Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
serapião
Rodrigo Mendes
Valter Hugo Maã e, em seu livro o remorso de baltazar serapião, molda uma
estrutura de violeê ncia naã o soá , mas essencialmente misoá gina, que foi perpetuada
por seá culos e seá culos pela Igreja Catoá lica, pelas sociedades patriarcais hieraá rquicas,
enfim, por um imaginaá rio social construíádo de inferiorizaçaã o das mulheres. O
romance gira em torno da famíália patriarcal de Baltazar, que vive com seu pai e sua
maã e, irmaã o e irmaã , e veê constantemente a violaçaã o da liberdade de sua maã e por seu
pai, a violeê ncia a que eá submetida e, por fim, sua morte. O romance eá sobre a
extrema violeê ncia contra as mulheres e indica uma suspensaã o do processo
histoá rico, jaá que ambientado na Idade Meá dia e escrito contemporaneamente,
estabelece uma linha contíánua de opressoã es e barbaá ries a que as mulheres saã o
acometidas.
Este texto abordaraá treê s eixos de anaá lise, unindo-os atraveá s do prisma da
violeê ncia misoá gina secular. Saã o eles: o que Joseá Gil chama de queixumes,
ressentimentos e fechamento da sociedade portuguesa; a noçaã o de pecado no
medievalismo; o que, afinal, eá o “remorso” dito no tíátulo.
“Um dos seus efeitos imediatos eá a paralisaçaã o de toda a dinaê mica do novo.
O que surge como diferente aparece como uma ameaça aà igualdade eu a
inveja protege. Igualdade niveladora por baixo, como vimos, porque impede
a expressaã o da singularidade: toda e qualquer manifestaçaã o de
originalidade eá considerada superior, e rejeitada.” (grifos do autor, p. 86)
Aqui jaá temos alguns elementos para olhar o romance de outra forma, como uma
inveja aà originalidade de Ermesinda, esposa de Baltazar, e sua consequente
mutilaçaã o e morte.
1<https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/casos-de-estupros-no-brasil-diminuiram-em-
2014-segundo-anuario-de-seguranca-publica/> Acessado em 22/10/2018 aà s 17:31. O dado eá
referente ao ano de 2014. Na Ageê ncia Patríácia Galvaã o encontra-se vasto material empíárico sobre a
violeê ncia contra a mulher no Brasil.
2 As refereê ncias ao livro saã o da ediçaã o MAÃ E, V. H. o remorso de baltazar serapião. Rio de Janeiro:
Biblioteca Azul, 2018.
Casmurro. A diferença eá que, no caso brasileiro, Bento Santiago eá um homem da
elite carioca, e o que o autoriza a emitir juíázo de valor com estatuto de verdade
inquestionaá vel eá a propriedade, aleá m do fato de ser homem. No caso portugueê s, o
que o permite a ser assim eá a condiçaã o de geê nero, ainda mais violenta e mortal na
Idade Meá dia, tempo do romance. Baltazar aprende em casa e na rua que mulher eá
como um animal – e no romance a ironia eá ainda mais cruel, jaá que haá uma
sobreposiçaã o entre a vaca da famíália, a Sarga, e as mulheres, o que fica claro desde
o iníácio, com as piadas feitas sobre o nascimento de Baltazar e seu irmaã o, aleá m do
desfecho, no qual parece haver uma ligaçaã o inextricaá vel entre a Sarga e Ermesinda.
Outra parte da anaá lise que faremos agora eá sobre a noçaã o de pecado na
Idade Meá dia, aà luz do verbete “Pecado” do Dicionário Medieval e em relaçaã o aà s
mulheres.
Haá ainda um desdobramento esse pecado em uma figura enigmaá tica que eá a
Mulher Queimada. Ela naã o tem nome, mas pelo epíáteto se infere que foi condenada
aà morte na fogueira, mas de algum jeito escapou. Descobre-se depois que ela eá uma
feiticeira (apariçoã es sobrenaturais começam a aparecer na narrativa apoá s a
apariçaã o dessa personagem, o que indica um cotidiano da ordem do maravilhoso e
do pecado, fundamentais para entender o contexto histoá rico da eá poca). A Mulher
Queimada representa outro tipo de pecado, que estaá associado aà blasfeê mia, jaá que
poderes sobrenaturais soá saã o concedidos ao Deus catoá lico, criador do mundo. Para
aleá m disso, fica claro que, para ela ser uma uma mulher do jeito que eá , (forte, que
naã o soá resiste aà condenaçaã o de morte, mas tambeá m tem opinioã es mais libertadoras
e emancipatoá rias para as mulheres) soá podia estar associada ao signo do pecado,
representando uma ameaça aà quela sociedade, pois desvirtuava da ordem
estabelecida. Ela representa um ponto de tensaã o do romance, mas sua apariçaã o em
uma pequena parte do romance eá significativa, jaá que uma mulher sozinha naã o eá
capaz de combater uma sociedade inteira que se assenta na violeê ncia de geê nero.
Por fim, o tal remorso que daá tíátulo ao livro. Uma leitura aà primeira vista
seria que Baltazar teve remorso de abdicar de sua mulher, submeteê -la aà s condiçoã es
de extrema violeê ncia que ele a submeteu, enfim, por naã o ter valorizado sua mulher.
Poreá m, interpreto um pouco diferente. Diante de tudo que foi exposto, retomo dois
pontos que julgo centrais para anaá lise desse desfecho, que saã o as noçoã es de inveja
e sua consequente designaçaã o de pecado. Embora aquele narrador nos diga, em
outras palavras, que se arrependeu do que fez, analisando o romance todo fica
difíácil crer que eá somente isso. Apoá s uma narrativa que acumulou opressoã es e
violeê ncias fíásicas e psicoloá gicas, naã o seria muito estranho que, quando Baltazar
percebe que todas noites seus dois companheiros violentam sexualmente sua
esposa jaá aà beira da morte, sem condiçoã es de se mexer, tudo por causa das
constantes violeê ncias de Baltazar, ele sentisse inveja por naã o ser ele opressor, assim
como tantas vezes foi. Um sentimento de posse que volta aà tona, mas que eá
mascarado por um lampejo de “humanidade”, levando-o entaã o ao ato de matar
ambos, mesmo que isso causasse sua morte pelo feitiço que a Mulher Queimada
lhes fez. Um remorso aà s avessas, que num continuum de violeê ncia, passa a ser
pensado e sentido por Baltazar, mas que no fundo carrega os sentimentos que ele a
vida inteira cultivou: violeê ncia contra mulher, inveja, sentimento de posse.
Referências:
LE GOFF, J. e SCHMITT, J. “Pecado”. In: Dicionaá rio Temaá tico do Ocidente Medieval. Bauru:
EDUSC; Saã o Paulo: Imprensa oficial do estado, 2002. v. II.