humilhação pública.

Um segundo problema são os partidos políticos cansados da América. A forte


manifestação da candidatura de Ross Perot à presidência em 1992 (a melhor
exibição de um terceiro partido desde 1912) sugere uma desilusão crescente da
população com o sistema bipartidário. Diferentemente de seus irmãos europeus,
os partidos políticos da América não representam ideologias bem definidas,
coerentes. Os estrangeiros que observam a política americana ficam surpresos em
ver como são pequenas as discrepâncias entre Republicanos e Democratas. Hoje,
os líderes nacionais dos dois partidos, por exemplo, se opõem à re-distribuição
de renda aos pobres, aos cortes no orçamento militar, ao sistema único de saúde,
a direitos mais amplos aos sindicatos e à reforma do financiamento de
campanhas. Ambos os partidos são dominados por empresas globe-trotters e
pelos ricos, com as organizações de origem popular – tanto de direita quanto de
esquerda – marginalizadas. O surgimento de novos partidos políticos poderia
acentuar as posições dos partidos existentes, aumentar a probabilidade de que
pelo menos um partido representasse o interesse das comunidades e tornar o
debate público mais informativo e participativo. O fato de que a maioria das
eleições locais é não-partidária, na realidade permite que os candidatos se alinhem
com partidos embriônicos e vençam as eleições.

Uma terceira reforma valiosa seria limitar os mandatos, que contém a promessa
de colocar um fim no controle monopolista de cargos políticos por parte de uma
categoria profissional de políticos relativamente pequena. Quanto mais tempo
um político permanecer no cargo, maior a probabilidade desse político ser
capturado por interesses especiais. Limites de mandatos aumentam a
probabilidade de que novatos, não-profissionais e pessoas pobres concorram a
um cargo eletivo. Vozes populares também poderão ser mais bem ouvidas nas
eleições se os cidadãos tiverem poder para colocar iniciativas nas cédulas e a
opção de votar em “nenhum dos nomes acima” (o que exigiria que os partidos
retrocedessem e escolhessem outros candidatos).

Um aspecto final da atribuição de poderes ao cidadão é a criação de formas para


que as pessoas participem nos períodos entre as eleições. As comunidades podem
criar – a exemplo do que fez Berkeley – uma ampla rede de comissões

232
administradas por cidadãos dedicadas a diferentes questões de política que afetam
a comunidade. Essas comissões poderiam ter o poder de fazer pequenas doações
e submeter leis às câmaras municipais. Se os membros das comissões forem
eleitos, eles incrementarão os tipos de inspeções e equilíbrios no governo
municipal que podem ajudar a evitar a insularidade e a corrupção.

(9) Lobby em favor do localismo


Sugeri no meu livro [“Going Local”] muitas formas pelas quais as comunidades
têm um interesse crítico na formulação de políticas regional, estadual, nacional e
internacional. As autoridades eleitas localmente precisam conduzir a revolução da
devolução, para que recebam poderes de fato sobre a economia local e não
apenas mais responsabilidades sem a capacidade de arrecadar receitas para pagar
por elas. Elas precisam forçar o governo nacional a re-direcionar as políticas
comerciais da nação para longe da autocracia centralizada da Organização
Mundial do Comércio e em direção aos princípios matizados do federalismo
americano. Elas devem convencer o Congresso a abolir a previdência social para
empresas e bancos que não sejam leais às comunidades.

Hoje, um governante eleito localmente que empreende viagens oficiais a


Washington está vulnerável a acusações de estar viajando às custas dos cofres
públicos e negligenciando os problemas locais. Esse tipo de pensamento político
está obsoleto. Se os políticos locais não re-definirem a agenda federalista, os
capitães das empresas destruidoras de comunidades o farão. Literalmente,
milhares de lobistas de empresas multinacionais estão trabalhando nos corredores
do poder em Washington, Nova York, Bruxelas e Genebra.

A estruturação da agenda para lobistas comunitários constitui uma oportunidade


para discussões públicas, apresentação de insumos e planejamento. A câmara
municipal – ou talvez um órgão subsidiário – pode realizar uma série de
audiências anuais sobre a agenda nacional e internacional da comunidade.
Posteriormente, deve-se investir em lobistas profissionais (ou pelo menos em
uma parte do tempo de um lobista), para que lutem regularmente pela agenda.

(10) Interlocalismo (25)

Os profissionais da auto-suficiência (ou auto-dependência) comunitária devem


estar atentos ao paroquialismo e ao isolacionismo. Uma comunidade que se retira
do mundo não pode assumir suas responsabilidades sérias como uma parte do
mundo. Durante muito tempo, equiparamos a cidadania global responsável à
interdependência econômica. Como salientam os cientistas políticos, entretanto,

233
a interdependência econômica será construtiva apenas se o poder entre os atores
for equilibrado (26). A interdependência que entrega o poder a forasteiros
implica custos econômicos de longo prazo e cria o potencial para um grave
conflito. Poucas comunidades no mundo de hoje têm poder sobre empresas
independentes que orientam a globalização. Nesse contexto, uma maior
interdependência econômica assegura maior dependência, vulnerabilidade e
exploração.

Um caminho mais responsável para uma comunidade com espírito global é


deslocar-se em direção à auto-suficiência (ou auto-dependência) e ajudar outras
comunidades em todo o mundo a fazerem o mesmo. Como? Transferindo
inovações tecnológicas e de políticas que fomentem a auto-suficiência (ou auto-
dependência), especialmente para as comunidades mais pobres do mundo, que
necessitam desesperadamente de uma nova abordagem ao desenvolvimento
sustentável. Mais de duas mil comunidades de países ricos no Hemisfério Norte
têm algum tipo de relação com um igual número de comunidades no Hemisfério
Sul. Os americanos chamam essas relações de “cidades irmãs”; os europeus de
“elos” ou “ligações”. Algumas vezes elas existem apenas no nome, mas
freqüentemente incluem intercâmbios de cultura, informações, tecnologia,
finanças, experiências e políticas. As melhores dessas relações não fazem isso por
lucro pessoal, mas sim pelo bem público.

Muitos participantes dessas relações cidade-a-cidade falam a língua da auto-


suficiência (ou auto-dependência) comunitária e trilham o caminho do capital
móvel. Os prefeitos americanos que apóiam relações com cidades-irmãs, bem
como os líderes da organização que sustenta esses laços (a Sister Cities
International), proclamam que novos contratos para empresas voltadas para a
exportação são medidas de sucesso. Uma melhor medida seria o ponto até o qual
os parceiros municipais, trabalhando em conjunto, podem reduzir sua
dependência do comércio.

A cidade-Estado de Bremen, na Alemanha, por exemplo, está disseminando


tecnologia de biogás para ajudar as comunidades a se tornarem mais auto-
suficientes (ou auto-dependentes) em energia. Desde 1979, a cidade co-
patrocinou três conferências sobre biogás, financiou um boletim técnico
intitulado “Fórum do Biogás” e apoiou projetos de demonstração por intermédio
da Associação de Pesquisa e Desenvolvimento de Bremen para o exterior
(BORDA). Durante a década de 1980, a associação gastou mais de US$ 300 mil
para distribuir digestores de biogás em comunidades no Malí, na Etiópia e na
Tanzânia.

234
Por intermédio da Agência de Desenvolvimento Internacional do Canadá, 22
cidades canadenses transmitiram a funcionários municipais africanos as
habilidades técnicas necessárias para planejar sistemas mais eficientes de água e
transporte. Cada cidade canadense participante deverá fornecer três
administradores ou técnicos urbanos para trabalhar por um curto período de
tempo na África e receber dois ou mais profissionais de sua comunidade parceira
africana por um período de três semanas.

Para lutar contra a devastação de florestas tropicais, os europeus forçaram


comunidades nacionais e internacionais a encontrar substitutos para a madeira
tropical. Dois terços das comunidades dos Países Baixos adotaram uma política
oficial para reduzir “sempre que possìvel” o consumo de madeira tropical em
projetos municipais. Graças às cartas escritas por prefeitos colaboradores, a
campanha gradualmente atingiu outros municípios na Europa e no Japão.

Mais de 150 municípios europeus, inclusive 75 dos Países Baixos e 20 da Áustria,


estão lutando contra o aquecimento global por intermédio da Aliança do Clima.
As cidades participantes do norte comprometeram-se a reduzir suas emissões de
dióxido de carbono à metade até 2010, por meio de conservação de energia,
melhor transporte público e compras seletivas (não adquirindo, por exemplo,
produtos que contenham clorofluorcarbonos ou madeira-de-lei tropical). Essas
cidades também estão prestando assistência financeira e jurídica a comunidades
da América do Sul, essencialmente a comunidades indígenas, no levantamento,
na demarcação e na proteção da floresta tropical Amazônica.

Todos esses exemplos demonstram que a busca da auto-suficiência (ou auto-


dependência) não leva inevitavelmente ao isolamento. Nada disseminará a
economia pró-comunitária mais rapidamente do que a colaboração entre cidades
comprometidas com a busca conjunta da auto-suficiência (ou auto-dependência).
Comunidades em todo o mundo precisam compartilhar informações sobre o que
está funcionando em termos de serviços bancários, moedas locais, agricultura
urbana, produção de energia renovável, etc. O Conselho Internacional de
Iniciativas Ambientais Locais (ICLEI), sediado em Toronto, abrange atualmente
266 cidades que pagam uma média de US$ 2.000,00 em contribuições para
compartilhar tecnologia de ponta e formulação de políticas destinadas à proteção
do meio ambiente. A Organização das Cidades Unidas (UTO), em Paris, e a
União Internacional de Autoridades Locais (IULA), em Haia, estão promovendo
colaboração interlocal na área de desenvolvimento sustentável. Outras redes
globais de cidades estão lutando por direitos humanos, controle de armamentos e
responsabilidade empresarial. Na medida em que aumentar o número de
comunidades que utilizam a Internet e outras formas de telecomunicação, esse

235
tipo de compartilhamento de informações e de colaboração globais deverá se
tornar mais fácil e barato.

A nova aldeia global


Em um mundo com um número cada vez maior de comunidades auto-
suficientes (ou auto-dependentes), ainda haverá empresas comerciais e do tipo
globe-trotters, embora a expectativa seja de que o comércio venha a envolver
bens e serviços menos essenciais e essas empresas tenham menos poder sobre a
vida das pessoas. Um dos desafios contínuos para as comunidades será como
gerenciar essas forças externas. Aqueles que se preocupam há muitos anos com a
mobilidade de capital, esperavam criar um código de conduta empresarial global.
A idéia percorreu as ante-salas das Nações Unidas durante anos e se tornou uma
demanda padrão em declarações de países não-alinhados e do Terceiro Mundo.
O Centro de Corporações Transnacionais da ONU chegou a esboçar esse
código. Mas as empresas globais reagiram com uma vingança. O jornal “The Wall
Street Journal” e outros meios de comunicação conservadores ridicularizaram esses
esforços e, sob a liderança dos EUA, o Centro da ONU foi extinto. O resultado
é que as instituições globais hoje estão promovendo liberdade empresarial por
meio da OMC, em vez de responsabilidade empresarial por meio das Nações
Unidas.

Ainda que a abordagem centralizada à responsabilidade empresarial esteja


agonizando, é possível conceber-se uma carta social esboçada e implementada no
nível popular. Imagine centenas de comunidades em todo o mundo se reunindo,
formulando um código de conduta padrão para as empresas, criando uma câmara
de compensação central de informações sobre o comportamento das empresas e
concordando em investir em e adquirir produtos de empresas responsáveis.
Poder-se-ia idealizar um Selo de Reconhecimento pela Preservação da
Comunidade global, que um consórcio de comunidades e organizações não-
governamentais (ONGs) poderia conceder a empresas responsáveis perante sua
força de trabalho, sua base comunitária e ecossistemas.

Uma comunidade auto-suficiente (ou auto-dependente) poderia, em última


análise, empenhar-se no sentido de negociar apenas com outras comunidades
comprometidas em aderir a esse sistema global de classificação. O comércio
global prosseguiria, mas apenas entre parceiros comprometidos com uma visão
de comércio centrada na comunidade. Uma conseqüência dessa estratégia
poderia ser o surgimento de dois blocos globais de comunidades, cada um deles
adotando diferentes paradigmas econômicos e negociando com diferentes

236
empresas. O “bloco neoliberal” de comunidades poderia se beneficiar de
produtos mais baratos e taxas mais altas de retorno para seus investimentos, mas
também teria de suportar condições de trabalho em deterioração, colapso do
meio ambiente, e instabilidade comunitária. O “bloco socialmente responsável”
poderia acabar pagando preços mais altos, mas gozaria de uma melhor qualidade
de vida. Embora as comunidades e as empresas no último bloco constituíssem,
inicialmente, uma minoria, no transcorrer do tempo – na medida em que um
número maior de trabalhadores no bloco neoliberal perdesse seu emprego e
salário, os problemas de poluição e produtos perigosos se multiplicassem e
organizações ecológicas, trabalhistas e de mudança social surgissem para
responder a esses problemas – um número cada vez maior de comunidades e
empresas neoliberais provavelmente começasse a optar por uma melhor
qualidade de vida em detrimento de noções obsoletas de eficiência econômica. A
mera existência de um bloco alternativo daria aos políticos e ativistas
comprometidos com uma nova economia do local e interlocal uma meta concreta
para que se organizassem.

Os estágios iniciais dessa colaboração interlocal já podem ser vistos no


movimento denominado “comércio justo”, que começa a surgir, no qual os
compradores de países desenvolvidos adquirem bens diretamente dos produtores
de países pobres. Nos Países Baixos, mais de 300 comunidades e 11 (de 12)
governos de provìncias estão comprando o “café da solidariedade” de pequenos
produtores em países como a Guatemala e a Nicarágua, a um preço ligeiramente
superior, a fim de garantir que os produtores tenham renda suficiente para
ganhar a vida dignamente. Ao evitar a figura do intermediário, o qual geralmente
abocanha uma parcela considerável dos lucros, os negociantes justos conseguem
vender o café em grão a grandes empresas de torrefação e distribuição a preços
competitivos. Os compradores podem identificar o café da solidariedade pelo
selo de aprovação “Max Havelaar”. Em apenas quatro anos, o café da
solidariedade capturou mais de dois por cento do mercado de café nos Países
Baixos e, juntamente com o chá e o chocolate da solidariedade, está sendo
introduzido na Bélgica, na França, na Alemanha, em Luxemburgo, na Suíça e no
Reino Unido.

Hoje há cerca de 500 “lojas do Terceiro Mundo” na Alemanha, 300 Wereldwinkels


(“lojas mundiais”) nos Paìses Baixos e 20 “Casas do Terceiro Mundo” na
Dinamarca, muitas das quais recebem apoio financeiro de autoridades locais.
Essas lojas vendem artesanato, roupas e outros produtos de países pobres, com
pouco ou nenhum lucro. Os artigos são adquiridos de pessoas ou cooperativas
no Terceiro Mundo que paguem salários dignos e ofereçam condições de
trabalho decentes. Exposições e literatura nas lojas ajudam a informar o cliente

237
sobre a fabricação dos produtos; os lucros algumas vezes são empregados para
pagar por aulas sobre a economia global. Essas lojas também podem ser
encontradas nos Estados Unidos, embora a maior parte das transações
comerciais lícitas no país seja feita pelo correio, por intermédio de empresas
como a One World Trading e a Pueblo to People.

Um bloco global de comunidades socialmente responsáveis, solidificado por


meio de um comércio justo e institucionalizado com contribuições das cidades
membros, ajudaria a solucionar os demais desafios de se tornar local. A fim de
fornecer a quantidade cada vez mais reduzida de produtos associados a grandes
economias de escala, essa nova organização internacional poderia intermediar a
formação de redes de fabricação flexíveis. Poderia criar uma carteira de
aposentadoria diversificada e geograficamente dispersa, que investisse em
empresas da comunidade. Poderia, ainda, converter moedas locais em bases mais
justas do que atualmente o fazem o Fundo Monetário Internacional e os grandes
bancos. Poderia criar um novo Banco Verde Global, que fornecesse capital inicial
para cooperativas de crédito comunitárias e fundos de microcrédito em todo o
mundo. E poderia atuar junto à OMC e outros organismos internacionais, no
sentido de que regras anticomunitárias fossem revistas ou rejeitadas. O universo
de iniciativas interlocais possíveis obedece apenas aos limites de nossa
imaginação.

A estratégia liliputiana
Será que uma economia do século XXI pode ser localizada? Os céticos
provavelmente se lembrarão da história do Grande Salto para o Futuro. Em
1958, Mao Tsé-tung e o Partido Comunista da República Popular da China
arrastaram milhões de agricultores relutantes pelo caminho da industrialização,
dando ordens a 25 mil comunas para que estabelecessem suas próprias fábricas.
Milhares de usinas de pequena escala foram montadas às pressas na zona rural
para produzir aço, cimento, fertilizante, energia e maquinário, com tecnologias
inadequadas, sem coordenação central e sem o apoio e as peças necessários. O
resultado foi o caos, e a União Soviética imediatamente decidiu retirar seus
técnicos da China. As imagens do Grande Salto que persistem até os dias de hoje
são as de usinas dilapidadas e ociosas.

Já que em nenhuma parte do meu livro [“Going Local”] há recomendações no


sentido de que o governo confisque à força e converta as empresas existentes em
estruturas de propriedade da comunidade, a analogia com o Grande Salto é
absolutamente irrelevante. As empresas comunitárias devem ser formadas

238
voluntariamente, não por decreto do governo; devem ser adaptadas às
necessidades de cada comunidade e não a uma ideologia central; devem ser
orientadas pelas realidades de um mercado não subsidiado e não a despeito
dessas realidades. Ademais, mesmo na medida em que pequenas empresas da
comunidade atenderem às necessidades locais, empresas maiores da comunidade
ou redes de empresas da comunidade continuarão a produzir e oferecer produtos
complexos, tais como computadores e aviões, que as comunidades não podem
produzir, de forma eficiente, por conta própria. As empresas comunitárias são
ferramentas para a evolução da auto-suficiência (ou auto-dependência) e não um
princípio totalitário de organização para cada parte da economia.

Mas o Grande Salto suscita uma importante pergunta: Será que a ação
comunitária pode efetivamente definir a agenda econômica de uma nação? Ou do
mundo? As forças das empresas móveis parecem tão grandes, tão globais, tão
refratárias, que qualquer coisa feita no nível local pode parecer insignificante –
algo como combater a seca com um conta-gotas. Mas nenhuma empresa pode
existir sem clientes e investidores. Retire qualquer um deles e até mesmo a
empresa mais poderosa sucumbirá. Nossos próprios poderes para adquirir bens
ou ações próprias são o calcanhar de Aquiles das gigantescas bestas comerciais
que vêm destruindo as comunidades.

Iniciei minha própria jornada na política há vinte anos, durante uma campanha
contra a energia nuclear. Naquela época, a disseminação da energia nuclear e de
suas “externalidades” (resìduos radioativos, fusões, acidentes com combustíveis
usados, proliferação de armas) parecia inevitável. Havia setenta usinas nucleares
em operação, e as empresas de utilidade pública falavam da necessidade de se
construir pelo menos um reator por dia até a virada do século. Dezenas de
milhares de manifestantes tentaram deter uma indústria nuclear de mais de US$
100 bilhões. Esses manifestantes se atiravam na frente de tratores e eram presos
nos locais de construção de reatores. Enfrentaram dezenas de batalhas em
tribunais desafiando as análises de saúde, segurança e meio ambiente e insistiram
na modificação dos projetos. Promoveram plebiscitos e submeteram projetos de
lei às assembléias legislativas estaduais para fechar usinas nucleares.

No final, entretanto, essas iniciativas não mais importavam. Algo muito mais
sutil, inesperado e poderoso acabou por destruir a indústria nuclear: as pessoas
pararam de comprar mais eletricidade. Na medida em que os americanos
começaram a detectar e eliminar os usos ineficientes de energia, as projeções de
demanda de energia despencaram. Às empresas de utilidade pública restou definir
não se as próximas usinas de energia deveriam ser nucleares, mas se novas usinas
de energia seriam de fato necessárias.

239
Há uma importante lição em tudo isso. Por que nos exaurirmos lutando contra
empresas que se comportam mal? Se criarmos nossas próprias empresas com
base em uma nova visão de responsabilidade social e se optarmos por comprar e
investir apenas nessas empresas, as outras empresas se adaptarão ou morrerão. Se
criarmos um número ainda que pequeno de comunidades auto-suficientes (ou
auto-dependentes), nas quais todo morador tenha um emprego decente que
produza bens essenciais para um e para todos, outras comunidades nos visitarão,
aprenderão conosco e nos seguirão. Nós temos muito mais poder do que
imaginamos.

Grandes momentos de decisão na história da humanidade foram definidos por


lutas cruciais. O Renascimento foi uma luta entre aqueles que abraçavam o mito e
a superstição e aqueles que buscavam a verdade empírica. Os séculos 18 e 19
testemunharam uma luta entre monarcas que se agarravam ao poder por direito
hereditário e democratas que acreditavam nos direitos naturais de todas as
pessoas à auto-governança. O século 20 tem visto uma luta pela definição de
progresso entre engenheiros sociais que buscavam conquistar a natureza e
ecologistas que buscavam alcançar um equilíbrio com essa mesma natureza. A
grande luta do século 21 será travada entre aqueles que acreditam em produtos
baratos e aqueles que acreditam em lugares. Essa é uma luta que desafia
definições ideológicas simples. Os defensores de produtos baratos hoje dominam
os maiores partidos políticos e administram praticamente todas as Prefeituras no
País. Mas em todo o espectro político há dissidentes que se preocupam com os
custos para a natureza, para as famílias e para as comunidades. Eles querem saber
se o futuro da civilização e da humanidade deve ser definido por um desejo
ilimitado de consumir.

Muitos de nós sabemos, em nossos corações, que há muito mais na vida do que a
próxima liquidação no shopping. Muitos de nós ansiamos por laços mais
profundos com nossas famílias, nossos vizinhos e nosso meio ambiente.
Desejamos desesperadamente adquirir um senso de espaço no qual possamos
alimentar a cultura e nos orgulharmos de nossa história. Trabalhamos longas
horas para legar aos nossos filhos e netos os tipos de comportamento econômico
que dêem prosseguimento à prosperidade. Por que apenas imaginar o que seria
possível fazer em seu quintal? Por que apenas sonhar com um passado remoto
ou um futuro distante? Por que não começar hoje?”

240
NOTAS E REFERÊNCIAS DE MICHAEL SHUMAN

(1) Shuman, Michael (2000). Going Local: creating self-reliant communities in a global age. New York:
Routledge, 2000. Michael H. Shuman (shuman@igc.org), ex-diretor do Institute for Policy Studies,
atualmente é diretor da Village Foundation‟s Institute for Economics and Entrepreneurship
(www.villagefoundation.org). As notas e referências seguintes são do autor.

(2) Ralph Estes, “Tyranny of the Bottom Line: Why Corporations Make Good People Do Bad Things”
(São Francisco: Berrett-Koehler, 1996), pags. 220-31. Veja também Thad Williamson, "The
Content of Ethical Impact Reports: A Two-Tiered Proposal", Tikkun, Vol. 12-4, pags. 36-40.

(3) Wess Roberts, “Victory Secrets of Attila the Hun” (Nova Iorque: Dell Trade, 1993), pag. 59.

(4) John P. Kretzmann e John L. McKnight, “Building Communities from the Inside Out”
(Evanston, IL: Centro para Temas Urbanos e Pesquisas sobre Políticas, 1993).

(5) Elizabeth Kline, "Sustainable Community Indicators" (monografia) (Medford, MA: Consórcio
pela Sustentabilidade Regional, 1995) e Elizabeth Kline, "Defining a Sustainable Community"
(monografia) (Medford, MA: Consórcio pela Sustentabilidade Regional, 1993).

(6) Richard Douthwaite, “Short Circuit” (Devon, Reino Unido: Resurgence, 1996), pag. 336.

(7) Ibid., pag. 337.

(8) Alex MacGillivray e Simon Zadek, "Accounting for Change" (monografia) (Londres: Fundação
New Economics, outubro de 1995), pag. 26.

(9) Um bom resumo desses estudos pode ser encontrado em Christopher Gunn e Hazel
Dayton Gunn, “Reclaiming Capital: Democratic Initiatives and Community Development” (Ithaca, Nova
Iorque: Editora da Universidade de Cornell, 1991), pags. 37-53.

(10) Michael E. Porter, "New Strategies for Inner-City Economic Development", “Economic Development
Quarterly”, fevereiro de 1997, pag. 14.

(11) John J. Berger, “Charging Ahead: The Business of Renewable Energy and What It Means for
America” (Nova Iorque: Henry Holt, 1997), pag. 61.

(12) Brenda Platt, Pesquisadora Sênior do Instituto para a Auto-Dependência Local,


Comunicação Pessoal , 16 de abril de 1997.

(13) Ibid.

(14) Kenneth Boulding, “Stable Peace” (Austin, Texas: Editora da Universidade do Texas, 1981),
pag. 93.

(15) Jane Jacobs, “Cities and the Wealth of Nations” (Nova Iorque: Vintage, 1984), pag. 42 (ênfase
no original).

241
(16) Lewis Mumford, “The Transformation of Man” (Nova Iorque: Harper, 1956).

(17) Douthwaite, nota 6 supra, pag. 334.

(18) Brian Headd, Encarregado de Ações de Advocacy da Administração de Pequenas


Empresas dos Estados Unidos, Comunicação Pessoal, Julho 1997.

(19) Sherman Kreiner e Kenneth Delaney, "Labour-Sponsored Investment Funds in Canada"


(monografia) (Winnipeg, Canadá: Crocus Fund, 1996).

(20) Patrick McVeigh, "Study SRI No More", “Investing for a Better World”, 15 de outubro de 1996,
pag. 1. Veja também Estes, nota 2 supra, pag. 238.

(21) Robert L. Morlan, "Municipal vs. National Election Voter Turnout: Europe and the United States",
“Political Science Quarterly”, Outono de 1984, pag. 462 (Tabela 1).

(22) Ibid., pags. 462-65.

(23) William Greider, “Who Will Tell the People: The Betrayal of American Democracy” (Nova Iorque:
Editora Simon & Schuster, 1992), pag. 22.

(24) Buckley v. Valeo, 424 U.S. 1 (1976).

(25) Os exemplos citados nesta seção foram extraídos de Michael H. Shuman, “Toward A
Global Village: International Community Development Initiatives” (Londres: Editora Pluto Press,
1994).

(26) Robert Keohane e Joseph Nye, Jr., “Power and Interdependence”, 2a ed. (Glenview, IL: Scott,
Foresman, 1989).

(27) Shuman, nota 25 supra, pags. 30-31.

242
Localização e revolução do local
A localização é o aspecto objetivo da revolução do local, enquanto que seu aspecto
subjetivo é a existência de uma crescente variedade de agentes, conectados em rede e
dedicados a promover movimentos de resistência e de geração de identidade – que
dão origem a comunidades de projeto – a partir das novas temáticas do
ambientalismo, dos direitos humanos e da cidadania, do feminismo, do ecumenismo
e do pacifismo, do fortalecimento da sociedade civil e da promoção do voluntariado e,
sobretudo, dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de
processos de democracia participativa em redes sociais e de indução ao
desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-
economia alternativa ou solidária ensaiados em escala local.

Em geral usamos, como equivalentes, as expressões „transformação social‟,


„mudança social‟ ou „revolução social‟ para designar, pelo menos, duas coisas
diferentes: i) o “conjunto de forças cegas e impessoais, tendências estruturais e
contradições às quais os agentes humanos estão expostos como objetos, ou
como vìtimas passivas a quem a mudança “acontece”; e ii) o “resultado de
esforços deliberados e intencionais de agentes humanos racionais para dar conta,
individual ou coletivamente, de necessidades e problemas que eles encontram na
sua vida social, econômica e polìtica” (ver Texto 12).

A velha idéia de revolução estatal-nacional


A solução para tal ambigüidade do conceito de „revolução‟, encontrada pelos
movimentos políticos revolucionários, de inspiração marxista, do último século,
foi a de tentar fundir esses dois grandes sentidos, estabelecendo que as
revoluções são feitas, sim, por agentes humanos, sujeitos intencionados que, em
virtude do seu trabalho militante de organização e ação políticas reuniriam,
portanto, as condições subjetivas necessárias para fazer eclodir ou desencadear o
processo revolucionário a partir da fixação de objetivos, da elaboração e
aplicação da estratégia (ou seja, do planejamento dos passos do caminho para
atingir tais objetivos), da formulação da tática (ou dos modos de atuação capazes
de materializar a estratégia em circunstâncias diversas) e, enfim, de uma forma
organizativa fulcral portadora de um programa (isto é, de um conjunto de
medidas que, ao serem tomadas, dão desdobramento ao projeto estratégico). No

243
entanto, tais agentes só poderiam lograr seu intento caso estivessem consteladas
as condições favoráveis ao desenvolvimento do processo revolucionário (e essas
condições seriam objetivas, ou seja, independentes da intenção e da posição dos
sujeitos).

É óbvio que esse sentido prático ou pragmático de revolução manejado pelos


movimentos revolucionários, em geral identificados com o marxismo-leninismo
ou herdeiros não-renunciantes dessa tradição, é orientado por razões políticas. As
condições para realizar o projeto exigem um poder suficiente para implementar o
programa, o que requer, por sua vez, a posse dos instrumentos capazes de
viabilizar a sua execução. Esse poder foi encarado como o poder político
decorrente da conquista do Estado por parte dos movimentos revolucionários.
Portanto, o primeiro objetivo seria empalmar o poder de Estado, apossar-se dos
seus instrumentos ou aparelhos (os meios de coerção e dissuasão, administração,
controle e regulamentação ou normatização, cooptação ou sedução). Ora isso
implica uma luta para desalojar os velhos ocupantes desses aparelhos. Essa luta é
a revolução política – passo necessário para desencadear a revolução social
propriamente dita.

A estratégia passa, assim, a ser compreendida como uma urdidura, um plano para
“dar o bote” invertendo a correlação de forças, seja por meio da violência, seja
por meios pacíficos, em geral pela via eleitoral nas democracias. Mas em qualquer
caso o modelo político de atuação é fornecido por essa espécie de “teoria do
bote”. A conquista do aparelho de Estado reflete uma mudança na correlação de
forças existente na sociedade – de vez que exige uma certa “acumulação”, que
desequilibre a balança do poder a seu favor, por parte do contingente
revolucionário (em geral organizado em um partido ou em uma frente de
partidos e outras organizações), sem o que não é possível adquirir o comando
dos centros decisórios (em geral as estruturas do governo central), tomando-os
pela emprego da violência ou ganhando uma eleição decisiva. Para tanto, é
necessário “acumular forças” para “dar o bote” na hora certa.

Evidentemente tudo isso se baseia em uma certa visão adversarial da política


(vista como um campo de relações amigos x inimigos), segundo a qual a
sociedade se divide em grupos com interesses e opiniões contraditórios os quais,
em algum momento próximo a um desfecho final, se agruparão sempre em
grandes campos em confronto. A revolução política é, então, sempre uma luta,
uma sucessão de combates, uma guerra (com ou “sem derramamento de sangue”
– termos, aliás, com o quais Mao definia a própria política) (1). Há, sempre, um
momento decisivo, aquele que define qual grupo vai empalmar o poder de
Estado (daì a “teoria do bote”).

244
Depois, é claro, restam por fazer todas as tarefas substantivas. O poder de
Estado é o meio, o instrumento fundamental para realizar tais tarefas
(consubstanciadas no programa revolucionário). Mas depois é depois. O
instrumento fundamental a ser conquistado para que se possa realizar as medidas
é tão importante (e coloniza de tal maneira a consciência dos agentes) que o
objetivo intermediário da sua conquista embaça a visão do objetivo final (a
implantação do projeto revolucionário de transformação da sociedade).

Assim, a conquista e a retenção pelo maior tempo possível do poder conquistado


não raro se constitui, na prática, como o objetivo final do projeto revolucionário.
Por quê? Porque mesmo tendo ocupado os aparelhos do Estado é necessário
mantê-los nas mãos até que se possam consumar as medidas do programa.
Como, em geral, a posse desses aparelhos e a hegemonia política estabelecida
dentro das instituições governamentais não são suficientes para assegurar a
realização dessas medidas, torna-se necessário, sempre, conquistar ainda mais
poder para garantir a sua consecução. Então se, por exemplo, um partido
conquistou o executivo central de uma república, cabe conquistar também o
legislativo e controlar (ou pelo menos estabelecer um relacionamento que
subordine) o judiciário e o ministério público, tanto em âmbito nacional quanto
em todas as demais esferas onde tais poderes republicanos constitucionalmente
se estabelecem. E se isso não basta, cabe controlar (ou, pelo menos, pressionar
para “domesticar”) os meios de comunicação. E finalmente, cabe exercer um
controle sobre a (ou reduzir os graus de liberdade da) sociedade – o mercado e a
própria sociedade civil –, sobre os (ou dos) seus entes e processos, em todas as
esferas.

É óbvio que essa idéia de revolução – esboçada aqui com tal ênfase em certos
aspectos que a tornam até um pouco caricatural – leva à autocracia. E é óbvio
que ela tem poucas chances de se realizar em uma sociedade-rede nas
democracias modernas na medida em que a posse de aparelhos estatais (e mesmo
o controle sobre os aparatos oficiais de propaganda e sobre os recursos
orçamentários a eles destinados e a capacidade de pressionar e subordinar os
complexos privados de comunicação) não pode garantir o controle sobre as redes
sociais e as novas formas de agenciamento que elas ensejam e dinamizam.

Podemos, entretanto, fazer um exercício de exposição, tomando inclusive as


mesmas categorias tradicionais utilizadas pelos movimentos revolucionários de
inspiração marxista, para evidenciar os aspectos que distinguem essa velha idéia
de revolução estatal-nacional (como revolução política), vamos dizer assim, de
uma nova idéia de revolução do local (como revolução social).

245
A velha idéia de revolução era uma idéia de transformação no âmbito do Estado-
nação e referenciada, portanto, nessa forma de Estado, tendo, na prática, o efeito
de fortalecê-la e não questioná-la, mesmo quando incluía a pregação por uma
revolução mundial (que aboliria, em algum lugar do futuro, todas as fronteiras et
coetera).

Como já haviam percebido os anarquistas, a velha idéia de revolução do


marxismo-leninismo (e, mesmo, das variantes social-democratas mais pacíficas
posteriores) não era uma luta para desconstruir a forma (piramidal) do poder
(estatal). Era uma disputa pelo (por esse tipo de) poder e não contra o (ou contra tal
estrutura de) poder.

O poder (estatal) capaz de ser usado como instrumento fundamental das


mudanças na sociedade era o poder hierárquico mesmo. Aliás, quanto mais
verticalizado e centralizado ele fosse, melhor. Porquanto mais capacidade
conferiria aos seus detentores de impor superávits de ordem à sociedade,
requisito considerado absolutamente necessário para espancar, na raiz, os
interesses dos grupos sociais em contradição com os objetivos, as medidas e os
procedimentos revolucionários.

A chamada revolução do local como uma revolução social é algo muito diferente
disso, como veremos a seguir.

A nova idéia de revolução do local


Em primeiro lugar vamos examinar, para o caso da revolução do local, qual é a
constelação de condições favoráveis ao desenvolvimento do processo
revolucionário que são objetivas, ou seja, independentes da intenção e da posição
dos sujeitos (imaginando que isso seja possível).

Como vimos, essas condições se referem a uma conjunção particular de vários


fatores interdependentes: novo ambiente político mundial (instalado depois da
queda do Muro, abrindo a possibilidade de democratização das relações
internacionais), inovação tecnológica (sinergização entre tecnologias de
comunicação em tempo real com tecnologias miniaturizadas de informação em
tempo real, amplamente disponibilizadas), nova cultura correspondente a uma
sociedade cosmopolita global, nova morfologia da sociedade-rede e novos
processos democrático-participativos ensaiados sobretudo em âmbito local
(abrindo novas possibilidades de democratização das relações políticas intra-

246
locais, inter-locais, entre o local e o micro-regional, o estadual, o nacional, o
regional e, em suma, entre o local e o global).

Portanto, nesse sentido “forte” do conceito (e da hipótese que o sustenta), a


localização é o aspecto objetivo da revolução do local.

Em segundo lugar vamos ver qual é a constelação de condições necessárias para


fazer eclodir ou desencadear o processo revolucionário que são subjetivas, quer
dizer, que dependem de sujeitos intencionados que as reúnem a partir do seu
trabalho militante de organização e ação políticas.

Tais condições são sempre: a existência de um certo número de agentes,


imbuídos de objetivos congruentemente inspirados por visões de futuro (i.e., uma
classe de utopias) conformes ao – ou sintonizáveis com o – processo objetivo em
curso (no caso, de localização), capacitados para elaborar e implementar
estratégias compatíveis e para adaptá-las às mais diversas circunstâncias,
conectados em formas organizativas capazes de gerar e replicar medidas e
procedimentos que materializam tais estratégias.

Baseados nas evidências disponíveis podemos afirmar que, na revolução do local,


tais fatores se apresentam de uma maneira bastante diferente de como
compareciam na velha revolução estatal-nacional. Como veremos a seguir, na
revolução do local:
i) os agentes estão dispersos e não reunidos sob disciplina em um contingente
centralizado;
ii) seu trabalho não visa ocupar lugares de poder e, portanto, sua militância não se
resume a uma luta para desalojar os velhos ocupantes desses lugares;
iii) seus objetivos são os de promover o desenvolvimento humano, social e
sustentável, de pessoas e comunidades, setores e organizações nos quais se
inserem;
iv) sua estratégia é baseada em micro-mudanças de comportamentos e na
capacidade de difusão e amplificação dessas mudanças por intermédio das redes
sociais; e
v) suas táticas são as de resistência ou geração de identidade dos novos
movimentos sociais que dão origem a comunidades de projetos (e.g.,
ambientalistas, pelos direitos humanos e pela universalização da cidadania,
feministas, ecumênicos, pacifistas, pelo fortalecimento da sociedade civil e pela
promoção do voluntariado etc. e, sobretudo, os dedicados ao experimentalismo
inovador que se desenvolve em torno de processos de democracia participativa
em redes sociais e de processos de indução ao desenvolvimento integrado e

247
sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-economia alternativa ou
solidária ensaiados em escala local).

Evidências da revolução do local


Vamos considerar aqui apenas uma classe particular de evidências, que se refere
mais especificamente ao comunitarismo reflorescente, de caráter inovador, ou
seja aos novos movimentos localistas que poderiam ser identificados com um
ideário glocalista.

De uns anos para cá, notadamente a partir do final da década de 1960 e,


sobretudo, nos anos 90 do século passado, muita coisa mudou no mundo. Mas
mudou “por baixo”, subterraneamente, na base da sociedade. Essa mudança se
revela no comportamento de comunidades e organizações.

Parece que está em curso uma grande revolução silenciosa, que está alterando os
padrões de relação entre o Estado e a sociedade. É a revolução do local.

Já é possível juntar evidências dessa revolução do local que está alterando


padrões de organização e modos de regulação na periferia do mundo,
empoderando molecularmente as populações, aqui e acolá, sem que as pessoas
situadas no centro tenham ainda se dado conta do que está acontecendo.

Parece que estamos sendo contemporâneos de uma grande mudança cujos


estìmulos ou “perturbações” estão partindo da periferia do sistema e não do
centro... Em uma sociedade em rede, tais perturbações podem ser amplificadas
por laços de realimentação de reforço e podem vir a transformar o sistema como
um todo ao alterar o comportamento dos agentes.

Não se trata de um movimento social ou político tradicional. O que está


acontecendo agora nada tem a ver com movimentos de massas impulsionados
por palavras de ordem do tipo: “O povo unido jamais será vencido”. Não são
“massas”, não são totalidades indiferenciadas conduzidas monotônicamente por
líderes carismáticos, senão constelações de diferenças, arranjos móveis de
peculiaridades... O que está acontecendo hoje talvez afirme o lema inverso
daquele tão caro aos candidatos a condutores de rebanhos. Como alguém disse:
“O povo desunido jamais será vencido”!

Já existe farta documentação de casos concretos de mudanças moleculares nos


padrões de relação Estado-Sociedade que estão acontecendo nos mais distantes

248
rincões do planeta. E já podem ser selecionados numerosos cases de
protagonismo local, de pessoas e comunidades que se empoderaram, que ao
invés de ficarem esperando uma solução “de cima”, tomaram a dianteira na
solução dos seus problemas de forma inovadora.

Caberia agora focalizar o esforço de análise naquelas experiências que


contribuíram para alterar as relações políticas, que inauguraram novas formas de
organização (mais rede e menos pirâmide) e novos modos de mediar conflitos
(mais democracia e menos autocracia). Ou seja, casos concretos de alterações
mais explícitas de relações políticas, de comunidades onde pessoas estão
exercitando a sua capacidade de sonhar e de fazer diferente, compartilhando seus
sonhos e cooperando na busca de objetivos comuns, exercitando seu
protagonismo para alavancar seus próprios recursos na solução de problemas
locais, conectando-se horizontalmente – peer to peer – e tecendo redes de
desenvolvimento comunitário, democratizando decisões e procedimentos e
inaugurando novos processos democráticos participativos de caráter público.

Os novos agentes da mudança


Quem são os novos agentes dessa significativa mudança, ainda invisível para
muitos, que já está acontecendo?

Esses novos agentes são, em geral, de dois tipos: a) pessoas comuns, que moram
e trabalham nas milhares de localidades, muitas vezes periféricas, que passaram a
desempenhar o papel de animadores e catalizadores de mudanças sociais na vida
das suas comunidades; e b) integrantes de organizações governamentais,
empresariais e da sociedade civil, em todos os níveis, que se apaixonaram pela
perspectiva de induzir ou promover o desenvolvimento humano e social
sustentável pela via do empoderamento molecular das pessoas comuns, que
moram e trabalham nas milhares de localidades, em geral periféricas, em todas as
regiões do globo. Em suma, pessoas que assumiram e estão realizando seu
compromisso com o desenvolvimento comunitário, da sua própria localidade ou
de outra localidade qualquer.

O número desses agentes de desenvolvimento cresceu consideravelmente nos


últimos anos, acompanhando a expansão daquela parte do terceiro setor dedicada
a finalidades públicas, a descentralização e as mudanças introduzidas no desenho
dos programas governamentais, as propostas de responsabilidade social
empresarial e, inclusive, em virtude de um certo desapontamento ou
desencantamento com as formas tradicionais de militância sindical e político-

249
partidária. De sorte que não se trata mais de um contingente reduzido de
militantes e profissionais outsiders, como eram vistos, por exemplo, os velhos
comunitaristas ou os novos “localistas”, no mesmo bolo dos ambientalistas e das
feministas (para citar os três exemplos de movimentos contemporâneos de
resistência aos rumos da globalização excludente, considerados por Manuel
Castells) (2).

Não se pode saber exatamente quantos são. O “exército” desses novos militantes
– ou, melhor, o anti-exército desses novos participantes –, se incluirmos os
agentes locais (e, mesmo assim, na pior estimativa, apenas um pequena
porcentagem dos membros de fóruns, conselhos, agências de desenvolvimento
locais e similares), deve perfazer um total considerável.

Os números serão significativos, não há dúvida. Dentro de alguns anos


poderemos ter dezenas de milhares de agentes de desenvolvimento espalhados
pelo mundo afora, indo aonde ninguém vai, vendo coisas que não vemos,
testemunhando micro-mudanças peculiares e que só podem ser percebidas por
quem imergiu, para valer, em configurações sociais peculiares.

O mais importante aqui, porém, não é a quantidade. O importante é conhecer as


condições necessárias para o desencadeamento de processos inovadores que
possam se replicar por si mesmos. O importante é compreender a nova “lógica”
da mudança social que chamamos de desenvolvimento em uma sociedade-rede.
Por isso, o mais importante agora é conhecer as novas características desses
agentes.

Não são propriamente militantes. A palavra, aliás, não é boa. O conceito de


militância evoca um paralelo militar. Seria melhor dizer que são participantes que,
em sua grande maioria, carregam, das características da velha militância, o
desprendimento e o espírito de doação próprios do voluntariado hodierno. Mas
existem também entre eles novos profissionais vinculados a instituições
governamentais e não-governamentais dedicadas à capacitação para a gestão-
empreendedora de assuntos públicos e negócios privados. O importante é que,
mesmo quando remunerados, o que os impulsiona é o desejo, o sonho e a visão:
o desejo e o desejo de materializar o desejo; o sonho e a vontade de adquirir as
capacidades requeridas para realizar o sonho; a visão e a disposição de
desenvolver habilidades e competências para viabilizar a visão. Nesse sentido
parece que a melhor maneira de caracterizá-los é dizendo que são, todos,
empreendedores, inclusive e principalmente, novos empreendedores políticos.

250
Essa nova geração de agentes-empreendedores, diferentemente dos militantes à
moda antiga, não caminham cantando uma mesma canção, com “a certeza na
frente e a história na mão”. São, simplesmente, pessoas que começaram a
acreditar na sua própria capacidade de fazer diferente e não de repetir uma
fórmula qualquer.

Não são freqüentadores de assembléias estudantis ou sindicais. Não são


levantadores de crachás em convenções partidárias. Não são animadores de
comícios eleitorais.

Não são participantes de manifestações, repetidores de palavras de ordem. Como


escreveu Pierre Levy (ainda em 1994, no livro “A inteligência coletiva: por uma
antropologia do ciberespaço”), “quando os participantes de uma manifestação
gritam as mesmas palavras de ordem, sem dúvida constituem um agenciamento
coletivo de enunciação. Mas pagam por essa possibilidade um preço não-
desprezível: as proposições comuns são pouco numerosas e bem simples,
mascaram as divergências e não integram as diferenças que singularizam as
pessoas. Além disso, a palavra de ordem em geral preexiste à manifestação. É
raro que cada um dos participantes tenha contribuído para sua negociação ou seu
surgimento. A manifestação, como o voto, só possibilita aos indivíduos construir
para si uma subjetividade polìtica pela pertença a uma categoria (“os que
retomam as mesmas palavras de ordem”, ou “os que se reconhecem em tal
partido” etc.). Quando todos os membros de um coletivo formulam (ou assim se
supõe) as mesmas proposições, o agenciamento de enunciação coletiva encontra-
se no estágio da monodia ou do unìssono” (3).

Ora, o que se busca agora é a sinfonia. “Este novo modelo musical – assinala
Levy – poderia ser o coral polifônico improvisado. Para os indivíduos, o
exercício é especialmente delicado, pois cada um é chamado ao mesmo tempo a:
1) escutar os outros coralistas; 2) cantar de modo diferenciado; 3) encontrar uma
coexistência harmônica entre sua própria voz e a dos outros, ou seja, melhorar o
efeito de conjunto. É necessário, portanto, resistir aos três “maus atrativos” que
incitam os indivíduos a cobrir a voz de seus vizinhos, cantando demasiado forte,
a calar-se ou a cantar em uníssono. Nessa ética da sinfonia o leitor terá percebido
as regras da conversação civilizada, da polidez ou do savoir-vivre – o que consiste
em não gritar, em ouvir os outros, em não repetir o que eles acabam de dizer, em
responder-lhes, em tentar ser pertinente e interessante, levando em conta o
estágio da conversa...” (4). Isso poderia, conclui Levy, “assumir a forma de um
grande jogo coletivo, no qual ganhariam (mas sempre provisoriamente) os mais
cooperativos... os melhores produtores de variedade consonante... e não os mais

251
hábeis em assumir o poder, em sufocar a voz dos outros ou em captar as massas
anônimas em categorias molares” (5).

O fato é que esses novos agentes estão aprendendo (e estão nos ensinando) a ver
as coisas de outro modo. O que os comove não são tanto as necessidades das
populações, mas as suas potencialidades. Como não se acreditam predestinados a
salvar o mundo, como não imaginam possuir a fórmula (única) para resolver
todos os problemas, estão mais preocupados com as multifárias possibilidades e
oportunidades, com as iniciativas de coletividades que contam com seus próprios
ativos para superar os seus problemas.

Uma realidade desconcertante


Já existe um número suficiente de evidências para apoiar a conclusão de que
estamos vivendo agora em um tipo de sociedade onde a dinâmica da mudança
social está, ela própria, mudando velozmente e onde o papel do empoderamento
molecular das populações periféricas está adquirindo, pela primeira vez, uma
importância decisiva em qualquer estratégia de mudança social.

Todavia, tudo parece tão novo – e, até certo ponto, tão desconcertante – que
muita gente fica em dúvida e quer saber, com toda sinceridade, como isso
poderia acontecer; ou seja, como é que, animando processos de desenvolvimento
local em pequenas localidades periféricas, com PIB baixíssimo, fora dos circuitos
por onde passam os grandes fluxos de capital do mundo globalizado, pode-se
impulsionar uma mudança significativa no processo de desenvolvimento de
países inteiros.

Muitas pessoas querem saber “qual é o milagre” pelo qual pequenas ações,
diversificadas, fragmentadas e feitas, descentralizadamente, sem um comando
unificado, envolvendo pouquíssimos recursos financeiros, podem vir a ter um
impacto ponderável nas condições de vida de grandes contingentes
populacionais.

Já abordei esse tema, de um ponto de vista mais abstrato e com um viés ainda
inevitavelmente especulativo, ao tratar dos supostos de uma teoria sistêmica do
capital social. A hipótese de trabalho que considerei foi a seguinte. Pequenas
perturbações introduzidas na periferia dos sistemas estáveis afastados do estado
de equilíbrio podem se amplificadas por laços de realimentação de reforço se
espalhando para o sistema todo e modificando o comportamento dos agentes
que interagem em termos de competição e de cooperação.

252
Tenho defendido a tese de que essa propagação amplificada da perturbação
ocorre na medida em que o sistema apresente a estrutura (ou “corpo”) de rede e
que sua dinâmica (ou “metabolismo”) seja democrática.

Quanto mais rede, ou seja, quanto mais conexões horizontais forem estabelecidas
entre os nodos (as pessoas e as organizações) – ou quanto mais múltiplos forem
os caminhos (ou arestas) entre esses nodos (ou vértices) – e quanto mais
democráticos (no sentido de mais diretos e participativos) forem os modos de
regulação de conflitos adotados por uma coletividade humana estável, mais
chances existirão de uma pequena ação ser amplificada, vindo a produzir um
grande resultado, desde que essa ação introduza um novo tipo de
comportamento no sistema e que seja, ela própria, feita de modo sistêmico.

Ou seja, desde que ela incida (ainda que tendo como foco inicial apenas uma sub-
região particular do sistema) sobre os mecanismos ou processos pelos quais os
comportamentos são mantidos e reproduzidos. Nas sociedades humanas esses
mecanismos e processos se relacionam aos padrões de organização e aos modos
de regulação, às maneiras como o poder se distribui e como os conflitos são
resolvidos. Em outras palavras, desde que a mudança introduzida seja política.
Esses casos são diferentes de muitos outros casos de sucesso onde um
empreendedor individual conseguiu atingir seu objetivo e realizar um grande
feito.

A diferença está na política. Se uma ação, mesmo pequena, limitada, circunscrita


a um âmbito restrito da esfera pública, consegue alterar relações de poder e
modos de regulação de conflitos (i. e., se for uma ação com conseqüências
propriamente políticas) e se ela for capaz de introduzir um novo comportamento
político, aumenta em muito a possibilidade do resultado dessa ação se expandir,
desse novo comportamento introduzido contaminar o seu entorno e, mesmo, se
replicar para outras regiões do espaço e, por incrível que pareça, até mesmo para
outras “regiões do tempo” (e, nesse último caso, quando isso acontece é sinal de
que ela pode estar inventando uma nova tradição). A possibilidade de uma
intervenção política pontual, com tais características, se expandir, aumenta na
razão direta do grau de “enredamento” (ou de reticulação) da sociedade.

Ora, se é assim, a tarefa principal daqueles que se propõem a promover ou


induzir o desenvolvimento deveria ser a de articular redes sociais. Tudo indica
que quem fizer isso estará construindo condições para o desenvolvimento com
uma eficiência e uma eficácia muito maiores do que quem estiver preocupado
apenas em impulsionar o crescimento econômico, estimular o aparecimento de

253
empresas, aumentar o salário mínimo ou distribuir renda por meio de programas
compensatórios estatais.

O motivo pelo qual as pessoas olham com desconfiança para pontos de vista
como esse, é o mesmo motivo pelo qual existe uma realidade escondida, que
quase ninguém vê. É o mesmo motivo pelo qual as pessoas não percebem a
revolução silenciosa que está em curso neste momento, que está alterando os
padrões de relação entre Estado e sociedade em localidades de todo o mundo.

Existe uma grande dificuldade das pessoas verem a revolução do local


acontecendo porque existe uma grande dificuldade das pessoas entenderem e
aceitarem esses novos pontos de vista. Fomos adestrados para perceber as coisas
e não as relações e os processos. Intoxicados pela ideologia do crescimento,
valorizamos apenas as mudanças de quantidade e sequer levamos em conta as
mudanças de qualidade. Ainda achamos que uma mudança significativa no
comportamento coletivo só pode ser desencadeada quando a maioria das pessoas
aderir a um novo comportamento. Carregamos ainda o fardo de uma tradição
política que via as sociedades como grandes massas a serem conduzidas por
líderes ou vanguardas possuidoras de algum saber.

Não vemos as coisas “se-fazendo” e “se-mudando”. E não compreendemos a


dinâmica pela qual as mudanças são transmitidas no interior daquilo que
chamamos de sociedade. Manuel Castells nos ensina que, a cada dia que passa, as
nossas sociedades estão adquirindo as características de uma sociedade-rede. Mas
só muito recentemente tem se desenvolvido uma nova ciência, dedicada a análise
das redes sociais.

As sociedades humanas tornam-se sistemas cada vez mais complexos, que estão
adquirindo rapidamente características de sistemas adaptativos. A sociologia
necessária para analisar essas coisas ainda precisa ser inventada (ou re-inventada).
O caminho mais promissor são as novas teorias do capital social – sobretudo
aquelas que tentam adotar um ponto de vista sistêmico e utilizar o instrumental
das teorias da complexidade.

Novos atores institucionais


Um aspecto fundamental dessa questão é a emergência de novos atores
institucionais que passaram a se dedicar à promoção do desenvolvimento. Com
efeito, estão surgindo novos atores institucionais – ao lado do Estado e do

254
mercado – e sem os quais não estaria sendo possível a emergência de uma nova
concepção e de uma nova prática de mudança social.

Estou falando do chamado terceiro setor (que é uma denominação para a „nova
sociedade civil‟, aquela esfera da realidade social composta por entes e processos
que não são estatais nem mercantis).

Antes de qualquer coisa é preciso deixar claro que nem todos os novos agentes
de desenvolvimento que estão surgindo na atualidade pertencem ao terceiro
setor. Muitos deles trabalham em governos, em todos os níveis ou em empresas
privadas – o que é um sinal de que a mudança está alcançando todos os setores.
Todavia, sem a participação do terceiro setor não estaria ocorrendo esse
fenômeno que estamos chamando de revolução do local.

Por que? Porque o terceiro setor, pela sua diversidade, pela sua racionalidade e
“lógica” de funcionamento, enfim, pela sua dinâmica própria, introduz elementos
novos que reconfiguram os padrões de relação antes vigentes.

Dentre os elementos novos introduzidos pela participação do terceiro setor,


destacam-se a capacidade de empoderar molecularmente os coletivos e a
capacidade de juntar pessoas e organizações com base em relações de parceria.

Ora, o que significa esse primeiro elemento, a capacidade de empoderar


molecularmente? Significa a “força da dispersão”. Em sistemas complexos como
as sociedades humanas, ao contrário do que se acreditava, a força decisiva para
realizar mudanças sociais não vem necessariamente da capacidade de um projeto
de unir, em um todo homogêneo e coeso, vontades individuais e coletivas – mas
sim da sua capacidade de se difundir, de se imiscuir, de se adaptar, de se
modificar, de contaminar “viroticamente”.

O segundo elemento se refere à introdução de relações que, conquanto


estabelecidas em sociedades onde existe conflito, não são baseadas,
fundamentalmente, na disputa ou no confronto, ou em considerações de
correlação de forças.

A nova sociedade civil (ou o terceiro setor) atua, freqüentemente, junto com o
Estado e com o mercado. Mas não faz muito sentido buscar qualquer tipo de
equilíbrio de forças entre essas três esferas da realidade social. Só teria sentido
essa busca se estivéssemos falando da interação de sujeitos em conflito. Mas
Estado, mercado e nova sociedade civil são esferas da realidade social, e não
sujeitos políticos em conflito.

255
Por outro lado, o conceito de equilíbrio não é bom para sistemas complexos
como as sociedades. Sociedades são sistemas que só se desenvolvem se estiverem
afastados do estado de equilíbrio. O que não quer dizer que não sejam sistemas
estáveis. Mas estabilidade nada tem a ver com equilíbrio. Tudo indica que o que é
necessário alcançar não é um "equilíbrio de forças", mas uma sinergia entre
iniciativas provenientes desses três setores. Por quê? Porque nenhum deles,
isoladamente, é suficiente para promover o desenvolvimento desse sistema
complexo e estável, que só pode se desenvolver quando afastado do estado de
equilíbrio, chamado de sociedade humana.

Mas não estou falando da “sociedade civil organizada”, nossa velha conhecida.
Aliás, foi somente a partir de meados da década de 90 que parte dessa “sociedade
civil organizada” (em geral corporativamente ou partidariamente) tomou
consciência de que existia uma outra sociedade civil (“desorganizada”) muito
maior do que ela e começou a desconfiar que, em sistemas complexos como as
sociedades humanas (como escreveu Frank Herbert em 1969 em “O Messias de
Duna”), “não reunir é a derradeira ordenação” (6). Estou falando mesmo da
“força da dispersão”.

Ora, a “força da dispersão” quando combinada com a “força da parceria”


constitui um fator irresistível para a mudança, pela base, dos comportamentos
dos agentes que interagem em termos de competição e cooperação.

Isso explica a constatação de que os novos agentes de mudança estão, eles


próprios, se comportando de modo bem diferente dos militantes políticos
tradicionais. Como vimos, não estão muito preocupados em ocupar posições nos
centros decisórios. Não estão sendo movidos pela vontade de denunciar e
combater alguém. Estão sendo comovidos pela descoberta de potencialidades
latentes, pelos imensos ativos que existem e que ainda estão escondidos. E estão
buscando, cada vez mais, celebrar parcerias para dinamizar tais potencialidades.

Não é, portanto, por acaso, que esses novos agentes de desenvolvimento que
estão surgindo sejam, em grande parte, participantes de organizações do terceiro
setor.

A “força da dispersão” e a “força da parceria”


Falei da “força da dispersão” e da “força da parceria”. Uma estratégia para
induzir o desenvolvimento humano e social sustentável deve se basear em uma
aposta no papel dessas “forças”. Seu objetivo deve ser liberar tais “forças”, o que

256
pressupõe a avaliação de que elas ainda estão aprisionadas pelos sistemas
políticos vigentes em nossas sociedades.

Pois bem. O que chamamos de revolução do local só está acontecendo porque,


aqui e acolá, essas “forças” estão podendo agir mais livremente. Em outras
palavras: tem gente se associando, com base na cooperação, para fazer coisas que
nós não sabemos e não podemos controlar.

“O povo desunido jamais será vencido”


Percebo como tudo isso é difícil de entender e aceitar, sobretudo para aquela
parte da minha geração que foi formada ouvindo lemas como “o povo unido
jamais será vencido”, derrubando altares e entronizando no lugar dos velhos
santos cooperativos e pacifistas (como Francisco ou Tereza) novos líderes bélicos
competitivos (guerrilheiros românticos, como o Che, ou “senhores da guerra”
condutores de povos, como Mao), nos quais passamos a depositar nossas
melhores esperanças quando nos diziam que era preciso juntar e acumular forças
para destruir os responsáveis pela bad society em que vivíamos. Se agora vem
alguém dizendo o que parece ser exatamente o contrário – „o povo desunido
jamais será vencido‟, „desunido‟ no sentido de não aglomerado como massa, não
conduzido monotonicamente pelas mesmas diretivas (“de cima” ou “de fora”),
porém disperso-e-conectado, tirando dessa dispersão e dessa conexão toda a sua
força, por empoderamento molecular – ficamos no mínimo desconfiados ou
inseguros.

Desconfiança e insegurança em relação ao que está acontecendo


subterraneamente se explicam. São coisas que estão dentro da nossa cabeça. Uma
cabeça ainda ocupada pela velha idéia de revolução dos séculos 19 e 20, para a
qual a revolução do local simplesmente não existe porquanto não tem um plano,
não tem um comando (uma direção revolucionária), não tem um ator central (um
contingente organizado de agentes revolucionários submetidos a alguma
disciplina) e não tem um programa.

Mas, como vimos na seção anterior, a revolução do local tem, in potentia,


princípios éticos norteadores, uma concepção de quem deve governar, uma
compreensão de quais são as reformas essenciais a serem feitas, uma visão de
futuro desejada e uma modalidade de transformação política preconizada (e já
praticada em muitas experiências). Evidentemente, na medida em que não existe
um centro irradiador-condutor, tais características são atribuídas pela análise e não
assumidas explicitamente pelos sujeitos (dispersos) como um programa comum.

257
São, todavia, características conformes tanto às evidências da revolução do local
(em termos subjetivos) quanto ao processo (objetivo) de localização atualmente
em curso no mundo.

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) “Pode portanto dizer-se que a política é guerra sem derramamento de sangue e, a guerra,
polìtica sangrenta”. Cf. Tsé-Tung, Mao (1936). “Problemas estratégicos da guerra
revolucionária na China” in Escritos Militares. Goiânia: Libertação, 1981.

(2) Cf. Castells, Manuel (1996). O Poder da Indentidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

(3) Levy, Pierre (1994). A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São
Paulo: Loyola, 1998.

(4) Idem.

(5) Idem-idem.

(6) Herbert, Frank (1969). O Messias de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

258
Texto 12 | Offe e a sinergia entre Estado, mercado e
comunidade
“Instituições de governo justas e transparentes, a prosperidade que mercados cuidadosamente
regulados podem gerar e a vida das comunidades restringida pelo princípio da tolerância podem e
devem, todos, contribuir para a (assim como se retomarem beneficiários da) formação e
acumulação de capital social no interior da sociedade civil”.

Foi na conferência “Sociedade e Estado em Transformação”, realizada em São


Paulo, em 1999, que Claus Offe pronunciou a interessante alocução intitulada “A
atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da
sociedade”. A intervenção foi publicada na coletânea “Sociedade e Estado em
Transformação” (Bresser Pereira, L. C, Wilheim, Jorge e Sola, Lurdes (orgs.),
Brasília: Enap, 1999).

A intervenção de Offe é tão importante, porque reestrutura a discussão com tal


clareza, estabelecendo um novo referencial para posicionar os fenômenos
observados na globalização e, inclusive, as escolhas políticas diante desse
processo, que vale a pena reproduzir aqui a sua íntegra.

A atual transição da história e algumas opções básicas para as


instituições da sociedade (1)
“Sempre que falamos de mudança social, é necessário especificar em qual dos
seus dois principais sentidos estamos empregando o conceito. As ciências sociais
sempre analisaram mudanças sociais em dois níveis. Em primeiro lugar, mudança
social (e “histórica”) é concebida como um conjunto de forças cegas e
impessoais, tendências estruturais e contradições às quais os agentes humanos
estão expostos como objetos, ou mesmo como vítimas passivas a quem a
mudança “acontece”. Esse tipo de mudança social consiste em tendências
(variando do aquecimento global a mudanças nos gostos dos consumidores) que
não foram iniciadas por alguém, e tampouco podem ser paradas por alguém. Em
segundo, mudança social é vista como algo que resulta de esforços deliberados e
intencionais de agentes humanos racionais para dar conta, individual ou
coletivamente, de necessidades e problemas que eles encontram na sua vida
social, econômica e política. A mudança social, nesse segundo sentido, é
“alcançada” e executada por agentes. Essa versão ativa e intencional do conceito
enfatiza a subjetividade, a cooperação e a busca racional de interesses e valores –

259
a “construção” da história ao contrário da exposição a forças e a destinos
históricos anônimos.

A síntese dessas aparentemente incompatíveis formas de compreensão de


mudanças sociais é classicamente sugerida por Karl Marx no seu 18 de Brumário
e também em escritos posteriores sobre a economia política do capitalismo: as
forças fatídicas da mudança social (2) que vitimam os agentes são desencadeadas
e colocadas em movimento por ação humana e por seus efeitos agregados e não
antecipados. A implicação crítica dessas forças é que as deficiências da ação
humana e das formas convencionais de racionalidade que as guiam são as causas
tanto das forças fatídicas quanto da incapacidade dos agentes de dar conta delas
de forma sustentável e com resultados desejáveis.

A teoria que relaciona tais resultados com a cegueira e outras deficiências da ação
humana é uma teoria das crises. Como é sabido, Marx e alguns marxistas
acreditavam que as instituições que fazem com que os humanos não consigam
prever as conseqüências de suas ações, podem elas próprias, ser alteradas através
de uma forma especial de ação conceituada em termos de “revolução” ou “luta
de classes”. Grande parte da evidência acumulada no século XX, entretanto,
sugere que tipos revolucionários de ação de segunda ordem (ou sobre o quadro
institucional que emoldura as ações) sofrem da mesma forma de cegueira e de
deficiência que se considera que caracterizem a ação de primeira ordem.

Apesar disso, a mesma problemática de como os agentes falham e de como a


agência pode ser reconfigurada é ainda central para muitos dos teóricos sociais de
hoje, sejam eles orientados por paradigmas “institucionalistas” (3) ou da “escolha
racional” (4) e “teoria dos jogos”. Nessas tradições de pesquisa polìtica e social,
duas questões-chave estão sendo tratadas, uma positiva e a outra normativa. A
questão positiva é a seguinte: de que forma configurações particulares de agentes
(por exemplo, os que encontramos em mercados, firmas e relações
internacionais) se correlacionam com os resultados particulares de suas ações? A
partir desta se desdobra a questão normativa: que mudanças na configuração dos
agentes resultariam em conseqüências superiores aos observados em termos de
critérios de avaliação como paz, sustentabilidade ou justiça social?

Esses são os termos de referência de nossos debates contemporâneos sobre o


desenho institucional das relações Estado-sociedade. Na presente discussão sobre
essas relações, procederei da forma que se segue. Em primeiro lugar, resumirei
algumas trajetórias dominantes de mudança social que todos nós, quase
independentemente do lugar do mundo de onde viemos, estamos expostos de
forma direta. Segundo, passarei do modo passivo ao ativo para discutir os agentes

260
(nominalmente, os cidadãos), assim como suas formas de ação (nominalmente, a
civilidade), que podem vir a ser capazes de transformar as forças de mudança que
inevitavelmente confrontaremos em resultados toleráveis e até mesmo desejáveis.
Partindo da discussão da civilidade, finalmente, especificarei seis falácias que
devem ser evitadas de forma que alcancemos uma configuração de ação capaz e
adequada.

I - TRAJETÓRIAS ATUAIS DE TRANSIÇÃO

1. Democratização

Comecemos pela lembrança de que a mudança mais abrangente ocorrida nos


últimos 25 anos em escala global, e que ainda continua a ocorrer, aconteceu no
nível da ordem política, ou na forma de regime de muitas sociedades. Regimes
autoritários de várias formas - ditaduras militares, regimes de socialismo de
Estado, regimes teocráticos – desmoronaram em uma escala sem precedentes e
deram lugar a democracias constitucionais liberais (ao menos nominalmente).
Essas são definidas grosseiramente pela presença de direitos iguais de
participação política para todos os cidadãos, a garantia de direitos humanos, civis
e políticos e a accountability* das elites governantes. O fenômeno global de
transição maciça para democracia foi impulsionado por propósitos inspirados em
ideais associados com a forma democrática de regime, assim como por
mecanismos causais. Consideremos de forma breve cada um desses fatores.

Quais foram as razões que levaram tantas pessoas – tanto massas como elites – à
adoção de alguma forma de regime democrático? O que se supõe que a
democracia seja capaz de alcançar e seja “boa para”? Quatro respostas
cumulativas se apresentam. Primeiro, há o feito “liberal” dos direitos e liberdades
serem garantidos e o registro de uma linha clara de demarcação entre o que pode
ser contingente, com respeito aos resultados do processo político, os conflitos de
interesse aí contidos, e o que não pode ser objeto de tais conflitos por estar
registrado constitucionalmente. Vale a pena notar que, em uma democracia, a
maior parte das condições que são de grande interesse para os cidadãos (por
exemplo, quem pode sustentar quais opiniões ou possuir quais recursos) não é
um objeto potencial de decisão coletiva de maiorias por estar definido
constitucionalmente. Como conseqüência de que tanto os direitos quanto os
procedimentos são garantidos e supostamente implementados através da
operação diuturna do sistema judicial, as democracias dão ao conflito político um
caráter não-violento, limitado e civilizado, assim como características
incrementais às mudanças. O potencial de civilidade do regime democrático é

261
provavelmente seu atrativo mais poderoso para aqueles que são oriundos dos
horrores e terrores dos regimes predecessores.

Uma segunda razão para a atração normativa da forma de regime democrático é


o seu feito internacional, normalmente expresso na hipótese da “paz
democrática”, que data da famosa formulação de Kant em 1795. Segundo esta, as
democracias não lançariam guerra a outras democracias.

A terceira atração dos regimes democráticos tem a ver com o chamado


“progresso social”. As democracias se baseiam no governo da maioria e as
maiorias são feitas tipicamente daqueles que não detêm privilégios econômicos e
poder social. Além disso, o poder estatal democrático, apesar da rigidez dos
pontos estabelecidos constitucionalmente, é um fato capaz de afetar o tamanho e
a distribuição dos recursos econômicos de formas mais do que marginais (por
exemplo, por meio de políticas de crescimento, cobrança de impostos e seguro
social). Conseqüentemente, as democracias normalmente funcionarão para servir
aos interesses dos segmentos menos privilegiados da população, promovendo
direitos “positivos” ou “sociais” e, mais geralmente, crescimento, prosperidade e
justiça social.

Por fim, vale destacar o feito “republicano” de transformar “sujeitos” em


“cidadãos”, isto é, agentes capazes de empregar seus próprios recursos cognitivos
e morais em formas deliberativas e inteligentes para solucionar problemas
políticos de acordo com uma lógica de aprendizado coletivo, e lutando, como
conseqüência, para servir ao “bem comum”.

Mas a democratização não é simplesmente explicada por essas razões e


esperanças que se relacionam a ela. Sua disseminação no mundo foi também
impulsionada por certos processos causais. A decomposição interna de formas
autoritárias de regime e o seu fracasso em sustentar as funções de um Estado em
confronto com os desafios domésticos e internacionais fizeram da forma
democrática de regime a escolhida “por definição”. Democracias são criadas,
tipicamente, como concessão recíproca firmemente estabelecida como segunda
opção preferida de todos aqueles que são fracos demais para impor sua opção
preferida respectiva (não-democrática). Como nem os líderes militares nem as
elites partidárias podem com sucesso reivindicar soberania, “o povo” aparece
como único portador de soberania. Essa opção foi forçada por dois tipos de
agentes externos.

As democracias liberais foram, com freqüência, instaladas por meio de pressões e


incentivos de outras nações liberais democráticas e suas organizações

262
supranacionais. Além disso, investidores (cujo investimento é urgentemente
necessário a novas democracias para desenvolvimento e recuperação
econômicos) preferem sempre operar sob formas democráticas que apresentem
as condições mínimas para o mando da lei, a segurança dos contratos e a
accountability das elites políticas.

Considerados de forma conjunta, esses fatores de atração e pressão explicam o


processo global de transição. Entretanto, os resultados combinados dos
processos que deram base à transição maciça para a democracia experimentada
por nós nas três últimas décadas são hoje freqüentemente observados com uma
certa sensação de desencantamento. Enquanto a nova onda de democratização,
que atingiu virtualmente todos os lugares, confirmou a hipótese de paz
democrática, não chegou a redimir consistentemente as esperanças de uma
proteção confiável dos direitos humanos, civis e políticos, de accountability das
elites, de progresso econômico, de justiça social ou de virtude cívica praticada
pelo conjunto dos cidadãos. Particularmente, não há evidências de que a
prosperidade e a justiça social (em qualquer dos seus significados) sejam
promovidas pela democracia como uma conseqüência direta (5).

A medida que o número de democracias cresce, sua qualidade parece decrescer


(6), dando origem a reclamações bem fundadas de que as novas democracias
parecem ter se degenerado em democracias meramente “eleitorais” ou
“delegadas” (7) ou mesmo democracias defeituosas com “domìnios reservados”
(8) controlados como privilégio por elites não submetidas a nenhuma forma de
accountability. Em resumo, podemos dizer que a forma democrática de regime é
um pré-requisito indispensável, mas evidentemente não uma garantia automática
das qualidades que foram associadas a ela pelos protagonistas da transição para a
democracia.

2. Globalização

Uma explicação para essas desapontadoras experiências de transições


democráticas tem, até certo ponto, a ver com o enfraquecimento do Estado
nacional e de suas capacidades de governo. Esse é o tema da interdependência
global (ou, ao menos, interdependência macrorregional, como na União
Européia). A presença de conexões transnacionais intensificadas constrange e
marca o destino das sociedades. Esse processo traz para a vida social e
econômica local forças que estão, em sua maioria, fora do controle das elites
políticas nacionais, até mesmo das mais determinadas. À medida que as fronteiras
são transpostas e tornadas permeáveis, o alcance do que pode ser feito
coletivamente de maneira efetiva pelas forças políticas locais diminui (9), graças

263
às repercussões negativas que a antecipação de qualquer “movimento errado"
pode provocar na arena internacional externa. As fronteiras, ao que parece,
perderam não apenas sua característica de limite, mas também sua característica
protetora, e portanto capacitadora de respostas independentes e autônomas. A
forma pela qual as ações de governo dos Estados nacionais são parcialmente
incapacitadas pode ser resumida através da seguinte fórmula**: dinheiro,
matemática, música, migração, força militar e meteorologia (ou clima):

=> Dinheiro, como meio de comércio e investimento: entre 1955 e 1989, o


Produto Interno Bruto Mundial, medido em números-índice, passou de 100 para
350, enquanto as exportações mundiais cresceram de 100 para quase 1.100;

=> Matemática: universalização da cultura cognitiva e tecnologias nela baseadas,


todas usando números arábicos, o único meio de compreensão verdadeiramente
universal na comunicação escrita;

=> Música/cinema, assim como arquitetura: disseminação de meios não-verbais


de expressão e comunicação. Esse processo teve como conseqüência a
padronização de padrões de vida entre nações influenciada por essas formas
estéticas e seus conteúdos éticos;

=> Migração: como muitos Estados nacionais não podem proteger ou prover
condições mínimas de vida e liberdade para todo o seu povo, muitos outros
Estados recebem em sua população residente (e não têm, prática e legitimamente,
como evitar receber) números crescentes de estrangeiros, refugiados,
trabalhadores migrantes, residentes estrangeiros etc.;

=> Recursos militares: provavelmente uma minoria dos Estados dispõe de


autarquia militar, já que a grande maioria deles integra alianças militares
supranacionais (como a OTAN) e depende da defesa provida por outros
Estados, ou é constrangido em suas políticas domésticas e internacionais pela
presença direta de ameaças militares de outros Estados. Além disso, a associação
entre “fragilidade estatal" e “capacidade militar" fica evidente no fato de que
aquela capacidade de promover a guerra está crescentemente nas mãos de atores
não-estatais (como exércitos separatistas, movimentos étnicos, grupos terroristas
ou gangues armadas sob o comando de “senhores da guerra”);

=> Meteorologia: a quantidade e a qualidade do ar e da água são conhecidas


como parâmetros básicos de vida humana e da atividade econômica. Suas
variações em termos de temperatura, fIutuação regional, sazonal e de longo prazo
não podem exceder limites estreitos, sob pena de colocar em risco a vida e as

264
atividades econômicas. A disponibilidade desses recursos também é sabidamente
dependente da estabilidade de um sistema imensamente complexo de interação
que pode ser perturbado, em uma escala global, de uma forma totalmente
independente de fronteiras nacionais por externalidades na produção e no
consumo.

A resposta clássica ao risco de perda de capacidade de governo é a integração


supranacional e a formação dos regimes transnacionais: União Européia,
ASEAN, NAFTA e Mercosul, assim como várias alianças militares transnacionais
e regimes de regulação. Igualmente importante, entretanto, parece ser a resposta
inversa de recuo para unidades menores, subnacionais, para fazer frente à
percebida fraqueza das capacidades estatais em controlar os seus destinos.
Apenas aparentemente paradoxal, a globalização envolve incentivos para
“comportamento de bote salva-vidas” e separação subnacional dos grupos e
regiões (relativamente) mais ricos que, de forma bastante racional do seu ponto
de vista, lutam para defender, explorar e isolar suas vantagens competitivas locais
e regionais, em vez de dividir os avanços com outras (e supostamente mais
vulneráveis) unidades do Estado ao qual elas pertencem. Isso tem se dado
preferencialmente por meio de secessão e construção de estados separados (10)
ou então por meio de amplas formas de autonomia fiscal do conjunto da
federação.

O processo “multimìdia” de globalização, juntamente com as duplas respostas


transnacionais e subnacionais a ele associadas, leva a duas más notícias no que se
refere à justiça distributiva. A primeira é uma má notícia que diz respeito aos
países avançados: a performance do seu mercado de trabalho e de seu sistema de
seguridade social é vista como causa de fundo da mobilidade do capital e das
mercadorias para os países de baixos salários do Sul, com crescentes níveis de
desigualdade social nos países avançados como uma das principais
conseqüências. Esse fator de mobilidade é, no momento, dramaticamente
aumentado pelas novas tecnologias de transportes e comunicações. Há ainda a
má notícia recíproca dessa para os países mais pobres e economicamente menos
desenvolvidos: os padrões de vida do Ocidente e o modo de vida que eles tentam
atingir e imitar constituem um bem “posicional” que não pode ser universalizado
(por razões de recursos ecológicos). Tão óbvia quanto o fato de que nem todos
podem ganhar o dobro da renda média é a impossibilidade de universalização dos
modos de vida, de consumo e de transportes do Ocidente em razão da limitação
de recursos e da sustentabilidade ecológica. Mas como não há um modelo de
moradia, transportes e consumo à mão que possa se apresentar como uma
alternativa viável aos estilos ocidentais, as desigualdades distributivas ficarão
maiores; alguns fora do mundo ocidental serão capazes de imitar os modelos

265
ocidentais, mas a grande maioria não obterá sucesso. O resultado combinado das
duas más notícias é o seguinte: o número de proprietários de automóveis de luxo
e apartamentos com ar condicionado no que antes era o Terceiro Mundo tende a
aumentar, mas da mesma forma se eleva o número de pessoas que procuram
comida nas latas de lixo no que antes era o Primeiro Mundo.

3. Pós-modernização
Depois de ter relembrado algumas das trajetórias que têm conduzido à transição,
tanto nas comunidades políticas – a assim chamada democratização –, como nas
economias – a denominada globalização –, observemos de forma rápida a pós-
modernização como uma força promotora de transformação cultural.

Três generalizações podem ser apresentadas, associadas às dimensões estéticas,


cognitivas e político-morais da cultura. Primeiro, há tendências poderosas na
direção da homogeneização transnacional da cultura. Ao menos no que diz
respeito a grupos sociais urbanos e masculinos da sociedade global, os filmes, a
música, a vestimenta do dia-a-dia, a comida e os estilos de vida estão em um
processo de perda de grande parte do seu caráter distintivo e de seu
enraizamento nas tradições culturais regionais e nacionais. De forma
concomitante, o inglês está se tornando o idioma global. Mas, em segundo lugar,
contratendências poderosas podem também ser observadas, levando à
redescoberta e ao renascimento de tradições religiosas e estéticas locais que são
adotadas como formas simbólicas de resistência à uniformidade da cultura global
e que dão origem a uma política cultural pós-moderna da identidade e diferença.
Em terceiro lugar, o impulso moral e político oriundo das idéias de libertação,
justiça social e paz internacional parece ter perdido muito de sua atração e
potencial para mobilização política. Isso se aplica particularmente a qualquer
noção de progresso que envolva, como uma vez envolveram a teoria da
modernização liberal, o marxismo revolucionário ou o zelo missionário da
cristandade, uma noção universalista de fins desejáveis, na direção dos quais a
história deveria se mover e pode realmente ser encaminhada por agentes
históricos constituídos. Essa noção de progresso, na medida em que sobreviveu a
todas as forças desorganizadoras da cultura pós-moderna, está hoje sendo
reformulada: o progresso é agora concebido como a capacidade de evitar
continuamente a recaída no barbarismo e em formas catastróficas de des-
civilização.

266
II – INOVANDO NO DESENHO DAS RELAÇÕES ENTRE ESTADO,
SOCIEDADE E COMUNIDADES

Se essas são as forças históricas altamente ambíguas e contraditórias,


internamente nas quais a ação política está inserida e com as quais precisa lidar, o
problema está em determinar que tipos de instituições são mais apropriados para
dar conta da situação histórica presente. Nosso problema, definitivamente, não é
o problema enfrentado por Lenin, como colocado em sua famosa frase “O que
fazer?”. Nosso problema, ao contrário, pode ser formulado como a questão
logicamente antecedente de “quem”, isto é, qual configuração de agentes pode
ser capaz de fazer o “que precisa ser feito”. Questões de reforma institucional são
convencionalmente postuladas em termos da determinação de quais esferas da
vida deveriam ser governadas pelas autoridades políticas, por trocas contratuais
no mercado, ou por autogoverno e por comunidades de responsabilidade e
associações no interior da sociedade civil (11). No que diz respeito a essa divisão
sempre conflituosa de domínios, cientistas sociais, tomando como base a sua
experiência profissional, têm muito poucas idéias interessantes a oferecer. No
máximo, eles podem elaborar, usando a observação empírica, a análise dos
mecanismos causais, bem como de avaliações de consistência e viabilidade,
alguns argumentos críticos que podem informar o julgamento nesses assuntos. O
que evitar, no entanto, é bem mais óbvio do que o que fazer.

Antigas opções de desenho institucional estão obsoletas, não interessa se nós já


sabemos disso ou se já estamos no processo de descobri-lo lentamente. As
antigas opções de desenho são monísticas, baseando-se no Estado, no mercado
ou na comunidade para garantir em última instância a ordem social e a coesão.
Soluções mais promissoras são essencialmente “impuras”: não se deve utilizar
nenhum dos três princípios da ordem social exclusivamente, mas a todos eles
deve ser reservado um papel em um arranjo institucional complexo e composto.
Esses são três componentes da ordem social em precária relação entre si: de um
lado, eles se baseiam um no outro, já que cada componente depende do
funcionamento dos outros dois; de outro, entretanto, a sua relação é antagônica,
já que a predominância de um deles põe em risco a viabilidade dos outros dois
(12).

Examinemos os componentes mais detalhadamente. O Estado, o mercado e a


comunidade representam os modos ideais-típicos nos quais as pessoas vivem e
interagem, os modos de coordenação dos indivíduos e suas ações (13). Cada um
deles ativa, e de certa forma se baseia em uma das três capacidades coletivamente
relevantes por meio das quais os seres humanos podem intervir no mundo social:
razão, interesse e paixão.

267
Da mesma forma que fizeram os teóricos políticos do século XVII, o Estado
pode ser pensado como uma criatura construída pela razão humana, tanto em
termos da sua instituição por meio de um contrato racional como pela sua
operação diuturna “racional forma” através do governo burocrático (Weber). A
razão é a capacidade dos indivíduos para encontrar e reconhecer o que é bom
para todos. Nesse sentido, Hegel pode até equiparar o Estado à razão.

O mercado é, evidentemente, movido pelo interesse dos agentes humanos na


aquisição de bens individuais sem nenhuma ou pequena consideração de, ou
controle sobre, o que a busca dos propósitos de aquisição fará para outros ou
mesmo para seus próprios futuros, seja no sentido positivo (como a riqueza das
nações sendo promovida através da “mão invisìvel”) seja no sentido negativo
(com crises, injustiças, conflito social ou danos ambientais como um resultado
agregado que, como a lógica do mercado subentende, ninguém pode prever e
ninguém assume a responsabilidade de ter acontecido).

Finalmente, há a noção de que a ordem social pressupõe, ou de alguma forma se


beneficia, dos direitos e deveres que são associados aos membros das
comunidades concretas. O cimento que integra os membros dessas comunidades
é a paixão humana (como amor, honra, orgulho, ou um sentimento de crença). É
dessas comunidades, sejam elas famílias, grupos religiosos, ou aquelas definidas
por tradições étnicas compartilhadas, que nós derivamos nossa identidade, nosso
sentimento de pertencimento e o compromisso com um modelo ético que
informa nossos projetos de vida.

Cada um desses três tipos de capacidades humanas, gerando padrões


correspondentes de ordem social, se especializa em maximizar um valor distinto.
Esse valor é a igualdade de status legal, compreendendo direitos e deveres no
caso dos Estados; a liberdade de escolha no caso dos mercados; e a identidade e a
sua preservação (através de compromissos, solidariedade e lealdade) no caso das
comunidades. Embora a justiça seja uma consideração importante em todos os
três padrões de ordem social, o sentido operacional de justiça difere
significativamente (14). No caso do Estado moderno, a marca da justiça é a
extensão na qual os direitos, muito freqüentem ente os direitos iguais de todos os
cidadãos sob uma constituição e o domínio do princípio da lei, são garantidos e
feitos cumprir pelas agências estatais. Justiça do mercado, diferentemente,
enfatiza a habilitação de parceiros nas transações do mercado em obter o que foi
acordado entre eles em contratos que voluntariamente celebraram. Finalmente,
justiça no interior de comunidades é um padrão definido de acordo com critérios
de necessidade reconhecida. Os membros de comunidades são chamados a, em
nome da justiça específica da comunidade, assistir os membros necessitados

268
mesmo se eles de nenhuma forma “tenham ganho” a reivindicação para tal
assistência através de contribuições feitas por eles ou através de titulações legais a
eles orientadas por autoridades estatais. Nesse caso, o grupo decide, de acordo
com padrões e tradições, quem tem a necessidade legítima à assistência de seus
pares.

O objetivo desse breve exercício em sociologia básica é nos auxiliar a


compreender a verdade dual que pretendo demonstrar com este artigo. Primeiro,
a provisão de ordem social e estabilidade através de instituições não pode se
basear somente em um desses padrões – Estado, mercado e comunidade.
Qualquer desenho institucional monístico tende a ignorar (no plano teórico) e
destruir (em suas implicações práticas) as contribuições que os outros dois
componentes da ordem social têm para dar. Segundo, esse tipo de desenho não
pode se basear nem mesmo na combinação de apenas dois desses padrões (isto é,
excluindo o terceiro respectivo), sejam sínteses mercado-Estado, Estado-
comunidade, ou comunidade-mercado. Precisamos de todos os três fundamentos
da ordem social, e em uma mistura que consiga evitar que cada um deles se
sobreponha aos outros e os elimine (15). O problema do desenho apropriado de
instituições pode então ser formulado como o de manter a distância apropriada
dos extremos das soluções “puras” e, ao mesmo tempo, evitar o uso “muito
reduzido” de qualquer um daqueles fundamentos.

As doutrinas puras são facilmente reconhecíveis. Primeiro, o estatismo social-


democrata (embora essa seja a doutrina menos defendida como “pura” na
filosofia pública nos dias que correm) enfatiza o uso ativo de capacidades de
governo fortes como a chave para a ordem social e a justiça social. É o oposto do
liberalismo de mercado, ou do libertarianismo, como uma doutrina que se
propõe a tomar como base a coordenação social baseada quase somente em
sinalizações de preço, defendendo, portanto, a privatização, a desregulamentação
e a demolição do estatuto dos direitos, particularmente do estatuto dos direitos
do trabalho. Finalmente, há as formas religiosas e não-religiosas de
comunitarianismo e filosofias públicas conservadoras sociais que enfatizam
significados repartidos, missão e identidade dos grupos e comunidades nacionais
como a fundação última da coesão social. Esses são os três tipos competitivos de
filosofia pública que estão presentes e em competição no fim do século XX.
Desnecessário observar que os sistemas partidários de muitos países refletem a
configuração dessas filosofias públicas, divididos que são em partidos
socialistas/social-democratas, partidos liberais de mercado e partidos que vêem a
ordem social em termos de identidades religiosas e étnicas.

269
O problema de desenhar e defender relações Estado-sociedade, no entanto, não
está em simplesmente escolher um dos três padrões de forma simplista, mas de
se engajar, ou, na pior hipótese, tolerar um processo de desenho processual,
reajustamento e sintonização fina de uma mistura rica e adequada na qual os três
blocos da ordem social tenham papéis variáveis que se limitem entre si. A
capacidade de inventar, implementar e tolerar essas “colchas de retalho” de
ordem social impura ideológica e substancialmente, é a marca da civilidade ou do
“comportamento cìvico”, isto é, a habilidade e a vontade dos cidadãos de utilizar
deliberação aberta e pacífica, assim como métodos institucionais para enfrentar
os conflitos sociais e políticos. O comportamento cívico e os recursos políticos
garantidos pela democracia liberal nos permitem lidar com os dilemas colocados
pelo fato de que vivemos para além do tempo em que bastavam (se não apenas
aparentemente) os pronunciamentos de alguma “linha correta”, “doutrina
governante”, “melhor forma” ou, nesse particular, do “Consenso de
Washington”. O comportamento cìvico, em outras palavras, pode ser concebido
como o ponto de Arquimedes fora do centro de gravidade de qualquer dos três
paradigmas da ordem social, a partir dos quais o seu escopo respectivo pode ser
avaliado e reconfigurado.

Insistir na existência de qualquer “linha correta” é silenciar a voz democrática


clamando por uma compreensão superior e privilegiada da realidade. Esse
silêncio tem sido, por exemplo, o princípio epistemológico do thatcherismo com
o seu slogan “Não há alternativa”, ridicularizado corretamente através da “regra
de Tina”. A construção institucional que ocorre de acordo com a “linha correta”,
entretanto, não pode mais ser conduzida por filósofos e ideólogos, já que nossa
época superou os esquemas descritos por eles. O papel-chave para o desenho e a
preservação da ordem social, portanto, deve ser ocupado pelos cidadãos e suas
próprias associações cívicas. Em um mundo institucional essencialmente
confuso, precisamos de julgamentos públicos informados e engajamento cívico
deliberativo, ao invés de conhecimento especializado que apenas exerça
autoridade no que diz respeito ao que fazer e ao que não fazer. Desnecessário
enfatizar que esse julgamento será sempre o resultado de conflitos freqüentes e
veementes de interesse, ideologia e identidade que a forma democrática de
regime permite que surjam e que sejam solucionados de forma civilizada.
Aparentemente, nos dias de hoje, tanto socialistas de Estado igualitários como
comunitários sociais conservadores acabaram por reconhecer e prestar a devida
atenção à necessidade de autolimitação na aplicação de seus respectivos
princípios de ordem social herdados. Apesar disso, muitos liberais de mercado
ainda se atrasam na arte de relativizar o seu próprio credo. Muitos deles ainda
precisam superar sua crença quase “revolucionária" e reducionista no potencial
salutar de uma liberação ainda mais inescrupulosa das forças de mercado.

270
A única resposta correta a uma questão como “qual é o tamanho ótimo do
governo” é: Ninguém sabe! Ou, ao invés disso, a resposta não é passìvel de ser
dada na forma de um argumento econômico e filosófico, mas somente como
resultado de uma deliberação democrática construída processualmente e bem
informada, levada a cabo no interior de e entre os atores coletivos da sociedade
civil, tanto formais como informais. Na verdade, a demonstração por métodos
acadêmicos de inconsistências e impossibilidades pode ajudar o público a fazer
escolhas mais bem informadas. Mas a resposta é, em última instância, uma
questão de “voz”, e não de “prova”, ou de alguma medida objetiva de
“racionalidade”. A relação e a demarcação da linha entre mercado, Estado e
comunidade é ela própria uma questão de política (16). Como conseqüência,
quase qualquer resposta à questão do papel adequado e do desejável tamanho
relativo dos princípios macrossociais que organizam a economia política será
controversa e essencialmente contestada.

III – AS SEIS FALÁCIAS

Se continuarmos ainda mais com a idéia de uma “mistura cìvica” produzida de


forma processual a partir dos vários ingredientes da ordem social em vez de uma
imposição patrocinada pela elite de um único desses ingredientes, chegaremos a
uma lista de seis abordagens patológicas para a construção de instituições sociais
e políticas, ou ao que denominamos seis falácias. Três delas resultam da
permanência de uma abordagem “bitolada” em um de nossos blocos, e as outras
três advêm da premissa de que algum dos três ingredientes pode ser inteiramente
deixado de fora na arquitetura da ordem social. É importante especificar
rapidamente que essas várias falácias vão provavelmente diferir com relação à
seriedade de seu impacto e a freqüência com a qual ocorrem sob o regime do
atual Zeitgeist. No entanto, revisemos rapidamente cada uma delas.

1. A falácia do estatismo excessivo

Pode parecer que depois da queda do tipo de socialismo de Estado que reinou no
império soviético, assim como depois do colapso da hegemonia intelectual do
keynesianismo nos anos 80, a ortodoxia do estatismo excessivo se tornou uma
aflição improvável. A queda do socialismo de Estado tornou obsoleto um
modelo de proteção estatal autoritário e dirigismo produtivista, deixando para
trás em muitos regimes pós-socialistas a busca de uma “economia de mercado
sem adjetivo". (Essa é uma receita do antigo primeiro-ministro da República
Checa, Vaclav Klaus, que propôs deslocar a especificação da economia de
mercado como “social”.)

271
Entretanto, parece muito importante manter viva na mente a diferença entre um
Estado grande (medido em termos do tamanho de seu orçamento ou do número
de seus funcionários públicos) e um Estado forte, isto é, um Estado cujas ações
de governo têm um impacto significativo no nível e na distribuição das
perspectivas de vida dos indivíduos na sociedade civil (17). Pode mesmo
acontecer que um Estado seja ao mesmo tempo superdimensionado e pouco
eficiente, e que os bens por ele gerados não sejam na verdade bens públicos, mas
bens de certas categorias (ou “clubes”) apropriados pelo que tem sido chamado
de “burguesia estatal”, que pode existir tanto em versões militares como civis.
Entretanto, Estados grandes, freqüentemente, também tentam ser Estados
“fortes”. Em vez de servir à sociedade civil de alguma forma tangìvel, eles
exercitam controle oligárquico sobre atores na sociedade civil. Ainda está aberto
o debate no interior das sociedades avançadas com respeito a que esferas da vida
e da provisão coletiva deveriam ser adotadas ou mantidas pelas autoridades
estatais, e quais deveriam ser deixadas de fora ou transferidas para mercados e
comunidades.

Um antìdoto saudável para a patologia da utilização de um Estado “forte” (em


vez de “grande”) é pesquisar se a prática da governança realmente corresponde a
uma versão estatista do ideal de justiça, entendida como a igualdade de condições
e oportunidades garantida legalmente (18). Será que um aumento marginal na
capacidade estatal aumenta de forma demonstrável o acesso dos cidadãos à
provisão de bens básicos como o acesso a tribunais, proteção legal, provisão de
serviços de saúde, educação, habitação e transporte? Ou será que,
hipoteticamente, uma queda marginal no tamanho do aparato estatal e em suas
responsabilidades serve melhor a esse objetivo? Se a resposta é sim, devíamos
obter ainda “mais por menos”. O ônus da prova para responder a tais questões
deve ser daqueles que defendem maiores gastos estatais e maior nível de
empregos no setor público.

Os críticos liberais dos governos grandes merecem o crédito da demonstração de


que estatismo excessivo freqüentemente inculca disposições de dependência,
inatividade, procura de rendas e benefícios pessoais, clientelismo, autoritarismo,
cinismo, irresponsabilidade fiscal, fuga de accountability, falta de iniciativa e
hostilidade à inovação, se não diretamente a corrupção. Isso ocorre com
freqüência também do outro lado da linha que divide a administração pública de
seus clientes. Com o objetivo de evitar essas tentações que estão postas a altas
autoridades públicas e a responsabilidades estatais, deve-se presumir que o
pessoal do setor público é imbuído de um ethos e um compromisso altamente
desenvolvidos, assim como de grande competência profissional, o que
freqüentemente não é verdade. Todas essas questões tendem a ser

272
desconsideradas indevidamente por aqueles (número que encolhe rapidamente)
que ainda acreditam que maiores gastos públicos e mais empregos públicos são
necessários para, e realmente resultarão em, uma melhor produção e uma
distribuição mais eqüitativa dos bens públicos.

2. A falácia da capacidade de governo "pequena demais"


Mas devemos prestar igual atenção às patologias que aparecem quando o Estado
é feito “desaparecer” sob o ataque feroz de forças polìticas libertárias ou sob o
impacto de crises fiscais severas. Como todos sabemos, o Estado, no seu
mínimo, é chamado a proteger a vida, a propriedade e a liberdade dos cidadãos
(Locke), com a conseqüência para a sociedade moderna que a maioria de
cidadãos (adultos) que opera do lado da oferta dos mercados de trabalho não terá
nem a sua “propriedade" (isto é, o poder do trabalho) nem a sua liberdade
protegidas na ausência de escolas, treinamento vocacional, políticas de habitação,
leis trabalhistas individuais e coletivas e seguridade social organizadas pelo
Estado. Isso porque, na ausência desses serviços e desse estatuto de direitos que
associamos com o Estado do Bem-Estar moderno, o mercado de trabalho se
transforma naquilo que Polanyi (citando Blake) chamou de “moinho satânico”.

De forma similar, mercados para ativos financeiros, bens e serviços não podem
se constituir nem mesmo continuar existindo quando já em funcionamento, sem
a contínua geração e ajustamento de normas de lei civil, assim como a garantia
organizada pelo Estado da aplicação dessas normas através de um sistema de
tribunais nos limites da lei, para não nos referirmos às políticas industriais
direcionadas para promover o crescimento em setores particulares da indústria.
Muito disso se aplica à proteção da “vida” que os Estados têm que providenciar
através da defesa militar, além de prover serviços básicos de saúde e proteção dos
cidadãos da violência “civil” cometida contra eles por outros cidadãos (e, mais
tarde, pelos próprios agentes estatais). Com o objetivo de levar a cabo essas
funções que são essenciais para o Estado, os Estados devem ser capazes de
extrair os recursos necessários para a performance dessas funções através de um
regime de impostos que seja, e deve ser, ao mesmo tempo justo e efetivo.

Por todo o mundo desenvolvido, e não apenas na América Latina, as reformas


do Estado são hoje vistas como o item máximo da agenda da política doméstica,
e têm por objetivo a restauração das capacidades estatais em desmoronamento
(19). Essas deficiências na performance dos Estados estão sendo diagnosticadas
hoje com respeito a todos os aspectos já mencionados: proteção social, lei civil,
lei e ordem e poder de extração de receitas. Aparentemente, temos sido mais
ameaçados pela patologia das severas deficiências estatais do que pela patologia

273
da hipertrofia estatal, embora os liberais de mercado de forma rotineira enfatizem
a segunda. Colocando de outra forma, talvez estejamos sofrendo dos males
combinados de um Estado superdimensionado com uma performance abaixo da
necessária.

3. A falácia da excessiva confiança nos mecanismos de mercado


Os mercados são arranjos institucionais muito peculiares, em que a alocação
competitiva de fatores e resultados da produção é mediada através de sinalizações
de preço. Alega-se que os mercados respondem a desejos individuais, como
expressos através da demanda efetiva. Mas é bem documentado que mesmo
resultados de mercados individuais altamente favoráveis não contribuem muito
para a satisfação dos desejos das pessoas (20). Exceto para categorias de renda
muito baixas, a satisfação da vida e a felicidade sentida pelos indivíduos são
correlacionados de forma muito tênue com aumentos na renda do mercado e a
subseqüente demanda efetiva que essa renda permite que seja transformada em
bens e serviços. Quanto maiores são as rendas, menos elas são direcionadas para
a satisfação de outras necessidades que não a “necessidade” de evitar uma perda
relativa de renda, “necessidade” essa negativa e inteiramente induzida pelo
mercado. Poucos discordariam que os prazeres não-comercializáveis jogam um
papel importante para a satisfação geral da vida, incluindo, podemos sustentar, o
prazer derivado da percepção de se viver em uma sociedade justa.

Também é verdade que o mercado premia eficiência, contanto que as vantagens


competitivas venham como um prêmio por melhores métodos de produção e
melhores produtos, e não como prêmio por melhores métodos de evasão de
impostos, de enganar os consumidores e de reduzir parte dos custos de produção
empurrando-os para o orçamento estatal ou para o público em geral. Mas a
eficiência é valorizada exclusivamente em um ambiente onde os retardatários
sejam punidos – em mercados. Essa é uma das razões por que os mercados têm
sido comparados a uma “prisão” na qual somos obrigados a desenvolver
atividades que não são relacionadas com nossas necessidades, enquanto somos
impedidos de desenvolver outras que vão ao encontro delas (21). Fora dos
mercados não há nenhum valor auto-evidente e absoluto associado a aumentos
de eficiência. Sociedades sem mercado se sustentaram por séculos sem nenhum
aumento observável de eficiência. Os mercados concedem prêmios para
resultados que sejam medidos por eles como superiores em termos de eficiência.
É importante ter em mente a lógica circular desse argumento. Se fizermos isso,
ficaremos menos impressionados com o argumento tradicional de que os
arranjos de mercado são preferíveis a outros arranjos porque eles levam a maior

274
eficiência. Esse argumento é virtualmente tão poderoso quanto o argumento de
que cerejeiras são preferíveis a todas as outras árvores porque elas dão cerejas.

Além disso, supõe-se que mercados sejam “livres”, mas as mesmas condições que
fazem do mercado especial do trabalho um arranjo social tolerável (22) – o
estatuto de direitos dos trabalhadores e a regulação protetora do emprego
(sumariamente referida como “desmercantilização”) – impedem a abertura
completa do mercado de trabalho e excluem números crescentes de potenciais
trabalhadores da possibilidade de se tornarem verdadeiramente trabalhadores,
particularmente depois que o nível de eficiência da produção foi elevado através
da economia do trabalho possibilitada pelo avanço técnico. Essa exclusão
infligida pelo mercado ao mercado de trabalho, entretanto, é, em si, uma das mais
fortes causas conhecidas do declínio na satisfação da vida e da felicidade sentida
pelas pessoas.

Mas os mercados são conhecidos por serem autodestrutivos ainda em outro


sentido. Uma vez que eles são deixados a si mesmos, os atores racionais
conspirarão no interesse de aumentar seus lucros individuais. Para escapar à
ameaça competitiva posta por outros participantes do mercado, constituirão
cartéis e monopólios, subvertendo, conseqüentemente, o ideal de “liberdade de
escolha” em cujo nome os mercados são freqüentemente defendidos. Em outras
palavras, só pelo fato de que mercados competitivos estejam funcionando, não
podemos assumir de forma alguma que eles sejam competitivos na ausência de
alguns agentes a eles externos que forcem que a competição seja mantida.
Adicionalmente, os mercados são conhecidos por sua surdez e cegueira: são
surdos às externalidades negativas por eles causadas, por exemplo de natureza
ambiental, ao mesmo tempo que são cegos às conseqüências de longo prazo que
as transações de mercado podem causar àqueles envolvidos com elas.

Finalmente, os mercados não apenas se ressentem da falta de mecanismos auto-


reprodutivos, e tendem freqüentemente a se subverter em arranjos de poder
monopolista, como também não contam com mecanismos auto-restritivos.
Como não há forma de distinção entre os itens “mercantilizáveis” e “não-
mercantilizáveis”, os mercados tendem a inundar todo o universo da vida social e
mercantilizar tudo – a não ser que essa distinção seja imposta a eles de fora
(novamente), através de uma proibição legal sobre seus limites (por exemplo, em
algum grau, com relação a drogas e prostituição) e/ou através de padrões de bom
gosto e comportamento apropriado estabelecidos e impostos pela ética das
comunidades. Não deixa de ser irônico ver que os defensores dos mercados,
comprometidos que são com a competição e a liberdade de escolha, tendam a

275
fugir da apreciação da legitimidade de uma competição de segunda ordem entre o
mercado e outros métodos de gerar e distribuir itens de valor.

Para ilustrar, comparemos o mercado hoje e em um momento histórico distinto.


Tem sido dito que na Idade Média européia o escopo dos itens mercantilizáveis
era muito mais amplo do que ele é realmente nas modernas economias de
mercado. Essa afirmação, aparentemente despropositada, passa a fazer sentido se
nos lembrarmos de que, na Idade Média, dentre os bens comercializados
estavam, como objetos comuns de troca comercial, itens como a salvação da
alma de alguém, a força militar, o direito ao casamento e outros bens que nós
passamos a considerar “não-comercializáveis”. Aparentemente, encontramo-nos,
no momento, em um caminho de volta à Idade Média, já que cada vez menos
itens parecem de forma sólida ser imunes a ser colocados “a venda". Exemplos
podem incluir títulos de doutor, atração física, atenção pública, decisões judiciais
e até mesmo carreiras políticas (que podem ser adquiridas, respectivamente,
através da compra dos serviços de algumas instituições acadêmicas, de cirurgiões
plásticos, de tempo na mídia, de advogados caros ou de uma equipe de
campanha). Como os mercados são estruturalmente intolerantes a métodos não-
mercadológicos para gerar e alocar itens de valor, eles podem causar o que tem
sido chamado de “armadilha de baixo nìvel”. Paìses (como os Estados Unidos)
onde formas privadas comerciais de provisão são amplamente consideradas
como resposta padrão às condições de necessidade social, e onde qualquer
expansão dos orçamentos estaduais e federal é vista com o alarme costumeiro,
são, ao mesmo tempo, aqueles onde provisões complementares do Estado do
Bem-Estar, onde elas existem, são mais facilmente demolidas. A generalização até
certo ponto paradoxal é que, quanto menor o Estado do Bem-Estar, quanto mais
precários e vulneráveis seus arranjos residuais, mais facilmente qualquer tentativa
de expandi-lo será frustrada (23).

Dadas todas essas características do mercado e seus mecanismos, é bem difícil


invocá-lo como uma contribuição evidentemente superior à ordem social. Ao
contrário, o mercado tem sido considerado acertadamente, de Marx a outros
autores mais recentes, passando por Schumpeter, como um padrão “anárquico”,
“subversivo”, “revolucionário” e “desorganizador” dos arranjos sociais. Na
melhor hipótese, a contribuição do mercado à criação da ordem social é
estritamente contingente da extensão em que este é inserido em
constrangimentos, restrições, regulações, limitações, estatutos de direitos e
normas sociais informais a eles impostas de fora, seja pelo Estado seja pela
comunidade.

276
4. A falácia de uma limitação excessiva das forças de mercado

Ainda assim, como muitas substâncias venenosas, os mercados são


indispensáveis como poderosos remédios se administrados em doses razoáveis.
Esse é o caso de mercados apropriadamente constrangidos e regulados. A
retirada dos mecanismos de mercado de todas as esferas da vida social nos
deixaria sem os efeitos salutares que os mercados podem trazer. Embora essa
retirada seja raramente proposta hoje, é ainda útil lembrar por um momento o
que os mercados são capazes de nos trazer. Quatro pontos vêm à mente.
Primeiro, as trocas no mercado, se bem supervisionadas e policiadas, são
usualmente pacíficas e não violentas, como os economistas políticos do século
XVIII estavam bem cientes quando louvavam as virtudes do comércio (24). Essa
defesa “pacifista” dos mercados, quando aplicada à história do século XX com
sua experiência de conquista e defesa de mercados através de poderes
imperialistas, pode certamente ser colocada em questão. Apesar disso, ela
mantém grande parte de sua validade no nível micro. Pessoas que se relacionam
entre si como parceiros potenciais ou reais nas trocas do mercado têm poucas
razões para atacar os pescoços uns dos outros. Eles podem, ao contrário, até
desenvolver algum sentido de “simpatia” entre si, como Adam Smith foi o
primeiro a sugerir. Isso ocorre porque os resultados do mercado, isto é, os
termos de troca do comércio (por exemplo, a renda ganha por hora trabalhada)
não podem ser atribuídos de forma plausível a intenções (hostis) de qualquer
ator, mas se devem a algumas causas anônimas para as quais o “eu” não tem
ninguém para culpar a não ser a si mesmo. Os mercados são ambientes que se
aprimoram e favorecem a auto-atribuição de resultados, tanto favoráveis como
desfavoráveis, e no final acabam por produzir um quadro cognitivo de
responsabilidades.

Uma outra dimensão positiva dos mercados está em que eles favorecem o
aprendizado. Já se afirmou que os mercados, através da imposição contínua de
sanções positivas e negativas sobre os participantes das transações, fazem as
pessoas mais inteligentes do que elas seriam fora do contexto do mercado. Mas
essa proposição deve ser qualificada, pois se aplica somente se as recompensas
positivas e negativas vêm na forma de incrementos ou perdas relativamente
moderados. Ao contrário, se as recompensas mudam aos saltos, as pessoas param
de aprender e começam a confundir o mercado com uma loteria (25) (no caso
dos grandes ganhos que não podem ser explicados em termos do
comportamento individual) ou respondem de forma fatalista ou em pânico, no
caso de grandes perdas, já que as proporções desastrosas de mudança excedem a
capacidade individual para ajustamento inteligente (26). Finalmente, o mercado
tem um poderoso potencial libertador, já que ele permite que o possuidor de

277
ativos mercantilizáveis escape ao controle tanto das comunidades como de
burocracias estatais (27). Na medida em que se pode efetivamente demonstrar
que o mercado tem realmente potencial para redimir o espírito de interação
pacífica e civilizada, de responsabilidade, de ajustamento inteligente e de
liberação do controle do autoritarismo e dos poderes paternalistas, eles
certamente não podem ser desconsiderados como blocos essenciais para a
construção da estrutura institucional da vida social.

5. A falácia do comunitarianismo excessivo

Uma poderosa representação das realidades atuais é o multiculturalismo. Essa


doutrina do pós-modernismo político tende a codificar as pessoas não em termos
de cidadania, mas em termos de “identidade”. Ela enfatiza a “polìtica da
diferença”, uma diferença que não é sempre concebida como vencida ou
reconciliada por interesses comuns nacionais, cívicos ou de classe. Ela reage ao
fenômeno de massa, tanto presente quanto histórico, da migração transnacional,
tanto voluntária como involuntária. No Atlântico Norte ocidental, a política da
diferença e identidade é uma resposta filosófica ao amplo desencantamento com
as premissas do individualismo liberal e sua forma concomitante de
universalismo socialista. Para ser ciente de você mesmo, você deve descobrir,
reconhecer e cultivar as distintivas “raìzes” que o atam à sua famìlia de origem e,
para além dessa, às comunidades étnicas, lingüísticas e religiosas e suas formas de
vida. O feminismo provê um outro mapa cognitivo que enfatiza identidades de
gênero. A “polìtica do corpo” (idade, comida, saúde, orientação sexual) é
invocada mais à frente na construção de diferenças baseadas em características
físicas, práticas e preferências (28).

Seguindo o modelo dos direitos de grupo concedidos aos afro-americanos em


consideração à discriminação de longa duração imposta a seu status de cidadãos e
a suas oportunidades de vida, a política da identidade se tornou uma estratégia
amplamente copiada por parte de “grupos” autodeclarados para ganhar acesso a
privilégios culturais e de outras naturezas. De forma similar, em países pós-
comunistas, vemos um dramático crescimento de uma política de identidade
étnica, religiosa e lingüística e um nacionalismo étnico e político que, entretanto,
não é limitado em seu potencial ao separatismo violento do mundo pós-
comunista: a Irlanda do Norte e o País Basco, e não somente a Chechênia e a
Bósnia ilustram o potencial da política da identidade para o terror e o horror.
Tanto no Leste como no Oeste, doutrinas de nacionalismo étnico quase sempre
se desdobraram em tendências hostis e repressivas que interferem com cidadãos
“divergentes” e direitos polìticos e civis de “estranhos”. Mesmo em suas formas
mais benignas (como em Quebec), a política comunitária da identidade e da

278
diferença tende a ser exclusivista, antiigualitária e notoriamente difícil de
reconciliar com os princípios cívicos da neutralidade e da tolerância. Mesmo que
não seja abertamente exclusivista, a ênfase em características e solidariedade de
grupo viola os padrões igualitários pelo simples fato de que nem todos fazem
verdadeiramente parte ou se identificam com o grupo definido daquela forma.
Mesmo aqueles que compartilham as características imputadas aos que
supostamente fazem parte do “grupo” podem optar por “pular fora” de sua rede
de solidariedade por causa dos padrões freqüentemente autoritários e
paternalistas que esses grupos quase tribais tendem a desenvolver.

As tensões existentes entre a política da identidade e os princípios igualitários de


cidadania podem ser explicadas pelas dificuldades particulares encontradas pela
tentativa de resolução civilizada dos conflitos de identidade quando comparados
com a resolução dos conflitos de classe (29). A identidade, ou a identificação
apaixonada com alguma comunidade, é quase por definição inalienável e não
negociável. Enquanto conflitos de classe são levados a cabo entre atores coletivos
que dependem uns dos outros (mesmo se assimetricamente), e por essa razão
carregam algum interesse, ao menos implícito, no bem-estar dos seus oponentes,
os protagonistas dos conflitos de identidade, ao menos na sua versão mais
radical, tendem a retratar não-membros como pessoas cuja ausência da “nossa"
comunidade ou território nacional é uma condição para o preenchimento de
“nossas” aspirações de “pureza”. Esse tipo de aspiração com freqüência tem
levado a práticas e justificativas de limpeza étnica.

6. A falácia de negligenciar comunidades e identidade

Mas aqui, novamente, esse é apenas um lado do debate. Do outro lado se afirma,
com alguma razão, que as comunidades e identidades nas quais somos “nascidos”
são as mais poderosas fontes geradoras de compromissos e capacidades morais.
Comunidades como famílias, associações religiosas ou nações étnicas oferecem
aos indivíduos uma sensação de sentido e missão, assim como sentimentos de
orgulho, confiança, amor, culpa, honra, compromisso etc. que talvez somente
possam ser alcançados em comunidades. Estas representam um papel importante
e único na reprodução das tradições culturais e valores étnicos. Somente
comunidades podem gerar, ou pelo menos assim afirma o argumento
comunitário, indivíduos fortes que desejam ser considerados responsáveis por
seus atos e pensamentos, em oposição a oportunistas sem firmeza de caráter. E
essa não é a única contribuição que se presume que as comunidades possam dar
para resolver problemas da ordem social e de integração social. Elas também
merecem reconhecimento e proteção através de políticas de Estado porque,
quase como caldo genético da cultura de uma sociedade, não podem ser

279
manufaturados ou reproduzidos artificialmente. A necessidade de proteger as
culturas comunitárias se aplica especificamente, ou ao menos é isso que se afirma,
quando elas são vistas como expostas ao risco de extinção pelo mercado ou pelas
forças políticas da modernização.

Em qualquer medida, grande parte da evidência demonstra que coletividades


circunscritas por características comuns baseadas em identidades religiosas, de
gênero, de idade, regionais e étnicas, entre outras, com as quais as pessoas
“nascem com”, têm provido energias morais que impulsionam inovações de
interesse público e avanços sociais e políticos. O mesmo pode ser dito de
identidades relativamente permanentes mas menos baseadas em características,
que sejam baseadas no pertencimento das pessoas a comunidades locais ou
categorias profissionais (30). Os novos movimentos sociais das décadas de 1960 e
1970 estão entre esses casos (31). Em inúmeros lugares, movimentos de
estudantes, mulheres e minorias étnicas e raciais, assim como comunidades locais
foram os promotores pioneiros dos direitos civis e tornaram mais sensível o
reconhecimento político e moral de questões de liberação, tolerância, justiça
social e preocupações ambientais e ecológicas. A cessão e a garantia do
necessário espaço para a ação política e social dessas comunidades e para que
possam promover suas práticas associativas (em vez de substituí-Ias por ação
estatal paternalista e/ou repressiva) aparecem como uma pré-condição necessária
para o aprofundamento do uso benéfico coletivo dessas forças comunitárias e
modos de ação.

IV – CONCLUSÃO

As três antinomias da ordem social e política que discutimos não podem ser
resolvidas pelos esquemas grandiosos que filósofos ou ideólogos políticos podem
produzir. O que nos sobrou foi um repertório de argumentos e observações
complementares, em parte contraditórios, que podem ser trazidos à baila sob a
crítica e a reconstrução dos arranjos institucionais existentes. Isso porque não
existem instituições ou relações Estado-sociedade somente racionais. Ao
contrário, essas antinomias e rivalidades ideológicas devem (e eu acredito que
possam) ser resolvidas através de uma cultura de civilidade que se desdobre entre
os pólos de nosso triângulo conceitual de soluções “puras", em grande parte
obsoletas.

As três forças, ou opções de construção institucional que discutimos


anteriormente de forma bastante esquemática, tendem a se entrecortar (32). Elas
também dependem umas das outras. Como nenhuma delas é dispensável, a

280
necessidade de autolimitação dos proponentes de cada uma delas se torna
evidente. Formas institucionais de ação pública recentes enfatizam as limitações
necessárias entre as três forças da construção institucional, mesmo que apenas
através da negação. Por exemplo, falamos de organizações “não-governamentais”
ou do setor “sem fins lucrativos”. Por razões tão boas quanto essas, devìamos
nos referir a organizações “não-sectárias”, isto é, tipos de comunidades não-
exclusivistas ou não-discriminatórias. Essas três negações combinadas são, ou ao
menos assim parece, uma aproximação conceitual muito boa da idéia de
associativismo cívico e de capital social que capacita as pessoas a se engajarem em
práticas associativas.

O uso cívico do capital social e das práticas associativas nas quais ele se manifesta
pode estar fadado a ser um caminho harmonioso e idílico para se escapar ao
dilema da ordem social. Defensores de tais práticas com freqüência parecem
ignorar ou diminuir as realidades do poder social e da impotência. Categorias de
atores sociais podem ter interesse racional na disseminação dos discursos
hegemônicos que favorecem as versões de ordem social centradas na
comunidade, no Estado ou baseadas no mercado. Os cientistas sociais não
compreendem ao certo quais estratégias, condições e percepções orientam esses
discursos hegemônicos que realmente conseguem privilegiar um modelo de
ordem social em prejuízo de suas alternativas desacreditadas efetivamente. Nós
também não entendemos as transformações, às vezes abruptas, que dão origem a
novos discursos hegemônicos, como o da ortodoxia do mercado livre, e à rápida
desmobilização de modelos de ordem social institucionalizados previamente.
Tudo o que podemos talvez dizer é que as lutas de classe semânticas que levam à
disseminação e à consolidação dos quadros cognitivos hegemônicos e intuições
morais estão sujeitas, assim como seus resultados, à formação de julgamentos e
ao confronto autônomo de padrões de avaliação e experiência que podem se
originar nas associações cívicas. Nesse sentido, o capital social não é neutro com
respeito ao poder, mas a própria essência da capacidade da sociedade civil é
desafiar e limitar o seu alcance.

É um truísmo que essa cultura de civilidade não surja automaticamente com a


queda dos regimes autoritários e com a transição para a – ou mesmo a
consolidação da – forma democrática de regime. A sintonia fina, processual,
crítica e flexível, ao mesmo tempo que a recombinação imaginativa dos três
componentes da ordem institucional separados é conduzida pelo “capital social”
(33) disponível no interior da sociedade civil, amplamente referido na ciência
social contemporânea como uma fonte de energia que “faz a democracia
funcionar”. Pelo termo “capital social” queremos denominar o conjunto de
disposições cognitivas e morais dos cidadãos que os leva a estender a confiança a

281
outros cidadãos anônimos (assim como às autoridades políticas que, em última
instância, são investidas pelos cidadãos do poder polìtico), à prática da “arte da
associação” (34) e a estarem atentos aos problemas e às questões públicas (em
oposição às questões estreitas circunscritas a seus próprios grupos). Instituições
de governo justas e transparentes, a prosperidade que mercados cuidadosamente
regulados podem gerar e a vida das comunidades restringida pelo princípio da
tolerância podem e devem, todos, contribuir para a (assim como se retomarem
beneficiários da) formação e acumulação de capital social no interior da
sociedade civil. As forças associativas são mais capazes de definir e redefinir de
forma constante a “mistura correta" de padrões institucionais do que qualquer
autoproclamado especialista ou protagonista intelectual de uma das doutrinas
“puras” da ordem social”. (Tradução: Eduardo César Marques).

NOTAS E REFERÊNCIAS DE CLAUS OFFE

* Neste e em outros momentos do texto o autor utiliza a palavra inglesa “accountability”, que
não apresenta tradução direta na língua portuguesa. Trata-se de uma característica do sistema
político que implica transparência dos atos dos governantes e capacidade de sanção destes
pelos governados, que têm os instrumentos para acompanhar o comportamento dos primeiros
e responsabilizá-los por seus atos. (N. T.)

** No original em inglês o autor denomina o conjunto de fatores como a fórmula dos seis M,
referindo-se à letra inicial das seis palavras. Na tradução para a língua portuguesa, a
denominação da “fórmula” perdeu o sentido e foi retirada.

*** A “regra de Tina” designa a idéia veiculada de forma freqüente, recentemente, de que não
há alternativas para a atual situação internacional globalizada e para o receituário neoliberal de
ajuste, A palavra Tina se origina das iniciais da frase inglesa “There Is No Alternative”;
literalmente: "Não há alternativa”.

(1) Para a realização deste artigo, o autor se beneficiou de comentários úteis feitos por David
Abraham, John Ballard, Robert E. Godin, Stephen Holmes e Osvaldo Sunkel.

(2) Em vez das forças desejáveis e diretas descritas pela “mão invisìvel” de Adam Smith!

(3) Ver Hall & Taylor (1996).

(4) Conferir o titulo revelador da coletânea organizada por Barry & Hardin (1982).

(5) A escola “estruturalista” dos teóricos da democracia costumava sustentar que uma
economia avançada seria um determinante ou um pré-requisito para a democracia, e que a
democracia iria aumentar da mesma forma o potencial para crescimento e prosperidade.
Nenhum dos lados desse modelo de feedback é apoiado pela maior parte da evidência histórica
recente.

282
(6) Ver Beetham (1994).

(7) Ver O'Donnell (1995).

(8) Ver Linz & Stepan (1996).

(9) Como alguns autores têm afirmado, isso tem ocorrido até o limite de tornar a democracia
inútil. Ver Guéhenno (1993).

(10) Qualquer que seja o critério, de Katanga (província do Congo rica em minerais) no inicio
dos anos 60, ao crescimento das demandas catarás por independência nos anos 80, passando
pela independência do Estados Bálticos, assim como pela Croácia e pela Eslovênia no período
pós-soviético no início dos anos 90, foram sempre as regiões subnacionais mais ricas dos
Estados preexistentes que tiveram motivos fortes para se retirar das unidades anteriores.

(11) Ver Streeck & Schmitter (1985).

(12) Streeck & Schmitter, op. cit., p.119.

(13) Ver Etzioni (1961) para uma conceitualização similar dos modos de coordenação através
de normas sociais, poder de coerção e incentivos materiais. Ver também Schuppert (1997)

(14) Ver Miller (1979).

(15) Os casos clássicos dessa superposição e deslocamento mútuo são, de um lado, o "Estado
dependente" cuias capacidades regulatórias e de governo são reduzidas por mercados
monetários nacionais e internacionais e pelas decisões de investidores e, de outro, a economia
“super-regulada”. Ver também a noção de “depleção da herança moral” pela modernização
política e econômica em Hirsch (1976).

(16) Stretton & Orchard (1994).

(17) Ver World Bank (1997).

(18) Por exemplo, pode ser facilmente demonstrado que o sistema de educação terciária na
Alemanha, um sistema quase totalmente estatal, serve à classe média alta profissional e seus
filhos muito melhor do que a qualquer outro estrato social da sociedade alemã. Ao contrário, o
sistema de universidades privadas poderia ser facilmente regulado em formas que dessem
maior peso a considerações de igualdade social.

(19) Ver Kaufman (1997a, b).

(20) Ver Lane (1991); e Oswald (1997).

(21) Lindblom (1982).

(22) Ver o argumenro do "moinho satânico" em Polanyi (1944).

283
(23) Há também, é verdade, o paradoxo reverso da “armadilha do alto nìvel”, como os
“grandes” Estados do Bem-Estar (como o da Holanda) impedindo revisões que signifiquem
reduções e apresentando grande inércia.

(24) Hirschman (1977).

(25) Essa visão de como os mercados operam pode ser encontrada em grande escala nas
economias pós-socialistas com sua rápida e notável explosão de “novos ricos‟.

(26) Isso é bem ilustrado por uma história que se contava na Polônia no contexto da transição
econômica. Suponhamos que o preço do carvão dobre durante um inverno rigoroso. As
pessoas iriam economizar em aquecimento e trabalhar mais (o que já em si as aquece), de
forma a ganhar o adicional necessário de renda para comprar carvão. Agora, suponhamos que
o preço do carvão quintuplique. Qual seria então a resposta? As pessoas desistiriam e
simplesmente permaneceriam na cama.

(27) É essa experiência de escapar ao controle dos detentores do poder que os jovens que
entram no mercado de trabalho experimentam pela primeira vez “ganhando seu próprio
dinheiro” e, conseqüentemente, escapando ao controle dos pais. Também é o que clientes de
empresas de telefonia recentemente privatizadas experimentam quando lhes é dada a chance de
organizar seu próprio pacote, em vez de serem forçados a pagar pelo que a antiga monopolista
pública oferecia como único pacote existente. Devemos notar, entretanto, que a experiência de
tais sensações entusiásticas de libertação pode ser mais do que um fenômeno transitório
associado ao estado estático das rotinas do mercado, No entanto, o desejo tanto dos Estados
como das comunidades de estender o controle autoritário ou paternalista sobre indivíduos
pode apenas ser impedido mantendo permanentemente abertas as opções de saída do
mercado.

(28) Heller (1996).

(29) Ver Offe (1998).

(30) Tendler (1997).

(31) Ver Marwell & Oliver (1993).

(32) Streeck & Schmitter (1985).

(33) Putnam (1993).

(34) Tocqueville (1961).

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286
Epílogo | Localização e desenvolvimento

287
Globalização, glocalização, localização
e desenvolvimento humano e social sustentável
A volta ao local, em uma época de globalização, está se afirmando como uma
alternativa de indução ao desenvolvimento que promete transformar milenares
relações políticas e sociais de dominação.

Intoxicados pela ideologia econômica dos dois séculos passados, em geral


relacionamos o conceito de desenvolvimento com processos de crescimento de
uma parte dos bens e serviços que são produzidos por um tipo determinado de
sociedade, particularmente por uma sociedade separada das demais pelas
fronteiras do Estado-nação. Economistas heterodoxos – como Hazel Henderson
(1) – vêm nos alertando, há muito, para as incongruências desse tipo de
abordagem. Todavia, tais economistas, ao que parece, ainda não se libertaram
completamente da visão reducionista daquilo que, na língua inglesa, se chama de
“economics”.

Alguns, como a própria Henderson, criticam a identificação de desenvolvimento


com crescimento do PIB, entre outras coisas porque o processo de cálculo do
PIB não leva em conta uma série de atividades „socialmente produtivas‟ (como o
trabalho doméstico e o trabalho voluntário) e ambientalmente necessárias à
sustentabilidade da sociedade humana (como a absorção dos custos da poluição e
a reciclagem de efluentes) (2). Outros, como Paul Ormerod (1994) indo mais a
fundo, criticam os fundamentos da economia ortodoxa, quando observam que “a
idéia de que a sociedade é constituída por indivíduos que agem a partir do cálculo
racional de seus interesses pessoais impregna as teorias modernas... [a tal ponto
que] na verdade, para um economista, assim como para Mrs. Thatcher, isso que
chamam de sociedade é algo que não existe, só existem os indivíduos que a
constituem” (3).

Há quem, cavando ainda mais fundo, tente mostrar que a economia ortodoxa é
uma economia que só vale para o modelo de crescimento, podendo haver,
entretanto, um modelo estacionário (de „crescimento zero‟), supostamente – sob
certas condições ambientais latu sensu – mais sustentável para as sociedades
humanas.

Por último, nos anos 90, apareceram aqueles que, como Brian Arthur (1996),
tomando a sociedade (e a economia) como um sistema complexo, questionam

288
dogmas universalmente aceitos, como a famosa Lei dos Retornos Decrescentes
de Turgot (1767), mostrando que tais retornos podem sim ser crescentes e, muito
além disso, abrindo um novo referencial conceitual e introduzindo novos
instrumentos analíticos para estudar as múltiplas interações (e retroalimentações)
que se dão nesse tipo de sistema (4).

Desenvolvimento não é a mesma coisa que crescimento


Não é a hora, nem o lugar, de fazer um inventário mais sistemático desses
questionamentos aos fundamentos ideológicos ou teóricos do pensamento
econômico ainda predominante. Basta observar que eles são predominantes,
como fez Ormerod, quando constatou que, se os economistas raramente se
põem de acordo, todas as suas dissensões “dizem respeito ao comportamento da
economia no nível global, no macronível, e não no micronível do
comportamento individual. O micronível é que é descrito pelo modelo de
equilíbrio da economia marginal e que é fundamental para a visão de mundo dos
economistas ortodoxos, independentemente de quaisquer diferenças que possam
ter sobre a condução da polìtica macroeconômica” (5).

É assim que, por exemplo, freqüentemente se observa que (quase) todos os


economistas, não obstante sua opção partidária ou coloração ideológica,
prescrevem receituários extremamente parecidos quando se trata de indicar aos
governos (sua tarefa preferida) como eles devem se comportar para promover o
desenvolvimento das nações. A solução universal é sempre o crescimento que,
por virtude de mecanismos intraeconômicos, traria como conseqüência o
desenvolvimento humano e social. Depois eles discordam em quase tudo sobre a
posologia. O remédio, contudo, é consensual.

Isso não ocorre por acaso. O crescimento é um fenômeno típico da revolução


industrial. É uma invenção do século 18. E a economia é uma disciplina
construída para explicar um fenômeno que não existia de modo significativo nos
milênios anteriores.

Só para dar um exemplo, estima-se que entre 500 e 1.500 d. C, o PIB do mundo
cresceu em média apenas 0,1% ao ano, se é que tanto. A coisa só começou a
exigir explicação no século 18, quando a Grã-Bretanha passou a crescer a taxas,
dramáticas, de 1% ao ano (6). Foram pessoas fascinadas com esse fenômeno –
como Adam Smith (1776) e Thomas Malthus (1798), entre tantas outras – que
revolveram inventar uma ciência para explicá-lo. Por isso, a ciência econômica
vigorante é uma ciência do crescimento. Surgiu para explicar uma coisa e, a partir

289
daí, se pôs a explicar todas as coisas através de uma coisa (o crescimento). E por
isso é legítima a dúvida de Melvin Reder (1998), da Universidade de Chicago, de
se a economia é realmente uma ciência ou uma “ideologia disfarçada” (7).

Assim, existem muitas teses que são dadas como certas pelo pensamento
econômico, mas que não estão “provadas” por critérios cientìficos e se
assemelham mais a crenças. Vejamos alguns exemplos.

Um primeiro exemplo é a confiança absoluta “na primazia do mecanismo de


mercado ao supor que as preferências dos consumidores são reveladas por suas
escolhas de bens e serviços e que o mecanismo de mercado garante a satisfação
dessas preferências”. Isso só se verifica sob certas condições ideais que, em geral,
não se reúnem perfeitamente em sociedades reais. Além disso, as escolhas
individuais freqüentemente não são apenas racionais, mas dependem de
expectativas de recompensa emocional. E, ainda, os “átomos de interesse” são
condicionados por padrões de comportamento coletivos (das “moléculas de
convivência”) que se replicam pelo simples fato de que são replicáveis
culturalmente e não em virtude de qualquer maximização voluntária e racional da
satisfação de interesses individuais. Se não fosse assim não se explicaria porque se
gasta, nos Estados Unidos, cerca de 60 bilhões de dólares em produtos de beleza
e, no Reino Unido, mais de 1 bilhão de libras em comida para animais de
estimação, enquanto que as pessoas resistem tanto a investir em sistemas de
saúde e educação ou, mesmo, na melhoria do ambiente social e natural onde
vivem, o que, racionalmente, aumentaria a qualidade da sua vida e de suas
famílias (8).

Um segundo exemplo pode ser dado pela crença de que “a mão invisìvel do
mercado” possa promover mais equidade em sociedades onde todas as (ou várias
das) variáveis do desenvolvimento (como o conhecimento e o poder ou
empoderamento, para além da renda e da riqueza) estão concentradas.

Um terceiro exemplo é a ênfase atual na idéia de „competitividade sistêmica‟


como se fosse uma verdade inquestionável ou uma descoberta universalmente
aceita e demonstrada pela ciência contemporânea, quando tal conceito não passa
de um modo-de-ver, de uma interpretação. Nada contra as dinâmicas
competitivas caracterìsticas do mercado, da sua “lógica” e racionalidade próprias,
mas tal idéia freqüentemente faz transbordar a dinâmica mercantil (competitiva)
para a dinâmica social levando à perigosa concepção de que sociedades devem
ser competitivas, quando, ao que parece, sociedades competitivas não constituem
bons ambientes para mercados competitivos. Pelo contrário, todas as evidências
mostram que uma economia competitiva consegue se sustentar melhor em

290
sociedades cooperativas. Ou seja, a economia pode – e deve – ser “de mercado”,
mas a sociedade não.

E, para citar um quarto e último exemplo, o argumento – prisioneiro de uma


circularidade fatal – de que crescimento leva inexoravelmente à desenvolvimento;
ou de que crescimento econômico leva à desenvolvimento social e redução da
pobreza se houver distribuição da renda. Ora, como já argumentei no meu livro
“Pobreza e Desenvolvimento Local” (Brasìlia: AED, 2002), “para distribuir a
renda em um patamar que, supostamente, seja suficiente para promover o
desenvolvimento social necessário para sustentar o crescimento é necessário ter
um nível de crescimento a altas taxas e mantê-lo durante um certo tempo. A
pergunta é: como fazer isso, se o alcance e a manutenção dessas taxas exigem
níveis de desenvolvimento social que só podem ser atingidos quando tais taxas
forem praticadas por certo tempo? Repetindo... a circularidade do argumento
econômico é a seguinte: como fazer crescer o PIB a altas taxas, continuadamente
e por um tempo suficiente, para que seja possível uma distribuição significativa
da renda, se, para tanto, é necessário partir de patamares de capital humano e de
capital social que [para tal raciocínio] só seriam alcançados com um crescimento
continuado do PIB a altas taxas?” (9).

Ao final da primeira década da segunda metade do século 20 foi colocada a


questão da sustentabilidade do crescimento, ou melhor, da própria sociedade
humana no modelo do crescimento. Grande parte do então nascente movimento
ambientalista se constituiu a partir da constatação de que não poderia haver
crescimento ilimitado em um mundo finito. O que coloca um limite para a
economia enquanto ciência do crescimento. Seria uma “ciência temporária”, ou
seja, suas hipóteses só seriam válidas enquanto não se chegasse ao limite dos
recursos, limite a partir do qual nem a explicação nem a receita do crescimento
seriam válidas ou aceitáveis.

Só muito recentemente as pessoas (diante de realidades como a pobreza e a


desigualdade em certas nações, que teimam em não diminuir em virtude do
crescimento) começaram a se perguntar sobre os objetivos do crescimento, sobre
„para quê‟ e „para quem‟ ele deveria ser promovido. Foi assim que começou a
entrar em debate a temática do desenvolvimento humano. E, mais recentemente
ainda, a temática do desenvolvimento social.

291
Desenvolvimento humano não é a mesma coisa que
desenvolvimento social
Absorver a temática do desenvolvimento humano não foi tão difícil assim para
uma parte dos economistas. Afinal, o fator humano pode sempre ser visto como
um fator individual, pilar sobre o qual se assenta toda a construção econômica
ortodoxa: são indivíduos que, agindo a partir do cálculo racional de seus
interesses egoístas, ao fim e ao cabo constituem a sociedade. Portanto, de um ou
outro modo, são os (ou alguns dos) indivíduos que, ao se desenvolverem (no
caso, ao prosperarem economicamente em seus empreendimentos – como
donos, sócios, acionistas ou empregados – ou ao auferirem marginalmente os
resultados do crescimento geral da economia) desenvolvem as nações e, ao
mesmo tempo, se desenvolvem a si próprios em termos humanos (aumentando
seus níveis de renda, de escolaridade, de saúde, de expectativa de vida e de outros
fatores que porventura se queira introduzir na composição do chamado “capital
humano”).

Todavia, absorver a temática do desenvolvimento social não está sendo tão fácil,
na medida em que a compreensão de que “o comportamento do sistema pode
ser bem diferente daquilo que é possível prever a partir da extrapolação do
modelo de comportamento dos indivìduos” exige uma certa superação da
abordagem mecanicista que ainda predomina entre os economistas e em todos
aqueles cuja consciência foi colonizada pela sua visão de sociedade.

Quando os economistas falam em desenvolvimento social estão, em geral,


pensando em desenvolvimento humano a partir de uma racionalidade
econômica. E quando os policymakers (cuja consciência foi colonizada pelos
economistas) falam em desenvolvimento social estão falando em usar superavits
de crescimento (recolhidos em geral na forma de impostos) para fazer
investimentos em saúde, educação, saneamento, habitação, alimentação e
nutrição, transporte, segurança, emprego e renda e estão falando na perspectiva
de que o Estado, ao fazer isso, estaria promovendo as condições necessárias e
suficientes para que as pessoas pudessem ter acesso ao mundo do
desenvolvimento econômico. Não estão tratando exatamente de
desenvolvimento social, mas de igualdade de oportunidades para os indivíduos a
partir de uma racionalidade econômica.

Ademais, em geral as pessoas confundem desenvolvimento humano com


desenvolvimento social porquanto imaginam que o que chamamos de social seja
apenas um sinônimo para „coletivo de gente‟, denominação para um conjunto de

292
elementos humanos (indivíduos) co-presentes sobre um território por longo
tempo. Não percebem que o conceito de „social‟ se aplica a um sistema complexo
(a sociedade), que não significa apenas a reunião ou a soma dos indivíduos e cujas
funções (que explicam o chamado comportamento social) não podem ser
derivadas daquelas que são desempenhadas pelos indivíduos.

O primeiro requisito para compreender o que se chama de desenvolvimento


social é partir da premissa de que a sociedade existe. É por isso que é tão difícil
para o pensamento econômico ortodoxo aceitar a idéia de desenvolvimento
social (na medida em que ele se baseia em uma premissa contraditória com a
premissa da existência da sociedade ao supor que o comportamento do sistema
econômico como um todo possa ser inferido da mera soma das suas partes
individuais). Ora, como o pensamento econômico ortodoxo virou uma espécie
de “religião laica”, cujos dogmas são ensinados nas escolas e reproduzidos em
toda a parte, sobretudo pelos noticiários da mídia, em geral as pessoas são
conduzidas a pensar nos seus termos.

Desenvolvimento é sempre desenvolvimento sustentável


As mesmas dificuldades para compreender o desenvolvimento social
(empregando o termo „social‟ para designar os sistemas complexos que
chamamos de sociedade humana) se revelam em relação à compreensão do
desenvolvimento sustentável. Porque a sustentabilidade é uma função de
integração, é um comportamento emergente em um sistema complexo que
viabiliza a conservação da sua adaptação ao meio.

Os ecologistas chegaram a essa compreensão a partir da observação do


comportamento dos organismos vivos e, sobretudo, a partir do estudo dos
ecosistemas. Começaram a ver que o que mantinha vivos tais sistemas era o
resultado de miríades de atividades em uma rede reguladora e não da condução
exercida centralizadamente por um centro diretor. Tais atividades visavam
estabelecer e restabelecer, continuamente, congruências múltiplas e recíprocas
com o meio. Se essas congruências fossem rompidas – ou seja, se a adaptação
não fosse conservada – o organismo não permaneceria vivo e, portanto, o
sistema não seria sustentável.

Aqui também se revela, portanto, a impotência do pensamento mecanicista para


compreender e operar sistemas complexos. O importante não é fazer crescer as
variáveis do desenvolvimento e sim fazê-las atingir valores ótimos (ou, mais
precisamente, flutuar em intervalos mutuamente correspondentes em torno de

293
valores ótimos) para que o efeito de conjunto possa ser a capacidade de
conservar a adaptação.

Assim, para o desenvolvimento sustentável, o relevante é a configuração dos


fatores do desenvolvimento em seu conjunto (como a renda, a riqueza, o
conhecimento, o poder ou o empoderamento e a interação com o meio ambiente
natural) e não os valores dessas variáveis tomados isoladamente. Maximizar
isoladamente o valor de uma dessas variáveis levará por certo à insustentabilidade
– hipótese muito difícil de ser aceita pelos ideólogos do crescimento, para os
quais a coisa funciona sempre na base do „quanto mais melhor e não importa o
resto‟. Mantidos os padrões atuais de produção e consumo (cuja conformação
tem a ver com a relação entre vários outros fatores do desenvolvimento), uma
renda per capita, por exemplo, de 100 mil dólares, poderia levar uma sociedade
ao colapso, como qualquer pessoa inteligente pode desconfiar, mas para eles seria
algo assim como o céu.

Do ponto de vista da sustentabilidade o desenvolvimento é, assim, sempre uma


espécie de “coevolução”, de desdobramento de um condomínio interativo de
fatores. E torna-se inclusive redundante utilizar a expressão „desenvolvimento
sustentável‟ na medida em que um desenvolvimento que não fosse sustentável
poderia até ser crescimento (de uma ou de várias variáveis) mas não seria
desenvolvimento.

Desenvolvimento local não é apenas desenvolvimento


econômico
As dificuldades de compreensão do desenvolvimento como um fenômeno
sistêmico também se revelam em relação ao chamado desenvolvimento local.
Como tudo foi pensado para uma localidade (quer dizer, para um único tipo de
localidade), particular e separada das demais, ou seja, aquela contida pelas
fronteiras do Estado-nação, muitas pessoas não vêem sentido na expressão
desenvolvimento local. Ou melhor, compreendem o desenvolvimento local
(quando se trata de localidades sub-nacionais) sempre como um resultado
decorrente do (ou intimamamente associado ao) desenvolvimento nacional.
Ontem, Adam Smith escreveu sobre “a riqueza das nações” e não sobre a riqueza
de uma localidade qualquer. Hoje, já no declínio da era das nações-Estado, as
pessoas continuam considerando apenas o desenvolvimento nacional, se bem
que agora como o resultado de políticas macroeconômicas acertadas (que levem à
estabilidade e ao crescimento), mas cujas medidas não podem ser tomadas em

294
nível sub-nacional, em pequenas localidades pelas quais não trafegam os grandes
fluxos de recursos do mundo econômico. Não é a toa que essa gente ande tão
nervosa nos últimos anos, ao constatar que o processo de globalização retira
também boa parte da autonomia macroeconômica do Estado-nação, que, em
alguns casos, vira uma localidade tão periférica no mundo econômico global
quanto os pequenos municípios do interior que sempre desprezaram.

As pessoas em geral têm dificuldades para compreender como é que


promovendo o desenvolvimento de localidades periféricas e com baixíssimo PIB
pode-se lograr um impacto ponderável no processo de desenvolvimento do País.
Comparece aqui, por certo, além do preconceito econômico original (o “pecado
original” do pensamento econômico, que identifica crescimento com
desenvolvimento), o preconceito macroeconômico (ou dos policymakers
econômicos) segundo o qual a unidade que deve ser desenvolvida é o Estado-
nação e que, portanto, só existe uma localidade que conta de fato. Ora, isso é
uma escolha política (motivada por uma visão ideológica: o estatismo como
ideologia legitimadora da construção política chamada Estado-nação) que nada
tem a ver com qualquer coisa que se queira chamar de ciência. Por quê não se
pode pensar em uma localidade supra-nacional (em uma união de países, como,
por exemplo, a União Européia)? E se a prática mostra que se pode pensar,
nestes termos, em uma unidade de desenvolvimento supra-nacional, por quê não
se poderia pensar em uma unidade infra-nacional (como uma micro-região ou um
município)?

O mesmo preconceito também se verifica entre os que aceitam a idéia de


desenvolvimento local (aplicada a unidades infra ou sub-nacionais) sem terem se
livrado ainda da ideologia econômica. Dentre estes há os que sustentam, por
diversos caminhos argumentativos, que o fundamental é promover o
desenvolvimento econômico das localidades, seja para fortalecer o mercado
interno, seja para aumentar o volume ou promover a distribuição da riqueza pela
multiplicação do número de proprietários produtivos, seja para – em uma época
de globalização – se refugiar em espaços ainda não devastados pelos fluxos
financeiros do capitalismo global para, ali então, nesses pequenos “esconderijos
da história”, iniciar processos virtuosos de acumulação primitiva de capital
autóctone.

Ora, a simples ênfase da palavra „econômico‟ na expressão „desenvolvimento


econômico local‟ revela, em geral, uma incompreensão do desenvolvimento
como fenômeno sistêmico. Revela aquele preconceito economicista, tão comum
nas cartilhas dos dois séculos passados, segundo o qual é o econômico que
“puxa” o resto, que o econômico, portanto, deve ser o ponto de partida, pois que

295
é ele que determina o comportamento das demais variáveis do desenvolvimento
(e isso quando se admite que existam outras variáveis na equação do
desenvolvimento, uma vez que, em geral, todos os demais fatores, além do
capital físico e financeiro, são tratados como externalidades e, quando são assim
tratados, são considerados também como não-centralidades). Muitas pessoas que
pensam dessa maneira em geral assumem o desenvolvimento local quando se
convencem de que isso será útil para gerar trabalho e renda.

Mas não se trata de multiplicar experiências de geração de trabalho e renda a


partir de uma racionalidade exclusiva ou predominantemente econômica, como
ocorreu nos anos 80 e em boa parte dos anos 90 do século passado. Como disse
Caio Márcio Silveira (2003), “o grande diferencial das experiências de
desenvolvimento local, iniciadas ao final da década [de 1990], é justamente
constituir uma matriz de projetos no território (o que chamo de "usina social de
projetos"), onde se combinam articulação interinstitucional e participação social
(ou novos "arranjos sócio-institutucionais" ou "novas institucionalidades",
vinculando ampliação da esfera pública e oferta de serviços territorializados).
Como sabemos, este diferencial de ambiente não é apenas um "aspecto
contextual", mas é o núcleo do processo, é aí que se dá o salto do pontual para o
sistêmico” (10).

Todas as dificuldades de compreensão comentadas acima têm a ver com a


ausência de visão sistêmica na medida em que, sem essa visão, não é possível
perceber as múltiplas interações entre as localidades e, nem mesmo, o que
significa „local‟ – e isso para não falar da percepção do processo em curso de
localização no sentido “forte” do conceito e da hipótese que o sustenta. Ademais,
sem a visão sistêmica não se consegue perceber as múltiplas interações entre os
diversos fatores de desenvolvimento dentro de cada localidade.

Do ponto de vista sistêmico, cada localidade é única porquanto apresenta uma


combinação particular de fatores do desenvolvimento, um arranjo próprio de
diversos capitais; para usar uma linguagem metafórica: o capital físico-financeiro
e o capital empresarial – i. e., a propriedade produtiva –, o capital humano, o
capital social e o capital natural. Assim, para caracterizar um lugar, desse ponto
de vista, as configurações particulares dos fatores de desenvolvimento devem ter
a durabilidade necessária para gerar um padrão capaz de replicar. Ou seja, as
variáveis devem flutuar, durante um tempo suficiente, em torno de certos valores
relativos e, portanto, é isso o que caracteriza o desenvolvimento daquela
localidade como já comentei no capítulo anterior.

296
Para a visão sistêmica não há, portanto, nenhuma variável a ser maximizada
isoladamente e nem há qualquer variável que possa ser responsabilizada por
produzir o efeito de conjunto chamado desenvolvimento. Em determinada
localidade o valor da variável „capital humano‟ pode ser muito maior do que em
outra e isso não significa que tal localidade é mais desenvolvida do que a outra.
Valores menores de „capital humano‟ podem ser “compensados” por valores
maiores de „capital social‟. Se não fosse assim o Brasil seria um país muito menos
desenvolvido do que a Argentina. Ou valores menores do PIB podem ser
“compensados” por altos valores do „capital humano‟. Se não fosse assim a
Islândia ou a Suiça seriam países muito menos desenvolvidos do que os Estados
Unidos. As pessoas que não vêem isso em geral confundem desenvolvimento
com pujança econômica ou, às vezes, infelizmente, com capacidade político-
militar de se impor ao mundo, unilateralmente, a partir de posições e argumentos
de força. Ora, estamos falando de desenvolvimento ou de capacidade de dominar
e de mandar nos outros? Se ambas são a mesma coisa, ou se uma leva
inexoravelmente à outra, então se poderia medir o grau de desenvolvimento de
uma localidade pelo número de ogivas nucleares e mísseis balísticos operacionais
que possui em estoque e não deveríamos ficar perdendo tempo e quebrando a
cabeça com a elaboração de índices humanos, sociais ou ambientais de
desenvolvimento. Mas não me consta que apesar de seu número de ogivas e
mísseis intercontinentais alguém em sã consciência prefira viver na Rússia do que
no Canadá baseado no cálculo de que lá, na primeira, exista mais
desenvolvimento.

Mas há um fator ou variável na equação do desenvolvimento que, quando se trata


de desenvolvimento local (quer dizer, quando queremos olhar o desenvolvimento
como desenvolvimento local, encarando, portanto, o fenômeno real que acontece
sempre em uma localidade concreta e não no mundo abstrato da “máquina
econômica” inventada pelos economistas), se distingue dos demais, não pela sua
capacidade de determiná-los (papel que se atribui tradicionalmente ao fator
econômico em virtude, entre outras coisas, da (com)fusão entre crescimento e
desenvolvimento) e sim pelo seu papel “ambiental”, por assim dizer; ou seja: pelo
fato de estar implicado na própria geração daquilo que chamamos de localidade.
Tal fator é o capital social, ou o „poder social‟ ou a capacidade de um coletivo
humano estável de se mover, de alterar suas relações internas (compreendendo
que, se desenvolvimento implica sempre mudança, tal mudança é também,
sempre, uma mudança social, uma vez que o conceito de desenvolvimento se
aplica a sociedades humanas e não a quaisquer outros sistemas ou coleções de
objetos vivos ou inanimados).

297
Para compreender esse ponto de vista é preciso ver as relações intrínsecas entre
localização e desenvolvimento.

O nexo conotativo entre localização e desenvolvimento


Uma tentativa de sistematização das hipóteses e definições utilizadas neste livro
para construir uma argumentação capaz de estabelecer um nexo conotativo entre
localização e desenvolvimento poderia ser apresentada de modo sucinto da
seguinte maneira:

1 – Sociedades são coletivos humanos estáveis, afastados do estado de equilíbrio,


que adquirem características de sistemas complexos adaptativos a medida que
assumem a morfologia de redes.

2 – A forma e o comportamento culturais manifestam-se como propriedades que


emergem da dinâmica complexa das redes sociais.

3 – Sociedades geram (por repetição) padrões de comportamento, ou seja,


unidades culturais (programas), capazes de se replicar (por imitação).

4 – O sistema (a rede social) funciona como amplificador dos estímulos


recebidos/emitidos por seus componentes e como processador capaz de realizar
múltiplas operações em paralelo simultaneamente por meio desses componentes
(humanos).

5 – Localidade (ou „local‟, no sentido “forte” da hipótese) é uma realidade social


criada pelo processo de localização.

6 – Localização é o processo de geração de identidade e de replicação de suas


características realizado por uma sociedade.

7 – Quanto mais tramada por dentro (por redes sociais) for uma localidade e
quanto mais conectada para fora ela estiver, maior será o seu „poder‟ de gerar
padrões replicáveis de comportamento.

8 – Quanto mais tramada por dentro (por redes sociais) é uma localidade, menor
ela é (adquirindo o status de „mundo pequeno‟).

298
9 – Quanto menor o mundo (no sentido de mais tramado por redes sociais ou da
existência de mais caminhos entre seus nodos) mais potente socialmente ele é
(small is powerful).

10 – A localização diminui o „tamanho do mundo‟ e aumenta o seu „poder social‟.

11 – Quanto mais „poder social‟ tem uma localidade, mais capacidade ela tem de
usinar unidades culturais imitáveis (softwares replicáveis, capazes de “rodar” em
outros hardwares, ou seja) em outras localidades.

12 – É o sistema como um todo (a rede social) que confere „poder social‟ ao seus
componentes (humanos).

13 – Todo „poder social‟ é empoderamento humano.

14 – Comunidades são „mundos pequenos‟ que atingiram certo grau de


“tramatura” do seu tecido social.

15 – Comunidades são sociedades com mais „poder social‟ para usinar padrões de
comportamento (programas).

16 – O processo de localização cria comunidade.

17 – A ampliação social da cooperação, que dá origem ao (ou co-origina o) fator


do desenvolvimento designado pelo conceito de capital social (e que é o
conteúdo do que chamamos de „poder social‟), ocorre (ou exclusivamente, ou
predominantemente) em comunidades.

18 – Quanto mais conectada para fora estiver uma comunidade mais condições
ela terá de exportar padrões de comportamento (programas) que serão adotados,
por imitação, por outros coletivos humanos.

19 – Chamamos de desenvolvimento ao grau de desenvolvimento desses


programas (que dá a medida da sua capacidade de induzir comportamentos em
virtude do seu „poder social‟ de gerar e replicar seus próprios padrões).

20 – Quanto menor (e, portanto, mais potente socialmente) é um mundo, mais


chances terão de se propagar mudanças de comportamento ensaiadas por seus
componentes (ou seja, mais susceptível ele será à mudança social).

299
21 – Quanto mais localizado estiver um mundo mais apto a experimentar o
desenvolvimento ele estará.

22 – Desenvolvimento é uma classe de mudança social.

23 – A classe de mudança social que interpretamos como desenvolvimento é


aquela caracterizada pela conservação da adaptação (ou pela “co-evolução” com
o meio; ou, ainda, pelo que se chama de sustentabilidade).

24 – Não há desenvolvimento sem cooperação.

25 – Todo desenvolvimento é local.

26 – Todo desenvolvimento é humano.

27 – Todo desenvolvimento é social.

28 – Todo desenvolvimento é sustentável (ou seja, só se pode chamar de


desenvolvimento às mudanças sociais que contribuam para a sustentabilidade do
sistema).

29 – Todo desenvolvimento local (humano, social e sustentável) só se define


completamente pelas suas relações com o global.

Justificativas para as proposições acima já foram apresentadas, de modo a-


sistemático, ao longo do presente texto e reproduzi-las aqui seria cansativo. Resta
ver o que tudo isso tem a ver com a chamada revolução do local e por quê se
afirma que a volta ao local, em uma época de globalização, está se afirmando
como uma alternativa de indução ao desenvolvimento que promete transformar
milenares relações políticas e sociais de dominação.

A revolução do local como promoção do desenvolvimento


O objetivo da revolução do local não é tomar o poder político e sim aumentar o
„poder social‟ das comunidades que estão (re)florescendo em uma época de
globalização. É por isso que ela é uma revolução social stricto sensu (e não uma
revolução política feita “em nome” de uma revolução social).

Como vimos, enquanto as velhas comunidades eram comunidades herdadas (ou


comunidades de passado), as novas comunidades que estão surgindo, durante o

300
processo em curso de globalização, são comunidades de projeto, ou seja, futuros
desejados, projetados e antecipados em experiências concretas por coletivos
humanos estáveis.

Na velha concepção de revolução estatal-nacional os revolucionários são


reformadores de conteúdos político-ideológicos e não de estruturas e dinâmicas
sociais. Mesmo declarando o contrário – e se apresentando como
transformadores sociais – na prática logram apenas trocar o “recheio” do Estado.
Pregam, muitas vezes, a mudança do “caráter de classe” do Estado e outras
besteiras semelhantes que significam, sempre, ao fim e ao cabo, remover (por
meios violentos ou pacíficos) os velhos ocupantes para ocupar o seu lugar, via de
regra mantendo, entretanto, inalterados, as estruturas piramidais (hierárquicas), os
processos centralizados (e burocratizados de comando) e sobretudo, o padrão,
vigorante há milênios, de relação do Estado com a sociedade.

Na nova concepção de revolução do local, os revolucionários são inovadores,


experimentadores de micro-mudanças de comportamento que alteram padrões
de organização (mais rede e menos hierarquia) e modos de regulação (mais
democracia e menos autocracia), podendo transformar de fato o padrão de
relação entre Estado e sociedade.

Os novos agentes revolucionários são agentes de desenvolvimento no sentido em


que o conceito foi redefinido aqui. São agentes políticos, por certo, mas naquela
outra acepção apontada por Platão em “As Leis”; ou seja, não são os
conhecedores da “ciência do estrategista” e sim os praticantes da “arte do
tecelão”. São tecelões de redes sociais. E são experimentadores de processos
democrático-participativos.

Ora, o conteúdo da expressão „poder social‟ é o próprio conceito de „capital


social‟. Os novos agentes revolucionários são agentes de desenvolvimento
porque são construtores de capital social, artífices de programas de investimento
em capital social. Por quê? Porque, como vimos, o capital social é um fator sem o
qual não pode ocorrer o que chamamos de desenvolvimento.

Mas assim como, em geral, economistas e policymakers ainda não se deram conta
das relações entre desenvolvimento e democracia, nem mesmo os teóricos do
capital social parecem ter se dado conta das relações entre a produção de capital
social e o processo de democratização, ou melhor, de democratização da
democracia.

301
A relação entre revolução do local e radicalização ou
democratização da democracia
Do ponto de vista da democracia realmente existente, o relevante é que os
modos de regulação de conflitos sejam não-violentos. Do ponto de vista da
radicalização ou da democratização da democracia, não basta que esses modos
sejam não-violentos, porquanto é necessário que eles sejam cada vez menos
adversariais e cada vez mais cooperativos (“pazeantes” ou construtores de paz).
Ou seja, enquanto a democracia que temos (representativa | política | formal) se
conforma com a regulação majoritária da “inimizade polìtica” (pela via da
prevalência da vontade da maioria em eleições), uma democracia em processo de
radicalização (representativa  participativa | política  social | formal 
substancial) almeja transformar a “inimizade polìtica” em “amizade polìtica”.

Do ponto de vista da democracia realmente existente, o relevante é que haja


renovação periódica do poder político do Estado-nação. Do ponto de vista da
radicalização ou da democratização da democracia, isso não basta, sendo
necessário que cada vez mais pessoas tenham oportunidade (por livre escolha ou
voluntariamente) de participar do poder político, sobretudo naqueles âmbitos que
afetem diretamente as suas vidas (i.e., nas suas localidades). Para que seja possível
efetivar tal participação não basta um regime formal de liberdades políticas
(asseguradas por lei), mas é preciso que as sociedades locais empoderem seus
componentes. Ou seja, é necessário que exista um „poder social‟
ensejando/viabilizando a participação dos cidadãos na polis (entendida como
comunidade política).

A democracia realmente existente é uma dinâmica competitiva, voltada para a


disputa pela condução (o „governo polìtico‟, latu sensu) do Estado-nação (em
quase todos os seus poderes e em todos os seus níveis), que visa a estabelecer
pactos de convivência (na medida em que todos aceitem suas regras ou sejam
compelidos a aceitá-las, uma vez que tais regras, unificadas, são sancionadas na
forma de lei pelo Estado). A democracia em processo de democratização
introduz novas dinâmicas que visam a construção, para além de pactos de
convivência, de pactos de cooperação na esfera pública para promover aquilo que
Tocqueville chamou de “governo civil” (11) das comunidades (e as regras, nesse
caso, são diversificadas na medida em que emergem sempre de configurações
sociais peculiares).

Ora, esse “governo civil” de Tocqueville é o antepassado em linha direta do


conceito de capital social e é, assim, uma expressão daquele „poder social‟ cujo

302
incremento só pode se dar no local – incremento que constitui, aliás, o próprio
objetivo da revolução do local.

A revolução do local e a transformação das relações políticas e


sociais de dominação
Chegamos assim à última das hipóteses deste livro sobre a revolução do local.
Em uma época de globalização, a volta ao local, para promover o
desenvolvimento comunitário – entendido como desenvolvimento humano,
social e sustentável –, é uma revolução. Essa revolução é diferente do que foi
assim chamado (e praticado) nos últimos cem ou cento e cinqüenta anos,
porquanto, na prática, não tem como objetivo e, na teoria, não considera como
momento decisivo, a troca de elites no poder do Estado-nação. Ela é diferente
porque visa ao empoderamento de pessoas e comunidades e porque não imagina
que seja possível fazer isso centralizadamente, por meio de um comando
unificado, de uma mesma diretiva emitida “de fora” e “de cima”, porém sustenta
que tal empoderamento deva ser molecular, a partir “de dentro” e “por baixo”.
Ela parte da idéia de que o empoderamento molecular é a única maneira de se
subtrair aos padrões hierárquicos e aos modos autocráticos que ainda
predominam nas sociedades humanas.

É uma revolução com significado global que, entretanto (ou por isso mesmo), só
pode ser feita no âmbito local. Atinge a todos na medida em que é realizada em
um; ou melhor, estabelece que o caminho para a transformação do todo é aquele
que passa pela transformação de um. Um a um.

Há quem ache que isso não é possível, sobretudo em uma época de globalização
que dissolve, dispersa, fragmenta... Mas é exatamente o contrário. Isso só é
possível em uma época de globalização. É preciso dissolver mais, dispersar mais,
fragmentar mais. Por quê? Porque é preciso globalizar mais para localizar mais.

Por isso, estou cada vez mais convencido de que grande parte de nossos
problemas não decorre de excesso e sim de falta de globalização, no sentido em
que o termo é empregado aqui, ou seja, como um dos aspectos de um processo
de mudança social global que implica também localização. Neste sentido, o que
chamamos de dominação só ocorre por insuficiência de glocalização; ou melhor:
existe dominação na medida inversa da existência de globalização-e-localização,
uma vez que não se conhece na história nenhum sistema ou prática de
dominação que tenham conseguido se implantar na ausência de padrões

303
hierárquicos de organização (e de modos autocráticos de regulação, que parecem
lhes ser próprios).

E, por isso, faz sentido a expressão „revolução do local‟. A volta ao local, em uma
época de globalização, está se afirmando como uma alternativa de
desenvolvimento que promete transformar seculares, melhor dizendo, milenares
relações políticas e sociais de dominação. Ora, se isso não é uma revolução, não
sei o que poderia ser assim chamado.

De uns anos para cá muitas pessoas e organizações vêm tentando estimular essa
revolução por meio de estratégias de investimento em capital social. Mas só
muito recentemente estão sendo elaborados argumentos teóricos mais
consistentes e reflexões mais sistematizadas sobre as milhares de experiência
práticas que estão em curso, para tentar mostrar o que está “por trás” de tudo
isso, ou seja, para explicitar uma “filosofia” capaz de justificar o que estamos
chamando aqui de revolução do local.

Baseadas em estratégias de investimento em capital social, algumas metodologias


foram construídas para induzir o desenvolvimento humano e social sustentável.
Pelo menos uma parte dessas metodologias poderia ser justificada por uma
argumentação como a seguinte:

a) temos evidências de que a melhoria das condições de vida e convivência social


dos seres humanos depende de certas mudanças sociais que interpretamos como
desenvolvimento;

b) essas mudanças coimplicam a capacidade de uma sociedade de produzir e


reproduzir capital social;

c) a capacidade de produzir e reproduzir capital social é tanto maior (ou melhor)


quanto mais padrões de organização em rede e modos de regulação democrático-
participativos forem praticados;

d) como todo desenvolvimento é desenvolvimento social e como


desenvolvimento social é mudança social e como mudança social é uma questão
política, tudo depende – muito mais do que, às vezes, imaginamos – de não
reproduzir uma atuação política intervencionista, verticalista e centralizadora,
pois é esse tipo de atuação que extermina capital social e impede que pessoas e
comunidades valorizem e desenvolvam seus próprios ativos, aproveitando
oportunidades que são sempre únicas e encontrando suas próprias soluções para
resolver seus problemas, da sua maneira, afirmando a sua identidade.

304
Portanto, para uma estratégia de investimento em capital social, induzir o
desenvolvimento humano e social sustentável como forma de estimular a
revolução do local é manter a esperança centrada no empoderamento molecular
das populações, para que elas próprias se emancipem.

Esse trabalho de tecelão, de construir, pacientemente, a autonomia dos coletivos,


da “comunidade que faz”, não pode ser substituìdo pela vontade polìtica de um
“chefe que faz” (por maior que seja o seu poder) e nem mesmo pela confiança
em um líder (por maiores que sejam seu carisma e sua gravitatem). Uma
comunidade que conseguiu aproveitar uma oportunidade ou superar uma
adversidade a partir de seus próprios esforços criativos, de sua própria
inteligência coletiva, significa muito mais para o desenvolvimento humano e
social sustentável do que transferências maciças de recursos “de cima” ou,
mesmo, do que grandes mobilizações propagandísticas, rebanhos marchando,
bandeiras desfraldadas – enfim, tudo aquilo que representa a monotonia (e a
monodia) das manifestações de massa próprias de um mundo da “segunda
onda”.

Como desencadear a revolução do local: a questão da “massa


crìtica”
Algumas pessoas ainda não conseguem ver como a revolução do local poderia
ser desencadeada em âmbito global (isto é, no mundo inteiro) e no âmbito local
(quer dizer, no interior de cada localidade). E isso ocorre porque essas pessoas,
ou imaginam que seria necessário realizá-la em todas as (ou na maioria das)
localidades do mundo, ou acreditam que seria preciso conseguir a adesão de
todas as (ou da maioria das) pessoas de uma (e de cada) localidade.

Ora, em primeiro lugar é preciso ver que a revolução do local já está


acontecendo.

Em segundo lugar é preciso ver que não é necessário (nem seria possìvel) “fazer”
a revolução do local no (espaço abstrato do) mundo. A revolução do local (como
o nome, aliás, está dizendo) é “feita” no local.

Em terceiro lugar é preciso ver que, para que o processo de localização se


desencadeie em uma localidade qualquer, é necessário apenas que uma parcela da
sua população conectada entre si segundo um padrão de rede e regulando seus
conflitos de modo democrático-participativo o assuma cooperativamente. Ou

305
seja, não é necessário engajar a população toda de uma localidade, nem
conquistar a maioria dessa população.

Isso tem a ver com o que chamamos de „poder social‟, com o „tamanho de
mundo‟ de uma localidade, com o grau de “tramatura” social, com a capacidade
de mediar conflitos de modo democrático-participativo, com os níveis de
confiança e cooperação existentes e, portanto, com o “estoque” ou fluxo
disponível de capital social.

Sob certas condições (objetivas e subjetivas, incluindo o padrão de relação


Estado-sociedade vigorante) determinados programas que instruem a construção
de comportamentos favoráveis à localização, se forem ensaiados por uma
pequena parcela de agentes de uma localidade, podem se amplificar e se replicar
de sorte a atingir o sistema como um todo. Ou seja, uma mudança de
comportamento, mesmo periférica, ensaiada em um „mundo pequeno‟, tem mais
chances de se propagar para o sistema como um todo afetando o
comportamento dos outros agentes que o compõem, porquanto mundos
pequenos são mundos mais susceptíveis à mudança social do que mundos
grandes.

Deve haver algo como um “ponto de desequilìbrio” a partir do qual um processo


de “contaminação” mais vigoroso se desencadeie. Algo assim como uma “massa
crìtica” detonadora. Mas, certamente, para cada configuração particular haverá
uma quantidade e uma qualidade mìnimas dessa “massa crìtica”. E, mesmo para
uma configuração particular, talvez nunca possamos conhecer, completamente e
de antemão, nem os valores nem as caracterìsticas dessa “massa crìtica” para que
o processo seja detonado.

Entretanto, uma nova disciplina científica dedicada a análise das redes sociais
vem avançando bastante ultimamente. Não é improvável que, daqui a algum
tempo, possamos justificar o insight de Jane Jacobs (1961) (12), de sorte a
estabelecer uma relação “forte” entre „tamanho de mundo‟ (ou „extensão
característica de caminho‟ ou „comprimento de corrente‟) e capacidade de
replicação de programas que instruem a construção de comportamentos, dentro
de uma mesma localidade e entre localidades diferentes conectadas em rede.

Como comentei em meu livro “Capital Social” (Franco, 2001), “Jacobs estava
preocupada com os fatores que tornam "viva" uma localidade, que fazem com
que ela se torne aquilo que chamava de uma "Entidade real", com a teia de
relações tramada por pessoas humanas reais, que vivem naquela localidade: ela
escreveu que “as inter-relações que permitem o funcionamento de um distrito

306
como uma Entidade não são nem vagas nem misteriosas. Consistem em
relacionamentos vivos entre pessoas específicas, muitas delas sem nada em
comum a não ser o fato de utilizarem o mesmo espaço geográfico... São as
relações ativas entre pessoas, geralmente líderes, que ampliam sua vida pública
local para além da vizinhança e de organizações ou instituições específicas e
proporcionam relações com pessoas cujas raízes e vivências encontram-se, por
assim dizer, em freguesias inteiramente diferentes” (13).

Jane Jacobs está tratando de algo muito mais profundo... Ela investiga a
formação do "ser social", que chama de "Entidade real" (com 'E' maiúsculo): "É
necessário um número surpreendentemente baixo de pessoas que estabeleçam
ligação, em comparação com a população total, para consolidar o distrito como
uma Entidade real. Bastam cerca de cem pessoas em uma população mil vezes
maior. Mas essas pessoas precisam dispor de tempo para descobrir umas às
outras, para investir em colaboração proveitosa – e também para criar raízes nos
diversos bairros menores locais ou de interesse específico" (14) (Jacobs, 1961:
147).

Surpreendentemente a passagem acima não gerou nenhuma reflexão mais


fecunda, nem por parte dos leitores-admiradores de Jacobs, nem por parte dos
teóricos do capital social. Mas aqui talvez esteja, ao meu ver, uma das pistas para
desvendar a complexa dinâmica das sociedades humanas” (15).

Por outro lado, como vimos no Texto 6, (muito embora o recentíssimo


experimento de Duncan Watts (2003) e outros não tenha confirmado essa
hipótese) (ver Texto 7), “mesmo que grupos locais sejam altamente agrupados,
desde que uma pequena fração (1 por cento ou menos) dos indivíduos tenha
conexões de longo alcance fora do grupo, as extensões de caminho serão baixas.
Isso ocorre porque a transitividade faz com que tais indivíduos ajam como
atalhos, ligando comunidades inteiras umas às outras. Um atalho não beneficia
apenas um único indivíduo, mas também todos os que estão ligados a ele e todos
ligados àqueles ligados a ele, e assim por diante. Todos podem beneficiar-se do
atalho, em muito encurtando a extensão característica de caminho. Por outro
lado, mudar uma conexão local para uma de longo alcance tem apenas um efeito
pequeno sobre o coeficiente de agrupamento” (16).

As investigações atuais ainda não são conclusivas e o assunto permanece em


discussão em um círculo muito restrito de pesquisadores. Atualmente, porém,
creio que já temos elementos suficientes para dar como certa uma coisa: quanto
mais elementos ela englobar, quanto mais tramada “por dentro” e conectada

307
“para fora” estiver uma localidade, mais chances teremos de que o processo
venha a acontecer.

Talvez bastasse isso... Talvez estejamos perdendo tempo... Estimule as redes – e


o “metabolismo” que parece lhes ser próprio: a democracia interativa – e tudo o
mais virá. Ou não virá. Mas se não vier não é por nossa culpa e não podemos
fazer nada para que venha, a não ser sucumbir à tentação de levar as coisas
prontas, a partir de uma intervenção exógena, a partir de uma lógica heterônoma.
E aí não vai adiantar, porquanto não conseguiremos fazer isso sem afetar
negativamente o “corpo” e o “metabolismo” das redes endógenas, sem
reintroduzir ou reforçar padrões hierárquicos de organização e modos
autocráticos de regulação, interrompendo (ou retardando), então, o processo de
localização.

O que não fazer?


Neste sentido, para “fazer” a revolução do local, é preferível não fazer do que
fazer. Aliás, a célebre pergunta que deu origem ao catecismo revolucionário do
século 20 (“Que Fazer?”: Lênin, 2002) deveria agora ser refeita, trocada pela sua
negativa: „o que não fazer?‟. Porque no nosso afã por realizar grandes feitos e
deixar a nossa marca ou pelo desejo de moldar as sociedades de acordo com um
modelo ideal em que acreditamos ou de uma verdade que julgamos possuir,
muitas vezes assumimos a condição de condutores de rebanhos. E aí queremos
“juntar o rebanho” para levá-lo, unido, para ali ou acolá e nos transformamos,
invariavelmente, em agentes de reprodução de uma idéia e de uma prática de
ordem (imposta e prefigurada de antemão) que impede o empoderamento
molecular das populações e a manifestação da inteligência coletiva das
comunidades.

Assim, quando nos acreditamos “ungidos” ou predestinados a fazer algo pelo


povo, seja a partir de posições de poder conquistadas eleitoralmente nas
instituições e aparelhos do Estado-nação, seja quando tentamos, por qualquer
meio, reconhecido ou não como democrático, derrubar os titulares dessas
instituições e aparelhos para ocupar o seu lugar em nome de um ideal generoso e
igualitário, via de regra não fazemos mais do que manter (e freqüentemente até
reforçar) as estruturas iníquas que queríamos transformar.

Isso não significa que não devamos participar do processo democrático


realmente existente ou que não seja importante, para a democracia, a disputa
eleitoral em todos os níveis e para todos os cargos do Estado. Mas a ascensão aos

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poderes de Estado não ajuda a transformação da sociedade – se, digo: se – não
procurarmos transformar também o padrão de relação entre Estado e sociedade,
começando por zelar pela qualidade da “atmosfera democrática” (para que as
pessoas possam ter “ar” para respirar e, assim, possam inventar e experimentar
coisas diferentes daquelas que imaginamos, nós, os que queremos conduzi-las) e
por estabelecer procedimentos democráticos que evitem (ou, pelo menos,
atenuem) o intervencionismo, a centralização, o paternalismo e o clientelismo. E,
sobretudo, se nossa atuação não for inibidora das iniciativas locais. Já seria muito
se os ocupantes do Estado se esforçassem por não fazer essas coisas.

Em geral, porém, os que ocupam cargos no Estado com o intuito sincero de


„fazer alguma coisa pelo povo‟ não compreendem que, mesmo que existissem
recursos orçamentários disponíveis para transferir para a população por meio de
programas compensatórios, mesmo neste caso, isso não deveria ser feito dentro
do padrão ainda vigorante de relação entre Estado e sociedade. Porque,
fundamentalmente, o problema não é econômico, nem micro, nem meso, nem
macroeconômico. O problema é político. Noventa por cento das políticas sociais
voltadas para o enfrentamento da pobreza são políticas que se alimentam da
pobreza e são, ao fim e ao cabo, políticas para manter a pobreza. Por motivos
politicamente óbvios.

O que não é tão óbvio assim é que quanto mais bilhões você injetar a partir do
Estado, mais capital social exterminará se – digo: se – os desenhos das políticas
não forem alterados; ou seja, se o padrão de relação entre Estado e sociedade não
for modificado. Mas vá-se lá dizer-lhes!

Ocorre que desenvolvimento parece não ter mesmo muita coisa a ver com o que
pensa boa parte dos economistas e dos policymakers. Um pequeno Estado árabe
produtor de petróleo, com altíssimo PIB per capita, poderá promover a educação
superior de todos os habitantes e médico em casa para todos os habitantes e
residências de luxo para todos os habitantes etc. etc. E poderá mandar todos os
caras estudar em Oxford. Pergunto: é isso? Esse hipotético Estado alcançou um
patamar, desejável por nós, de desenvolvimento?

Se entendermos que todo desenvolvimento é desenvolvimento social e que


desenvolvimento social é mudança social, a resposta para a pergunta acima não
poderá ser afirmativa. Por mais que pareça óbvio que as pessoas devam poder
sobreviver e realizar seu direito ao bem-estar material, há uma diferença entre
comunidades humanas e, por exemplo, coletividades de animais. Ao gado
confinado holandês, já se disse, também nada lhe falta em termos de condições
sobrevivenciais. Mas, certamente, não é isso o que queremos para os seres

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humanos. Porque, ao contrário do que tanto se repete, não se trata apenas de
melhorar condições de vida e sim de melhorar também as condições de
convivência social.

Nunca é demais repetir. O ser humano, como ser individual-e-social, só se


desenvolve na medida em que pode alterar condições herdadas a partir de sua
própria identidade. Desenvolvimento é o poder de afirmar uma nova identidade
no mundo em virtude de poder tornar dinâmicas novas potencialidades. Uma
localidade deve encontrar seu próprio caminho, isto é, afirmar sua própria
identidade no mundo ao realizar suas vocações e ao dinamizar suas
potencialidades, que são únicas no sentido de que são próprias àquela particular
coletividade.

Para concluir, não se percebe que desenvolvimento é um fenômeno sistêmico,


próprio de sistemas complexos – como o são as sociedades humanas. Ora, não
existe outro meio de operar tais sistemas senão pela política. Pode-se, através da
política – e, nos regimes democráticos, unicamente através dela – manter ou
alterar as configurações dos sistemas sociais.

Por isso, se queremos encontrar uma alternativa de desenvolvimento, o


fundamental é que a política seja alterada. Se não se souber como, há uma saída:
basta não fazer o que vem sendo feito. Esta já seria uma contribuição inestimável
dos velhos atores políticos institucionais à revolução do local.

Os que ocupam posições políticas institucionais no Estado-nação, sobretudo nos


governos, em todos os níveis, poderiam, por certo, fazer algo mais, se abrissem
espaços – por meio de parcerias e de regulamentações adequadas – para que os
novos movimentos sociais que geram comunidades de projeto e as organizações
da sociedade civil constituídas em torno das temáticas inovadoras desses
movimentos, pudessem se fortalecer e se multiplicar gerando, cada vez mais,
novas institucionalidades e novas redes participativas, ao invés de criar
dificuldades ou de querer controlar ou cooptar ou absorver ou usar
instrumentalmente tais movimentos para conquistar mais poder ou para se
manter pelo maior tempo possível no poder.

Mas o caminho da revolução do local parece ser mesmo o da “contaminação”. E


não temos como saber quanto tempo levará o processo. Em alguma medida, ele
já está acontecendo. E talvez seja pensar com uma velha cabeça esperar que haja
algum desfecho grandioso, um momento crucial e decisivo.

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O tempo, aliás, é função da taxa de crescimento ou da velocidade de propagação
das mudanças moleculares. Se há mudança, o tempo está correndo. Quanto mais
mudança houver, mais tempo estará sendo ganho a favor da revolução do local.

Há muito mais coisa envolvida na revolução do local...


Entretanto, como vimos neste livro, há muito mais coisa envolvida na revolução
do local.

A medida que o „ser social‟ vai sendo reconhecido e ganhando um estatuto


próprio, a medida que se vai compreendendo que as comunidades de projeto são
mundos verdadeiramente humanos, a medida que nossa “mente coletiva” se
concentra no local, ela pode se expandir para o planeta inteiro, antecipando,
quem sabe, aquilo que, ao longo da história humana, tem aparecido em nossos
melhores sonhos de futuro: a tão almejada ecumene planetária.

Com efeito, em um universo finito, tramado por múltiplas redes, local pode
assumir características tão holográficas que...

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Henderson, Hazel (1999). Além da globalização: modelando uma economia global
sustentável. São Paulo: Cultriz/Amana-Key, 2003.

(2) Idem.

(3) Ormerod, Paul (1994). A morte da economia. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

(4) Arthur, W. Brian (1996). “Increasing returns and the new world of business”, Harvard
Business Review, jul-ago.

(5) Ormerod; op. cit.

(6) Idem.

(7) Cit. por Henderson (1999). Cf. Reder, M. (1999). Economia: a cultura de uma ciência
controversa. Chicago: Chicago University Press, 1999.

(8) Ormerod; op. cit.

(9) Franco, Augusto (2002). Pobreza & Desenvolvimento Local. Brasília: AED, 2002.

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(10) Comunicação pessoal ao autor.

(11) Tocqueville, Alexis (1835-1840). A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes,
1998.

(12) Jacobs, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

(13) Jacobs; op. cit. em Franco, Augusto (2001). Capital Social. Brasília: Instituto de Política /
Millennium, 2001.

(14) Jacobs; op. cit.

(15) Franco (2001); op. cit.

(16) Hong, Theodore (2001). “Desempenho” in Oram, Andy (org.). Peer-to-peer: o poder
transformador das redes ponto a ponto. São Paulo: Berkeley, 2001.

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