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Crianças Invisíveis
Christian Ingo Lenz Dunker
1. Leituras:
A idéia de que se pode ler um filme e não apenas assistir. Ler implica supor que um filme
possui camadas de signos, ou camadas de sentido, ou ainda, que ele é uma espécie de árvore,
de labirinto ou de palimpsesto de discursos.
(a) Uma idéia trivial e muito antiga. Já na Idade Média entendia‐se que os textos
(especialmente os textos sagrados) possuíam três camadas de sentido: o literal, o moral ou
metafórico e o espiritual. Ex. Salomão junta os seios de Sulamita com suas duas mãos, e eles
são como dois cachos de uva.
‐ o sentido literal sugere que existiu um Rei e ele se chamava Salomão e que ele se
apaixona por uma mulher, e no seu devaneio sobre esta mulher ele acaricia seu corpo.
‐ o sentido metafórico ou moral substitui os atos, personagens e elementos dados em
presença por significantes que se encontram ausentes (o ato de juntar os dois seios,
sugere o desejo de unificação, aplicado à um agente como um rei inspira a mensagem
que este está a solucionar divisões políticas), a comparação entre os seios e os cachos
de uva sugere a fertilidade e a fecundidade que se espera o soberano inspire a seus
súditos, e assim por diante.
‐ o sentido espiritual aclarava‐se apenas para os doutos, que conseguiriam reunir a
polissemia do sentido moral‐metafórico em uma unidade de sentido maior ainda.
Assim, por exemplo, para a teologia cristã (que reinterpreta o velho testamento à
partir do novo testamento) cada um dos seios de Sulamita, representam
respectivamente Jesus Cristo e a Santa Igreja. Ao reuni‐los Salomão sela a aliança entre
ambos, tal como o vinho selou a aliança entre Jesus e os Apóstolos e determinou o
ritual da comunhão.
(b) É uma idéia antiga, mas também muito atual. Filmes como Schreck, Madagascar (os da
Pixar principalmente) são feitos para adultos e crianças, as piadas são sempre polissêmicas, de
tal forma que o adulto ri, a criança ri, mas eles estão rindo de coisas diferentes. Porque estão
fazendo leituras diferentes.
(c) Devemos notar que uma parte de nossa satisfação com filmes deste tipo é que nós
incluímos em nossa leitura a leitura que sabemos que nossas crianças estão fazendo ao mesmo
tempo. Tal como os medievais, nós nos acreditamos funcionando na narrativa mestre do texto
(espiritual), enquanto as crianças trafegam na narrativa subsidiária (moral‐metafórica).
(e) Efeito similar é obtido por dois recursos cada vez mais utilizado no cinema contemporâneo:
a citação e a escritura. Diretores como Woody Allen, David Lynch e Pedro Almodovar estão
constantemente introduzindo certos signos, frases, seqüências narrativas que são citações de
outros filmes, ou seja, pedaços semi‐deformados de outros filmes.
(f) Ora, isso se tornou possível, não porque tenhamos um público de críticos e eruditos em
cinema suficientemente extenso que eles falam em código com os que realmente importam.
Ocorre que nossa consciência receptiva sobre o cinema, e sobre a produção cultural em geral,
tornou‐se uma consciência prevenida, uma consciência advertida. Depois de ver o truque ser
feito muitas vezes nós tendemos a nos interessar por como ele é feito e deixar de lado, por um
tempo, o efeito de maravilhamento que este produz.
(g) ir ao cinema é tão diferente de ver um vídeo porque nos interessamos muito pela conversa
que acontece depois do filme. E só acontece conversa se houver leitura. Sem leitura nossa
experiência do filme se reduz ao juízo de gosto imediato: gostei, não gostei.
(h) uma boa parte da crítica da cultura desconstrucionista, pós‐estruturalista, esquizo‐analítica,
fenomenológica, pós‐colonial está empenhada a isolar estratégias de leituras. As mais curiosas
leituras podem ser assim pareadas, confrontadas e produzidas. Exemplos: uma leitura
homoerótica de Shakespeare, uma leitura pós‐colonialista de Ulisses, uma leitura ecológica de
Bambi [ou King Kong], uma leitura hermenêutica‐mitológica de Guerra nas Estrelas, uma
leitura pós‐marxista de Titanic.
(i) Espero ter mostrado como nosso cinema admite cada vez mais o caráter multicultural de
seus destinatários.
2. Contra‐Leituras:
(a) Aqui surge uma questão. Se nossa época adquiriu uma certa consciência formal, se ela se
“alfabetizou” em termos do modo como recebe a produção fílmica, o que se pode fazer é
disseminar leituras, organizar grupos concorrentes ou feixes que por convenção ou gosto
tornam‐se mais ou menos hegemônicos em uma dada conjuntura. A descoberta de que um
filme pode ser relido em mais de uma perspectiva, abre a idéia de que há infinitos sentidos e
que eles são incomensuráveis. Triunfo do juízo de gosto. As leituras são formas de vida, cada
qual com seu direito à existência. Construir, cuidar ou exercitar uma é assim como enriquecer
o nosso próprio universo.
(b) Pode‐se argumentar então que a psicanálise é uma forma de leitura possível, como as
anteriormente citadas. Não penso que seja exatamente o caso, ou melhor, exclusivamente
este o caso. Pode‐se extrair uma leitura psicanalítica sim, mas na verdade isso seria
transformar a psicanálise em uma hermenêutica. Não há como sair disso ela é uma
hermenêutica, mas não só. Advogo que ela é também uma espécie de estratégia de contra‐
leitura.
(c) Entenda‐se por contra‐leitura um exercício dos pontos que resistem ao nosso ímpeto de ler:
as rasuras, as deformações, tudo aquilo que corresponde ao “erro de leitura”. Estamos assim
interessados nos pontos de mutação de um discurso.
(d) Mais ou menos como quando as crianças aprendem a ler. Há escolas que dizem aos pais:
“não corrija seu filho, ele está desenvolvendo hipóteses, testando maneiras de ler, ele precisa
chegar, por si mesmo, à construir sua leitura. Antes disso ele lerá coisas bizarras e incorretas na
sua frente e dirá – mas é o meu jeito de ler, não se meta !” [tire a mão da minha zona proximal
de desenvolvimento].
(e) Ora, a psicanálise não é o único exemplo de contra‐leitura, a teoria crítica segue uma
estratégia bem semelhante. Ambas têm em comum a importância conferida à forma (ao
trabalho de deformação) mais do que a posição inicial e final do sentido produzido. Elas
imaginam que se for possível desconstruir núcleos de estabilização de sentido, de formação de
hegemonias de leitura, pode se abrir espaço para a invenção de novas formas de leitura, e
portanto de algum espaço de liberdade e invenção.
3. Crianças Invisíveis:
(a) Foi pensando em mostrar como funcionam as estratégias de leitura e contra‐leitura em um
caso concreto, em um tema que nos interessa a educadores e psicanalistas, que escolhi este
filme: “Crianças Invisíveis” (2005). Uma produção com altos teores ideológicos, afinal foi
gestada por instituições muito interessadas em definir uma leitura (uma meta‐leitura) do que
vem a ser a infância em nossa época, principalmente a infância que se teria tornado, como o
título sugere “invisível”. Reúnem‐se então Unicef e WFP (World Food Program) que convidam
sete diretores consagrados á produzirem sete curta metragens sobre a infância. Sete leituras.
(b) Ora, a primeira coisa chocante no filme é que sete cineastas, de sete lugares realmente
distantes e distintos no mundo, convidados a um projeto como este (com plena liberdade de
produção), tenham produzido sete leituras tão parecidas da infância.
(c) Nosso maior crítico de cinema Ismail Xavier tem uma expressão muito boa que nos ajuda a
entender este efeito. Ele diz: “a criança, nosso último universal”. Ou seja, é na imagem da
criança, e em nenhuma outra mais, que nós podemos realmente nos identificar segundo a
idéia de uma humanidade realmente universal. O filme seria assim uma espécie de prova
dialética espontânea de que os particulares realmente se reúnem no universal. Crianças
Invisíveis, é assim sinônimo universal de crianças pobres‐desamparadas.
(d) Ora, mas esta é uma curiosa invisibilidade, sustentada por uma profusão insistente de
imagens (Starbucks, como notou Zizek é um belo exemplo disso, depois de Benetton).
(e) aqui há uma tese hermenêutica da psicanálise, um exemplo de leitura. Serge Leclaire
demonstrou, em um texto impressionante, como as figurações de crianças desamparadas ou
mortas em sonhos e demais produções neuróticas são regularmente indícios de nosso
narcisismo mais primário. Ou seja, a criança desamparada, senão morta (sempre um bom sinal
clínico quando aparece em nossos pacientes), indica aquilo que um dia supomos ter sido no
desejo de nossos pais, ou seja, magníficos espécimes amáveis por nossa própria faculdade de
existir e dignos de admiração como fiel depositários de todas as esperanças e expectativas nõa
cumpridas por todas as gerações que nos antecederam. Bom ... esta fracassou, está ainda a
próxima geração para tentar dar conta do recado.
4. Sete Curtas:
(a) Tanza [por Emir Charef], o menino que não tira os tênis [que lhes são
desproporcionalmente grandes, indicando não terem sido comprados “especialmente” para
ele, mas achados ou retirados de alguém].
‐ leitura: a substituição da família por uma unidade de combate nômade em Ruanda. A
troca de tiros substitui a troca de palavras. É um desencantamento desta unidade orgânica de
nosso laço social que é a família, trocada por um laço funcional que é o grupo [“aqueles que
morrem agente repõe com caras como você”]. A morte de um menino é um espetáculo de
curiosidade, a destruição de uma vila é planejada segundo um discurso quase vazio sobre os
objetivos e os fins da ação [é quase uma prece automática, que não precisa convencer, que
não é feita para ser escutada]. Há uma inversão, uma redenção final com o reencontro das
coisas escondidas: os lápis, a sala de aula, as perguntas na lousa, que instituem este momento
transformador, no qual Tanza interrompe o prosseguir do tempo que resta para a explosão da
bomba. Tanza se humaniza: chora, tira os tênis, deita‐se em gesto de carinho e saudade sobre
a bomba, interrompendo por alguns instantes a barbárie.
‐ contra‐leitura: o tempo, o silêncio, as perguntas estúpidas na lousa [capital da França
? Quem escreveu o Livro das Selvas ?]
(b) Marjan [Emir Kusturica], o menino cigano
‐ contra‐leitura:
(c) Jesus Filho da America [Spike Lee] conta a história de Blanca, filha de um soldado que
regressa do Iraque e sua mãe, ambos dependentes de drogas.
‐leitura: há o discurso moral da violência (escopo da honra e da coragem possível).
Combina o discurso básico de uma família de classe média baixa americana que tenta manter
uma realidade alternativa para Blanca. Há interpassividade entre o discurso junkie e a posição
da filha. Há a intolerância dos pais com os portadores de HIV, contra a diretora da Escola. Há a
redenção irônica final com o ingresso de Blanca em um grupo de apoio para filhos de pais HIV‐
positivos. “Transar com você era como transar com um armário de remédios”.
(d) Bilu e João [de Katia Lund] conta a história de dois irmãos que se aventuram a descobrir
novas formas de catar papel e latas de alumínio.
‐leitura: é uma história de solidariedade, com cortes associativos já na abertura (a
corrida bicicleta, rolimã, patins, esqueite) e a corrida eletrônica tendo Airton Sena como
vencedor. A saga do São Paulo (João) e a saga do Brasil (BIlu). Apresenta‐se um tratamento
para a violência: não há mais carrinhos (mas aparece um sobrando), são empurrados pelos
carregadores do Ceasa (mas os conquistam construindo um jogo de Dedobol), fura o pneu
(motoboy ajuda), pede‐se uma laranja (o dono da banca cede), João recomenda a banca para
um cliente (e recebe de volta um pedido de entrega), faz a entrega (e recebe permissão para
coletar o papelão em troca), o ferro velho está fechado (mas Bilu sobe nas costas de João para
chamar o dono), Tatu está com pressa, mas dá um jeito de pesar o material coletado pelos
dois. Eles voltam para casa com seu triunfo: uma antena velha e alguns tijolos, mas como
pessoas melhores.
‐ contra‐leitura:
(e) Jonathan [de Jordan e Ridley Scott], conta a história de um fotógrafo de guerra às voltas co
a culpa por não ter de fato ajudado as crianças em triste situação que ele fotografou. Um
drama sobre a consciência moral da culpa, pela potencial exploração da imagem da miséria.
(f) Ciro [de Stefano Veneruso] conta a história de um menino que rouba um relógio e o vende
a um receptador em um parque de diversões abandonado.
‐ leitura: talvez o mais moral dos episódios. A infância do brincar é substituída pela
infância do roubar. O cachorro amigo da criança é quem a persegue. A causa: o discurso vazio
do burocrata (Que fazer: pegar os adultos? Napoles está pior ou melhor? Jogar na cadeia e
colher um criminoso profissional ? A mídia cobrindo tudo e a indignação inoperante em ação).
A crise familiar “só porque você trepa comigo não virou pai de Ciro” (quem se importa com a
criança não é mais quem lhe tem laço sanguíneo, mas um encontro contingente). O parque de
diversões: vazio, pobre, bucolicamente tedioso, triste.
‐ contra‐leitura: a deformação acusmática na trilha sonora.
(g) Song Song e a Pequena Mao [de John Woo], é uma trama complexa envolvendo vidas
paralelas (a) de uma menina triste e solitária da aristocracia, filha de pais que estão brigando
(b) uma menina alegre e comunitária, neta de um avô que lhe dedica estima.
‐ leitura:
(1)A disputa pela posse de Song Song (ela bate as teclas do piano).
(2)Seu apelo por companhia: “Se tivesse um irmão daria a boneca para ele” e a surdez
da mãe “Pare com este assunto”.
(3)A resposta da menina é jogar a boneca pela janela [joga o irmão ou para um irmão
possível, qualquer um? Um gesto de destruição ou um gesto de doação ?)
(1) O avô acha a boneca com o braço quebrado (como a perna de Song Song, “achei
onde achei você” – a contingência da família)
(2) Há uma experiência de comunidade (a comida, a carne guardada para o avô)
(3) A resposta da menina é usar a boneca para coçar as costas do avô (“Agora são três
braços”)
(1) Avô e Song Song trabalham juntos
(2) Ele acha um lápis no meio da rua e ao buscá‐lo é atropelado, Song Song deixa cair
um tomate. Tãoperto ... tão longe
(3) Ela procura o avô. Pisa sobre sua mancha de sangue sem reconhecer.
(1) Song Song entra em outra comunidade. Explorada, trabalha embrulhando e
vendendo rosas.
(2) O quarto cheio de bonecas ... mas com uma criança solitária (ela agride as
bonecas)
(3) O quarto com um aboneca ... mas cheio de crianças (ela brinca com a boneca)
(1) Song Song encontra a vendedora de Rosas ... e a reconhece (sua boneca com um
braço “artificial” reparado)
(2) A vendedora não é reconhecida pelo comprado que a enxota.
(3) A vendedora dá uma rosa para Song Song (solução da solidão)
(1) O carro diante do rio ... vai se atirar ?
(2) A rosa e o sorriso
(3) Suspende‐se o ato
(1) Song Song se reconcilia com o piano
(2) A vendedora se reconcilia com a escola
(3) O olhar