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Introdução
1
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 170.
2
Idem. Op. Cit.
ser vivente dotado de razão. Em segundo lugar, a propensão
natural que tem o homem para o bem e sem a qual, aliás, não
poderia subsistir, pois o bem em geral inclui seu bem próprio. Em
terceiro lugar, também pode se chamar de bem da natureza
humana, o dom da justiça original, que lhe foi conferido por Deus
quando da criação e que, por conseguinte, o homem recebeu
como uma graça.3
3
Étienne Gilson. Op. Cit. p. 170.
4
Tomás de Aquino. Compêndio de Teologia. I, II, CLXXXVI, 1 e 2
1.3) A Repercussão do Pecado Original na Natureza Humana
Destarte, é por isso – e somente por isso – ou seja, por não fazer parte
da natureza humana enquanto tal, que se pode dizer, sem contradição, que este
bem – vale lembrar, o da justiça original – foi totalmente corrompido pelo
pecado original.5
De sorte que, conquanto o homem tenha perdido o dom da justiça
original, nele permaneceu, não obstante esta perda, íntegra e sem prejuízo – ao
menos no plano ontológico – a natureza humana enquanto tal. Com efeito, assim
se expressa o medievalista francês, no que toca ao dom da justiça original
concedido à natureza humana:
5
Sobre o terceiro bem, isto é, o dom da justiça original, diz explicitamente o próprio Santo
Tomás: Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, 85, 1, C: “O terceiro, ao contrário, foi
totalmente tirado pelo pecado do primeiro pai.”
6
Étienne Gilson. Op. Cit. p. 170 e 171.
7
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, 85, 1, C: “Como foi dito, o bem da natureza que
diminui pelo pecado é a inclinação natural à virtude.”
8
Étienne Gilson. Op. Cit. p. 171: “No entanto, essa propensão subsiste, inclusive, é ela que
torna possível a aquisição de todas as virtudes.”
Deve-se dizer que mesmo entre os condenados permanece uma
inclinação para à virtude. (...) Mas, se esta inclinação não passa
ao ato, isto provém de que, por um desígnio da justiça divina, a
graça está ausente. Assim, mesmo no cego, permanece na raiz da
natureza uma aptidão para ver, enquanto é um animal que
naturalmente tem a vista. Mas, a aptidão não passa ao ato porque
falta a causa que poderia levá-lo, reconstituindo o órgão que é
requerido para ver.9
Agora bem, uma pergunta – que também pode ser formulada a modo
de objeção – se impõe. Sem embargo, como podemos afirmar que a natureza
racional não foi em nada afetada, se se acaba de assegurar que a propensão
natural para o bem, foi de alguma forma diminuída? Com efeito, a propensão
natural para o bem, tem a sua raiz na natureza racional do homem. O assunto é
delicado e complexo, mas Tomás não se furta em tentar respondê-lo.
É mister ter presente, que na própria inclinação para a virtude, deve-se
considerar duas coisas. De um lado a sua raiz, de outro o seu termo. Quanto à
sua raiz, é preciso dizer, que de fato esta inclinação nos remete, exatamente, à
natureza racional do homem como a seu fundamento último. Mas de outro lado,
esta inclinação também está ligada, precisamente, à tendência para virtude – a
ação virtuosa propriamente dita – que é justamente o seu fim último. Por
conseguinte, a “diminuição” desta inclinação para a virtude, pode ser concebida
tanto como uma diminuição na raiz quanto como uma diminuição no termo:
9
Idem. Ibidem. I-II, 85, 2, ad 3.
10
Idem. Ibidem. I-II, 85, 2, C.
Ora, o pecado não causou – afirma Tomás – diminuição alguma na
natureza racional do homem. Destarte, a raiz desta propensão natural que o
homem tem para a virtude, não foi em nada afetada. No entanto, o pecado
enfraqueceu o concurso desta inclinação no que toca ao encaminhamento para o
seu fim, que é o bem da virtude. Logo, se deve afirmar que a diminuição da
propensão natural do homem para o bem, se deu – não em sua raiz racional –
mas na eficácia da consecução do seu fim.
11
Idem. Ibidem.
12
Idem. Ibidem. I-II, 85, 1, C
13
Idem. Ibidem.
Esta inclinação (para o bem) convém ao homem pelo fato de ser
ele racional. É isso que lhe permite agir segundo a razão, e isso é
agir segundo a virtude. Ora, o pecado não pode tirar
completamente do homem que seja racional, porque já não seria
capaz de pecado.14
De fato, afirmar o contrário, diz Gilson, seria o mesmo que dizer que o
pecado fez o homem deixar de ser homem mesmo sendo homem, o que é um
absurdo: “Supor o contrário seria admitir que o homem poderia continuar sendo
homem deixando de ser homem.”16
Tanto mais é assim, que no tratado da graça, logo no primeiro artigo
da primeira questão, ao se perguntar se o homem precisaria do auxílio da
mesma graça para conhecer a verdade, Tomás responde que não. De modo que
uma nova iluminação sobrenatural – em princípio – só se faria necessária se se
tratasse de conhecer àquelas verdades que ultrapassam a ordem natural da
razão. Daí que, para as demais verdades – isto é, às de ordem natural – basta a
luz da razão, concedida uma vez por todas por Deus na criação, para que o
14
Idem. Ibidem
15
Idem. Ibidem. I-II, 85, 1, C; Étienne Gilson. Ibidem. p. 171: “Assim, o pecado não poderia
acrescentar nada à natureza humana, nem nada lhe retirar.”
16
Idem. Ibidem. p. 171.
homem as conheça. Donde a razão – mesmo após o pecado de origem –
encontra-se, pois, preservada em sua eficácia fundante:
17
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, 109, 1, C
18
Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 192.
essência – a existência de uma filosofia autêntica e autônoma, obra maior de
uma racionalidade ilesa em seus princípios constitutivos: “Nesta concepção de
homem, a existência de uma filosofia autêntica e autônoma é um corolário
espontâneo.”19
Importa concluir, por seu lado, que no catolicismo, a filosofia tem
salvaguardada e justificada, justamente toda a sua competência e independência:
19
Idem. Ibidem. p. 192.
20
Idem. Ibidem. p. 194.
21
Gilson parece aludir a esta intervenção indicativa da fé em filosofia, quando diz: Etienne
Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 657: “Em semelhante caso (intervenção das verdades
de fé na especulação filosófica), a revelação só intervém para assinalar o erro, mas não é em seu
nome, e sim em nome unicamente da razão que o estabelecemos.” (O parêntese é nosso). Em
outro lugar: Idem. Ibidem. p. 656: “Cabe à razão devidamente advertida criticar em seguida a si
mesma e encontrar o ponto em que se produziu o erro.”
filosófica, a influência confessa da teologia é manifesta, e é a
teologia mesma que fornecerá o plano.22
25
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, 109, 2, C.
26
Idem. Ibidem.
sobrenatural, mas também para realizar o próprio bem proporcional à sua
natureza:
Destarte, podemos notar com maior clareza aqui, que no estado atual,
ou seja, depois da queda, uma ética estritamente filosófica não será suficiente.
De fato, toda ética estritamente filosófica precisará, necessariamente, prescindir
da graça, verdade alcançável somente mediante a Revelação cristã.
Ora, o homem – na disciplina do seu comportamento, que é o objeto
próprio da reflexão ética – na sua condição atual, não pode prescindir da graça
– conforme vimos – sequer para fazer o bem proporcional à sua natureza.28
Logo, não vemos nenhuma razão para afirmarmos a suficiência, em Tomás, de
uma ética estritamente filosófica.
Teoricamente, no entanto, supondo que não houvesse queda ou que
não houvesse pecado original, só então seria plausível pensarmos numa ética
estritamente filosófica. Acreditamos, entretanto, ser esta suposição um contra-
senso em Tomás, visto que ele foi um pensador cristão.
Entretanto, não ignoramos – e é bom que se diga para evitar qualquer
equívoco – que a Ética, até por sua própria natureza, não se destina a fazer com
27
Idem. Ibidem.
28
Com isso não queremos dizer, que o homem não seja capaz de virtudes sem a graça – o que
seria de um pessimismo mórbido – mas tão-somente que ele não é capaz de realizar
integralmente o bem – mesmo o proporcional à sua natureza – sem a graça!
que o homem aplique, em todos os particulares imediatos, as regras que ela
mesma dita.
Esta função cabe, antes, a virtude da prudência. É ela – a prudência –
no seu exercício, quem nos fará julgar, sempre e bem, o como devemos proceder
num caso específico, de acordo com os ditames da própria Ética. É a prudência,
portanto, e não a Ética propriamente dita, quem nos faz querer e executar, sem
desfalecer – mesmo ante as solicitações contrárias das circunstâncias e as
inclinações cegas das paixões – as regras estabelecidas pela mesma Ética:
Contudo – advertimos uma vez mais –a nosso ver, a Ética não pode
prescindir, no ato mesmo de sua reflexão sobre os costumes, do drama do
pecado e da necessidade da graça. É por isso, por conseguinte, que uma Ética
estritamente filosófica – que prescinda destes mesmos dados revelados – não
procede em Tomás.
Com efeito, como fundar uma ciência – como a Ética – que diz
respeito à prática, pautando-a no postulado de como haveria de se exercer os
atos humanos, caso não houvesse ocorrido o drama do pecado? O estudo da
ação humana na sua integridade, nunca poderá ignorar, com efeito,
determinados dados revelados: como o pecado, a Redenção, a Graça, etc.
Vejamos como e porque, Manuel Correia de Barros, talvez até de forma
excessivamente negativa, avalia a importância da moral para a filosofia:
29
Jacques Maritain. Elementos de Filosofia I: Introdução Geral à Filosofia. p. 167 e 168.
De toda a filosofia, a parte que menos interesse imediato pode
ter é precisamente a parte prática, a filosofia moral. A razão
deste fato paradoxal é simples. A filosofia, por definição, não
pode fundar-se nos dados revelados; a filosofia moral tem por
isso de ignorar fatos tão fundamentais como o pecado original, a
Lei divina positiva, a Redenção, a Graça, a visão de Deus face a
face prometida como fim e recompensa aos nossos esforços. Daí
resulta que, em todos os casos concretos, a nossa ação será ditada
pela moral revelada, pela moral cristã, que atende a estes factores
juntamente com os demais, e não pela moral filosófica; e, por
isso mesmo, que o interesse prático da moral filosófica é pouco
mais do que nulo. Essa moral só teria utilidade imediata no
Mundo que Deus podia ter criado, mas não quis criar, em que a
Natureza não fosse prolongada pela Graça.30
30
Manuel Correia de Barros. Lições de Filosofia Tomista. Disponível
em:<http://www.microbookstudio.com/mcbarros.htm>. Acesso em: 21/02/2007. (Os itálicos são
nossos).
31
Idem. Ibidem. p. 98: “Note-se que a Ética, mesmo visando alcançar outro bem, além do único
bem de conhecer, continua a ser uma ciência verdadeira e propriamente dita, isto é, consiste
somente em conhecer, tendo como regra de verdade aquilo que é, e procede de modo
demonstrativo, resolvendo conclusões em seus princípios.” (O itálico é nosso).
determinar a moralidade dos atos humanos, a partir do conhecimento do fim
último – e bem absoluto – do homem:
32
Idem. Ibidem. p. 97 e 98. Portanto, a Ética, que quanto ao seu fim – disciplinar o agir humano
– é chamada de Filosofia Prática, quando ao seu objeto formal – direcionar o agir humano – a
partir do conhecimento do Bem Supremo – enquanto este é naturalmente cognoscível ao homem
– continua sendo, pois, uma Filosofia Especulativa: Idem. Ibidem. nota 89: “Note-se que esta
divisão da Filosofia em especulativa e prática é tomada com relação ao fim e não ao próprio
objeto da ciência que, como tal, permanece sempre especulativa.”
aniquilamento, enquanto ciência que esmera proporcionar ao homem, uma
teleologia normativa do seu agir:
De resto, não somente pelo fato de ter que prescindir da graça – o que
aliás já bastaria para tornar uma ética que se pretenda estritamente filosófica,
inapta para estabelecer sozinha as normas do agir humano – posto que até de um
de um ponto de vista unicamente natural, conforme já o vimos, precisamos da
graça para agirmos sempre de forma comedida, senão que também e inclusive de
um ponto de vista teórico – porquanto não possa conjugar no seu discurso certas
verdades essencialmente reveladas, ao mesmo tempo em que estas se mostram
necessárias de ser acomodadas, numa ética que queira ordenar o homem ao seu
fim último sobrenatural – a Ética filosófica fica então – repetimos uma vez mais
– realmente impossibilitada de encaminhar o homem ao seu fim sobrenatural,
que na verdade é o verdadeiro e derradeiro fim último do homem. Em verdade,
fica assim estabelecido, que o tratado da ética, é o ponto de transição da
filosofia para a teologia tomásica.
Mas se tal transição não acontece, permanecemos somente num plano
meramente teórico, com uma ética que, embora se constitua enquanto ciência
33
Idem. Ibidem. p. 168
especulativa, não cumpre, pois, deveras a sua finalidade primeira, a saber, entrar
na concretude do ato humano.
Passemos agora a colocação do problema, de como consolidar a
noção de uma filosofia cristã.
2) A Colocação do Problema de uma
Filosofia Cristã
34
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 1.
35
Idem. Ibidem.
vemos - uma outra questão, ainda mais sutil e complexa, mas da qual não
podemos nos furtar: pode haver uma filosofia cristã? Observa Gilson:
38
Ibidem. Ibidem. p. 6
39
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 6 (O itálico é nosso).
3) Históricos do Problema
Não que a religião cristã fosse irracional; ela era, ao contrário – São
Paulo mesmo o diz – a mais alta forma de sabedoria. Mas era uma sabedoria de
outra ordem, isto é, formalmente diversa da sabedoria dos filósofos e dos judeus,
posto que fundada na fé e na Revelação de Deus, que se deu em Jesus
Crucificado, por meio do qual somos salvos e gratuitamente justificados. Por não
entendê-la, visto que sobrenatural, a sabedoria dos homens – tanto a grega como
a judaica – a declaravam como escândalo e loucura. Eles crucificaram a própria
Sabedoria, personificada, para Paulo, em Jesus de Nazaré. Ao contrário, aos
cristãos é dado conhecê-la, pelo Espírito:
40
I Co 1, 18, 20b- 25
41
I Co 2, 3-5
No entanto, é realmente de sabedoria que falamos entre os
perfeitos, sabedoria que não é deste mundo nem dos príncipes
deste mundo, voltados à destruição. Ensinamos a sabedoria de
Deus, misteriosa e oculta, que Deus, antes dos séculos, de
antemão destinou para a nossa glória. Nenhum dos príncipes
deste mundo a conheceu, pois, se a tivessem conhecido, não
teriam crucificado o Senhor da Glória. (...) A nós, porém Deus o
revelou pelo Espírito.42
Agora bem, é preciso ainda notar, que nem sequer a virtude da legítima
sabedoria humana São Paulo queria eliminar. Ele mesmo não a desdenhava a
ponto de desprezá-la. Por ela poderíamos mesmo chegar ao conhecimento da
existência de Deus e das suas perfeições invisíveis. Além disso, pela razão, o
homem é capaz de testemunhar a presença da lei moral em seu coração. Esta
está, a todo momento, a lhe advertir a consciência e a lhe nortear o caminho para
o bem.
Destarte, São Paulo parece mesmo admitir, ainda que implicitamente,
que a sabedoria humana pode até mesmo se tornar uma forma de preparação
para o Evangelho. Com efeito, ele chega a afirmar que são indesculpáveis todos
aqueles que não se valeram das evidências, colhidas da própria sabedoria
humana, para adorarem a Deus. Eis as passagens mais significativas a este
respeito e que se tornarão célebres para todo o pensamento cristão posterior:
42
I Co 2, 6-8 e 10a.
43
Rm 1, 19-21a
No que toca à lei moral, ainda diz:
Portanto, o que São Paulo quer frisar com sua crítica as “vãs
filosofias” é que, do ponto de vista da salvação, nenhuma sabedoria humana
mostrou-se eficaz. Ao contrário, todas elas atestaram a incompetência do homem
para salvar-se a si mesmo.
44
Rm 2, 1 e 14-16a. A respeito deste mesmo conhecimento natural da moral que Paulo prevê,
declina Franca: Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 182: “É a afirmação clara de
um conhecimento de ordem moral, anterior à revelação e dela independente.”
45
Idem. Ibidem.
2.2) Do Nascimento da Noção de “Filosofia Cristã” na Patrística
46
Justino. Diálogo com Trifão. 8, 1-2. (O Itálico é nosso).
oferecia uma nova solução para problemas que os próprios
filósofos tinham levantado. Uma religião baseada na fé numa
revelação divina mostrava-se capaz de resolver os problemas
filosóficos melhor que a própria filosofia; seus discípulos tinham,
portanto, o direito de reivindicar o título de filósofos e, como se
tratava da religião cristã, declarar-se filósofos pelo simples fatos
de serem cristãos.47
47
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 4 e 5. (O itálico é nosso).
48
A este respeito, eis a passagem clássica: Justino. II Apologia. 13, 3: “De fato, cada um falou
bem, vendo o que tinha afinidade com ele, pela parte que lhe coube do Verbo seminal divino.”
(O itálico é nosso).
49
Jo 1, 14: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória que ele
tem junto do Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade.” (O itálico é nosso). Sobre a
importância desta passagem do Prólogo do Evangelho de João, e de todo ele em geral para a
configuração do pensamento cristão posterior, nota Philotheus: Philotheus Boehner. História
da Filosofia Cristã. p. 18: “Seria difícil exagerar a importância do prólogo do evangelho
joanino para a história do pensamento cristão; na verdade, este se tornaria incompreensível sem
aquele.”
50
Justino. II Apologia. 13, 4: “Portanto, tudo o que de bom foi dito por eles, pertence a nós,
cristãos (...)”. Agostinho, dirá algo análogo: Agostinho. A Doutrina Cristã. II, 19, 28: “Bem ao
contrário, todo bom e verdadeiro cristão há de saber que a Verdade, em qualquer parte onde se
encontre, é propriedade do Senhor.”
Apologia, que se tornará clássica para todo o humanismo cristão, e na qual
Justino nos discrimina sua doutrina do logos:
51
Justino. II Apologia. 10, 1-3. (Os itálicos são nossos).
52
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p.5.
53
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 30. E ainda Franca, ao falar da mesma
doutrina, tira idêntica conclusão: Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 185: “Os
grandes filósofos do paganismo – um Sócrates e um Heráclito – participando assim da Luz do
Verbo, participaram da Luz de Cristo, foram cristãos, antes que existisse o nome.”
Verbo. Ora, isto os torna desta sorte, de certa forma, também arautos da
revelação total, que se dará em Cristo. Faz deles, pois, como que precursores
dela. Em uma palavra, o que a Lei foi para os judeus, a filosofia foi para os
gregos. Cada uma à sua maneira, aplainaram os caminhos para os conduzir a
Cristo:
É sob este aspecto, que Gilson encontra respaldo, para declarar que a
fórmula capital da obra de Clemente está na sua tese de que há dois Antigos
Testamentos, e um Novo.55 O Antigo de Testamento do Décalogo e dos profetas e
o Antigo Testamento da razão e dos filósofos. Evidentemente que a Revelação
feita aos judeus, teve um caráter mais perfeito.56 Não por isso, os gregos
deixaram de ter também os seus próprios profetas, a saber, os filósofos: “A razão
grega teve até seus profetas, que foram os filósofos.”57 Colocada nestes termos,
blasfemar contra a filosofia e a razão equivale a negar uma das vias abertas, pela
própria Providência Divina, para levar os pagãos a Cristo. É atentar, enfim,
contra a universalidade desta mesma Providência: “Os que dizem que a filosofia
54
Clemente. Stromates. I, V. In: Franca, Leonel. A Crise do Mundo Moderno. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1947. nota 186. E ainda: Clemente. Stromata. VIII, c 2,
nn 10 e 11. in: Battista Mondin. Curso de Filosofia: Os Filósofos do Ocidente: Vol 1. Trad:
Bênoni Lemos. Rev. João Bosco de Lavor Medeiros. São Paulo: Paulus, 1981. p. 123: “Deus
deu a Lei aos judeus e a filosofia aos gentios para impedir que não acreditassem na vinda de
Cristo. Porque, mediante dois processos diferentes de aperfeiçoamento, ele guia gregos e
bárbaros para a perfeição da fé”.
55
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 45: “Como diz Clemente, há dois Antigos
Testamentos e um Novo (...)”.
56
Idem. Ibidem. p. 44. “Sem dúvida, Deus não falava diretamente aos filósofos; ele não lhes
transmitia uma revelação especial, como fazia com os profetas, mas guiava-os, apesar disso,
indiretamente pela razão, que também é luz divina.”
57
Idem. Ibidem.
não vem de Deus parecem afirmar que Deus não conhece todas as coisas
particulares nem é causa de todos os bens.”58
Fechando este parêntese, voltemos a Taciano. Dizíamos que ele retoma
a doutrina de Justino no sentido de que, também ele, concebe o cristianismo
como a verdadeira sabedoria. Com efeito, ele se refere à doutrina cristã, como
“a nossa filosofia”: “Creio agora oportuno demonstrar-vos que a nossa filosofia é
mais antiga do que as instituições gregas.”59 Entretanto, enquanto Justino
concedia aos antigos filósofos um lugar de honra dentro do cristianismo, dada a
concepção que tinha de que todos eles, embora mui imperfeitamente, haviam
tido a sua participação no Verbo, Taciano, ao contrário, opõe de todo, sabedoria
cristã e sabedoria pagã. Apela para a história e crê poder demonstrar “a nossa
filosofia” é mais antiga do que a mitologia e filosofia grega. Aliás, acrescenta
Taciano, o que estas últimas, porventura, tenham de verdadeiro e decente, elas o
devem ao fato de terem-no plagiado daquela. De qualquer forma, é certo que as
duas doutrinas – a grega e a cristã – distam uma da outra, como o verdadeiro do
falso, como o céu da terra, como o divino do mundano. Eis significativa
passagem:
Entre nós não existe ambição e glória e, por isso, não seguimos
uma multiplicidade de doutrinas. Com efeito, afastados da razão
vulgar e terrena, obedientes aos mandamentos de Deus e
seguindo a lei do Pai da incorrupção, rejeitamos tudo o que se
funda em mera opinião humana; não só ricos filosofam, mas
também os pobres tomam gratuitamente parte no ensinamento. O
que vem de Deus ultrapassa a qualquer dom mundano que se
poderia dar em troca.60
58
Clemente. Stromates. VI, 17. In: Franca, Leonel. A Crise do Mundo Moderno. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1947. nota 187.
59
Taciano. Discurso Contra os Gregos. 31. (O itálico é nosso).
60
Idem. Op. Cit. 32.
Temos então, de um lado, o gênio conciliador e homogêneo de Justino,
que via na história humana uma única revelação – toda ela cristã a seu modo -
que havia se iniciado outrora com os gregos e que tinha encontrado o seu
término e píncaro no mistério insondável de Cristo:
61
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 8
62
Idem. Ibidem. p. 15.
patrística latina. Nela, nos deparamos, antes de tudo, com a posição radical de
Tertuliano, que viveu no século II.
Tal como Taciano, Tertuliano não via com bons olhos qualquer
influência que a filosofia grega pudesse exercer sobre a novel teologia cristã. A
doutrina bíblica e a tradição helênica para ele, nada tinham em comum. Eram,
aliás, não somente diferentes uma da outra, mas também perfeitamente opostas e
inconciliáveis. Por isso mesmo, para quem pretendesse abraçar a fé cristã, era
mister abandonar as especulações filosóficas, já que fé e filosofia são
irredutíveis, se excluem mutuamente, como a verdade elimina o erro. Tertuliano
chega a dizer que a filosofia é doutrina de demônios; ela é, ademais, a mãe de
todas as heresias:
63
Tertuliano. Sobre a Prescrição Contra os Heréticos. 7. In: REALI, Giovanni. ANTISERI,
Dario. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. Trad. Ivo Storniolo. rev. Zolferino
Tonon. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2004. p. 78 e 79.
do Evangelho. Quando cremos, não sentimos necessidade de crer
em outra coisa, uma vez que cremos antes e tudo: não haver
motivo de ter crer em outra coisa.64
E ainda:
Por outro lado, surge no século IV, Aurélio Agostinho. Ele tinha um
pensamento muito mais conciliador do que o de Tertuliano: “O ‘credo quia
absurdum’ (Frase atribuída a Tertuliano) é uma postura inteiramente estranha a
Agostinho.”66 Sua proposta, em linhas gerais, era semelhante à de Justino. De
fato, opunha à filosofia dos gentios uma filosofia genuinamente cristã, que seria,
para ele, a única verdadeira:
Por favor, não seja para ti de maior valor a filosofia dos gentios
que a nossa cristã, única filosofia verdadeira, pois esta palavra
significa estudo ou amor à sabedoria.67
64
Tertuliano. Sobre a Prescrição Contra os Heréticos. 7. In: REALI, Giovanni. ANTISERI,
Dario. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. Trad. Ivo Storniolo. rev. Zolferino
Tonon. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2004. p. 79. (Os itálicos são nossos).
65
Tertuliano. Apologético. XLII. In: REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da
Filosofia: Patrística e Escolástica. Trad. Ivo Storniolo. rev. Zolferino Tonon. 2ª ed. São
Paulo: Paulus, 2004. p. 78.
66
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 88. (O parêntese é nosso).
67
Agostinho. Réplica a Juliano. IV, XIV, 72. Disponível em:
<http://www.augustinus.it/spagnolo/contro_giuliano/index2.htm> Acesso em: 24/10/2007. (A
tradução para o português e os itálicos são nossos).
A lógica que o levara a semelhante conclusão, era relativamente
simples: Deus é a própria sabedoria. Ora, o único Deus verdadeiro é o Deus dos
cristãos. O filósofo, por sua vez, se identifica como amante da sabedoria. Mas
só os cristãos amam a verdadeira sabedoria. Logo, só eles podem ser ditos
verdadeiros filósofos.
68
A Cidade de Deus. VIII, I. (O itálico é nosso).
69
Idem. Ibidem. XVIII, XLI, 3. (O parêntese é nosso).
época em que a ascese e a contemplação, eram partes integrantes de uma
filosofia que esmerava ser “salvifica”. Com efeito, buscava ela proporcionar aos
seus seguidores, por meio de uma mística especulativa ascendente, a libertação
das almas do cárcere corporal, tão inquinado as paixões e a dispersão. Ora, tal
salvação só se encontra no cristianismo. Só ele pode tornar a alma
verdadeiramente livre. Só ele pode nos dar a conhecer, sem jaça de erros, o
caminho da salvação. E ele, contrariamente das demais seitas filosóficas,
colocava ao alcance de todos o caminho da salvação. Peca Porfírio, por não
saber reconhecê-lo. E, por isso, merece censura. Eis a clássica passagem:
70
Idem. Ibidem. X, XXXII, 1. (Os itálicos são nossos).
Portanto, se aqueles filósofos pudessem voltar à vida conosco,
reconheceriam, sem dúvida, a força da Autoridade, que por vias
tão simples operou a salvação da humanidade e – mudando
algumas palavras e sentenças – ter-se-iam feito cristãos, como
vimos que se fizeram muitos platônicos modernos de nossa
época.71
71
Idem. A Verdadeira Religião. 4, 7. (O itálico é nosso).
72
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 538.
racional, a delimitá-los precisamente, e determinar-lhes as
mútuas relações.73
73
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 204. (Os
itálicos são nossos).
74
João Escoto Erígena. De Praedestinatione. c. I In: PENIDO, Maurílio Teixeira Leite Penido.
A Função da Analogia em Teologia Dogmática. trad. Dinarte Duarte Passos. rev. Maurílio
Teixeira Leite Penido. Rio de Janeiro: Vozes, 1946. p. 205 e 206.
75
João Escoto Erígena. Comentário Sobre Marciano Capelas. In: JEAUNEAU, Éduard. A
Filosofia Medieval. Trad. João Afonso dos Santos. Lisboa: Edições 70, 1963. p. 30. (O itálico é
nosso).
pagãs, a mística, a exegese, as sentenças dos filósofos, as
doutrinas dos Padres, tudo numa grande confusão.76
76
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 205.
77
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 144: “Baseando-se na tradução, aliás
incorreta, de um texto de Isaías pelos Setenta, Agostinho não se cansa de repetir: Nisi
credideritis, non intelligetis.”
78
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 88: “(...) em Agostinho,
(...): ‘intellectus merces est fidei’, ‘a inteligência é recompensa da fé.’”
79
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 144.
entendimento prossegue buscando aquele que a fé encontrou
(...).80
80
Agostinho. A Trindade. XV, 2, 2.
81
Idem. Comentário ao Evangelho de João. 29, 6. In: REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario.
História da Filosofia: Patrística e Escolástica. trad. Ivo Storniolo. rev. Zolferino Tonon. 2ª
ed. São Paulo: Paulus, 2004. p. 104.
82
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 144: “Portanto, há uma intervenção da razão
que precede a fé, mas há uma segunda, que a segue. (...) Um texto célebre, do Sermão 43
resume essa dupla atividade da razão, numa fórmula perfeita: compreende para crer, crê para
compreender (...)”.
83
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
Aqui destacamos o avanço. Até Agostinho, já era perfeitamente
compreensível que razão e fé deveriam concordar. No entanto, ainda não se
frisava com franca a nitidez, que o próprio ato de fé, não deixa de ser, à seu
modo, um ato racional. Ora bem, Agostinho pontua bem isso, na sua célebre
fórmula citada mais acima: o ato mesmo de crer é um ato da razão. Doravante,
marca-se também, numa de suas razões mais decisivas, o motivo pelo qual a fé
não pode contradizer a razão:
84
Agostinho. A Predestinação dos Santos. II, 5. (Os itálicos são nossos).
85
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 144: “Santo Anselmo exprimirá mais tarde
essa doutrina numa fórmula que não é de Agostinho, mas que expressa fielmente seu
pensamento: a fé busca inteligência, fides quaerens intellectum.”
apresentavam tão importantes para propor-lhes o nome do autor,
e, entretanto, fazia-se necessário atribuir-lhes um título que
convidasse a lê-los todos aqueles em cujas mãos caíssem, dei a
cada um deles uma denominação: chamei o primeiro (Ele se
refere ao Monológio) de Exemplo de Meditação sobre o
Fundamento Racional da Fé, e o segundo (O Proslógio) : A Fé
Buscando Apoiar-se na Razão.86
86
Anselmo. Proslógio. Proêmio. (Os parênteses são nossos).
87
Idem. Ibidem. I. (O parêntese e o itálico são nossos).
sobre a essência divina) ficasse demonstrado pelo encadeamento
lógico da razão, empregando argumentos simples, com estilo
acessível, para que se tornasse evidente pela própria clareza da
verdade.88
88
Idem. Monológio. Prólogo. (O parêntese é nosso).
89
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 208.
90
Idem. Ibidem. p. 209.
Boso- Tudo o que me disseste parece-me muito razoável e
impossível de contradizer, e pela solução de uma questão que
propusemos, vejo provado e verdadeiro o que se encontra
contido no Novo e no Antigo Testamento. Com efeito, tens
provado a necessidade da encarnação do Filho de Deus por
razões capazes de satisfazer não somente aos judeus, mas
também aos pagãos, fazendo-se abstração de alguns dados que
tens tirado dos livros santos; por exemplo, de algumas palavras
referentes às três pessoas divinas e Adão.91
91
Anselmo. Por Que Deus se Fez Homem? c. XXII. (Os itálicos são nossos).
92
Idem. Ibidem. c. X. (O itálico é nosso).
Pois, tratando-se de Deus, assim como basta que haja um
pequeno inconveniente para que se produza a impossibilidade, de
igual modo, a uma razão, por pequena que seja, se não obsta em
contrário a uma maior, segue forçosamente sua necessidade.93
93
Idem. Ibidem. (Os itálicos são nossos).
94
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 293. (O itálico é nosso).
São Vitor no-lo apresentam como uma exigência profunda da
razão humana.95
95
Idem. Ibidem. p. 630. (Os itálicos são nossos).
96
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 32, 1, 2. (O parêntese, indicando o lugar da citação, é
nosso).
Nada mais natural: quando não se distingue nitidamente o que se
sabe do que se crê, compromete-se a estabilidade da fé,
vinculando-a a opiniões científicas cuja caducidade é avesso de
seu progresso; e compromete-se o progresso da ciência
conferindo-lhe indevidamente a estabilidade da fé.97
104
Idem. Ibidem. p. 207.
105
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
Com veremos, será apenas a síntese de Tomás que irá conseguir suprir
as deficiências das doutrinas precedentes e tornar realidade a pretensão de tantos
séculos. Mas ela durará quase nada, pois será logo quebrada pela predominância
do racionalismo moderno. Nele, não mais a fé prevalecerá; ao contrário, será a
desforra da razão idolatrada:
106
Idem. Ibidem. 204. (O parêntese é nosso).
do pão que subsiste em outra forma, que seria a do corpo de
Cristo beatificado.107
107
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 283
108
Idem. Ibidem. p. 283 e 284.
109
Otloh de Sankt Emmeram. Liber Tentationibus suis et Scriptis. In: GILSON, Etienne. A
Filosofia Na Idade Média. trad. Eduardo Brandão. São Paulo: MARTINS FONTES, 1995. p.
284.
Ausência de uma distinção formal entre o domínio da filosofia e
o da teologia, isto é, entre a ordem das verdades racionais e a das
verdades reveladas. Por vezes, as duas ordens misturam-se para
constituir uma sabedoria total, norteada pelo princípio que as
verdades atingidas pelos antigos filósofos são o resultado de uma
iluminação divina e, portanto, fazem parte da revelação total.
Outras vezes, os domínios da filosofia e da teologia afirmam-se
como distintos, em tese, embora não se chegue, de fato, a
formular um princípio de salvaguardar a distinção. (...).110
110
Pierre Mandonnet. Siger de Brabant. I, p. 55. In: PENIDO, Maurílio Teixeira Leite Penido.
A Função da Analogia em Teologia Dogmática. trad. Dinarte Duarte Passos. rev. Maurílio
Teixeira Leite Penido. Rio de Janeiro: Vozes, 1946. p. 205.
111
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 261.
‘philosophia ancilla theologiae’. O monge há de haver-se com a
filosofia como o israelita com a sua escrava, segundo as
determinações de Moisés (Dt 21, 10-13): cortar-lhe-á o cabelo
(as teorias inúteis), aparar-lhe-á as unhas (as obras de
superstição), tirar-lhe-á as vestes (as fábulas e a superstição
pagã); só então a tomará por esposa. Mas é mister que ela
conserve a sua condição servil; cabe-lhe seguir de perto a fé,
sem jamais adiantar-se a ela (...).112
112
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 251. (O itálico é nosso).
113
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. 207.
4) Século XIII: 1º Movimento: A
Distinção Entre Filosofia e Teologia
4.1.1) Averróis
114
Carlos Artur R. Nascimento. Santo Tomás de Aquino: O Boi Mudo da Sicília. p. 50:
“Averróis ficou conhecido na Idade Média como O Comentador. Este foi o papel que ele
próprio achou que lhe cabia. Já que toda verdade que o ser humano pode conhecer por seu
próprio esforço intelectual havia sido enunciada por Aristóteles, nada mais restava senão
‘comentar’, isto é, explicar as obras de Aristóteles.” (O itálico é nosso).
Por outro lado, Averróis também era muçulmano e nunca deixou de
estar ligado a sua comunidade religiosa. Para ele, também o Corão era um livro
sagrado, manifestação da própria verdade, procedente de um milagre divino, e
destinado a todos os homens.115 Agora bem, nem todos os homens não são
iguais. Há alguns, ditos sábios, que só aderem a conclusões necessárias,
procedentes de premissas necessárias. Outros, menos exigentes, são chamados
dialéticos, porque se satisfazem com argumentos prováveis e conclusões
verossímeis. Existem, por fim, uma casta de ignorantes, que se dão por
convencidos, através de simples persuasão retórica.116
Ora bem, já que o Corão está destinado a todos os homens, deve ele
alcançar todas estas três classes de homens. Para tanto, os textos corânicos
comportam ao menos dois sentidos. O primeiro, exterior e simbólico, destinado a
persuadir os ignorantes. O segundo, interior e oculto, reservado apenas aos
sábios.117 Agora bem, cada qual deve conformar com a interpretação que se
coaduna melhor com à sua condição. Assim, os simples fiéis devem se contentar
com o sentido simbólico e ao sábio cabe perscrutar o sentido oculto.118 Ora bem,
para Averróis, é neste último sentido – que ele acaba por fazer coincidir com o
sentido filosófico do texto sagrado – reservado apenas aos sábios, que se esconde
o verdadeiro sentido da revelação. Destarte, em caso de haver conflito entre a
115
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 442: “Com efeito, o Corão é a própria
verdade, pois resulta de um milagre de Deus, mas, como é destinado à totalidade dos homens,
deve contem o necessário para satisfazer e convencer todos os espíritos.”
116
Idem. Ibidem: “Ora, há três categorias de espíritos e três espécies de homens
correspondentes: 1ª os homens de demonstração, que exigem provas rigorosas e querem
alcançar a ciência indo do necessário ao necessário pelo necessário; 2ª os homens dialéticos, que
se satisfazem com argumentos prováveis; 3ª os homens de exortação, a quem bastam os
argumentos oratórios que apelam para a imaginação e para as paixões.”
117
Idem. Ibidem: “O Corão se dirige simultaneamente a esses três gêneros de espíritos, e é isso
que prova seu caráter milagroso; ele possui um sentido exterior e simbólico para os ignorantes,
um sentido interior e oculto para os sábios.”
118
Idem. Ibidem: “O pensamento diretor de Averróis é que cada espírito tem o direito e o dever
de interpretar o Corão da maneira mais perfeita em que é capaz de fazê-lo.”
interpretação simbólica e a filosófica, será, pois, a filosófica que deverá
prevalecer sobre a simbólica, como sendo a verdade suprema da revelação:
119
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
120
Idem. Ibidem: “Desse princípio decorrem imediatamente duas conseqüências. A primeira é
que um espírito nunca deve procurar elevar-se acima do grau de interpretação de que é capaz; a
segunda é que nunca se deve divulgar às classes inferiores de espíritos as interpretações
reservadas as superiores.”
121
Idem. Ibidem. p. 442 e 443.
Há, portanto – para sanar esta mistura de métodos – que se distinguir,
com o máximo rigor, três interpretações possíveis do Corão: a científica ou
filosófica, reservada apenas aos sábios e que passa de premissas necessárias a
conclusões necessárias; a dialética ou teológica, que parte de premissas
prováveis a conclusões prováveis e, finalmente, a persuasiva ou religiosa, que é
aceita unicamente pela fé dos simples fiéis:
122
Idem. Ibidem. p. 443.
revelação.”123 Entretanto, diferentemente de Averróis, Sigério não nos propõe –
como verdade suprema – uma suposta interpretação filosófica do dado revelado.
Para ele, em caso de conflito, é sempre a fé que deve estar com a última palavra:
“Em caso de conflito, não é a razão, mas a fé que decide.”124 E não somente isso.
Sigério vai mais longe ainda ao dizer que, para ele, sequer filosofar consiste em
se buscar a verdade, mas sim o que os filósofos pensaram. Portanto, os
resultados oriundos das demonstrações filosóficas, mesmo com todo o seu rigor
demonstrativo, não equivaleriam a verdade, cuja fonte era unicamente a
revelação:
123
Idem. Ibidem. p. 698. Idem. Ibidem: “Portanto, para Sigério, há uma só verdade, a verdade
da fé.”
124
Idem. Ibidem.
125
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
126
Idem. Ibidem. p. 699: “O fato incontestável é que a razão conduzia Sigério de Brabante a
certas conclusões e que a fé o levava a conclusões contrárias; a razão demonstra, pois, a seus
olhos, o contrário do que a fé ensina.”
contra os averroístas – demonstrar que o que a razão filosófica dita como
verdadeiro, não pode ir de encontro com o dado da fé. Logo, a respeito dos que
pelejavam contra a unidade do intelecto humano era preciso “(...) mostrar
outrossim que a posição referida não contraria menos os princípios da filosofia
do que os ensinamentos da fé.”127 É que, para Tomás – para quem “(...) todos os
homens, por natureza, desejam saber a verdade”128 – era inaceitável a concepção
de Sigério de que a filosofia consistisse apenas em buscar o que os filósofos
pensaram. Em verdade, O Aquinate declarava precisamente o contrário: “O
estudo da filosofia não visa saber o que os homens pensaram, mas como se
apresenta a verdade das coisas.”129 Por conseguinte, para Tomás, era
inconcebível que alguém pudesse concluir uma coisa em filosofia e a contrária
em teologia, isto seria colocar a verdade contra a verdade ou, pior ainda, tornar
relativa a própria fé, dizendo que o que ela propõe – não somente é supra-
raiconal– mas irracional:
Mas ainda mais grave é o que ele diz logo a seguir: “Pela razão,
concluo necessariamente que o intelecto é um em número,
todavia, pela fé, sustento convictamente o contrário”. Desse
modo pensa que a fé diz respeito às afirmações acerca das quais
se pode concluir o contrário necessariamente; uma vez que só se
pode concluir o verdadeiro necessário cujo oposto é o falso
impossível, segue-se, de acordo com a afirmação dele, que a fé é
relativa ao falso impossível, que também Deus não pode fazer – o
que os ouvidos dos fiéis não podem permitir.130
127
Tomás de Aquino. A Unidade do Intelecto Contra os Averroístas. I, 2.
128
Idem. Ibidem. I, 1.
129
Tomás de Aquino. Comentário ao Tratado do Céu. I, 22, 8. In: NASCIMENTO, Carlos
Arthur R. de. Santo Tomás de Aquino: O Boi Mudo da Sicília. São Paulo: EDUSC, 1992. p.
50.
130
Tomás de Aquino. A Unidade do Intelecto Contra os Averroístas. V, 119.
É a estes opositores, ditos “averroístas latinos”, que Tomás, não sem se
valer de certos instrumentos e elementos já deixados por seu mestre Alberto, irá
tentar responder, com a sua magnífica síntese entre fé e razão. Cuidemos, pois,
de observar, antes de tudo, como as distingue e delimita os seus domínios.
Teremos, de fato, que esperar o século XIII, para que a distinção entre
fé e razão, filosofia e teologia se consolide, definitivamente, no seio do
pensamento cristão. Esta obra será concretizada por dois dos mais ilustres nomes
da escola dominicana: Aberto de Colônia e Tomás de Aquino:
131
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 204 e
205: Declina Gilson: Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 624 e 625: “De fato, o
século XIII é a época em que o pensamento cristão finalmente tomou consciência de suas
implicações filosóficas mais profundas e conseguiu, pela primeira vez, formulá-las de maneira
distinta. A consumação desta obra capital deve-se principalmente à colaboração de dois gênios
extraordinários, ambos da Ordem de São Domingos: Alberto Magno e santo Tomás de
Aquino.” (O itálico é nosso).
132
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 204.
fato, o princípio da filosofia é somente a razão; o da teologia é a fé, que
ultrapassa a razão. Além disso, os princípios filosóficos são evidentes por si; já
os teológicos só são conhecidos mediante a luz infusa (lumen infusum) da fé.
Ademais, a filosofia parte das criaturas, enquanto a teologia funda-se na
revelação de Deus.133 Por meio de uma análise criteriosa, que não nos cabe
desenvolver aqui, Alberto discrimina o que seja uma demonstração racional.
Gilson chega até a dizer que, se se a aceita, que a distinção entre o que é
demonstrável pela razão e o que não é, será o critério fundante da filosofia
moderna, será então preciso sempre acrescentar que a modernidade nasceu com
Alberto Magno e no século XIII:
133
Estas diferenças, são enumeradas por Reale: Idem. Ibidem. p. 202: “1) no conhecimento
filosófico, utiliza-se somente a razão, ao passo que, com a fé, se vai além da razão; 2) a filosofia
parte de premissas que devem ser conhecidas por si mesmas, ou seja, imediatamente evidentes,
ao passo que na fé há um lumen infusum que reflui sobre a razão, abrindo-lhe perspectivas que,
de outro modo, seriam impensáveis; 3) a filosofia parte da experiência das coisas criadas,
enquanto a fé parte do Deus revelante (...)”.
134
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 631. (O itálico é nosso).
pela ressurreição (Flasch, 1989, p. 66) (...)”135. Diz Reale, com relação ao
pensamento de Alberto: “E com certeza, afirma Alberto, não se pode ter qualquer
conhecimento da Trindade, da Encarnação e da Ressurreição a partir de uma
perspectiva puramente racional.”136 Aliás, Santo Tomás, não deixa de abonar a
perspectiva aberta por seu Mestre. Com respeito ao dogma da Trindade, por
exemplo, é contundente ao afirmar: “É impossível chegar ao conhecimento da
Trindade das Pessoas divinas pela razão natural.”137
Destarte, se faz sentido que, para além das disciplinas filosóficas,
exista uma teológica, é precisamente para que esta trate, sobretudo, daquelas
coisas que aquela não alcança, a saber, daquelas coisas que dizem respeito à
salvação do homem, que ultrapassam à nossa razão e que, por conseguinte, nos
foram reveladas por Deus: “Era necessário existir para a salvação do homem,
além das disciplinas filosóficas, que são pesquisadas pela razão humana, uma
doutrina fundada na revelação divina.”138 Portanto, o antigo sonho de uma
filosofia religiosa e purificadora, a qual nos poderia consignar a salvação é
descartada. Não é mais do foro da filosofia dar-nos alcançar, pela razão, um
conhecimento gnóstico e salvador. Longe de Tomás, como comumente se
observa hoje, a concepção de uma filosofia “esotérica”, no sentido que
atualmente se dá a este termo. A Escritura Sagrada, enquanto inspirada por Deus,
135
Luis Alberto de Boni. As Condenações de 1277: Os Limites do Diálogo Entre a Filosofia
e a Teologia. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.) Lógica e Linguagem na Idade Média. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1995. p. 139.
136
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 204.
137
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 32, 1, C.
138
Idem. Ibidem. I, 1, 1, C. É muito importante o leitor notar que, uma coisa é dizer que a
teologia reflete sobre as verdades de fé de cuja aceitação depende a nossa salvação, outra seria
afirmar que ela mesma é uma doutrina é salvadora, o que seria de todo inexato. De fato, a
teologia não salva ninguém, nem nos leva ao assentimento da fé. Pelo contrário, ela supõe a fé,
pela qual somos salvos. Ao iniciar um tratado de teologia, assevera com mui clareza Penido:
Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 37: “O que
pois aqui deixamos escrito, não se destina a levar incrédulos à crença, mas apenas a esclarecer
os crentes que já aderem às verdades católicas e desejam aprofundá-las na medida do possível.”
não é objeto de nenhuma das disciplinas filosóficas, todas obras exclusivas da
razão humana:
Ora, uma Escritura inspirada por Deus não faz parte das
disciplinas filosóficas, obras da razão humana. Portanto, é útil
que além das disciplinas filosóficas, haja outra ciência inspirada
por Deus.139
139
Idem. Ibidem. I, 1, 1, SC.
140
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 630.
141
Alberto Magno. Sobre Lucas. 1, 5. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia Medieval: Textos.
Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 180.
A Idade Média vai, pois, se encaminhar progressivamente para
uma separação cada vez mais completa entre os dois domínios,
retirando sucessivamente da filosofia vários problemas que lhe
haviam sido submetidos a princípio e atribuindo-os ao domínio
da teologia positiva, ou, ao contrário, liberando a teologia do
cuidado de solucionar alguns deles e deixando a filosofia livre de
decidir a esse respeito.142
142
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 630 e 631.
143
Idem. Ibidem. p. 657.
144
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 2, 2, ad 1.
145
Idem. Ibidem: “(...) non sunt articuli fidei, sed preambula ad articulos (...)”.
Mas, insistiria ainda alguém: se são cognoscíveis à luz da razão natural, porque
Deus ainda as revelou? Porque, como dizíamos acima, também delas dependem a
nossa salvação, no sentido que todas as verdades de fé enquanto são reveladas
por Deus, pressupõem a existência de Deus que as revele. Agora bem, é mui
trabalhoso e difícil se demonstrar a existência de Deus. Poucos são os que
conseguem atingir as verdades divinas acessíveis à razão. Elas são a última parte
a ser estudada em filosofia. Mesmo aqueles que conseguem chegar até elas,
quase sempre não o fazem, sem estarem, ao mesmo tempo, acometidos por erros
e contradições. E, no entanto, delas dependem a nossa salvação. Logo, para que
a salvação estivesse ao alcance de todos, e tais verdades nos chegassem com
mais rapidez, puras e isentas de erro, Deus oportunamente as revelou. Cedamos
à palavra ao Doutor Communis:
146
Idem. Ibidem. I, 1, 1, C. Este assunto não era marginal para Tomás. A ele retorna, em outros
lugares da mesma obra: Idem. Ibidem. II-II, 2, 4, C: “Portanto, para que haja entre os homens
um conhecimento de Deus que seja indubitável e certo, foi necessário que as verdades divinas
(ele se refere àquelas que, de per si, são acessíveis à razão), fossem transmitidas pela fé, como
sendo ditadas por Deus, que não pode mentir.” (O parêntese é nosso). Idem. Ibidem. II-II, 2, 4,
ad 1: “Portanto, deve-se dizer que a investigação da razão natural não é suficiente ao gênero
humano para o conhecimento das coisas divinas, mesmo as que podem ser demonstradas pela
razão.” (O itálico é nosso).
Para aquele, enfim, que consegue atingir, mediante demonstração, a
certeza da existência de Deus e de outras verdades divinas acessíveis à razão,
não é mais possível crer que Deus existe, pois não nos é possível, na visão de
Santo Tomás – diferentemente de muitos de seus coetâneos (São Boaventura, o
próprio Alberto Magno, etc) ter fé e ciência, de um mesmo objeto, sob o mesmo
aspecto e ao mesmo tempo.147 Tomás é muito insistente e não tergiversa em dizer
que um mesmo indivíduo não pode ter ciência do que crê, nem crer do que tem
ciência.148 É bem verdade que, nada impede que um indivíduo - por exemplo,
aquele que não apreende a demonstração da existência de Deus - creia naquilo
que não pode compreender.149 Neste sentido, pode acontecer que, enquanto um
sabe demonstrativamente que Deus existe, outro, que não consegue compreender
a demonstração, creia que Deus existe.150 No entanto, adverte rapidamente
Tomás, permanece sendo sempre impossível que um mesmo indivíduo, a respeito
de um mesmo objeto, tenha fé e ciência simultaneamente.151 E Santo Tomás vai
mais além ainda, ao dizer que estas verdades, que podem ser cridas por um e
sabidas por outro, não são propriamente verdades de fé, mas preâmbulos delas,
conforme já havíamos acima notado.152 Verdades de fé propriamente ditas são,
147
Idem. Ibidem. II-II, 1, 5, ad 4: “Mas do mesmo objeto, segundo o mesmo aspecto, não pode o
mesmo homem ter simultaneamente ciência e opinião nem ciência e fé (...)”. (O itálico é nosso).
148
Idem. Ibidem. II-II, 1, 5, C: “Ora, não é possível, como se viu acima, que uma coisa seja
crida e vista pelo mesmo indivíduo. É, pois, impossível que, do mesmo objeto, o mesmo
indivíduo, tenha ciência e fé.”
149
Idem. Ibidem. I, 2, 2, ad 1: “No entanto, nada impede que aquilo que, por si é demonstrável e
compreensível, seja recebido como objeto de fé por aquele que não consegue apreender a
demonstração.”
150
Idem. Ibidem. II-II, 1, 5, C: “Assim, pode acontecer que aquilo que é visto ou conhecido por
um homem, mesmo no estado de vida presente, seja crido por outro, que não conhece
demonstrativamente tal coisa.”
151
Idem. Ibidem. II-II, 2, 4, ad 2: “Deve-se dizer que um mesmo sujeito não pode ter ciência e
fé de um mesmo objeto. Mas o que é sabido por um, pode ser crido por outro, como foi dito
acima.”
152
Idem. Ibidem. II-II, 1, 5, ad 3: “Deve-se dizer que há coisas que se devem crer, embora
possam ser provadas demonstrativamente, não porque sejam objeto de fé para todos, mas
portanto, somente aquelas que devem ser cridas por todos indistintamente, e não
sabidas por nenhum. Por isso mesmo, somente aquelas verdades que só podem
ser conhecidas por revelação são verdade de fé:
porque constituem preâmbulos exigidos à fé, é necessário que ao menos por meio da fé sejam
aceitos pelos que não têm a sua demonstração.” (O itálico é nosso).
153
Idem. Ibidem. II-II, 1, 5, C
154
Idem. Ibidem. II-II, 1, 5, ad 2.
155
Luciano Laberthonière (1850-1932), ao lado de Alfredo Loisy (1857-194), um dos “pais” do
modernismo católico. Laberthonière foi sacerdote oratoriano (Como o foi Malembranche).
Uma das principais obras de Pe. Laberthonière é Essais de Philosophie Religieuse, de 1903.
Penido dialoga com ele, entretanto, através de um texto, assinado por ele como: “S. Tomás e a
Relação entre a Razão e a Fé”. Algumas rápidas notas a respeito do modernismo católico,
ajudarão a situarmo-nos na questão. O modernismo, ao qual se vinculava Laberthonière, foi um
movimento nascido nos finais dos XIX, primeiramente em filosofia, sendo classificado mesmo
como uma filosofia imanentista, ou seja, uma filosofia que buscava encontrar o real somente na
ciência” enquanto a ciência fosse um conhecimento certo.156 A falar com exação,
tomadas nelas mesmas, quero dizer, ciência natural e fé, as duas são ciências. A
fé contém a ciência de Deus e dos bem-aventurados, enquanto a ciência natural é
a ciência dos homens. E, neste sentido, Tomás apenas opõe uma ciência à outra.
As verdades de fé, portanto, tomadas em si mesmas, são conhecimentos
eminentemente inteligíveis, são evidentíssimas: “O dogma, longe ser ‘um
incognoscível puro’, é, de si, eminentemente inteligível (In Boet. q. 2 a.2).” Por
isso mesmo, a fé em si mesma é uma ciência. Aliás, falando absolutamente, é a
mais nobre das ciências, posto que seja a própria ciência de Deus e dos bem-
aventurados enquanto Revelada. Entretanto, para nós, dada a finitude do nosso
espírito, aquilo que é ciência para os anjos, deve ser recebido por Revelação em
157
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 1, 5, C: (O itálico é nosso).
158
Idem. Ibidem. II-II, 9, 1, ad 2.
proposto, discernindo o que deve ou não deve crer. E para isso o
dom da ciência é necessário.159
É por essas razões que o nosso Penido não aceita a tese do Pe.
Laberthonnière, que atesta que a fé exclui toda e qualquer ciência de forma
absoluta. Segundo Laberthonnière a fé se afasta da ciência, como o saber do
não-saber. Sua tese seria até atenuada e aceita por Penido, se ele acrescentasse
que a fé exclui – como dizíamos – uma ciência que consistisse na demonstração
filosófica da sua verdade. Seria ainda aceita por Penido, se Laberthonnière
propugna-se que a fé se opõe a ciência natural, no sentido de que, a ciência que
temos da fé, como pressuposto do ato mesmo de fé, não se dá sem a elevação do
nosso intelecto pela assistência dos dons do Espírito Santo, dons de inteligência
e ciência. Por conseguinte, mesmo que o dogma seja, para a razão pagã, um
incognoscível puro, não o é para a razão cristã: “(...) e mesmo relativamente a
nós, se é incognoscível para a razão pagã, não é um ‘incognoscível puro’, pois a
razão o conhece.”160 Se o ilustre sacerdote tivesse adotado quaisquer destas
colocações, certamente Penido as acataria de bom grado e até agradeceria o
colega, pois a oposição que Tomás estabelece entre fé e ciência é, para Penido,
antes de tudo, justamente com o intento de mostrar que a religião não é uma
filosofia: “Ao distinguir ‘ciência e fé’, queremos simplesmente afirmar que a
religião não é filosofia.”161 Entretanto, como Laberthonnière opõe fé e ciência de
forma absoluta, sem abrir nenhuma concessão, insinuando assim que a fé está
159
Idem. Ibidem. II-II, 9, 1, C. Idem. Ibidem. II-II, 8, 6, C: “Portanto, em relação às proposições
da fé, que nós devemos crer, impõe-se dupla exigência. Primeiro, que elas sejam penetradas ou
apreendidas pela inteligência e isto cabe ao dom da inteligência. Mas, em segundo lugar, é
preciso que o homem as julgue retamente, considerando que deve aderir a elas e afastar-se do
que lhe é oposto. (...)”. De qualquer forma, é necessário ter sempre presente que os
conhecimentos prévios ao ato de fé – repitamos mais uma vez – não tem como pretensão nos
fazer ver o mistério, isto seria eliminar a fé. Eles visam apenas nos fazer ver o que nos é
proposto, no enunciado de fé, para crer:
160
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 244.
161
Idem. Ibidem p. 245.
destituída de toda e qualquer ciência – como já assinalavam certos protestantes
da época (Barth) – ele merece a censura de Penido que lhe foi, realmente, pouco
indulgente no julgamento:
162
Idem. Ibidem. p. 243.
163
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 1, 5, ad 4: “De fato, a ciência não pode,
absolutamente falando, em relação ao mesmo objeto ser simultânea com a opinião, pois a
ciência consiste essencialmente em admitir a impossibilidade de ser de outro modo, aquilo que
sabe ser verdadeiro; ao contrário, a opinião consiste em que uma possa ser diversa daquilo que
se pensa.” (O itálico é nosso).
certos. E, entretanto, a fé é uma ciência de outra ordem. De fato, enquanto a
nossa ciência retira a necessidade das suas verdades serem tais quais são, em
virtude da evidência delas, a fé, ao contrário, não funda a sua certeza na visão das
suas verdades, mas baseia-se na autoridade divina, que não pode enganar-se e
nem enganar-nos. E é neste sentido, ou seja, enquanto as duas ciências não
obtêm da mesma forma o fundamento das suas certezas, é que podemos dizer que
elas se opõem e não podem existir simultaneamente num mesmo indivíduo, a
respeito de um mesmo aspecto e de um mesmo objeto:
Contudo, aquilo que se afirma pela fé, por causa da certeza que
ela implica, mostra a impossibilidade de ser de outro modo. Mas,
um mesmo objeto não pode simultaneamente e sob o mesmo
aspecto ser objeto de ciência e de fé, porque a coisa sabida é,
como coisa vista, mas o que se crê não se vê, como foi dito
acima.164
164
Idem. Ibidem. No que toca a legitimidade e fundação de uma ciência teológica, fundada na
fé, falaremos mais à frente. Será tema de todo um capítulo. Aqui basta termos estabelecido que
a fé não se oponha à ciência como uma “não-ciência”.
165
Idem. Idem. II-II, 8, 8, ad 2: “Deve-se dizer que a fé não pode preceder, em tudo, à
inteligência, pois o homem não pode assentir, crendo em coisas que lhe são propostas sem, de
certo modo, conhecê-las.”
matérias de fé. E assim não se deve concluir que essas coisas
sejam vistas.166
166
Idem. Ibidem. II-II, 1, 4, ad 4.
167
É neste sentido, qual seja, de nos fazer ver o que devemos crer, que entendemos a sentença
de Santo Tomás pode dizer: Idem. Ibidem. II-II, 1, 4, ad 3: “Deve-se dizer que a luz da fé nos
ver aquilo que se crê.”(Dicendum quod lumen fidei facit videre ea quae creduntur). (O itálico é
nosso). Para se verificar se este conhecimento caia sob a razão de ciência, é só atentar para os
sentidos em que esta expressão, “scientia”, era entendida pelos escolásticos: Maurílio Teixeira
Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. Trad. Dinarte Duarte Passos.
Rio de Janeiro: Vozes, 1946. n..146: “a) late: pro quacumque cognitione certa, licet non
evidenti, ut est fides; b) minus late: pro quacumque cognitione certa et evidenti , sed non per
causas comparata, ut est cognitio primorum principiorum c) stricte: ut definitur a Phil.
cognitio rei per causam, propter quam est res, et quod est ejus causa e non contingit aliter se
habere.” (Os itálicos são nossos).
168
Nunca nos cansaremos de dizer, com Santo Tomás: Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-
II, 1, 1, C: “(...) a fé da qual falávamos não dá seu assentimento a alguma coisa a não ser que
seja revelado por Deus (...)”.
169
Mais tarde, iremos explicar o “porque” deste “ipso facto”, ou seja, porque não poder haver
contradição alguma entre a revelação divina e a razão natural.
verdade, embora não possa eu compreendê-la perfeitamente, não é contraditória.
Eis como explica Tomás:
172
Idem. Ibidem II-II, 4, 4, ad 3. (O parêntese é nosso); Idem. Suma Contra os Gentios. III,
CLIII, 2 (3251): “Fidem (...) quae causatur ex gratia (...)”.
173
Idem. Suma Teológica. I-II, 106, 2, C.
174
Idem. Exposição Sobre o Credo. p. 18.
Entretanto, é hora de retomarmos à caminhada. O fato que nos prendia
e interessava aqui era que, verdades há sobre Deus que os filósofos, alhures, já
haviam perscrutado e demonstrado. Não obstante, havíamos visto também, que
existem outras verdades a respeito das coisas divinas que, sendo essencialmente
reveladas, ultrapassam de todo à capacidade de nosso intelecto. Santo Tomás é
claro ao diferenciá-las:
Tomás leva tão a sério esta distinção176, que impõe a uma de suas
principais obras, a Suma Contra os Gentios, um método construído exatamente
sob tal distinção. De fato, a monumental obra é dividida em quatro livros. Nos
três primeiros, o Aquinate se propõe a tratar daquelas verdades a respeito de
Deus que a razão natural pode alcançar por seus procedimentos próprios. O
quarto livro é consagrado aos mistérios da fé, cujo fundamento é a revelação de
Deus. A elas a razão não pode chegar sozinha. Tal preocupação no Aquinate nos
mostra, no mínimo, o seu cuidado crítico frente às questões das relações entre fé
175
Idem. Suma Contra os Gentios. I, III, 2 (13). (O itálico é nosso).
176
Que ele retoma constantemente. Na Suma Teológica, relembra esta distinção, em diversos
momentos: Idem. Suma Teológica. II-II, 8, 2, C: “Aqui cabe uma dupla distinção: uma em
relação à fé e outra, à inteligência. Quanto à fé, devemos distinguir as coisas que lhe pertencem
por si e diretamente e superam a razão natural, como por exemplo, que Deus é uno e trino, que o
Filho de Deu se encarnou; e outras verdades que lhe pertencem por estarem de alguma maneira
a ela ordenadas, como todas as coisas contidas na Sagrada Escritura.”
e razão, entre filosofia e teologia.177 Tomás é declaradamente intransigente
quanto às tentativas de se tentar demonstrar as verdades de fé. Diz ele que,
tentar demonstrá-las, é empresa falida, além de absurda. Deve-se admiti-las,
unicamente por terem sido reveladas por Deus. O único modo de atestá-las é por
argumentos de autoridade, sacados das Sagradas Escrituras e pelos milagres.178
É bem verdade que, entre os fiéis, pode-se até mostrar certas razões verossímeis a
respeito destas verdades, nunca pretendendo demonstrá-las, mas apenas para
edificação dos que já crêem; entre os infiéis, é melhor nem destas “razões de
conveniências” se valer a todo custo. De fato, isto poderia os levar a pensar que
cremos nela por razões tão frágeis:
177
Idem. Suma Contra os Gentios. I, IX, 4 (55/56): “Pretendendo proceder nesta obra
conforme o método a que nos propusemos, em primeiro lugar envidaremos esforços para o
esclarecimento daquela verdade professada pela fé e investigada pela razão, apresentando
argumentos demonstrativos e prováveis, alguns dos quais fomos buscar nos livros dos filósofos
e dos santos, e pelos quais a verdade seja confirmada e o adversário confundido (1. I, II, III).
Em segundo lugar, partindo das coisas mais claras para as menos claras, procederemos, na
manifestação da verdade da fé que exceda a razão, desfazendo as razões dos adversários e
declarando, mediante razões prováveis e de autoridade, a verdade da fé, na medida em que Deus
nos auxilie (Tema do 1. IV).”
178
Idem. Ibidem. I, IX, 3 (53): “O único modo de se convencer o adversário da segunda ordem
de verdades ( isto é, as verdades de fé) consiste no recurso à autoridade das Escrituras,
confirmada pelos milagres. Ora, não cremos em verdades que excedem a capacidade da razão
humana, a não ser que tenham sido reveladas por Deus.” (O itálico e o parêntese são nossos).
179
Idem. Ibidem. I, IX, 3 (54). (O itálico é nosso).
O Aquinate tinha “pavor” de qualquer forma de racionalismo!
Fazendo uma analogia o dito da “mulher de César”, diríamos também que o
teólogo não só não deve tentar demonstrar os mistérios da fé, mas não deve
sequer fazer parecer ao público que tenta demonstrá-los. Enquanto certos
doutores se valiam de tais pseudo-demonstrações por razões apologéticas, o
Doutor Comum, ao contrário, faz questão de ressaltar que tais “demonstrações”,
longe de concorrerem para o convencimento dos pagãos, só os confirmaria mais
em seus erros, isto quando não lhes dessem motivos para ridicularizar as
verdades de fé. Em certo artigo da Suma de Teologia, quando trata do início
temporal do mundo, que só pode ser conhecido com certeza pela revelação
bíblica, aduz Tomás o seguinte comentário:
180
Idem. Suma Teológica. I, 46, 2, C. (O itálico é nosso).
(...) Com efeito, como apenas ouvimos essas verdades nas
palavras da Escrituras, como pequena gota que desce até nós, e
como não é possível no estado desta vida compreender os trovões
do seu poder, aqui será seguido o método seguinte: as coisas
transmitidas pelas palavras da Sagrada Escritura serão tomadas
como princípios. Desse modo, o que ocultamente nos é
transmitido nas palavras indicadas, procuraremos aprender de
algum modo pela inteligência, defendendo-a dos ataques dos
infiéis. No entanto, sem ter a presunção de conhecê-las
perfeitamente, serão comprovadas pela autoridade da Sagrada
Escritura, não por razão natural. (...).181
187
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 217: “A noção de
‘transcendental’ implica a identificação total de ‘uno’, ‘verdadeiro’ e ‘bom’ com o ente, no
sentido em que são inseparáveis dele, a ponto de se converterem totalmente entre si.”
188
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 2, 3, C.
Existe em grau supremo algo verdadeiro, bom, nobre e,
conseqüentemente o ente em grau supremo, pois, como se mostra
no livro II da Metafísica, o que é sumo grau verdadeiro, é ente em
sumo grau.189
189
Idem. Ibidem.
190
Idem. Ibidem.
Com efeito, foi demonstrado acima que pela razão natural o
homem não chegar a conhecer a Deus, senão a partir das
criaturas. Ora, as criaturas conduzem ao conhecimento de Deus,
com os efeitos à causa. Portanto, não se poderá conhecer de
Deus pela razão natural, senão o que lhe pertence
191
necessariamente enquanto princípio de todos os entes.
191
Idem. Ibidem. I, 32, 1, C. (O itálico é nosso). Com acerto, diz Penido sobre o conhecimento
metafísico de Deus: Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia
Dogmática. p. 238: “Conheço, portanto a Deus, enquanto ser, enquanto Super-Ser; mas a sua
divindade como tal não será atingida pela razão sem a fé; demonstro a existência da Primeira
Inteligência, mas de suas operações fecundas, de sua divina geração, minha inteligência tudo
ignora (...)”.
192
O conhecimento pela fé, na qual se fundamenta a teologia e que, de fato, nos fala de Deus em
si mesmo, não é a visão de Deus em si mesmo, como quer o “ontologismo”. Portanto, não é que
a teologia natural não veja a Deus tal como Ele é enquanto pela fé o vejamos, não é nisto que
consiste a superioridade da fé. De fato, não vemos a Deus em si mesmo pela fé, aceitamos o
que Ele nos diz de Si mesmo pela fé, sem ver. A superioridade da fé consiste no fato de que,
nela, não é as criaturas que nos falam de Deus, mas é Deus que fala de Si próprio, inclusive por
meio de suas criaturas. Pela fé, chegamos a conhecer, ainda que em mistério, atributos divinos
que jamais alcançaríamos pela razão natural. É mais a excelência do objeto, do que o modo
como o conhecemos que torna a fé, e a ciência que dela brota (a teologia), em vantagem a todas
as outras: Idem. Suma Teológica. I, 12, 13, ad 1: “Portanto, deve-se dizer que embora pela
revelação da graça nesta vida não conheçamos de Deus o que Ele é, e a Ele estejamos unidos
como a um desconhecido, no entanto, o conhecemos mais plenamente, pois efeitos mais
numerosos e mais excelentes dEle nos são manifestados; e também porque, pela revelação
divina, nós lhe atribuímos algumas coisas que a razão natural não capta, por exemplo, que Deus
é trino e uno.”
Deus. A sagrada ciência trata, pois, de refletir sobre este conhecimento das
verdades referentes à vida íntima de Deus, revelado a nós pelo próprio Deus.
Reza o Aquinate, apontando para esta diferença que acabamos de frisar:
193
Tomás de Aquino. Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio. V, IV, C (Os itálicos
são nossos).
194
Idem. Suma Contra os Gentios. II, IV, 3 (873):
primeira - em que as coisas divinas são pesquisadas enquanto princípios do
sujeito desta ciência, que é o ens común; outra é a teologia positiva. Nela, Deus é
o sujeito e as coisas divinas são investigadas por elas mesmas:
195
Idem. Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio. V, IV, C.
196
Idem. Suma Teológica. I, 1, 1.
197
Etienne Gilson. A Filosofia Na Idade Média. p. 657.
Enfim, cada qual delas tem as suas próprias autoridades. Por exemplo,
em se tratando de questões de fé – dizia Santo Alberto - deve-se escutar mais a
Agostinho do que a Hipócrates ou Aristóteles. Entretanto, se o assunto é
medicina, ouça-se Hipócrates de preferência aos outros. Por fim, se o assunto é
física, a principal referência é Aristóteles.198 Contudo, espírito profundamente
científico, a Alberto era vedado agarrar-se as autoridades humanas, como se elas
fossem infalíveis. Sabia muito bem distinguir entre a infalível autoridade de
Deus e a falível autoridade dos homens.199 Diz Gilson, aferindo o pensamento de
Alberto neste ponto: “De homem a homem, a última palavra devia ficar
necessariamente com a razão.”200 E, mesmo quando se tratava de Aristóteles, em
ciências naturais, para Alberto, o melhor método era mesmo sempre a
experiência sensível, muitas vezes repetidas: “A experiência, através de repetidas
observações, é a melhor mestra no estudo da natureza.”201 Afastou-se, por
conseguinte, do costume de seu tempo de aceitar, passivamente, um argumento
de autoridade. Dizia ele, convicto: “Aceitamos dos antigos aquilo que eles
afirmaram corretamente.”202 A ciência natural deveria ser então, essencialmente
pautada pela experiência: “Compete à ciência natural não aceitar simplesmente
198
Alberto Magno. II Sent. D 13, a 2. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia Medieval:
Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 179: “Tome-se pois por princípio que, em questões
de fé e de bons costumes, Agostinho deve ser preferido aos filósofos, caso haja idéias diferentes
entre eles. Mas, em se tratando de medicina, tenho mais confiança em Galeno ou Hipócrates que
em Agostinho; e se falar sobre ciências naturais, tomo em maior consideração a Aristóteles ou a
outro especialista no assunto.”
199
Alberto Magno. Física 8, tr. 1, c. 14. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia Medieval:
Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 180: “(...) A uma tal pessoa respondemos que quem
acredita que Aristóteles foi um Deus, deve também crer que ele nunca errou. Se, porém, acredita
que ele foi um homem, então sabe sem dúvida que ele podia errar tanto quanto nós.” (O itálico
é nosso).
200
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 632.
201
Alberto Magno. Sobre os Animais. 1, c. 19. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia
Medieval: Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 178.
202
Alberto Magno. Livro das Causas. 1, tr. 1, c. 1. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia
Medieval: Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 178.
o que foi narrado. Cabe-lhe, muito mais, a serviço da filosofia natural, buscar as
causas das coisas naturais.”203. E ainda: “Só a experiência leva à certeza no
estudo da natureza (...)”204. Por essa invicta liberdade frente às autoridades,
mesmo as mais altas, Irmão Alberto, por um privilégio sem par em sua época,
deixou de ser chamado apenas de simples compilador (compilator) ou
comentador (commentator), para ser considerado por todos, um verdadeiro autor
(auctor), isto é, ele próprio uma autoridade (auctoritas). E ser uma autoridade,
significava, pois, ser original, ter as suas próprias idéias, e só recorrer a outras
autoridades, na medida em que estas confirmassem o seu pensamento. Para nós,
uma autoridade é, muitas vez, aquele que repete, com fidelidade, o que outrem
um clássico pensou. Na Idade Média, ao contrário, ser uma autoridade, é muito
mais do que isso: é ser senhor das suas próprias idéias, é ser fonte de um
pensamento realmente singular. E Alberto, ao menos para os seus
contemporâneos, era um autor. Explica-nos Gilson, nos seus pormenores:
203
Alberto Magno. Sobre os Minerais. 2, tr. 2, c. 1. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia
Medieval: Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 178. (O itálico é nosso).
204
Alberto Magno. Sobre os Vegetais. n. 1. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia Medieval:
Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 178.
(auctoritas=autor) e suas obras eram lidas e comentadas em
público nas escolas, ainda em sua vida.205
205
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 627.
206
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 8, ad 2: “(...) o argumento de autoridade fundado
na razão humana é o mais fraco de todos.”
207
Idem. In. Trin. 2, 3, ad 8. In: LAUAND, Luiz Jean. Tomás de Aquino: Vida e
Pensamento. in: TOMÁS DE AQUINO. Verdade e Conhecimento. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p.
208
Tomás de Aquino. Quodlibet. III, 31, ad 1. In: MOURA, D. Odilão. Introdução à Suma
Contra os Gentios. Porto Alegre: Sulina, 1990. p. 11
209
Tomás de Aquino. Comentário ao Tratado do Céu. I, 22, 8. In: NASCIMENTO, Carlos
Arthur R. de. Santo Tomás de Aquino: O Boi Mudo da Sicília. São Paulo: EDUSC, 1992. p.
50.
Quando o debate é debate de escola, ‘magistral’, não para refutar
um erro, mas para instruir os ouvintes e levá-los à compreensão
da verdade que se ensina: é necessário apoiar-se em razões que
procuram a raiz da verdade, que fazem saber como é verdadeiro
o que é dito. Caso contrário, se o mestre determina uma questão
por autoridades nuas, o ouvinte estará, por certo, assegurado de
que a coisa é assim, mas nada adquirirá de ciência e de
inteligência, e voltará vazio.210
213
Idem. Comentário à Metafísica. III leit. 1. In: MARIE, Joseph Nicolas. Op. Cit. Trad.
Henrique Lima Vaz et al. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 33.
214
Se entendemos por dogma, conhecimento certo e necessário, porém não exaustivo, então há
dogmas em filosofia! Não somos agnósticos e relativistas... No entanto, se tomarmos dogma,
naquele sentido preconceituoso que nossos hodiernos dão a ele, qual seja, de que ele é uma
verdade, além de definitiva, exaustiva, então é preciso dizer que não há dogmas em filosofia.
Aliás, neste sentido, nem em teologia. Aliás, neste sentido, nem na Revelação, pois, a própria
Igreja prevê uma evolução do dogma. Evolução que não é – como queriam os “modernistas” e
querem hoje os “progressistas” – a negação de uma verdade já definida por uma nova
“revelação”. Trata-se, antes, de um aprofundamento naquela mesmíssima verdade declarada
como tal, uma vez por todas. Por isso, a verdadeira e legítima evolução do dogma, pressupõe
que não haja contradição entre ele e os seus aprofundamentos, o que seria uma mutação. Mas
este não é mais o nosso assunto!
215
Apenas indiretamente pode haver “heresias filosóficas”. De fato, isso pode acontecer,
quando um filósofo, por exemplo, extrapolando as competências da ciência filosófica, começa a
enredar-se em discussões teológicas, que não são da sua alçada. Isto aconteceu, entre outras
vezes, com os chamados “averroístas latinos” do século XIII. Entre as condenações, impostas
pelo Bispo de Paris, Estêvão Tempier, em 1277, contra os averroístas, se encontravam algumas
teses como: As 219 Teses Condenadas em 1277. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia
Medieval: Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 291: “180. A religião cristã impede o
conhecimento. (175). 181. Há fábulas e coisas falsas na religião cristã, tal como nas outras.
(174). Nada a mais se apreende devido ao conhecimento teológico. (153). 183. Os discursos dos
finitude de nosso intelecto?216 Antes, os erros têm aqui o seu “papel”. Eles nos
fazem investigar melhor, uma verdade ainda não bem esclarecida. Tenhamos
uma dívida de gratidão, também para com aqueles que erram:
teólogos se baseiam em fábulas. (152). (...)”. Estamos bem longe da elegância das críticas de
Fontenelle e muito pertos das panfletagens de Voltaire!
216
Dizem os teólogos que, para haver heresia, é preciso haver pertinácia no erro. Na
verdadeira filosofia, no entanto, não há resistência à verdade, o que pode haver é uma falha na
percepção dela, dada às limitações do nosso intelecto.
217
Tomás de Aquino. Comentário à Metafísica, II, leit. 1. In: MARIE, Joseph Nicolas. Op.
Cit. Trad. Henrique Lima Vaz et al. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 33.
218
Tomás de Aquino. Comentário à Metafísica. XII, leit. 9. In: MARIE, Joseph Nicolas. Op.
Cit. trad. Henrique Lima Vaz et al. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 33.
5) O Interstício Entre o 1º e o 2º
Movimento: A Teologia Enquanto
Ciência (Aprofundamentos)
219
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 2, C. (Os itálicos são nossos). E ainda: Idem.
Ibidem: “Assim também a doutrina sagrada não se vale da argumentação para provar os seus
próprios princípios, as verdades de fé, mas parte deles para manifestar alguma outra verdade
(...)”.
220
Idem. Suma Contra os Gentios. II, V, 5 (876).
verdade, mas também não se baseiam em alguma autoridade humana falível e
frágil e sim na suprema e infalível autoridade divina:
Mas a sagrada ciência não é somente a mais perfeita das ciências, ela
é também a sabedoria suprema. Melhor, exatamente porque é a mais perfeita das
221
Idem. Suma Teológica. I, 1, 8, ad 2. (O itálico é nosso). E ainda: Idem. Exposição Sobre o
Credo. p. 21: “Eis porque ninguém pode duvidar da fé. Devemos acreditar mais nas verdades da
fé do que nas coisas que vemos, porque a vista do homem pode falhar, mas a ciência de Deus é
sempre infalível.”
222
Idem. Ibidem. I, 1, 3, ad 2.
ciências é também a sabedoria por excelência. Em que consiste a sabedoria? O
que é ser sábio? Santo Tomás não se cansa de repetir o axioma peripatético:
ordenar e julgar são os ofícios do sábio. Agora bem, o correto ordenamento e
julgamento das coisas inferiores de um determinado gênero, se faz por meio do
conhecimento da causa superior deste determinado gênero. Por isso, comumente
se chama sábio àquele que conhece e estuda a causa suprema de um
determinado gênero de coisas, pois assim passa a poder ordenar e julgar, de
forma adequada, tudo o que é deste gênero:
223
Idem. Ibidem. I, 1, 6, C.
224
Idem. Ibidem. II-II, 9, 2, C: “O juízo sobre uma coisa dá-se, principalmente, por sua causa.
Por isso, a ordem dos juízos deve ser segundo a ordem das causas.”
225
Idem. Idem.
226
Idem. Idem.
227
Idem. Idem.
consiste na certeza no julgamento: “(...) o nome ciência implica certeza no
julgamento (...)”228. Pois bem, já que todo julgamento certo procede do
julgamento pela causa e, sendo que o julgamento pela causa primeira é o
julgamento perfeitíssimo, deve-se dizer que a ciência, adquirida à luz da causa
primeira, é a mais nobre das ciências. Ora, a esta ciência damos o nome especial
de sabedoria: “(...) se essa certeza (a do julgamento) é produzida por meio da
causa altíssima, tem um nome especial, que é sabedoria.”229 Portanto, falando
propriamente, é dito sábio somente aquele que conhece todas as coisas, por meio
do conhecimento da causa altíssima, isto é, Deus: “Sábio, absolutamente falando,
é aquele que conhece a causa altíssima absoluta, isto é, Deus.”230
Quando esperávamos, porém, que Santo Tomás reserva-se o nome de
sabedoria à metafísica, eis que ele dá um salto, reservando este nome,
especialmente à doutrina sagrada. De fato, o que específica um hábito
cognoscitivo é a forma pela qual ele conhece alguma coisa e não a coisa
conhecida propriamente dita: “(...) todo hábito cognoscitivo diz respeito
formalmente ao meio de conhecer alguma coisa e materialmente àquilo que é
conhecido por esse meio. E como o elemento formal é mais importante (...)”.231
Agora bem, em metafísica, formalmente, o homem conhece a Deus por meio das
coisas criadas. E, só depois, na teologia natural, começa a julgar todas as coisas
por meio da causa altíssima. Portanto, em metafísica, de qualquer forma,
enquanto se chega a Deus somente por meio das criaturas, deve-se que ele ocupa
aqui apenas o posto de objeto material. Ora, isto corresponde mais à ciência que
à sabedoria:
228
Idem. Idem.
229
Idem. Idem.
230
Idem. Ibidem; Idem. Ibidem: “Por isso, o conhecimento das coisas divinas chama-se
sabedoria.”
231
Idem. Idem. II-II, 9, 2, ad 2.
Portanto, quando o homem conhece Deus por meio das coisas
criadas, esse conhecimento corresponde melhor à ciência do que
à sabedoria, à qual diz respeito materialmente.232
232
Idem. Idem.
233
Idem. Idem.
234
Não, como veremos mais adiante, restritamente enquanto causa suprema, mas enquanto
Deus.
conhece de si mesmo, e que é comunicado aos outros por
revelação. Assim a doutrina sagrada merece por excelência o
nome de sabedoria.235
235
Idem. Ibidem. I, 1, 6, C. (O itálico é nosso). Idem. Ibidem: “Esta doutrina (sagrada) é, por
excelência, uma sabedoria, entre todas as sabedorias humanas. E isso não apenas num gênero
particular, mas de modo absoluto.” (O parêntese é nosso).
236
Diz Gilson, fazendo referência à obra filosofia de Santo Tomás: Etienne Gilson. A Filosofia
na Idade Média. p. 657: “Portanto, nessa obra filosófica, a influência confessa da teologia é
certa, é a teologia mesma que fornecerá o plano.”
237
Idem. Ibidem.
Abramos, tanto a Suma Teológica, quanto à Suma Contra os Gentios e
perceberemos que o primeiro dos assuntos ao qual se dedicam é o da existência
de Deus.238 Ora, isso indica, de forma clara e notória, que estamos diante de uma
obra de teologia. Mas, ao investigarmos os argumentos aduzidos em favor da
existência de Deus, todos de alçada metafísica, seremos como que tentados a
voltar a atrás do que a pouco dizíamos. De fato, parece estarmos de frente com
uma obra meramente filosófica ou, no máximo, de teologia natural. Com efeito,
nenhuma menção é feita, no corpo da argumentação, à Revelação. No entanto,
deduzir disso que a obra seja filosófica, seria um total erro de perspectiva. Se
fosse filosófica, teria que começar por onde começam todos os conhecimentos
humanos, ou seja, pelo estudo das coisas sensíveis, isto é, por uma filosofia da
natureza. No entanto, ela começa por onde termina toda filosofia, a saber, por
uma metafísica, que é a última das disciplinas filosóficas a serem estudadas.239 E
começar por aí, se explica por uma razão muito simples: a existência de Deus,
fundamento de toda teologia natural240, é também a primeira das verdades que
Deus revelou241. A ordem a ser seguida, já está indicada: é a da teologia
revelada. Gilson, sempre preciso nos esclarece com exação sobre este ponto:
238
Precedida apenas pela questão onde se coloca a teologia como ciência, a segunda questão da
Suma Teológica intitula-se: Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 2: “De Deo, Ant Deus Sit”.
Já a Suma Contra os Gentios, após introdução onde se trata de como se desdobrará toda a obra,
aborda-nos com o problema da evidência ou não da existência de Deus: Idem. Suma Contra os
Gentios. I, X: “De Opinione Dicentum Quod Deum Esse Demontrari Non Potest Cum Sit Per se
Notum.”
239
Idem. Ibidem. I, IV, 3 (23c): “(...) a metafísica – que tem por objeto as verdades divinas –
deve ser a última parte da filosofia a ser conhecida.”
240
Idem. Ibidem. I, IX, 6 (58a/b): “Entre as verdades que devem ser consideradas, acerca de
Deus em si mesmo, deve ter precedência, como fundamento que é de toda esta obra, o estudo da
demonstração de que Deus existe. Se assim não se fizer, toda a explanação sobre as verdades
divinas perderá o seu valor.”
241
Idem. Exposição Sobre o Credo. p. 23: “Entre todas as verdades nas quais os fiéis devem
acreditar, em primeiro lugar devem acreditar que Deus existe.”
As primeiras coisas que conhecemos não são outras que as coisas
sensíveis, mas a primeira coisa que Deus nos revela é sua
existência; começar-se-á teologicamente, pois, por onde se
chegaria filosoficamente depois de uma longa preparação.242
242
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 658.
243
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 213: “É preciso partir
das verdades ‘racionais’, porque é a razão que nos une. Escreve santo Tomás: ‘É necessário
recorrer à razão, à qual todos devem assentir. É sobre essa base que se podem obter os
primeiros resultados universais, porque racionais, com base nos quais se pode depois construir
um discurso de aprofundamento, de caráter teológico.” (O itálico é nosso). Portanto, para Santo
Tomás, começar pela razão, quando isto é possível, não é um procedimento racionalista, não
significa dizer que a razão seja onipotente. Trata-se, antes, de um procedimento dialético, que
visa assentar certas primícias que, por serem racionais, podem ser aceitas por todos. Partir da
razão é, pois, partir do em comum, é buscar a unidade.
244
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 657. Esta afirmação de Gilson parece ir de
encontro com uma afirmação que fazíamos acima, na qual dizíamos que a fé a mais perfeita das
ciências. Em verdade, não existe contradição alguma. Com efeito, se tomarmos como referência
apenas à maneira de se conhecer, é claro que as ciências demonstrativas estão acima da fé,
porque elas nos dão a visão do objeto. E, neste sentido, é perfeita a afirmação de Gilson, ao
dizer que, em sendo possível demonstrar uma verdade, não devemos negligenciar-nos em
torná-la evidente mediante demonstração. Já quanto às verdades de fé, elas também são
conhecidas, porque chegarmos, a saber, por reto juízo, em devemos crer. Contudo,
precisamente neste sentido também, as verdades de fé, não sendo por nós vistas, mas apenas
cridas, carecem da perfeição da visão. Com efeito, das verdades da fé, como já frisamos, só
se valer da Bíblia para demonstrar a existência de Deus. De fato, quando se trata
de uma demonstração racional, até para se manter a autonomia da filosofia -
pode-se até se permitir que a fé indique o termo - mas nunca se deve avançar no
caminho a não ser pela razão: “Ele sabe pela fé para que termo se dirige, contudo
só progride graças aos recursos da razão.”245
Do lado dos filósofos recorrer à filosofia, apenas para esclarecer a fé,
parece empobrecê-la. Para responder a estes é preciso dizer que, adotando tal
procedimento, não pretende Santo Tomás, transformar este uso da filosofia na
única forma de se filosofar. Como já aludimos, se quisesse, Tomás de Aquino
poderia ter sido um filósofo puro. De fato, não lhe faltariam elementos, nem
instrumentos teóricos para isso.246 Ele não deixa de prever, inclusive, a
possibilidade de uma filosofia distinta – até mesmo na ordem do seu discurso –
da teologia.247 Em segundo lugar, este uso que ele faz da filosofia na ciência da
Deus e os bem-aventurados tem ciência, isto é, visão. Di-lo o próprio Boi Mudo da Sicília:
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 12, 13, ad 3: “Deve-se dizer que a fé é uma espécie de
conhecimento, enquanto o intelecto é determinado pela fé a algo cognoscível. Mas esta
determinação a algo não procede da visão daquele que crê, mas da visão daquele em que se crê.
Assim, quando falta a visão, a fé como conhecimento é inferior a ciência; pois a ciência
determina o intelecto a algo pela visão e pelo entendimento dos primeiros princípios.”
Entretanto, do ponto de vista da sublimidade da verdade conhecida e da autoridade na qual a fé
se funda, ela é a mais excelsa das ciências.
245
Idem. Ibidem.
246
Vale a pena citar novamente a passagem em que Gilson afirma: Idem. Ibidem: “Se tivesse
querido, santo Tomás teria podido escrever uma metafísica, uma cosmologia, uma psicologia e
uma moral concebidas de acordo com um plano estritamente filosófico.”
247
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 188, 5, ad 3: “Deve-se dizer que os filósofos
professavam o estudo das letras no que diz respeito às ciências humanas. Mas aos religiosos
compete principalmente dedicar-se ao estudo das letras que se referem à ‘doutrina que é
segundo a piedade’, como diz o Apóstolo. Dedicar-se, porém, ao estudo das outras doutrinas
não é próprio dos religiosos, que consagraram toda a sua vida ao ministério divino, a não ser na
medida em que elas são ordenadas à teologia.” Santo Tomás faz alusão a este uso à parte da
filosofia como sendo próprio dos filósofos. A única ressalva que ele faz a este procedimento, é
que ele próprio dos filósofos e não dos teólogos e monges. De fato, estes também procuram a
fé, longe de empobrecê-la, a aperfeiçoa.248 Com efeito, o objeto próprio da
filosofia é sempre o ser, o real. Ora, dada a finitude do nosso espírito, ela só
consegue chegar ao ser enquanto ser - a ordem do real como de fato ele se dá -
no final da sua pesquisa. Isto porque, para nós, nem o sempre o primeiro na
ordem do ser é o primeiro na ordem do conhecer. Desta sorte, a teologia permite
à filosofia desde o princípio, estudar a realidade tal qual ela é: com Deus como
princípio e fim de todas as coisas. E isto, sem a trair nem roubar-lhe a “pureza
racional”, pois seu influxo sobre ela será apenas externo, como veremos.
Novamente cedemos a palavra a Gilson que, com sua clareza inconfundível e
insuperável, delineia a questão:
filosofia, mas com outra finalidade. No entanto, em nenhum momento ele parece condenar -
como ilegítimo em si mesmo - o uso autônomo e independente da filosofia.
248
Na exposição do pensamento do Aquinate, quanto trata deste assunto, Reale nos remete ao
famosíssimo axioma medieval: Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e
Escolástica. p. 213: “A fé, portanto, melhora a razão assim como a teologia melhora a filosofia.
A graça não suplanta, mas aperfeiçoa a natureza.”
249
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 658. (O parêntese e o itálico são nossos).
5.4) A Teologia Enquanto Ciência Fundamentada na Sagrada Escritura
250
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 5, ad 2.
251
Idem. Ibidem. I , 1, 6, C.
252
Tomás nunca nega que a teologia, embora sendo a mais perfeita das ciências na sua ordem,
ainda não é, de modo absoluto, o mais perfeito conhecimento que Deus nos destina a ter dEle
mesmo. Longe de Tomás ainda, qualquer ontologismo, nenhuma visão beatífica da essência
divina nos é concedida nesta vida. Antes, bem ao contrário, o melhor conhecimento de Deus
que podemos alcançar neste mundo, é o de saber que Ele é supera, infinitamente, tudo que dEle
podemos conhecer no estado atual: Idem. Ibidem. II-II, 8, 7, C: “(...) Nesta vida, tanto mais
conhecemos a Deus, quanto mais entendemos que Ele supera tudo aquilo que podemos
apreender pelo intelecto.”
253
Idem. Ibidem. I, 1, 5, ad 1.
Escritura “(...) quod auctor sacrae Scripturae est Deus (...)”254 Agora bem, dois
tipos de ciência existem. Aquelas cujos princípios são conhecidos por si mesmos,
qual seja, pela luz natural da razão, e aquelas que assumem os princípios de uma
ciência superior. É o caso da ciência sagrada, que retira os seus princípios da
Sagrada Escritura, a qual exprime a ciência de Deus enquanto esta foi revelada
aos homens:
254
Idem. Ibidem. I, 1, 10, C.“O autor da Escritura Sagrada é Deus.” E, embaixo, no respondeo
do mesmo artigo, volta a afirmar: Idem. Ibidem: “auctor autem sacrae Scripturae Deus est (...)”.
255
Idem. Ibidem. I, 1, 2, ad 1.
256
Idem. Ibidem. I, 1, 2, ad 2. (O itálico é nosso).
Daí que, para manter as notas divinas da sagrada ciência, o Angélico
distingue então dois níveis de argumentos: os da Escritura que, os oriundos dos
Apóstolos e varões apostólicos e procedentes da Revelação de Deus, gozam do
carisma de infabilidade e constituem, ipso facto, o fundamento da sagrada
ciência, posto que objetos de fé divina; mais há ainda os argumentos provindos
dos demais doutores, ao qual ele atribui apenas um valor de prováveis e
verossímeis, mas nunca dignos do caráter infalível da Escritura, cujo berço é a
Tradição. Em uma palavra, o Angélico distingue nitidamente o dogma infalível
da teologia dos padres, reflexão sobre este mesmo dogma, como diversifica
também a Tradição e autoridade divinas, das tradições e autoridades humanas,
as primeiras são infalíveis enquanto tais, as segundas não:
257
Idem. Ibidem. I, 1, 8, ad 3.
258
A respeito da doutrina de Averróis, comenta o Professor Carlos Arthur: Carlos Arthur R.
Nascimento. Santo Tomás de Aquino: O Boi Mudo da Sicília. p. 50: “Já que toda a verdade
que o ser humano pode conhecer por seu próprio esforço intelectual havia sido comunicada por
Aristóteles, nada mais restava senão ‘comentar, isto é, explicar as obras de Aristóteles.”
Aliás, nem todas as autoridades devem estar no mesmo plano. A
da Palavra de Deus, da Verdade divina, é evidentemente
absoluta. Não no sentido de que ‘autoridade’ significa,
primeiramente, poder de fazer-se obedecer, mas no sentido de
que autoridade quer dizer garantia absoluta de verdade e, por
isso, direito à adesão incondicional, anterior a toda compreensão.
Antes de das ‘fontes’ de Sto. Tomás, é preciso recorrer à fonte
primeira de seu pensamento, anterior a todas as outras, sua fé.
(...). Nenhuma palavra humana, nenhum espírito humano,
nenhuma tem autoridade a não ser por participação na verdade
primeira que é o próprio objeto da fé. Eis por que a autoridade
da Escritura é irrefragável e ele não tergiversa com ela,
interpretando-a, antes de tudo, por si mesma e pelo sentido
natural das palavras. Aqui, procurar o que pensa o autor não se
diferencia de procurar o que é.259
259
Joseph Nicolas Marie. Introdução à Suma Teológica. p. 32-33. (Os itálicos são nossos).
Sagrada Escritura, por conseguinte, não tendo outra que lhe seja
superior, terá que disputar com que nega os seus princípios.260
260
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 8, C. (O itálico é nosso).
261
Idem. Ibidem. I, 1, 6, ad 3.
262
Idem. Ibidem. A teologia é uma ciência e, como dizia Aristóteles, numa sugestiva sentença
do livro da Ética que Tomás retoma, o saber de nada vale para na prática da virtude: Tomás de
Aquino. Suma Teológica. II-II, 181, 1, C: “Por isso, diz o Filósofo: ‘Para a prática da virtude,
Transpondo estas duas espécies de julgamento para as coisas divinas,
elas equivalem há duas formas de sabedorias, que não se opõe, mas distinguem-
se: a primeira forma de julgar é a de julgar por inclinação e que equivale à
sabedoria, dom do Espírito Santo que, nos inclinando de forma permanente ao
que é justo, nos leva, por conseqüência, a saber discernir o que corresponde ao
bem. Já a segunda, que diz respeito ao julgamento por conhecimento,
corresponde à sabedoria teológica, adquirida pelo estudo e pelo esforço da
razão, mesmo que retire os seus princípios da Revelação:
nada ou pouco adianta o saber.” (Unde Philosopllus dicit, in II Ethic, quod ad virtutem scire
quidem parum aut nihil prodest).
263
Idem. Ibidem. I, 1, 6, ad 3.
264
Idem. Ibidem. II-II, 45, 1, C: “Segundo o Filósofo, compete ao sábio considerar a causa mais
elevada com a qual tudo pode julgar tudo com grande certeza e segundo a qual tudo deve ser
ordenado.”
que, conhecendo a Deus de forma mais excelente, julga e ordena todas as coisas
a partir deste conhecimento mais profundo que tem da causa mais elevada:
265
Idem. Ibidem.
266
Santo Tomás, para exemplificar, citar mais abaixo Dionísio: Idem. Ibidem: “Dionísio,
falando de Hieroteo, diz que ele é perfeito no que se refere ao divino, ‘não somente por
apreendê-lo, mas também por experimentá-lo’.”
pode existir de duas maneiras: ou por um uso perfeito da razão;
ou por uma certa conaturalidade com as coisas sobre as quais
deve julgar. Assim, no que diz respeito à castidade, aquele que
aprendeu a ciência moral julga bem em conseqüência de uma
inquirição racional; enquanto aquele que tem o hábito de
castidade julga bem por uma certa conaturalidade com ela. Assim,
portanto, no que diz respeito às realidades divinas, ter um
julgamento correto em virtude de uma inquirição da razão
pertence à sabedoria, que é uma virtude intelectual. Mas, julgar
bem as coisas divinas por modo de conaturalidade pertence à
sabedoria enquanto é um dom do Espírito Santo.267
267
Idem. Ibidem. II-II, 45, 2, C. (O itálico é nosso).
268
Idem. Ibidem.
269
Idem. Ibidem. II-II, 45, 1, C: “Ora, é o Espírito Santo que dá ao homem ter tal julgamento.”
pois, para desmascarar certas tendências de colocar a mística dentro do
irracional. Além disso, serve também distinguir a experiência mística e o
conhecimento místico que brota dela. De fato, a sabedoria mística, também é
uma espécie de conhecimento:
Por isso, por ser a sabedoria, como dom, mais excelente do que a
sabedoria, como virtude intelectual, porque atinge a Deus muito
270
Idem. Ibidem. II-II, 45, 2, C.
271
Embora a ciência teológica, sendo ainda ciência humana, porque suas conclusões se baseiam
em raciocínios, na ordem das ciências humanas, ela é a mais excelente, por já ser divina em
seus princípios. Já a sabedoria mística é o mais excelente conhecimento que o homem pode ter
de Deus nesta vida. Enquanto a visão beatífica é o mais excelente conhecimento que o homem
pode de Deus de Deus, absolutamente falando.
mais de perto em razão da união que se estabelece entre a alma e
ele (...).272
Mas sabedoria não traz nem amargura, nem trabalho aos atos
humanos dirigidos por ela. Ao contrário, por causa dela a
amargura se converte antes doçura, e o trabalho em repouso.274
Ora bem, tudo que dissemos mais acima, equivaleria a dizer, que
sabedoria, fruto da teologia como ciência, seria uma teologia sem lugar para a
mística? De todo. Mas só responderemos adequadamente a esta questão, se a
confrontarmos com alguns dados já estabelecidos anteriormente. Falávamos que
a Revelação, fundamento da teologia, que não é senão uma participação na
272
Idem. Ibidem. II-II, 45, 3, ad 1.
273
Idem. Ibidem. II-II, 45, 3, C.
274
Idem. Ibidem. II-II, 45, 3, ad 3: “(...) sed amaritudo propter sapientiam vertitur in
dulcedinem, et labor in requiem.” (Os itálicos são nossos).
275
Idem. Ibidem. II-II, 45, 4, C.
ciência de Deus e dos bem-aventurados. Dizíamos ainda que, por ela ter
fundamento tão sólido, era a sabedoria por excelência entre todas as ciências
humanas. No entanto, é preciso logo acrescer que, justamente por isso, isto é, por
ter ela fundamento tão sólido - que a torna, inclusive, a mais alta das sabedorias
adquiridas pelo homem - ela não poderá ser, em sentido absoluto, nem a mais
homérica sabedoria e nem a ciência mais eminente. Este lugar caberá, pois,
precisamente à ciência da qual ela recebe os seus princípios. Acima da ciência
teológica está, pois, a mesma ciência de Deus e dos bem-aventurados, que é a
Revelação, aceita pela fé. E, neste sentido, ou seja, enquanto têm como
princípios a sobrenatural e elevadíssima ciência de Deus, ela é mística em sua
fonte. Destarte, em seus princípios, é subordinada à ciência de Deus:
276
Claude Geffré. A Teologia Como Ciência. p. 129.
277
Idem. Op. Cit.
E, no entanto, permanecendo mística em seus princípios, não deve, ao
contrário, o ser no seu desenrolar. Dado os princípios, todo o desenvolvimento
teológico, como vimos, é um habitus adquirido mediante o estudo, com os
procedimentos próprios da razão humana. O que não significa, evidentemente,
que deixe de ser uma ciência guiada pela fé também no concurso do seu
desenvolvimento. Sendo os seus princípios irredutíveis à razão natural e, sendo
que toda ciência deve se reduzir aos seus princípios, então, todos os resultados
da ciência teológica serão, quando verdadeiros278, redutíveis às verdades de fé279
278
A verdade teológica, para ser considerada inclusa na Revelação precisará, como veremos na
nota seguinte, ser confirmada pelo Magistério.
279
Importantíssimo notar aqui que as verdades teológicas são “redutíveis” aos dogmas, apenas
no sentido de que partem e procedem deles. Como de seus princípios primeiros, deles
dependem. No entanto, conclusões teológicas não são dogmas de fé e não pretendem
demonstrar os dogmas. Antes, os supõe. Os dogmas, notemos bem, são para a doutrina da fé, o
que são os primeiros princípios da razão para a filosofia, isto é, indemonstráveis. São principios
irredutíveis a nenhum outro, ipso facto, primeiríssimos princípios. A diferença está aqui:
enquanto os primeiros princípios da razão são evidentes por si, os dogmas de fé, em relação ao
nosso intelecto, o são em virtude da autoridade do Deus revelante. Destarte, nenhuma teologia
pode demonstrá-los, pois toda teologia os pressupõe. Pode, no entanto, a partir deles, tirar
outras conclusões ou ainda tentar explicá-los, sem nunca pretender demonstrá-los. Desta feita, a
verdade teológica não é uma verdade imediatamente revelada enquanto tal. Só dogma o é. Pode
o Magistério, não obstante, por uma intervenção extraordinária, vir a declarar que tal verdade
teológica esteja contida na revelação. Contudo, faltaria com a humildade o teólogo que
pleiteasse por si mesmo, “canonizar” as suas conclusões, arvorando-se em dizer que as suas
conclusões estão imediatamente incluídas na revelação. Citemos uma passagem, a qual cá e lá
teremos que retornar, onde Penido explica a controvertida questão. Aqui se confrontam, de
certa maneira, os limites da teologia e da assistência do Magistério à teologia: Maurílio Teixeira
Leite Penido. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 41: “Uma conclusão teológica
não é verdade de fé, porque não foi imediatamente revelada, e, ainda que o teólogo veja de uma
maneira evidente sua inclusão real e necessária no imediatamente revelado, ele, na sua condição
de teólogo particular, pode e deve perguntar ansioso se, fraco e falível como é, entendeu
corretamente os princípios da fé, se lhes penetrou as conexões essenciais, se inferiu
rigorosamente as conseqüências ou coadunou a vastidão da Verdade infinita à estreiteza de suas
misérias, minimizando o divino; se não turvou a limpidez diáfana mensagem divina, com suas
noções opacas e obscuras, divinizando quiçá o humano.”
e, por isso mesmo, certa participação no Logos divino: “Ora, o sujeito dos
princípios e da totalidade da ciência é o mesmo, pois a ciência está contida
virtualmente em seus princípios. (cum tota scientia virtute contineatur in
principiis).”280 E, neste sentido, podemos conceder de bom grado com Penido,
que a fé está presente do começo ao fim da teologia: “Em teologia não impera a
razão, mas a fé – no início, no decurso e no fim da pesquisa.”281 Entretanto,
insistimos uma vez mais em frisar, que os princípios da fé, fazendo às vezes em
teologia dos primeiros princípios da razão nas demais ciências282, uma vez
280
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 7, C: (O parêntese e o itálico são nossos). Neste
sentido, podemos acordar com Penido, quando diz belamente, que somos, de certa forma,
religados ao Verbo quando fazemos verdadeira teologia: Maurílio Teixeira Leite Penido.
Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 43: “A teologia é antes uma atividade
religiosa; é a entrega do intelecto ao Verbo cuja luz veio iluminá-lo; é um movimentar-se do
pensamento que se projeta todo aos pés do Cristo-Deus revelador.”
281
Idem. Ibidem. p. 43. É tão preponderante o papel da fé no decurso da teologia que, no
capítulo IV, do livro II da Suma Contra os Gentios, onde Tomás distingue com precisão, o
modo de proceder do filósofo e do teólogo, ele – quando quer exatamente distinguir o filósofo
do teólogo – abandona bruscamente o termo teólogo e adota a designação fiel, certamente para
indicar que o teólogo é, antes de tudo, um fiel e que, como diz Pe. Penido: Maurílio Teixeira
Leite Penido. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 39: “A base da teologia não é a
capacidade de invenção do teólogo, mas a fidelidade à Revelação.” O título do capítulo da Suma
é: Idem. Suma Contra os Gentios. II, IV: “Quod Alter Considerat de Creaturis Philosophus et
Theologus.” (Os itálicos são nossos). Já no corpo do texto, verificamos a substituição dos
termos aludidos: Idem. Ibidem. II, IV, 2 (872a): “E por esse motivo o filósofo (Philosophus) e o
fiel (Fidelis) consideram realidades diversas nas criaturas.” (Os parênteses são nossos). Idem.
Ibidem. II, IV, 3 (873): “No entanto, algo nas criaturas é considerado em comum pelo filósofo
(Philosopho) e pelo fiel (Fideli), mas segundo princípios diversos.” (Os parênteses são nossos).
Idem. Ibidem: O filósofo (Philosophus) deduz os seus argumentos partindo das próprias causas
das coisas; o fiel (Fidelis), porém, da causa primeira (...)”. (Os parênteses são nossos). É isto
que leva Penido a declarar, com veemência que: Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação
Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 37: “Sem fé sobrenatural não há Teologia cristã.”
282
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 1, 7, C: “Os artigos de fé têm na doutrina da fé o
mesmo papel que os princípios evidentes na doutrina que se constrói a partir da razão natural.”
aceitos, dão lugar a consecução do trabalho científico, isto é, a resultados
obtidos por via de raciocínios-dedutivos:
Víamos acima que, existe uma certa intervenção da razão, que precede
e condiciona, de certo modo, o ato de crer. Nesta primeira intervenção, vimos
também que a razão não caminha sozinha, mas é assistida pelos dons da
inteligência e de ciência. Agora bem, existe uma segunda intervenção da razão,
um certo conhecimento da fé, que sucede ao ato mesmo de crer. Neste ínterim a
razão, como também já vimos, trabalha, fincada na fé, mas com os seus próprios
recursos, embora possa ser eventualmente auxiliada pela chamada graça. Essa
atividade da razão, que sucede ao ato de crer, é exatamente o que irá constituir-
se como ciência teológica. Seu objetivo primeiro é o ensino. Transmitir, pois, de
283
Claude Geffré. Op. Cit. p. 132
284
Sintetiza Penido com maestria: Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação Teológica I: O
Mistério da Igreja. p. 41: “Embora a conclusão teológica não seja verdade de fé, tampouco é
mera verdade humana, porque estava implícita na palavra de Deus. Saber divino-humano, misto
de fé e de razão, tal é a Sagrada Teologia. Divina, por serem revelados os princípios com que
argumenta; humana, porque passamos às conclusões por um discurso que nos é próprio. Por
outras palavras, a teologia é a maneira humana de estudar as coisas divinas.”
forma adequada – didática – algum entendimento colhido das verdades da fé. Ao
lado desta finalidade pedagógica, outra se encontra, qual seja, a de refutar os
erros daqueles que contradizem a fé. E claro, mostrando, o quando nos é
possível, a inteligibilidade da fé, destruir os empecilhos que estorvam as mentes
infiéis a crer. Todos são destinados a crer, mas ser teólogo é da economia da
graça grátis, é uma vocação. A respeito desta segunda espécie de ciência da fé,
diz o Frade de Rocasseca:
285
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 9, 2, ad 2. Sobre a forte ligação que Tomás via
entre a teologia e o ensino, podemos notar pelo caráter de suas principais obras. A mais famosa
delas, a Suma Teológica, é expressamente dirigida para o ensino dos principiantes: Idem.
Ibidem. I, Prólogo: “O doutor da verdade católica deve não apenas ensinar aos que estão mais
adiantados, mas também instruir os principiantes (...)”. Sobre o seu esforço, para dar um perfil
didático e acessível à exposição dos conteúdos da fé, também deixa registrado: Idem. Ibidem:
“Observamos que os noviços nesta doutrina encontram grande dificuldade nos escritos de
diferentes autores (...) No empenho de evitar esses e outros inconvenientes, tentaremos,
confiando no auxílio divino, apresentar a doutrina sagrada sucinta e claramente, conforme a
matéria o permitir.” (O itálico é nosso).
286
Idem. Ibidem. II-II, 180, 1, C: “Chama-se vida contemplativa a vida daqueles que se aplicam
à contemplação da verdade.”
Verdade divina: “O elemento principal da vida contemplativa é a contemplação
da verdade divina (...)”.287 Mas também, secundariamente, na contemplação dos
efeitos divinos, ao menos na medida em que estes nos levam à contemplação de
Deus.288 A verdade contemplada, doravante, nós a expressamos, primeiro
interiormente, por meio de um verbo interior, mas também exteriormente,
através de palavras audíveis. Agora bem, o que é ensinar, senão conseguir
expressar, exteriormente, de forma audível, clara e sucinta, o conceito interior
que contemplamos e assim, deveras, levar os ouvintes ao conhecimento da
verdade, isto é, à própria contemplação?289 É desta forma, pois, que o ensino,
longe de se contrapor a contemplação é, ao contrário, o seu transbordamento, o
caminho que conduz outros a ela:
Como o que ilumina é mais perfeito do que aquilo que somente brilha,
assim aquele que transmite o que contemplou, é mais perfeito do que o simples
contemplativo. Leva outros à contemplação. Ser professor, longe de aborrecer a
vida contemplativa, a aperfeiçoa: “Pois, assim como é mais perfeito iluminar do
287
Idem. Ibidem. II-II, 180, 4, C.
288
Idem. Ibidem: “Mas, pelos efeitos divinos somos levados à contemplação de Deus (...). Daí
resulta que também os efeitos divinos pertencem secundariamente à vida contemplativa,
enquanto por ela o homem é levado ao conhecimento de Deus.”
289
Idem. Ibidem. II-II, 181, 3, ad 1: “Pois o que é dotado de sabedoria ou de ciência tem
competência para ensinar, na medida em que pode exprimir por palavras o conceito interior
(interiorem conceptum), de modo a conduzir os outros ao conhecimento da verdade.” (O
parêntese é nosso). É por isso que Santo Tomás chega a dizer que, mesmo o ensino sendo um
ato formalmente da vida ativa, ele nos dispõe à vida contemplativa: Tomás de Aquino. Sobre o
Estudo. 4, ad 4: “(...) a vida ativa, dispõe a contemplativa.” E isto, não somente quanto ao
professor que ensina, mas também quanto ao aluno enquanto é predisposto à apreender a
verdade.
290
Idem. Suma Teológica. II-II, 188, 6, C. (O itálico é nosso).
que apenas brilhar, assim também é mais perfeito comunicar aos outros o que se
contemplou do que apenas contemplar.”291 Não há, portanto, verdadeira
separação – há sim distinção – entre a vida contemplativa e a vida ativa. Santo
Tomás chega dizer que, quem “deixa” a contemplação, para exercer as
atividades próprias da vida ativa (inclusive para ensinar), de certa forma, não
interrompe a contemplação, antes, dá continuidade ela; não lhe arrepia o
processo, ao contrário, o complementa:
É por isso que Santo Tomás não vê problema algum em se fundar uma
vida religiosa – até então direcionada somente à contemplação – votada também
ao estudo e à pregação. Melhor, por uma inversão muito audaciosa para época, e
que poderia até passar despercebida para um leitor menos contextualizado, ele
diz que não haveria problema algum em se fundar vidas religiosas com vistas ao
estudo e a pregação, isto é, à vida ativa: “(...) o estudo das letras é necessário às
vidas religiosas fundadas em vista da pregação e dos ministérios análogos.”293
Sim, porque estudo e pregação, para ele, longe de aborrecerem à vida
contemplativa, enquanto à traduzem exteriormente, à aperfeiçoam também. É
como nos dizia ele mais acima, não sem certa veia poética: “Sicut enim maius
este illuminare quam lucere solum, ita maius este contemplata aliis tradere quam
solum contemplari.”294 Trocando em miúdos, uma ordem religiosa, fundada com
a finalidade, não somente de contemplar, mas também de transmitir o que
contemplou, acaba sendo mais perfeita que aquela que só contempla!
291
Idem. Ibidem.
292
Idem. Ibidem. II-II, 182, 1, ad 3. O original latino é muito mais forte: “Et sic patet quod,
cum aliquis a contemplativa vita ad ativam vocatur, non hoc fit per modum subtrationis, sed per
modum additionis.” (O itálico é nosso).
293
Idem. Ibidem. II-II, 188, 5, C.
294
Idem. Ibidem. II-II, 188, 6, C.
E no bojo de tanta ousadia, o que é mais impressionante, é que ele
ainda encontra lugar, para inserir na vida religiosa, o ensino das ciências
naturais. Como sabemos, naqueles idos ainda não havia a nossa separação
cartesiana entre filosofia e ciência, e as disciplinas filosóficas se encontravam
integradas no edifício das ciências naturais. Já sabemos também que, para Santo
Tomás, há um lugar na contemplação das coisas divinas, reservado à
contemplação dos efeitos divinos, precisamente enquanto estes nos levam àquele.
Pois sim, para que os estudos dos efeitos divinos - isto é, das criaturas – seja
criterioso, deve-se integrar à moldura do arcabouço teológico, o estudo as letras
profanas. Com efeito, serão estas letras profanas que nos darão a base, para que
possamos compreender corretamente as criaturas e assim, destarte, tais criaturas
nos possam remeter, de fato, a um melhor entendimento do Criador.295 Além
disso e sobretudo, todos estes estudos prévios, nos ajudarão a entender melhor às
próprias Sagradas Escrituras que, por inumeráveis vezes, se valem destes efeitos
divinos que, se não são compreendidos de forma correta, acabam surtindo o
efeito contrário e nos levando a formatar erros grosseiros à respeito das mesmas
coisas divinas. Santo Tomás cita até um exemplo:
5.6.2) Fé e Teologia
296
Idem. Suma Teológica. II-II, 188, 5, C. (Os parênteses são nossos). Fizemos questão de citar
os termos latinos, simplicitatem e anthropomorphitarum, porque, infelizmente em nossa
teologia atual, tem livre trânsito, certa concepção equivocada de simplicidade. Este termo se
tornou sinônimo de pureza na fé. Sem dúvida, a verdadeira simplicidade o é. No entanto, muitos
entendem por simplicidade uma certa ignorância, uma espécie de “não-procurar-saber” nada
mais. Eis a sentença célebre de Tomás, após enumerar os nefastos erros a que podemos ser
conduzidos, quando prescindimos de toda ciência em teologia: Idem. Suma Contra os Gentios.
II, III, 5 (869): “Vê-se, pois, como é falsa a afirmação de alguns, de que era indiferente para as
verdades da fé o que se pensasse a respeito das criaturas, contanto que se pensasse retamente
sobre Deus (...)”. E tal ignorância, segundo alguns defensores desta linha, seria compensada
por uma suposta “espiritualidade”, que o mais das vezes se apresenta sob a forma de um
estranhíssimo pseudo-misticismo de linha maniqueísta. A principal conseqüência desta postura,
linha da convivência, é o fundamentalismo e, por vezes, até o fanatismo intolerante. Quando
esta acepção errônea de simplicidade migra para a teologia, transforma–se exatamente em
antropomorfismo maléfico. Humildade é não ir além do que a razão pode saber, reconhecer
seus limites, e não ficar aquém das capacidades racionais, isto pode até ser negligência... Anti-
racionalista é saber que não se pode saber tudo e não que não se deve procurar saber nada
(Isto é ser irracional ou, no mínimo agnóstico). Por trás de certos misticismos, ditos
humildíssimos, esconde-se na verdade, um fechamento deletério para os cristãos, além de uma
soberba invencível para se configurar de qualquer diálogo.
297
Idem. Exposição Sobre o Credo. p. 18
nos seus conteúdos, o seu objeto ainda em mistério, Deus. A fé é, assim,
essencialmente transitória: “Possuída, pois a fé, fica ainda na alma a inclinação
para algo mais: para a perfeita visão da verdade conhecida pela fé (...)”.298
Trânsito que não termina nesta vida, mas que só findará na vida futura, com a
visão da essência Divina: “Esse conhecimento inicia-se pela fé, mas é
completado na vida futura, quando O conhecermos tal como é.”299 Ela não sacia,
portanto, nosso desejo de conhecer, antes, se nos é permitido dizer, o
“provoca”300, pois não vemos o que cremos. Por isso a fé é, por natureza,
inquieta:
298
Idem. Compêndio de Teologia. II, 1, 3.
299
Idem. Exposição Sobre o Credo. p. 18.
300
Santo Tomás o diz expressamente: Idem. Suma Contra os Gentios. III, XL, 4 (2178): “(...)
o conhecimento da fé não aquieta o desejo, mas, antes, o excita, porque todos querem ver aquilo
em que crêem (...)”. (O itálico é nosso).
301
Idem. Compêndio de Teologia. II, I, 2.
302
Idem. Ibidem. I, II, 1.
303
Idem. Exposição Sobre o Credo. p. 18.
diz o Filósofo: ‘para aprender é necessário crer.’”304 Nem a fé estaciona nela,
ela busca compreender. E, enquanto tenta sistematizar esta compreensão, faz
nascer a teologia. A teologia não é assim, senão mais um estágio que, como
veremos, ainda não é o porto da visão, e sim mais um passo para ele. Eis como o
Frade Dominicano, descreve o itinerário do crente transeunte neste mundo:
Ora, o ato do que crê não se orienta para o enunciado, mas para a
coisa: não formamos enunciados a não ser para que tenhamos
conhecimento das coisas, como acontece na ciência, e também na
fé.306
304
Idem. Suma Teológica. II-II, 2, 3, C. A citação em Aristóteles, encontra-se em De Sophist.
Elench I, 2: 161, b, 3. Idem. Ibidem: “Sicut etiam Philosophus dicit quod oportet addiscentem
credere.”
305
Idem. Compêndio de Teologia. I, II, 2.
306
Idem. Suma Teológica. II-II, 1, 2, ad 2.
307
Claude Geffré. Op. Cit. p. 132.
que a fé inquieta, que busca compreender, longe de nos levar ao racionalismo,
desemboca num postulado anti-racionalista. O Frade Mendicante, ao mesmo
tempo em que coloca a fé como prenhe de ciência teologia, a coloca também
grávida de irracionalidade (não do irracional). Com efeito, tomando as palavras
de Santo Hilário, aduz como pressuposto fundante de toda teologia, a
incapacidade de apreendermos tudo a respeito de seu objeto. A teologia, desde o
seu começo, é um projeto que só dará “certo”, se o teólogo admitir que ele não
terá fim nesta vida.308 Toda teologia precisa, enfim, ceder, em algum momento,
ao incompreensível:
308
Afirmávamos acima que a teologia busca, fundamentando-se na fé, um conhecimento de
Deus em si mesmo. E, de fato, a fé nos proporciona uma participação neste conhecimento de
Deus. Esta fé inquieta, que busca a compreensão, longe de se tornar um “escape” para o
racionalismo, é semente de vida eterna. Ela é inquieta, porque nunca conseguirá, nesta vida, dar
cabo do seu desejo: ver a Deus:
309
Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, XVIII, 4 (50).
ruína da teologia.310 De fato, como tal comércio corresponderia à redução do
sobrenatural, que funda a teologia, no natural, que apenas a auxilia, tal indústria
seria a última traição a ela, seria mesmo a negação dos seus princípios e o
túmulo certo da sua cientificidade, o beijo de Judas.311 Por isso, é preciso ter
sempre em mente, ao fazer ciência teológica, a máxima penidiana: “Das
premissas temos fé, da conclusão temos ciência teológica.”312 Isto é, temos fé nos
dogmas e a atividade da teologia não visa substituí-la, mas, antes, depende dela
para existir. Sempre permanecerá verdade a sentença definitiva de Santo Tomás:
“(...) o que é de fé, deve-se crer, não por causa da razão humana, mas por causa
da autoridade divina.”313
Almejar eliminar os mistérios, talvez mais do que negá-los
explicitamente, equivaleria a tentar racionalizá-los, o que seria, sem jaça,
suprimi-los. Ora, isto teria por conseqüência imediata, o aniquilamento da sua
natureza sobrenatural e da própria teologia. Por isso, a ciência teológica não
busca proporcionar-nos uma demonstração exclusivamente racional do dogma.
E não visando, portanto, nos dar uma ciência do dogma – unívoca à ciência
aristotélica – onde as conclusões se reduzem aos seus princípios de forma
evidente e necessária, a teologia, nas suas conclusões, diferentemente de nos
seus princípios - não pode ser dogmática enquanto tal314. E isto, exatamente por
310
Idem. Suma Teológica. I, 1, 8, C: “No entanto, a doutrina sagrada utiliza também a razão,
não para provar a fé, o que lhe tiraria o mérito, mas para iluminar alguns outros pontos que
esta doutrina ensina.” (O itálico é nosso).
311
Neste sentido, adverte-nos Penido: Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação Teológica I: O
Mistério da Igreja. p. 39: “Erro capital seria imaginar que a fé representa tão só o ponto de
partida a ser transporto; atingida por ela a existência dos mistérios, poderíamos racionalizá-los
plenamente. Não, a fé é a fonte perene donde a teologia haure a vida; seus primeiros princípios
são artigos de fé e sua guia constante é ainda a fé.”
312
Idem. Ibidem. p. 41.
313
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 2, 10, C: “Ita credere debet homo ea quae sunt
fidei non propter rationem humanam, sed propter auctoritatem divinam.” (O itálico é nosso).
314
É dogmática, enquanto trata de verdades dogmáticas, enquanto parte de verdades
dogmáticas, e não enquanto possua conclusões também dogmáticas e intransferíveis, como se
tais conclusões fossem o mesmo dogma, agora não já crido, mas sabido.
partir de um dogma revelado e não poder, desta sorte, traduzi-lo em fórmulas
racionais apodíticas, redutíveis aos primeiros princípios da razão. 315 E não é só.
Nem sequer o esgota, compreendendo-o perfeitamente, quando tenta explicá-lo
do ponto de vista da revelação. A Revelação, quando aceita pela fé, não é algo
que se torna desde então acessível, passível de conhecimento natural. Ela
continua sobrenatural, continua ultrapassando todas as nossas categorias. Por
mais que raciocinemos, jamais chegaremos a alcançá-la pela razão. Ainda
quando partimos dela, ainda quando permanecemos fiéis aos seus princípios de
entendimento, nenhuma reflexão sobre ela irá lograr desvendar-nos o seu
mistério e dar-nos à clareza da visão.316 As verdades da revelação, portanto,
permanecerão sempre tendo que ser aceitas, nesta vida, por revelação. Destarte,
uma conclusão teológica enquanto tal, por mais perspicaz que seja, jamais será
uma verdade revelada por Deus. É, antes, um esforço da razão. E, por isso
mesmo, “A conclusão teológica não é verdade de fé, porque não é imediatamente
revelada (...)”317.
Ora bem, isto também não significa que o esforço teológico seja
inócuo! Ele nos dará ao menos o alento de perceber, a articulação entre uma
verdade de fé e outra verdade fé ou entre uma verdade de fé e uma verdade
315
Penido é assaz severo com esta forma de teologia, a saber, aquela que se envereda na
tentativa inócua de tentar demonstrar os mistérios, a chama não de teologia, mas “teologismo”:
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 240: “A
tal ‘teologismo’ oporemos sempre que a razão nunca poderá substituir a fé, nossos argumentos
não fazem desaparecer a crença, visto não alcançarem a evidência, uma vez que não é possível
reduzi-lo aos primeiros princípios claramente percebidos pela inteligência.”
316
A respeito das verdades de fé, sentencia Tomás: Tomás de Aquino. Suma Contra os
Gentios. I, VIII, 2 (48a): “ (...) fidei veritatem, quae solum videntibus divinam substantiam
potest esse notissima (...)”. (A verdade da fé, que só pode ser evidentíssima para quem
contempla a substância divina).
317
Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 41. Porém,
a verdade teológica pode vir a se tornar uma verdade de fé. Entretanto, nunca pela palavra do
teólogo e não enquanto verdade teológica, mas pela ascendência à instância do Magistério, se
ele chegar a declarar, infalivelmente, que tal conclusão está contida na Revelação. Mas isso é
uma outra história...
natural, pois não há contradição entre elas. Com efeito, assim como a ciência
obtida pelos primeiros princípios da razão já está, implicitamente, contida neles,
assim, as primeiríssimas verdades de fé já contém todas as demais. É por isso
que podemos – nunca independentemente da Revelação – descobrir o nexo
existentes entre elas; isto porque, de alguma forma, todas as verdades de fé são
redutíveis e ligadas entre si:
318
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 1, 7, C.
319
Claude Geffré. Op. Cit. p. 132. Sobre a missão da teologia, declina Penido com
brilhantismo: Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p.
40 e 41: “Primeiro, desvendar a ordem essencial, constitutiva do dado revelado, saber os nexos
que prendem os mistérios entre si, de maneira a iluminá-los uns pelos outros, o que se faz
descobrindo as raízes deste aqui naquele outro mais fundamental.” (O itálico é nosso).
Mas esta certa forma de demonstração, ou seja, tornar claros os
vínculos entre as verdades de fé, não são demonstrações senão para aqueles
crêem nos princípios da fé. Portanto, não sendo estes princípios, de forma
alguma redutíveis à razão, não podem ser aceitos, em virtude da sua evidência,
senão por aqueles crêem. Destarte, a teologia aparece como uma ciência
indefectível somente para aqueles já crêem. Aos olhos dos que não crêem, ela
estará sempre abaixo de qualquer das ciências humanas:
E nesta missão quanto não nos será o útil o instrumental teórico dos
antigos, os elementos das ciências filosóficas. Um exemplo? Voltemos à uma
citação que fizemos mais acima. Quando Santo Tomás, na Suma Teológica, abre
320
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 1, 5, ad 2.
321
Idem. Ibidem
a discussão se se é razoável crer naquilo que ultrapassa o nosso entendimento,
ela não impõe aos seus leitores, nenhuma citação de autoridade teológica num
primeiro momento, nem recorre a nenhum dos títulos de glória da teologia –
ciência altíssima, sabedoria suprema - mas cita Aristóteles – ao qual todos
aceitam – e sua famosa sentença: para aprender é necessário crer: “Todo aquele
que aprende assim, é necessário que creia, para alcançar a ciência perfeita, como
diz o Filósofo: ‘para compreender é necessário crer.’”322 Só assim, com um
diálogo a partir do que todos aceitam, isto é, a partir da razão, a teologia
conseguirá conquistar o lugar que, de fato, é só seu e isto, sem perder,
evidentemente, a sua identidade, dentro do quadro epistemológico das ciências
humanas. Agora, se insistir em se confundir com os seus princípios, se se julgar
salvadora, se quiser obrigar todos à mística, se esperar, enfim, ser o que não é,
permanecerá, por certo, sendo tudo o que é, mas o será sozinha e isolada! A
teologia não salva ninguém e a pretensão de alguns de querer fazer dela uma
doutrina salvadora, longe de preservá-la, só a têm tornado mais solitária e
ignorada. No dizer de Penido, Santo Tomás quebra tabus – inclusive culturais –
quando coloca à teologia, na necessidade de “descer” ao “tribunal da razão” –
logo na primeira questão da Suma de Teologia – para mostrar que, embora acima
da razão, a teologia não está contra ela.323 Em outras palavras, em Tomás não é
322
Idem. Ibidem. II-II, 2, 3, C.
323
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teológica Dogmática. p. 207:
Eis o paradigma social da época, que migra para a construção das ciências e é, finalmente
quebrado pelo Anjo das Escolas: “A fisionomia intelectual da época corresponde à fisionomia
social: o que o servo é para seu senhor, a filosofia o é para a teologia: uma “ancilla” e uma serva
à qual não assiste o direito de trabalhar para si: uma escrava que, como a do Salmo, não pode
levantar os olhos das mãos de sua senhora (...).”Dando-nos uma teologia mais “humilde”,
embora sem deixar de ser o que ela é, Santo Tomás se coloca num ponto de vista tão
privilegiado, que fica difícil ainda dizer, com alguns, que sua teologia seja a theologia gloriae
por excelência em oposição à theologia crucis. O aspecto de diálogo, sempre possível numa
teologia como a de Santo Tomás, a torna, sem dúvida, uma teologia da glória, mas não no
sentido “feudal” deste termo e sim no seu sentido joanino, onde a “glória” começa pela
“humilhação”: Jo 8, 27: “Quanto tiverdes elevado o Filho do Homem, então sabereis que EU,
Eu sou (...)”; Jo 12, 32: “(...) e, quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim.”
somente a filosofia que “deve” explicações à teologia, mas esta também deve
explicações à filosofia. Não é somente a filosofia que é aperfeiçoada pela
teologia, mas, o contrário também não deixa de ser verdade. O que Lima Vaz
estende a toda civilização medieval, parece se aplicar por antonomásia, neste
sentido, ao pensamento de Santo Tomás de Aquino:
324
Lima Vaz. Escritos de Filosofia I: Problemas de Fronteira. p. 82. Em seguida, ainda
adota o seguinte epíteto para conceituar a civilização medieval: Idem. Op. Cit. p. 83: “Podemos
defini-la como civilização da fé inquieta.” (O itálico é nosso).
325
Odilão Moura. Introdução à Suma Contra os Gentios. p. 10.
5.7) A Ordem Teológica: Deus Como Sujeito da Teologia
326
Claude Geffré. Op. Cit. p. 131. Jo 17, 3: “Ora, a vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti,
o único Deus verdadeiro e aquele que enviaste, Jesus Cristo.”
327
Jo 5, 19: “Em verdade, em verdade vos digo: o Filho, por si mesmo, nada pode fazer mas só
aquilo que vê o Pai fazer (...)”. Jo 5, 30: “Por mim mesmo, nada posso fazer.” Jo 6. 38: “(...)
pois desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou.”
328
Jo 7, 16: “Minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou.” Jo 3, 34: “Com efeito,
aquele Deus enviou fala as palavras de Deus (...)”.
329
Jo 17, 6: “Manifestei teu nome aos homens que do mundo me deste.”; Jo 17, 26: “Eu lhes dei
a conhecer o teu nome e lhes darei a conhecê-lo (...)”.
330
Nosso Senhor não se cansa de repetir, que não veio fazer a sua vontade, nem cumprir uma
obra sua: Jo 4, 34: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua
enquanto Deus.331 Neste sentido – outros diversos podem ser buscados... –
certamente a teologia de Tomás conterá uma das cristologias mais bem
elaboradas e criteriosas do seu tempo, mas ela não será cristocêntrica porque é
teocêntrica:
obra.” Jo 8, 28: “Quando tiverdes elevado o Filho do Homem, então sabereis que Eu, Eu sou, e
nada faço por mim mesmo, mas falo como me ensinou o Pai.” E outras passagens poderiam ser
citadas em barda.
331
Faz suas, logo no princípio da Contra os Gentios, as formosíssimas palavras de Santo
Hilário: Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, II, 2 (9): “Por isso, sirvo-me aqui das
palavras de Hilário: ‘Estou consciente de que o principal ofício de minha vida é referente a
Deus, de modo que toda palavra minha e todos os meus sentidos dele falem (I Sobre a Trindade
37; PL 10, 48D).”
332
Claude Geffré. Op. Cit. p. 131. Marie-Josep Nicolas. Op. Cit. p. 37: “Tomás teria estranhado
ver seu ‘teocentrismo’ oposto a um cristocentrismo considerado mais cristão. Sua própria
cristologia é teocêntrica.”
333
Idem. Ibidem. I, 1, 7, C: “Alguns, no entanto, considerando as coisas de que trata esta
ciência, e não a razão sob a qual as examina, indicaram seu sujeito de modo diferente. Falam de
‘coisas’ e de ‘sinais’; ou ‘ das obras reparação’, ou do ‘Cristo total’, isto é, cabeça e membros.
Tudo isso é tratado nesta ciência, mas sempre com relação a Deus.”
doutrina sagrada, tudo é tratado sob a razão de Deus (...)334. Geffré resume muito
bem este pensamento, nas seguintes palavras.
Sto. Tomás sabe muito bem que Deus não é o único objeto da
teologia. Esta última abarca um enorme domínio: fala do mundo
criado, de Jesus de Nazaré, da Igreja, dos sacramentos, do
homem e da história... A teologia se interessa por tudo, mas,
fazendo de Deus o sujeito da teologia, Sto. Tomás quer dizer que
o ponto de vista formal pelo qual a doutrina sagrada considera
todas estas coisas, sejam elas conhecidas por revelação ou mesmo
pela razão, é a ‘razão de Deus’ (...).335
334
Idem. Ibidem. I, 1, 7, ad 2: “Deve-se afirmar que tudo o mais que esta doutrina sagrada trata
está compreendido no próprio Deus; não como partes, espécies ou acidentes, mas como a Ele se
ordenando de algum modo.”
335
Claude Geffré. Op. Cit. p. 130 e 131.
336
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 3, C. (O itálico é nosso).
Ora bem, como é o objeto formal – e não o material – que dá a
unidade a uma ciência337 e o objeto formal da fé, como da teologia, é a
Revelação de Deus que, por sua vez, versa sobre Deus enquanto Deus. Destarte,
muito embora existam um sem conta de objetos materiais da própria teologia, ela
será uma ciência una, pois só tem um objeto formal à luz do qual, desta feita,
estuda todas as outras coisas: Deus:
340
Idem. Ibidem. I, 14, 5, C. Idem. Suma Contra os Gentios. I, XLIX, 4 (415): “Resumindo,
pois, a conclusão deste e do capítulo anterior, vemos que Deus conhece primeira e propriamente
a si mesmo e às outras coisas; estas, porém, enquanto vistas na essência divina.”
341
Idem. Suma Teológica. I, 2.
Para cumprir este plano, Tomás adota, num primeiro momento, o
esquema neoplatônico exitus e reditus. Em suas obras clássicas de teologia,
aborda as questões na seguinte ordem: Deus em si mesmo, depois a processão
das criaturas de Deus e, finalmente, o retorno delas a Deus. Ele o faz mais
claramente, pelo viés da teodicéia, na Suma Contra os Gentios342, e a estende,
para toda a teologia, na Suma Teológica. Na Suma de Teologia, para englobar o
retorno de todas as coisas a Deus, ele privilegia a volta da criatura racional, cujo
drama de retorno ao criador se desenrola na história, e alcança o seu auge em
Cristo. Indica-nos, pois, com precisão, esta ampliação da teologia tomásica, para
o horizonte histórico mediante a cristologia, o Prof. Carlos Arthur:
342
Idem. Suma Contra os Gentios. I, IX, 7 (57): “Por conseguinte, sendo nosso intento buscar
por via da razão as verdades referentes a Deus que a razão pode investigar, apresenta-se-nos em
primeiro lugar a consideração das verdades que convém a Deus em si mesmo (Tema do 1. I);
em seguida, a processão das criaturas vindas de Deus (Tema do l. II); em terceiro lugar, a
ordenação das criaturas para Deus, enquanto nele têm seu fim (Tema do l.III).”
343
Carlos Arthur R. Nascimento. Op. Cit. p. 61.
ciência de Sto. Tomás abre-se para a história, para os fatos
contingentes, na medida em que se organiza segundo o esquema
neoplatônico da processão e do retorno: exitus e retorno.344
344
Claude Geffré. Op. Cit. p. 130.
345
Sim, porque no neoplatonismo convencional, é impensável que Uno se faça carne e irrompa
na história!
346
Jean Pierre Torrell. O Mistério da Encarnação. p. 53.
salvação não se dá sem Cristo, tal história não deixa de ser, neste sentido,
cristocêntrica. Sobre a Encarnação, diz Santo Tomás: “Isto não é de se estranhar,
porque a humanidade de Cristo é o caminho pelo qual se vai à divindade.”347
Exalta, pois, a humanidade de Cristo, como meio pelo qual e no qual somos
salvos:
347
Tomás de Aquino. Compêndio de Teologia. I, II, 2.
348
Idem. Suma Teológica. III, Prólogo.
349
Jean Pierre Torrell. Op. Cit. p. 53.
350
Claude Geffré. Op. Cit. p. 130.
Pode-se levantar ainda uma última objeção, a saber, a seguinte: sendo
o objeto formal da teologia Deus enquanto Deus e, sendo Deus, essencialmente
Trindade, a adoção do esquema neoplatônico do exitus/reditus e da perspectiva
cristíca, não seria um abandono da vida trinitária de Deus, por assumir uma
postura histórica? De todo. A história da salvação é a história da revelação da
Trindade na história. A Encarnação de Cristo, enviado pelo Pai, que se deu por
obra do Espírito Santo, é análoga à processão do Verbo, desde toda a
eternidade. De fato, a salvação de Cristo outra coisa não é, senão a inclusão dos
homens, na vida bem-aventurada de Deus. Com efeito, Cristo irrompe na
história dos homens, se fazendo homem - mas sem deixar de ser Deus - e volta
para o Pai, mas não sem levar consigo a sua própria humanidade e a humanidade
daqueles que crêem nele.351 Resume Joseph Nicolas, com exação, esta
cristianização do neoplatonismo da Suma. Minto, para Nicolas trata-se, antes, de
uma tentativa nossa a de dar uma versão neoplatônica, para uma inspiração que
sempre foi profundamente bíblico-joanina em Santo Tomás:
351
Tomás de Aquino. Compêndio de Teologia. I, 1: “O Verbo Eterno do Pai, que pela sua
imensidade abrange todas as coisas, para revocar à elevação da glória divina o homem
diminuído pelo pecado, quis fazer-se limitado, assumindo a nossa limitação, não renunciando,
porém, à sua majestade.”
352
Marie Joseph Nicolas. Introdução à Suma Teológica. p. 37.
O evento Cristo se apresenta assim, como uma ponte entre a história
humana e a eternidade divina. Longe de ser uma dissolução da vida da Trindade
na economia dos homens, a manifestação de Cristo é, ao contrário, a elevação
dos homens à vida íntima de Deus. Dentre os frutos da Encarnação para nós
homens, diz Frei Tomás:
353
Idem. Suma Teológica. III, 1 2, C. (O itálico é nosso)
Safa-se nesta ordem também, a teologia como ciência. De fato, toda
ciência se pauta em conhecimentos certos e necessários. Ora bem, como falar de
conhecimentos certos e necessários, quando estamos diante de acontecimentos
tão contingentes, como os são os da história? Entretanto, vimos como as
criaturas – sobretudo a racional – que é a protagonista da história, é criatura, ou
seja, é criada por Deus e, enquanto idéia, subsiste na una e imutável essência
divina. Sem podermos nos delongar no tema da Providência, apenas
apontaremos para algumas notas. Deus governa a história, esta não lhe escapa;
ele a rege. Os ditames dos seus designos eternos, estão, antes de tudo,
intrinsecamente na própria natureza das coisas. Concedeu, pois, a elas, o bem,
não somente quanto à sua substância, mas também quanto ao seu fim: “Nas
coisas encontra-se o bem, não só com respeito à substância delas, mas também
com respeito à ordenação para o fim (...).”354 E elas agem, conforme são.
Vimos ainda que a própria trama da história, isto é, as intervenções de
Deus nela, apenas reproduzem e, de certa maneira, imitam, o desenrolar da
própria vida íntima do Deus trino. Deus cumpre na história, o que lhe aprouve
desde toda eternidade. Por isso, a história, não obstante a sua contingência
inegável, não está abandonada a um acaso deístico, mas é regida pela
Providência. E há mais. Segundo o esquema que acabamos de propor mais
acima, a história caminha rumo ao eterno, ao trans-histórico. É isto, pois, que
torna possível, uma ciência teológica e histórica ao mesmo tempo, partindo do
pressuposto que esta teologia saberá abstrair e distinguir, na história, os traços
de uma salvação que se opera e que se desata no plano histórico, mas cujo fim
será trans-histórico. Como a direção da história está em Deus como em seu
princípio, e se concluirá também nele, como em seu fim, a inteligibilidade desta
mesma história ficará indecifrável e incompreensível se não nos remetermos ao
eterno. À resenha de Claude Geffré, na sua abordagem sobre o discurso da Suma
Teológica, só nos resta ceder à palavra:
354
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 22, 1, C:
A construção rigorosa de que são testemunho todas as partes da
Suma tem por objetivo mostrar como as intervenções livres e
históricas de Deus não estão em contradição com suas
propriedades mais necessárias, e como somente um além da
história, o mistério eterno de Deus, nos pode propiciar a
inteligibilidade da história.355
359
Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. IV, I, 5 (3343b): “Secunda es prout divina
veritas, intellectum humanum excendens, per modum revelationis, sed quasi sermone (sermão,
discurso) prolata (proferir) ad credentum (para ser crida).” (Os itálicos e os parênteses são
nossos). Não é a troco de nada que Tomás pertencia à Ordem os Frades Pregadores! Mais
abaixo, ele retorna o tema da necessidade da pregação, e chega a citar São Paulo: “Como
também o diz o Apóstolo: Conhecemos, agora, em parte (I Co, 3, 9). O que, após, acrescenta: E
se apenas ouvimos uma pequena gota das suas palavras, refere-se ao segundo conhecimento,
enquanto as coisas divinas nos são reveladas para serem criadas como por meio de palavras.
Pois diz o Apóstolo: A fé vem do ouvido, e o que é ouvido, da palavra de Deus (Rm 10, 17).”
confessá-las, vocalizando-as nominalmente.”360 Qual não será então, para que a
profissão de fé do fiel caia sob o que é de fé, a necessidade de se descobrir o que
é, de fato e de direito, objeto de fé divina nas Sagradas Escrituras?
Agora bem, que as Sagradas Letras é o lugar onde encontramos, por
escrito, as palavras proferidas por Deus, já o sabemos. Ela é, como também
fartamente temos repetido, o fundamento da Teologia que, como vimos, se funda
na Revelação. Ora bem, como já insinuamos acima, a Bíblia não contém somente
a Revelação divina. Esta é, de fato, o seu objeto formal. Mas nela há também
diversos objetos alheios, oriundos da cultura, do próprio estilo literário de cada
tempo, etc. E, no entanto, é exatamente nestas peças todas que se encontra, como
que incrustada, a palavra de Deus. Como distinguir então, na Bíblia, a Revelação
de Deus? Onde se encontra a Palavra de Deus, infalivelmente transmitida pela
Bíblia, sob os auspícios daqueles homens inspirados? Como destrinchar e
discriminar onde se acha aquilo que é de autoria de Deus nas Sagradas Letras?
Eis a missão peremptória e por antonomásia do Magistério da Igreja, pois aqui
só ele pode dar a última palavra. Entretanto, tal atividade também pode ser
exercida pelo teólogo que perscruta as Sagradas Letras. E é no decurso desta
atividade, justamente, que entra em relevância o aspecto histórico, pois o
absoluto Deus se dignou revelar-se aos homens na história. É, pois, procurando
então o sentido literal da Bíblia que, diga-se de passagem, para Santo Tomás,
coincide com o seu sentido histórico, que encontraremos o seu objeto formal,
isto é, o dado revelado inteiramente isento de falsidade. Todos os demais
sentidos da Escritura se baseiam nele e dele não podem prescindir.
Diferentemente das demais ciências, onde o significado último termina
nas coisas, nas Escrituras – cujo autor, já temos visto, é Deus – as palavras
significam coisas que, por sua vez, significam também algo: “(...) hoc habet
proprium ista sciencia, quod ipsae res significatae per voces, etiam significant
360
Idem. I Sent. 22, I. In: MONDIN, Battista. Quem é Deus? Elementos de Teologia
Filosófica. Trad. José Maria de Almeida. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 266. “(...) ad
salutem consequendam non solum est necessaria fides de veritatis rerum, se d etiam vocalis
confessio per nomina." .
aliquid (...)”361. A Bíblia ultrapassa a Bíblia. A primeira significação, ou seja,
aquela pela qual as coisas são designadas pela palavra, indicam o sentido literal
ou histórico do texto: “Illa ergo prima significatio, qua voces significam res
pertinent ad primum sensum, qui est sensus historicus vel litteralis.”362 À este
primeiro sentido, no entanto, no qual as palavras significam as coisas, sucede
outro – que chamamos espiritual – na qual as coisas mesmas significam algo.
Entretanto, este sentido espiritual está fundado, pois, no literal e o supõe:
361
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 10, C: “Assim, em todas as ciências as palavras são
portadoras de significação, mas a Escritura Sagrada tem como próprio que as mesmas coisas
significadas pelas palavras significam algo por sua vez.” (Os itálicos são nossos).
362
Idem. Ibidem: “A primeira significação, segundo a qual as palavras designam certas coisas,
corresponde ao primeiro sentido, que é o sentido histórico ou literal.” (Os itálicos são nossos).
363
Idem. Ibidem.
364
Idem. Ibidem: “Por conseguinte, quando as realidades da lei antiga significam as da lei nova,
tem o sentido alegórico (...)”.(Os itálicos são nossos).
365
Idem. Ibidem: (...) quando as coisas realizadas no Cristo, ou aquilo que Cristo representa, são
o sinal do que devemos fazer, temos o sentido moral (...)”. (Os itálicos são nossos).
realidade relativa à glória futura, temos o sentido anagógico: “prout vero
significant ea quae sunt in aeterna gloria, é sensus anagogicus.”366
Santo Tomás insiste, no entanto, que é no sentido literal que se
encontra o verdadeiro sentido que o autor do texto intenta dar a ele. Ora, o autor
da Sagrada Escritura é Deus: “Quia vero sensus literalis est, quem auctor
intendit: auctor autem sacrae Scripturae Deus est (...)”367. Fica, pois, patente que
é no sentido literal, antes de tudo, que devemos buscar a Palavra de Deus, na
qual nunca poderá subsistir falsidade: “In quo patet quod patet sensui litterali
sacrae Scripturae nunquam potest subesse falsum.”368 Daí que, somente partindo
do sentido literal é que se pode argumentar em teologia, já que a teologia se
funda na fé e a fé, por sua vez, no que foi revelado por Deus e o que foi revelado
por Deus, encontra-se, afinal, no significado histórico-literal:
Agora bem, se só o sentido literal nos coloca em contato com o que foi
querido imediatamente por Deus, como fazer para chegar a ele se, na própria
Escritura, há muitas passagens espirituais (alegórica, moral e anagógica) cujo
sentido literal fica obscurecido? Isso não comprometeria ou dificultaria o nosso
juízo a respeito do que é de fé? Afirma Santo Tomás que não! Argumenta que
tudo o que é de fé divina, deve encontrar-se em algum lugar da Escritura
Sagrada, no seu sentido literal:
366
Idem. Ibidem: “(...) enfim, quando estas mesmas coisas significam o que existe na glória
eterna, temos o sentido anagógico.” (Os itálicos são nossos).
367
Idem. Ibidem: “Como, por outro lado, o sentido literal é aquele que o autor quer significar, e
o autor da Escritura Sagrada é Deus (...)”.
368
Idem. Ibidem. I, 1, 10, ad 3: “Isto deixa bem claro que, no sentido literal da Escritura, nunca
pode haver falsidade.”
369
Idem. Ibidem. I, 1, 10, ad.1. (O itálico é nosso).
Nada, no entanto, se perderá da Escritura Sagrada, porque nada
do que é necessário à fé está contido no sentido espiritual que a
Sagrada Escritura não o refira explicitamente em alguma parte,
em sentido literal.370
370
Idem. Ibidem.
371
Desde já advertimos que nem todo sentido literal é metafórico, no sentido de que o fato
narrado por ele seja uma simples metáfora. Tratamos aqui do problema do sentido literal-
metafórico, porque foi esta questão que prendeu a atenção de Tomás. Entretanto, isto não
equivale a dizer, de maneira alguma, que o sentido literal se reduza somente ao metafórico! Por
exemplo, quando as Escrituras narram os milagres de Cristo, tais milagres devem ser
entendidos de forma literal-histórica. No entanto, observemos bem, isto não significa que
devamos ver neste texto apenas a história de um milagre, mas antes que, de certa forma,
ultrapassando o sentido literal-histórico, consigamos ver nele um sinal da divindade de Cristo
ou algum outro sentido espiritual. Cunhamos então, para melhor explicar este interregno, uma
tríplice distinção. Primeiro, observamos que existe um sentido literal-metafórico, que narra a
história de forma metafórica. Segundo, há um sentido literal-histórico que, além de ser
histórico por ser literal, narra de forma histórica um fato histórico. O próprio Santo Tomás
alude a este aspecto, quando fala que o sentido literal pode ser histórico, também quanto ao
modo com que narra: Idem. Ibidem. I, 1, 10, ad 2: “Existe história (no sentido literal), explica
Agostinho, quando algo é exposto por si mesmo.” (O parêntese é nosso). No entanto, mesmo
quando não há metáfora no sentido literal, este precisa ser completado pelo sentido espiritual.
Por exemplo, quem pára no milagre de Cristo, vê em Cristo um simples “taumaturgo”. Quem,
ao contrário, sem negar o milagre, o interpreta comum um sinal, vê nele uma manifestação da
privilegia o sentido literal, qual seja, aquele que significa as coisas significadas
pelas palavras. Não o faz, no sentido de esgotar o divino nas coisas corporais
sugeridas, nem tampouco com a intenção de olvidar as realidades espirituais,
sinais das coisas significadas pelas palavras, e sim porque acredita que convinha
que Deus nos falasse por meio de imagens sensíveis, visto que estas comportam o
modo pelo qual naturalmente nos elevamos às coisas espirituais. Não tem a
intenção, portanto, Santo Tomás, de parar no literal, mas de, começando por ele
– como se começa todos os nossos conhecimentos pelos sentidos – elevar-se ao
espiritual. Como o conhecimento sensível fornece a matéria para o inteligível,
assim a metáfora, que se encontra na coisa significada pela palavra, constitui a
gênese de toda interpretação espiritual legítima:
divindade de Cristo ou algum outro sentido espiritual. A terceira e última distinção que damos
ao sentido literal, é o de literal-espiritual. Com efeito, em algumas passagens da Escritura,
estes dois sentidos se encontram tão presos um ao outro, que é impossível sequer distingui-los
nitidamente. Como, por exemplo, quando se afirma positivamente a divindade de Cristo. No
entanto, ainda aqui isto não significa que, em nenhum destes casos, se possa prescindir de um
conhecimento espiritual mais profundo. Por exemplo, a própria divindade de Cristo. De fato, ela
também pode ser entendida de forma humana, basta que a concebamos, por exemplo, como os
gregos entendiam os seus deuses! Por isso, há que sempre conjugar o sentido literal com o
espiritual. Após termos forjado estas distinções, tão-somente para evitar mal-entendidos,
voltemos ao assunto que nos cerca. De fato, não pretendemos escrever um tratado sobre o
sentido literal ou de exegese, mas apenas destacar a importância da linguagem e da história
para na teologia do aquinatense.
372
Idem. Ibidem. I, 1, 9, C.
Ousaríamos dizer que não existe separação, mas apenas distinção,
entre o sentido literal e o espiritual. Atrevemos ainda a dizer que, o sentido
literal, na acepção profunda deste termo, entendido como o significado que
realmente Deus quis dizer, é o sentido espiritual, pressuposto e fundado no
sentido literal. Desta forma, o sentido espiritual se reduz ao literal: “cum omnes
sensus fundentur super unum, scilicet litteralem.”373 Não há, portanto, verdadeiro
sentido literal, enquanto não se ultrapassa a metáfora ou os demais recursos
literários utilizados no período. E, tampouco, há verdadeiro sentido espiritual,
quando se prescinde da metáfora ou da narrativa contidos na literalidade.
Na verdade, todo sentido literal, por mais enxuto que seja, deixará
sempre margem para que alguém o interprete de forma “antropomórfica”. Por
conseguinte, será sempre necessário elevar-se, partindo dele, para um sentido
espiritual. O contrário também é verdadeiro, ou seja, toda interpretação
espiritual, que escapasse à base literal, não traria nenhum sentido espiritual, mas
apenas quimeras, fantasias! E, como o sentido literal é o histórico, não
encontramos o verdadeiro sentido histórico, se não no sentido espiritual e, vice-
versa, não atingiremos o autêntico sentido espiritual, se não nos apoiarmos no
sentido histórico. Assim, a divergência entre espiritual e histórico é também aqui
superada.
Por que revestir o sentido literal de metáforas? Já respondemos,
quando argumentamos que costumamos nos elevar mais facilmente às coisas
inteligíveis pelas sensíveis. Assim, sobretudo os mais simples, foram
beneficiados, pois estes não conseguiriam elevar-se ao espiritual sem o auxílio
das coisas sensíveis.374 Além disso, a obscuridade de certas passagem literais, se
prestam a inúmeros outros serviços: seja estimulando os estudiosos à pesquisa,
373
Idem. Ibidem. I, 1, 10, C.
374
Idem. Ibidem: “(...) é-lhe conveniente apresentar as realidades espirituais mediante imagens
corporais, a fim de que, as pessoas simples as compreendam; elas que não estão aptas a
apreender por si mesmas as realidades inteligíveis.” (O itálico é nosso).
seja preservando-se das zombeteiras dos infiéis, que querem conhecer as coisas
sagradas apenas para aviltá-las.375
Santo Tomás ainda apresenta uma última razão, muito sugestiva e
esclarecedora pela qual Deus nos fala por metáforas. As metáforas são usadas
adequadamente, porque expressam melhor uma verdade basilar, tanto em
teodicéia quanto em teologia: o que conhecemos de Deus nesta vida, diz
respeito, antes de qualquer coisa, mais ao que Ele não é do que ao que Ele é:
“(...) esta maneira de agir se encontra em maior conformidade com o
conhecimento que alcançamos de Deus nesta vida, porque de Deus abemos mais
o que ele não é do que o que ele é.”376 Para nos educar nesta verdade, Deus se
valeu, por vezes, das coisas mais vis para se revelar a nós. De fato, optou por
revelar-se pelas coisas menos dignas, porque se se revelasse pelas mais dignas,
poderíamos ser induzidos ao erro de pensar que tais coisas, exatamente por
serem mais dignas, se refeririam a ele de forma mais própria, a ponto de nos
dizer, de forma unívoca, o que Ele é.377 Para nos ensinar que isto não é possível,
e nos livrar de tal presunção, Deus se revelou por meio daquelas criaturas que
são menos semelhantes a ele: “Assim, as semelhanças mais distantes de Deus nos
levam a melhor compreender que Ele está acima de tudo o que podemos dizer ou
375
Idem. Ibidem. I, 1, 9, ad 2: “Além do mais, a obscuridade das próprias imagens é útil, seja
para exercitar os estudiosos, seja para evitar as zombarias dos infiéis, a respeito dos quais diz o
Evangelho de Mateus: ‘Não deis aos cães o que é sagrado’.” Idem. I Sent. d.4, q. 3, a. 1. In:
PENIDO, Maurílio Teixeira Leite. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. Trad.
Dinarte Duarte Passos. Rev. Maurílio Teixeira Leite Penido. Rio de Janeiro: Vozes, 1946. p.
108: “(...) a divina eminência é manifesta mais expressivamente pelas realidades que com maior
evidência lhe repugnam. Convinha, pois, designar o divino pelo corpóreo.”
376
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 9, ad 3.
377
Idem. Ibidem: “Deve-se dizer que Dionísio explica por que nas Escrituras é preferível que as
coisas divinas sejam apresentadas sob a figura dos corpos vis, e não dos mais nobres. Dá três
razões para isso. Em primeiro lugar, desse modo afasta-se mais o espírito humano do erro. Fica
claro que estas coisas, não se aplicam com propriedade às coisas divinas: o que poderia
provocar dúvidas se estas fossem apresentadas sob a figura dos corpos mais nobres, sobretudo
para os seres humanos que nada imaginam de mais do que o mundo corporal.” (O itálico é
nosso).
pensar a seu respeito.”378 É por isso que, por mais explicito e perfeito que fosse o
sentido literal379, ele nunca deixaria de ser metafórico ou, no máximo, analogia
imprópria. Sempre reclamaria, portanto, um sentido espiritual que o
aperfeiçoasse ou um procedimento analógico que, purificando-o das
imperfeições próprias das criaturas, descobrisse nele, precisamente, o sentido
analógico que pudesse ser aplicado a Deus de forma menos imperfeita. Em
outras palavras, o sentido literal jamais pode ser desvinculado do espiritual,
como se dispensasse dele. Citando Dionísio, Santo Tomás chega a dizer que, o
próprio sentido literal, evoca, de certa forma, o espiritual. Ele mesmo nos leva a
ultrapassá-lo, desvencilhando-nos das suas limitações. Faz parte do dom da
Revelação, acatada pela fé, nos levar à reta compreensão do que ela nos diz.
Aliás, a própria dinâmica que envolve o ato de fé, reclama os dons de
inteligência e ciência, pelos quais adquirimos um entendimento correto do que é
o dado revelado:
378
Idem. Ibidem.
379
Idem. Ibidem. I, 1, 9, ad 2: “Eis por que o que é apresentado em determinado lugar da
Escritura sob metáforas é exposto mais explicitamente em outros lugares.”
380
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
entendam mais facilmente o conteúdo da fé, ora, enfim, para nos dizer que Deus
está muito acima de todas as nossas fórmulas:
(...) qual avó carinhosa balbucia com seus netinhos, e com eles
soletra as primeiras letras, a Bíblia ornamentou o altíssimo com a
longa série de nossas pseudo-perfeições, e teceu, em torno do
Onipotente, o véu multicor das Metáforas.383
381
Idem. Ibidem. I, 1, 9, ad 1. (O itálico é nosso).
382
Idem. Ibidem. II-II, 2, 3, C.
383
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 102 e
103. Para Tomás, arrisco dizer, Deus é o mais brando e o primeiro dos professores. É o
professor por excelência e a sua cândida pedagogia, nos faz pensar naqueles que querem impor
as verdades religiosas “goelas abaixo”... Naqueles que apresentam a sua teologia,
“transfigurando-a” em “sexo dos anjos”... Outra vez a sugestiva figura: Idem. Ibidem. p. 107:
“(...) deduzirei que ação da Providência tem algo do instinto materno.” Revelam-nos que a
verdadeira grandeza não está no “falar difícil”, mas em falar, de forma simples (não simplista!),
coisas “complicadíssimas.” Tomem cuidado, já dizia alguém (Pieper), pois o selo de todo
filósofo – e, acrescentaria, mais ainda do teólogo – é a simplicidade. A grandeza não está na
pressão, mas na persuasão paciente: Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, IX, 4 (56):
“(...) ut a manifestioribus ad minus manifesta (...)” (Partindo das coisas mais claras para as
menos claras). E ainda: Idem. Ibidem. IV, I, 1 (3337): “(...) também o homem, partindo das
coisas inferiores e subindo gradativamente, deve progredir no conhecimento de Deus (...)”. Não
Conclusão
cuide ninguém pensar, que estamos assinalando que o homem deve parar num antropomorfismo
“ingênuo” ou que se satisfaça com a analogia metafórica. O que afirmamos é que o homem,
em virtude da sua própria natureza, deve partir das coisas inferiores às superiores, do
imperfeito para o perfeito e isto, gradativamente: “(...) também o homem, partindo das coisas
inferiores e subindo gradativamente (gradatim), deve progredir no conhecimento de Deus (...)”.
(O parêntese é nosso).
384
Étienne Gilson. Deus e a Filosofia. p. 62. (O itálico é nosso).
6) Século XIII: 2º Movimento: A
União Entre Filosofia e Teologia
385
Idem. A Filosofia na Idade Média. p. 657. (O itálico é nosso).
386
Idem. Ibidem. p. 656.
387
Idem. Ibidem.
ambas procedem de Deus, pois tanto a fé como a natureza racional são obras da
sabedoria divina e, ipso facto, não podem entrar em desacordo:
388
Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, VII, 3 (44). (O itálico é nosso).
389
Idem. Comentário ao Tratado de Trindade de Boécio. I, 7. in: MONDIN, Battista. Curso
de Filosofia: Os Filósofos do Ocidente Vol 1. trad. Benôni Lemos. rev. João Bosco de Lavor
Medeiros. São Paulo: Paulus, 1982. p. 172.
Deus mesmo. Santo Tomás, já no primeiro capítulo da Suma Contra os Gentios,
fala dessa primeira verdade, que é a fonte de toda e qualquer verdade e que será
o objeto de estudo de toda a obra: “Não porém de qualquer verdade, mas daquela
verdade que é origem de toda verdade, isto é, a que pertence ao primeiro
princípio do ser e de todas as coisas.”390 Logo, neste sentido, filosofia e teologia
se reduzem e formam uma única sabedoria ou verdade total. Não obstante, é
necessário ponderar que, para os nossos espíritos finitos, tal acordo não é
perceptível, senão parcialmente. A respeito disso, assevera Gilson com exatidão:
393
Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, II, 4 (12). (Os itálicos são nossos).
394
Idem. Ibidem. I, VII, 2 (43). (Os itálicos são nossos).
395
Idem. Suma Teológica. I, 1, 8, ad 2. (O itálico é nosso).
verdade da ciência sagrada deve ser condenado como falso (...)”396. E ainda,
sobre o mesmo tema:
Destarte, se, por um lado, elas (filosofia e teologia) formam uma única
verdade total e, ipso facto, não podem se contradizer, por outro, não podemos –
dada a finitude do nosso intelecto – demonstrar pela razão, tudo aquilo que
cremos pela fé, para manter este acordo, resta-nos apenas a certeza de que,
quando uma conclusão filosófica contradisser a revelação, isto será um
indicativo inequívoco de que tal conclusão está errada. É o que conclui Gilson:
“Daí resulta que, todas as vezes que uma conclusão filosófica contradiz o dogma,
396
Idem. Suma Teológica. I, 1, 6, ad 2.
397
Idem. Ibidem. I, 1, 8, C.
398
Idem. Suma Contra os Gentios. II, V, 5 (876 a/b).
é um indício certeiro de que essa conclusão é falsa.”399 E assim é que a revelação
acaba exercendo sobre a filosofia, uma certa função reguladora, julgando os seus
resultados. No entanto – e que isto fique bem claro - caberá a revelação, exercer
este seu influxo sobre a filosofia, tão-somente extrinsecamente, isto é, apenas
apontando-lhe os eventuais erros. Por conseguinte, será sempre a razão que
deverá - uma vez consciente de seu erro – identificar-lhe a natureza e corrigir-se
a si mesma, por métodos que também lhe sejam próprios. A respeito disso,
Gilson é claro: “(...) Cabe à razão devidamente advertida criticar em seguida a si
mesma e encontrar o ponto em que se produziu seu erro.”400 E ainda: “Em
semelhante caso, a revelação só intervém para assinalar o erro, mas não é em seu
nome, e sim em nome unicamente da razão que o estabelecemos.”401 Desta
forma, a revelação, longe de roubar a autonomia da filosofia, antes aperfeiçoa-
lhe o funcionamento. Assinalando o seu erro, livra-a, sem intervir diretamente
nos seus métodos, nem ferir os seus princípios basilares, de uma corrupção no
seu trabalho. Desta maneira, consolida-se, também nesta ordem, o invicto
axioma medieval: gratia non tollat naturam, sed perficiat: “(...) a graça não
suprime a natureza mas a aperfeiçoa (...)”402.
Ademais, a própria filosofia pode prestar relevantes serviços à
teologia. Entretanto, ainda aqui, é sempre preservando o que lhe seja intrínseco,
ou seja, o seu caráter exclusivamente racional e sem querer, desta forma, esgotar
no seu plano racional, a mesma teologia, que a filosofia poderá servi-la. De fato,
poderá confirmar as verdades reveladas quanto ao modo, demonstrando-as
racionalmente. Santo Tomás mesmo alude a isso, quando, no capítulo IX, do
livro I da Suma Contra os Gentios, adverte que a primeira ordem de verdades
com relação às coisas divinas – referindo-se aqui, evidentemente, àquelas
verdades sobre Deus que são naturalmente cognoscíveis pela razão - serão
propostas, de forma demonstrativa, a fim de causar convencimento do
399
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 656.
400
Idem. Ibidem. p. 656.
401
Idem. Ibidem. p.657.
402
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 8, C.
adversário: “Deve proceder, na manifestação da primeira ordem de verdades, por
razões demonstrativas, pelas quais o adversário possa ser convencido.”403 No
entanto, a filosofia pode ainda prestar um outro valioso serviço para a doutrina
da fé. Com efeito, diante das verdades essencialmente reveladas pode a razão
também demonstrar, de modo indefectível, que quem quer que as contradiga, o
faz levianamente. Com efeito, mesmo não podendo demonstrar o mistério, pode-
se refutar a tese que a ele se opõe, provando-lhe que as suas razões, ou são
apenas prováveis ou são mesmo sofisticas. Declara Santo Tomás de Aquino:
403
Idem. Suma Contra os Gentios. I, IX, 2 (52a).
404
Idem. Ibidem. I, VII, 7 (47c). (O itálico é nosso).
405
Idem. Suma Teológica. I, 1, 5, ad 2. (Os parênteses e os itálicos são nossos).
406
Idem. Ibidem. I, 1, 6, ad 2.
de per si, de forma alguma precisa de uma nova iluminação sobrenatural – além
da do intelecto agente - para conhecer as verdades que são da sua ordem:
407
Idem. Ibidem. I-II, 109, 1, C. Em outro lugar, diz Santo Tomás, que mesmo em se tratando
das verdades naturais relativas a Deus, nós a podemos conhecer sem a graça. Daí que, quanto
ao conhecimento natural de Deus, ele é acessível a bons e maus: Idem. Ibidem. I, 12, 12, ad 3:
“Deve-se dizer que o conhecimento de Deus em sua essência, sendo um efeito da graça, só cabe
aos bons; porém ,o conhecimento de Deus pela razão natural pode caber tanto aos bons quanto
aos maus (...)”. (O itálico é nosso).
é que em Tomás há uma razão e uma filosofia como preambula
fidei.408
408
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 213. (O itálico é nosso).
409
Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, II, 3 e 4 ( 11 e 12). (O itálico é nosso).
410
Idem. Suma Teológica. I, 2, 2, ad 1.
Vê-se, pois, como é falsa a afirmação de alguns, de que era
indiferente para as verdades da fé o que se pensasse a respeito das
criaturas, contanto que se pensasse retamente sobre Deus, como
nos relata Agostinho. O erro acerca das criaturas redunda em
falsa idéia de Deus e, ao submeter as mentes humanas a
quaisquer outras coisas, afasta-as de Deus, para quem a fé as quer
encaminhar.411
411
Idem. Suma Contra os Gentios. II, III, 5 (869).
412
Giovanni Reale. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média. p. 554.
7) Históricos das Críticas à Noção de
Filosofia Cristã
413
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 494.
ciência teológica. E, ipso facto, por esta mesma teologia, consegue erguer como
que uma “ponte” alçada desta vez entre o elemento supra-racional da fé,
refolhado pelos instrumentos da razão e a própria filosofia racional. A teologia,
enquanto ciência, passar a ser então, o lugar e o ponto de encontro, onde Tomás
desenvolve a sua filosofia. A cientificidade da teologia é, pois, estruturalmente, o
próprio elo de união entre fé e razão, entre o sobrenatural e o natural.
Olvidando, pois, deste pressuposto que nos parece fundamental, Duns
Escoto não consegue colocar em diálogo filosofia e teologia e nem fé e razão.
Por isso mesmo é que, na sua concepção, as duas ordens de conhecimento
passam à margem de qualquer concordância. Permanecem, pois,
fundamentalmente opostas. Por negar o conceito de analogia, que possibilitara a
um Tomás de Aquino dar alicerce racional ao seu projeto de confecção de uma
ciência teológica, Duns Escoto delimita de tal forma os laços que ligavam
teologia e filosofia, que as duas só podem permanecer separadas.
De fato, o objeto próprio da teologia é Deus enquanto Deus; o da
filosofia, ao contrário, e mais especificamente o da metafísica – que é a sua coroa
– é o ser enquanto ser.414 Ora, o nosso intelecto, no estado em que se encontra,
parece incapaz de alcançar o ser enquanto tal, salvo no que toca ao ser das
coisas sensíveis, das quais realmente consegue abstraí-lo: “Portanto, o intelecto
só conhece do ser o que dele pode abstrair a partir dos dados dos sentidos.”415
Das chamadas substâncias separadas, no entanto, não temos qualquer conceito
direto, não podemos, por conseguinte, conhecer o ser delas enquanto tal.416
E, entretanto, este é o objeto próprio da metafísica, qual seja, o ser
enquanto tal, isto é, o ser enquanto despojado de qualquer determinação, o ser
comum, tanto às realidades sensíveis como as inteligíveis, indistintamente: “Falar
414
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 737: “O objeto próprio da teologia é Deus
enquanto Deus; o da filosofia, ou, antes, da metafísica que a coroa, é o ser enquanto ser.”
415
Idem. Ibidem.
416
Idem. Ibidem: “Não temos nenhum conceito direto do que podem ser substâncias puramente
imateriais e inteligíveis, os anjos e Deus, por exemplo. (...) além disso, não podemos sequer
conceber o que significa a palavra ‘ser’ quando a aplicamos a ele.”
do ser enquanto ser é tomar por objeto o ser enquanto tal, sem nenhuma
determinação que o restrinja a um modo de ser determinado.”417 A metafísica,
desta feita, como bem conclui Gilson no seu estudo sobre Duns Escoto, se
apresenta, antes de mais nada, como uma ciência, “ (...) do ser enquanto ser,
construída por um intelecto que só pode alcançar a alma sob um de seus aspectos
e que não é o mais elevado.”418 Há de se perguntar então se, num sistema como
estes, uma metafísica é ainda possível e em que circunstâncias o seria, quero
dizer, o “(...) que se deve fazer para que a metafísica seja possível?”419
Antes de qualquer coisa, o seu objeto deverá ser o mais indeterminado
possível, ou seja, algo que seja, de tal forma comum a todos os seres, que não se
possa distinguir por ele, nenhum dos seres: “É preciso lhe dar como objeto uma
noção de ser tão completamente abstrata e indeterminada que ela possa se aplicar
indiferentemente a tudo o que é.”420 Vimos, pois, que o conceito de ser que
Tomás privilegia em sua doutrina – para depois aplicá-lo por antonomásia a
Deus – é do ato de existir (ipsum esse). Ora, tal conceito, não serve para Duns
Escoto. Com efeito, o ato de existir será, no final das contas, um atributo que,
sendo próprio a todo ser, se realiza, no entanto, diferentemente em cada um
deles. Logo, adotá-lo como objeto próprio da metafísica, seria comprometer a
unidade desta ciência: “Tais atos de existir são, em última análise,
irredutivelmente distintos uns dos outros; seu estudo não se centraria num objeto
verdadeiramente uno.”421 A metafísica haverá que alcançar finalmente, um objeto
absolutamente indeterminado, indistinto, porque aplicável, de forma indiferente,
a qualquer ser. É a apreensão, pois, deste conceito generalíssimo de ser, que leva
o Doutor Sutil, enquanto metafísico, a sua repisada doutrina da univocidade do
ser:
417
Idem. Ibidem.
418
Idem. Ibidem.
419
Idem. Ibidem.
420
Idem. Ibidem. p. 737 e 738.
421
Idem. Ibidem. p. 738.
Para salvar a unidade de seu objeto e, por conseguinte, sua
própria existência, a metafísica deve considerar a noção de ser
apenas em seu último grau de abstração, aquele em que ele se
aplica num só e mesmo sentido a tudo o que é. É o que se
exprime ao se dizer que o ser é “unívoco” para o metafísico.422
Não obstante, o sujeito da metafísica não seja Deus423 e talvez por isso
mesmo, “posto que nenhuma ciência demonstra a existência do seu próprio
objeto”424, ela se debruça sobre a árdua tarefa de provar-lhe a existência,
exatamente no âmbito do seu discurso sobre o ser enquanto ser. Não nos cabe
aqui desenvolver a prova da existência de Deus em Escoto, mas apenas afirmar
que, no ato mesmo em que se conclui a demonstração da existência de um ser
primeiro e infinito, a abordagem metafísica encerra-se, pois continuar seria, de
certa forma, trair o seu objeto formal, que é o ser enquanto tal. Passa a
metafísica, precisamente neste momento, o “bastão” para a teologia, a quem
caberá classificar e discriminar as perfeições deste ser primeiro e infinito:
422
Idem. Ibidem.
423
Duns Scot. Reportata Parisiensia. pról, q. 3, a. 1: “Concedo, portanto, com Avicena que
Deus não é o sujeito da metafísica.” Idem. Op. Cit: “Portanto, no que concerne a este artigo,
digo que Deus não é o sujeito da metafísica (...)”.
424
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 493. Duns Scot. Op. Cit. pról, q. 3, a. 1:
“De fato, Avicena pretende que Deus não é o sujeito da metafísica porque nenhuma ciência
prova seu sujeito; ora, o metafísico prova que Deus existe. Logo (...)”.
425
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 494.
Não existe, pois, em Duns Escoto, uma teologia natural ou uma
teodicéia propriamente dita, pois não existe o recurso à analogia, que nos
permitiria, desde então, adentrar um pouco mais no que seria um discurso sobre
os atributos divinos. Além da demonstração da existência de Deus, nada mais é
demonstrável entre as matérias teológicas e assim “Nada do que é demonstrável
pela razão é revelado por Deus, e nada do que é revelado por Deus é
demonstrável (...)”426. Num pensamento como este, é evidente que a teologia
começa a se tornar como uma espécie de “(...)asilo de tudo o que não comporta
demonstração necessária e de tudo o que não é objeto de ciência (...)”427. Se a
última das demonstrações, exclusivamente racionais a que podemos chegar, é a
da existência de Deus, e, se é a partir daí que a metafísica cede lugar a revelação
e a teologia, é claro que “(...) a teologia só é uma ciência num sentido
especialíssimo da palavra.”428
Certamente não poderá ser mais uma ciência especulativa, pois não
nos fornece nenhum conhecimento demonstrativo e unicamente racional do seu
objeto. Será, ao contrário, muito mais uma ciência prática, pois o conhecimento
que ela nos fornecerá do seu objeto, só será certo se crido pela fé e se, animados
pela Esperança da futura beatitude, nortearmos por ele as nossas vidas:
426
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 751.
427
Idem. Ibidem.
428
Idem. Ibidem.
429
Idem. Ibidem.
7.2) Na Escolástica Decadente: Guilherme de Ockham
430
Idem. Ibidem. p. 797.
431
Idem. Ibidem.
432
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 537.
433
Guilherme de Ockham. Ordinatio. Prólogo, q.1: “De outro modo, ‘conhecimento abstrativo’
significa o que abstrai da existência e da não existência, bem como das outras condições que
acontecem contingentemente às coisas ou delas são predicadas.”
434
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 537
à ordem das idéias.”435 Com efeito, se quisermos realmente saber se o objeto ou
as relações entre as idéias que pensamos são, de fato, como as pensamos, na
realidade, precisamos estar de posse de uma outra forma de conhecimento, a
saber, de um conhecimento intuitivo, que nos coloque de posse de uma evidência
imediata:
439
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 537.
440
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 796.
441
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 541.
442
Idem. Ibidem.
apenas intuitivo ou abstrativo-singular, jamais poderemos
ascender ao conhecimento singular de outro ser.443
443
Idem. Ibidem
444
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 299.
445
Guilherme de Ockham. Lectura Sententiarum. In: REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario.
História da Filosofia: Patrística e Escolástica. Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. 2ª
ed. São Paulo: Paulus, 2004. p. 299.
446
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 815.
doutrina que trata das verdades relativas a nossa salvação447 e cujo método pelo
qual delas se aproxima é exclusivamente a priori. Neste sentido, embora a
metafísica verse também sobre certo número de verdades em comum com a
teologia, o seu método é rigorosamente a posteriori.448 É por terem, pois,
procedimentos de todo heterogênicos, que com energia e severidade singular,
Ockham insiste em afirmar que, nem a teologia deve esperar se beneficiar com
qualquer demonstração da metafísica, nem a metafísica pode pretender dar conta
de nenhum auxílio à teologia. São dois conhecimentos justapostos, que devem
permanecer separados:
450
Giovanni Reale. História da Filosofia: Do Humanismo a Descartes. p. 68:
451
Erasmo. Elogio da Loucura. LII. In: REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da
Filosofia: Do Humanismo a Descartes. Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. 2ª ed. São
Paulo: Paulus, 2004. p. 85.
Além disso, são infinitos os caminhos pelos quais os Escolásticos
tornam ainda mais sutis aquelas infinitesimais sutilezas: em suma,
seria mais fácil escapar de um labirinto do que dos emaranhados
dos Realistas, Nominalistas, Tomistas, Albertistas, Ockamistas,
Escotistas,e não acenei todas as escolas, mas apenas às
principais. Em todas estas escolas erudição e abstrusidade estão
na ordem do dia e eu penso que os próprios apóstolos teriam
necessidade do socorro de outro Espírito Santo, caso fossem
forçados a cruzar armas com esta nova estirpe de teólogos.452
452
Erasmo. Elogio da Loucura. LIII. In: REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da
Filosofia: Do Humanismo a Descartes. Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. 2ª ed. São
Paulo: Paulus, 2004. p. 86. (O itálico é nosso).
453
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 68.
454
Idem. Ibidem. p. 508. (O itálico é nosso).
7.4) Na Reforma: Martinho Lutero
Com efeito, Lutero não aceita uma filosofia cristã, porque repele a
própria noção de filosofia, enquanto obra de uma razão decaída e incapaz de
encontrar a verdade. Sem embargo, entre filosofia e religião, longe de haver
apenas uma distinção, existe, na verdade, um abismo de separação, uma exclui a
outra, como a verdade afasta e destrói o erro:
A de Lutero era muito mais forte: pelo menos ele tinha o mérito
da franqueza. Para ele, ‘a moral de Aristóteles quase inteira é o
pior inimigo da graça. (...) Não apenas o cristianismo não é uma
filosofia, mas ele nunca terá uma filosofia, essa stultitia, que se
possa dizer compatível com o Evangelho.456
455
Lutero. Erl. XLIV, 156. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª ed.
Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353. (O itálico é nosso).
456
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 508.
Ouçamos o próprio Lutero:
457
Lutero. Walch. X, 1398. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353.
458
Lutero. Erl. XLV, 336. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª ed.
Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353.
459
Lutero. Erl. XLIV, 156ss. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353.
460
Lutero. Erl XLIV. 156 ss. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353.
461
Lutero. Weimar. XL, 1 abt., 362. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A
Civilização. 7ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353.
importa que se exija do crente eliminar, alienando-se. De fato, ele tem o “dever
de destruí-la (A razão) inteiramente e sepultá-la.”462
Deste fato, outro fato ainda mais surpreendente deriva, qual seja, os
frontais ataques que Lutero faz a toda cultura racional, já enquanto se manifesta
nos pensadores clássicos, já enquanto é cultivada, de forma mais apurada, nas
instituições de ensino. De Aristóteles e Santo Tomás, é dele este juízo impiedoso:
“(...) Tomás de Aquino duvido se se salvou ou se condenou (...) Tomás escreveu
muitas heresias e inaugurou o reino de Aristóteles, devastador da santa
doutrina.”463 Das universidades e toda espécie de cultura escolar, declina as mais
duras sentenças:
O deus Moloch, a que os hebreus sacrificavam os seus filhos, é
hoje representado pelas universidades às quais imolamos a maior
e melhor parte da nossa juventude (...) O que, porém, nunca se
poderá bastantemente deplorar é que a juventude é, nelas,
instruída nesta ciência ímpia e pagã que tende a corromper
miseravelmente as almas mais puras e os ânimos mais
generosos.464
462
Lutero. Erl. XLIV, 156ss. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353. (O parêntese é nosso).
463
Lutero. Weimar. VIII, 127. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 354.
464
Lutero. Walch. XIX, 1430. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 354 e 355.
465
Lutero. Walch. XII, 45. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª ed.
Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 355.
mentiras e trevas (...). E no entanto as altas escolas, estas escolas
diabólicas fazem grande alarde de suas luzes naturais e guindam-
nas até aos céus, como se fossem não só úteis senão
indispensáveis. Assim que hoje é coisa perfeitamente
estabelecida que todas essas escolas são invenção do demônio
para obscurecer o cristianismo (...) Nelas se ensina que a luz
divina ilumina a natural como o sol ilumina e faz ressaltar um
belo painel: todas essas são idéias pagãs e não doutrina de J.C.
Por esta forma as escolas instruem os seus doutores e sacerdotes
mas é o demônio quem fala pelos seus lábios (...).466
466
Lutero. Walch. XI, 459, 599. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização.
7ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 355.
467
Leonel Franca. A Igreja, A Reforma e A Civilização. p. 353.
468
Idem. Ibidem.
469
Paulsen. Philosophia Militans. p. 38-39. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A
Civilização. 7ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 355.
cessaram de ser luterana. Tanto foge a sua fé da filosofia e a sua
filosofia da fé.470
470
Moehler. Gesammelte Schriften und Aufsaetze. I, 260. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A
Reforma e A Civilização. 7ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. Nota 38.
8) O Atual Status da Questão de uma
Filosofia Cristã
471
Idem. Ibidem.
Não é difícil imaginar que, para estes, o cristianismo em nada
contribuiu para o progresso do pensamento filosófico da humanidade.472 Um dos
maiores representantes desta linha de pensamento, o historiador da filosofia
Emile Bréhier, formula em termos claros a controvérsia:
472
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 7: “(...) portanto, o cristianismo não
contribuiu em nada para enriquecer o patrimônio filosófico da humanidade.”
473
E. Bréhier. História da Filosofia. Tomo 1, fasc. II, p. 207-208. São Paulo: Mestre Jou,
1997. In: ZILLES, Urbano. Fé e Razão no Pensamento Medieval. 2ª ed. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1996. p. 46.
474
H. Ritter. Historie de la Philosophie Chrétienne. T. I, p. 30-31. Trad. Trullard. Paris: 1843.
In: FRANCA, Leonel. A Crise do Mundo Moderno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio, 1942. p. 193 e 194.
Não é difícil, pois, ainda apreender o pressuposto segundo o qual a
conclusão a que chegaram os racionalistas, do seu ponto de vista, se tornara
perfeitamente inteligível. Ela consiste em estabelecer uma oposição essencial
entre filosofia e religião. Esta oposição, que separa as duas coisas, é a seguinte: a
filosofia pertence à ordem da razão e a religião se estende ao campo do
irracional. Assim como não pode haver acordo entre racionalidade e
irracionalidade; assim como não se pode estabelecer contato entre o racional e o
irracional; assim também, da mesma forma, não pode haver colaboração alguma
entre filosofia e religião ou Revelação. Étienne, aponta para este aspecto do
pensamento racionalista:
475
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 7 (O itálico é nosso).
476
Idem. Ibidem. p. 9: “Ora, é um fato que houve, entre os filósofos gregos e nós, a Revelação
cristã e que ela modificou profundamente as condições nas quais a razão se exerce.”
piores. De modo que, o único modo seguro para se filosofar, sem cair em
contradição, é ter a revelação por guia e procurar, na medida do possível, torná-
la inteligível pela razão. Nisto consiste a filosofia para o cristão: procurar
inteligir a revelação:
Entretanto, se até aqui existe algum acordo, daqui para frente começam
as querelas! Elas se iniciam, de fato, quando se resolve explicitar o modo como
se deve entender a sentença fides quaerens intellectum478 em filosofia. A forma
como se compreende esta filiação, na qual a filosofia passa a ser tutelada pela
teologia, eis o fundo do desacordo.
Com efeito, muitos entendem que reduzir a filosofia, pura e
simplesmente, à fórmula fides quaerens intellectum é confundi-la com a
teologia.479 Há de se buscar, por conseguinte, uma outra maneira de se
477
Idem. Ibidem. (Os itálicos são nossos).
478
A fé procura inteligir.
479
Tal confusão nos arrastaria, segundo o célebre medievalista Van Steenberghen, ao
racionalismo hegeliano. Eis os termos veementes, nos quais Steenberghen formula a sua crítica
ao conceito de filosofia cristã: VAN STEENBERGHEN, Fernand. História da Filosofia:
Período Cristão. Lisboa: Gradiva, s.d. p. 169. In: ZILLES, Urbano. Fé e Razão no
Pensamento Medieval. 2ª ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 47: “Acrescentemos que a
idéia de uma ‘filosofia cristã’ entendida no sentido de um saber que, sem pertencer à teologia,
seria contudo especificamente marcado pelo Cristianismo, é totalmente estranha à tradição cristã
antiga e medieval. Em suma, o único tipo de filosofia que poderia chamar-se ‘cristã’ seria uma
filosofia como a de Hegel, na medida em que transpõe para temas filosóficos puramente
estabelecer a ligação entre fé e razão, que não elimine a autonomia da filosofia.
Como, pois, se pode então colocar esta concórdia entre filosofia e teologia, sem
que isto acarrete na ruína de ambas? Na tentativa de se responder a esta questão,
as escolásticas cristãs se dividem. O problema é formulado da seguinte forma por
Gilson:
482
Idem. Ibidem.
483
Idem. Ibidem.
Fundada na razão humana, devendo sua verdade unicamente à
evidência dos seus princípios e à exatidão das suas deduções, ela
realiza espontaneamente sua concordância com a fé, sem ter de se
falsear; se ela se achar em concordância com a fé é simplesmente
porque é verdadeira e porque a verdade não poderia contradizer
a verdade.484
484
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
485
Aliás, parece que no neotomismo, o único recurso legítimo que a revelação pode acrescentar
à razão, em filosofia, é este de apontar-lhe o erro para que ela – a razão – se critique e se
corrija sozinha.
486
Idem. Ibidem. p. 11 (O itálico é nosso).
Se uma filosofia é verdadeira, isso só pode se dever ao fato de ela
ser racional; mas, se ela merece o título de racional, isso não pode
se dever ao fato de ela ser cristã.487
É por nisso que nenhum tomista, que segue esta linha, se sentiria
ofendido se alguém lhe dissesse que a sua filosofia não é uma filosofia cristã,
embora não vá de encontro, evidentemente, a nenhuma das verdades cristãs.
Talvez tal afirmação até lhe soasse como um elogio:
487
Idem. Ibidem. p. 12.
488
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
489
Idem. Ibidem. p. 13: “(...) as conversações filosóficas são feitas entre homem e homem, e não
entre homem e cristão.”
enquanto se fica dentro da especulação filosófica, o tomismo não
passa de um aristotelismo racionalmente corrigido e
490
judiciosamente completado (...).
490
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
491
Idem. Op. Cit. (O itálico é nosso).
492
Idem. Op. Cit. p. 13.
escola tomista de ter re-introduzido no seio do cristianismo, o próprio
paganismo:
493
Idem. Op. Cit. p. 11.
494
Se, por um lado, é verdade que o neotomismo, em nome da autonomia, elimina o “cristã” da
filosofia, por outro, é igualmente verdadeiro que o agostinismo exclui o conceito de filosofia
para dar lugar à noção cristã do filosofar. Portanto, tentando definir o que seja uma filosofia
cristã, os dois extremos só a tornam indefinível e sem sentido.
495
Idem. Ibidem. p. 14.
496
Idem. Ibidem. p. 11.
8.4) A Solução Tomásica
497
Idem. Ibidem. p. 17.
498
Idem. Ibidem. p. 51.
499
Idem. Ibidem. p. 42.
500
Idem. Ibidem. p. 51.
Tomando o conceito de filosofia, do ponto de vista estritamente
formal, não se pode, está claro, falar de uma filosofia cristã. A filosofia e Sto.
Tomás, por exemplo, é filosofia, não por ser cristã, mas sim por ser racional:
“(...) por um lado é preciso dizer que, se a filosofia tomista é filosofia, o é
enquanto racional, não enquanto cristã.”501 Destarte, a filosofia só poderá se
manter fiel à sua própria natureza, não em virtude de ser cristã, mas enquanto
depender unicamente da razão. No seu exercício, tanto no que diz respeito aos
métodos, quanto no que toca ao seu conteúdo, todo o seu desenlace deve ser
exclusivamente racional. Daí que,
Resta-nos dizer que o que nos importa de uma filosofia não é que
ela seja cristã, mas que ela seja verdadeira. Ainda uma vez,
quaisquer que sejam as condições de sua formação e do seu
exercício na alma, é da razão que depende a filosofia e, quanto
mais ela será verdadeira, tanto mais será rigorosamente fiel à
própria natureza da filosofia e, se assim posso dizer, fechada
dentro dessa natureza.502
501
Jacques Maritain. Sulla Filosofia Cristiana. Milão: Vita e Pensiero, 1978. pp. 53-55. In:
MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini.
Rev. H. Dalbosco. Paulus: São Paulo, 1999. p. 86.
502
Jacques Maritain. Sulla Filosofia Cristiana. Milão: Vita e Pensiero, 1978. pp. 53-55. In:
MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini.
Rev. H. Dalbosco. Paulus: São Paulo, 1999. p. 86.
gentios dirige-se igualmente e impõe-se pela evidência de seus
métodos racionais de demonstração. Uma filosofia que acolhesse,
por outras vias, verdades inacessíveis aos seus processos
naturais de conhecimento, negar-se-ia a si mesma como filosofia,
destruindo a própria essência.503
(...) se para filosofia ele crê que deva fechar a sua fé num cofre –
isto é, cessar de ser cristão, enquanto é filósofo – mutila-se, coisa
503
Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 194.
504
Jacques Maritain. Il Contadino Della Carona. In: MARITAIN, Jacques. Por um
Humanismo Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São
Paulo, 1999. p. 91.
verdadeiramente malsã (tanto mais que o filosofar ocupa-lhe a
melhor parte do tempo) e engana-se, visto que estes cofres
fecham sempre muito mal! Mas, se enquanto filosofa, não fecha
a sua fé no cofre, filosofa, não obstante à fé, à medida que a tem.
É melhor termos consciência disso.505
505
Jacques Maritain. Il Contadino Della Carona. In: MARITAIN, Jacques. Por um
Humanismo Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São
Paulo, 1999. p. 91. (O itálico é nosso).
506
Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 198.
por meio de uma palavra – a verdade, em sua gênese, é una. E a unidade da
verdade, para nós, consiste precisamente nisto: que, pelo menos, uma verdade
não contradiga a outra:
511
Maurice Blondel. Le Problème de la Philosophie Catholique. p. 163. In: FRANCA,
Leonel. A Crise do Mundo Moderno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1942. p.
199: “A simples presença ao lado dela de um outro magistério, vem convida-la a fazer exame de
sua consciência e de sua força; e as contradições que daí podem surgir despertam reflexões
salutares. Não que o filósofo deve pensar por ordem. Quando me engano numa adição,
porventura o amigo, porventura o amigo que me pede de verificar minha operação sem me
explicar o meu erro para deixar-me o cuidado de o descobrir por mim, escraviza ou liberta o
meu pensamento?” (O itálico é nosso). Franca, neste mesmo sentido, nos dá um outro exemplo,
assaz “esclarecedor: Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 200: “Os amigos da
montanha sabem a diferença que há na conquista dos píncaros, entre uma ascenção com guia e
uma ascenção sem guia. O perito das alturas indica os picos acessíveis, aponta os caminhos
mais seguros, denuncia a insídia dos precipícios. O auxílio é de um valor inestimável. Mas
quem sobe com os seus pés e suas energias é o viandante tenaz e dócil.” (O itálico é nosso).
512
Maurice Blondel. Le Problème de la Philosophie Catholique. p. 163. In: FRANCA,
Leonel. A Crise do Mundo Moderno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1942. p.
199.
por via racional? Dever-se-ia elevar então, à dignidade de axioma, a máxima
maritaniana que diz: “A filosofia verdadeiramente cristã (e isto é muito evidente
no próprio Santo Tomás) é assim a filosofia mais pura e mais verdadeiramente
filosófica.”513
Na verdade, o auxílio da fé faz com que o filósofo, desvencilhando-se
do erro, apegue-se unicamente a verdade, dedicando-se assim, integralmente a
ela. Destarte, a fé torna menos longínquo, o ideal que se encontra na razão
fundante de toda filosofia, qual seja, a der ser, por excelência, a ciência da
verdade:
513
Jacques Maritain. Sicienza e Saggezza. In: MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo
Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São Paulo, 1999.
p. 88.
514
Jacques Maritain. Approches sans Entraves. In: MARITAIN, Jacques. Por um
Humanismo Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São
Paulo, 1999. p. 93.
515
Jacques Maritain. Il Contadino della Caronna. pp. 214-215. In: MARITAIN, Jacques. Por
um Humanismo Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus:
São Paulo, 1999. p. 91 e 92.
Não se ignora que, no passado, as relações entre fé e razão, filosofia e
teologia nem sempre foram honestas. De fato, o processo de tomada de
consciência da autonomia da filosofia frente à teologia e da sua relação com
esta, foi demorado e não sem contradições e exageros e ambos os lados.
Entretanto, as dificuldades existem é para serem resolvidas e não olvidadas.
Ainda hoje, ao raiar da pós-modernidade, a missão que se impõe mais urgente à
filosofia, não é outra, senão é aquela que consiste na tomada de consciência de si
mesma, de qual seja o seu objeto próprio, de como proceder no seu estilo
conciso, e de saber formular em termos convergentes a sua própria essência.
Destarte,
516
Jacques Maritain. Sicienza e Saggezza. In: MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo
Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São Paulo, 1999.
p. 88. (O itálico é nosso).
Estas (a sabedoria teológica e infusa) a ajudarão a ser ela mesma,
pois que os inconvenientes acidentais lamentados anteriormente
dependiam do fato de que esta tomada de consciência, claramente
manifesta no espírito de Santo Tomás, era imperfeitamente
realizada na cultura de seu tempo.517
517
Jacques Maritain. Sicienza e Saggezza. In: MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo
Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São Paulo, 1999.
p. 88. (O parêntese é nosso).
518
Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 200.
tribunal da filosofia, uma tese só responde pela sua consistência
interna e pelo valor das provas que a justificam.519
519
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
520
Jacques Maritain. Sicienza e Saggezza. In: MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo
Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São Paulo, 1999.
p. 90.
8.5) Fides Quaerens Intellectum em Filosofia (O Método da Filosofia
Cristã)
521
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 42.
522
Idem. Ibidem. p. 42 e 43.
Cabe ao filósofo cristão, ao tomar contato com o dado revelado,
discernir se ele é ou não cognoscível unicamente pela razão. O primeiro trabalho
do uso cristão da razão é, portanto, investigar o que, na revelação é, de per si,
inteligível à razão. Uma vez discriminado certo número de verdades que a razão
pode por si só conhecer, deve o filósofo proceder de forma unicamente racional,
para alcançá-las novamente, só que desta vez como objetos da sua ciência. Na
verdade, a fé entra aqui como uma luz para a razão, fazendo-a enxergar uma
série de respostas que, ela mesma – a razão – poderá, doravante, conquistar
sozinha. Aquele, pois, que reconhecer com humildade, que o objeto de seu
estudo, no qual se aplica a sua filosofia, ele o deve à luz da fé, pode ser chamado
de filósofo cristão e a sua filosofia de filosofia cristã. Étienne é muito claro neste
ponto:
523
Idem. Ibidem. p. 44.
524
Idem. Ibidem. p. 46: “(...) o filósofo cristão é um homem que realiza uma escolha entre os
problemas filosóficos.”
partes da filosofia que concernem à existência de Deus e sua
natureza, à origem da nossa alma, sua natureza e seu destino.525
525
Idem. Ibidem.
526
Idem. Ibidem. p. 47.
527
Idem. Ibidem: “Ora, o real é inesgotável e, por conseguinte, a tentativa de sintetizá-lo em
princípios é um empreendimento praticamente impossível.”
da fé: doutrina de Deus, do homem e das suas relações com
Deus.528
Desta forma, uma filosofia pode dizer-se cristã quando, muito embora
se mantendo nitidamente distinta da teologia, não quer abrir mão do auxílio da
revelação cristã, para escolher o que lhe interessa considerar. Atenuando os
radicalismos opostos das duas escolas – agostiniana e neotomista – Gilson
chega, finalmente, a uma definição de filosofia cristã, que consegue, ao mesmo
tempo, abarcar um caráter estritamente filosófico, salvaguardando toda a sua
integridade exclusivamente racional e preservar o âmbito em que o auxílio da
revelação cristã se faz indispensável:
528
Idem. Ibidem.
529
Idem. Ibidem. p. 45.
Conclusão
530
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 509. (O itálico é nosso).
531
Luiz Jean Lauand. O Cristianismo e a Filosofia Pagã. In: Cultura e Educação na Idade
Média: Textos do Século V ao XIII. Trad. Luiz Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes,
1998. p. 254: “Na verdade, todo pensamento medieval do Ocidente esforçar-se-á por estabelecer
os termos do relacionamento entre fides e ratio, entre fé e razão: ora enfatizando um dos
extremos, ora o outro, indo do ‘racionalismo’ dos ‘dialéticos’ ao ‘fideísmo’, e passando pela
formulações altamente equilibradas e harmônicas, como a proposta por Alberto Magno-Tomás
de Aquino.”
primeira, a unidade ou pluralidade das formas que seja de um
interesse essencial para a obra da salvação, ou, inversamente,
porque o que é de um interesse essencial para a obra da salvação
parece não ter encontrado lugar nela, mostra-se simplesmente que
não se entende nem o que é o cristianismo, nem o que é a
filosofia.532
532
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 511.
Que o critiquem por ter dissolvido a essência da filosofia para
deixá-la perder-se na da religião, dá para entender. Que,
inversamente, o critiquem por ter deixado a essência do
cristianismo perder-se para reduzi-lo a não mais que uma
filosofia, esta também é uma objeção inteligível. O que deixa de
sê-lo é objetar-lhe ambas as coisas ao mesmo tempo. Se os
pensadores da Idade Média foram tão filósofos que chegaram a
comprometer a essência do cristianismo, como não levar a sério
seus sistemas e com que direito eliminá-los da história da
filosofia? Mas se, ao contrário, eles sacrificaram a filosofia às
exigências religiosas do cristianismo, como acusá-los de não
terem sido cristãos?533
533
Idem. Ibidem. p. 505. (O itálico é nosso).
534
Influxo, bem entendido, que não deixa de ser extrínseco ao próprio filosofar, isto é, que não
comprometera em nada a textura racional de suas argumentações e nem a articulação,
genuinamente filosófica, esboçada pelas novas teses.
nunca teriam podido encontrar lugar em seus sistemas sem
arruiná-los.535
536
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 9.
537
Battista Mondin. Curso de Filosofia: Os Filósofos do Ocidente Vol 3. p. 141.
se costuma imaginar. De toda forma, valerá muito mais acompanhar na tinta da
sua própria pena, ao menos em suas linhas gerais, a argumentação de Étienne:
538
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 500.
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