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A estrutura literaá ria e social de violeê ncia misoá gina em o remorso de baltazar

serapião

Rodrigo Mendes

Valter Hugo Maã e, em seu livro o remorso de baltazar serapião, molda uma
estrutura de violeê ncia naã o soá , mas essencialmente misoá gina, que foi perpetuada
por seá culos e seá culos pela Igreja Catoá lica, pelas sociedades patriarcais hieraá rquicas,
enfim, por um imaginaá rio social construíádo de inferiorizaçaã o das mulheres. O
romance gira em torno da famíália patriarcal de Baltazar, que vive com seu pai e sua
maã e, irmaã o e irmaã , e veê constantemente a violaçaã o da liberdade de sua maã e por seu
pai, a violeê ncia a que eá submetida e, por fim, sua morte. O romance eá sobre a
extrema violeê ncia contra as mulheres e indica uma suspensaã o do processo
histoá rico, jaá que ambientado na Idade Meá dia e escrito contemporaneamente,
estabelece uma linha contíánua de opressoã es e barbaá ries a que as mulheres saã o
acometidas.

Este texto abordaraá treê s eixos de anaá lise, unindo-os atraveá s do prisma da
violeê ncia misoá gina secular. Saã o eles: o que Joseá Gil chama de queixumes,
ressentimentos e fechamento da sociedade portuguesa; a noçaã o de pecado no
medievalismo; o que, afinal, eá o “remorso” dito no tíátulo.

A sociedade portuguesa, segundo Gil em “Queixume, ressentimento, invejas”,


transporta para o puá blico os afetos do privado. Age nas instituiçoã es legais e
espaços sociais puá blicos atraveá s de relaçoã es pessoais e naã o impessoais, como estas
requerem (e relaçaã o com a cordialidade de Seá rgio Buarque de Holanda e o caráter
brasileiro eá imediata). EÉ nesse contexto que Gil situa a inveja. Junto a isso, situa
tambeá m o queixume e outros traços da identidade portuguesa. Aleá m disso, marca
tambeá m que a inveja funciona como um nivelador social, tambeá m atraveá s do
queixume. Diz ele:

“Um dos seus efeitos imediatos eá a paralisaçaã o de toda a dinaê mica do novo.
O que surge como diferente aparece como uma ameaça aà igualdade eu a
inveja protege. Igualdade niveladora por baixo, como vimos, porque impede
a expressaã o da singularidade: toda e qualquer manifestaçaã o de
originalidade eá considerada superior, e rejeitada.” (grifos do autor, p. 86)

Aqui jaá temos alguns elementos para olhar o romance de outra forma, como uma
inveja aà originalidade de Ermesinda, esposa de Baltazar, e sua consequente
mutilaçaã o e morte.

Baltazar e Ermesinda se casam, e logo demais ela eá requisitada por Dom


Afonso, nobre local, para visitas diaá rias a sua casa. Imediatamente Baltazar eá
tomado por um ciuá mes doentio e começa a mutilar sua esposa, começando por
entortar seu peá (haá uma indicaçaã o sutil no iníácio do romance que o peá de sua maã e
estaá torto, mas o narrador soá contaraá a razaã o depois – o pai, por alguma
desconfiança ou mesmo por algum motivo mais simples, cometeu esse ato infame –
ou seja, a violeê ncia contra as mulheres eá hereditaá ria). As violeê ncias seguiraã o se
intensificando ateá arrancar um dos olhos dela e, entaã o, espancaá -la quase ateá a
morte (ele de fato achou que a havia matado). Pois bem, em meio a toda essa
violeê ncia, Baltazar um dia pergunta a razaã o das visitas, pois a violentou pela
primeira vez sem antes ter perguntado, e a resposta era que Dom Afonso gostava
de conversar com ela. EÉ impossíável, na visaã o de um homem como aquele, imaginar
que isso fosse verdade. Haá aqui, portanto, aleá m de uma limitaçaã o histoá rica do
horizonte de expectativa dos personagens, uma inveja pela sensibilidade de
Ermesinda, inclusive por sua inteligeê ncia, jaá que Baltazar naã o passava de um
grosso, rude e violento como seu pai. Outra inveja eá a da esposa de Dom Afonso
com Ermesinda.

O que estaá bloqueado pelo que disse no horizonte de expectativa de


Baltazar eá a correlaçaã o de forças que envolve os estamentos sociais da eá poca. Haá
uma cadeia de opressoã es hieraá rquicas que vem de El-Rei, passando por Dom
Afonso, nobre, tambeá m junto ao clero local, e que chega, jaá em um terceiro níável,
aos pobres que saã o os Serapiaã o. Aqui, aleá m da opressaã o de classe, haá a opressaã o de
geê nero, jaá que Ermesinda e sua sogra saã o constantemente violentadas ateá sua
morte justamente por serem mulheres. O feminicíádio eá regra naquela sociedade e,
atraveá s de uma suspensaã o do tempo histoá rico, tambeá m chega aos dias de hoje, mais
ameno (em alguns lugares mais que outros), mas segue com força. Basta ver, por
exemplo no Brasil, que a cada 11 minutos uma mulher eá estuprada 1. Aqui jaá estaá
claro que o conservadorismo e o fechamento da sociedade portuguesa, presente
em Joseá Gil, se materializa no romance, tento caraá ter de princíápio estruturante.

Esse pensamento e essa violeê ncia patriarcal saã o o cerne do romance.


Baltazar fala com a maior naturalidade das violeê ncias que pratica, sem remorso
algum (veremos, ao final, que eá possíável que esse remorso do tíátulo seja iroê nico).
No capíátulo treze temos uma boa amostra de como esse narrador encara a
realidade de seu relacionamento. Falando da Ermesinda: “(...) acordava cedo para
se encaminhar a dom afonso, e ficar a veê -la sair sem pressas nem sinais, mas
certamente em anseios grandes por se meter debaixo dele” (p. 107). 2 O que o
autoriza a pensar desse modo? O debate sobre o narrador eá muito proá ximo ao que
se faz em relaçaã o a Machado de Assis, principalmente a Bentinho em Dom

1<https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/casos-de-estupros-no-brasil-diminuiram-em-
2014-segundo-anuario-de-seguranca-publica/> Acessado em 22/10/2018 aà s 17:31. O dado eá
referente ao ano de 2014. Na Ageê ncia Patríácia Galvaã o encontra-se vasto material empíárico sobre a
violeê ncia contra a mulher no Brasil.

2 As refereê ncias ao livro saã o da ediçaã o MAÃ E, V. H. o remorso de baltazar serapião. Rio de Janeiro:
Biblioteca Azul, 2018.
Casmurro. A diferença eá que, no caso brasileiro, Bento Santiago eá um homem da
elite carioca, e o que o autoriza a emitir juíázo de valor com estatuto de verdade
inquestionaá vel eá a propriedade, aleá m do fato de ser homem. No caso portugueê s, o
que o permite a ser assim eá a condiçaã o de geê nero, ainda mais violenta e mortal na
Idade Meá dia, tempo do romance. Baltazar aprende em casa e na rua que mulher eá
como um animal – e no romance a ironia eá ainda mais cruel, jaá que haá uma
sobreposiçaã o entre a vaca da famíália, a Sarga, e as mulheres, o que fica claro desde
o iníácio, com as piadas feitas sobre o nascimento de Baltazar e seu irmaã o, aleá m do
desfecho, no qual parece haver uma ligaçaã o inextricaá vel entre a Sarga e Ermesinda.

UÉ ltimo ponto em relaçaã o a este toá pico eá a relaçaã o de Portugal com o


progresso. Segundo Gil, haá um forte retraimento dos portugueses em relaçaã o ao
avanço, em relaçaã o ao novo. No romance, haá um curioso jogo de palavras,
principalmente de verbos no tempo condicional (prefixo -ia), que parecem reforçar
a ideia de uma mudança que nunca chega, um eterno tempo de espera. Aqui parece
ter um jogo entre o campo de experieê ncia, imutaá vel mesmo que os personagens
pareçam almejar, como exemplo o trecho a seguir, e horizonte de expectativa
possíável, mas que nunca chega nem chegaraá . Quando do anuá ncio da vinda de El-Rei:
“(...) el-rei estaraá entre noá s como beê nçaã o mais divina, e tudo do diabo se levantaraá
ao poder de sua presença e nossas vidas novamente se encaminharaã o” (p. 110).
Conservadorismo, impossibilidade de mudança, e agora um novo tema, o diabo,
relaçaã o com o proá ximo toá pico.

Outra parte da anaá lise que faremos agora eá sobre a noçaã o de pecado na
Idade Meá dia, aà luz do verbete “Pecado” do Dicionário Medieval e em relaçaã o aà s
mulheres.

O pecado surge como uma mediaçaã o social entre a religiaã o e a sociedade,


forma de ordenar o mundo atraveá s da religiaã o. Dois pecados sobressaem da
narrativa, tendo como figuras de açaã o ou de receptoras as mulheres: a inveja e a
luxuá ria. Ermesina e sua sogra saã o alvos da violeê ncia de seus maridos por, a
supostamente, os terem traíádo, logo, o pecado a luxuá ria. Teresa Diaba, cujo proá prio
nome jaá indica um pecado, eá tambeá m vista como pecaminosa por fazer sexo com
vaá rios homens. Mas haá tambeá m a inveja, que, como estamos argumentando, eá o que
Baltazar sente por Ermesinda. Essa inveja talvez seja fruto de um recalque proá prio
de Baltazar por duas razoã es: naã o eá inteligente e cativante o bastante para ver em
sua esposa qualidades que lhe faltam; inveja de Dom Afonso, jaá que em sua visaã o,
Ermesinda naã o eá totalmente sua propriedade, mas a compartilha com o nobre, fato
que desencadeia, como dito, um ciuá mes doentio e a consequente mutilaçaã o e morte
de Ermesinda.

Haá ainda um desdobramento esse pecado em uma figura enigmaá tica que eá a
Mulher Queimada. Ela naã o tem nome, mas pelo epíáteto se infere que foi condenada
aà morte na fogueira, mas de algum jeito escapou. Descobre-se depois que ela eá uma
feiticeira (apariçoã es sobrenaturais começam a aparecer na narrativa apoá s a
apariçaã o dessa personagem, o que indica um cotidiano da ordem do maravilhoso e
do pecado, fundamentais para entender o contexto histoá rico da eá poca). A Mulher
Queimada representa outro tipo de pecado, que estaá associado aà blasfeê mia, jaá que
poderes sobrenaturais soá saã o concedidos ao Deus catoá lico, criador do mundo. Para
aleá m disso, fica claro que, para ela ser uma uma mulher do jeito que eá , (forte, que
naã o soá resiste aà condenaçaã o de morte, mas tambeá m tem opinioã es mais libertadoras
e emancipatoá rias para as mulheres) soá podia estar associada ao signo do pecado,
representando uma ameaça aà quela sociedade, pois desvirtuava da ordem
estabelecida. Ela representa um ponto de tensaã o do romance, mas sua apariçaã o em
uma pequena parte do romance eá significativa, jaá que uma mulher sozinha naã o eá
capaz de combater uma sociedade inteira que se assenta na violeê ncia de geê nero.

Por fim, o tal remorso que daá tíátulo ao livro. Uma leitura aà primeira vista
seria que Baltazar teve remorso de abdicar de sua mulher, submeteê -la aà s condiçoã es
de extrema violeê ncia que ele a submeteu, enfim, por naã o ter valorizado sua mulher.
Poreá m, interpreto um pouco diferente. Diante de tudo que foi exposto, retomo dois
pontos que julgo centrais para anaá lise desse desfecho, que saã o as noçoã es de inveja
e sua consequente designaçaã o de pecado. Embora aquele narrador nos diga, em
outras palavras, que se arrependeu do que fez, analisando o romance todo fica
difíácil crer que eá somente isso. Apoá s uma narrativa que acumulou opressoã es e
violeê ncias fíásicas e psicoloá gicas, naã o seria muito estranho que, quando Baltazar
percebe que todas noites seus dois companheiros violentam sexualmente sua
esposa jaá aà beira da morte, sem condiçoã es de se mexer, tudo por causa das
constantes violeê ncias de Baltazar, ele sentisse inveja por naã o ser ele opressor, assim
como tantas vezes foi. Um sentimento de posse que volta aà tona, mas que eá
mascarado por um lampejo de “humanidade”, levando-o entaã o ao ato de matar
ambos, mesmo que isso causasse sua morte pelo feitiço que a Mulher Queimada
lhes fez. Um remorso aà s avessas, que num continuum de violeê ncia, passa a ser
pensado e sentido por Baltazar, mas que no fundo carrega os sentimentos que ele a
vida inteira cultivou: violeê ncia contra mulher, inveja, sentimento de posse.

Referências:

MAÃ E, V. H. o remorso de baltazar serapião. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2018.

GIL, J. “Queixume, ressentimentos, invejas”. In: Portugal, hoje: o medo de existir.

LE GOFF, J. e SCHMITT, J. “Pecado”. In: Dicionaá rio Temaá tico do Ocidente Medieval. Bauru:
EDUSC; Saã o Paulo: Imprensa oficial do estado, 2002. v. II.

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