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André Sá1
Universidade de Évora
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André Sá nasceu em novembro de 1980. É farmacêutico e prepara o doutoramento em literatura
na Universidade de Évora, com uma tese sobre os romances de António Lobo Antunes.
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age como negociador da síntese moral: interpreta e completa a transferência dos
tormentos de culpa do infrator, que tem algo de incontrolável, até de demoníaco, e
liberta-o para a vida livre. A tática da observação terá alguma coisa em comum com o
romance polifónico: a investigação prospetiva, o controlo de danos. Talvez os pontos de
contato pareçam reduzir-se a isto, porque a natureza do fenómeno é muito diferente: as
personagens de Lobo Antunes são depressivas (as outras têm afeções histéricas) e o
sentimento de culpa inesgotável que se regista provém, apenas, do crime de se ter vivido
a infância. Herdou-se a culpa sem enredo que a traduza. Isto, por si só, depreende todo
um plano de diferenças. O espírito de ambas, contudo, esse é o mesmo e está no
agenciamento da luz. Natural, não a elétrica. Primeira conclusão: abandonem-se as
lâmpadas artificiais do nosso interior e saia-se para a realidade do sol. Por isso a
segunda conclusão: é possível, se quisermos podemos impedir a depressão. Não por
acaso, lê-se no Terceiro Livro de Crónicas: «Existe a depressão: é um cão negro. No
caso de não termos medo dele vai-se embora» (ANTUNES, Terceiro Livro de Crónicas
2006, 93)
Esta crónica intitula-se «Uma carta para Sherlock Holmes», é a partir de um
certo conceito tático sobre a natureza da depressão que nela se enuncia que indicarei 1)
alguns dos aspetos através dos quais os romances de António Lobo Antunes
demonstram tanto o funcionamento depressivo como 2) a anulação dos seus efeitos.
Formulem-se algumas destas táticas.
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romances inúmeras correspondências e notações estilísticas efetivas, mas este curso
para a luz faz-se, genericamente, aplicando à grelha semântica da interdiscursividade
indícios de uma modificação do relacionamento subjetivo entre as vozes. As
explorações intrapsíquicas profundas, portanto, e a integração do seu sentido histórico,
unem-se ao plano da escrita sob a presente noção de direcionamento para sul.
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prática terapêutica, rapidamente nos surge a imagem da criança sozinha num corredor
escuro, a gritar pela mãe. Ouçamo-la:
Continuo a ser um menino que assobia no escuro. Não só nos livros, na vida
também. Sei muito bem o que quero, mas todos os passos são dados num
corredor às escuras com uma enorme saudade de não ter aqui a minha mãe no
andar de baixo a dizer «estou aqui, estou aqui» e eu «oh mãe, vá falando
enquanto eu atravesso o corredor». O drama quando se chega aos 50 anos, é
que já não temos nenhuma voz lá em baixo de nenhuma mãe a dizer-nos que
podemos continuar a atravessar o corredor. A partir de certa altura, passas a
viver sem rede, o que torna as coisas muito mais difíceis. E pior: exigem que
tu sejas rede dos outros (Antunes 1994)
Este jogo de vozes está disseminado por toda a obra, na voz de várias
personagens, que descrevem esta situação explícita ou no-la dão a conhecer por
intermédio da revelação do medo do escuro, principalmente, ou elaborando um
sentimento derivado do fantasma, dizendo-o, por exemplo, como Maria Adelaide, no
Arquipélago da Insónia: «Há momentos em que me sinto tão só que tudo grita o meu
nome» (ANTUNES, Arquipélago da Insónia (O) 2008, 181). Na passagem que citamos,
associa-se a representação da solidão à fantasia de que, em criança, circunstâncias havia
em que todos a procuravam gritando-lhe pelo nome e ela se deixava quieta, indetetável,
homogeneizada com o meio circundante «de forma que eu terra também, não tronco e
braços e pernas, casulos, plantas, insectos». A perceção é animista, infantilizada.
Exibe-se, também, a propósito, o apoio do aparelho metonímico do discurso: aquilo que
justapõe, que salienta sem nunca inteiramente substituir; porque se deixam indícios,
como trilhos que uma convicção analítica pode doravante seguir. E chamo-lhe jogo em
razão de estruturar o modelo de conflito que irradia em diferentes componentes
narrativas desta ficção, presentes, por exemplo, na utilização constante de planos
indefinidos de notações positivas e negativas. Antes de mais, reporta-se esta posição
infantil perante o desconhecido a uma dispersão de identidade dos adultos que os
romances nunca deixarão de pôr em causa. Existe-se (e deixa-se de existir, e talvez por
isso aquilo que aqui se diz morte seja invocado em carateres tão difíceis de distinguir
daquilo que se diz vida) por intermédio do olhar dos outros. E é precisamente por haver
franca necessidade deste crédito emocional que as relações arcaicas que a criança
experimenta têm tanta importância na sua vida adulta. Na verdade, dificilmente se
possui resiliência suficiente se não se foi primordialmente amado.
A ficção de Lobo Antunes é eficaz em representar vezes sem conta este modo de
vivência afetiva, delimitado, na sua génese, pelo registo do abandono. As mães muitas
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vezes não participam amorosamente da infância das personagens, quer por
abandonarem marido e filhos, quer por se recolherem a um apagamento submisso, quer
por limitarem a proximidade com os filhos à função da sobrevivência. E é habitual
haver distanciamento da figura paterna (que nalguns livros se personifica no avô, sendo
o pai já vítima desta ânsia autoritária de contornos edipianos). Estigmatiza, inferioriza e
dá razão, depois, a uma matriz de identificação, de conduta masoquista e à repetição dos
modelos de relacionamento de subjugação e violência. O ego destes indivíduos está
oprimido pela firmeza culpabilizadora do superego. Não houve crime mas vivencia-se o
castigo, apela-se num tempo sem fim à redenção do amor. Fernando, um dos irmãos da
Ordem Natural das Coisas, e João, do Manual dos Inquisidores, são crianças a quem
reprimiram o amor, e que viram as respetivas mães proscritas das relações parentais.
Um dos irmãos de Arquipélago da Insónia é um exemplo óbvio, também, desta vez com
a figura do avô. Todos estes elementos condicionam a sua personalidade. Veja-se como
– Maria Adelaide
no degrau da cozinha, enorme como eu enorme agora, este sofá à
noite com o meu sangue a latir não apenas nas veias, no apartamento todo,
saindo de mim para as prateleiras e as jarras e voltando-me ao peito no
quintal e cinquenta aqui e no entanto a mesma pedra a esconder-me dos
outros convencida que havia outros e não há outros, há o meu marido a quem
prefiro dizer
– Ainda não chegou
e o meu cunhado desde o dia, depois da morte dos meus sogros, em
que o trouxemos
(não sei bem como se escreve)
Do hospital para morar connosco, ele sem cumprimentar
– O que fazes aqui se faleceste em criança?
a referir-se a um cortejo de círios em copos de papel e aos galhos
das árvores quando os pardais os largavam comigo a pensar
– Não faleci porque a minha mãe não pára de chamar-me
(ANTUNES, Arquipélago da Insónia (O) 2008, 181-182)
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É nesta criança que conseguimos condensar toda uma estrutura que combina
fragilidade narcísica e sentimento de culpa e que, quase por observação direta, pode ser
imputada à quase totalidade das personagens antunianas. Desta criança, e do seu grito,
resulta uma dominação tirânica do espaço, consumido, mesmo na sua categoria de
ambientação física, pela incompletude das relações infantis. Repetem-se episódios para
escapar ao presente, mas o doente deixa-se com a luz distante uma esfera idealizada. A
condição patológica preside, e entre sintomas e defesas, predomina um arquivo de
silêncios sob o passado substitutivo. Um dos trajetos que esta ficção empreende é o de
mobilizar este conteúdo, tanto patológico como patogénico.
Reparemos na consistência específica deste espaço de composição: camadas de
tempo, indiferenciando-se, associando episódios, elaborando-os, integrando-os. Estão
em prática as operações do sonho, o deslocamento, a condensação, o trabalho de
fachada: às vezes ainda em bruto, outras já persistindo numa ligação capaz. À densidade
da sua surpresa vamos reclamar o sentido singular de uma lógica que imbrica vozes e
acontecimentos, respostas e dúvidas e ansiedades. São profundos os efeitos desta
vontade de potencializar o modelo dialógico do romance: como diminuir a discrepância
entre o que se sente e o que está escrito? O ato ilocutório clássico foi, claro está, vítima
desta emancipação. Mais do que aquilo que se diz quando se pergunta ou se responde,
quis-se plasmar o ato da ressonância inconsciente. A terapêutica de grupo, a edificação
partilhada do que somos e do desejamos. O núcleo corresponde, por isso mesmo, a um
percurso através das resistências. Tanto das que impedem a recordação como as que não
fazem senão repetir episódios, arcaísmos, motivos encerrados em si mesmos. Tudo se
torna imagem, símbolo, substituição. O próprio texto reage à função de dizer estes
objetos, metaforiza-os. Leia-se, de novo no Arquipélago da Insónia:
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Um silêncio que a comunicação analítica precisa se territorializar, para desinibir uma
censura, corrigir com «uma dificuldade de ferrugem» um ponto de resistência. Como
não é infalível, nem sempre conseguimos aceder-lhe. Tal matriz discursiva torna-se
análoga da consciencialização de distintas camadas da memória, ditas, interpoladas
entre dois ou mais intervenientes, sobretudo nos momentos em que os instrumentos de
censura estão maleáveis, próximos do sono e do sonho. Vem a propósito José Gil, que
explica desta maneira a pluridimensionalidade da cronologia:
São ilhas de tempo que se conectam pelo poder hipnótico da bruma que a
escrita segrega. Porque a escrita cria uma bruma de tempo (é esse o tempo
único do passado), todos os tempos podem ser evocados e surgir na bruma.
Cada cena é uma ilha e o conjunto um arquipélago sem fim. Saídos da bruma,
mas totalmente envoltos nela, são como imagens nascidas de uma insónia,
mal situadas no espaço e no tempo, vacilantes, fantasmáticas ((ORG) 2011)
Obras Citadas
(ORG), Felipe CAMMAERT. A Arte do Romance. Lisboa: Texto Editora, 2011.
Antunes, António Lobo, entrevista de Rodrigues da Silva. A confissão exuberante (13 de abril
de 1994).
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ANTUNES, António Lobo. Arquipélago da Insónia (O). Lisboa: Dom Quixote, 2008.